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Unidade Curricular Teoria 2 ∙ MIArq ∙ FAUP ∙ 2022/2023

A pré-existência como diálogo para a prática do projeto

I. Introdução
O objeto temático para a realização desta síntese do estudo-pesquisa no contexto da Unidade Curricular
de Teoria 2 é a pré-existência como diálogo para a prática do projeto arquitetónico. Primeiramente, este trabalho
desenvolver-se-á tendo como base o conteúdo das aulas teóricas lecionadas pela docente Joana Restivo, ao
analisar a relação entre o imaginário e a prática arquitetónica contemporânea, ao explorar como a imaginação é
uma ferramenta fundamental para a criação de novas formas de arquitetura e de como a condição experimental é
um elemento central para a compreensão da situação atual da arquitetura. Posteriormente, num segundo
momento, pretende-se o entendimento e a reflexão acerca do conceito de tradição no contexto da arquitetura
como ideia-força para compreender a pré-existência, e em seguida uma exemplificação de forma prática de um
caso de estudo – Bairro da Bouça de Álvaro Siza, 1973. Em síntese, num terceiro momento, explorar-se-á o
impacto gerado pela dialética da pré-existência, ou seja, a importância da preservação do património cultural e
histórico ao incorporar elementos existentes em um novo projeto, proporcionando uma conexão com o passado e
mantendo viva a memória e legado da tradição.

II. Desenvolvimento
i. Conceitos
Em “Words and Buildings” de Adrian Forty escrito em 2000, o historiador e teórico
britânico da arquitetura explora a relação entre a linguagem e a arquitetura, argumentando que
as palavras que usamos para descrever a arquitetura podem afetar a maneira como a vemos e
a entendemos. Partindo desse princípio, dedico esta primeira parte do desenvolvimento para
examinar a história da linguagem arquitetónica, pois desde as tradições clássicas até a
linguagem pós-modernista, a escrita refletiu as ideias e crenças de sua época, como por exemplo
a arquitetura modernista ao ser influenciada pela filosofia do século XX e pela crítica à tradição
clássica. No segundo capítulo do livro, Adrian Forty explora um percurso em formato cronológico
para discutir como a linguagem arquitetónica sempre refletiu as ideias e crenças de sua época.
Desse modo, entende-se que a tradição clássica da linguagem arquitetónica se originou
na Grécia antiga e se desenvolveu na Roma imperial, tendo sido influenciada pela filosofia grega,
especialmente pelo idealismo platônico, que via o mundo material como uma cópia imperfeita
do mundo ideal. A arquitetura clássica, portanto, buscou refletir a ordem e a harmonia do mundo
ideal, através do uso de proporções matemáticas e formas geométricas. A seguir é entendido
mais uma vez tal influência entre linguagem-tempo através da Revolução industrial ter levado
ao desenvolvimento do estilo neoclássico, ou seja, uma tentativa de reconciliação à tradição
clássica com a modernidade industrial, através do uso de materiais e tecnologias modernas para
criar edifícios que imitassem a ordem e a harmonia da antiguidade clássica. Em sequência, a
linguagem arquitetónica do movimento moderno surge no século XX como uma crítica à tradição
clássica, visto que os modernistas buscaram criar uma linguagem arquitetónica que refletisse a
sociedade industrial moderna, através do uso de materiais e técnicas de construção modernas
e uma abordagem funcionalista e racionalista. Finalmente, é possível entender a linguagem
arquitetónica pós-moderna ao perceber que os pós-modernistas buscaram criar uma linguagem
arquitetónica que incorporasse referências históricas e culturais, como uma forma de reconectar
a arquitetura com sua tradição e seu público, visto que a arquitetura moderna havia perdido a
conexão com a tradição.

