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Manifestação e Ocultamento

outras leituras sobre a Torre H


Proposta de projeto final
Departamento de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio
2021.2
Julia Maria Bezerra de Mello
Orientador . Carlos Eduardo Spencer
Introdução 5
Antecedentes 7
Outras leituras para o objeto arquitetônico 11
Prática arquitetônica 17
A Torre H 23
A Torre como nuvem 27
A Torre como panóptico 27
A Torre como labirinto 29
A Torre como pavilhão midiático 31
Considerações finais 33
Bibliografia 35
Créditos de imagem 39
4
Introdução

A apresentação de uma esfera virtual a partir da popularização da internet, na década de


1990, traz novas problemáticas para o campo da arquitetura. Os meios de comunicação e
simulações digitais introduzem novas camadas ao real, e o que se vê ganha tanta relevância
quanto o que se é. Neste contexto, a relação entre sujeito e objeto arquitetônico torna-
se ainda mais problemática. Antes conduzida por uma visibilidade franca e honesta, que
buscava, em última instância, a aparência maquinal do edifício, essa relação é levada para
outros níveis interpretativos. Novas operativas arquitetônicas, debatidas neste trabalho,
fazem com que a experiência do sujeito com o edifício deixe de ser tão direta e tão clara.

Inicialmente, é realizado um breve debate teórico sobre como a relação sujeito-objeto


vem se transformando ao longo do tempo. Em seguida, algumas obras arquitetônicas são
investigadas a fim de melhor compreender conceitos e práticas que regem atualmente a
relação entre o sujeito e o objeto. O trabalho investiga obras arquitetônicas que geram
uma tensão com a imagem, a virtualidade (como ambiguidade), e a percepção sensorial
do objeto arquitetônico. Em paralelo, abre-se um debate teórico sobre conceitos como
transparência fenomênica1, ocultamento e desmaterialização.

É identificado na cidade do Rio de Janeiro um edifício que revela explicitamente a


objetividade visual moderna. Ele será entendido, neste trabalho, como uma espécie
de objeto suporte para a proposição de intervenções que venham problematizar a sua
posição frente ao sujeito, em relação à sua visibilidade, presença e aparência. A Torre H
é uma das torres construídas pertencentes ao empreendimento Centro da Barra (1970).
O projeto de Oscar Niemeyer contém o plano de massas para 71 torres, das quais três
foram construídas. A Torre H ficou desde 1990 abandonada e hoje, ainda desocupada,
apresenta-se como uma espécie de edifício fantasma por entre os edifícios erguidos ao
seu redor nas últimas décadas.

A torre, em seu estado atual, está sem qualquer superfície envoltória, e mostra-se como
um esqueleto que exibe inteiramente e explicitamente todo o seu interior. O objeto
arquitetônico é posto em diálogo com a Slow House, casa projetada por Elizabeth Diller
e Ricardo Scofidio em 1991, e a partir de seus contrastes pretende-se entender suas
dinâmicas visuais, para além do que é visível. Finalmente, utiliza-se dos conceitos de meio-
lugar, acontecimento, tela e objeto2 de Richard Scoffier, para propor experimentalmente
sobre a forma como a torre é apreendida pelo sujeito.

1. Colin Rowe and Robert Slutzky, “Transparency: Literal and Phenomenal” in Colin Rowe, The Ma-
thematics of the Ideal Villa and Other Essays. Cambridge, MA:MIT Press, 1976. Originally published
in Perspecta, v.8, 1963, p. 45-54.

2. Richard Scoffier, “Os quatro conceitos fundamentais da arquitetura contemporânea”, em


Leituras em teoria da arquitetura, tradução de Guilherme Lassance. Rio de Janeiro, Viana & Mosly
Editora, 2009, p. 166-169.
5
(Figura 2) Le Corbusier, Maison Dom-Ino, 1914.

(Figura 3) Ilustração de Robert Venturi, Denise Scott Brown e


Steven Izenour, Aprendendo com Las Vegas, 1972. O galpão
decorado, em contraste com um edifício que tem sua forma
determinada pela função.

6
Antecedentes

A ordem visual moderna tem suas origens no Palácio de Cristal, uma estufa de vidro e
ferro fundido que comportou a feira internacional de 1851, em Londres, projetada por
Joseph Paxton. A utilização do vidro em sua total transparência, para Walter Benjamin, é
um inimigo do mistério e da experiência.3 Na plenitude do iluminismo, a hiperexposição
modernista, em sua clareza estrutural e material, retira a aura dos objetos, marca os
contrastes entre figura e fundo, construído e vazio. Com pontuais ressalvas, a arquitetura
moderna é influenciada pelo mito da transparência.

O conceito da transparência pode ser lido pela inteligibilidade, pela objetividade visual
e por uma ética de honestidade e pureza na qual a arquitetura se apresenta. Sob este
regime, as obras modernas se manifestam através do que é visível. A exposição do que
ocorre internamente, a função, e a estrutura independente do edifício determinam a forma
como estas obras são apreendidas. A separação explícita dos elementos estruturais
dos não estruturantes, como paredes e a fachada, propõe um entendimento brando da
composição do edifício moderno. Identifica-se a estrutura independente, o que é móvel,
os seus limites e profundidades.

Dessa forma, as construções densas e obscuras do século XIX são transformadas em


outras claras e ventiladas. A ruptura com a ornamentação burguesa é substituída pela
visibilidade do exterior para o interior. Pressupõe-se que a transparência comunique a
expressão do edifício moderno. O que antes era comunicado por uma tipologia de fachada
clássica, agora se evidencia pela verdade dos materiais.

O modernismo, em sua escassez de habilidades comunicativas, gera espaços anônimos.


