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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE BELAS-ARTES

SER NA CIDADE — URBANIDADE E PRÁTICA


ARTÍSTICA, PERCEPÇÕES E ACÇÕES

Marta Isabel Barreto Traquino

DOUTORAMENTO EM BELAS-ARTES
Especialidade de Arte Pública

Tese orientada pela Professora Doutora


Maria João Pestana Noronha Gamito

2012

i
RESUMO

Cidade, memória e identidade, espaço público e construção de lugar, espaços de


representação. Que qualidade de prática artística pode actuar transversalmente a estas di-
mensões? Qual o potencial de tal prática para as (re)composições de memória e identidade
do indivíduo na cidade actual? Estas são questões centrais à reflexão que se segue, resul-
tante de um percurso teórico-prático transdisciplinar, atento a dimensões vivenciais e iden-
titárias que possibilitem um acesso ao mundo através da afirmação de singularidades
existentes face à tendência para a ausência de espaços de representação na cidade, conse-
quente dos modos de actuação programados e evasivos do capitalismo contemporâneo,
sobretudo materializados nas características dos chamados ‘espaços públicos’. Tomar-se-
á uma abordagem crítica sobre a valorização do espaço privado que prolifera nos centros
das cidades anulando a voz da diferença, mas também um olhar sobre a possibilidade de
espaços para ocupações espontâneas resistentes às consequências negativas do excesso de
zonas regulamentadas.
A primeira parte focará situações, materialidades e acções específicas da urba-
nidade catalisadoras ou inibidoras de actualizações de ‘memória’ e de ‘identidade’ (indi-
vidual e colectiva), atravessadas pelo questionamento provocado por trabalhos de artistas.
Na atenção à arquitectura enquanto dispositivo de vivências geradoras de novas prob-
lemáticas entre ‘memória’ e ‘identidade’; tomando as possibilidades de (re)composições
destas na relação com espaços de representação do indivíduo em confronto com a dife-
rença, visando a ocorrência de ‘espaço comum’; considerando o potêncial dos limites entre
zonas no desenvolvimento de sociabilidades.
A segunda parte apresentará a prática artística articulada com as ideias desenvolvi-
das. Uma trilogia de ‘propostas para acção’, propicias a um olhar retomado sobre a cidade,
sobre a presença do ‘outro’, partindo da tomada de pontos de vista em espaços interiores
partilhados; para a experimentação do essencial a um espaço para ser público, contudo
raro nos espaços abertos à vista nas ruas e praças, supostamente acessíveis a todos.

Palavras-chave: cidade; diferença; espaço público; espaço comum; espaços de represen-


tação; proposta para acção; arte conversável.

ii
ABSTRACT

City, memory and identity, public space and construction of place, spaces of re-
presentation. What quality of artistic practice can act transversaly in these dimensions?
What is the potential of such practice for the (re)compositions of the individual’s memory
and identity in the present city? These are central questions for the upcoming reflexion,
resulting from a theoretical-practical transdisciplinary path, aware of vivencial and iden-
titary dimensions allowing an access to the world through the affirmation of existential
singularities facing the tendency for the absence of spaces of representation in the city,
resulting from programmed and evasive forms of acting of the contemporary capitalism,
mostly materialized in the characteristics of the so called ‘public spaces’. A critical ap-
proach will be taken about the valorization of the private space that proliferates in the city
centers nullifying the voice of difference, but also a look over the possibility of spaces for
spontaneous occupations that resist to the negative consequences of the regulated areas.
The first part will focus situations, materialities and specific actions of the urbanity,
catalyst or inhibitory of ‘memory’ and ‘identity’ updates (individual and collective),
crossed by the questioning arising from artists’ works. In the attention to the architecture
as a device of experiences that generate new problematics between ‘memory’ and ‘’iden-
tity’; taking the possibilities of their (re)compositions in the relationship with the indivi-
dual’s spaces of representation that faces the difference, sighting the occurrence of
‘common space’; considering the potential of the limits between areas in the development
of sociabilities.
The second part will present the artistic practice articulated with the developed
ideas. A trilogy of ‘proposals for action’, propitious to a recovered look over the city, on
the presence of the ‘other’, from points of view taken in interior shared spaces; for the ex-
perimentation of the essential for a space to become public, yet rare in the open spaces
available in streets and squares, supposedly accessible to all.

Keywords: city; difference; public space; common space; spaces of representation; pro-
posal for action; conversable art.

iii
AGRADECIMENTOS

A investigação da qual deriva o resultado que aqui se apresenta não teria sido possível
sem o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, no âmbito da Bolsa Individual de
Doutoramento que me foi atribuída.

O processo de trabalho foi acompanhado pela Professora Maria João Gamito, cuja clareza
e perspicácia de pensamento foram fundamentais à resolução de cada circunstância adversa
que surgiu.

A inicativa, sempre construtiva, da ProfessoraVirgínia Fróis em estabelecer pontes e par-


tilhas de conhecimento deu especial alento ao percurso desenvolvido.

O projecto Que cor tem agora o céu? em Lisboa contou com a colaboração de Nuno Sacra-
mento (acompanhamento do processo e cedência do espaço) e em Bruxelas com a cola-
boração de Sílvio Salgado, Jan Verbruggen, Francis Denys e Korneel Devillé
(acompanhamento do processo e cedência do espaço), Maria do Carmo Abreu (tradução
de conteúdos português-francês), Antti Kaski (estadia). O tapete berbere utilizado no pro-
jecto Para um estado de encontro foi cedido por Rui e Albertina Sousa. O processo do
projecto Livre Acesso foi desenvolvido conjuntamente com Francisco Pinheiro e contou
com o apoio da Biblioteca Municipal Camões (cedência do espaço), nomeadamente
através de Lithales Soares (acompanhamento do processo e mediação). Os três projectos
tiveram divulgação realizada por Rui Clemente e traduções de conteúdos português-inglês
por Ana Cristina Traquino. Para além destas pessoas, a concretização dos mesmos deve-
se também a quem realizou as ‘propostas para acção’.

Os dias, e dias, e mais dias, de todos os trabalhos foram ajardinados com carinho especial
pela minha família (Henrique, Odete, Cristina, Ricardo, Rita, Ana Luísa, Carolina), e pelos
meus amigos António C., Albertina S., Cristina E., Gaspar M., Rita C., Rui S., Samuel Z.,
Sofia N., Sónia B., Sílvio S., Susana S. e Verónica C..

Em todos os dias, a presença do Paulo S..

iv
ÍNDICE

Introdução 1
Parte I – ENTRAR 13
1.1. Paredes de vidro 19
1.2. Limites com vista 48
1.3. O ‘espaço comum’ 79
Parte II – ATRAVESSAR 108
2.1. Que cor tem agora o céu? 112
2.2. Para um estado de encontro 124
2.3. Livre Acesso 134
Considerações finais (para uma ‘arte conversável’) 149
Referências bibliográficas 153
Índice de figuras 161

v
INTRODUÇÃO

A leitura que aqui se inicia deverá ter em conta que o pensamento e a prática artís-
tica delineados ao longo das páginas seguintes, propostos como tese de Doutoramento na
especialidade de Arte Pública pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa,
são antecedidos e consequentes de um percurso de reflexão realizado no âmbito de um
mestrado (pré-Bolonha) pelo Departamento de Sociologia do ISCTE que viria a dar origem
ao livro A Construção do Lugar pela Arte Contemporânea (Ed. Húmus, 2010). Neste
foram investigadas práticas de abordagem ao ‘espaço’ e ao ‘lugar’ pela arte em contexto
urbano, procurando, através de uma revisão crítica e actualizada sobre ‘arte pública’, es-
tabelecer as diferenças entre ambas tendo em conta modos de produção de espacialidades
e temporalidades pelas actuais dimensões económicas, políticas, culturais e subjectivas
originadas dos múltiplos processos que constituem a ‘globalização’ e a sua expressão na
cidade. Reteve-se que a abordagem ao ‘lugar’ surge quando a observação do ‘espaço
vivido’ foca aspectos mais subjectivos e singulares que podem não ser evidentes na aparên-
cia superficial das materialidades e mobilidades urbanas. Por outras palavras, se a abor-
dagem ao ‘espaço’ tem em conta o corpo com ele relacionado, quando o sentido de ‘lugar’
está em causa acrescenta-se a atenção à pessoa (Traquino, 2010). Como tal, ‘experiência’,
‘memória’ e ‘identidade’ constituem directrizes chave na investigação artística sobre o
‘lugar’, sendo os espaços de representação enquadramentos da expressão destas na cidade,
do encontro das suas (re)configurações, do individual ao colectivo e vice-versa. Relem-
brando os três conceitos que o filósofo Henri Lefebvre (1974) propôs para a observação
do ‘espaço’ (tomado enquanto realidade socialmente produzida), a prática espacial, a rep-
resentação do espaço e os espaços de representação (percepção, concepção e vivência do
‘espaço’, respectivamente), entendam-se os últimos como apropriações do espaço físico
da cidade pelas quais se evidenciam subjectividades e dimensões simbólicas resistentes
às práticas dominantes, podendo até transgredi-las (Traquino, 2010). Do ‘espaço público’
aos ‘lugares habitados’, foram então sinalizadas abordagens artísticas ao ‘lugar’ em con-
textos urbanos actuais e as suas origens, tendo-se aprofundado questões relativas às
(re)configurações da dimensão da ‘experiência’ e deixado as relativas às dimensões de
‘memória’ e de ‘identidade’ para reflexões futuras, ou seja, para as páginas que se seguem.

INTRoDUção 1
Cidade, memória e identidade, espaço público e construção de lugar, espaços de
representação. Que qualidade de prática artística pode actuar transversalmente a todas
estas dimensões? Qual o potencial de tal prática para as (re)composições de memória e
identidade do indivíduo na cidade de hoje?
A primeira parte desta reflexão focará situações, materialidades e acções específi-
cas da urbanidade catalisadoras ou inibidoras de actualizações de ‘memória’ e de ‘identi-
dade’, individual e colectiva, atravessadas pelo questionamento provocado por trabalhos
de artistas. Pretende-se perspectivar campos de acção possíveis que suscitem a percepção
crítica e criativa sobre a cidade por parte do indivíduo, com base no favorecimento da ex-
periência directa e situada com o ‘outro’, visando um sentido de ‘lugar’ possível de emergir
no espaço público. Este entendido pela necessidade de um (re)equacionamento sobre as
características que o definem como tal, tendo em conta a articulação entre actuais confi-
gurações espaciais (formais) e humanas (vivênciais), sempre na presença da heterogenei-
dade do habitante que aí se revela. Porque, na cidade

Somos, na verdade, o destino significativo que nos oferece o olhar do outro. Se o olhar do outro
não alicerçar a nossa presença numa significação solidária, estaremos irremediavelmente ausentes.
E a perda de significação pessoal inicia-se no momento em que somos avaliados como parte in-
diferenciada de um conjunto. (Kovadloff, 2007: 238)

Grande parte da população das grandes cidades é constituída por pessoas deslo-
cadas dos seus lugares de origem por necessidade de sobrevivência, facto que se irá acen-
tuar mais ainda num futuro próximo. Para estas pessoas, a ‘memória’ e a ‘identidade’ não
têm raízes num passado vivido em relação com a cidade onde habitam, estão ainda por
construir. Poderão apenas emergir a partir de experiências no presente, em grande parte
vividas nos espaços públicos da cidade onde os seus desejos possam, de algum modo, en-
contrar forma. Contudo, tal possibilidade é frequentemente camuflada por discursos políti-
cos que aparentemente a parecem contemplar, como acontece, por exemplo, nos que não
consideram claramente a diferença que existe entre ser habitante da cidade e cidadão da
mesma. A este último cabem direitos que o primeiro pode não ter, como os direitos políti-
cos, o direito a ter casa e à igualdade perante a lei. Como salientam os cientistas políticos
Robin Harper e Hani Zubida (2009), a cidadania é uma das bases mais importantes para
o sentido de pertença na nossa época, podendo ser utilizada tanto para incluir como para

INTRoDUção 2
excluir indivíduos, bem como grupos (mesmo em sistemas políticos supostamente
democráticos).

Num mundo que tende a categorizar e a classificar as pessoas, a cidadania tornou-se uma das iden-
tidades mais poderosas e importantes que uma pessoa pode possuir. (…) No entanto, apesar da sua
centralidade, a definição de cidadania impõe muitas barreiras. Na maioria dos casos, em vez de
uma definição inclusiva orientada para os direitos humanos, encontramos uma de segregação. Como
resultado, em muitos casos, a cidadania é usada para separar e não para incorporar. (…) o Estado
utiliza estes direitos e as obrigações como um mecanismo de exclusão, com o objectivo de manter
certos grupos na periferia ou fora da sociedade. (Harper; Zubida, 2009)1

Interessará assim considerar dimensões vivenciais e identitárias que possibilitem


um acesso ao mundo através da afirmação de singularidades existentes face à tendência
para a ausência de espaços de representação na cidade, em consequência das reformu-
lações que esta tem vindo a ganhar, derivadas dos modos de actuação programados e eva-
sivos do capitalismo contemporâneo, sobretudo materializados nas características dos
chamados ‘espaços públicos’. ‘Memória’ e ‘identidade’ serão, portanto, abordadas en-
quanto dimensões tangiveis no presente por relação com expressões de ‘movimento’ e
‘diferença’ em enquadramentos espaciais específicos. Conforme refere o arqueólogo An-
drew Jones (2007):

(…) a lembrança é um processo tornado aparente para o sujeito experienciador através do encontro
contínuo e dinâmico entre o sujeito e o mundo material que ele ou ela habita em vez de uma
transacção abstracta e desapaixonada entre o mundo externo e a mente. Em vez de se tratar a
memória como uma função dos processos internos da mente humana, podemos considerar a memória
enquanto produzida através do encontro entre pessoas e o mundo material. (Jones, 2007: 26)

Neste sentido, será tida em atenção a arquitectura enquanto dispositivo de vivên-


cias, tanto ao nível do seu habitar como do processo da sua construção, mediador de re-
lações e problemáticas entre ‘memória’ e ‘identidade’ (individual e colectiva). Será
considerada a possibilidade do sentido de ‘lugar’ por habitantes da cidade recentes ou im-
permanentes, e a atenção a processos de construção e transformação de memória e iden-
tidade consequentes do encontro entre aqueles que chegam e os que os ‘recebem’. Não

1
In a world that tends to categorize and classify people, citizenship has become one of themost powerful
and important identities a person can hold. (…) However, in spite of its centrality, citizenship definition im-
poses many barriers. In most cases instead of a human rights oriented, inclusive definition, one finds a seg-
regated one. As a result, in many cases, citizenship is used to separate and not incorporate. (…)The state
uses these rights and obligations as an excluding mechanism in order to keep certain groups on the periphery
of or outside society. (Harper; Zubida, 2009)

INTRoDUção 3
esquecendo como determinados processos políticos e económicos podem conduzir ou apa-
gar fontes de memória de determinadas sociedades, gerando assim estados de crise iden-
titária tanto a nível colectivo como individual. Processos que distanciam as pessoas da
sua relação com a cidade ou, até mesmo, a impossibilitam.

Qualquer Eu que não seja querido, trabalhado por uma força, esculpido por uma energia, consti-
tui-se por defeito com todos os determinismos que ocupam o seu lugar. Genéticos, sociais, famil-
iares, históricos, psíquicos, geográficos, sociológicos, são muitos os determinismos que modelam,
a partir de fora, um Eu que recebe selvaticamente todas as forças procedentes da brutalidade do
mundo. (onfray, 2009: 98)

os autores cujo pensamento acompanhará a reflexão que se segue enquadram-se,


na maior parte, do início da década de sessenta do século XX à luz da descolonização,
dos novos movimentos sociais e da sua procura por histórias revisionistas e alternativas
(Huyssen, 2003), ao presente. Autores que se distanciaram da assumpção modernista da
diferenciação entre mente, corpo e mundo (Jones, 2007). Assim, neste contexto de in-
tenções, entenda-se a ‘memória’ não como um veículo para o conhecimento, um contentor
de informação (Yates, 2001) mas como conhecimento, como chave para o nosso entendi-
mento emocional de nós próprios e do mundo (Gibbons, 2007) que se transforma con-
soante muda a nossa posição no meio social e esta posição, por sua vez, transforma-se
conforme muda a nossa relação com outros ambientes.

Um dos fenómenos culturais mais interessantes dos nossos dias é o modo pelo qual a memória e a
temporalidade têm invadido espaços e média que pareciam entre os mais estáveis e fixos: cidades,
monumentos, arquitectura, e escultura. (Huyssen, 2003: 6-7)2

A ideia em causa de ‘cidade’ será a que corresponde às principais cidades ociden-


tais, nomeadamente dos países europeus, pois é a experiência de algumas destas que in-
forma a presente reflexão. Uma cidade em permanente estruturação sob o efeito das
grandes questões que enfrenta, derivadas da globalização, da imigração, da exclusão social,
da sustentabilidade, da mudança na natureza do trabalho e consequente impacto no espaço
físico, dos efeitos da mobilidade e sistemas de transporte na coesão social e viabilidade
económica, de concepções de arquitectura e urbanismo que afectam a integração e favo-

2
one of the most interesting cultural phenomena of our day is the way in which memory and temporality
have invaded spaces and media that seemed among the most stable and fixed: cities, monuments, architec-
ture, and sculpture. (Huyssen, 2003: p.6-7)

INTRoDUção 4
recem a intolerância e o conflito entre diferentes comunidades de habitantes (Burdet e
Sudjic, 2007).

Nós não pertencemos a uma geração com a fé apreciada e partilhada pelos pioneiros arquitectos
modernistas, quando fretaram um navio para atravessar o Mediterrâneo em agradável conforto e
desenhar a sua visão sobre o que a cidade moderna deveria ser na Carta de Atenas. Dividiram a
sua cidade ideal em zonas funcionais, moldadas por ângulos da luz do sol. (...) Estamos cheios de
dúvidas — ou pelo menos deveríamos estar. Nós somos as testemunhas de muitas azedadas utopias
urbanas inventadas pelos arquitetos naquela linha e propagadas por um sistema político que media
o sucesso pelo número de novos edifícios que podia entregar em cada mês. (...) Tratam-se de visões
de cidades como máquinas de fazer dinheiro, se não para transformar os pobres em não-tão-pobres,
que é o que atrai os ambiciosos e os desesperados para elas em primeiro lugar. Existem outros tipos
de visão que começam, como tantas visões urbanas têm feito, com uma tentativa de lidar com a
patologia da cidade. o Modernismo, apesar de tudo, foi, provavelmente, tanto sobre noções de
higiene como qualquer outra coisa. (Sudjic, 2007: 42)3

A cidade será entendida como uma arquitectura em permanente construção, cons-


tuída por diferentes factos urbanos, memória colectiva dos povos (Rossi, 1977). Como
um constante processo, um organismo vivo, considerando a relação entre enquadramentos
espaciais e a respectiva qualidade de encontro que permitem entre as pessoas (Jacobs,
1961). Neste sentido, será indispensável um olhar atento e crítico sobre a valorização do
espaço privado que prolifera nos centros das cidades anulando a voz da diferença e a afir-
mação da alteridade. Por outro lado, também um olhar sobre a possibilidade de espaços
para celebrações espontâneas resistentes às consequências negativas do excesso de zonas
regulamentadas, espaços para a ocorrência de trocas.

o problema real com a gentrificação, assim como com a criação de enormes áreas de habitação so-
cial, é que proíbe prosseguintes mudanças sociais ou físicas. (...) A versão de urbanismo mais rica,
subtil, efectiva é a do género que permite que as cidades se transformem e mudem com o passar do
tempo, em vez do género que congela um bairro numa forma particular. (Sudjic, 2007: 47)4

3
We do not belong to a generation with the shared faith enjoyed by the pioneer architectural modernists,
when they chartered a liner to cruise the Mediterranean in agreeable comfort and drew up their vision of
what the modern city ought to be in the charter of Athens. They divided their ideal city into functional zones,
shaped by sunlight angles. (…) We are full of doubt — or at least we should be. We are the witnesses to the
many soured urban utopias invented by the architects on that line and propagated by a political system that
measured success by the number of new buildings it could deliver each month. (…) These are visions of
cities as machines for making money, if not for turning the poor into the not-so-poor, which is what attracts
the ambitious and the desperate to them in the first place. There are other kinds of vision that start, as so
many urban visions have done, with an attempt to deal with the pathology of the city. Modernism, after all,
was probably as much about notions of hygiene as anything else. (Sudjic, 2007: 42)
4
The real trouble with gentrification, just as with the creation of huge swathes of social housing, is that it
prohibits further social or physical change. (…) The richer, subtler, more effective version of urbanism is
the kind that allows cities to mutate and change as time passes, rather than the type that freezes a neigh-
bourhood into a particular form. (Sudjic, 2007: 47)

INTRoDUção 5
A co-existência e a permeabilidade entre diferentes modos de uso do espaço não
constituem uma forma de caos mas, pelo contrário, representam uma forma de ordem com-
plexa e desenvolvida (Jacobs, 1961). Para quem são realmente concebidas as cidades de
hoje? Que usos da cidade são possibilitados? A quem e como? Que memórias e identidades
individuais e colectivas podem derivar desses usos? A historiadora urbana M. Christine
Boyer (1994) lembra-nos que o sentido contemporâneo do termo ‘público’ tem implícita
a ideia de uma construção universal que assume existir um todo colectivo, quando na re-
alidade o ‘público’ da cidade é fragmentado em grupos marginalizados. o sociólogo e his-
toriador Richard Sennett (2007) salienta que a arte de desenhar cidades nunca teve ao seu
dispôr tantos recursos, mas que estes não são utilizados criativamente devido a uma sobre-
determinação com respeito à visualidade das formas e às funções sociais. A experimen-
tação possível tem sido subordinada a um regime de poder que impõe ordem e controlo.
Na opinião de Sennett, falta ao urbanismo contemporâneo um ‘sentido de tempo’, pois
este entende o ‘crescimento’ da cidade como uma questão de apagamento e não de
evolução. Parece ignorar o facto de que o crescimento de um ambiente urbano requer um
diálogo entre passado e presente, e não simplesmente a substituição, muitas vezes gratuita,
do que existia antes. A estrutura de uma comunidade necessita de tempo e espaço para se
desenvolver, o que não é possível através de tal estratégia. Como alerta Sennett, esta ausên-
cia de ‘sentido de tempo’ leva a sociedades que são sistemas fechados, onde a imprevisi-
bilidade não tem lugar. onde qualquer experiência não prevista é rejeitada porque pode
contestar ou desorientar o equilíbrio estabelecido. Pelo contrário, uma sociedade aberta
permite a dissonância.

Já me perguntei que tipos de formas visuais podem promover esta experiência de tempo. Poderão
ser projectados por arquitectos? Que projectos podem contemplar relações sociais que perdurem
através de ser dada a oportunidade de evoluir e de transformar? (Sennett, 2007: 293)5

Por esta ordem de ideias, será contemplada uma aproximação à ideia de ‘comu-
nidade’ não necessariamente definida por grupos de linguagem, origem, convicções reli-
giosas ou outras comuns, mas antes direccionada pela interrogação sobre o que faz com

5
I have wondered what kinds of visual forms might promote this experience of time. Can these attachments
be designed by architects? Which designs might abet social relationships that endure through being given
the opportunity to evolve and mutate? (Sennett, 2007: 293)

INTRoDUção 6
que as pessoas se possam sentir ligadas mesmo sem se conhecerem, o que as faz mover,
por exemplo, no sentido da participação cívica. Acreditando que a cultura se faz nas mar-
gens entre as diferenças, como sugere Sennett (2007) ao considerar que as fronteiras e os
limites são lugares socialmente mais importantes na cidade do que o ‘centro’ de uma co-
munidade, e que a inclusão activa de múltiplas identidades é sinónimo de civismo. Assim,
a ideia de ‘comunidade’ a considerar será focada em acções de encontro e de partilha entre
sigularidades no espaço público, visando a criação de conexões que evidenciem a respon-
sabilização do indivíduo. Como sugere o filósofo Peter Pál Pelbart (2003), uma ‘comu-
nidade’ que contempla a imprevisibilidade porque consiste em seres únicos e nos seus
encontros. A importância da ‘comunidade de estranhos’, face ao facto de que

(...) a centralidade do lugar num contexto de processos globais engendra uma abertura econômica
e política transnacional na formação de novas reivindicações de direitos ao lugar e pertença. A
cidade emergiu como um local para novas reivindicações: pelo capital global que utiliza a cidade
como uma ‘mercadoria organizacional’, mas também por sectores mais desfavorecidos da popu-
lação tomando a mesma presença internacionalizada como capital. A ligação das pessoas ao ter-
ritório nas cidades globais é muito menos provável de ser intermediada pelo estado nacional ou
‘cultura nacional’. Há uma perda das identidades a partir de fontes tradicionais, como a nação ou
a aldeia. Este desamarrar da formação de identidade engendra novas noções de comunidade, de
filiação e de direito. Contudo uma outra maneira de pensar sobre as implicações políticas desse
espaço estratégico transnacional é a formação de novas reivindicações sobre esse espaço. (Sassen,
2007: 289)6

A este respeito será fundamental considerar recentes práticas espaciais no espaço


público como as relativas aos motins nas cidades inglesas e aos movimentos de ‘ocupação’
por uma democracia verdadeira em diversas cidades de vários países, ambos decorridos
ao longo de 2011. Pelas suas especifidades de organização e de performance sem prece-
dentes, inauguraram um debate profícuo sobre espaço público, democracia, identidade,
comunidade, exclusão social, participação e poder (entre outros temas), no qual ecoam,
por exemplo, algumas das ideias enunciadas anos antes pelo filósofo Giorgio Agamben
(1990) antecipatórias das consequências emergentes da presente realidade política. A afir-

6
(…) centrality of place in a context of global processes engenders a transnational economic and political
opening in the formation of new claims for rights to place and belonging. The city has emerged as a site for
new claims: by global capital that uses the city as an ‘organizational commodity’ but also by disadvantaged
sectors of the population taking the same internationalized presence as capital. The linkage of people to ter-
ritory in global cities is far less likely to be intermediated by the national state or ‘national culture’. There
is a loosening of identities from traditional sources such as the nation or the village. This unmooring of
identity formation engenders new notions of community of membership and of entitlement. Yet another
way of thinking about the political implications of this strategic transnational space is the formation of new
claims on that space. (Sassen, 2007: 289)

INTRoDUção 7
mação da singularidade sem identidade, do ‘ter-lugar’, da perfeita exterioridade que não
comunica outra coisa que não seja ela própria. Tais práticas reafirmam a ideia de que

A noção de espaço público anda de mãos dadas com a cidadania social, de um contrato social trans-
cendendo os indivíduos e ligando-os através de um acordo tácito em princípios comuns. Espaços
públicos aparecem assim como ‘os sítios primários da cultura pública’ sem os quais a democracia
é severamente prejudicada. (Body-Gendrot, 2007: 358)7

Ideia ao encontro da afirmação do arquitecto Frank Duffy (2007), de que as ruas


e praças oferecem, e continuarão a oferecer, um nível de significado e energia com o qual
o mundo virtual nunca poderá competir. Suportam ‘discurso’ porque nelas é mais difícil
as pessoas esconderem-se, dando assim lugar ao debate na concordância e na contradição.
Em consonância com o panorama de referências exposto, as possibilidades de
(re)composições de ‘memória’ e ‘identidade’ serão também consideradas na sua interde-
pendência associada à percepção física da cidade, bem como na relação com os espaços
de representação do indivíduo em confronto com a diversidade cultural, a diferença,
visando a ocorrência de ‘espaço comum’. Pensadas como assunto social e político de pro-
porções globais, para a afirmação de singularidades na pluralidade e para o sentido de
pertença ao presente. Face à notável tendência das cidades dos países ‘desenvolvidos’
serem cada vez mais habitadas por consumidores do que por cidadãos, na imposição da
uniformidade à diversidade, o filósofo Santiago Kovadloff alerta para o facto de que

Desse esvaziamento de subjectividade padecido pelo mundo psíquico fala-nos a crescente volatiliza-
ção do cidadão em favor do consumidor, como se pode verificar principalmente nas nações mais
desenvolvidas do ocidente. Fala-nos dela, a angústia perante a diversidade imposta pela figura do
estrangeiro, promovida pela tendência à uniformidade e à homogeneidade. (Kovadloff, 2007: 223)

o homem que perde o seu presente na cidade de hoje, e que nela também não en-
contra o seu passado (como acontece com grande parte dos habitantes das cidades) en-
contra-se privado da possibilidade de actualização da sua memória e da sua identidade,
ou melhor, da sua singularidade, do direito de ser, de ser na cidade.