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Por outro lado, também pode-se analisar conceitos da relação entre o imaginário e a
prática arquitetónica contemporânea a fim de fomentar a ideia de que a matéria da arquitetura é
encontrada em diversos campos, sendo a imaginação uma ferramenta fundamental para a
criação de novas formas de arquitetura. Dessa forma, entende-se que o virtual existe enquanto
espaço imaginário do pensamento de projeto, e consequentemente como o habitar da memória.
A memória refere-se nesse contexto à virtude através da qual o indivíduo é capaz de preservar
ideias e conservar experiências do passado, manifestando-se através de alguns apontamentos.
Dessa forma, entende-se que imaginar a pré-existência é um exercício de memória no espaço
virtual para realizar possibilidades relativas ao projeto, ou seja, é um instrumento mental
indispensável para a criação e (re)construção da identidade social de um lugar no tempo. Para
tal exercício, tem-se como ferramenta mental a utopia – potencializadora de uma maior abertura
e capacidade crítica, energética e motivadora – que, embora seja menos credível, pois se afasta
do real, é o lugar – ou não-lugar – onde o projeto ainda teórico é capaz de questionar temas do
presente e do passado. A intervenção, seja numa construção ou numa reconstrução, não se
justifica por si mesma, devendo remeter como demanda da própria obra e estar ancorada a uma
teoria e a uma permeabilidade temporal.
Logo, para que sejam (re)construídas novas virtualidades e para que elas se tornem
reais, indispensavelmente há de se exercitar a prática de projeto em diálogo com a pré-
existência, destacando, de diferentes formas, a importância da valorização da tradição por meio
da intervenção contemporânea. Isso caracterizaria um satisfatório equilíbrio entre a teoria e a
prática arquitetónica para então atingir a “modernidade permanente” de Fernando Távora. Em
resumo, a imaginação é essencial para a arquitetura, pois permite que os arquitetos criem
soluções inovadoras para problemas complexos e ajuda a moldar o ambiente construído, e, além
disso, a importância da imaginação na experimentação arquitetónica e na (re)criação de novas
formas de arquitetura permite responder aos desafios contemporâneos projetuais e manter o
diálogo entre teoria e prática, passado e presente.
ii. A tradição
Tradição é uma palavra com origem no termo em latim traditio, que significa "entregar"
ou "passar adiante". A tradição é a transmissão de costumes, comportamentos, memórias,
rumores, crenças. Quando incorporada no contexto da arquitetura, pode ser uma fonte de
inspiração e referência para os arquitetos contemporâneos, que muitas vezes buscam
reinterpretar e atualizar os elementos tradicionais em suas obras. Ao mesmo tempo, a tradição
também pode ser vista como um desafio, já que os arquitetos precisam equilibrar a necessidade
de inovação e originalidade com o respeito e a preservação da tradição. Em “Da Organização
do Espaço”, Távora argumenta que a arquitetura e o urbanismo devem ser ferramentas para a
promoção do bem-estar e do desenvolvimento das pessoas, e não apenas para a criação de
objetos estéticos isolados da realidade social e cultural. Desse modo, é preciso uma abordagem
humanista e contextualizada na arquitetura, que leve em consideração as características
geográficas, históricas, culturais e sociais das regiões onde se está a pensar o projeto, e, ainda,
a preocupação com a relação entre o homem e o espaço construído.
Neste seguimento, na seção 5 da parte 2 do livro "Companion to Contemporary
Architectural Thought" de Ben Farmer e Hentie Louw, aborda-se o tema de Memória e História
na arquitetura. O capítulo explora como a arquitetura pode lidar com a história e a memória em
seus projetos, e como essas preocupações têm sido abordadas pelos arquitetos ao longo do
tempo, onde Peter Zumthor fala sobre a importância da memória na arquitetura: "A memória é
mais importante do que a história. As coisas que lembramos são as coisas que vivemos, e essas
coisas são as que nos moldam, que nos dão forma como seres humanos. A história é apenas
uma narrativa, é apenas uma interpretação do que aconteceu, é apenas um registo. A memória
é o que realmente importa.". Zumthor destaca a importância da experiência pessoal e da

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memória individual como influências poderosas na forma como os indivíduos percebem e se


relacionam com a arquitetura. Logo, entende-se que a arquitetura não deve ser apenas um
registo da história, mas deve criar uma conexão emocional com as pessoas e suas memórias,
como a própria tradição. Essa abordagem destaca a importância de considerar o usuário final e
sua relação com o espaço ao projetar edifícios que não apenas atendam às necessidades
funcionais, mas que também criem uma experiência memorável e significativa para as pessoas.
Nesse viés, a arquitetura não deve ser vista apenas como uma atividade técnica, mas uma forma
de expressão artística e cultural que deve ser valorizada e compreendida em seu contexto
histórico e social, ou seja, os arquitetos devem estar atentos às necessidades e desejos da
sociedade em que vivem e projetar edifícios que sejam relevantes e significativos para as
pessoas, e isso significa exercer a tradição, como bem constatou Pere Hereu no ensaio
“Arquitectura y Cultura”: "A arquitetura é uma arte funcional, mas ao mesmo tempo é uma arte
que expressa a cultura. (...) A arquitetura deve ser entendida como uma forma de expressão
cultural, porque através dela a cultura é transmitida, mantida e transformada. A arquitetura reflete
as aspirações e crenças da sociedade em que é construída, e é, portanto, uma forma de arte
socialmente significativa.".
Resumidamente, a tradição valoriza a ideia de que a arquitetura deve ser adaptada às
necessidades e às condições específicas do seu contexto, e que deve ser sensível às tradições,
às culturas e às práticas locais. Essa abordagem ainda é relevante na arquitetura
contemporânea, especialmente em um contexto globalizado em que as práticas e as soluções
padronizadas podem ser insuficientes para lidar com as necessidades específicas de cada lugar.