Robert Venturi critica o funcionalismo puro da arquitetura moderna em Complexidade e
Contradição na Arquitetura, demonstrando desejo pela diversidade:

Sou mais pela riqueza de significado do que pela clareza de significado; pela
função implícita, tanto quanto pela função explícita (...) Uma arquitetura
válida evoca muitos níveis de significado e combinações de enfoques: o
espaço arquitetônico e seus elementos tornam-se legíveis e viáveis de
muitas maneiras ao mesmo tempo.4

O pós-modernismo se exibe através de significados simbólicos. Esses se utilizam de


conceitos eruditos, fazendo alusão à história da arquitetura. A linguagem pós-moderna
acaba se tornando inacessível conceitualmente. No entanto, o exemplo do galpão
decorado5 identificado por Venturi e Denise Scott Brown em Las Vegas se mostra por sua
superficialidade comunicativa. Essa não é necessariamente intelectual, mas do campo da
propaganda, se utilizando de uma linguagem reconhecível e popular.

3. Guilherme Wisnik, Dentro do Nevoeiro. São Paulo, Ubu Editora, 2016. p. 7.


4. Robert Venturi, Complexidade e contradição em arquitetura. São Paulo, WMF Martins Fontes,
2004, p.2.
5. Denise Scott Brown, Robert Venturi e Steven Izenour, Aprendendo com Las Vegas. São Paulo,
Cosac Naify, 2003.
7
(Figura 4) SANAA, New Museum, 2007.

(Figura 5) Herzog & de Meuron, Goetz Gallery, 1992.


8
O galpão ornamentado substitui a regra modernista, “função segue a forma”, por uma
forma que contradiz e simplifica a função do edifício. A superfície externa "temática"
desses galpões tem significado e forma independente do que ocorre no interior do
edifício. Ainda que uma linguagem de referências múltiplas amplie a diversidade léxica, a
literalidade na qual os conceitos são implantados tende a reduzir a experiência espacial.

Em A função do ornamento, Farshid Moussavi, arquiteta e autora, defende que a


comunicação da arquitetura pós-moderna se dá de forma obsoleta, uma vez que suas
referências permanecem estáticas ao passar do tempo. Farshid argumenta que a
arquitetura que se comunica através da experiência, ou fenomenomenicamente, pode
convergir ao longo do tempo com uma cultura em constante transformação:

Se a arquitetura deve permanecer em ressonância com a cultura, ela precisa


desenvolver mecanismos a partir dos quais a cultura possa constantemente
produzir novas imagens e conceitos ao invés de reciclar os existentes.6

Em primeiro momento, no modernismo, o plano de vedação é desmembrado da estrutura


do edifício através da estrutura independente. Posteriormente, este invólucro teve
sua forma e signo desassociados da função nos galpões decorados pós-modernistas
observados por Venturi. Já no contexto contemporâneo, começam a surgir camadas de
vedação que aparecem como superfícies novamente autônomas, mas de comunicação
abstrata e relacional.

A superfície mencionada é capaz de intermediar informações e relações, nublando também


o espaço entre o dentro e fora, o construído e o vazio, o sujeito e a obra. A dissolução
da fachada permitiu uma interpretação relativa e ampliada do objeto arquitetônico. As
obras que serão comentadas a seguir de certa forma se resguardam por trás de vedações
sensíveis para uma relação sensorial com o sujeito.

6. Fashid Moussavi y Michael Kubo, La función del ornamento. Boston: Harvard University. Gradu-
ate School of Design, 2006, p.3.
9
(Figura 6, 7 e 8) Le Corbusier, Vila Stein, 1927.

A fachada da Vila Stein se mostra horizontalmente, com rasgos


em fita ininterruptos. Em contraste, o espaço interior se revela
no sentido oposto. A amplitude visual esperada é substituída
por planos que delimitam a percepção contínua do espaço.

(Figura 9) Dan Graham, Bisected Triangle, Interior Curve, 2003.


10
Outras leituras para o objeto arquitetônico

No início dos anos 90, uma arquitetura enevoada começa a surgir no cenário mundial. A
exposição Light Construction, realizada em 1995 no MoMA de Nova Iorque e curada por
Terence Riley, apresenta obras cujas superfícies nublam seu interior. A transparência
fenomênica,7 que se distingue da transparência literal, é um conceito de Colin Rowe e
Robert Slutzky e caracteriza interpretações espaciais ambíguas.

A transparência fenomênica se manifesta através de qualidades ópticas imprecisas,


sobreposição de planos ou ainda por ruptura de uma expectativa visual, como observado
por Rowe e Slutzky na Villa Stein de Le Corbusier. A transparência nesta casa se exibe
mais por artifícios de ocultamento ou superficialidade e menos pela propriedade de
visibilidade do vidro. Os planos de vedação intermediam a percepção de dentro e fora,
regulando a interpenetrabilidade física do olhar e a experiência de apreensão de um
espaço ocultamente complexo (Figuras 6, 7 e 8).

O vidro, em sua obscuridade, é o tema de investigação do artista americano Dan Graham. O


pavilhão Bisected Triangle, Interior Curve, em Inhotim, é uma obra que se oculta em favor
da experiência. Ela é ativada a partir do olhar e sem o mesmo ela é inerte. Sua presença
como mediadora tensiona os limites entre arte e arquitetura, interior e exterior, real e
virtual. Graham explora a virtualidade no sentido em que há uma interconexão singular e
instantânea entre pessoas, obra e paisagem.

Sua singularidade se manifesta na forma como a obra escolhe se situar. Observa-se que
o pavilhão não se coloca no meio de forma monumental, mas opostamente, ele se oculta
para não se permitir entender por inteiro. Ao se camuflar, ele dissolve o jogo de figura e
fundo, e é nessa indeterminação que sua sedução se constrói. O sujeito, em suspensão,
é atraído a adentrar em uma experiência onde curiosidade e descoberta se intermediam.