7
The notion of public space goes hand in hand with social citizenship, of a social contract transcending indi-
viduals and linking them via an unspoken agreement on common principles. Public spaces appear then as ‘the
primary sites of public culture’ without which democracy is severely harmed. (Body-Gendrot, 2007: 358)

INTRoDUção 8
Na segunda parte da reflexão que se segue será apresentada a prática artística rea-
lizada em articulação com as ideias desenvolvidas. Uma trilogia de ‘propostas para acção’
apresentadas separadamente em tempos diferentes, em espaços não institucionais e com
pressupostos não vendáveis, mas com divulgação pelos diversos média de modo a garantir
a heterogeneidade dos visitantes/participantes. A partir da livre interpretação de breves ins-
truções escritas, durante o tempo da luz de um dia as pessoas passaram por um atelier para
olhar o céu da janela e pintar a sua cor, em várias tardes enrolaram e desenrolaram um
tapete no chão de uma casa para activar um espaço de encontro e ao longo de alguns dias
introduziram cartões escritos nos livros das estantes de uma biblioteca, compondo con-
teúdos para sessões de leitura colectiva improvisada. As acções aconteceram em espaços
interiores com janelas que se podiam abrir, espaços como ‘cápsulas’ de tempo onde abran-
dar, ou retomar, o movimento do olhar sobre o ‘outro’ e a cidade comum. Traços das pre-
senças e do resultado das acções passaram de umas pessoas para outras, presencialmente
ou mesmo apesar da ausência, comunicando a diversidade e complementaridade dos
modos de ver o mesmo a partir de espaço partilhado e com igualdade de acesso e de meios
de expressão.
As instalações que pela realização das acções por parte dos visitantes/participantes
iam sendo progressivamente desenvolvidas, de características harmonizadas com o fun-
cionamento quotidiano dos espaços, eram como estações de revelação do que é essencial
a um ‘espaço público’ para ser público, contudo raro nos espaços abertos à vista nas ruas
e praças, supostamente acessíveis a todos.
No conjunto, estas propostas partiram de convicções afins às do filósofo Michel
onfray (2006), quando refere

A ideia do puro instante não exclui a sua duplicação. A reiteração dos instantes contribui para a
formação de uma longa duração: não se começa pelo fim, não se fazem apostas sobre a destinação
de uma história, mas ela é pré-fabricada peça a peça. Deste modo, torna-se possível imaginar o
momento enquanto laboratório do futuro, seu crisol. o instante não funciona como um fim em si
mesmo, mas como momento arquitectónico de um movimento possível. (onfray, 2009 :125)

Na instrução escrita era definida, de modo sucinto, cada etapa dos movimentos do
corpo para o desempenho da acção proposta, contemplando a possibilidade de um tempo
personalizado. Se alguma imagem ou objecto derivasse do conjunto das acções realizadas,
seria de carácter colectivo, de forma aberta, mas com singularidades identificáveis pela
expressão da ‘medida’ de cada um. A natureza do conteúdo das propostas favorecia a sin-

INTRoDUção 9
tonia entre a percepção visual e a percepção física, em atenção ao facto de que é sobretudo
pela qualidade de experiência física de uma cidade que se subentende a qualidade da
democracia praticada.
Como se irá demonstar, trata-se de uma prática artística que se auto-convoca face
à urgência de motivação à imaginação crítica da cidade, à valorização dos ‘territórios de
passagem’ e das ‘narrativas em desenvolvimento’ (Sennett, 2007), aceitando voluntaria-
mente colocar-se sob o desafio de questões como as lançadas pelo ensaísta João Barrento
(2007):

Empenhar-se-ão a arte e a cultura do futuro em alguma forma de compromisso com a vida e a ex-
periência (para lá dos ‘interesses de divertimento’ hoje dominantes)? (…) Voltará o pensamento,
ultrapassando a actual bulimia de casos e factos, a ter aceitação na polis, a ter casa numa linguagem
audível e num espaço de diálogo? E a ética a ter de novo o seu lugar na estética?
Poderá a cultura do futuro, depois do mercado e da democracia mole, das concordatas sem confli-
tualidade produtiva, vir a ser uma cultura do sério (sem cair necessariamente no sisudo), quebrando
a ligeireza alienante da cultura da publicidade? Terá a arte ainda lugar numa sociedade
‘democrática’ global, totalmente americanizada, o que significa — mas por vezes esquecem-se
estes traços determinantes — imperial e puritana ressentida? (Barrento, 2007: 82-83).

A reflexão que se segue opera assim transdisciplinarmente, por entre várias áreas
de conhecimento, nomeadamente a Sociologia, a Antropologia, a Filosofia, a Arquitectura,
o Urbanismo, a História da Arte Contemporânea e a prática artística. As obras dos artistas
abordadas em articulação com as questões em causa, e outros géneros de intervenção em
espaços públicos da cidade, não foram previamente definidos ou tomados como pontos
de partida, antes surgiram em articulação com o progresso das ideias ao longo da investi-
gação realizada e em função da sua pertinência por relação com as opções que foram sendo
tomadas em diferentes momentos do processo da escrita, este por sua vez em constante
conecção com um conhecimento empírico da cidade no presente. Contudo, e prosseguindo
a natureza da conduta ética e conceptual da investigação precedente, foram valorizadas
propostas com base na experiência directa, na possibilidade de diálogo colaborativo, na
especificidade contextual, em modelos de acção e de sociabilidade situada, numa ‘estética’
do inter-humano, como resistência à formatação social sob influência dos média, de carác-
ter não objectual, acções e relações que se produzem num dado espaço físico e que sensi-
bilizam para o sentido de se habitar um mundo em comum.
Tendo em conta a temática em questão, pretendeu-se um desvio intencional da lin-
guagem e modos de discursos circunscritos ao ‘mundo da arte’, visando contribuir para o

INTRoDUção 10
posicionamento da prática artística no debate actual, e alargado a vários domínios, sobre
os problemas que a cidade enfrenta no presente e futuro próximo. Neste sentido, ao longo
dos últimos quatro anos foram extremamente enriquecedores os resultados da experiência
de contacto, de conhecimento dos trabalhos e da participação em conferências dos grupos
internacionais de investigação EastBordNet (CoST), CRESC (Manchester University /
open University), SIEF (Meertens Institute, Amesterdão) e on Walls (grupo independente
que integro). Destacam-se as conferências, respectivamente, Remaking Borders (2010),
Framing the City (2011), People make Places (2011) e Intertices: Carving (and Painting)
Urban Environments (2009).
A participação no Walkshop - Aqueduto das Águas Livres / Um percurso através
das realidades materiais e imateriais da metrópole contemporânea, realizado pelo grupo
Stalker em Lisboa (27- 30 de Maio, 2009), e o acompanhamento durante 2011 do processo
criativo do Pedras d’água 11 realizado pelo c.e.m. - centro em movimento, foram expe-
riências determinantes para a prática desenvolvida de observação da cidade, a primeira
explorando a aproximação progressiva ao centro, em travessia, a partir da periferia e a se-
gunda integrada em micro-geografias no coração da cidade e os seus ‘pequenos gestos’
quotidianos, através de acções retomadas e continuadas. Prática complementada pelo vi-
sionamento de cerca de quarenta documentários, a maior parte realizados na última década,
focados em temáticas relacionadas com migração, interculturalidade, arquitectura, urba-
nismo, identidade, memória e globalização.
A prática artística realizada com base em ‘propostas para acção’ tomou a criação
de ‘situações’ como ponto de partida, reveladoras do modo de fazer que lhes era intrínseco
e temporariamente autónomas de espaço e tempo. Situações para a experimentação de
possibilidades de expressão e de comunicação pelo encorajamento à participação, fundindo
o ‘diálogo’ que a pessoa estabelecia consigo mesma com o ‘diálogo’ estabelecido entre as
várias pessoas através dos resultados das realizações da acção proposta, proporcionando

(…) um ‘conjunto significante’ que expande os meios de expressão para incluir o audível, o visual,
o gestual, o espacial (…) o não ensaiado, etc, como práticas significantes que não só sustentam e
lubrificam o desejar e, portanto, o vir-a-ser, mas que, tomadas juntas como um conjunto temporal-

INTRoDUção 11
mente unificado, extraiem uma mais ampla participação do que a confinada à categoria de ‘arte’.
Numa situação, os enigmas que somos para nós mesmos e para os outros são a base de uma prática
comunicativa que, não mais confiante no conhecimento/poder, aprende a enunciar-se a si mesma
como produção de subjectividade (…) o desejo é o método, a comunicação emotiva é a metodolo-
gia. (Slater, 2001)8

8
(…) a 'signifying ensemble' that expands the means of expression to include the aural, the visual, the ges-
tural, the spatial, the abreactive, the unrehearsed etc, as signifying practices that not only sustain and lubricate
desiring and hence becoming, but which, taken together as a temporarily unified ensemble, elicit a far wider
participation than that confined to the category of 'art'. In a situation the enigmas that we are to ourselves
and to others are the basis of a communicative practice that, no longer reliant on knowledge/power, learns
how to enunciate itself as a production of subjectivity, a becoming, a new social relation. (…) Desire is the
method, emotive communication its methodology. (Slater, 2001)

INTRoDUção 12
PARTE I – ENTRAR

“Abracei a cidade e a cidade abraçou-me.”, diz Jonas Mekas num dos seus ‘filmes-diário’
mais recentes, no qual nos revela memórias da sua chegada e integração na cidade de Nova
Iorque. Nascido em Semeniskiai (1922), no norte da Lituânia, Mekas emigrou para os
E.U.A. em 1949 onde vive desde então, sendo uma figura de referência do cinema de van-
guarda experimental. Foi um dos muitos refugiados que deixou o seu país de origem nas
consequências da 2ª Guerra Mundial. É poeta e ‘um homem que filma’, conforme se auto-
designa, e não tanto um ‘realizador de cinema’ no sentido comum do termo. Como explica
numa entrevista, há cerca de doze anos,

Na realidade, todo o trabalho em filme é um filme longo que ainda continua... Na realidade eu não
faço filmes: apenas me mantenho a filmar. Eu sou um filmador, não um cineasta. E eu não sou ‘di-
rector’ de filmes, porque não dirijo nada. Apenas continuo a filmar. (Mekas, 2005)9

Mekas filma detalhes da vida diária, da sua, dos seus amigos, dos encontros. A mesa
com comida, os sorrisos em volta. Pensamentos, conversas e revelações. Momentos de
leitura, dança e música. Celebrações. o gesto de brindar com vinho em nome de alguém
querido e ausente é ‘assunto’ recorrente. Nos seus filmes nada de especial acontece, o que
faz com que tudo o que acontece perante a câmara seja assim potencialmente especial. São,
nas suas palavras,

(...) uma espécie de obra-prima de nada. Pequenas celebrações pessoais e alegria... milagres de
todos os dias, pequenos momentos de Paraíso. (Mekas, 2005)10

Filma as cidades que percorre. Árvores, flores e pequenos animais. A lagartixa no


muro. A chuva que cai no passeio. As pessoas que passam na rua quando ele também por
elas passa. A sua câmara de filmar portátil acompanha-o como uma ferramenta necessária
de uso quotidiano. Permite-lhe a extensão do olhar sobre o que se passa em volta, melhor

9
In reality, all my film work is one long film which is still continuing… I don’t really make films: I only
keep filming. I am a filmer, not a film-maker. And I am not a film ‘director’ because I direct nothing. I just
keep filming. (Mekas, 2005)
10
(…) a sort of masterpiece of nothing. Personal little celebrations and joy… miracles of everyday, little
moments of Paradise. (Mekas, 2005)

PARTE I – ENTRAR 13
registando a lembrança do que na/da sua vida mais tarde poderá querer partilhar com outros.
os seus filmes são memórias contadas, dão-se como poemas visuais e/ou pensamentos fal-
ados, fazendo o espectador ouvinte quase acreditar que faz parte da sua constelação íntima
de amigos.
Este homem que filma, e a sua obra, não são propriamente assunto das páginas que
se seguem, embora sejam referências cujo conhecimento motiva convicções que me movem
no que diz respeito a um certo modo de olhar (e praticar) a relação entre a arte e a vida.
Mais especificamente, e na aproximação com o tema em causa, no que diz respeito à qual-
idade de relação entre o indivíduo e a cidade que habita, pela possibilidade do sentido de
lugar emergente de uma prática consciente da subjectividade do primeiro, na percepção da
segunda. o percurso da presente reflexão foi por diversas vezes pontuado de encontros im-
previstos com as palavras e as imagens de Mekas. De um desses encontros retive a frase
citada no início deste texto, ouvida no visionamento da retrospectiva da sua obra apresen-
tada no festival DocLisboa 2009. Desde então, reverberações desta resplandecem frequente-
mente em momentos do meu pensamento crítico em torno das ideias de ‘comunidade’,
‘multiculturalismo’, ‘cidadania’, ‘espaço público’, e outras que integram os discursos
anexos a toda uma diversidade de propostas artísticas em contextos urbanos, de modo gen-
eralista designadas de ‘arte pública’. Ideias sobretudo utilizadas quando tais propostas de-
rivam de iniciativa camarária e ilustram, antes de mais, agendas políticas muito específicas
de grupos restritos, embora possam até argumentar elaboradas considerações pela hetero-
geneidade factual e crescente que caracteriza a população da grande cidade, sendo nestas
o ‘imigrante’ protagonista central sempre que se abordam questões de ‘diferença’ e ‘diver-
sidade’. Questões em si extremamente complexas mas que quando abordadas superficial-
mente continuam, ainda assim, a servir de argumento válido para eventos culturais e
atracções turísticas. Saliento, desde já, que no decorrer desta reflexão a ideia de ‘imigrante
na cidade’ poderá contemplar um sentido mais abrangente do que o do seu possível sig-
nificado imediato, pois se ‘imigrante’ é o ‘outro’ oriundo de um país diferente daquele em
que se encontra estabelecido, é certo que a presença deste também influi nas (re)com-
posições da memória e da identidade do autóctone através da sua percepção da cidade, tor-
nando-se este também um ‘imigrante’ não pela deslocação geográfica mas pela deslocação
de perspectivas no seu modo de ‘ver’ a realidade envolvente.

PARTE I – ENTRAR 14
Tomo a sugerida ideia de ‘abraçar’ uma cidade, e por esta ser ‘abraçado’, como um
diafragma para a minha óptica sobre modos e meios de relação entre o indivíduo e a cidade
de hoje. Como é que uma cidade ‘abraça’ uma pessoa? ou por outras palavras, o que leva
alguém a sentir-se ‘abraçado’ por uma cidade? Sobretudo quando a esta se chega em adulto
para começar uma nova vida, como acontece a grande parte da sua população (em alguns
casos, mesmo a maioria). Boas condições de acesso ao trabalho, à habitação, à saúde, à edu-
cação e ao estatuto de cidadão, são à partida as condições essenciais para que qualquer pes-
soa se sinta, podemos dizer, ‘abraçada’ por uma cidade, no sentido de se sentir acolhida,
recebida, participante. São condições básicas para que o processo de integração se possa
desenvolver, devendo ser exteriores à pessoa e pré-existentes à sua chegada., Contudo, no
domínio de acção que é o meu, da teoria e da prática artística que trabalha com ‘espaço’ e
‘lugar’ na cidade, interessa-me, antes de mais, pensar a qualidade da percepção do indivíduo
face ao que o rodeia na relação com estas questões, observando as cirscunstâncias que a
condicionam em contraponto com as que a podem catalizar e levar ao exercício e à prática
da subjectividade. Estou convicta de que esta última se encontra desvalorizada e em risco
no modelo da cidade capitalista contemporânea, produtora de imagens prontas a consumir,
onde a imaginação é congelada pela sucessão de estímulos visuais para a eficiência instan-
tânea.
A prática da subjectividade é, na realidade, uma travessia entre interior e exterior,
através dos limites do corpo. Um processo que, como tal, necessita de um tempo próprio
ao indivíduo. É neste sentido que me serve de mote a referida frase de Mekas, entendida
enquanto enunciação metafórica que remete para a importância da antecipação de um movi-
mento deliberado do corpo, direccionado à realidade envolvente. o corpo emancipado e
não expectante, pois quando se abraça é-se movido pelo desejo de reduzir a distância entre
si e algo, ou alguém. Quer seja um movimento corpóreo, ou no plano das ideias, trata-se
de experienciar a aproximação através da medida própria, a da abrangência do braço ou da
capacidade de visão (no sentido ocular e do pensamento). Para tal, uma direcção tem de
ser tomada, pois no movimento do abraço vai-se ao encontro do que se quer tornar próximo.
Sabemos que o facto de vivermos os nossos dias numa cidade não significa obriga-
toriamente que tenhamos uma relação de proximidade com esta. Basta a este respeito pen-
sar, por exemplo, no caso dos imigrantes portugueses em Paris oriundos da vaga de
emigração de há quatro ou cinco décadas atrás. Será uma minoria a que relata um conhe-

PARTE I – ENTRAR 15
cimento da cidade que ultrapasse a circunscrita geografia dos percursos e universos quo-
tidianos entre a casa e o trabalho, sendo a família ou outros membros da comunidade por-
tuguesa os protagonistas recorrentes das vivências memorizadas e comunicadas com maior
ênfase. Evidentemente, causas como as de carácter económico ou, entre outras, a natureza
fragmentária da estrutura espacial das cidades, que pode ganhar evidência, por exemplo,
com défice de infra-estruturas que permitam a devida mobilidade entre centro e periferia,
deverão ser consideradas neste distanciamento cognitivo e afectivo para com a cidade na
qual se vive durante décadas. Distanciamento que anula as possibilidades da (re)composição
(ou actualização) da memória e da identidade do indivíduo que derivam, e só podem derivar,
do confronto e relação com a diferença que a cidade permite. Como nos lembra o sociólogo
Zygmunt Bauman,

Seja qual for o futuro das cidades, e por muito que o seu traçado mude, ou mudem o seu aspecto e
o seu estilo, ao longo dos anos e dos séculos, haverá uma sua característica que continuará sempre
presente: as cidades são lugares de desconhecidos que convivem em estreita proximidade. (Bauman,
2006: 33)

A qualidade da percepção do indivíduo, relativamente ao meio que habita, é depen-


dente da possibilidade do alcance da visão permitida pela posição que toma a partir do lugar
em que se encontra. Tal facto não pode descurar a importância do livre-arbítrio nesse posi-
cionamento face ao planeamento das cidades que tende a distribuir, e a arrumar, as pessoas
no território com base numa lógica determinante de disparidades notáveis no que respeita,
antes de mais, a condições de usufruto da urbanidade que induzam à relação com a diver-
sidade e, consequentemente, à possibilidade de (re)olhar em volta. Contudo, a iniciativa
para ampliar as possibilidades de percepcionar e viver a cidade dificilmente pode ter lugar
no quotidiano de grande parte da população, para quem assegurar as condições básicas de
sobrevivência é ocupação urgente e permanente. No entanto, é esta a população que detem
maior potencial de capacidade relacional com o meio envolvente, pois como refere Bau-
man,

(…) estão pré-destinados a permanecer na sua zona, o que faz com que seja lógico e forçoso pre-
sumir que centrarão toda a sua função, com todas as suas queixas, sonhos e esperanças, nas questões
ligadas ao seu lugar. A sua luta pela sobrevivência e por um lugar digno no mundo — luta que, por
vezes, ganham, mas fundamentalmente perdem — tem por cenário o interior da cidade que habitam.
(Bauman, 2006: 24)

PARTE I – ENTRAR 16
Para os outros que vivem em condições económicas privilegiadas, dispondo assim
de mais meios e qualidade de tempo para viver a cidade, a proximidade com as ruas tende
a ser escassa, em alguns casos até inexistente. Tendencialmente prevenida por muros e câ-
maras de vigilância que garentem o cultivo da uniformidade, a antítese da diversidade que
é o maior contributo que a cidade pode proporcionar para a ampliação dos horizontes cog-
nitivos dos seus habitantes. A dimensão perceptiva sobre a realidade envolvente é, assim,
voluntariamente limitada e desinteressada de pontos de vista afins aos de Sennett, quando
considera que a cidade

(...) não é apenas um lugar para viver, fazer compras, sair e ter os filhos a brincar. É um lugar que
implica em como nós conduzimos a nossa ética, como desenvolvemos um sentido de justiça, como
aprendemos a falar com pessoas (e aprendemos delas) que são diferentes de nós, trata-se de como
um ser humano se torna humano. (Sennett, 1989: 84)11

Entendendo a cidade como ‘ser vivo’, em empatia com o pensamento da urbanista


e activista Jane Jacobs (1961) atenta ao facto de que as ruas, edifícios e bairros mudam ao
longo do tempo como organismos dinâmicos em resposta ao uso que as pessoas lhes dão,
acredito que se a atitude de receptividade do indíviduo à cidade (no sentido de a ‘abraçar’)
incidir na prática de uma percepção crítica, isto é, de uma percepção capaz de identificar e
questionar os dispositivos e mecanismos exteriores que a influenciam, novas formas de exis-
tência poderão ocorrer em consonância com o pulsar urbano. Torna-se necessária, no en-
tanto, uma elasticidade no tecido deste, adaptável à coabitação da diversidade de modos de
ser e estar que continuamente reconfiguram a cidade de hoje, e através da qual tal prática
possa encontrar expressão. As soluções neste sentido que a arquitectura e o planeamento
urbano apresentam levam, por vezes, demasiado tempo a ser concretizadas, tempo suficiente
para que tensões sociais se desenvolvam originando rupturas por vezes dificilmente rever-
síveis. Propostas mais atempadas podem no entanto surgir, como as de determinadas práti-
cas artísticas sobre as quais irei reflectir mais adiante, catalizadoras de modos de
percepcionar e experienciar o meio físico existente, tomando como ponto de partida a val-
orização das escolhas individuais para a extensão da medida de cada um ao ‘comum’.

11
(…) isn’t just a place to live, to shop, to go out and have kids play. It’s a place that implicates how one
derives one’s ethics, how one develops a sense of justice, how one learns to talk with and learn from people
who are unlike oneself, which is how a human being becomes human. (Sennett, 1989: 84)

PARTE I – ENTRAR 17
Sobre os tópicos sugeridos, e outros relacionados, dedicarei as páginas que se
seguem. De momento, e concluíndo assim a minha insistência na ‘visita’ de Mekas no de-
curso destas primeiras páginas, guardemos em mente que o modo como ‘abraçou’ a cidade
desconhecida foi a pé e com uma câmara de filmar na mão. A este propósito, e reflectindo
sobre o modo como Mekas figura a memória através do acto de filmar, refere Genevieve
Yue, investigadora em Estudos Críticos:

Mekas filma o mundo exterior como o seu interior, e é como se não houvesse distinção entre os
dois. (...) No outro ambiente industrial de Nova Iorque, a insistência de Mekas em filmar temas
naturais, como flores e árvores e neve foram uma via para reposicionar a Lituânia rural de sua in-
fância. A aleatoriedade aparente e a natureza imprevisível dos seus disparos são de facto cuida-
dosamente reconstruídos e ligados entre si pela memória. Como observa Scott Nygren, essas
imagens estão ‘cheias de significado através da memória, através do que está ausente da tela. (Yue,
2005)12

o acto de filmar será um de muitos meios possíveis para praticar o exercício de


uma percepção crítica sobre o que nos rodeia na cidade. Sobretudo, o que considero essen-
cial reter deste exemplo, é a ideia de, através de tal acto, um indivíduo se relacionar com o
mundo exterior como se fosse o seu mundo interior, alcançando assim uma qualidade de
experiência que lhe permite afirmar o ‘abraço’ entre si e a cidade. o que pode motivar
semelhante atitude por parte do ‘comum habitante’ da cidade actual? Como é que a cidade
se dá ver? o que nos pode revelar a sua experiência perceptiva? Entremos na cidade,
levando conosco a seguinte observação de Boyer:

(...) ler em e através de diferentes camadas e estratos da cidade requere que os espectadores esta-
belecem um jogo constante entre superfície e profundas formas estruturadas, entre alusões pura-
mente visíveis e intuitivas ou evocativas. (Boyer, 1994: 19-21)13

12
Mekas films the outside world as his interior one, and it is as if there is no distinction between the two.
(…) In the otherwise industrial environment of New York, Mekas’ insistence on filming natural subjects
like flowers and trees and snow were a way of relocating the rural Lithuania of his childhood. The seeming
randomness and improvisatory nature of his shots are in fact carefully reconstructed and linked together by
memory. As Scott Nygren notes, these images are ‘filled with significance through memory, through what
is absent from the screen’. (Yue, 2005)
13
(…) to read across and through different layers and strata of the city requires that spectators establish a
constant play between surface and deep structured forms, between purely visible and intuitive or evocative
allusions. (Boyer, 1994: 19-21)

PARTE I – ENTRAR 18
1.1. Paredes de vidro

Para além das características relevantes para funcões específicas, os materiais pos-
suem potencialidades expressivas que influem na qualidade da nossa percepção visual,
física e, por consequência, nas nossas emoções e desempenho cognitivo face ao ambiente
que nos rodeia. Na construção dos espaços que configuram as cidades (públicos e priva-
dos), este será um dado ao qual os protagonistas da representação do espaço (arquitectos,
urbanistas…) deverão ser atentos, mas nem sempre o são as pessoas que na realidade prati-
cam quotidianamente esses espaços. Pelo menos, não de um modo conscientemente crítico.
Penso este facto tendo em mente a relação entre arquitectura e poder (político,
económico…) e o modo como os primeiros podem manipular o potencial expressivo dos
materiais de acordo com os desejos e objectivos dos seus clientes, nem sempre sensíveis
à qualidade da vivência, a longo prazo, dos espaços em questão por parte de quem mais
frequentemente os confronta (interiormente ou exteriormente). Assim acontece, sobretudo,
com edifícios corporativos e empresariais, espaços destinados a comércio ou a serviços
públicos, mas também com outros como os de actividades culturais e, sobretudo, os de
características híbridas nos quais as fronteiras entre diferentes usos tendem, intencional-
mente, a esbater-se.
Nesta linha de ideias, estou a considerar as possibilidades da arquitectura enquanto
metáfora, em afinidade com o que refere José M. G. Cortés, professor de Teoria da Arte,
seguindo o trilho do pensamento dos filósofos Georges Bataille e Michel Foucault:

Contudo, devemos ter em conta que a arquitetura, como a linguagem, é uma estrutura que ajuda a
construir e a organizar as nossas experiências, é um discurso que edifica significados e enquadra
conteúdos. os espaços urbanos contam-nos histórias que lemos como se fossem ‘textos espacias’,
actos realizados no espaço. A arquitectura tem uma muito destacada participação na formação da
imagem da ordem social, inclusivamente, na sua configuração e imposição. (Cortés, 2006: 25)14

14
Sin embargo, debemos tener en cuenta que la arquitectura, como el lenguaje, es una estructura que ayuda
a construir y ordenar nuestras experiencias, es un discurso que edifica significados y enmarca contenidos.
Los espacios urbanos nos cuentam historias que nosotros leemos como si fueram ‘textos espaciales’, hechos
realizados en el espacio. La arquitectura tiene una muy destacada participación en la formación de la imagen
del ordem sociale, incluso, en su configuración e imposición. (Cortés, 2006: 25)

PAREDES DE VIDRo 19
os materiais, na configuração das cidades, podem ser trabalhados na relação com
a forma, a função e a tecnologia de modos catalizadores da nossa possibilidade de cons-
trução de pontos de vista ou exactamente o contrário, condicionando e alienando a nossa
percepção influindo, por exemplo, no tempo e qualidade de permanência nos espaços.
Podem favorecer determinados movimentos e direcções tomados pelo corpo em detri-
mento da possibilidade de outros. Cortés salienta, por exemplo, a incidência revigorada
nas últimas décadas da utilização do vidro com o ferro e a cor branca, e a sua influência
na criação de um mundo lógico e terrivelmente racional nas cidades ocidentais, alertando
para o facto de que são os materiais que compõem os enquadramentos que dão abrigo aos
‘sujeitos-números’ uniformizados e carentes de personalidade.
‘Sujeitos-números’ que são produtores e consumidores na lógica de um sistema
capitalista que lhes reduz, ou mesmo elimina, o espaço e o tempo sintonizados para o ex-
ercício da sua subjectividade. Carentes de personalidade, assim, pela impossibilidade do
encontro, antes de mais, consigo mesmos.
‘Ver através’ é a função que logo à partida se tende a associar com a ideia da pre-
sença do vidro na arquitectura, derivada naturalmente da qualidade de transparência que
este pode ter e a sua associação directa à ‘janela’. A permeabilidade à luz que lhe é carac-
terística permite, no entanto, a este material um mais amplo e poderoso potencial
metafórico com expressão historicamente evolutiva, sobretudo ao nível da sua utilização
enquanto ‘pele’ dos edifícios. Do primeiro Palácio de Cristal (Londres, 1851) aos arranha-
céus modernistas de 1920s-30s, e destes ao presente, a extensão das paredes de vidro su-
gere, paradoxalmente, ideais de leveza, clareza, abertura e desmaterialização em
construções representativas, na sua maioria, de um modelo de sociedade geradora de val-
ores não harmonizados com tais ideais. Mais curioso ainda é observar, nas últimas décadas,
a transferência para edíficios de habitação destas paredes de vidro predominantemente
características das altas estruturas comerciais, corporativas e empresariais. Do seu interior,
a cidade dá-se a ver na distância, enquanto panorama, ao corpo que sobre ela se eleva sem
que seja necessário abrir uma janela para ver mais. Como um pássaro sem asas, este corpo
atravessa em movimento ocular o vácuo da verticalidade urbana onde os olhares podem
tomar direcções convergentes sem o saberem. A possibilidade do ‘ver através’ para os
habitantes destes invólucros transparentes é a de uma ‘visão’ soberana. Dá-se de modo
unilateral e não nivelado. A cidade olhada como ‘espectáculo’, embora sendo real, parece

PAREDES DE VIDRo 20
tornar-se virtual dentro destas habitações cujo acesso visual ao exterior (aparente ‘abertura’
de grandes dimensões) dissimula uma sofisticada tecnologia de prevenção ao contacto
com este. Melhor dizendo, de prevenção ao tacto. De modo semelhante, assim acontecerá
também nos espaços de trabalho destes mesmos habitantes. A presença da cidade, tão perto
mas tão longe, é consumida por uma espécie de visão higiénica intervalada pelos percursos
de automóvel entre as garagens imprescindíveis a tais arquitecturas.
Numa cena no filme As Asas do Desejo (1987), do realizador Wim Wenders,
quando os anjos Damiel e Cassiel deambulam juntos por Berlim ao longo do muro que
dividia a cidade (e o país), Damiel, que então se questionava sobre o desejo de se tornar
humano, diz a Cassiel: “Desçamos do alto do nosso miradouro de não nascidos. olhar não
é olhar do alto, é olhar à altura dos olhos.”