iii. Caso de estudo


O caso de estudo escolhido para melhor referenciar um arquiteto da tradição e sua
prática permeável ao tempo é o Bairro da Bouça de Álvaro Siza. A arquitetura de Siza está
sempre ancorada a algo previamente existente, não apenas a um contexto físico, mas à história
e seus mitos, aos significados do sítio, ao genius loci, ou seja, à noção de lugar – uma noção
bem distinta de ideia de espaço, conceito abstrato, ideal, teórico e livre. Entretanto, o sentido de
lugar não é o bastante para compreender tudo o que diz respeito à produção de Siza, aqui de
nada serve o termo “contextualismo”, pois tornam-se necessárias outras hipóteses de
aproximação à sua obra. Siza é constantemente símbolo de fusão de modelos histórico-sociais
como mote criativo. Dessa forma, para a análise de sua obra e consequentemente do seu ser
enquanto arquiteto haverá um esforço para que se ultrapasse ideias com critérios estilísticos ou
comparações de linguagens, evitando-se a todo custo não cair numa apreciação reduzida a
juízos de valores. Assim, este caso apoia-se de forma concreta na experiência de visita à obra,
a fim de melhor interpretá-la, pois a vivência de se percorrer um edifício no seu espaço e poder
perceber o seu relacionamento com a envolvente paisagem substitui o conhecimento apenas
teórico do projeto.
A frase de Servio Onorato “Nullus enim locus sine genio est" pode ser traduzida como
"nenhum lugar é sem um gênio". Ela é uma referência ao pensamento romano e tem sido
aplicada à arquitetura de diversas maneiras. No contexto da arquitetura de Álvaro Siza, entende-
se como uma referência à importância de perceber e respeitar a identidade e a história do lugar
onde uma obra é (re)construída. Para Siza, a arquitetura não é apenas sobre criar novos
espaços, mas também sobre incorporar a pré-existência do local em que se está construindo.
Siza tem uma abordagem muito sensível em relação ao lugar em que projeta, e acredita que é
importante entender a história, a cultura e a identidade do local antes de começar a fazer uso do
imaginário: "Eu acredito que a arquitetura deve começar com o lugar. Você tem que entender o
lugar e a cultura antes de começar a projetar". Dessa forma, a tradição vernacular surge como
uma fonte de aprendizado constante nas obras de Siza, como no caso da requalificação do

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Bairro da Bouça, no Porto, em Portugal, onde o arquiteto português foi convidado a renovar. O
contexto da construção surgiu logo após a Revolução de 25 de Abril em Portugal, uma
organização chamada SAAL foi formada para buscar ajuda estatal para aliviar as condições
precárias de moradia no país. O projeto se baseia em uma série de princípios e técnicas
tradicionais de construção que foram adaptados para atender às necessidades e expectativas
da vida urbana moderna - Bouça é um lugar difícil, que está de costas para um aterro
ferroviário elevado em uma área ao norte do centro comercial do Porto . Entretanto, em
vez de seguir a abordagem modernista predominante da época, que geralmente envolvia a
demolição de edifícios existentes e a construção de novas estruturas em larga escala, Siza optou
por preservar a maioria dos edifícios existentes do bairro e adaptá-los para atender às
necessidades de habitação moderna – incorporar técnicas e princípios construtivos locais, como
o uso de alvenaria de granito e telhados de cerâmica vermelha, que são comuns na arquitetura
vernacular da região do Porto, além de acima de tudo o projeto refletir um senso de comunidade
(o que é comum na arquitetura vernacular) com espaços públicos e áreas comunitárias que são
projetados para incentivar a interação social entre os moradores.
Em "Álvaro Siza: Complete Works", Frampton destaca que a intervenção de Siza no
bairro é um exemplo de "arquitetura crítica", que busca criar soluções inovadoras a partir do
diálogo com a tradição local e as necessidades contemporâneas, pois o projeto demonstra
claramente sua capacidade de criar arquitetura com um senso de continuidade histórica e
cultural, sem ser meramente nostálgico ou imitativo. Frampton destaca a atenção cuidadosa de
Siza aos detalhes, incluindo o uso de materiais locais como granito e concreto, e a integração
das edificações com o tecido urbano circundante. Ele também elogia a sensibilidade de Siza em
relação aos moradores do bairro, que foram envolvidos no processo de projeto e tiveram suas
necessidades e desejos considerados. Além disso, Frampton ressalta ainda que a abordagem
de Siza no Bairro da Bouça foi influenciada por suas raízes rurais e seu interesse na arquitetura
vernacular, que se manifesta em detalhes como as varandas, pátios internos e a organização
em torno de uma praça central.
Por fim, entende-se que a obra de Siza não é limitada pela tradição, mas sim
enriquecida por ela. O trabalho de Siza é, portanto, uma síntese da tradição e da inovação.