O vidro não é utilizado pela sua qualidade translúcida, mas pela possibilidade de distorção
e desorientação. Segundo Michel Masson, arquiteto, professor e pesquisador sobre a
obra de Dan Graham:

Seu efeito, no entanto, é oposto: desestabilização e imprecisão, fraturas


e distorções, multiplicação e decomposição da imagem. Nesses termos, o
artista manipula não propriamente o espaço, mas a imagem do espaço, com
vistas a potencializar, variar, tornar complexa a experiência visual.8

Ele desestabiliza para exaltar uma leitura fenomênica. A escala humana e a proximidade
tangível na qual a superfície envidraçada se coloca é afetiva. Ela estabelece uma
comunicação abstrata e imediata ao corpo sensível.

7. Colin Rowe and Robert Slutzky, “Transparency: Literal and Phenomenal” in Colin Rowe, The Ma-
thematics of the Ideal Villa and Other Essays. Cambridge, MA:MIT Press, 1976. Originally published
in Perspecta, v.8, 1963, p. 45-54.
8. Michel Masson, "Jogos reflexivos: os pavilhões de Dan Graham" em ARTE & ENSAIO (UFRJ), n. 34,
2018, p.151.
11
(Figura 10 e 11) Herzog & de Meuron,
Edifício de armazenamento da fábrica Ficola, 1993.

(Figura 12) MOS Architects, proposta para o World Trade


Center, 2011. Dezenas de torres são espalhadas por Nova
Iorque enquanto o sítio original do WTC permanece vazio, "elas
estão por toda parte, mas não são vistas".

(Figura 13) Diller Scofidio + Renfro, Blur Building,


pavilhão para a Swiss Expo 2002.
12
Esta superfície é denominada como pele pelos ex-sócios e arquitetos Juan Herreros e
Iñaki Abalos, na transcrição de uma palestra chamada La Piel Fragil:

Então tomamos nossas próprias preocupações para retomar a autonomia


da pele, a oposição entre superfície e volume ou, simplesmente, o direito
à autonomia e beleza, a supremacia da presença sobre a essência, se isso
realmente existe. Se há algo que nos distancia dos modernos é o nosso
abandono da prioridade da verdade sobre a beleza, da objetividade - seja ela
técnica ou funcional - sobre a aparência ou forma em que isso se apresenta
para nós.9

A superfície aparece na arquitetura contemporânea como forma de controlar o que deve


ser visto, a climatização e a sensibilidade do edifício. Esta pele, em sua presença evidente,
em sua tangibilidade, se expressa de forma relativa para com o sujeito. Independente de
qualquer função ou significado, ela se mostra como um corpo autônomo e responsivo.

A pele é o maior órgão do corpo humano, e tem a função de intermediar e filtrar


correspondências internas e externas. O corpo sem órgãos, segundo Félix Guattari e
Gilles Deleuze, é uma prática exclusivamente sensorial. Desenvolvido nos livros Anti-
Édipo (1972) e Mil Platôs (1980), propõe-se um corpo autônomo, tocado pela experiência
e sem qualquer funcionalidade. O corpo sem órgãos é composto por uma pele sensível,
que compõe o plano de expressão do desejo.

Ainda com a pele em evidência, o edifício de produção e armazenamento da fábrica Ricola


(1992-3) dos arquitetos Herzog & de Meuron se reveste e se revela por uma superfície de
linguagem pop imagética. Como observado por Hal Foster10, os arquitetos se utilizam das
imagens como elemento construtivo. A fotografia de uma folha, do artista Karl Blossfeldt,
é impressa sobre módulos de plástico que compõem uma pele externa.

Ao tocar o solo, a superfície translúcida transmite uma sensação de peso, e a imagem da


folha se confunde com um material denso e esculpido. Quando em contraste com o céu,
a imagem é dissolvida pela luz. É na simultaneidade e repetição serial das imagens que a
leitura ambígua e relativa da superfície ativa é enfatizada. A experiência fotográfica faz
parte da prática visual contemporânea, ela é incorporada pela arquitetura na medida em
que é aplicada e como o indivíduo a interpreta.

Para se manter atemporal, a prática arquitetônica se volta para uma tangibilidade


fenomênica, em constante responsividade com o corpo e a cultura atual. São obras que se
mostram através de atributos como leveza, camuflagem, reflexão ou mutação. Para tal,
materiais sintéticos e suas texturas são explorados por sua aparência e pelos efeitos que
podem proporcionar. Este é um posicionamento pela superficialidade e imaterialidade
da arquitetura, ela deixa de se expressar por uma pureza ou verdade dos materiais. Em
contrapartida, se apresenta como um jogo de máscaras, controlando e filtrando o que é
visto e entendido. O sujeito é seduzido e alienado em uma condição misteriosa e suspensa.

9. Iñaki Ábalos y Juan Herreros, “La Piel Fragil” en Áreas de Impunidad. Barcelona: Actar, 1997. p. 18.
10. Hal Foster, O complexo arte-arquitetura. Tradução de Célia Euvaldo. São Paulo, Ubu Editora,
2017, p. 149-150.
13
(Figura 14) Yoshio Taniguchi, Expansão do Moma, 2004.

(Figura 15) Jean Nouvel, Fundação Cartier de Arte Contemporânea, 1994.


14
A sensação de leveza, deslocamento temporal e virtualidade espacial é observada na
obra de Yoshio Taniguchi. O arquiteto tem uma fala conhecida sobre a reforma do Moma
em 2004, “Arrecade muito dinheiro e eu lhes darei uma boa arquitetura. Arrecade ainda
mais dinheiro e eu farei a arquitetura desaparecer”. A leveza minimalista que o arquiteto
alcança no Moma é na verdade constituída por uma tecnologia sofisticada e sintética. Sua
simplicidade aparente é devida à fetichização dos detalhamentos técnicos e de materiais
industrializados, levados ao ponto da desmaterialização da arquitetura. Ela desaparece
para que a obra de arte sobressaia.