Desçamos assim à horizontalidade da rua, onde a presença térrea das paredes de


vidro activa o questionamento sobre as possibilidades bilaterais do ‘ver através’, no sentido
da existência de nivelamento entre o que (ou quem) se dá a ver e quem o vê, e da relação
visual entre interior e exterior. o percorrer de uma rua na cidade é frequentemente ladeado
por margens verticais envidraçadas que nos devolvem visões caleidoscópicas. A
transparência é, de facto, apenas uma de várias experiências perceptivas a que o vidro
pode induzir. A sua superfície pode também ser translúcida ou opaca, para além das de-
rivadas gradações. Às diferentes situações, comum será a passagem de luz e o seu efeito
de reflexo, bem como um movimento contínuo onde se jogam revelações e ocultações
sobre um limite físico que, apesar de tudo, é uma parede ainda que por vezes também es-
pelho.
Dan Graham é um dos artistas cuja obra, desde a década de sessenta do século xx,
mais reflecte sobre mecanismos de percepção através de propostas que cruzam arte e ar-
quitectura, sendo o vidro (conjugado com aço) o material mais explorado nas superfícies
das suas esculturas e instalações de exterior, nomeadamente nos ‘pavilhões’ realizados a
partir da década de oitenta. Como um dos muitos exemplos que poderiam ser aqui perti-
nentes, consideremos a obra Two-Way Mirror Punched Steel Hedge Labyrinth (1994-96),
(fig.1), criada para o Minneapolis Sculpture Garden. Um labirinto aparentemente simples,
em termos formais, mas indutor de complexidade perceptiva ao corpo que com ele se con-

PAREDES DE VIDRo 21
fronta. Constituído por três fileiras de arbustros, e três paredes de vidro com duas faces
em estruturas de aço inoxidável, activa a consciência da percepção através das pro-
priedades simultaneamente transparentes e reflexivas do vidro em permanente relação
com o ambiente envolvente, pela mutabilidade da luz e movimentação dos observadores.

Fig. 1. Dan Graham, Two- Way Mirror Punched Steel Hedge Labyrinth, 1994-96, Minneapolis Sculpture Garden.

Transparência, opacidade e reflexividade dão-se simultaneamente a experienciar,


levando o observador a um constante questionar sobre a relação espaço-tempo. A obra de
Graham funciona como um dispositivo que cataliza a consciência da fusão entre real e
virtual que as paredes de vidro potenciam. Quem olha, vê através e vê-se a si mesmo tam-
bém em contraponto com o que o rodeia, sendo duplamente aquele que observa e o que é
dado a observar. Por vezes, os outros observadores que se encontram do lado oposto
surgem como espectros, aparecendo e desaparecendo misteriosamente. Se o efeito da su-
perfície de vidro for espelho, o observador não vê através mas sabe que do outro lado o
podem ver, situação que acontece frequentemente quando caminhamos pelas ruas das
cidades na proximidade com os pisos térreos de montras e outras paredes de vidro. As

PAREDES DE VIDRo 22
partes da obra constituídas pelas fileiras de arbustros, em contraste, não permitem estes
jogos de visão. Não criam ilusão, a densidade da folhagem é impenetrável para o olhar e
suscita a percepção táctil. É concreta.
Graham refere que as suas obras estão algures entre a arquitectura e a televisão e
que qualquer que seja o meio que utiliza (vídeo, fotografia, performance, escultura ou in-
stalação) é sempre à cultura de massas que vai buscar referentes. As suas esculturas e ins-
talações ‘habitáveis’ funcionam como citações e comentários à modalidade da arquitectura
instituída pelo ocidente com raiz nos ideais universalistas do Modernismo. Investigam e
dão a vivenciar a natureza do vidro enquanto superfície comunicante que, de acordo com
o que defendiam os arquitectos modernistas, possibilita uma continuidade relacional entre
interior e exterior. No entanto, a transparência do vidro é, como já referido, apenas uma
das suas muitas possibilidades. Antes de mais, uma parede de vidro cria um enquadramento
visual no qual decorrem imagens em movimento, pelo que se pode considerar como um
limite entre espaço privado e público de materialidade camuflada pelo fluxo de imagens
que capta, sugerindo dispersão e não propriamente o foco no que está para lá ou para cá
de si. A parede como um écran.
Na imagem que aqui se mostra da referida obra de Graham, é interessante a relação
que se estabelece entre esta, em primeiro plano, e alguns dos edifícios que se observam
em último plano. o enquadramento dá ênfase à sugestão de que a obra parece mesmo con-
stituir-se de fragmentos de alguns daqueles edifícios, como se Graham tivesse retirado
partes que no conjunto da sua arquitectura se diluem para as mostrar em detalhes, distan-
ciando-as assim da origem e transferindo-as para uma escala à medida do corpo que as
pode circundar, captando uma perspectiva do todo pela proximidade física.
A vitalidade das paredes de vidro de Graham (nomeadamente as das esculturas e
instalações de exterior), propõe uma revisão e actualização crítica da arquitectura mod-
ernista e da sua herança, em afinidade com o que pensa Sennett sobre a dupla qualidade
do vidro enquanto membrana entre interior e exterior,

(...) um princípio importante para visualizar mais formas urbanas do viver moderno. Sempre que
construimos uma barreira, temos que fazer igualmente a barreira porosa; a distinção entre o interior
e o exterior tem de ser brechiforme, se não ambígua.
o uso habitual contemporâneo de placa de vidro para paredes não faz isto. É verdade que no plano
térreo vê-se o que está dentro do edifício mas não se pode tocar, cheirar ou ouvir nada do interior.
As placas são normalmente fixadas rigidamente de modo a haver apenas uma, regulada, entrada.
o resultado é que nada mais se desenvolve de ambos os lados destas paredes transparentes, como

PAREDES DE VIDRo 23
no Edifício Seagram de Mies van der Rohe em Nova Iorque ou o novo London City Hall de Norman
Foster — há espaço morto em ambos os lados da parede e a vida no edifício nele se acumula. (Sen-
nett, 2007: 295)15

A este alinhamento de ideias podemos associar o pensamento de Boyer quando refere:

Em todo lugar o arquitecto e o urbanista cortam o tecido em unidades discretas e recompõem-nas


num todo estruturado e utópico (...). Estes cortes e inserções, através de imporem o seu modelo
ideal de unidade cénica no qual os sólidos se desmaterializam em formas transparentes e interpe-
netráveis e estruturas preenchidas ou espaço escavado, decompõem a cidade num arranjo aleatório
de sítios homogéneos, esvaziado de referência histórica e ignorante da construção de tipos de edi-
fícios e lugares específicos da cidade para cada local.” (Boyer, 1994: 46)16

Graham parece, de certo modo, citar um procedimento semelhante no seu processo


criativo, mas invertendo a escala. Conceptualmente, fragmenta em partes a arquitectura
que preza a homogeneidade para com estas compor esculturas e instalações catalizadoras
da singularidade do indivíduo, pois é a percepção deste que é o assunto em causa. As pes-
soas relacionam-se ludicamente com as características dos espaços de Graham compostos
por vidro e aço. São espaços que nos permitem um reposicionamento face aos ambientes
nos quais a arquitectura nos integra, espaços de ensaio para outros modos de ver determi-
nados mecanismos que quotidianamente enformam o alcance da nossa visão sobre a
cidade.

A influência das paredes de vidro na percepção da cidade pela proximidade física


que, inevitavelmente, com elas estabelecemos ao percorrer as ruas, é também questão cen-
tral em várias séries de fotografias da artista Sabine Hornig. Ao focar a sua atenção nas
montras de espaços comerciais em Berlim (fig. 2 e 3), temporariamente desocupados,

15
(…) an important principle for visualizing more modern living urban forms. Whenever we construct a
barrier, we have to equally make the barrier porous; the distinction between inside and outside has to be
breachable, if not ambiguous. The usual contemporary use of plate glass for walls does not do this. It is true
that on the ground plane you see what is inside the building but you cannot touch, smell or hear anything
within. The plates are usually rigidly fixed so that there is only one, regulated, entrance. The result is that
nothing much develops on either side of these transparent walls, as in Mies van der Rohe’s Seagram Building
in New York or Norman Foster’s new London City Hall — there is dead space on both sides of the wall and
life in the building does accumulate there. (Sennett, 2007: 295)
16
Everywhere the architect and the city planner cut the fabric into discrete units and recomposed them into
a structured and utopian whole (…). These cuts and insertions, by imposing their ideal model of scenic unity
in which solids dematerialized into transparent and interpenetrating forms and structures filled in or hollowed
out space, decomposed the city into a random array of homogeneous sites, emptied of historic reference
and ignorante of building types and city places specific to each location. (Boyer, 1994: 46)

PAREDES DE VIDRo 24
Hornig salienta o carácter da superfície de vidro enquanto mediadora de ambiguidade
entre alcance visual e possibilidade de acesso físico. A montra é um limiar do encontro
com o objecto de consumo desejado, remetendo-nos enquadramentos de visibilidades in-
tencionalmente cons-truídas, direccionando o nosso olhar. Pelo acto de fotografar montras,
Hornig funde um duplo enquadramento da realidade consequente da sobreposição entre o
que o seu próprio olhar selecciona e o que é dado a ver dentro dos limites físicos do campo
visual que a montra define, os quais Hornig salienta fazendo-os coincidir com as margens
da fotografia enquanto suporte. o facto dos espaços fotografados se encontrarem vazios
leva a que o olhar incida mais a fundo na procura de referentes através da transparência
do vidro. Desta auscultação progressiva da visão em profundidade vai emergindo a reali-
dade exterior absorvida pelas propriedades reflexivas do vidro. Lentamente o olhar emerge
do espaço interior ao (re)encontro da cidade face à qual, por sugestão do enquadramento
da fotografia, o observador se encontra de costas.

Fig. 2. Sabine Hornig, No.4, 2003 (fotografia, 150 x 270 cm), Berlim.

PAREDES DE VIDRo 25
Fig. 3. Sabine Hornig, The Destroyed Room, 2006 (fotografia, 100 x 159 cm), Berlim.

Nestas fotografias de Hornig, a natureza da imagem fixa, ao explorar o potencial


metafórico do vidro, tem a capacidade de induzir à reflexão sobre ‘o que é dado a ver’ e
‘o que há a ver’ nas travessias pela cidade. Por outras palavras, sobre a distinção entre o
que se percepciona pela mediação por terceiros, selectiva e condicionalmente dirigida ao
indivíduo, e as possibilidades da percepção orientada pela capacidade intuitiva deste face
à realidade que o envolve, potencialmente geradora de sentido existencial. No primeiro
caso, referimo-nos ao domínio da esfera pública exercido pelo que Boyer considera serem
vozes privadas vendendo estilos fictícios de vida e comportamentos imaginários. No se-
gundo caso, está em questão a resistência à crise actual da memória. Resitência que a
mesma autora considera manifestar-se pela nossa capacidade de

(…) interligar imagens disjuntivas e incomensuráveis para estabelecer ligações através da cidade
e reapropiar a sua promessa utópica. Somos compelidos a criar novos percursos de memória através
da cidade, novos mapas que nos ajudem a resisitir e a subverter as mensagens envolventes e pro-
gramadas da nossa cultura de consumo. (Boyer, 1994: 28-29)17

os espaços comerciais cujas montras Hornig fotograva encontram-se vazios, em

17
(…) interweave disjunctive and noncommensurable images to establish connections across the city and
reappropriate its utopian promise. We are compelled to create new memory walks through the city, new
maps that help us resist and subvert the all-too-programmed and enveloping messages of our consumer cul-
ture. (Boyer, 1994: 28-29)

PAREDES DE VIDRo 26
processo de transformação, sendo esta a condição que acentua e evidencia o seu efeito de
lente. Apesar da montra como limite físico ser o objecto fotografado, o que se coloca em
questão é, sobretudo, a possibilidade de ver para além da superfície. Se as montras servem
usualmente, nos nossos percursos quotidianos, para nos determos na imagem refletida do
nosso corpo, como quando olhamos para um espelho, Hornig impede esse facto nestas fo-
tografias evitando mesmo o registo do reflexo do seu corpo enquanto fotografa, propondo
uma visão em trajecto para além do obstáculo. Assim, a ideia de um olhar em construção
e, portanto, sujeito também ele a processo de transformação. Com alguma ironia, estas
fotografias sugerem-nos a recuperação de uma certa temporalidade no olhar, suscitada
pelo congelamento de um momento desfuncional na vida destes espaços destinados, à par-
tida, a actividades de consumo. A estas, o culto do éfemero será tendencialmente mais fa-
vorável do que o sentido de tempo.
o vidro em si mesmo, e sobretudo na função de montra, constituí uma superfície
cuja limpeza frequente permite recuperar o brilho e a transparência. Neste sentido, para-
doxalmente, a insistência de Hornig em revelar os diferentes níveis de visão correspon-
dentes a diferentes espaços fundidos pelos reflexos, remete-nos para um modo de ver não
muito comum na cultura ocidental, mas mais afim à cultura oriental. Relacionemos com
o que diz o escritor Junichiro Tanizaki (1933), ao reflectir exactamente sobre as diferenças
entre oriente e ocidente,

Não é que tenhamos uma reserva a priori relativamente a tudo o que brilha, mas, a um brilho su-
perficial e gelado, preferimos sempre os reflexos profundos, um pouco velados; (…) esse brilho
ligeiramente alterado que evoca irresistivelmente os efeitos do tempo. (Tanizaki,1999: 22)

Abordemos agora um exemplo que toma como referente uma acção criativa de
carácter transgressor perante a lei, uma cabina de telefone público em Paris interven-
cionada nos seus vidros por tags. Uma peça de mobiliário urbano que, apesar de mantida
a função utilitária a que se destina, torna-se assim catalizadora de um complexo percurso
de subjectividades. Da intenção dos anónimos autores dos tags ao exercício do olhar atento
de um transeunte que toma a intervenção, por relação com as especificidades do suporte
em que acontece (forma, materiais, função, uso), como um meio que activa a cabina en-
quanto dispositivo para a tomada de pontos de vista sobre a cidade. Exercício reflexivo
realizado em 2010 por Luciano Spinelli, fotógrafo e sociólogo visual, através da série de
fotografias designada Acid sur Verre (fig. 4 e 5) e também como ensaio escrito.

PAREDES DE VIDRo 27
Fig. 4 e 5. Luciano Spinelli, da série fotográfica Acid sur Verre, 2010, Paris.

PAREDES DE VIDRo 28
Spinelli toma como ponto de partida na sua pesquisa a interrogação sobre quem
actualmente utiliza, e com que objectivos, as cabinas de telefone público em Paris. Maiori-
tariamente, são utilizadas por imigrantes para chamadas telefónicas de longa distância.
Pela constatação do progressivo desinteresse visível na manutenção das mesmas pela mu-
nicipalidade, Spinelli refere que

(…) as cabinas passam a ser um dos poucos territórios de sombra a subsistir na cidade de Paris,
mesmo em plena luz do dia. Entender os seus usos e principalmente observar que inscrições trans-
portam são questões fundamentais no nosso objectivo de ler a cidade olhando através do jogo de
espelhos que as cabinas nos proporcionam. (…) vemos através das suas lâminas de vidros entre-
postas uma cidade distorcida. Comparável a um diamante que reflecte ângulos do urbano, essa ca-
bina compõe certamente um prisma que nos permite entrever uma outra cidade, com os seus outros
habitantes. (Spinelli, 2008: 50)

Tomemos o desafio de estabelecer alguma analogia entre a cabina de telefone


público com tags e a obra de Graham acima referida (ambas são estruturas de vidro e aço
temporariamente ‘habitáveis’ e/ou circundáveis) e entre as fotografias de Spinelli e as de
Hornig (no que respeita à activação visual do vidro enquanto superfície mediadora de per-
cepção da cidade). No entanto, ao exemplo da cabina acrescenta-se toda a complexidade
de factores inerentes ao espaço público das ruas, do qual faz parte. Antes de mais, os corpos
que neste passam (e sobretudo ‘passam’) com uma mobilidade de natureza não afim ao
olhar que se detém, e muito menos em zonas de sombra (como são as cabinas em causa).
Brilhos, luzes e cores são a atracção para a visão veloz que predomina na urbanidade oci-
dental contemporânea, capaz até de não ver o que se dá pela transparência. No caso da
cabina, como refere Spinelli,

(…) mesmo que observada ao nível da rua e à vista de todos, a cabina configura-se como um refúgio
onde se orquestram elementos do ‘regime nocturno’ (Durand, 1992). Afinal, em frente dos olhos,
as coisas escondem-se melhor. Na cabina, um sistema cíclico de renovação/ocupação se estabelece,
originando uma ‘zona de sombra’ (Maffesoli, 1991). Nesse espaço que escapa ao olhar totalitário
do Estado, talvez pelo fato de ser transparente, temos não somente habitantes regulares como um
todo ecossistema de usuários e de comunicações. (Spinelli, 2008: 53)

o tag é realizado sobre o vidro com ácido sulfúrico. o efeito não é o de pintura
mas de corrosão, o que leva a que a sua eliminação implique a substituição total do vidro.
Não adiciona matéria à superfície, antes subtraí. É a inscrição de um pseudónimo relativo
a uma pessoa ou grupo de pessoas que integram uma tribo urbana, repetido em várias su-
perficies da cidade (paredes, montras, equipamentos urbanos…) com o intuito de afirmar

PAREDES DE VIDRo 29
visibilidade, reconhecimento, fama e respeito por parte de quem o consegue descodificar
(elementos da mesma tribo urbana ou de outra). De certo modo, enquanto símbolo parece
expressar objectivos semelhantes aos das marcas invasivamente publicitadas pelas ruas
mas, ao contrario destas, não subentende a venda de nada e não pretende ser legível pelas
massas. Reivendica presença, durabilidade, permanência, ou por outras palavras, resistên-
cia. A sua inscrição sobre uma parede de vidro acentua ainda mais estas intenções porque
o que se torna questão logo à partida é, realmente, o que se passa na superfície. No vidro
da cabina de telefone público a inscrição do tag activa a consciência do limite físico, da
fronteira entre exterior e interior, com grande potencial metafórico transferível a outras
dimensões como as sociais, identitárias, políticas, entre outras. A percepção do que está
‘para lá’ da superfície é disto consequente, diferentemente do que se passa nas fotografias
de Hornig, nas quais a montra de vidro é como que dissimulada no processo de percepção
que gera. A cabina transparente torna-se “(…) um lugar social, um lugar de socialização
(…) vai da oferta de um telefone para a comunicação entre duas pessoas a um suporte
físico para a escrita urbana, que comunica com os habitantes.” (Spinelli, 2008: 52). Tal
comunicação faz-se em jeito de provocação, de interpelação. Características que ganham
ênfase quando o suporte da inscrição é transparente e acessível de ambos os lados. Spinelli
explora este dado na sua série de fotografias, tornando evidente o poder de intercepção do
tag sobre a leitura da realidade envolvente. o modo como Spinelli se relaciona com a ca-
bine, inquirindo-a performativamente enquanto dispositivo perceptivo intersticial, tem
semelhanças com a atitude lúdica, anteriormente referida, dos observadores das estruturas
de vidro e aço de Graham, mas depara-se com uma maior complexidade. A estrutura de
vidro e aço que a cabina é, para além da sua funcionalidade, tornou-se suporte de repre-
sentação de uma identidade simultaneamente individual e colectiva, não apenas dispositivo
de percepção como acontece no caso das estruturas de Graham. Uma identidade que se
revela através da inscrição que é parte expressiva de uma constelação de inscrições dis-
seminada pela cidade, parte integrante de uma narrativa urbana, de uma

(…) voz sinestésica, de textura lisa e coloração âmbar, proferida por pessoas anónimas (…) o escrito
NBK (…) passa a evocar um colectivo para as pessoas que se identificam com esse símbolo. (…) Sen-
sação análoga é causada pela bandeira francesa junto da maioria da população. (Spinelli, 2008: 55).

PAREDES DE VIDRo 30
As fotografias de Spinelli evidenciam como, sobre a parede de vidro, o tag filtra
a visão de dentro para fora e vice-versa. Para quem está dentro da cabina, a visão da cidade
através do vidro dá-se fragmentada pelo tag, pois as àreas que a sua forma preenche no
vidro são opacas pela corrosão do ácido. Quem passa na rua e olha para a cabine, tem tam-
bém uma visão fragmentada da pessoa que estiver no seu interior. Sobre o vidro, a inscrição
anónima ganha o poder de se impôr entre espaços. Cria opacidade na transparência e in-
terrupção sobre o que se pode ver através, sobrepondo-se. Um efeito semelhante é provo-
cado pelos diversos meios publicitários de marcas, produtos e serviços que ocupam as
paredes e invadem até o chão das ruas, sobrepondo-se também ao mobiliário urbano, e
especificamente às superfícies de vidro que utilizam como suporte. No entanto, as pessoas
comummente reagem passivamente a estes e indignadamente aos tags, entendidos como
ruído visual, esquecendo no entanto que ambos os casos são, na sua essência, representa-
tivos de intenções privadas que procuram e afirmam estratégias de visibilidade fazendo
uso do espaço público.
Spinelli leva-nos a olhar a cabina de telefone público intervencionada pelos tags
como uma metáfora que, entre outras questões, leva a reflectir sobre como através do ob-
jecto, e dos seus usos, se subentendem factos urbanos que lhe são exteriores, neste caso
até as condições de acesso e circulação consequentes da desigualdade social, e análoga
fragmentação espacial, da cidade. Na abrangência do que designa como “ a importância
dos detalhes ‘fora de campo’ no imaginário parisiense.” (Spinelli, 2008: 53).

Relaciono a qualidade da atenção que leva a este ensaio visual e escrito de Spinelli
com o tipo de preocupações que conduzem o projecto de investigação Urban Experiments
levado a cabo pelo CRESC - Centre for Research on Social-Cultural Change, Faculty of
Social Sciences (Manchester University / open University) no Reino Unido. Partindo da
convicção de que tal temática tem sido marginalizada no seio dos estudos urbanos, o pro-
jecto procura uma análise da cidade conduzida pelo estudo dos objectos no espaço público,
sendo estes abordados enquanto processos através do tempo e do espaço, enquanto medi-
adores e produtores de diferença e nas relações e fronteiras que estabelecem com o corpo.
os investigadores alertam para o facto de que os objectos

(…) antecipam e formatam o comportamento dos humanos por autorizarem ou proibirem, prome-
terem ou permitirem. (…) e habitam cidades em múltiplas mas estandardizadas formas que encon-

PAREDES DE VIDRo 31
tramos todos os dias. (…) cada um e todos eles formatam a experiência da cidade, dão possibili-
dades e transportam a acção que lhes é dada pelos humanos através do tempo e do espaço. (Ruppert,
et al., 2011)18

Consideram que ainda não foi levado a cabo um estudo suficientemente crítico e
analítico sobre as intenções políticas, poderes e relações subentendidas no mobiliário ur-
bano através do tempo e do espaço, um estudo sobre o espaço público centrado nos ob-
jectos. Uma das principais questões que colocam poderia ser tomada como ponto de partida
para as fotografias de Spinelli: “Num lugar e tempo particulares podemos perguntar, qual
é a conjugação ou cadeia de relações, presentes e ausentes, que se tornam materializadas
nos objectos vindo a actuar em relação aos humanos?” (Ruppert, et al., 2011)19

os exemplos dados das obras de Graham, Hornig e Spinelli, tomando as predo-


minantes superfícies de vidro no espaço urbano como referente, têm em comum a prática
de uma percepção atenta e crítica que assenta numa (re)visão da cidade orientada pelas
configurações e expressões nela mesma inscritas, disponíveis aos olhos de todos os que
passam nas ruas. Trabalham, sobretudo, ‘modos de ver’ o que pode estar ao nosso lado,
pré-existente à nossa passagem e, talvez por isso mesmo, tendencialmente não questio-
nado. Apesar dos diferentes métodos criativos e motivações, tratam-se de propostas à con-
vocação de um ‘estado de atenção’ por parte do observador. No caso de Hornig e de
Spinelli, através de ‘revelar’, ‘evidenciar’, enquanto ‘catalisadores de percepção’, situ-
ações específicas encontradas nos trajectos quotidianos (as montras dos espaços vazios,
as cabinas de telefone público). No caso de Graham através da criação de peças autónomas
que ‘citam’ dados de arquitecturas e ambientes existentes nas cidades, estimulando a ex-
periência de articulação consciente entre as percepções visual e fisíca. ‘Como se olha’ é o
que está em causa nestes exemplos.
Numa linha de actuação oposta, outros exemplos existem que, embora intervindo
directamente sobre objectos e equipamentos urbanos, contribuem para a evasão da possi-

18
(…) they anticipate and format the behaviours of humans by authorizing or prohibiting, promising or per-
mitting. (…) and inhabit cities in multiple but standardized forms that we encounter every day. (…) each
and all of them format experience of the city, afford possibilities, and transport the action given to them by
humans across time and space. (Ruppert, et al., 2011)
19
At a particular place and time we can ask, what is the assemblage or chain of relations, both present and
absent, that get materialised in objects and come to act in relation to humans? (Ruppert, et al., 2011)

PAREDES DE VIDRo 32
bilidade de uma percepção criticamente construtiva por parte do indivíduo em relação à
cidade. Por exemplo, projectos como o designado Reciclar o Olhar pela Galeria de Arte
Urbana da Câmara Municipal de Lisboa (de 2010 ao presente ano, 2012) que consiste na
utilização dos vidrões e camiões de recolha de resíduos enquanto ‘telas’ de ‘pintura’. ‘Ca-
muflagem’ ou ‘dissimulação’ dos objectos utilizados é o que caracteriza este tipo de in-
tervenção. As ilustrações pintadas induzem o olhar à ilusão, a um outro ‘mundo’ que se
sobrepõe aos objectos em causa remetendo as suas características físicas, funcionais, ou
outras, para um plano não passível de questionamento. Estratégias deste género desval-
orizam assim a relação corpo/objecto, sendo a antítese das preocupações que conduzem a
uma atenção à cidade e às suas materialidades como a do projecto Urban Experiments an-
teriormente referido. Defendendo a prática do grafite nos seus argumentos (que a publi-
cidade nas ruas também já utiliza), este projecto em Lisboa promove, paradoxalmente,
modos e localizações de actuação instituídos, incutindo a ordenação numa forma de ex-
pressão de cariz urbano cuja pertinência reside, exactamente, na imprevisibilidade espacial
e temporal da sua ocorrência. Embora afirmando-se como manifestação artística, este pro-
jecto faz uso de um tipo de abordagem bastante próximo das estratégias utilizadas pela
publicidade no que diz respeito ao efeito visual e relacional que provoca entre os suportes
utilizados e os transeuntes, sobretudo as que mais recentemente têm vindo a ‘plantar’ di-
rectamente sobre o chão dos passeios públicos, em zonas pedonais, objectos publicitários
tridimensionais que impõem presença de estatuto equivalente ao do mobiliário urbano.
Numa parede de um edíficio nas Escadinhas do Duque, em Lisboa, não muito
longe de alguns dos referidos vidrões ilustrados, lia-se há umas semanas a esta data (Março
de 2012) a frase “Paredes limpas, povo mudo”, escrita com algumas pinceladas de tinta,
por autor anónimo, sobre a parede de um dos vários edifícios restaurados. Perante a ‘do-
mesticação’ do grafite proposta pelo projecto Reciclar o Olhar, esta frase fez-me pensar
que, de facto, a cidade para ter as paredes das ruas limpas de inscrições teria de ser um
exemplo de harmonia social que não movesse inquietações e onde a todos fosse permitida
equivalente possibilidade de voz, ou então teria de ter um pesado dispositivo de controlo
e vigilância do espaço público por parte do Estado e das entidades privadas monopolizado-
ras de capitais. Destas duas hipóteses, evidentemente, a segunda é a provável.

PAREDES DE VIDRo 33
As paredes de vidro, como temos estado a reflectir, influem poderosamente na per-
cepção da cidade para quem caminha pelas ruas, sejam os transeuntes conscientes ou não
desse facto. Enquanto montras ou fachadas de edifícios, ou como paredes de outras arqui-
tecturas à escala do uso de um corpo (como uma cabina de telefone público), activam
várias possibilidades de níveis de visão pela articulação entre a inerente função de limite
físico e as características específicas (e expressivas) do vidro. Transparente ou não, limpa
ou com inscrições, uma parede de vidro é um meio de enquadramento da cidade que gera
performatividades específicas, não só ao nível visual mas ao nível da totalidade do corpo.
Quando o movimento deste se pretende trangressor à previsibilidade das práticas espaciais,
por exemplo na consequência de tensões sociais, uma parede de vidro pode também pro-
porcionar uma qualidade de ‘voz’ publicamente afirmativa. Considero aqui a sua dimensão
sonora que se activa através do gesto que a fractura. Um movimento de braço, em força
persistente, e a contiguidade acontece entre o ‘lado de lá’ e o ‘lado de cá’. Pelo menos,
simbolicamente.