Figura 1, 2 e 3 – SAAL Social Housing Bouça ll, Porto, Portugal – 1975-77. Fonte: Álvaro Siza: Complete Work, Kenneth Frampton.

III. Considerações finais


Torna-se evidente, portanto, que a arquitetura deve levar em consideração o contexto e as estruturas
pré-existentes do local desde o imaginário até o ato da construção real. Isso envolve um diálogo entre o novo e o
antigo, onde a nova construção deve respeitar e interagir com as características existentes da paisagem urbana.
Para tal, pode-se fazer uso do imaginário como ferramenta de prática arquitetónica, a fim de criar soluções
inovadoras e responder aos desafios contemporâneos do projeto. Essa abordagem é importante porque permite
que a arquitetura se integre harmoniosamente com o entorno, preservando a história e a cultura da região. Além
disso, essa prática também pode levar a uma maior sustentabilidade, já que reutilizar estruturas e materiais pré-

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existentes é mais ecologicamente responsável do que construir do zero. O arquiteto português Álvaro Siza é um
exemplo de um profissional que incorpora a pré-existência em seu trabalho. Em seus projetos, ele procura
entender a história e a cultura de um lugar para projetar novas estruturas que sejam integradas e
complementares ao contexto existente. O Bairro da Bouça no Porto é um exemplo disso, onde ele adaptou e
renovou uma antiga vila de operários existente para criar um conjunto habitacional, preservando a história e a
identidade do local.
Ademais, quando estamos perante uma pré-existência é importante ter a noção dos limites para além
da barreira física que são as paredes do edificado, ou seja, o tempo é um fator decisivo para a coesão entre
passado e presente. Dito isso, entende-se que, para re(abitar) um espaço, a memória torna-se uma
condicionante a nível de programa para responder usos e funções do sítio a ser construído, pois traz consigo
bagagens da viagem do tempo que ditam o ponto de partida para uma criação.
Aos olhos de Fernando Távora, “o passado é uma prisão de que poucos sabem livrar-se airosamente e
produtivamente; vale muito, mas é necessário olhá-lo não em si próprio, mas em função de nós próprios.” Dessa
forma, entende-se que no diálogo entre o pré-existente e o novo estão perante opções e variáveis de grande
amplitude conceptual que são indissociáveis dos limites impostos pelo pré-existente e no qual o objetivo principal
é alcançar o equilíbrio entre eles.
Ao projetar, na presença de pré-existências, existe a necessidade de dar continuidade à própria história,
a qual respeita uma estrutura em termos compositivos, espacial e material, e permite que o ato de intervir
transcenda o tempo. No caso do Bairro da Bouça, por exemplo, a sobrevivência de uma existência prévia à
passagem do tempo conduz a uma reflexão no que diz respeito ao diálogo entre o que fica e o que nasce,
procurando unir as diferentes escalas e idades das suas partes por meio de uma manipulação pictórica da forma
e da materialidade.

Referências
BANDEIRINHA, José António (2016). Fernando Távora: Modernidade Permanente. Casa da Arquitectura, Porto.

FARMER, B. (1993). Companion to contemporary architectural thought. Routledge Inc, London.

FORTY, A. (2000). Words and buildings. Thames & Hudson Ltd, United Kingdom.

FRAMPTON, Kenneth (2006). Álvaro Siza – Complete Works. Phaidon Press, London.

HEREU, P. (1994). Textos de arquitectura de la modernidad. Nerea, Espanha.

RESTIVO, J. (2008). Imaginário e condição experimental da arquitetura. Para a compreensão da situação atual da arquitetura.
Fundação Eng. António de Almeida, Porto.

TÁVORA, Fernando (2006). Da Organização do Espaço. FAUP Publicações, Porto.

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