Outra espécie de transparência é utilizada na Fundação Cartier de Arte Contemporânea


(1994) de Jean Nouvel. Este edifício se coloca para o pedestre através de duas cortinas
de vidro imediatas e de escala quase infinita para quem passa na sua calçada. Os vidros
cristalinos são justapostos de forma a interceptar a visão, contrapondo a transparência
esperada. A superfície nubla, e a sobreposição de planos reflexivos dissolvem o
entendimento do edifício como forma, como permanência e como portador de significados
transcendentes. Ele é dinâmico, e incorpora os fluxos ao seu redor. Não é possível
apreender a obra como um todo, mas as múltiplas superfícies envidraçadas geram uma
experiência ambígua onde não se sabe o que é o dentro e o fora.

Ultrapassando a primeira superfície translúcida, entra-se em um parque protegido e


fragmentado. Os múltiplos jardins são percebidos através do edifício programático, que
se coloca como um fantasma por entre as árvores. É uma arquitetura pela leveza, de
volumetria dissolvida em faces imprecisas. Ela expõe os contrastes entre o virtual e o real
a partir de superficialidades misteriosas. Hal Foster compara a transparência fenomênica
da Cartier ao conceito de espetáculo de Guy Debord: “Um objeto enigmático cuja produção
é mitificada, um fetiche-mercadoria em grande escala”.11 O espetáculo é também sobre o
acontecimento, como uma abertura ao acaso, e sobre como o objeto é apreendido pelo
sujeito.

As obras comentadas acima poderiam ser brinquedos lúdicos de designers. São como
objetos de desejo com complexidades internas e beleza superficial, inseridos sobre um
contexto vago. Ainda que pareçam aludir ao consumismo, essas obras se voltam para
a percepção sensorial. Como bem observado por Farshid Moussavi em A Função do
Ornamento, são obras que se abrem não só para a expressão cultural atual, mas contém
a sensibilidade necessária para espelhar essa cultura ao longo do tempo.

11. Idem, p. 151.


15
(Figura 17) Maquete, Diller + Scofidio,
Slow House, 1991.

(Figura 16) Oscar Niemeyer, Torre A e H.

(Figura 18) Projeto da Slow House, North Haven, Long Island, New York, Perspectiva e plantas de um
televisor em um aparato de janela para imagem, 1991.
16
Prática arquitetônica

As investigações teóricas e práticas neste trabalho se entrelaçam a partir de um projeto


que tensiona a percepção dos limites entre o sujeito e a obra, o real e virtual. A Slow
House (1991), projeto não construído de Elizabeth Diller e Ricardo Scofidio em Long Island,
pode ser comparada à Torre H (1970) de Niemeyer na Barra da Tijuca. Sua percepção
como forma construída, sua função programática e suas singularidades serão postas em
diálogo a seguir.

Manifesto em favor da imagem, a Slow House põe em questão a diferença entre a imagem
autêntica e a mediada. A tensão se dá a partir da paisagem que condiciona a implantação
arquitetônica em paralelo com uma tela que exibe novamente a vista mediada. A paisagem
é posta em diálogo com a tela que é estendida por uma antena estrutural. O paralelismo
imagético permite a visão simultânea ou a exposição de contrastes temporais. O vídeo
exposto na tela permite o atraso, o zoom e um controle sobre a paisagem.

A situação de um diálogo imagético e uma relação formal com a paisagem também podem
ser observadas na Torre H. A implantação de centro de quadra e a escolha pela forma
circular visam potencializar a vista da paisagem em 360º, e da mesma forma, poupar o
terreno virgem de ocupações demasiadas. A planta circulare é segmentada em módulos
semelhantes, de forma que todos os apartamentos e edifícios possuem qualidades
semelhantes. Ainda que se assemelhem, as duas torres vizinhas (A e H) compõem uma
dupla enigmática. Suas circunstâncias atuais evocam questionamentos acerca de sua
diferença.

A primeira torre foi finalizada em 1990 enquanto a segunda se desconstrói ao passar do


tempo. A Torre H perde seu invólucro, revelando-se como um núcleo rígido que sustenta
36 lajes amarradas. Sem fechamentos, a silhueta esquelética expõe sua profundidade
e objetividade visual. A imagem de seu esqueleto ao lado da gêmea ocupada levanta
comparações e estranhamentos. Ao revelar dois estágios da mesma estrutura, têm-se
a impressão de que o tempo está estagnado. O espelhamento entre as duas acentua a
tensão do projeto.

Enquanto uma representa a ordem, a outra é um espaço indefinido. A Torre H representa


o terrain vague como descrito por Ignasi Solà Morales:

lugares estranhos ao sistema urbano, exteriores mentais no interior físico da


cidade que aparecem como contra-imagem da mesma, tanto no sentido de
sua crítica como no sentido de sua possível alternativa.12

A torre, em sua instabilidade produtiva, se coloca contra a lógica mercantil da cidade.


Enquanto os prédios ao redor multiplicam seus terrenos para um maior aproveitamento
espacial, a torre poupa a ocupação do solo. A partir de uma otimização estrutral em

12 Igor Fracalossi, "Terrain Vague / Ignasi de Solà-Morales", Archdaily Brasil, 01 Mar 2012, p. 5.
Acessado em 12 Nov 2021. <http://www.archdaily.com.br/35561/terrain-vague-ignasi-de-sola-
morales> Texto original em espanhol: Ignasi de Solà-Morales, "Terrain Vague" em Territórios.
Barcelona, Gustavo Gili, 2002.
17
(Figura 19) Planta de situação ilustrando o plano de massas com 71 torres propostas para o Centro
da Barra, 1970. A Torres construídas estão sinalizadas em vermelho.

H A

(Figura 20) Ortofoto de 2019. A Torres construídas estão sinalizadas em vermelho.


18
núcleos centrais, sua planta é aberta para acontecimentos. A torre vazia evoca uma
expectativa utópica do porvir.

Solà-Morales também se questiona se toda a arquitetura é definidora de espaços, ou se


existem projetos que possibilitam que os corpos sejam autônomos. Seriam espaços que
não dão continuidade ao tempo histórico da cidade formal. Sua preocupação é justamente
a intenção desta pesquisa: identificar as formas como a arquitetura se coloca para o corpo
e suas intenções imediatas, fora de uma lógica temporal ou programática.