Em Setembro de 2011 visitei a cidade de Manchester para participar na CRESC An-


nual Conference 2011 (Manchester University / open University), designada Framing the
City, com uma comunicação sobre o projecto Que cor tem agora o ceú? (2010), a apresentar
mais adiante na segunda parte desta reflexão. No seu conjunto, as comunicações oriundas
de diversas disciplinas e diferentes países, tomaram a observação das materialidades da
cidade para a análise crítica sobre como emerge a capacidade de se ser afectado (e de afec-
tar) nos diferentes espaços, como os objectos incorporam relações sociais de modos es-
pecíficos, como novas continuidades e descontinuidades de tempo/espaço reconfiguram o
fenómeno urbano, como se podem analisar as desigualdades culturais e sociais, como difer-
entes práticas culturais fazem e refazem espaços urbanos e identidades, ou como a contes-
tação é central ao entendimento de formas de participação, entre outras questões. Algumas
semanas antes da conferência, em Agosto de 2011, tinham acontecido os motins no centro
de Manchester levados a cabo por jovens e crianças, com características semelhantes aos
que tinham já acontecido noutras cidades inglesas durante o mesmo Verão, tendo sido Lon-
dres a primeira. Uma das acções comuns praticadas foi a de partir as montras de algumas
lojas de marcas globalmente conhecidas. A coincidência temporal e geográfica entre este
acontecimento, pelos seus modos de actuação, e o tema da conferência (planeada vários

PAREDES DE VIDRo 34
meses antes do sucedido) não me passou despercebida, tendo-me levado a uma atenção es-
pecífica sobre as paredes de vidro ao longo das deambulações que fiz pelo centro da cidade.

Fig. 6. Motins no centro de Manchester, Agosto de 2011 (saque a loja em Sainsbury).

Na procura de abordagens críticas sobre os motins em Manchester (fig. 6 e 7), não


conduzidas pela superficialidade com que os média de massas tendem a abordar este tipo
de manifestações, fui ao encontro do artigo intitulado Glass Architecture – A Riotous
Mythology escrito por Mark Crinson, professor de História de Arte na Universidade de
Manchester. Uma reflexão sobre o assunto tendo em consideração a acção de partir vidros
de montras como parte das condições materiais que as provocam. Crinson questiona,

Foi a arquitetura meramente incidental para os motins do último verão? Não pareceu não apenas
conter as coisas desejadas ou injuriadas, mas também ser detestada em si mesma: o banco compla-
cente e a boutique elegante, tanto quanto os galpões decorados dos parques de retalho? Não poderão
alguns dos danos ser vistos como um ataque (…) sobre as formas arquitetónicas do nosso ‘desen-
freadamente selvagem’ capitalismo? (...) Porque este dano foi em grande parte para as lojas e ruas
caras, apesar de ter sido facilmente assumido à vista dos políticos que os motins não eram sintomas

PAREDES DE VIDRo 35
de desagregação social, mas surtos oportunistas de criminalidade aquisitiva. Contudo, em tal se-
quência complexa de eventos e causas, não poderia alguma desta edificação confusa ser interpretada
de um modo diferente? (Crinson, 2012)20

obviamente, como Crinson também refere, é mais fácil partir uma parede de vidro
do que uma de tijolo ou de betão, mas há que ter em conta que a predominância da presença
do vidro nas ruas tem sido acentuadamente evolutiva nas últimas décadas na construção
de quarteirões inteiros, usado não apenas nas paredes mas também nos tectos e pisos de
lojas e escritórios ‘aquário’, nas torres brilhantes que negam a passagem do tempo. Este
dado, segundo Crinson, está relacionado com um novo tipo de violência urbana que não
dever ser negligenciado pelo pensamento sobre arquitectura e espaço urbano da actuali-
dade.
Crinson sugere, com ironia, que este confronto directo do corpo com a arquitectura,
pela destruição da fachada de vidro, protagoniza literalmente a promessa dos arquitectos
modernistas e dos seus actuais seguidores, pois realiza a ‘desmaterialização das paredes’,
a exposição dos interiores previamente escondidos, uma nova ‘transparência social’, a ‘so-
ciedade aberta’. Lembra, contudo, que semelhantes argumentos continuam a ser utilizados
por arquitectos contemporâneos, como Richard Rogers e Norman Foster, quando insistem
que as paredes de vidro são símbolo de

(...) ‘valores democráticos de abertura e participação ... [ou] a acessibilidade de um sistema judicial’,
‘a transparência e a abertura do processo democrático’, ‘transparência, dignidade e abertura’. Em
tudo este vidro estava sempre intimamente enraizado na dialética do modernismo sobre o racional
e o encantador. (...) Se tal é a retórica dos arquitectos modernos e dos seus clientes, para outros o
vidro pode não e pode nunca ter significado destes modos: pode na realidade ser sobre acessibili-
dade falsa, sobre tentação e aberrações dominantes. (Crinson, 2012)21

20
Was architecture merely incidental to last summer’s riots? Did it seem not only to contain the things
desired or reviled, but in itself to be loathed: the complacent bank and the sleek boutique, as much as the
decorated sheds of retail parks? Could not some of the damage be seen as an attack (…) on the architectural
forms of our ‘rampantly feral’ capitalism? (…) Because this damage was largely to shops and high streets,
however, it was easily subsumed to the politicians’ view that the riots were not symptoms of social break-
down but opportunistic outbreaks of acquisitive criminality. Yet, in such a complex sequence of events and
causes, could not some of this building bashing be interpreted in a different way? (Crinson, 2012)
21
(…) ‘democratic values of openness and participation… [or] the accessibility of a judicial system’, ‘the
transparency and openness of the democratic process’, ‘dignity, transparency and openness’. In all this glass
was always closely bound into modernism’s dialectics of the rational and the enchanting. (…) If such is the
rhetoric of modern architects and their clients, for others glass may not and may never have signified in
these ways; it may actually be about false accessibility, about temptation and leading astray. (Crinson, 2012)

PAREDES DE VIDRo 36
Fig. 7. Motins no centro de Manchester, Agosto de 2011 (loja Esprit na Market Street).

A experiência da observação das mais recentes modalidades de paredes de vidro


no centro de Manchester trouxe-me ao pensamento algumas ideias do sociólogo Andrea
Mubi Brighenti (2009), no que respeita a considerar que a arquitectura é um meio poderoso
na gestão de ‘intervisibilidades’. Através de elementos básicos da arquitectura, como pare-
des, podem ser despoletadas práticas de interacção com os espaços fechados instigadoras
de uma nova gramática sobre o que se entende como sendo do domínio ‘público’, não
contempladas pelas definições sociológicas estabelecidas.
os referidos motins de Manchester aconteceram no centro da cidade, zona que
sofreu uma regeneração em grande escala após as consequências da bomba do IRA em
1996. A arquitectura de vidro construída, com as mais recentes e sofisticadas tecnologias,
é a imagem de marca que pretende afirmar esta antiga cidade industrial como uma das
mais apelativas no universo do consumo e dos negócios da actualidade. Para quem ca-
minha nas ruas pela primeira vez, o virar de uma esquina pode tornar-se numa experiência
surpreendente pelo confronto inesperado com a existência lado a lado de disparidades ar-
quitectónicas. Uma das que mais me impressionou localiza-se em Spinningfields (fig. 8),
composta pela Biblioteca John Rylands, um edifíco de estilo Gótico Vitoriano que abriu
ao público em 1900, e a loja Emporio Armani que abriu em 2010 (esta chegou também a
ser alvo dos motins). Parada na rua que dá acesso aos dois edifícios, eu estava entre uma
arquitectura que convoca à descoberta do seu interior, espaço do ‘conhecimento’, e outra
que distraí o olhar pelos efeitos visuais de ‘superficialidade’, espaço do ‘consumo’.

PAREDES DE VIDRo 37
Fig.8. Loja Emporio Armani e Biblioteca John Rylands, Spinningfields, Manchester, 2012.

Naturalmente, o contraste entre as formas e os materiais dos dois edifícios é sug-


estivo. A biblioteca, que se parece com uma imponente igreja, é da autoria do arquitecto
Basil Champneys e foi construída com arenito sobre uma estrutura de aço moldado. No
exterior, a pedra avermelhada reage tonalmente às intempéries, no interior os seus tons
variam entre areia e rosa. o edifício da loja Emporio Armani foi construído pela empresa
londrina Sheppard Robson, a qual, segundo Crinson, prolonga estilos outrora de van-
guarda. Neste caso, trata-se de uma paródia de

(...) desconstrutivismo tardio misturado com alta tecnologia, Daniel Libeskind cruzado com Nor-
man Foster. Tais edifícios devem ter um ‘conceito’, e aqui este é baseado num jogo de mente-sim-
ples que corta um paralelogramo, lançando-o e, em seguida, desalinhando os dois blocos. o balanço
criado por este desalinhamento fornece uma cobertura em forma de cunha para os clientes, com
uma aresta cortante de painéis de vidro apontando para a rua. Detectamos que preocupações re-
centes sobre arquitetura e segurança entraram no inconsciente de muitos arquitectos — mesmo
numa loja como esta há uma estranha combinação de vulnerabilidade e agressão, chegar-próximo
e repulsão. Através de todo o edifício e reforçando a sua estridente geometria há um revestimento
jazzy diagonal de painéis de vidro trapezoidais. (Crinson, 2012)22

22
(…) late deconstructivism mixed with high tech, Daniel Libeskind crossed with Norman Foster. Such
buildings must have a ‘concept’, and here this is based on a simple-minded game of slicing a parallelogram,
flipping it and then misaligning the two blocks. The cantilever created by this misalignment provides a
wedge-shaped canopy for shoppers, with a sharp-edged arris of glass panes pointing at the street. one detects
that recent concerns about architecture and security have entered many architects’ unconscious — even in
a shop like this there is a strange combination of vulnerability and aggression, come-hitherness and repulsion.
Across the whole building and reinforcing its strident geometry is a jazzy diagonal cladding of trapezoidal
glass panels. (Crinson, 2012)

PAREDES DE VIDRo 38
A visão extremamente crítica de Crinson sobre este tipo de edifícios considera que
a valorização dada aos efeitos da superfície, sobretudo através das potencialidades do
vidro, gera as qualidades perceptivas ‘intoxicantes’ que caracterizam os “logotipos da
nossa era neoliberal, os seus cacos de vidro, obeliscos and pepinos.” (Crinson, 2012).23
Pensamento sintonizado com a opinião do crítico de arte Hal Foster (2011), ao
considerar que este género de arquitectura já não é só geradora de espaços ‘opacos’ (em-
bora aparentemente ‘transparentes’) mas é sobretudo ilusionista, no sentido de apresentar
ao indivíduo uma espécie de percepção pré-feita para ser consumida, em vez de carac-
terísticas que favoreçam a experiência perceptiva que se processa orientada pela descoberta
progressiva. Na realidade, esta foi a sensação que tive ao visitar a Biblioteca John Rylands.
A de um percurso em diferentes etapas através de momentos de luz e som variáveis, sin-
tonizados com os detalhes das diferentes salas, corredores e escadarias. o contacto com o
edifício da loja Emporio Armani não permitiu tal aproximação. Entre reflexos, brilhos e
luzes, quando finalmente comecei a discernir os elementos do ambiente através do vidro
da montra, dei-me conta de que todos os meus movimentos eram rigorosamente observa-
dos e controlados há já algum tempo sem que reparasse, estando ainda apenas no exterior.
Estratégia conciliada, evidentemente, com o objectivo de filtrar os visitantes ideais de
quem se espera, exclusivamente, o acto de compra. Contudo, o que me deixa a pensar é a
desproporção que existe entre a dimensão do impacto que uma arquitectura destas tem
sobre o contexto exterior que a envolve (visual, relacional, afectivo…) e as restrições de
acesso que pressupõe.
A bilioteca está hoje rodeada de outras lojas de luxo e de um complexo de tribunais.
Apesar de ser o edifício mais antigo do conjunto, parece ter sido transplantada para o local,
como se o plano urbanístico procurasse integrar o que é pré-existente no local com o novo,
e não o contrário como seria suposto. Ao velho corpo da biblioteca foi assim acrescentada
uma extensão em função da estética dos novos edifícios construídos em volta, um espaço
de loja e café por onde se faz actualmente a entrada, na rua pedonal. o pórtico principal
foi assim encerrado. Questionando esta solução, Crinson salienta

A glória original da biblioteca vitoriana, agora transformada num mero apêndice pela nova extensão,

23
(…) logos of our neoliberal age, its glass shards, obelisks and gherkins. (Crinson, 2012)

PAREDES DE VIDRo 39
era a forma como abordava directamente a rua e depois absorvia o visitante nos seus espaços de
entrada evocativos. Usava a escuridão da tectónica do neo-Gótico para sugerir os mistérios especiais
da aprendizagem; o acesso aqui era uma questão de passar por sucessivas densidades espaciais.
Agora as estruturas ocultas da arquitectura contemporânea não sugerem nada mais do que a leveza
do ser moderno. (Crinson, 2012) 24

As ruas pedonais entre estes edifícios são exemplo do modelo de rua na qual o
transeunte, embora esteja no exterior, parece caminhar pelo interior de uma loja gigante,
como se fosse ele próprio um objecto de montra. Contudo, estas não são ruas cobertas de
tectos de vidro e ferro como as galerias comerciais do início do século XX, antecipatórias
dos actuais centros comerciais. Se a experiência pode até ser semelhante em alguns as-
pectos, há a grande diferença entre a evidência dos usos e funções expectáveis das ruas de
lojas cobertas de arcadas e a natureza ambígua destas ruas de hoje onde, a céu aberto, cada
passo é vigiado. São ruas que não suscitam o estar, o permanecer, a receptividade e inter-
acção espontânea com o ambiente, mas antes estimulam o desejo e actividade de consumir.
Nas arcadas parienses, observadas e pensadas pelo filósofo, historiador e crítico literário
Walter Benjamin entre 1927 e 1939, o movimento do olhar dos potenciais consumidores
detinha-se pela curiosidade em observar os outros, pois a própria situação de coexistência
temporária de tantos desconhecidos numa ‘rua’ que oferecia um conforto como se de um
espaço interior se tratasse era uma novidade que, a ser verdadeiramente desfrutada, era
percorrida em passo lento. Uma observação atenta e crítica, como a de Benjamin, podia
identificar entre a multidão uma diversidade de tipologias de posturas e atitudes. Nas ruas
das paredes de vidro de hoje a natureza da multidão caracteriza-se essencialmente por
duas modalidades de transeuntes, os que têm o poder de compra e os que não o têm, rea-
lidade exemplar da antecipatória visão de Benjamim sobre as arcadas parisienses enquanto
objecto histórico significante de uma ‘imagem dialética’ expressiva, simultaneamente, de
opressão e de libertação, da ideologia do consumo versus uma utopia de abundância. Se
Benjamin tomasse os quarteirões de paredes de vidro nos centros das cidade de hoje (como
o caso de Spinningfields em Manchester) para uma qualidade de observação semelhante

24
The original Victorian library’s glory, now made into a mere appendix by the new extension, was the way
it addressed the street directly and then absorbed the visitor in its evocative entrance spaces. It used the
gloom of neo-Gothic tectonics to suggest the special mysteries of learning; access here was a matter of pass-
ing through successive spatial densities. Now the hidden structures of contemporary architecture suggest
nothing but the lightness of modern being. (Crinson, 2012)

PAREDES DE VIDRo 40
à que dedicou às ruas parisienses de tectos de vidro, talvez os jovens e crianças autores
dos referidos motins ganhassem notoriedade ‘semelhante’ à do flâneur de então. Inevi-
tavelmente, para além das quase oito décadas que os separam, haveria que considerar tam-
bém a diferença de condição social a que pertencem em relação com as sua práticas
espaciais em tais contextos. Se o último tomava o passo ao ritmo de tartarugas que levava
a passear nas arcadas, os primeiros são levados pelo balanço do braço que parte montras.
Se então Benjamin estava atento ao ‘tempo perdido incorporado nos espaços das coisas’
que as arcadas parisienses continham, talvez agora estivesse atento ao ‘espaço perdido in-
corporado nos tempos das coisas’.
Nas ruas das paredes de vidro de Spinningfields (fig. 9) a circulação é contínua e
direcionada pela necessidade de aproximação às montras na procura dos objectos. o corpo,
embora na rua, movimenta-se com a visão dirigida para os interiores que as paredes de
vidro sedutoramente permitem vislumbrar. os escassos elementos orgânicos existentes
parecem dispostos ao longo do chão como bibelôs na decoração de uma prateleira. outras
ruas de características semelhantes a estas, nas materialidades que as constituem e usos
afins, foram o cenário dos referidos motins,

(...) onde os mundos de vidro contemporâneos da lei, segurança, consumismo e aprendizagem foram
recentemente expostos em termos de quem tem o direito de usar estas ruas da maneira para a qual
foram projectadas. (Crinson, 2012)25

Fig. 9. Detalhe de rua em Spinningfields, Manchester, 2012.

25
(…) where the contemporary glassworlds of the law, security, consumerism and learning were newly ex-
posed in terms of who is entitled to use these streets in the manner for which they had been designed. (Crin-
son, 2012)

PAREDES DE VIDRo 41
A acção de quebrar paredes de vidro nas ruas remete-me para a memória da obra
Através (1983-89) do artista Cildo Meireles (fig. 10), a qual tive possibilidade de experi-
enciar na sua segunda materialização em Janeiro de 2001, realizada no Palacio de Cristal
del Parque del Retiro, em Madrid. ocupando uma área de 16 metros quadrados, um reves-
timento de cacos de vidro cobria a superfície do chão. o visitante percorria sobre estes
um espaço de estrutura labiríntica, passando por entre barreiras físicas, dispostas geomet-
ricamente, de diferentes materiais e dimensões mas com a característica comum de per-
mitirem ver ‘através’. Entre outros materiais com função de delimitar ou interditar espaços,
a instalação compunha-se de cercas de madeira, de arame e de metal, superfícies translú-
cidas de plástico, postes com fitas de delimitação de zonas. Havia também um aquário
com pequenos peixes cujas espinhas se revelavam pela translucidez dos seus corpos. Ao
centro, do qual o visitante se aproximava lentamente pelo cuidado implícito ao pisar dos
vidros, encontrava-se uma esfera à escala do corpo feita em papel celofane amachucado.
Material comum à embalagem ou acondicionamento de produtos de consumo mas que
pela sua concentração esférica se tornava translúcido, parecendo emanar uma luminosidade
vinda do seu interior. No entanto, ali o papel celofane não era invólucro de nada, excepto
de si mesmo.

Fig. 10. Cildo Meireles, Através, 1983-89, instalação no Palacio de Cristal,


Parque del Retiro, Madrid, 2001.

PAREDES DE VIDRo 42
o som dos cacos era um inevitável acompanhante da descoberta progressiva que
o olhar ía fazendo na travessia da obra. o caminho possível, por entre as barreiras, era de-
limitado pela sua organização no espaço, direccionado e sem hipótese de desvios, embora
na realidade não existissem paredes. À medida que se avançava para o centro, a sensação
física era de confinamento apesar de se tratar de uma estrutura aberta (e transparente). A
experiência de Através levava a uma tomada de consciência face à presença dos inúmeros
obstáculos que interpelam o acesso físico à realidade que nos envolve, ainda que sejam
penetráveis pelo alcance da visão. É um facto que a interdição de acesso ou circulação do
corpo no espaço não se pratica apenas pela implantação de paredes ou muros, existindo
muitos outros modos para o fazer cada vez mais desmaterializados. o ‘alimento’ para a
visão pode ser dissimulador da percepção da materialização de restrições das possibili-
dades de uso e permanência, como acontece em muitos dos espaços ditos ‘públicos’ nas
cidades nos quais o transitar e o fruir não são coincidentes. Para Meireles os materiais nas
suas obras simplesmente ‘estão’, não significando nada à partida. Assim parecem ‘estar’
também os objectos que configuram o espaço urbano, pelo menos ao olhar da generalidade
dos transeuntes, até que a imprevisibilidade de certos gestos os façam ‘falar’.
o som dos cacos de vidros que se pisam nesta obra de Meireles remete para o chão
a arquitectura das paredes de vidro, dando-lhe a sonoridade que se activa pela experiência
física do andar. A instalação no Palacio de Cristal, construído em 1887, terá sido provavel-
mente a mais pertinente de todas as suas apresentações, pois trata-se de uma das primeiras
arquitecturas de ferro e de vidro. Através coloca em confronto a consciência do plano hori-
zontal, e dos nossos passos nele, com a dimensão ilusória e condicionante que pode ter a
verticalidade que nos envolve.

As investigações que relacionam espaço, arquitectura, imagem e urbanismo leva-


das a cabo por Lorenzo Tripodi, investigador em sociologia urbana, alertam para a obser-
vação dos primeiros sintomas de um ‘urbanismo vertical’,

o desenho urbano passa de ‘campos’ para ‘enquadramentos’: o uso logístico da terra sobre super-
fícies horizontais perde relevância (relativa) no que diz respeito ao uso semântico das verticais.
Se, no passado, o projecto da cidade tinha sido basicamente desenhar planos a partir de um ponto
de vista aéreo, distribuindo funções através do espaço físico numa articulação primeiramente hori-
zontal, agora enfrentamos o emergir de uma disciplina incumbida em organizar a percepção visual
de um ‘palimpsesto urbano’, constituído por uma sucessão de enquadramentos essencialmente ver-
tical. Essa nova perspectiva apela para questões fundamentais sobre quem são os actores a produzir,

PAREDES DE VIDRo 43
regular e controlar tal articulação visual que se está a tornar uma expressão substancial do espaço
social contemporâneo. (Tripodi, 2009: 60)26

As directrizes da minha atenção sobre as paredes de vidro na cidade vão ao en-


contro destas afirmações de Tripodi, considerando a relação entre a produção de imagem
e a produção do espaço agenciada através do uso das paredes, reconhecendo o valor semân-
tico destas na construção quotidiana da paisagem visual dos transeuntes nas cidades. Se
esta relação se dá de modo evidente na sobreposição da imagem com as superficies verti-
cais segundo objectivos comerciais (que através de diversas técnicas e meios utilizados
pode chegar mesmo a cobrir toda a fachada até de um edíficio de habitação), no caso es-
pecífico da parede de vidro, pelas suas intrínsecas características já abordadas, mesmo
que não seja usada como suporte de uma imagem ela é já por si mesma um meio gerador
de imagens. Assim, pode ser orientada segundo a representação de determinadas ideias
conduzindo a estados de percepção específicos, embora a aparente ‘desmaterialização’
sugerida pelas suas qualidades reflexivas possa levar a descurar este facto por parte do
comum transeunte. Consideremos assim que a sua predominância no campo visual daquele
que caminha pelas ruas da cidade contempla estas possibilidades, sobretudo porque gera
imagens em movimento e/ou em fusão, contribuindo assim em grande parte, através de
arquitecturas astutas, para a função da parede como ‘écrã’ que estrutura e domina a ex-
periência urbana dos nossos dias, essencialmente visual. No entanto, e por isto mesmo,
quando as feridas sociais procuram afirmação e representatividade no espaço público, o
confronto com a parede de vidro revela-se detentor de um poder simbólico ímpar, pela in-
tervenção ou mesmo pela destruição.
Tripodi (2009) propõe o conceito de “cidade cinemática” para caracterizar a metró-
pole contemporânea cujo ‘espaço público’ se experiência enquanto ‘espaço de exposição’,
concebido para eficazmente orientar os seus utilizadores na direcção do espectáculo do
consumo. Na sua opinião, observa-se uma exploração das superficies urbanas pelas suas

26
Urban design moves from ‘fields’ to ‘frames’: land’s logistic use of horizontal surfaces lose (relative) rel-
evance in respect to the semantic use of vertical ones. If, in the past, the design of the city has been basically
drawing plans from an aerial point of view, distributing functions through the physical space in a primarily
horizontal articulation, now we face the emergence of a discipline aimed at organizing the visual perception
of an ‘urban palimpsest’, constituted by an essentially vertical succession of frames. This new perspective
calls for fundamental issues about who are the actors producing, regulating and controlling such visual ar-
ticulation that is becoming a substantial expression of contemporary social space. (Tripodi, 2009: 60)

PAREDES DE VIDRo 44
possibilidades comunicantes dominada pelas poderosas marcas globais, onde a arquitectura
‘concreta’ é colonizada por uma ‘cenografia’ concebida em função de uma percepção vi-
sual desmembrada da percepção física, através das possibilidades de um universo tec-
nológico sem precedentes ligado à economia do mercado. Trata-se da substituição da
experiência vivida pela experiência representada. A criação de um ‘espaço público’ que é
essencialmente ‘interface’ onde, como nos alerta Tripodi,

A vida social está cada vez mais a tornar-se um sub-produto da infra-estrutura mediada, gerido
como um conteúdo transmitido por canais privatizados: o que temos a temer, reconhecendo a fusão
progressiva do tradicional espaço ‘horizontal’ com a entrada do ‘vertical’ espaço cinematográfico,
é a progressiva extensão de uma filosofia de ‘pagar-para-ver’ em todos os domínios da vida social
urbana. (Tripodi, 2009: 61)27

A acção de partir montras, como no caso dos referidos motins em Inglaterra,


parece-nos sintoma consonante com tal receio. Uma afirmação da corporeidade que pelo
próprio passo avança através da virtualidade vertical, interceptando com violência brusca
e ruidosa o que se vai constituindo por violência silenciosa. As paredes de vidro foram
eleitas como alvo por crianças e jovens afirmando a capacidade de transgredir os limites
definidos pela sociedade de consumo. Para além da agressão à parede, passaram para o
lado de lá, fizeram pilhagens de comida e bebidas mas também de roupa, telemóveis e
outros objectos de consumo não considerados de primeira necessidade, o que levou ao co-
mentário generalizado pelo senso comum de que se tratou não de um protesto mas apenas
de violência gratuita, não da necessidade em ‘matar a fome’ mas de satisfazer a ganância.
A propósito desta visão, que nos parece demasiado estreita, lembro-me de algumas das
ideias de Bauman na sua reflexão sobre ‘medos pós-modernos’, quando refere que hoje
“os corpos são, antes e acima de tudo, corpos que consomem, e a adequação da sua
condição é medida pela sua capacidade de consumirem o que a sociedade de consumo
tem para oferecer.” (Bauman, 2007: 122).

27
Social life is increasingly becoming a by-product of mediated infrastructure, and managed as a content
conveyed by privately channels: what we have to fear, acknowledging the progressive conflation of tradi-
tional ‘horizontal’ space with the incoming ‘vertical’ cinematic space, is the progressive extension of a ‘pay
per view’ philosophy to all the realms of urban social life (Ibidem: 61)

PAREDES DE VIDRo 45
Em causa parece estar uma ‘fome’ não apenas circunscrita à necessidade de comer,
mas uma ‘fome’ por determinados objectos que a sociedade de consumo proclama como
balizadores de ‘identidade’. Falo aqui da ‘identidade’ que se constroí com base na priori-
dade do ‘ter’ sobre o ‘ser’, difundida em grande escala pelas imagens publicitárias que se
estendem ao longo do ‘urbanismo vertical’ referido por Tripodi. Neste, a transparência,
que pelo vidro as superficies verticais podem ter, evidencia e acentua a disparidade que
pode existir entre o que se deseja e o que efectivamente se tem. As ‘identidades prontas a
consumir’ apresentam-se disponíveis ao alcance da visão de todos, mas do poder de com-
pra só de alguns. Se este facto é por si só, logo à partida, gerador de tensão social, esta
agrava-se ainda mais quando as ruas não oferecem condições para modos de estar que não
girem exclusivamente em torno do acto de consumo. Na ausência de espaços para ‘realizar’
ou ‘partilhar’, as ruas dos centros das cidades ‘oferecem’ horizontes que seduzem a visão
na direcção do desejo de ‘alcançar’, o que traduzido em acção implica um movimento que
tem de ultrapassar uma certa distância para chegar a tocar o que está mais adiante. De um
modo radical, o ataque às lojas nos recentes motins em Inglaterra é exemplo deste movi-
mento, sendo as paredes de vidro a ‘distância’ a ultrapassar. Uma nova ‘coregorafia’ urbana
que, sendo desempenhada por multidões e reincidente em diferentes cidades, deverá ser
tida em conta como uma nova prática espacial a ser considerada à luz das consequências,
físicas e morais, derivadas de certas especificidades da materialidade urbana que lhe são
contemporâneas. Se os seus actores se expressam através do acto de partir paredes de
vidro, de modo a atingir e a possuir o que estas guardam, torna-se necessário que a análise
dos motivos e causas que levam a tal transgressão se detenha sobre o que se encontra para
lá do limite físico transgredido, e não apenas no que é visível do lado de cá.
As paredes configuram as ruas não só em termos estruturais, funcionais, estéticos,
mas também em termos da qualidade de vivência do espaço que lhes é exterior, pelo que
escondem ou revelam, protegem ou liberam, mesmo quando parecem não emanar vida do
seu interior, como as fachadas de casas desabitadas e emparedadas. os centros das cidades
de hoje, como no exemplo referido de Manchester, tendem a ser enformados pelo vidro,
material que através das sua propriedades reflexivas nos devolve continuamente o mo-
mento presente, o movimento contínuo. Como se caracteriza em termos sociais, económi-
cos e culturais o que, e quem, está por detrás destas paredes? Como se caracteriza a sua
relação (se existente) com a rua? De que modo participa ou influi na qualidade de vivência

PAREDES DE VIDRo 46
desta? A que usos e modos de habitar se destinam os novos centros envidraçados das
cidades? Como pode a memória, e portanto a identidade, ter expressão sobre a superfície
de vidro? A imagem que mostra a fenda intencionalmente infligida, pela mão de um jovem,
sobre a montra de uma loja Nike (fig. 11) em Manchester parece-me uma metáfora
poderosa a considerar em relação a estas questões. Uma inevitável interrupção no presente
quando a própria identidade já não é localizável. o emergir da individualidade à tona da
liquidez de que é feito o anónimo consumidor, pois é certo que na transgressão os rostos
importam e procuram-se.