Sobre o viés de uma crítica funcional, a Slow House é projetada como uma máquina de
olhar13 enquanto a torre acaba se tornando um organismo improdutivo. A arquitetura
da casa é um maquinário subjetivado, como um ciborgue em sua autoconsciência, ela
intermedia e propõe vistas. O habitante da casa é um espectador ativo, uma vez que é a
partir da sua experimentação visual que os fenômenos são incorporados. Diferente de um
uso previsto por programas e dimensionado por necessidades, o acontecimento permite
a abertura ao acaso, à descontinuidade e à irredutibilidade do momento presente.

A torre se ocupada como o previsto por Niemeyer, seria composta por diferentes
tipologias de dois à seis módulos. Apesar de seu desejo, são executadas somente
plantas de dois módulos. No caso da Torre H, os apartamentos nunca chegam a ser
ocupados, mas todos são configurados igualmente. No labirinto vertical, todos os
módulos se parecem e não há diferenciação senão pela orientação da paisagem.

Não procura-se esgotar o campo territorial da torre, mas talvez exista a possibilidade
de multiplicação da experiência de deslumbre visual. Seria o caso de potencializar o
descobrimento e mistério ao explorar espaços sempre iguais. Por meio de uma superfície
translúcida, a percepção da paisagem e o entendimento do objeto cilíndrico como um
sólido são nublados, como proposto por Jean Nouvel na Tour Sans Fins (1992). Seus
limites, com o solo e com o céu, são ofuscados pelo uso de transparências graduais ou
opacidades que indefinem a forma da torre.

Em questões formais, a Slow House, assim como a Torre H, não possui fachada ou
frontalidade. Como um corpo estranho e de forma indeterminada, a casa se coloca como
uma passagem. A estrada leva a um portal de entrada, e seguindo por seções espaciais
de mesmo raio, chega-se ao recorte imagético. Contudo, a sua curvatura permite que
a imagem final não seja exposta de primeira mão. A casa cria um jogo de sedução que
valoriza o seu ponto máximo.

Ainda que a Torre H não se coloque frontalmente e também não seja constituída por uma
fachada, sua forma é objetiva e apreensível para quem a vê de fora. A implantação circular
é elaborada para que o contato com o solo e a interferência visual entre as torres sejam
mínimos. Internamente, a vista panorâmica não é poupada, de forma que quarto e sala
possuem a vista frontal e imediata. Poderia-se dizer que a Slow House fetichiza a vista
enquanto a Torre H entrega-a de graça, tornando-a rotineira e banalizada.

13. Nicholas Baume, “It’s Still Fun to Have Architecture: An Interview with Elizabeth Diller, Ricardo
Scofidio, and Charles Renfro”, in Baume (org.), Super Vision. Cambridge, MA:MIT Press, 2006, p. 187.
19
(Figura 21) Manchete, 26.01.1974, Anúncio de jornal da Desenvolvimento
Engenharia, empresa responsável pela entrega das Torres A e H, sendo
que a última nunca foi concluída.

A história não é clara, mas há indícios de corrupção desde o início


do projeto. Em 1972, as obras são interrompidas e Oscar Niemeyer
se desliga do projeto. A fundação Niemeyer não expõe o acervo de
desenhos, mantendo uma versão purista da história.

O Grupo Desenvolvimento entra em falência em 2004 e há boatos de


que, em 2010, o seu fundador Múcio Athayde tenha falsificado sua morte
e se mudado para Miami, onde tinha imóveis e empreendimentos.

(Figura 22) Processo de construção das três torres. Em primeiro plano,


a torre na Av. Sernambetiba com os pavimentos de subsolo expostos.
Em segundo plano, as torres A e H com seus núcleos rígidos executados.
20
Para desestabilizar esta percepção direta, a tela, conceito desenvolvido por Richard
Scoffier em seu artigo Os quatro conceitos fundamentais da arquitetura contemporânea,
pode ser introduzida sobre a torre. O texto também apresenta os conceitos de meio-
lugar, objeto e acontecimento como síntese das manifestações comuns da arquitetura
contemporânea. Quando à tela:

A tela esconde e protege o seu espaço interno do espaço externo (o espaço


público diante dela) e desempenha a função de intermediário entre esses
dois mundos, cujas relações vão regredir até tornarem-se umbilicais.14

Como as superfícies tangíveis investigadas no capítulo anterior, a tela permite um


nublamento da percepção do indivíduo, ou ainda, faz com que o objeto arquitetônico
quase desapareça na paisagem para quem o vê de fora.

As intervenções temporárias dos artistas Christo e Jeanne Claude também são de


interesse para uma proposta de ocultamento da torre em questão. Os artistas trabalham
no campo do envelopamento, revestindo monumentos históricos e paisagens com lonas
sintéticas de poliamida. O objeto como é conhecido some, e o que se manifesta é um
volume misterioso.

A Torre H também pode ser lida como um monumento, uma forma escultórica que
representa a falência de uma utopia. O sonho por um bairro que conserva sua vegetação
local e diversifica as classes sociais é concebido por sua vez como um local sem a
possibilidade de diálogo e conflito, possíveis somente nas ruas. Esconder este monumento
é uma forma de revelar as contradições inerentes nele mesmo (figura 21).

Outra relação pode ser estabelecida ao comparar a implantação da Torre H à da Slow


House. A casa de veraneio se coloca sobre o terreno de forma autônoma e escolhe o seu
contexto relacional afirmando assim a sua individualidade. Um dos conceitos propostos
por Richard Scoffier, o meio-lugar15, se trata de uma postura imprecisa e neutra de se
posicionar sobre os espaços globalizados.