Fig. 11. Motins no centro de Manchester, Agosto de 2011 (montra de uma loja Nike).

Retomando uma das questões que lancei no início desta reflexão, a de como a
cidade se dá ver, avancemos para o capítulo seguinte com a convicção de que a resposta
se encontra na performatividade dos corpos face às materialidades do espaço urbano, por
adaptação ou reacção, quase sempre inconsciente e intuitiva, contudo reveladora de
‘sonoridades’ que, embora imperceptíveis ao ouvido, ressoam no espírito determinando,
a curto ou a longo prazo, a cadência dos movimentos na cidade.

PAREDES DE VIDRo 47
1.2. Limites com vista

Em Janeiro de 2011 realizou-se a conferência Remaking Borders organizada pelo


grupo EastBordNet/CoST que teve lugar no Monastero dei Benedettini, em Catania, entre
os dias 20 e 22. Embora o principal propósito deste grupo seja focado sobre as actuais
fronteiras europeias de Leste, as actividades de trabalho realizadas procuram o encontro
de conhecimentos provenientes de diversas disciplinas, regiões e períodos cronológicos,
investigando a ‘fronteira’ em toda a sua possível amplitude conceptual, entendida enquanto
processo, que aparece, desaparece e se reconfigura, podendo gerar sentido de pertença,
valor, lugar ou distância e alienação. A conferência tinha por objectivo explorar diferentes
abordagens, teóricas e empíricas, ao conceito de ‘fronteira’ tido desde a sua dimensão geo-
política até noções mais abstractas e outros conceitos relacionados, como os de ‘diferença’,
‘viagem’, ‘tradução’ ou ‘troca’. Da dimensão europeia à nacional, do social ao individual,
na atenção a experiências quotidianas, de carácter formal ou informal, relativas à separação
de pessoas, aos seus movimentos, ligações e recolocações, no centro dos lugares ou nos
seus limites. A diversidade das comunicações apresentadas tiveram em conta ‘fronteiras’
de ordem social, moral e material, contemplando as possibilidades da sua reconfiguração.
Participei no encontro apresentando uma reflexão sobre o projecto artístico Travessia de
Fronteira (2007), seleccionada para integrar o painel Performing City Borders.

Travessia de Fronteira consistiu em dois momentos expositivos num mesmo es-


paço. Embora independentes nos processos criativos e seus resultados, partiram de uma
problemática comum. Realizaram-se ao longo do mês de Junho de 2007 na Sala do Veado
do Museu Nacional de História Natural, em Lisboa. Como o título sugere, o foco está na
acção, no acto de atravessar, de passar ‘através de’. Neste sentido, a atenção dirige-se a
determinados movimentos no quotidiano citadino que evidenciam ou sugerem a existência
de fronteiras. Mais especificamente, questiona o modo como, a um olhar atento e crítico,
estas se podem tornar perceptiveis através da performatividade do corpo do indivíduo ge-
rada por relação com a arquitectura, pelos processos de construção, de ocupação, e de
vivência desta nas grandes cidades, ou mesmo pela sua inacessibilidade. A ideia de ‘fron-
teira’ em questão é, portanto, inconstante e fluída porque emerge de práticas espaciais. No

LIMITES CoM VISTA 48


entanto, tendo em conta que estas são determinadas ou influenciadas pela materialização
e/ou materialidade das representações do espaço, a percepção da existência de ‘fronteiras’
pode tornar-se bastante evidente, de modo progressivo, através das consequências que de-
rivam, sobretudo, da restrição da possibilidade de determinados movimentos e pontos de
vista. Sejam estes voluntários ou involuntários. Falo aqui de ‘fronteiras’ que podem estar
ao alcance dos sentidos de qualquer um que habita a grande cidade, por vezes até por um
simples olhar através da janela, mas que podem também conter um complexo mosaico de
significados implícito à expressão de uma aparente pequena escala, da dimensão pessoal
à dimensão social.
o primeiro momento do projecto Travessia de Fronteira foi realizado por Paulo
T. Silva e integrava três peças com base em registos fotográficos materializados através
de diferentes suportes e meios (fig. 12). A sequência da sua visualização era arbitrária na
ampla sala com iluminação reduzida, dirigida ou proveniente de cada uma das peças. o
ambiente, de carácter intimista, induzia o visitante à aproximação física com estas.

Fig. 12. Paulo T. Silva, Travessia de Fronteira – Parte I, 2007 (vista geral da instalação).
Sala do Veado – Museu Nacional de História Natural, Lisboa.

LIMITES CoM VISTA 49


Fig. 13. Paulo T. Silva, Travessia de Fronteira – Parte I, 2007 (detalhe da projecção em loop de 44 diapositivos
de 35 mm cada, fragmento da instalação). Sala do Veado – Museu Nacional de História Natural, Lisboa.

Na parede do fundo da sala, ocupando quase a sua área total como se de uma aber-
tura ao exterior se tratasse, uma projecção contínua de 44 diapositos de 35 mm mostrava
momentos da construção de um edifício de habitação, realizados sempre a partir do mesmo
ponto de vista, através de uma janela de um outro edifício no lado oposto da rua, selec-
cionados de um conjunto maior composto por um registo em cada dia ao longo de cerca
de dois anos (fig. 13-15). Em primeiro plano, preenchendo a metade inferior do enquadra-
mento da imagem, via-se parte de um jardim privado pertencente ao edifício da tomada
do ponto de vista. Em segundo plano, a metade superior da imagem era ocupada por uma
das fachadas do edifício em construção. Uma fila de árvores erguia-se do primeiro plano
sobrepondo-se visualmente ao segundo.
As características do cimento que reveste toda a superfície da sala integravam as
imagens que eram projectadas directamente sobre a parede. A porção de céu visível no
enquadramento de cada imagem reduzia progressivamente à medida que o edíficio em
construção ganhava corpo. o passar do tempo tornava-se perceptível não só pela evolução
do volume do edifício mas também pelos diferentes momentos da luz dos dias em que os
registos foram feitos, e sobretudo pela mudança das estações do ano incorporadas nas àr-

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vores de fruto do jardim privado: as folhas, as flores, os frutos, a queda das folhas e de
novo o seu nascer. o som do mecanismo do projector, regular e repetitivo, acentuava tam-
bém a sugestão da temporalidade do processo de construção.

Fig. 14 e 15. Paulo T. Silva, Travessia de Fronteira – Parte I, 2007 (detalhes da projecção em loop de 44 diapositivos
de 35 mm cada, fragmento da instalação). Sala do Veado – Museu Nacional de História Natural, Lisboa.

LIMITES CoM VISTA 51


o edifício em causa fazia parte da conclusão da primeira fase do plano urbanístico
consequente das transformações na zona oriente de Lisboa, desenvolvido no âmbito do
plano da Expo’ 98. Trata-se de uma das áreas residenciais mais caras da cidade, localizada
numa das zonas limite entre esta e a sua periferia. Alguns dos seus primeiros moradores
chegaram até a recolher assinaturas no sentido de impedir que a rede de transporte público
circulasse no interior da urbanização, para maior controlo sobre a ‘qualidade’ dos seus
frequentadores, embora esteja integrada num dos maiores parques públicos da cidade com
percursos pedestres ao longo do rio Tejo. o edifício, sendo um dos mais sofisticados para
habitação na zona, possui condomínio fechado com um elaborado sistema de vigilância
que previne um ‘qualquer possível’ tipo de ameaça ainda sem antecedentes. Ao longo da
sua edificação, as equipas de trabalhadores mudavam consoante as competências técnicas
necessárias às especificidades de cada etapa. Um fluxo de homens de diferentes nacional-
idades por ali passou ao longo de cerca de dois anos. Alguns dormiram durante semanas
ou meses em contentores dispostos junto ao edifício. Estes homens, maioritariamente imi-
grantes, são os que erguem com as suas mãos as construções que Bauman comenta no seu
livro Confiança e Medo na Cidade (2006) como sendo

As construções mais inovadoras, publicitadas com orgulho e profusamente imitadas, são os ‘espaços
vetados’ [interdictory spaces], ‘destinados a interceptar, repelir ou filtrar os possíveis intrusos’. (…)
a finalidade dos referidos espaços não é senão dividir, segregar e excluir; e, de modo algum, a de
construir pontes, acessos e lugares de encontro que facilitem a comunicação e aproximem os habi-
tantes da cidade. (Bauman, 2006: 38).

Paradoxalmente, aqueles cujas vidas se estruturam em processos complexos de


travessias de fronteiras de diversas naturezas, são actores na construção de novas formas
de fronteiras na cidade que irão perdurar esses processos a outros níveis. Próximo da
parede oposta à da projecção das imagens, lateralmente, outra das três peças expostas con-
sistia numa mesa com um banco que convidava o visitante a sentar-se (fig.16 e 17). Em
cima da mesa encontravam-se dois conjuntos de diapositivos de 35 mm e 60 mm cada em
caixilhos de vidro, uma pequena caixa de luz e uma lupa. os diapositivos podiam ser ma-
nipulados livremente pelo observador. o visionamento das imagens através da lupa levava
a fazer um movimento de aproximação do olhar ao detalhe, de modo fisicamente muito
consciente devido às próprias características do meio. o ponto de vista do registo destas
imagens era o mesmo do conjunto das imagens projectadas, mas com redução de distância.
o edifício em construção encontrava-se concluído e o observador podia aproximar-se de
algumas das suas janelas.

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Fig. 16 e 17. Paulo T. Silva, Travessia de Fronteira – Parte I, 2007 (detalhes da mesa de luz com diapositivos de 35 mm e 60 mm
em caixilhos de vidro, fragmento da instalação). Sala do Veado – Museu Nacional de História Natural, Lisboa.

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Num dos conjuntos de diapositivos observavam-se momentos da performance de
uma empregada de limpeza a limpar umas das janelas (fig. 18). No outro, observavam-se
momentos da acção de uma empresa de mudanças que transportava os bens dos primeiros
habitantes do edifício. Um dos trabalhadores aguardava numa janela pela elevação dos
objectos, desfrutando entretanto da vista previligiada sobre o rio Tejo e a zona verde en-
volvente. Entre outros volumes, um elemento orgânico entrava também pela janela da
casa: uma árvore Bonsai, uma miniatura da natureza (fig. 19).

Fig. 18 e 19. Paulo T. Silva, Travessia de Fronteira –


Parte I, 2007 (detalhes dos diapositivos de 35 mm e 60
mm em caixilhos de vidro integrados na mesa de luz, frag-
mento da instalação). Sala do Veado – Museu Nacional
de História Natural, Lisboa.

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José Bártolo (2007), investigador em Cultura Visual, escreveu na sua reflexão para
a folha de sala sobre este momento do projecto:

o que somos, então, convidados a ver através da lupa, colocados numa posição idêntica à do cien-
tista que perscruta o interior das coisas? Somos colocados perante o incómodo do que não queremos
ver, perante o incómodo do que nos esquecemos de ver, perante o incómodo do que olhamos sem
ver. A ‘normalidade’ (…) é devolvida ao olhar do espectador de um modo que o convida a ver nela
a ‘anormalidade’. (…) é, antes de mais, o próprio ‘olhar demorado’ que está em travessia de fron-
teiras, a janela — primeiro mediador entre um ‘mundo privado’ e um ‘mundo público’ (…) a câmara
— segundo mediador entre um ‘mundo natural’ e um ‘mundo artifical’ (…) — e finalmente o
tempo, o seu fluir — mediador omnipresente entre o ‘ainda não’ e o ‘já não’, que permanentemente
constroí e destroí não permitindo a ‘estabilidade do lugar’ e desta forma fazendo dos espaços ‘terras
de ninguém’. (Bártolo, 2007).

Projectos de habitação como o edifício que é o referente das duas peças descritas
podem servir de exemplos ao que o crítico de arquitectura Deyan Sudjic (2007) considera
ser a criação de condições que servem para congelar um bairro numa determinada forma,
para produzir homogeneidade e anular a possibilidade de trocas, da mudança social e física
que dever ser constante para a vitalidade de uma cidade.
Sennett considera que a iniciativa da participação do cidadão se relaciona com o
modo como as pessoas se sentem conectadas mesmo quando não se conhecem. Um espaço
será democrático quando cria a possibilidade para a interacção de estranhos. Reflectindo
sobre a ideia de ‘cidade aberta’ da urbanista e activista Jane Jacobs, Sennett questiona
quais os projectos que podem estimular relações sociais que perduram porque têm a opor-
tunidade de evoluir e de se transformar, e se esses projectos serão possíveis em arquitec-
tura. Sennett defende que

(…) a estruturação visual do tempo evolutivo é uma propriedade sistemática da cidade aberta que
tem três importantes elementos sistemáticos: territórios de passagem, forma incompleta e narrativas
em desenvolvimento. (Sennett, 2007: 293).

Estes elementos são sugeridos na terceira peça que completava a parte do projecto
de Paulo T. Silva. Um conjunto de três fotografias realizadas entre 2006-07, impressas a
jacto de tinta sobre papel de algodão (duas de 100 x 100 cm e uma de 100 x 145 cm), com
molduras em faia natural, aplicado numa das paredes laterais, na direcção em frente ao
observador sentado na peça com a caixa de luz (fig. 20). As três fotografias tinham em
comum o facto de serem registos diurnos de pessoas em momentos de pausa na passagem
por espaços verdes nos centros de cidades. À partida, sabemos que estes espaços estarão

LIMITES CoM VISTA 55


delimitados por edifícios e que serão como zonas de travessia entre espaços privados, o
que nos pode fazer pensar nos jardins públicos também enquanto zonas de fronteira nas
cidades, apesar de serem espaços abertos. Neste sentido, o que se via nestas fotografias
ao olhar para os habitantes provisórios dessas zonas de travessia urbana?

Fig. 20. Paulo T. Silva, Travessia de Fronteira – Parte I, 2007 (tríptico de fotografias, fragmento da instalação).
Sala do Veado – Museu Nacional de História Natural, Lisboa.

Espaços verdes na cidade são zonas de potencial encontro da diferença e da diver-


sidade, mas também podem ser de separação em termos urbanísticos. Em alguns casos,
são também a própria ‘casa’ de algumas pessoas, revelando assim ainda outra qualidade
de fronteiras existentes na cidade. Importa aqui lembrar a actual tendência crescente da
apropriação privada dos espaços verdes no centro das cidades por determinadas zonas re-
sidenciais para classes sociais mais previligiadas. Num artigo intitulado Politics, Power,
Cities (2007) o crítico de urbanismo Enrique Peñalosa alerta para o facto de que as
condições de acesso a espaços verdes na cidade poderão vir a ser uma das maiores barreiras
para a inclusão social e que se os governos não actuarem hoje com esta consciência, no
futuro será extremamente difícil demolir centenas de edifícios para criar espaços verdes.

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Neste sentido, com a consciência deste facto, como passamos a observar estes espaços e
os modos de estar a que induzem? Consideremos,assim, as fotografias de Paulo T. Silva
enquanto registo documental de uma qualidade de espaço público em ‘vias de extinção’que
é, simultaneamente, zona de passagem e de permanência. Característica específica que
induz a modos de estar nos quais, temporariamente, se fundem as dimensões pública e
privada.
A primeira das três fotografias mostrava um grupo de mulheres com bagagens à
sombra de antigos plátanos, em momento de espera ou descanso, no passeio de uma rua
em Coimbra (fig. 21). As posturas e adereços sugeriam tratar-se de um grupo de excur-
sionistas, talvez a aguardar para partir em viagem ou talvez já no momento após a chegada.

Fig. 21. Paulo T. Silva, Travessia de Fronteira – Parte I, 2007 (detalhe do tríptico de fotografias, fragmento da instalação).
Sala do Veado – Museu Nacional de História Natural, Lisboa.

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Na segunda fotografia, via-se um homem sentado num banco de jardim no que
parecia ser um momento de introspecção (fig. 22). A mala sobre o banco era uma mala
dos Transportes Aéreos Portugueses (TAP) da década de sessenta do século XX. Um ob-
jecto simbólico na história recente de Portugal que remete para o colonialismo em África
durante a ditadura do Estado Novo. Este tipo de mala era um objecto comum a muitas das
vidas migrantes deste período em Portugal; no entanto trata-se de uma fotografia de 2007.
Memória acentuada também pelo chapéu de padrão militar que o homem segurava nas
mãos. o saco de plástico no chão com a imagem de marca do El Corte Inglês é imediata-
mente reconhecivel, pelo menos na Peninsula Ibérica. Trata-se da mais famosa cadeia es-
panhola de lojas de departamento localizada em todas as principais cidades de Espanha,
que era imprescindível no roteiro de viagem do turista português nas décadas de oitenta e
noventa do século XX, mas desde 2001 passou a existir também em Portugal. Ainda na

Fig. 22. Paulo T. Silva, Travessia de Fronteira – Parte I, 2007 (detalhe do tríptico de fotografias,
fragmento da instalação). Sala do Veado – Museu Nacional de História Natural, Lisboa.

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mesma fotografia, em segundo plano, via-se a mulher que foi a única responsável pela
manutenção daquele jardim ao longo de cerca de oito anos, o Jardim de Santos no centro
de Lisboa (um dado curioso comentado pelo autor que diariamente, durante anos, atra-
vessou o jardim).
Na terceira fotografia três mulheres jovens dormiam uma sesta de Verão na relva
do jardim da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa (fig. 23). Nos objectos em torno
delas encontravam-se embalagens de alguns produtos de marcas globais. Repouso poderia
ser o título desta fotografia. Que espaços nas travessias pela cidade nos induzem a parar
e a permanecer voluntariamente? Espaços onde o ‘outro’ se possa dar a ver em estado de
presença e não em vestígio? Porque a possibilidade de permanência nos espaços públicos
é hoje determinada por condições que a chegam a colocar em causa, conforme mais adiante
se abordará.

Fig. 23. Paulo T. Silva, Travessia de Fronteira – Parte I, 2007 (detalhe do tríptico de fotografias,
fragmento da instalação). Sala do Veado – Museu Nacional de História Natural, Lisboa.

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o segundo momento do projecto Travessia de Fronteira é da minha autoria. Ao
ambiente intimista, de luminosidade reduzida, do primeiro momento realizado por Paulo
T. Silva, sucedeu-se a entrada da luz do dia. Todas as portadas das seis janelas de grandes
dimensões foram abertas e os componentes visíveis da presença de luz artificial na sala
foram retirados. A matéria-prima eram as próprias características físicas da sala vazia por
relação com o edifício do qual faz parte, o Museu de História Natural (exemplar da ‘insti-
tuição Museu’ criada na Europa do século XVII), e com o seu espaço exterior envolvente,
não perceptível na entrada principal pela rua que é uma das artérias da cidade, no centro
antigo, mais movimentadas (fig. 24).
Localizada nas traseiras do piso térreo do edifício, a Sala do Veado tem todas as
janelas voltadas para o Jardim Botânico da Universidade de Lisboa, um precioso local de
retiro no coração da agitação urbana. Em dois minutos de travessia pelo interior do museu,
o ruído do trânsito é substituído pelos murmúrios dos pássaros que se fazem ouvir assim
que se entra na sala. No entanto raramente esta experiência se dá, pois na maior parte das
exposições as portadas das janelas encontram-se fechadas e o visitante que não conhece
o jardim não fará ideia do que existe para lá da parede. Trata-se de um jardim científico
projectado em meados do século XIX com 4 hectares, cuja plantação começou em 1873
num terreno que tinha já mais de dois séculos de tradição no estudo da Botânica, iniciado
com o Horto Botânico de Colégio Jesuíta da Cotovia que ali existia. A diversidade de es-
pécies botânicas provém dos quatro cantos do mundo, coligidas em expedições e viagens
por África, Brasil, Ásia e Timor.
o projecto consistiu numa instalação de carácter site-specific com características
de arquitectura efémera que funcionava como uma espécie de dispositivo mediador da re-
lação interior/exterior. A imponente sala vazia, de aspecto singular por ter todas as super-
fícies revestidas a cimento (aspecto resultante de um processo de recuperação inacabado
após o incêndio de 1978), a vista do seu interior para àrvores centenárias e a luz natural
em constante transformação ao longo do dia eram os materiais base da instalação. A estes
acrescentou-se a construção de duas paredes paralelas entre si ao longo do comprimento
da sala (4,5 m x 15 m, cada) constituídas por linhas de algodão branco estendidas verti-
calmente com intervalos equidistantes de 1 cm, criando uma estrutura geométrica regular
fixada ao chão e ao tecto por ripas de cartão branco prensado.

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Fig. 24. Marta Traquino, Travessia de Fronteira – Parte II, 2007 (vista geral da instalação).
Sala do Veado – Museu Nacional de História Natural, Lisboa.

As duas paredes formavam um corredor com cerca de 8 metros de comprimento e


largura equivalente à largura média dos ombros de uma pessoa adulta. No chão, em frente
a cada uma das seis janelas, encontrava-se um tabuleiro em ferro, de forma rectangular,
com dimensão equivalente à de um corpo médio de pessoa adulta, de profundidade sufi-
ciente apenas para conter água a cobrir toda a sua área. A superfície reflectora criada pela
água em repouso recebia do exterior a imagem das copas das árvores centenárias, contra-
postas ao plano do céu. No interior da sala entrava assim uma visão do jardim à qual dali
não se conseguia aceder de outro modo, pois não era permitido pelo museu abrir as janelas
(fig. 25 e 26).

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Fig. 25 e 26. Marta Traquino, Travessia de Fronteira – Parte II, 2007 (reflexão sobre água em tabuleiro de chapa de ferro
galvanizada e vista deste sob janela através da ‘parede’ de linha de algodão, fragmentos da instalação).
Sala do Veado – Museu Nacional de História Natural, Lisboa.

As paredes construídas, embora fossem compostas por uma estrutura modular de


materiais extremamente leves, possíveis de transportar em rolos debaixo do braço, criavam
a possibilidade de novas experiências sensoriais naquele espaço questionando os seus limi-
tes físicos intransponiveis. Apesar das paredes de linha visualmente nada ocultarem na
sala, faziam abrandar o movimento dos corpos e propunham a travessia de um percurso
para aceder ao lado de lá, às janelas e às imagens do jardim reflectidas interiormente nos
tabuleiros de água. Em interacção com a arquitectura permanente, sólida, acontecia uma
arquitectura aberta que continha a possiblidade latente do ‘vir a ser’. Na sua reflexão sobre
o projecto, que constava na folha de sala, Bártolo escreveu:

Plotino dizia que a arquitectura é aquilo com que ficamos quando retiramos a uma construção todos
os seus elementos materiais, isto é, uma lógica de sentido que define acerca da disposição desses
elementos materiais num determinado espaço. A prática arquitectónica e, também, a prática artística
modernas tornaram explícito que esta disposição de sentido no espaço não opera apenas com ele-
mentos materiais (e menos ainda, exclusivamente, com elementos estruturais) mas igualmente com
elementos imateriais, ou seja, tal como os teóricos da espacialidade social (Foucault, Henri Lefeb-
vre, Edward Soja) deixaram claro, a arquitectura está envolvida num processo de construção e de
disposição dos corpos e dos seus ritmos, das mentalidades e dos seus processos de organização,
das emoções e das suas lógicas de controlo, das formas de imaginário e das suas ritualizações no
espaço. (Bártolo, 2007)

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o acesso à sala era antecedido por um corredor do qual era já vísivel uma das
janelas e um dos tabuleiros de água no chão, mas desta perspectiva de frente a estrutura
das linhas contraposta à luz não era visível. No momento de entrada na sala, por instantes,
a maioria das pessoas hesitava avançar até conseguir percepcionar a situação, pois devido
à grande profundidade da sala e ao efeito produzido pela inconstância difusa da luz natural,
o efeito visual no ambiente era de natureza etérea, sugerindo a presença de uma bruma
esbranquiçada. Podemos comparar com o efeito de uma velatura na pintura mas aplicada
na tridimensionalidade do espaço, e portanto transponível. No entanto, nada de ilusório
ali existia. Toda a situação era fisícamente concreta, sem simulacro, activando apenas
novas percepções de dados pré-existentes no local.
A filósofa Maria João Branco (2007) escreveu na sua reflexão sobre o projecto:

Não podemos adivinhar o que ali nos espera, e assim que se entra sente-se uma suspensão operar
sobre a nossa percepção do tempo e do espaço. A sala não tem saída e seis janelas oferecem o
jardim ao nosso olhar, coado pelo que a princípio parece ser uma chuva leve que embacia a visão.
o despojamento desta sala, que surge como uma câmara que guarda um segredo, torna mais vivo
o mundo lá fora filtrado pelo estranho véu que teremos de atravessar. Neste sentido, algo de reve-
lador se passa em nós e experimentamo-lo confusamente como uma coisa há muito conhecida que
surge subitamente a uma nova luz. Entramos nesta sala e é como acordar. (…) A Sala do Veado
transformada num peculiar espaço de tempo, é disso que se trata aqui. (Branco, 2007)

As reacções e atitudes das pessoas foram diversas, desde as que nem chegavam a
entrar na sala, às que permanceram uma hora ou mais e ainda as que regressaram várias
vezes em diferentes dias. Importa referir que embora esta sala faça parte do circuito de
exposições de arte contemporânea em Lisboa já há mais de vinte anos, o público que a
visita é mais heterógeneo e imprevisível do que seria se fosse um museu de arte.
A atitude espontânea de atravessar o corredor entre as paredes de linhas não era
comum a todas as pessoas. As que não fizeram a travessia por considerarem que nada mais
existia para descobrir no lado de lá que não fosse já visível no lado de cá, não chegaram
a saber da existência da água nos tabuleiros que aprentemente pareciam apenas chapas de
ferro com superfícies polidas. Também não chegaram a ver as porções do céu e das copas
das árvores que entravam para dentro da sala, e ficaram ainda sem saber como tudo seria
já diferente no percurso inverso, embora tudo fosse o mesmo de há instantes. As crianças
avançavam sempre naturalmente e assim que chegavam ao lado de lá tocavam a imagem
reflectida nos tabuleiros, tocavam a água. Citando ainda Branco:

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Não há saída: há o mundo a cada instante, e as coisas com a sua beleza esperando o nosso olhar. É
essa a resposta. Se o artista é um cosmólogo, como disse Giorgio Colli, é porque depois de percorrer
ele próprio o caminho até ver, quer por seu turno dar a ver o que já viu através de uma obra que é
feita de espaço e de tempo, da mesma matéria de que é feito o mundo. (Branco, 2007)

À semelhança de outros projectos por mim até então realizados, tratava-se de


propôr a possibilidade de ocorrência da experiência e consciência individuais de uma situa-
ção específica num ‘micro-contexto’ que pode ser transferida para um ‘macro-contexto’,
de entre-portas para fora-de-portas. Na observação crítica sobre o ‘espaço’, tomava como
referência fundamental a interligação entre as três dimensões propostas por Lefebvre em
1974: a prática espacial, as representações do espaço e os espaços de representação. A
situação criada nesta instalação questionava essencialmente a relação das pessoas com os
dados formais e possibilidades perceptivas de um espaço físico no qual se encontravam,
nomeadamente no que respeita à relação entre interior e exterior. Para tal, propunha uma
travessia de um percurso de cerca de apenas oito metros sem qualquer barreira física ou
visual (fig. 27). No entanto, a diversidade de reacções dos visitantes revelou a complexi-
dade das fronteiras que, antes de mais, cada um traz em si. Afinal, apenas se tratava de
dar a ver a luz. Mas a luz pode dissimular ou revelar fronteiras porque está em travessia.
É pelo movimento que a atravessa que uma fronteira se torna evidente ou se desfaz.

Fig. 27. Marta Traquino, Travessia de Fronteira – Parte II, 2007 (vista geral da instalação).
Sala do Veado – Museu Nacional de História Natural, Lisboa.

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Em cada uma das duas partes que constitui o projecto Travessia de Fronteira, a
‘parede’ da arquitectura erguida para ser permanente, aparentemente inerte, é abordada
pela exploração das suas possibilidades dinâmicas, como se fosse um organismo vivo em
constante ‘respiração’. Não excluindo a sua função de limite, muito pelo contrário, nem a
atenção sobre o que se encontra de um lado ou de outro, separado e/ou protegido, mas
considerando sobretudo o próprio espaço intermédio que o limite em si mesmo constitui,
entendido como zona de contacto, de transferências. Em afinidade com o que refere
Brighenti, quando reflecte sobre a ‘vida social’ das paredes,

Entendidas como zonas de convergência entre o material e o imaterial, as paredes basicamente


dizem respeito à relação entre corpos e o seu ambiente, velocidades e afectos, o engenhar dos afec-
tos e a mobilidade através um do outro. (Brighenti, 2009: 68)28

A ‘parede’ percepcionada durante o seu processo de construção e após, como dis-


positivo de mediação entre as realidades que fisicamente separa, torna-se um barómetro
para a análise de certas sociabilidades e qualidades de movimentos do indivíduo na cidade,
movimentos que determinam (ou não) pontos de vista sobre esta. Pode evidenciar factos,
questões e conclusões sobre as ‘fronteiras’ que estruturam a urbanidade, tanto de ordem
física como psíquica e, consequentemente, cultural, social e política. Considero aqui o que
se torna revelável pela observação do crescendo da verticalidade da ‘parede’ e da sua ex-
tensão na horizontalidade, antecedente mesmo aos seus usos enquanto suporte de inter-
venção simbólica de diversas naturezas. observação necessariamente derivada de um olhar
persistente, que vai e volta, ao longo de um tempo que se demora. Por exemplo, como fez
o realizador José Luis Guerin no processo do seu documentário En Construccìon (2001),
observando, ao longo de vários anos, a reabilitação do antigo Bairro Chinês, hoje Raval,
no centro de Barcelona (fig. 28 e 29).
Guerin deteve-se sobre a construção de um condomínio numa zona muito antiga
e degradada, com elevados índices de marginalidade e prostituição, sendo uma grande
parte da população constituída por imigrantes e idosos com poucos recursos. Trata-se, no

28
Understood as convergence zones between the material and the immaterial, walls basically concern the
relathionship between bodies and their environment, speeds and affects, the enginnering of affects and mo-
bility through one another. (Brighenti, 2009: 68)

LIMITES CoM VISTA 65


entanto, de um bairro cheio de vitalidade, local de habitação e de trabalho. Contudo, o
processo de transformação em causa não serviria para melhorar as condições de vida dos
habitantes, mas antes para danificar a memória colectiva pela exclusão dos seus residentes.
Situação comum a muitas cidades europeias cujos centros históricos são sujeitos a planos
de reabilitação que visam a substituição dos antigos edifícios de habitação, e das pessoas
que neles vivem, por hotéis de luxo, condomínios privados, lojas gourmet e outros espaços
afins. Numa crítica a este documentário de Guerin, Lidia Merás, professora de História
do Cinema e dos Meios Audiovisuais, refere:

No resultado surpreende a inclusão preponderante de imagens de destruição e queda face às de


construção propriamente ditas. Põe a descoberto a fragilidade actual da arquitectura, considerada
a forma artística da permanência, ao ensinar como edificações recentes são demolidas com o
propósito de erigir outras novas no seu lugar. (…) só a arquitectura de poder perdura no tempo en-
quanto que, pelo contrário, não há respeito pela arquitectura mais habitável, a que pertence áqueles
que deambulam pela tela vítimas das disposições políticas de embelezamento urbano. (…) A nova
ordem implica uma selecção do que deve desaparecer e do que é digno de clemência. (…) A re-
construção do Raval traz não só a metamorfose da paisagem urbana, mas também a da paisagem
humana. (Merás, 2002)29

Fig. 28 e 29. José Luis Guerin, En Construccìon, 2001 (fotogramas do filme), Barcelona.

29
En el resultado sorprende la inclusión preponderante de imágenes de destrucción y derribo frente a las de
construcción propiamente. Pone de manifiesto la fragilidad actual de la arquitectura, la forma artística con-
siderada de la permanencia, al enseñar cómo edificaciones recientes son demolidas con el propósito de erigir
otras nuevas en su lugar. (…) sólo la arquitectura de poder perdura en el tiempo mientras que, por el con-
trario, no hay respeto por la arquitectura más habitable, la que pertenece a aquellos que deambulan por la
pantalla víctimas de las disposiciones políticas de embellecimiento urbano. El nuevo orden implica una se-
lección de lo que debe desaparecer y de lo que es merecedor de indulto. (…) La reconstrucción del Raval
trae consigo no sólo la metamorfosis del paisaje urbano sino también del paisaje humano. (Merás, 2002)

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Dados sobre a vida de alguns dos moradores, sobre o bairro, sobre Barcelona, sobre
o mundo, presente e passado, vão emergindo à medida que se erguem as paredes do novo
condomínio. Um amplo mosaico de histórias que se torna possível pelo modo como Guerin
se aproxima dos construtores das paredes, ouvindo-os e dando-lhes voz. Lembrando que
as paredes são feitas de muito mais do que apenas materiais e técnicas de construção,
porque são feitas por pessoas, por muitos e muitos dias das vidas dessas pessoas. os ele-
mentos simples da interacção urbana durante o processo de construção das paredes são os
meios que Guerin utiliza, sendo raros os planos que nos mostram ruas ou praças. A história
ocorre à medida que as paredes ganham forma, ou a perdem, pois erguer umas pode im-
plicar destruir outras.
Nesta linha de observação da ‘parede’ que vai da sua morfologia à vivência dos
seus processos de construção, o documentário In Comparison (2009) do realizador Harun
Farocki aborda o elemento básico da sua estrutura, o tijolo (fig. 30). observou processos
de produção de tijolos em diversos países e culturas, organizados na estrutura do docu-
mentário de modo evolutivo, dos países mais pobres para os mais ricos, começando com
os esforços colectivos de uma comunidade em Burkina Faso que realiza todas as etapas
da construção pelas suas próprias mãos, através da acção conjunta onde a tarefa de cada
um é fundamental ao bom resultado final, e terminando nas linhas de produção industrial
mais avançadas, na Alemanha, onde as poucas pessoas necessárias trabalham isoladas com
as máquinas, num desempenho de articulação quase apenas visual. Farocki cria assim um
incisivo retrato global no qual as diferenças entre culturas se revelam pela duração especí-
fica do modo de produção de tijolos que praticam. Do qual se subentende, em metáfora
poderosa, que as diferenças entre as culturas se determinam pelo ‘tempo do tijolo’ que
produzem. Para Farocki os tijolos ‘ressoam’ os fundamentos das nossas sociedades, mas
ainda não aprendemos a ouvi-los.
Andres Lepik, curador e historiador de arte, refere o seguinte na análise que faz
deste doumentário,

In Comparision apresenta o tijolo como uma metáfora global para a interacção humana nos proces-
sos de construção e resultados finais construídos. o filme começa em Gando, Burkina Faso — uma
aldeia num dos países mais pobres do mundo. os tijolos para um pequeno hospital estão a ser ma-
ufacturados pela comunidade da aldeia, simplesmente através do uso das mãos e dos pés. Homens,
mulheres e crianças falam e riem juntos através do processo (…) A meio do filme (…) imagens de
uma nova fábrica de tijolos alemã com processos de produção totalmente automatizados. A única
pessoa que ainda está na imagem é um operário sentado de braços cruzados junto a um computador
rodeado por máquinas. Durante todo o processo, o ser humano nunca toca o material básico, a terra,
nem o produto concreto, o tijolo. (Lepik, 2010)30

LIMITES CoM VISTA 67


Fig. 30. Harun Farocki, In Comparison, 2009 (fotograma do filme), vários países.

Estes modos de observação em torno do enformar das paredes dão ênfase à dimen-
são de temporalidade que estas subentendem. Não a temporalidade apenas por sugestão
visual que, por exemplo, pode derivar das metamorfoses de cor e textura nas suas super-
ficies, mas a temporalidade que é activada pelo movimento do corpo que ousa indagar
sobre o que ‘oculta’ aquilo que se dá a ver, sobre o que pode um limite mostrar através de
si mesmo, no seu ‘porquê’ e ‘como’. A existência de limites no espaço físico, como os de-
terminados por paredes ou fronteiras geográficas, é inerente à efectiva limitação ou res-
trição de movimentos. De um modo ou de outro, é a afirmação de uma imposição de
distância ideológica na proximidade espacial que está em causa. Só o movimento não ex-
pectável dos corpos poderá revelar a natureza destes limites porque os põe à prova, con-
frontando o seu desígnio com o momento presente. os limites deixam então de ser uma
representação no espaço para se tornarem experiência, ou por outras palavras, um possível
espaço de representação para quem os pratica, zonas para o exercício da subjectividade.
onde exista uma fronteira que não seja praticável estaremos provavelmente perante uma
situação onde a liberdade corre risco.

30
In Comparison presents the brick as a global metaphor for human interaction in the process of building,
and final built results. The film starts off in Gando, Burkina Faso – a village in one of the world’s poorest
countries. The bricks for a small hospital building are being manufactured communally by the village com-
munity, simply through the use of hands and feet. Men, women and children talk and laugh together through-
out the process (…) Around half way through the film (…) images of a brand new German brick
manufacturing facility’s fully automised production processes. The only person still in the picture is a blue-
collar worker sitting cross-armed at a computer surrounded by machinery. During the whole process, a
human never touches the basic material, earth, nor the actual product, the brick. (Lepik, 2010)

LIMITES CoM VISTA 68


Ciente do paradoxo que estas ideias podem sugerir, sublinho que devem ser aqui
tomadas à luz do facto de que é nas cidades que, actualmente, se identificam as novas
modalidades de ‘fronteiras’. É curioso ter em conta, por exemplo, como paralelamente
aos processos de abertura das fronteiras territoriais entre os países europeus ao longo do
século XX, as cidades têm vindo a tornar-se cada vez mais fragmentadas pela criação no
seu interior de territórios que praticam a segregação e, consequentemente, o conflito. os
mais fáceis de se circunscrever, pela sua evidência física, são os territórios murados des-
tinados a habitação, derivados de escolhas residenciais praticadas por certas categorias
sociais, economicamente mais favorecidas, que combinam,

(...) o distanciamento, o agrupamento, a proteção. Muitas vezes é muito mais do que apenas uma
simples distância (gated communities), porque atrás de uma descontinuidade física ela pode reivin-
dicar uma autonomia política (separatismo). Procuramos então à distância o que não encontramos
no local. os modos de transporte aéreo e marítimo, as tecnologias de comunicação permitem
moverem-se no interior do seu ‘mundo de referência’. No entanto, superar o seu ambiente não é
fácil: os recursos apresentam fragilidades e permanecerem inscritos no seu ambiente imediatamente
vizinho. A proximidade revela-se fonte potencial de conflitos. A distribuição de água, de energia,
o saneamento, os transportes são factores que exigem relações entre estes enclaves e as comu-
nidades vizinhas. o isolamento total parece difícil. (Group Frontière, 2004)31

o sistema que produz este tipo de territórios urbanos, movido pelos interesses e
capitais privados que circulam entre aqueles que os concebem, projectam, constroem,
comercializam e habitam, caracteriza-se por um profundo autismo evidenciado pelo com-
plexo impacto de consequências negativas que causa sobre o exterior que o rodeia, tanto
ao nível material como imaterial, sobre a cidade propriamente dita, sobre as estruturas dos
espaços que outros habitam. Sennett (2005) considera que cada vez que uma gated com-
munitie se ergue um novo gueto passa a existir, tornando-se necessário analisar a cumpli-
cidade deste tipo de construção com a violência e a insegurança na cidade, pois trata-se
de um modo de habitar que recusa o civismo, que pressupõe que as diferenças devem ser
policiadas.

31
(…) la mise à distance, le regroupement, la protection. Il s'agit souvent plus qu'une simple distanciation
(gated communities), car derrière une discontinuité physique elle peut revendiquer une autonomie politique
(sécessionnisme). on cherche alors à distance ce qu'on ne trouve pas sur place. Les modes de transport
aérien et maritime, les technologies de communication permettent de se déplacer à l'intérieur de son « monde
de référence ». Cependant, s'affranchir de son environnement n'est pas chose aisée : les réseaux présentent
des fragilités et demeurent inscrits dans leur environnement immédiatement voisin. La proximité se révèle
source potentielle de conflits. La distribution de l'eau, de l'énergie, l'assainissement, les transports sont autant
d'éléments qui exigent des relations entre ces enclaves et les collectivités environnantes. L'isolement total
semble difficile. (Group Frontière, 2004)

LIMITES CoM VISTA 69


Nesta prática de muralhar voluntário, as fronteiras, enquanto paredes, devem ser
entendidas como dispositivo simultaneamente de territorialidade e de visibilidade. Como
refere Brighenti (2009), quando os territórios são definidos por paredes, é a dimensão da
verticalidade destas que está em questão e, consequentemente, o seu significado mais ime-
diato que é o ‘impedimento’. Trata-se da afirmação de ‘um dentro’ e ‘um fora’, da gestão
de possibilidades e impossibilidades de comunicação pelo controle dos modos de circu-
lação das pessoas. Contudo, neste modo de demarcação territorial, as paredes são elas
mesmas também territórios, pois constituem horizontes de significados que se estendem
ao nível do olhar do habitante da cidade. Brighenti alerta que nesta característica se en-
contra o segundo significado da verticalidade que é a ‘superficialidade’. Com ou sem ins-
crições que possam ocorrer imprevisiveis ao seu propósito, a ‘superfície’ é, logo à partida,
comunicante. No caso das gated communities, a superfície em cerco é significante de
abuso de poder e ostentação de riqueza material face ao exterior do qual se demarca.
No entanto, nas novas modalidades de fronteiras que emergem na cidade a ‘ima-
terialidade’ é uma característica que predomina, o que leva à necessidade de uma obser-
vação perspicaz e caminhante para que se possam identificar. A meio caminho entre a
materialidade e a imaterialidade das fronteiras que configuram o espaço urbano, parece-
me aqui pertinente determo-nos um pouco sobre a tendência na arquitectura das últimas
décadas que explora as possibilidades de ‘fluidez’ dos seus limites físicos, tendência curio-
samente co-existente com a da proliferação das ‘comunidades’ voluntariamente mural-
hadas. Estarão estas duas actuais tendências, respectivamente, a de diluir e a de erguer
fronteiras na composição da cidade? ou através de diferentes semânticas formais levam,
na realidade, a resultados equivalentes?

Ao reflectir sobre a característica de ‘fluidez’ na arquitectura estou a considerar a


sua expressão em construções de carácter permanente, explorada na mediação entre espaço
privado e espaço público, entre interior e exterior, em sintonia com a atenção às materia-
lidades que configuram o espaço urbano configurando também a nossa percepção sobre
este, cuja presença e experiência se fazem sentir de modo continuado no quotidiano do
habitante da cidade. o tema poderia, efectivamente, relacionar-se com outros âmbitos ac-
tuais de propostas arquitectónicas que exploram a efemeridade e a mobilidade, praticando
linguagens formais e conceptuais de cruzamento com determinadas vertentes da arte con-

LIMITES CoM VISTA 70


temporânea. Contudo, interessa assinalar uma das vias pelas quais a sugestão de ‘fluidez’
é explorada na actual arquitectura de carácter permanente, a analogia com o ‘têxtil’.
Nomeadamente, através do efeito da ‘parede cortina’.
Desde meados do século XIX, enquanto novidade introduzida pela arquitectura do
ferro e do vidro, a ‘parede cortina’ começou a ser um termo comum na linguagem arqui-
tectónica para definir o sistema de cobertura exterior de um edíficio em que as paredes
não têm carácter estrutural. Relacionado com funcionalidades e modos de produção es-
pecíficos possibilitados pela Revolução Industrial, desde então o termo tornar-se-ia uma
das metáforas mas sugestivas da arquitectura. Ao longo do século XX a ‘parede cortina’,
a par das evoluções tecnológicas, sobretudo as digitais que abriram novos caminhos para
a criação de formas curvas e dinâmicas, tornou-se conceptualmente e esteticamente um
tema estimulante na obra de alguns arquitectos consagrados. A partir de finais da década
de oitenta do século XX, ganhou novos contornos na relação com a orientação das teorias
do espaço rumo ao paradigma da ‘liquidez’, sobre o qual assenta, segundo Bauman (2007),
a contemporaneidade. Movimento, flexibilidade, fluidez, interactividade, transitoriedade,
leveza, são conceitos aos quais a arquitectura desde então procura dar forma através da
analogia com a tecnologia e a semântica do têxtil, tornando-se assim representativa de
uma sociedade na qual, como refere Bauman, as vidas dos homens e mulheres decorrem
mais no sentido de ‘procurar e experimentar sensações’ do que no de ‘fazer coisas’.
Um dos arquitectos cuja obra explora a tendência com base na ‘parede cortina’,
desde o final da década de oitenta do século XX, é Dominique Perrault. o seu ateliê foi o
primeiro a desenvolver e a utilizar rede metálica, o elemento chave para a qualidade emo-
tiva que Perrault diz procurar na arquitectura através da exploração dos jogos de luz. ‘Per-
meabilidade’, ‘inter-relação’, ‘transição’, ‘movimento’ são conceitos que funcionam como
directrizes na sua obra por relação com um entendimento da ‘parede’ enquanto elemento
‘não separador’. A materialização destes subentende-se pelos efeitos de uma cobertura
construída sobre o primeiro corpo do edifício, com características de textura, maleabilidade
e penetrabilidade pela luz (como as possibilitadas pelo ‘tecido’ de rede metálica) que su-
gerem tratar-se de uma matéria têxtil de grandes dimensões em permanente mutação for-
mal. Efeito que se opera visualmente a uma certa distância física do edifício. Esta cobertura
pode também, por vezes, estender-se deste à área que o envolve exteriormente, funcio-

LIMITES CoM VISTA 71


nando como um toldo. Área que é contemplada no projecto com o objectivo de ser um
zona de transição geradora de vários ‘níveis’ de espaço público, entre o edifício e a cidade
propriamente dita. Tomemos como exemplo desta descrição o Grand Theatre D’Albi, neste
momento ainda a ser construído, com finalização prevista para 2013 (fig.31).

Fig. 31. Dominique Perrault, Grand Theatre D’Albi, 2009-13 (simulação do edifício), Albi.

‘Envelope’, ‘vestimenta’, ‘curvas e contra-curvas’, ‘pele’, são termos utilizados


no sumário de apresentação do projecto do teatro que consta no site do ateliê de Perrault
(2012). Termos que apelam a uma dimensão táctil mas que, no entanto, pela monumen-
talidade do edifício só podem ser ‘interpretados’ pela visão, sugestionada a atribuir leveza
ao que na realidade tem peso, liberdade ao que é fixo, lirismo ao que é da ordem do rigor
e da razão. Pretende-se assim, segundo as intenções de Perrault, realizar a ‘monumenta-
lidade’ e a ‘desmaterialização’ em simultâneo, uma obra arquitectónica que se torne um
símbolo identitário da cidade estando sempre em actualização, como uma ‘obra-aconte-
cimento’, a conciliação entre a ordem e o acaso. Contudo, alguma contradição parece estar
contida na relação entre estas intenções e a sua efectiva concretização.
Para Perrault, a questão essencial é a de como conseguir ligar a disposição de um
volume no espaço com o seu contexto. A rede metálica, pelo efeito análogo ao de um
‘tecido’, é o material/meio que Perrault considera ideal para a criação de um ‘espaço-entre’
onde esta ligação acontece, pois para além de funcionar como um ‘filtro’ mediador dos

LIMITES CoM VISTA 72


efeitos da luz, da chuva e do vento sobre o edifício, constituí também um prolongamento
estrutural deste com um efeito de redução progressiva da sua densidade física no espaço
envolvente. Nesta gradação de peso, que se apresenta variavelmente à visão na medida
em que o corpo do observador se aproxima ou se afasta, está implícita a ideia de Perrault
de uma arquitectura ‘aberta’ e ‘mutável’, impermanente. No entanto, trata-se na realidade
da sobreposição de um invólucro a outro. o mesmo será dizer que se trata, efectivamente,
da sobreposição de uma arquitectura a outra, sobretudo se for tida em conta a relação for-
mal (e funcional) que existe entre a cobertura de rede metálica e uma tenda (sendo a tenda
uma modalidade de arquitectura que ainda hoje se pratica, como é o caso das tendas dos
nómadas na Mongólia ou, num exemplo até mais próximo do teatro, o caso das tendas de
circo). o Grand Theatre D’Albi sugere a analogia com uma tenda gigante contendo um
edíficio. Poderá, como defende Perrault, este efeito ser representativo, mesmo num plano
metafórico, da ligação entre o edifício e o seu contexto envolvente? ou não resultará afinal
numa ‘dilatação’ dos limites do edifício em causa? Porque ainda que a acção da luz sobre
a rede metálica possa sugerir ao olhar a impermanência e a fluidez, as propriedades dos
materiais utilizados garantem resistência a longo prazo, são pesados, não são propriamente
mutáveis a um toque de mão como pode acontecer com a parede de uma tenda verdadeira.
Na verdade, trata-se de uma arquitectura com duplo sistema de parede exterior, pois a rede
metálica, à parte das suas analogias técnicas e metafóricas com as propriedades do têxtil,
constituí inevitavelmente um imponente limite físico.
No Grand Theatre D’Albi observamos uma ‘duplicação’ da fachada do edíficio e
não propriamente a sua ‘diluição’, o que é contrário ao que sugere Perrault (2006) quando
refere que a utilização do ‘tecido’ metálico na sua arquitectura confere a ligação desta à
geografia do sítio. Paradoxalmente, é pretendida a desconstrução da separação entre inte-
rior e exterior que habitualmente caracteriza a arquitectura quando, de facto, o edifício
em causa se destina a funções, usos e conteúdos cuja efectivação implica necessariamente
o distanciamento e protecção em relação ao exterior. os limites físicos têm aqui de existir,
são um facto imprescindível do modelo da arquitectura em causa. Devem até ser facilmente
identificáveis, pois em edifícios de tal sofisticação e imponência a vigilância não se faz
apenas à entrada mas em toda a sua área envolvente. No entanto, o que importa aqui salien-
tar é a natureza da relação entre o discurso e a prática nesta tendência da arquitectura, pois
não podendo ser concretamente ‘aberta’ é contudo sustida por argumentos e por efeitos

LIMITES CoM VISTA 73


visuais que evocam a sugestão da ‘desmaterialização’ das suas propriedades físicas. Em
causa está uma ‘camuflagem’ dos limites do edifício que provoca um efeito ilusionista na
percepção da diferenciação e separação entre espaço privado e espaço público, ou mesmo
a criação de espaços ‘pseudo-públicos’ que tendem a predominar cada vez mais nas
cidades. os espaços que se mostram abertos à vista de todos podem não ser efectivamente
‘públicos’, como acontece com muitos dos espaços amplos que circundam edíficios monu-
mentais, símbolos de identidade local e nacional, controlados por sistemas de vigilância
que garantem o nivelamento dos modos de estar.
Interessa, assim, tomar esta obra de Perrault como exemplo de uma vertente actual
na arquitectura que se faz legitimar por um discurso informado, pertinente e multidisci-
plinar, na relação com problemáticas urbanas actuais relativas à produção do espaço mas
que quando materializado se expressa sobretudo ao nível da visualidade do edifício, so-
brevalorizando-o enquanto ‘imagem’. Perrault defende a ideia da parede enquanto ele-
mento ‘não-separador’ na sua arquitectura, mas no entanto duplica a ‘pele’ do edifício
ampliando assim as possibilidades de exploração de texturas, cores e reflexos da superfície,
apelativas a um olhar que requer distância de modo a conseguir abranger a sua escala mo-
numental. Tal parece favorecer a demarcação clara dos ‘limites’ entre o edifício e o exterior
que o envolve, e não propriamente a sua ‘desmaterialização’ ou a criação de uma zona de
‘transição’, apesar do efeito de ‘transparência’ produzido pela rede metálica. Como salienta
Brighenti, na sua reflexão sobre visualidade e visibilidade sociais:

Transparência significa que a visão não é apenas a visão de algo mas através de algo. Primeira-
mente, o transparente pode ser imaginado como o meio da visão; em última análise, no entanto,
não há distinção clara entre o meio e seu objeto. Transparência implica sobreposição constante e
ambiguidade visual — um facto que evoca o problema da profundidade (…). (Brighenti, 2010c:
13-14)32

32
Transparency means that vision is not only vision of something but through something. At first, the trans-
parent can be imagined as the medium of vision; ultimately, however, there is no clear distinction between
the medium and its object. Transparency entails constant superimposition and visual ambiguity — a fact
that evokes the problem of depth (…). (Brighenti, 2010c: 13-14)

LIMITES CoM VISTA 74


os edifícios ‘cobertos’ de Perrault são uma alusão evidente, ainda que intencional
ou não, aos edifícios ‘embrulhados’ pelo casal de artistas Christo e Jeanne-Claude que,
desde o início da década de sessenta do século XX, trabalham de um modo singular a re-
lação entre a arquitectura de carácter permanente e as propriedades da matéria têxtil.
Tomemos como exemplo a obra Wrapped Reichstag (1971-95), realizada em Berlim
(fig.32).

Fig. 32. Christo e Jeanne-Claude, Wrapped Reichstag, [1971-95] 1995, Berlim.

Quando os artistas interveêm sobre o espaço físico, questionando as estruturas ar-


quitectónicas existentes, parecem de facto ganhar vantagem sobre os arquitectos no que
respeita à prática de determinados conceitos que, efectivamente, não se podem esgotar
numa materialização objectual ou, podemos dizer, no que respeita à prática de uma certa
afinação entre as ideias e a sua experimentação. Vantagem derivada, provavelmente, da
liberdade de acção que a prática artística pode ter quando não está ao serviço da encomenda
nem dependente da condição de um resultado que permaneça fisicamente, como no caso
desta obra de Christo e Jeanne-Claude. Apesar das suas proporções monumentais, não só
de escala mas também no que respeita aos meios técnicos e humanos necessários à sua
realização, Wrapped Reichstag não dependeu de qualquer espécie de patrocínio, em con-

LIMITES CoM VISTA 75


formidade com a opção do casal em ser totalmente independente e livre no que respeita à
sua criação artística (no momento continuada apenas por Christo, pois Jeanne-Claude fale-
ceu em 2009). Coerente com tal opção é a natureza programadamente temporária dos pro-
jectos. Neste caso, a montagem decorreu entre 17 e 24 de Junho de 1995 e a obra
permaneceu apenas até 7 de Julho do mesmo ano. No entanto a ideia surgiu em 1971, dez
anos após o início da construção do Muro de Berlim, mas só em 1994 (já após a reunifi-
cação da Alemanha) os artistas conseguiram obter autorização para ‘embrulhar’ o edifício
com mais de 100.000 metros quadrados de tecido polipropileno à prova de fogo, coberto
por alumínio, e 15.600 metros de corda. A fase final de um processo que levou 25 anos,
envolvendo, entre outras acções, reuniões com centenas de membros dos parlamentos da
Alemanha ocidental e oriental, tendo mesmo havido sessão parlamentar para votação
sobre a realização ou não do projecto. Construído no final do século XIX, o Reichstag foi
a primeira sede de um parlamento democrático alemão, tornando-se ao longo do século
XX um potente símbolo de memória colectiva não só da Alemanha mas, podemos dizer,
também da Europa. Da Républica de Weimar ao Regime Nazi, do abandono após o in-
cêndio de 1933 à metáfora de uma cidade e país divididos.
Interessa aqui considerar a obra Wrapped Reichstag em contraposição com o
referido atrás a propósito do Grand Theatre D’Albi de Perrault. Tomando a arquitectura,
a primeira foi literalmente uma ‘obra-acontecimento’ pela fusão temporária da ‘monu-
mentalidade’ com a ‘desmaterialização’. Não pela pretensão da ‘diluição’ dos limites do
edifício quando estes inevitavelmente existiam mas, ao contrário, pela sua afirmação
através de activar um outro modo de os dar a ver que, paradoxalmente, aconteceu pelo
efeito da sua ocultação. o envolvimento de todo o edifício com o tecido branco prateado
acentuou a sua presença, a sua massa concreta, sem ilusão ou ambiguidade na percepção
da demarcação dos limites em relação ao espaço exterior. o efeito ‘parede cortina’ deu-se
de modo literal sobre o edifício, possibilitando a acessibilidade não só às propriedades vi-
suais mas também tácteis do têxtil. Durante 14 dias a nova ‘pele’ do Reichstag reagiu à
passagem do vento, reconfigurando (e actualizando) assim os contornos da memória que
a sua existência de mais um século evoca. A este respeito foi notável a opção dos artistas
pela opacidade do tecido, contrariamente à opção pela ‘transparência’ que a arquitectura
tem vindo a praticar na sua analogia conceptual e técnica com as características do têxtil.
A opacidade criou um certo silêncio sobre o edifício, abrindo espaço para uma interpre-

LIMITES CoM VISTA 76


tação renovada sobre a sua existência. Em analogia com o que refere o crítico cultural An-
dreas Huyssen,

Num contexto público e discursivo mais amplo, o velar de Christo funcionou de facto como uma
estratégia para tornar visível, desvelar, para revelar o que estava escondido quando era visível.
Conceptualmente, o velar do Reichstag teve outro efeito salutar: silenciou a voz dos políticos como
era habitual, a memória dos discursos das suas janelas, o levantamento das bandeiras alemã ou so-
viética no telhado e a retórica política oficial no interior. Assim, abriu um espaço para reflexão e
contemplação, bem como para a memória. A transitoriedade do evento em si — os artistas re-
cusaram prolongar a mostra sob demanda popular — era tal que iluminou a temporalidade e a his-
toricidade do espaço construído, a relação ténue entre lembrar e esquecer. (Huyssen, 2003: 36)33

Uma alusão à representação do panejamento na história da pintura e da escultura


ocidentais parece estar presente nesta relação do tecido (e a sua opacidade) com o edifício.
Ao envolver os corpos, o panejamento não distrai o olhar da interpretação das formas que
oculta. Pelo contrário, faz perscrutar mais sobre elas, sobretudo quanto mais elaborado
for o trabalho do claro-escuro, ou seja, a representação dos efeitos da luz sobre a matéria.
Pode também acentuar a sugestão do movimento dos corpos, sem no entanto sugerir a sua
‘desmaterialização’. Num entendimento oposto segue a relação entre o têxtil e a arquitec-
tura conforme sugerida nos referidos argumentos de Perrault, aqui tomados como repre-
sentativos do que considero ser uma tendência actual na prática e teoria de agentes
responsáveis pela representação do espaço urbano, orientada pelo discurso ‘politicamente
correcto’ defensor da ‘diluição’ dos limites entre zonas. Tal discurso tem sido sobretudo
útil a exercícios de estilo que se revelam debilitados no que respeita à necessidade de uma
revisão da ideia de ‘diferença’, à luz da pluriculturalidade característica da população de
qualquer actual cidade europeia e a sua relação com o fosso cada vez maior entre ricos e
pobres. Exercícios, como tal, tendencialmente configurantes de espaços que sendo desi-
gnados de públicos são no entanto de acesso restrito, não necessariamente pelo controlo
através de barreiras de ordem física mas por outras aparentemente mais leves como, por

33
In a larger discursive and public context, Christo’s veiling did function as a strategy to make visible, to
unveil, to reveal what was hidden when it was visible. Conceptually, the veiling of the Reichstag had another
salutary effect: it muted the voice of politics as usual, the memory of speeches from its windows, of the
raising of German or soviet flags on its roof and of the official political rhetoric inside. Thus it opened up a
space for reflection and contemplation as well as for memory. The transitoriness of the event itself — the
artists refused to prolong the show upon popular demand — was such that it highlighted the temporality and
historicity of built space, the tenuous relationship between remembering and forgetting. (Huyssen, 2003: 36)

LIMITES CoM VISTA 77


exemplo, o filtro selectivo da capacidade de poder de compra face à tipologia das activi-
dades de consumo que acolhem e promovem. As desigualdades económicas e sociais são
uma realidade, sendo exactamente nos centros urbanos que se tornam mais evidentes. Um
olhar minimamente atento ao actual estado de Europa em termos políticos, económicos,
sociais, culturais e até mesmo morais poderá facilmente intuir que esta realidade tende a
acentuar-se gravemente no futuro próximo. A sua expressão no espaço físico, claramente
identificável não só na morfologia da cidade mas também (e consequentemente) nas suas
práticas espaciais, é um facto portador de mais e novas modalidades de ‘limites’. Neste
sentido, torna-se fundamental questionar do que trata exactamente uma prática de arqui-
tectura e de planeamento urbano quando intenta ‘diluir’ os limites entre espaços, pois neg-
ligenciar a sua factual existência pode levar tal prática a colaborar na criação de um modelo
de cidade onde a ‘indiferença’ face à ‘diferença’ predomine. A imposição da homogeneiza-
ção sobre a diversidade factual, a dar forma a uma aparente ‘igualdade’ sem conteúdo. os
sistemas políticos afins a tal modelo são facilmente previsíveis, encontram-se exemplos
nas lições que a história recente da Europa nos dá. A desumanização é a sua característica
mais evidente. Torna-se então urgente a identificação dos ‘limites’ na cidade, a sua con-
frontação, a sua interrogação através da experiência de os atravessar, para que se possa
conhecer o que está em cada um dos lados, ambos partes da mesma urbanidade. Entenda-
se aqui o ‘limite’ enquanto momento no espaço físico (na morfologia da cidade) pelo qual
a ‘diferença’ se torna concretamente perceptível, considerado a partir da possibilidade da
construção de um novo olhar, contido em potência num movimento de corpo inaugural,
ainda a nascer pelas especificidades do percurso que leva de um lado ao outro. obvia-
mente, a ideia aqui em causa da prática do ‘limite’ enquanto experiência de articulação da
‘diferença’, relaciona-se com um entendimento desta que provavelmente não será o mais
imediato ou convencional, conforme iremos reflectir em seguida.