O espaço entre as torres A e H é indeterminado, enquanto seus limites são bem definidos.
A implantação moderna no centro de quadra, alienada de qualquer relação imediata,
concebe não-lugares16. O meio-lugar se diferencia deste posicionamento porque se recusa
a escolher entre estabelecer laços ou se colocar impositivamente, monumentalmente. A
partir de um não posicionamento, e de sua desmaterialização, a Torre H deixa de ser um
marco histórico e entra em um campo de possibilidades interpretativas.

14. Richard Scoffier, “Os quatro conceitos fundamentais da arquitetura contemporânea”, em Lei-
turas em teoria da arquitetura, tradução de Guilherme Lassance. Rio de Janeiro, Viana & Mosly
Editora, 2009, p. 165-166.
15. Idem, p. 166-167.
16. Marc Augé, Não-Lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. São Paulo:
Papirus, 1994.
21
pavimento térreo

pavimento tipo

22 medidas em metro
A Torre H

O Centro da Barra faz parte do plano de urbanização da Barra da Tijuca desenvolvido por
Lúcio Costa em 1969 para o projeto de urbanização do bairro. 71 torres cilíndricas são
propostas por Oscar Niemeyer para uma região até então não ocupada. A expansão para
a barra propõe uma espécie de cidade jardim, onde edifícios altos, que mal tocam o solo,
são rodeados por mata nativa e pelos jardins de Roberto Burle Marx.

As torres do Centro da Barra representam um marco de ocupação, e são construídas


de forma serial, quase que aleatoriamente na paisagem. As torres A e H são erguidas
ao longo de um marco anterior, a Avenida das Américas, enquanto uma terceira torre é
construída de frente para o mar na então Avenida Sernambetiba, hoje Avenida Lúcio Costa.
As avenidas são construídas em uma cota elevada, e a partir dela é nivelado o pavimento
térreo das torres. Abaixo, dois níveis de subsolo são construídos sem escavação e depois
são aterrados até a altura do térreo.

As construções se assentam sobre fundações em radier, uma placa extensa de concreto


armado que atua como uma laje, distribuindo as cargas do edifício sobre o terreno. A
enorme área de contato com o solo permite que o edifício tenha estabilidade sobre um
terreno arenoso e instável, assim como o mangue da barra.

As torres são estruturadas por três núcleos rígidos excêntricos: o núcleo da escada
enclausurada; o núcleo dos elevadores; o anel que dá acesso às unidades. O desencontro
de seus centros permite inteligentes configurações internas, diferente do que se espera
de um edifício de forma perfeita. Em uma extremidade, a circulação comum é mais
estreita, e onde as portas dos elevadores se abrem, a circulação ganha mais espaço.

Um eixo circular de pilares redondos compõe a estrutura secundária, dos subsolos até o
primeiro pavimento tipo. A partir do segundo andar os pilares de 1,15m de diâmetro são
convertidos, por meio de vigas de transição, em outros retangulares, que se alinham às
paredes e delimitam um módulo habitacional. Estes pilares retangulares se estendem
até a área técnica da cobertura, onde morrem e dão lugar ao coroamento da torre.

Construtivamente eficiente, o trabalho artesanal da concretagem é otimizado por formas


deslizantes, uma forma mecânica de se concretar todos os anéis estruturais em 24 horas,
utilizando somente uma forma para cada núcleo. As 36 lajes de concreto armado também
são moldadas em formas deslizantes, seguindo o serialismo da construção. As lajes dos
pavimentos tipo são amarradas e conectadas aos pilares por vigas invertidas.

Desconsiderando as questões políticas e financeiras que inviabilizaram o término da


Torre H, sua arquitetura é extremamente eficiente e duradoura. A torre resistiu a 30 anos
de quase abandono, aberta a especulações diversas. O projeto original de Niemeyer
propõe o recobrimento das torres com uma cortina de vidro e brises verticais, mas esses
acabam por gerar uma torção no edifício e são desconsiderados para a construção. Oscar
se retira do projeto em 1972 e a fachada é concebida de forma econômica, em alvenaria
com esquadrias reduzidas em alumínio.

Até 2020, a construção possui acabamentos, fechamentos e algumas esquadrias


23
(Figuras 23 e 24) Diferentes propostas e materializações sobre a Torre
H. O primeiro desenho é de Oscar Niemeyer em 1970, o segundo é uma
proposta futura projetada por seu filho, João Niemeyer, o projeto está
em andamento e a imagem é de 2021.

(Figuras 25 e 26) À esquerda uma fotografia de Wouter


Osterholt de 2010, e à direita outra fotografia de 2021,
revelando a torre em suas condições atuais.
24
semelhantes às da Torre A. Neste ano, a torre tem seus fechamentos e divisórias internas
removidos e é deixada 'no osso'. O novo projeto para a torre é desenvolvido por João
Niemeyer, arquiteto e filho de Oscar. Uma cortina de vidro com sacadas paramétricas
veste a torre, em uma leitura futurística e utópica sobre a mesma. O vidro translúcido
utilizado como fechamento é uma proposta que ignora as condições climáticas locais,
e além de expor o interior ao sol, exibe inteiramente o edifício sem qualquer intermédio.

A Torre H possui diferentes aparências ao longo do tempo, esta multiplicidade demonstra


a abertura formal que sua estrutura proporciona. No entanto, o último lançamento esgota
o entendimento da torre em uma proposta objetiva, sem aberturas interpretativas.

Este trabalho propõe outras formas de interagir com a Torre H, sem delimitar sua função ou
a forma como é apreendida. A partir de novas operativas arquitetônicas por uma relação
sensorial entre sujeito-objeto, as possibilidades espaciais e visuais são multiplicadas.
As propostas a seguir se colocam como experimentações que estabelecem, em primeira
instância, uma tensão entre o objeto e sua percepção para além do que é visto.