LIMITES CoM VISTA 78


1. 3. O ‘espaço comum’

A ideia de ‘diferença’ sugerida nos últimos parágrafos prende-se, necessariamente,


à diversidade de culturas existente na cidade e a sua afirmação no espaço público como
prática constitutiva de qualidades específicas da vida urbana. ‘Multiculturalismo’ é a desi-
gnação consensualmente utilizada para nomear esta diversidade, recorrente nos argumen-
tos que fundamentam eventos culturais nas ruas e praças das cidades que visam promover
a ‘celebração da diferença’ através do ‘encontro de culturas’. Eventos apoiados por Câ-
maras Municipais cujas agendas políticas favorecem também, simultaneamente, a gentri-
ficação de zonas na cidade e a consequente dissolução dessa mesma ‘diferença’,
distribuindo a diversidade de culturas por zonas diferenciadas com limites espacialmente
evidentes. Tal disparidade suscita-me uma atenção crítica para com as semelhanças que
existem entre o discurso dos políticos e o dos agentes culturais de tais eventos no que res-
peita à funcionalidade da ideia de ‘multiculturalismo’. É neste sentido que entendo que
os ‘limites’ que tomam expressão no espaço físico da cidade, pela configuração ou pela
prática deste, devem ser identificados e experienciados, e não ‘diluídos’ (como abordado
no capítulo anterior), para que um verdadeiro reconhecimento sobre o que enquadra a
nomeada ‘diversidade cultural’ seja perceptível quotidianamente e não dependente de pro-
gramas festivos pontuais que tendem para a ‘etinização’. Em causa está (como também já
referido) a ideia de ‘limites’ como zonas de contacto das diferenças, zonas de possível
transferência, para além da inevitável demarcação que estabelecem, pois a sua ocorrência
dá-se sempre que

(…) duas ou mais culturas se orlam mutuamente, onde pessoas de diferentes raças ocupam o mesmo
território, sob o qual, classes baixa, media e alta se tocam, onde o espaço entre dois indivíduos en-
colhe com a intimidade. (Anzaldúa, 1987)34

34
(…) two or more cultures edge each other, where people of different races occupy the same territory, where
under, lower, middle and upper classes touch, where the space between two individuals shrinks with intimacy.
(Anzaldúa, 1987)

o ‘ESPAço CoMUM’ 79
o antropólogo Jean-Loup Amselle (2011) tem uma visão original e muito crítica
sobre ‘multiculturalismo’ que é pertinente à linha de pensamento aqui em causa, ao con-
siderar como a instrumentalização do termo tem conduzido à afirmação de dois segmentos
distintos na população da cidade, o de uma comunidade maioritária (que designa como
‘branca’ e cristã’) e outro no qual se englobam as comunidades minoritárias, sendo disto
exemplo o que se passa em Paris:

Por uma espécie de efeito bumerangue, a aparição no seio do espaço público de minorias etno-cul-
turais e raciais causou, em cada caso, o fortalecimento de uma identidade ‘branca’ e cristã. (...) Ao
definir a priori a cultura de um povo, ou a sua identidade, racisando-a a fortiori, corremos o risco
de ser negados pela historicidade dessa cultura, isto é, pela sua capacidade em integrar uma in-
finidade de elementos que tinhamos postulado, por princípio, não lhe pertencer. (...) Culturalisar,
ou etnicisar ou racisar identidades é o melhor caminho, em particular, para encerrar os jovens das
periferias nos guetos, a melhor maneira de mantê-los sob o jugo do poder. (Amselle, 2011)35

Esta constatação de Amselle faz-me questionar, por exemplo, porque é que em


Lisboa a realização dos eventos que visam o ‘encontro de culturas’ reincide habitualmente
na zona entre as praças do Martim Moniz e Intendente. A resposta pode parecer óbvia para
quem conhece a cidade, porque é onde a presença da diversidade cultural está mais ex-
posta, pois os residentes nas ruas em volta são na sua maioria imigrantes oriundos de di-
versos países (de África, da Ásia e da Europa de Leste) e não só habitam a zona como
também, alguns, têm nela os seus estabelecimentos de comércio. No entanto, tais eventos
não chegam a estabelecer relação com o interior do bairro da Mouraria que ladeia as duas
praças. Nestas, claro, a evidência da ‘diversidade cultural’ pretendida é óbvia, pois está
exposta a céu aberto e sobre chão neutro. Também outras zonas da cidade têm uma diver-
sidade de população semelhante, como é o caso de diversos bairros de habitação social;
contudo não são tão centrais e, como tal, não são tão favoráveis à visibilidade mediática
e turística de que tais eventos dependem, como é o caso do projecto dos ‘restaurantes mul-
ticulturais’ e ‘mercado de fusão’ instalado na Praça do Martim Moniz durante o Verão de

35
Par une sorte d'effet boomerang, l'apparition au sein de l'espace public de minorités ethno-culturelles et
raciales a provoqué, dans chaque cas, le renforcement d'une identité "blanche" et chrétienne. (…) En définis-
sant a priori la culture d'un peuple, ou son identité, a fortiori en la racisant, on prend le risque d'être démenti
par l'historicité de cette culture, c'est-à-dire par sa capacité à intégrer une multitude d'éléments dont on avait
postulé, par principe, qu'ils ne lui appartenaient pas. (…) Culturaliser, ethniciser ou raciser les identités est
le meilleur moyen, notamment, d'enfermer les jeunes des banlieues dans des ghettos, la meilleure façon de
les maintenir sous la chape du pouvoir. (Amselle, 2011)

o ‘ESPAço CoMUM’ 80
2012 (fig. 33). Uma notícia no jornal Público (5 de Maio de 2012) referia o seguinte sobre
a inauguração:

A praça do Martim Moniz, em Lisboa, vai transformar-se, já em Junho, num espaço multicultural
onde serão servidas comidas de vários países (…) aos fins-de-semana, um ‘mercado de fusão’
aberto a vários tipos de comércio, associações e comunidades. (…) De acordo com José Rebelo
Pinto, gerente da NCS - Produção, Som e Vídeo (…) os clientes levarão os seus tabuleiros e in-
stalar-se-ão numa esplanada central (…) com capacidade para 300 pessoas sentadas. ‘Isto fun-
cionará como no Colombo ou em qualquer centro comercial do género. Nós faremos a gestão do
espaço’, diz Rebelo Pinto. Está prevista a instalação de restaurantes com comida chinesa, africana,
japonesa, indiana, portuguesa e não só. (…) aos fins-de-semana haverá uma série de actividades
dominadas pela ideia da multiculturalidade, mantendo e aprofundando a vocação adquirida pela
Mouraria nos últimos anos como lugar de encontro de povos e culturas. (…) salienta o gerente da
NCS, frisando que o novo Martim Moniz ‘é para ficar virado para a Mouraria e não de costas para
a Mouraria. (jornal Público, 5 Maio 2012)

Face ao descrito na notícia, questiono se antes da inciativa da empresa NSC, a


quem foi atribuída a consessão para o desenvolvimento do projeto na praça, o Martim
Moniz não era já um espaço ‘multicultural’. Será que a sua ‘diversidade cultural’ neces-
sitava afinal de ser mediada por uma configuração espacial de estrutura módulo-padrão
para se tornar acessível às outras ‘culturas visitantes’? Neste ‘encontro de culturas’ a quem
é de facto atribuída a ‘mobilidade’? E a ‘imobilidade’? Quem vai ao ‘encontro’ de quem?
Quem decide sobre as culturas que se devem encontrar, onde e como na cidade? Será a
predominância nas ruas de determinadas cores de pele, um factor determinante nestas de-
cisões? As condições de vida dos residentes da zona do ‘encontro’ terão também influência
na escolha do local para a ‘celebração da diferença’? As culturas ‘encontradas’ terão tam-
bém a oportunidade de ir ao ‘encontro’ das outras culturas que as visitam? Que qualidade
de trocas se estabelecem efectivamente no ‘encontro’? Chegará a haver diálogo entre as
diferentes culturas?
Restaurantes de diversas nacionalidades (mote do projecto) existem há décadas
nas ruas envolventes à praça, integrados na vida e no tecido do bairro. No entanto, a sua
concentração numa só praça é a nova proposta para aceder à experiência da ‘diversidade’.
Pretende-se, provavelmente, minimizar a ‘insegurança’ que o contacto com a ‘diferença’
suscita ao senso comum. os imprevistos que o desconhecido (o ‘outro’) poderá trazer tor-
nam-se assim controláveis pela activação de um certo tipo de prática espacial semelhante
à que acontece nas esplanadas dos átrios interiores dos centros comerciais, onde se simu-
lam as praças da cidade. Uma inversão de situações, no mínimo caricata, pelo ‘ilusionismo’
que explora na relação entre espaço exterior/interior e espaço público/privado, subenten-

o ‘ESPAço CoMUM’ 81
dida no que refere o próprio mentor do projecto (administrador da NSC), na notícia acima
citada, ao estabelecer a analogia entre a praça do Martim Moniz e um qualquer centro
comercial da cidade, salientando a garantia da gestão do ‘espaço’ pela sua empresa. o
que, por outras palavras, revela a intenção de transformar a praça num espaço maioritaria-
mente orientado para o consumo, ou seja, atribuir-lhe o poderoso filtro selectivo de ‘públi-
cos’. o empresário fala mesmo em ‘clientes’ da praça. Parcelas de chão que antes deste
projecto eram atravessáveis por qualquer transeunte tornam-se delimitadas por áreas qua-
drangulares cobertas de plástico verde a imitar relva, com aviso afixado onde se lê “A
zona lounge destina-se ao uso exclusivo dos consumidores dos quiosques”.
Na realidade, junto à praça do Martim Moniz existe há décadas um centro comer-
cial que se mantém activo e se caracteriza pela ‘diversidade cultural’. o que impede afinal
que o bairro da Mouraria, embora situado no coração de Lisboa, não seja mais conhecido
pela generalidade dos seus habitantes? Qual é a responsabilidade do poder local na exis-
tência dos ‘limites’ que podem justificar a falta de motivação à sua descoberta? os restau-
rantes e outros comércios existentes, bem como as actividades das associações e
colectividades, não oferecem de modo genuíno o que este novo projecto na praça publicita?
Em diversas notícias nos jornais é comum a referência ao Martim Moniz como uma praça
esquecida pelos ‘lisboetas’. Mas não serão as pessoas que todos os dias ali passam, e per-
manecem, também ‘lisboetas’? Quais são afinal os ‘limites’ no espaço que, para que pos-
sam ser atravessados por outras pessoas que não as residentes, justificam a necessidade
de uma ocupação programada da praça com gestão privada?

Fig. 33. Mercado de Fusão, Praça do Martim Moniz, Junho 2012, Lisboa.

o ‘ESPAço CoMUM’ 82
Numa outra notícia, também no jornal Público (9 de Junho de 2012), o mentor do
projecto revela o desejo de revitalizar a zona “encaixando com o que já existe na zona en-
volvente” e de “criar uma nova cidade dentro da cidade”. Duas intenções à partida con-
traditórias, pois sugerem integração e demarcação do contexto pré-existente em
simultâneo. “Uma cidade dentro da cidade” foi o lema publicitário do primeiro grande
centro comercial que abriu em Lisboa (e no país) em 1985, o Amoreiras Shopping Center.
Quase após 30 anos a expressão é utilizada num projecto de ‘reabilitação’ para uma praça
ao ar livre, espaço público por excelência que, como tal, não deveria ser condicionado a
um modelo de uso pré-definido. Através de uma visão com direcção oposta à do exemplo
em questão, e tomando o caso da vivência dos espaços públicos em Istambul, a arquitecta
Hüya Hertas defende a importância dos espaços não-programados na vitalidade do tecido
urbano,

o espaço não-programado não requere que as pessoas vão e criem atividades dentro dele: está ape-
nas lá à espera de ser descoberto e improvisado. É auto-organizado, instável e variável.
o espaço não-programado está aberto à transformação e à mudança, é flexível, e de baixo para
cima em vez de cima para baixo; é espaço público que está aberto para ser privatizado pelos
próprios cidadãos. (Hertas, 2010: 52-57)36

A deambulação de uma criança a passar de bicicleta numa ampla praça pode ser
mais reveladora da natureza verdadeiramente pública do espaço do que a concentração de
300 pessoas numa esplanada. Um mercado ao ar livre também, claro, mas quando por or-
ganização colectiva dos grupos que nele participam, não por iniciativa e gestão de uma
empresa que ganha a concessão do espaço. Como poderia ser o caso dos mercados infor-
mais, que são um elemento fundamental e estruturante da vida social de algumas das cul-
turas mais representativas do bairro da Mouraria. obviamente, pela sua dimensão e
localização, a praça do Martim Moniz seria ideal para tal ocupação éfemera caso o poder
local o permitisse, mas verifica-se que a ‘diversidade cultural’ é por este mais facilmente
reconhecida pelo poder de atracção turística do que pela sua capacidade de iniciativa e rea-
lização.

36
Unprogrammed space does not require that people come and create activities within it; it is just there wait-
ing to be discovered and improvised. It is self-organising, unstable and variable.
Unprogrammed space is open to transformation and change, it is flexible, and bottom-up rather than top-
down; it is public space that is open to being privatized by the citizens themselves. (Hertas, 2010: 52-57)

o ‘ESPAço CoMUM’ 83
Ao encontro da visão de Hertas vai o amplo conjunto de diversas e continuadas
acções genericamente designado Pessoas e Lugares praticado pelo c.e.m. - centro em
movimento, dirigido por Sofia Neuparth (investigadora, criadora e professora do Corpo),
intensivamente desde 2005 em toda a zona da Mouraria:

(…) Pessoas e Lugares não fala de quem nem de onde, mas da experiência de Estar-Com. Também
não fala de ‘o quê’. Estar-Com para nós não denuncia a necessidade de um quê para onde desagua
o Estar. Pessoas e Lugares não são por isso alvos a ‘estar com’, mas sim potenciadores da relação
que faz aparecer a particularidade da acção Estar-Com enquanto ela própria, sem necessidade de
qualquer finalidade para se cumprir. É dessa atenção, desse espaço aberto que convida a fazer
aparecer o que até aqui não tinha forma, que se reorganiza tudo o resto que já lá estava (…) uma
evidência física. Para mim é no fazer tocar essa evidência (do potencial da realidade) que recai a
pertinência do trabalho que fazemos na rua – com as pessoas e os lugares. (Agostinho, 2010: 4)

Como contraponto ao caso anteriormente descrito, saliento destas acções as diver-


sas limpezas performativas realizadas durante 2011 entre (e nas) praças do Martim Moniz
e do Intendente (fig. 34 e 35). Pelo fim das manhãs de 6ª feiras, em local definido e divul-
gado, elementos da equipa do c.e.m., e quem mais quisesse participar, chegavam munidos
de baldes, esfregões, sabão, luvas e aventais. A àgua era recolhida de um chafariz público
ou das torneiras de estabelecimentos comerciais em volta. Propunha-se simplesmente
limpar uma área de chão da rua durante uma hora, em acção sintonizada entre todos os
participantes, a cada pessoa um bocado de chão. De um modo geral, não é habitual transitar
pela rua a olhar para o chão, ou quando o fazemos provavelmente o pensamento está noutro
lugar que não no chão. Limpar o chão da rua, por quem não o faz por profissão, leva de
facto a olhar com detalhe o que de mais ‘comum’ e ‘partilhado’ existe na cidade, o chão
que pisamos. Limpar é cuidar, cuidar é dar atenção, no entanto não é habitual fazê-lo pelo
espaço para lá das portas de casa, é tarefa a desempenhar por profissionais pagos para tal.
Inverter esta lógica é então questionar sobretudo a qualidade de ligação e de responsabi-
lidade que o comum habitante da cidade tem pelo espaço cujo uso partilha, inevitavel-
mente, com os outros, desconhecidos. É interromper o passo de quem passa para que
aconteça a interrogação. A questão que as limpezas performativas provocavam nas pessoas
que as olhavam, de um modo geral, era o porquê de limpar o que dali a pouco estaria sujo
de novo e o porquê de limpar o que não é seu. Algumas horas depois, na tarde do mesmo
dia da limpeza, o grupo voltava ao local para se sentar no chão que limpou, para o encontro
das conversas para nada. Um modo de estar na rua que efectivamente evidenciava o sentido
de que o espaço público pertencerá a quem a ele se fizer pertencer, não pelo direito de

o ‘ESPAço CoMUM’ 84
propriedade mas pela especificidade de um modo de apropriação temporária. Limpar e
conversar para nada é abrir espaço para ‘dar lugar a’, com tempo de estar, escutar, rever-
berar, integrar, para, nas palavras de Neuparth (2010), deixar que o outro, o espaço, a si-
tuação, façam também o seu movimento na nossa direcção. o trabalho que o c.e.m. tem
vindo a realizar interroga a cidade,

(…) a partir de considerações experienciais de cidade, não se detendo na expectativa de arrumar


formatos similares que proporcionem uma identidade, mas acreditando que é na consideração das
assimetrias, das dissonâncias, das desproporcionalidades que pulsa uma cidade com vida própria
e não apenas um mero formalismo administrativo. (c.e.m., 2011)

Fig. 34 e 35. c.e.m. –centro em movimento com a colaboração de


habitantes e transeuntes do local, Limpezas Performativas, 4 de Fev.
e 4 de Março de 2011, Rua da Mouraria, Lisboa.

o ‘ESPAço CoMUM’ 85
Interessa assim pensar a ‘diferença’ e os ‘limites’ que a evidenciam no espaço ur-
bano, o que revela a sua articulação, tendo em conta que a tendência crescente que se ver-
ifica para a criação de áreas de habitação (e mesmo de espaço públicos) destinadas a
pessoas com hábitos semelhantes não é propícia ao desenvolvimento da capacidade de
diálogo, fundamental à tolerância entre estranhos que coexistem num mesmo território (o
que inevitavelmente acontece em qualquer cidade). A este respeito Bauman salienta,

Quanto mais tempo permanecemos num meio uniforme — na companhia de pessoas semelhantes,
com as quais podemos comunicar em termos superficiais e prosaicos sem nos expormos a mal-en-
tendidos nem termos a necessidade humilhante de nos esforçar por traduzir significações radical-
mente diferentes — , maior se torna a probabilidade de ‘desaprendermos’ a arte de chegar a
formulas de conciliação e a um modus convivendi. (Bauman, 2006: 42)

Na conferência designada Podemos viver sem o Outro?-As possibilidades e os li-


mites da interculturalidade, realizada na Fundação Calouste Gulbenkian no Verão de 2008,
em Lisboa, o antropólogo Arjun Appadurai apresentou uma reflexão sobre o ‘diálogo’ na
relação com a ‘diferença’, considerando os riscos que existem à partida em qualquer
processo de diálogo e que no mundo de hoje se tornam necessários correr, sobretudo entre
sociedades ou grupos sociais organizados, ou grupos de interesses. Partindo da ideia que
qualquer diálogo pressupõe uma troca entre pessoas, Appadurai referiu que esta se deve
basear num terreno comum, em concordância selectiva e consenso conjuntural, pois é tão
arriscado cada uma das partes não se fazer entender devidamente pela outra quanto é reve-
lar demasiado de si, ou seja, transparecer mesmo aquilo que deseja manter reservado.

A compreensão mútua completa, integral e precisa é uma bitola impossível, desde logo se tivermos
em conta os desafios colocados pela separação entre indíviduos e comunidades em função da cul-
tura, da língua e da história. Mas a compreensão completa ao nível das convicções éticas, religiosas
ou políticas fundamentais implica ainda um outro perigo: o impulso para eliminar totalmente as
diferenças fundamentais. (Appadurai, 2008: 25)

A desaprendizagem da capacidade de diálogo leva progressivamente, como sugere


Bauman (2006), à tendência para que o contacto com a ‘diversidade’ se estabeleça mera-
mente através das práticas de consumo e de estratégias e mecanismos de defesa que
previnem a ‘segurança’. Previsão alarmante se considerarmos que é na prática da urban-
idade que a experiência da alteridade tem vindo, desde meados do século XX, a representar
“(…) a marca que assinala a entrada numa nova era em que inventamos e inventaremos
cada vez mais frequentemente as nossas identidades.” (Wieviorka, 2002: 27).

o ‘ESPAço CoMUM’ 86
Esta ‘invenção’ da identidade que refere o sociólogo Michel Wieviorka tem em
conta que o ‘multiculturalismo’ não deve ser entendido apenas como característica das
cidades, mas antes de mais como característica dos indivíduos que constituem os próprios
grupos ‘étnicos’ em questão. Quando tal entendimento é negligenciado pela respectiva so-
ciedade, como alerta Sennett, os valores de cidadania são postos em causa,

Quando a civilidade na cidade funciona bem, as pessoas adquirem múltiplas identidades. (...)
Quando a civilidade falha na cidade, as identidades permanecem singulares em vez de compostas;
alguém que pode ser facilmente estereotipado é mais vulnerável à discriminação do que alguém
com uma identidade social mais complexa. (Sennett, 2005)37

Reflectindo sobre a contribuição da filosofia política e moral para o pensamento


em torno da novidade da experiência de alteridade e de diferença cultural, conforme se
desenvolve desde meados do século XX, Wieviorka coloca o ‘sujeito’ no fulcro da análise
para a compreensão das diferenças culturais que, do seu ponto de vista, devem ser tidas
em conta considerando o que devem e o que trazem aos sujeitos singulares. Tal análise
deverá observar as transformações consideráveis que ocorrem na relação entre público e
privado desde a década de sessenta, pois as fronteiras que separavam estes domínios,
postas em causa, “(...) toldam-se enquanto a subjectividade das pessoas se afirma como
uma questão central nos dois espaços.” (Wieviorka, 2002: 80).
Embora a identificação dos diferentes grupos étnicos e a sua localização no tecido
urbano seja essencial à funcionalidade do termo ‘multiculturalismo’ nos discursos políticos
que dele fazem uso, há que ter em conta que esses grupos são constituídos por indivíduos
cujo acesso à educação e cultura, na sociedade em que se encontram, é potencialmente
transformador da identidade do grupo no qual se ‘encaixam’ por determinação da visão
multiculturalista da cultura dominante nessa sociedade. Contudo, os países em cujas prin-
cipais cidades mais se promove o ‘multiculturalismo’ são, evidentemente, os que possuem
um elevado índice de imigração, mas são também aqueles nos quais se tem vindo a veri-
ficar nos últimos anos um aumento de medidas que levam à restrição de acesso ao ensino

37
When civility in the city works well, people acquire multiple identities. (…) When civility fails in the city,
identities remain singular rather than compound; someone who can be easily stereotyped is more vulnerable
to discrimination than someone with a more complex social identity. (Sennett, 2005)

o ‘ESPAço CoMUM’ 87
superior, com efeitos descriminatórios decorrentes, por exemplo, das desigualdades
económicas. Sendo a imigração a força de trabalho mais explorada pelo neoliberalismo
praticado nestes países, o acesso ao ensino superior torna-se inacessível à condição
económica da grande parte dos elementos dos diferentes grupos que constituem essa força.
Nunca o ensino superior teve uma população de estudantes (e professores) tão caracteri-
zada pela diversidade cultural como no presente, é certo, mas como alerta a este respeito
o teórico literário Walter Benn Michaels (2012) essa ‘diversidade’ cultural caracteriza-se
por uma ‘igualdade’ económica, isto é, os alunos são das famílias materialmente mais
ricas das diversas culturas em causa. Michaels considera que os modos actuais de ‘cele-
bração da diferença’ cultural e étnica podem camuflar as desigualdades económicas, que
a promoção da ‘diversidade’ nas actuais políticas dos países mais desenvolvidos é a des-
culpa e a justificação para o crescente ‘fosso’ que existe entre ricos e pobres, lembrando
que para o neoliberalismo praticado é mais barato ‘respeitar a identidade’ do que pagar
um salário justo. A nova mobilidade do capital e do trabalho produziu, segundo Michaels,
um anti-racismo contemporâneo que funciona como legitimização de capital em vez de
resistência ou crítica. Dando um exemplo do que se passa nas universidades norte ameri-
canas, contexto que como professor conhece bem, refere que todas publicitam o ‘multi-
culturalismo’ que caracteriza o seu corpo de estudantes, no entanto é sabido que 80% dos
jovens norte americanos não têm hipótese de estudar em Harvard, facto que se deve à
diferença de ‘classe’ e não de ‘etnia’.