25
26
A Torre como nuvem

A torre, que hoje se mostra por inteiro, é então levada ao seu ponto oposto, a desaparição.
A torre como nuvem é lida como algo etéreo, e o objeto cilíndrico reconhecível se
desmaterializa para então ser percebido como algo estranho. Similarmente, Solà-Morales
discorre sobre a arquitetura imaterial contemporânea:

(...)tudo parece querer transcender sua condição material própria para


adquirir valores frágeis, mas multiplicados, interativos, transcendendo sua
materialidade inicial, negando-a."17

Contrapõe-se a solidez do núcleo rígido de concreto para se colocar de forma instável,


aberta e propositiva.

São infinitas as analogias ao Blur Building, pavilhão construído pelos arquitetos Diller
Scofidio + Renfro em 2002 para a Swiss Expo. Os arquitetos constroem um pavilhão
que produz o efeito atmosférico de converter água em névoa. A estrutura, o entorno e
o público são encobertos por esta nuvem que indefine o espaço e o entendimento sobre
o mesmo. O pavilhão faz uma apologia à baixa resolução imagética, em contraposição à
alta definição e objetividade visual. Ele propõe uma experiência sensorial única onde não
há nada para se ver ou ouvir.

O Blur Building não existe mais, mas sua presença na memória coletiva é talvez mais
forte por conta do curto período de tempo no qual ficou exposto. Vivenciar um pavilhão é
um acontecimento que, segundo Scoffier, "afirma a descontinuidade, a irredutibilidade de
cada instante"18. Os arquitetos exploram o evento como substância tangível nesta obra. A
fumaça, em sua leveza e fluxo constante, é um elemento construtivo que desmaterializa
o pavilhão e o revela como máquina sensorial.

Enquanto o pavilhão é efêmero, a torre é duradoura. Ela vive no imaginário carioca


como um objeto estranho porém familiar. No entanto, a condição enevoada, ainda que
temporária, ativa a memória do que já foi e não é mais, e revive a fantasia do que a torre
poderia vir a ser. Esta é uma proposta que abre espaço para outras possibilidades.

A Torre como panóptico

A torre possui uma otimização visual que a distingue dos edifícios ao seu redor. Sua forma
cilíndrica alcança a maior amplitude óptica possível. Enquanto seus vizinhos possuem
quinas cegas e hierarquias espaciais, a torre é a forma perfeita para, de seu interior, ver
sem ser visto. Não há pontos cegos a partir da torre e tudo que a rodeia está ao alcance
do olhar.

O panóptico é uma idealização da prisão ideal, constituída por uma torre central de

17. Ignasi de Solà-Morales, "Arquitectura Inmaterial" em Territórios. Barcelona, Gustavo Gili, 2002.
p. 148.
18. Idem, p. 167.
27
(Figura 28) A torre como panóptico.

(Figura 29)

(Figura 30)
28
onde o vigilante pode observar todos os prisioneiros sem ser percebido. O esquema foi
concebido pelo filósofo Jeremy Bentham em 1785 e depois fundamentado pelo também
filósofo Michel Foucault em seu livro Vigiar e Punir de 1975. A vigilância constante que
decorre deste sistema é uma forma arquitetônica de poder e doutrinação sobre os corpos.

Apesar de remeter ao sistema de vigilância do pan-óptico (que tudo vê), a torre se coloca
como um mirante que sensualiza a experiência do voyeur, em oposição ao controle
proposto pelo sistema original. A torre como panóptico é um miradouro de 36 patamares
recobertos por uma malha perfurada. Esta permite ver, do escuro para o claro, a paisagem,
as ruas e a intimidade alheia dos prédios vizinhos sem ser percebido. A pele externa se
estende da cobertura ao térreo, como uma cortina ou uma saia, que esconde segredos e
erotiza a experiência do olhar.

As aberturas são mediadas por uma máscara. Essa, de forma contínua, pretende guardar
os segredos contidos no edifício, tornando-o em um objeto não identificável. Como
objeto refere-se ao conceito elaborado por Scoffier, “(...)os edifícios que continuam
a ser silenciosos sobre o seu modo de fabricação, que se recusam a explicar como se
sustentam e para quê servem.”19 Vela-se o funcionamento interno da torre e conspira-
se a sua assombração em uma narrativa de mistério. A superfície é capaz de filtrar a
permeabilidade do olhar e de controlar a percepção sobre a vista panorâmica.

A Torre como labirinto

A Torre H é uma das 71 torres propostas no plano de massas do Centro da Barra, cada
qual contendo 36 pavimentos idênticos. A repetição serial pressupõe uniformidade, sem
qualquer diferenciação identitária ou de norteamento espacial. Desta mesma maneira
vive o minotauro de A casa de Astérion20 de Jorge Luis Borges, guardando um labirinto de
infinitas aberturas que o conduzem para inúmeras narrativas de controle e contemplação.
O labirinto descrito por Borges é o calabouço do mundo, cavernoso, e seus caminhos
levam até uma espécie de inferno mitológico.

Os círculos excêntricos que estruturam a torre possuem aberturas desencontradas em


contraposição à frontalidade e simetria esperada. Seus rasgos arredondados lembram os
caminhos cavernosos de um labirinto subterrâneo (ver figura 29). Externamente, a torre
é legível, mas seu interior possui complexidades ocultas. A única orientação espacial na
torre cilíndrica é a paisagem, e priva-a parcialmente como uma forma de desorientação. A
torre se torna uma passagem e o seu ponto central se encontra na cobertura, onde a vista
pode ser alcançada através de grande esforço.

O labirinto fetichiza a visão panorâmica, privando a visão externa ao longo do caminho e


concedendo-a no topo do edifício. O trajeto vertical da torre é convertido em um caminho
sinuoso, onde espelhos escondem passagens, e escadas levam a andares sem saída.
Como nos labirintos mitológicos, cria-se um jogo com um objetivo de desorientação, onde

19. Idem, p. 164-165.


20. Jorge Luis Borges, “A Casa de Astérion”, em O Aleph, São Paulo, Companhia das Letras, 2008.
29
30
o sujeito deve se deixar levar para depois se encontrar. A torre como labirinto é um espaço
fenomenológico onde manifestações e ocultamentos criam uma experiência misteriosa.
Novamente, a vista é o elemento de desejo por onde a intervenção se guia.

A Torre como pavilhão midiático

Inacabada e em constante disputa, a Torre H é um espaço onde muitos desejos se


manifestam. A planta circular, estruturada por um núcleo rígido, é livre e permite
um espaço fluido, sem limites. Como o terrain vague de Solà-Morales, a torre, em sua
indeterminação, está aberta ao acontecimento, ao tempo do acaso.

Em 2016, sete artistas intervêm diretamente sobre a Torre H para a mostra Permanências
e Destruições organizada por João Paulo Quintella. Cada artista propõe uma série de
trabalhos, de forma que cada andar contém instalações que incitam o percurso até a
cobertura. Ali, o artista Igor Vidor instala uma cama elástica, propondo uma experiência
corporal desestabilizante. O acontecimento de se estar suspenso sobre todos os prédios
da barra é único e efêmero.

O cilindro é superfície infinita, assim como o mirante perfeito também é um objeto para
ser visto ou entre-visto. Sobre uma pele externa, a cultura pode espelhar-se por meio
de projeções efêmeras ou especular sobre os seus funcionamentos internos. Assim, a
superfície se mostra como um espelho, manifestando sem de fato modificar-se pelos
acontecimentos que sedia. A torre como pavilhão midiático é um suporte, uma nova mídia
para experiências. De acordo com Beatriz Colomina em seu texto Beyond Pavilions sobre
a obra de Dan Graham, uma sensibilidade distinta é conquistada pela efemeridade do
pavilhão:

"A força máxima do pavilhão é sempre a possibilidade de que ele irá sumir
tão abruptamente como chegou, reorganizando ambições e criando novas
conexões entre o que antes pareciam ser fantasias utópicas e agora são
realidades construídas e plausíveis. O verdadeiro sinal de que um edifício é
um pavilhão é que ele se vai, voa para longe, ou pelo menos promete fazê-
lo. O encontro com um objeto que está prestes a ir é fundamentalmente
diferente. O pensamento de que você pode não conseguir voltar torna a
experiência indescritível, até mesmo romântica. Desafia-se o entendimento
convencional. Posteriormente, o que ocorreu torna-se estranhamente
obscuro, e é esta falta de clareza que abre novos horizontes."21

21. Beatriz Colomina, "Beyond Pavilions: Architecture as a Machine to See." em Dan Graham:
Beyond. Cambridge: MIT Press, 2009, p. 206.
31
(Figura 32)
32
Considerações finais

O Centro da Barra foi concebido para ser o novo centro do rio, no entanto diversos fatores
levaram o plano à falência. Hoje, em meio a prédios americanizados, a Torre H é uma ruína
moderna que se mostra como um suporte para outras possibilidades espaciais.

Será possível que o objeto arquitetônico pode se colocar para o sujeito sem definir
interpretações espaciais, e desta forma continuar evocando o estranhamento do espaço
indeterminado do terrain vague?

As provocações abertas aqui são base para um projeto que será desenvolvido utilizando
a torre como meio. Pretende-se elaborar uma intervenção até a escala de sua execução,
detalhando como este objeto arquitetônico será manifestado para o sujeito no intuito de
uma relação menos literal e mais propositiva.

33
(Figura 33)

34
Bibliografia

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35
(Figura 34)

36
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Wim Wenders, A paisagem urbana. Tradução de Maurício Santana. Artigo publicado na


Revista do IPHAN v. 23, 1994.

37
(Figura 35)

38
Créditos de imagem

Capa: Imagem autoral.

Figura 1: Imagem autoral.

Figura 2: Imagem de domínio público via The City as a Project.

Figura 3: Ilustração de Robert Venturi, Denise Scott Brown e Steven Izenour, via 99 Percent
Invisible.

Figura 4: Fotografia de Iwan Baan.

Figura 5: Fotografia de Hisao Suzuki e Margherita Spiluttini

Figura 6: Fotografia de Cemal Emden.

Figura 7 e 8: Ilustrações do livro de Willy Boesiger e Hans Girsberger, Le Corbusier 1910-65,


Barcelona, Gustavo Gili, 1971, p. 56.

Figura 9: Imagem autoral.

Figura 10: Fotografia de Margherita Spiluttini.

Figura 11: Via Artforum.

Figura 12: Via The Creators Project, Vice.

Figura 13: Acervo disponível no site de Diller + Scofidio.

Figura 14: Fotografia de Timothy Hursley.

Figura 15: Acervo disponível no site do Atelier Jean Nouvel.

Figura 16: Imagem autoral.

Figura 17: Acervo disponível no site de Diller Scofidio + Renfro.

Figura 18: Coleção do MoMA, imagem de autoria de Diller Scofidio + Renfro.

Figura 19: Desenho para construção (impressão assinada sobre papel de esboço
impregnado): “Projeto de arquitetura para construção de prédios residenciais no Centro
da Barra, Est. Guanabara, Barra da Tijuca, Situação, Tipo - 6”, escala: 1:100, Oscar Niemeyer,
18.03.1970, tamanho: 770x1200 mm

Figura 20: Ortofoto da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro.

39
(Figura 36)

40
Figura 21: Anúncio de jornal: “Devolvemos em concreto armado o que recebemos em
confiança”, Manchete, 26.01.1974, tamanho: 512x348 mm.

Figura 22: Acervo pessoal de Heraldo Silva.

Figura 23: Desenho para construção (impressão assinada sobre papel de esboço
impregnado): “Projeto de arquitetura para construção de prédios residenciais no Centro
da Barra, Est. Guanabara, Barra da Tijuca, Fachada, Tipo - 6”, escala: 1:100, Oscar Niemeyer,
18.03.1970, tamanho: 770x1200 mm.

Figura 24: Acervo pessoal de Heraldo Silva.

Figura 25: Fotografia de Wouter Osterholt.

Figuras 26-36: Imagens autorais.

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