Se o problema é não respeitar a diferença, então a solução é começar a respeitá-la. Mas se pensarmos
na diferença em termos de uma estrutura de classe onde a essência é ‘mais do que’ ou ‘menos do
que’ e não apenas diferente de, o problema não é apenas que as pessoas pobres pertencem a uma
cultura diferente, é que os pobres são privados de centenas de oportunidades das quais as pessoas
ricas não são privadas, e o importante não é apreciar as suas privações ou as coisas que conseguem-
notavelmente gerir apesar das suas privações mas libertar das privações. (Michaels, 2011)38

38
If the problem is not respecting difference, then the solution is to start respecting it. But if you think of dif-
ference in terms of a class structure where the essence is “more than” or “less than” and not just different
from, the problem is not just that poor people belong to a different culture, it’s that poor people are deprived
of hundreds of opportunities that rich people are not deprived of and the important thing is not to appreciate
their deprivations or the things they remarkably manage to do in spite of their deprivations but to get rid of
the deprivations. (Michaels, 2011)

o ‘ESPAço CoMUM’ 88
Estas ideias de Michael são desenvolvidas no seu polémico livro The Trouble with
Diversity: How We Learned to Love Identity and Ignore Inequality (2006), antecedidas
por uma reflexão sobre a ideia de ‘raça’ que, segundo o autor, é actualmente substituída
pela de ‘cultura’. Neste sentido, a ideia de ‘diferença’ implícita no ‘multiculturalismo’ não
tem a ver, segundo o autor, com as diferenças de ordem biológica (de sangue) que errada-
mente se associavam com ‘raça’ mas com as de pensamento e atitude, com o que as pessoas
de diferentes grupos pensam e praticam. A experiência da universidade, como via privile-
giada para o desenvolvimento do indivíduo pelo contacto com a diversidade de pensa-
mento e opção que possibilita, é determinante para contrariar a condição de ‘imobilidade’,
ou de ‘mobilidade limitada’ que parece estar em acordo com a ideia de ‘diferença’ con-
forme tem vindo a ser praticada pelas políticas dos países ocidentais, na qual ‘diversidade
cultural’ não é sinónimo de ‘liberdade cultural’. Limitar tal acesso com base na desigual-
dade económica será impedir que aqueles que são alvo dos trabalhos mais injustamente
remunerados possam reunir condições para a (re)invenção das suas identidades, e estes
são exactamente, não exclusivamente mas na sua maioria, os que pertencem às comu-
nidades minoritárias que, pela sua existência culturalmente confinada, permitem as so-
ciedades e os discursos ‘multiculturalistas’.
Na conferência acima mencionada, a propósito da citação de Appadurai, o psicólo-
go social Jorge Vala, focando a dimensão polissémica do conceito de ‘diferença’, referiu
que “A diferença entre iguais remete para a ideia de diversidade e pode ser celebrada como
um valor. A atribuição de diferença entre desiguais pode ser ela própria um factor de acen-
tuação de desigualdade e de inferiorização.” (Vala, 2008: 102). A segunda hipótese é a
que nos parece corresponder a usos dos espaços públicos como o exemplo referido do
projecto na Praça do Martim Moniz, ainda que a ideia de ‘diferença’ promovida em asso-
ciação com valores de ‘tolerância’ ou ‘interculturalidade’ possa sugerir que o que está em
causa é a prática do contrário. Na realidade, à porta do bairro que no coração de Lisboa é
habitado pela maior diversidade de comunidades imigrantes, instalou-se um modelo de
uso da praça pública com programação e gestão estabelecida por entidades não represen-
tativas dessas comunidades minoritárias, embora tomando como ‘tema’ a valorização das
suas diferenças culturais mas para consumo de um público que se caracteriza, de um modo
geral, pela cultura maioritária do país de ‘acolhimento’. Através deste modelo de uso, ape-
sar de gerador da presença e movimento de muito mais pessoas do que o habitual no quo-

o ‘ESPAço CoMUM’ 89
tidiano do sítio, será que a praça se torna efectivamente um ‘espaço comum’?
Do nosso ponto de vista, o ‘espaço comum’ na cidade será aquele onde o ‘diálogo’
pode acontecer como processo de troca entre diferenças que se encontram em condições
de mobilidade equivalentes, e não quando uma avança pelo espaço da outra confinando a
possibilidade dos movimentos desta, como tendencialmente acontece nos eventos culturais
(incluíndo de ‘arte pública’) que se publicitam via ‘multiculturalismo’ e ‘celebração da
diferença’ nas principais cidades europeias.

Stavros Stavrides (2010), professor e investigador de arquitectura, considera que


as identidades dos habitantes contemporâneos da cidade são enquadradas e enquadram.
os seus confins correspondem ao perímetro dos ‘enclaves’ espaciais e temporais dentro
dos quais se movem. Assim, o questionamento das identidades implicará a contestação do
carácter repetitivo das suas performances. Segundo Stavrides, são os ‘limiares’ que pos-
suem um potencial emancipador enquanto espaços onde se podem gerar novas relações
sociais, exactamente porque evidenciam mudanças através do acto de passagem, do entrar
e sair retomados, pela comparação e negociação que naturalmente se tornam necessárias
estabelecer. Stavrides considera assim a importância dos territórios de transição na aprox-
imação à ‘diferença’ pois, não pertencendo a nenhuma das partes, permitem sentir a dis-
tância mas também construir a ponte. os ‘limiares’ não são espaços de imposição nem de
reprodução de identidades. A (re)invenção destas torna-se possível pelo confronto com o
paradoxo, a contradição e o contraste. Ideia que remete para o ‘terreno comum’ de que
fala Appadurai a propósito do ‘diálogo’, anteriormente mencionado. Stavrides alerta para
o facto de que

(...) estamos constantemente privados de uma característica crucial do espaço urbano que também
acontece ser característica crucial de qualquer cultura legal: a capacidade e a oportunidade para com-
parar, para disputar pela comparação, para investigar os modos como os limites são impostos. os
limiares podem ser duplamente experiências urbanas espaço-temporais e áreas de activamente ex-
perimentar indistinções: indistinções espaciais e jurídico-políticas igualmente. (Stavrides, 2010: 34)39

39
(…) we are constantly deprived of a crucial characteristic of urban space which also happens to be crucial
characteristic of any legal culture: the ability and the opportunity to compare, to dispute by comparing, to in-
vestigate the ways limits are imposed. Thresholds can be both spatiotemporal urban experiences and areas of
actively experiencing indistinctions: spatial and juridico-political indistinctions alike. (Stavrides, 2010: 34)

o ‘ESPAço CoMUM’ 90
Estas ideias assentam na convicção de que a existência do ‘comum’ nos espaços
públicos das cidades só poderá emergir do encontro estabelecido entre as diferenças dos
indivíduos, e não entre as semelhanças, o que implica, segundo Stravides, que se estabeleça
o foco nas possibilidades de trocas em vez de na afirmação de identidades. Caso contrário,
estaria em causa uma ideia do ‘comum’ relacionada com a ideia de ‘comunidade’ que,
confinada cultural e geograficamente, mais cedo ou mais tarde pressupõe sempre a ex-
clusão e o privilégio. Encontramos expressão da relação entre ‘comum’ e ‘espaço público’,
por exemplo, no que há de semelhante nos modos de ‘ocupação’ das ruas e praças realiza-
dos em diversas cidades de diferentes países, ao longo de 2011 e de 2012, em defesa de
uma ‘democracia verdadeira’, como aconteceu por exemplo em Madrid, Atenas ou Nova
Iorque. Antoni Negri e Michael Hardt (2011), filósofos políticos e activistas, têm prestado
uma atenção especial a este movimento de uma amplitude geográfica sem precedentes e
focam, a este respeito, a estratégia espacial do ‘acampamento’ como uma das principais
características comuns da especificidade da organização interna das várias ocupações, com
as suas assembleias e estruturas participativas horizontais, sem líderes ou outros repre-
sentantes, onde foram construídas e tomadas decisões durante semanas ou meses (fig. 36-
39). A temporalidade a que leva a ‘permanência’ de uma multidão de desconhecidos em
ocupação do espaço público, sem agenda pré-definida, depende da capacidade quotidiana
de ‘criação’ de situações, o que induz a uma relação entre espaço/tempo contrária à pro-
duzida pelo actual capitalismo que leva antes à constante necessidade de ‘responder’ a

Fig. 36. Occupy Wall Street , acampamento no Zuccotti Park (Liberty Plaza Park),
outubro 2011, Nova Iorque.

o ‘ESPAço CoMUM’ 91
situações. Como salienta Jason Adams (2011), professor e investigador de cultura, média
e política:

Em vez de manter esta estratégia espacial a todo custo, o que é mais interessante sobre o ocupar
agora é que está a complicar acentuadamente imagens estáticas de espaço: está, resumidamente,
a ocupar o tempo. Isto tem significado uma mudança para uma abordagem mais fluida, táctica, não
apenas apropriada para as especificidades de situações em constante mudança implantadas de cima,
mas que, mais importante, permite trazer novas situações de baixo. De facto, a introdução inicial
de uma duração em aberto para os eventos ocupar orientou os eventos subsequentes principalmente
face ao temporal e ao táctico em vez do espacial e estratégico. Esta foi realmente a sua maior força
e é a principal razão pela qual a estratégia espacial fez tão bem como fez. (Adams, 2011)40

Fig. 37. Occupy Wall Street , acampamento no Zuccotti Park (Liberty Plaza Park), outubro 2011, Nova Iorque.

40
Rather than maintaining this spatial strategy at all costs, what is most interesting about occupy now is that
it is increasingly complicating static images of space: it is, in short, occupying time. This has meant a shift to
a more fluid, tactical approach, one not only appropriate to the specifics of constantly changing situations
deployed from above, but one that more importantly, allows it to bring forth new ones, from below. Indeed,
the initial introduction of an open duration for the occupy events already oriented the subsequent events pri-
marily towards the temporal and the tactical rather than the spatial and strategic. This was truly its greatest
strength and is the major reason the spatial strategy did as well as it did. (Adams, 2011)

o ‘ESPAço CoMUM’ 92
Fig. 38. Occupy Wall Street , acampamento no Zuccotti Park (Liberty Plaza Park), outubro 2011, Nova Iorque.

Erik olin Wright (2011), sociólogo interessado em reflectir sobre o que na so-
ciedade ‘pode vir a ser’, considera esta apreensão e ocupação do espaço público através
do ‘acampamento’ à luz da sua força simbólica emancipatória, enquanto proposta de
prática de resistência à crise de legitimação do sistema político económico (europeu e
norte-americano). Trata-se da demonstração pública de um modelo experimental de de-
liberação democrática e de intensidade participativa orientado por valores que visam uma
sociedade alternativa. Um modo de actuação que Wright identifica como sendo do âmbito
das ‘transformações intersticiais’ que visam a aquisição de poder social a partir de ‘nichos’
considerados à margem da sociedade capitalista, à partida não constituintes de nenhuma
ameaça imediata às elites e classes dominantes mas que, acumulativamente, não só podem
gerar mudanças concretas nas vidas das pessoas envolvidas como contribuir significati-
vamente para ampliar o alcance transformador de tal aquisição de poder na sociedade
como um todo. No entanto, estes modos de ocupação das praças e ruas têm sido frequente-
mente referidos pelos jornalistas nas notícias como sendo vazios ou pouco claros no que
respeita às suas reivindicações, pois não se fazem representar por ‘líderes’ que possam fa-
cilitar a comunicação mediática. Tais jornalistas demonstram assim carecer de uma ob-

o ‘ESPAço CoMUM’ 93
servação capaz de articular e interpretar as relações entre as práticas espaciais em causa e
as características dos espaços onde acontecem. Hardt constata que é exactamente a recusa
da representação e qualquer identificação partidária que levam à consciência da capacidade
de acção política à escala individual. Durante o período da ocupação as pessoas aprendem
como na realidade não têm tempo para se governar a si próprias. Como salienta a socióloga
Saskia Sassen (2011), reflectindo a este respeito sobre os exemplos das ocupações na Praça
Tahrir (Cairo) e no Parque Zuccotti (Nova Iorque), trata-se de uma prática de ‘produção
de presença’ por parte daqueles que não têm poder,

(…) que reivindicam direitos à cidade e ao Estado, em vez de protecção de propriedade. o que as
duas situações partilham é a noção de que novas formas do político (para Weber, cidadania) estão
a ser constituídas, com a cidade como um local chave para este tipo de trabalho político. A cidade
é, por sua vez, em parte constituída através destas dinâmicas. Muito mais além do que um subúrbio
calmo e homogéneo, a cidade contestada é onde o cívico é feito. (Sassen, 2011)41

Sassen considera também centrais a esta prática a relação entre o ‘ocupar território’
e os limites da ‘opinião digital’ que, apesar dos seus vastos poderes tecnológicos, deve
aqui ser entendida apenas como uma ferramenta útil ao novo meio de comunicação social
que é o próprio ‘acampamento’ no espaço público. Este último a ser entendido por relação
com o conceito de Rua Global, um espaço onde novas formas do ‘social’ e do ‘político’
podem acontecer por diferenciação de um espaço de rotinas previsíveis conforme o tradi-
cional conceito europeu de ‘espaço público’ associado à piazza e ao boulevard. Segundo
Sassen, o primeiro assinala ‘acção’ e o segundo assinala ‘ritual’. Desigualdade social, ex-
pulsões de lugares e de modos de subsistência, classes políticas corruptas, ganância e
opressão extremas são alguns dos motivos que estão hoje a fazer emergir a Rua Global
em diversos países de diferentes continentes. Sassen frisa que aqueles que não têm poder
estão a fazer História (e histórias) e uma nova política através da sua ‘presença’ na rua,
por se darem a ver uns aos outros.
o que este modelo de ocupação do espaço público põe em prática é exactamente
o questionar do sistema capitalista existente através de acções de democracia participativa.

41
(…) that claims rights to the city and to the state rather than protection of property. What the two situations
share is the notion that new forms of the political (for Weber, citizenship) are being constituted, with the city
as a key site for this type of political work. The city is, in turn, partly constituted through these dynamics. Far
more so than a peaceful and homogenous suburb, the contested city is where the civic is made. (Sassen, 2011)

o ‘ESPAço CoMUM’ 94
Como tal, não pode partir de reivindicações pré-definidas como seria desejo de grande
parte dos jornalistas. Através do acto de ‘ocupar’, a rua ou a praça tornam-se ‘espaços do
fazer’, porque diferentemente da ‘demonstração’ (como por exemplo é o caso das mani-
festações ou dos desfiles), ‘ocupar’, como diz Sassen, dá muito trabalho. Pela ‘ocupação’
os corpos permanecem num sítio específico, na ‘demonstração’ os corpos estão em trânsito.
‘ocupar’ implica assim criar um ‘novo território’ para a co-habitação diária de uma imensa
diversidade cultural e para isto não pode existir um plano pré-definido, os próprios códigos
de comunicação e a organização e distribuição das diversas funções necessárias à sobre-
vivência no local estão a ser inventados, no momento da acção, por aqueles que se encon-
tram a partilhar um mesmo chão e a recusa de serem expulsos do direito à cidade (e à
própria vida) pelo actual sistema. A imprevisibilidade, à partida, do tempo de permanência
é uma das especificidades que caracteriza estas ocupações mas, quer seja por alguns dias
ou por meses, será sempre efectiva a destabilização dos significados que tal sistema impõe
como estáveis, sustidos, como diz Sassen, por poderosas explicações que pretendem fazer
esquecer que a ‘pobreza’ ou a ‘descriminação’ são sempre situações criadas, produzidas
por ‘alguém’. Demonstram-se novas visões do social, pela prática de outras formas de
vida num inesperado território que se instala como um buraco estrutural no território ins-
tituído pelo sistema da Finança Global (cujos actores principais são instituições e orgãos
reguladores que actuam ao nível internaciona). Sassen defende que tal modelo de ocupação
actua na zona de sombra entre a ausência de poder e o poder dominante, activando o que
designa como ‘capacidades urbanas’, ou seja, a mistura do território pré-existente (que é
a cidade) com as pessoas.
Também reflectindo sobre os ‘acampamentos’ nas ruas e praças de diversas
cidades, o crítico de arquitectura Michael Kimmelman (2011) salienta como a organização
destes contraria a tendência actual para substimar o potencial político dos lugares físicos
e como evidencia o quanto se tem permitido que o ideal cívico do espaço público, como
palco de expressão e assembleia de cidadãos, se transforme em mais uma área de negócio
para as grandes empresas (Lisboa é actualmente uma das cidades europeias mais exem-
plificativa de tal permissão).

o ‘ESPAço CoMUM’ 95
[Afirmar] Que a mensagem dos ocupantes do Parque Zuccotti é confusa, de algum modo perde o
essencial. o acampamento em si tornou-se o essencial (...) E era óbvio para mim, vendo a multidão
a coalescer ao longo de vários dias, que o consenso emerge urbanisticamente, significando que os
manifestantes, que conceberam a sua própria forma de governo sem liderança para manter a paz,
encontrar a unidade na comunidade. (...) Dito isto, é no terreno onde os manifestantes estão a
cconstruir uma arquitetura de consciência. (Kimmelman, 2011)42

Fig. 39. Occupy Wall Street, The People’s Library, Liberty Plaza Park, Novembro 2011, Nova Iorque.

42
That the message of the Zuccotti Park occupiers is fuzzy somewhat misses the point. The encampment
itself has become the point (…) And it was obvious to me watching the crowd coalesce over several days
that consensus emerges urbanistically, meaning that the demonstrators, who have devised their own form of
leaderless governance to keep the peace, find unity in community. (…) That said, on the ground is where the
protesters are building an architecture of consciousness. (Kimmelman, 2011)

o ‘ESPAço CoMUM’ 96
Se é possível aqui falar de um sentido de ‘comunidade’ como refere Kimmelman,
não poderá ser com base na ideia de ‘comunidade’ que subentende uma linguagem, raça,
religião, condição económica, ou outras condições comuns aos seus membros que em úl-
tima instância podem levar à exclusão da diferença (sendo um exemplo extremo o caso
do Regime Nazi). o sentido de ‘comunidade’ em causa nestas recentes ocupações nas ruas
e praças das cidades constitui-se pela heterogeneidade e pluralidade, contrariando os
‘micro-fascismos’ que se observam nas estratégias usadas para a fragmentação espacial e
social da urbanidade que segregam e excluem, produzindo e sustentando o medo, a inse-
gurança e a desconfiança. A ‘imprevisibilidade’ será assim condição inevitável. Sassen
considera que estas ocupações sem partido, sem plano ou programa, inauguram um ‘espaço
semântico’ de onde certos debates podem emergir que de outro modo jamais seriam pos-
síveis. Ao encontro do pensamento de Agamben no seu livro A comunidade que vem
(1993), e que me parece visionário face ao debate que tais ocupações instalaram no pre-
sente, trata-se da ‘comunidade’ tida como um acontecimento, como uma forma de resistên-
cia vinda das pessoas anónimas que sem afirmarem uma identidade específica ou condição
de pertença manifestam o seu ‘ser comum’. Este, segundo Agamben, é a nossa própria
natureza linguística cuja possibilidade é expropriada pela violência do espectáculo
mediático, alienante da nossa habilidade em comunicar, em relacionar com os outros, em
cooperar, em partilhar memória colectiva, em criar novas relações,

(…) aí, onde o mundo real se transformou numa imagem e as imagens se tornam reais, a potência
prática do homem separa-se de si própria e apresenta-se como um mundo em si. É na figura deste
mundo separado e organizado através dos ‘media’, em que as formas do Estado e da Economia se
penetram mutuamente, que a economia mercantil acede a um estatuto de soberania absoluta e ir-
responsável sobre toda a vida social. Depois de ter falsificado a totalidade da produção ela pode
agora manipular a percepção colectiva e apoderar-se da memória e da comunicação social, para
transformá-las numa única mercadoria espectacular, em que tudo pode ser posto em questão, ex-
cepto o próprio espectáculo, que, em si, nada mais diz do que isto: o que aparece é bom, o que é
bom aparece . (Agamben, 1993: 61-62)

Jean-Luc Nancy (2000), um dos filósofos que mais tem reflectido sobre a ideia de
‘comunidade’ nas duas últimas décadas, evita o uso do termo porque o seu pensamento
toma uma direcção divergente da tradicional visão de ‘comunidade’ enquanto algo que
tende para ser socialmente positivo. Nancy considera que onde a ‘sociedade’ começa ine-
vitavelmente desaparece a ‘comunidade’, pois a cumplicidade que à partida é suposta exis-
tir entre os membros desta dissolve-se necessariamente por entre a amplitude das

o ‘ESPAço CoMUM’ 97
dimensões da primeira. Prefere assim falar de ‘estar-em-comum’ ou ‘estar-com’, o que
nos parece consonante com a ideia de ‘espaço semântico’ de que fala Sassen a propósito
da ‘ocupação’ do espaço público pela multidão. ‘Estar’ implica o corpo ocupar uma
posição num determinado espaço por um período de tempo. ‘Estar-com’ pressupõe que
na mesma situação espacio-temporal haja mais do que um corpo e que cada um reconheça
a presença de outro(s), reconhecimento que em si potencia relação. As ‘presenças’ como
significantes (como se fosem palavras) que, pelo seu posicionamento simultâneo, rela-
cional e de permanência num mesmo espaço, constituem significado (como se fosse um
texto).

Não há significado se o significado não é partilhado, e não porque haja um significado último ou
primeiro que todos os seres têm em comum, mas porque o significado é em si a partilha do Ser. o
significado começa onde a presença não é pura presença mas onde a presença vem à parte [se dis-
joint] a fim de ser como tal. Este ‘como’ pressupõe o distanciar, o espacear e a divisão da presença.
Apenas o conceito de ‘presença’ contém a necessidade desta divisão. Pura presença não partilhada
— a presença de nada, do nada, para nada — não é nem presente nem ausente. É a simples implosão
de um ser que nunca poderia ter sido — uma implosão sem qualquer vestígio. (Nancy, 2000: 2)43

Dar corpo ao espaço. Um corpo colectivo que estabelece acesso a outros modos
de ver o espaço que ocupa, através do que se revela entre as posições tomadas pelas sin-
gularidades que o constituem, expostas umas às outras em movimento demorado. Neste
‘estar-com’ é possível a estabilidade do olhar que, como considera Brighenti, é um modu-
lador crítico da interacção social, “não é simplesmente sintomático das intenções que as
pessoas têm quando começam uma interação, mas antes constitutivo do significado que a
interação assume para as pessoas envolvidas na mesma.” (Brighenti, 2010c: 24)44
Este ‘espaço comum’ apenas pode emergir de uma interrupção no sistema de co-
ordenadas pré-existente segundo o qual se configuram as práticas espaciais habituais.

43
There is no meaning if meaning is not shared, and not because there would be an ultimate or first signifi-
cation that all beings have in common, but because meaning is itself the sharing of Being. Meaning begins
where presence is not pure presence but where presence comes apart [se disjoint] in order to be itself as such.
This ‘as’ presupposes the distancing, spacing, and division of presence. only the concept of ‘presence’ contains
the necessity of this division. Pure unshared presence — presence to nothing, of nothing, for nothing — is
neither present nor absent. It is the simple implosion of a being that could never have been — an implosion
without any trace. (Nancy, 2000: 2)
44
The gaze is not simply symptomatic of the intentions people have when thay begin an interaction, but rather
constitutive of the meaning the interaction assumes for those engaged in it. (Brighenti, 2010c: 24)

o ‘ESPAço CoMUM’ 98
Como um novo território de co-existência que, embora provisório, tem o poder de se so-
brepor ao território estabelecido retomando uma ‘presença comum’ movida pelo desejo
de fazer acontecer em colaboração. Desejo que terá estado na origem da cidade, mas que
a actual sociedade capitalista apaga da memória e da vontade dos seus habitantes. Para tal
amnésia contribuem, por exemplo, a densidade de programas festivos organizados pelos
poderes locais para animar os espaços públicos (sendo muitos deles eventos promocionais
de marcas globais) aos quais a multidão ocorre apenas como espectadora e consumidora.
Nunca a oferta cultural nas cidades foi tanta e tão variada, é certo, mas o problema é a es-
cassez de alternativas que contrariem a actual tendência para a instituição de um entendi-
mento exclusivo dos espaços públicos como locais de entretenimento programado ou, na
ausência deste, apenas locais de passagem. Qual, é na realidade, a dimensão pública de
um espaço onde não é possível a implicação do indivíduo na sua (re)criação?
As ruas e praças na cidade tendem cada vez mais a ser essencialmente zonas de
passagem contínua. Mesmo quando dispõem de equipamentos e infra-estruturas que
aparentemente induzem à permanência (como bancos ou zonas relvadas), o tempo de
‘estar’ pode ser condicionado por soluções formalmente discretas mas concebidas com o
objectivo de criar desconforto pelo uso demorado. Por exemplo, os bancos públicos con-
cebidos com dimensões que impedem deitar, os rebordos de corrimãos ou separadores em
volta de canteiros que magoam o corpo ao sentar, ou as fontes com o nível de água definido
de modo a manter sempre húmidos os bordos ou o chão em volta para que ninguém se
sente. o documentário Pas Lieu D’être (2003), de Philippe Ligniéres (fig. 40), é bastante
sugestivo sobre a identificação destas situações através das observações de sociólogos,
médicos, assistentes sociais, filósofos, moradores, geógrafos, entre outros, relativas a
cidades francesas que conhecem bem. Situações exemplificativas de como em nome da
requalificação, segurança e higiene, os arquitectos, urbanistas e paisagistas colaboram
numa remodelação do espaço urbano segundo o que nos países anglo-saxónicos se designa
como ‘espaço defensivo’ e em França como uma ‘arquitectura de prevenção situacional’.
Por outras palavras, a criação de estratégias para a exclusão, descriminação, e estigmati-
zação de certos habitantes da cidade (sobretudo os que necessariamente dormem na rua,
mas não só) através de detalhes específicos na morfologia e equipamentos das ruas que
impedem a possibilidade de ‘estar’ no espaço (aparentemente) público. Possibilidade
remetida quase exclusivamente para as cadeiras das esplanadas dos cafés e restaurantes,

o ‘ESPAço CoMUM’ 99
tornando-se assim necessário pagar para permanecer na rua com algum conforto físico. o
filósofo urbano Thierry Paquot refere a tendência para a supressão progressiva do cidadão
anónimo livre em favor do consumidor, alerta sobre a actual construção da ‘cidade da in-
terdição’ que é a negação da própria cidade, pois a habitabilidade é condição essencial
desta. No entanto, é curioso constatar como desde os referidos movimentos de ‘ocupação’
se observa, em várias cidades europeias, a tendência dos jovens em se sentarem no chão
das ruas e praças para conviver, não necessariamente junto aos edifícios ou nos degraus
das portas e passeios, mas literalmente no trajecto do trânsito pedonal.

Fig. 40. Philippe Ligniéres, Pas Lieu D’être, 2003 (fotograma do filme),
Montpellier, Paris, Sète e Toulouse.

Jean-Pierre Garnier (2010) é um dos sociólogos que actualmente mais critica a


lógica mercantilista que converte o ‘espaço público’ em espaço privado, acessível apenas
àqueles que têm condição económica para dele desfrutar segundo modos de utilização
prescrita, na qual a publicidade e os dispositivos de controlo e segurança se combinam de
modo a prevenir qualquer possibilidade da irrupção do imprevisível.

Este cuidado da ‘pequena diferença’ com os seus semelhantes será mais intensa do que a ‘grande’
com outras pessoas totalmente desaparecidas. Para ‘viver de outro modo a cidade’, segundo o slo-
gan das ‘operações de comunicação’ lançadas pelos municipalidades, o neocidadão jamais deverá
ser confrontado com encontros não anunciados, com o estranho e o inesperado. Em suma, com o

o ‘ESPAço CoMUM’ 100


que faz o sal da sociabilidade urbana. Especialmente se a alteridade vem dessas pessoas que, vindas
de bairros próximos ou distantes da humanidade, não podem participar na quermesse urbana globa-
lizada. Na civilização ‘lúdico-comercial’ em gestação, onde estes só podem fazer figura de des-
mancha-prazeres, o cliente é rei, a alteridade banida e o depravado odiado. Devemo-nos resolver,
portanto, a já não considerar a cidade do futuro sem ser através deste simulacro consensual de uma
urbanidade ressuscitada à qual injetaremos uma aparência de vida na ocasião de uma ‘manifestação’
cultural patrocinada pelos comerciantes ou de um ‘evento’ festivo programado pelas autoridades?
(Garnier, 2010)45

Esta lógica, segundo Garnier, entende por desenvolvimento e revalorização local


o apagamento dos indivíduos cuja presença possa prejudicar a imagem que se pretende
vender da cidade, mesmo sejam os seus habitantes por direito. Cria o ‘cidadão global’,
membro da sociedade dos cidadãos disciplinados e reprodutores de semelhança, protago-
nista da existência ‘móvel’ da rua animada ou do centro comercial, lugares de passagem
onde são simultâneas “(…) uma proximidade momentânea e uma separação imediata. (…)
A navegação transforma-se em gestão do risco. Na coexistência do tipo andar na rua, o
estranho é um obstáculo; o contacto é uma contrariedade e um atraso. Na rua, é impossível
não se estar ao lado dos outros. Mas tenta-se esforçadamente não estar com o outro.” (Bau-
man, 2007: 56).
o ‘espaço comum’ só pode emergir da ‘acção comum’. Quando a distância que
vai do ‘eu’ ao ‘outro’ se torna perceptível e percorrida, o que só é possível quando o corpo
se implica. Diz a filósofa Marina Garcés (2011) que o ‘nós’ não é um âmbito do social
mas uma experiência que transforma o social, que o ‘implicar-se’ é descobrir que a dis-
tância não é contrário da proximidade, “que não há cabeça sem corpo. Quer dizer, que não
se pod ever o mundo sem percorrê-lo e que só se pensa de maneira inscrita e situada.
Parece simples, mas é o mais difícil porque exige mudar o lugar e a forma de olhar.” (Gar-
cés, 2011)46

45
Ce souci de la « petite différence » avec ses semblables sera d’autant plus vif que la « grande » avec des
gens totalement autres aura disparu. Pour « vivre autrement la ville », selon le slogan des « opérations de
communication » lancées par les municipalités, le néocitadin ne devra jamais être confronté aux rencontres
inopinées, à l’étrange et l’inattendu. Bref, à ce qui faisait le sel de la sociabilité urbaine. Surtout si l’altérité
provient de ces gens qui, venus des banlieues proches ou lointaines de l’humanité, ne peuvent participer à la
kermesse urbaine globalisée. Dans la civilisation « ludico-commerciale » en gestation, où ceux-ci ne peuvent
que faire figure de trouble-fête, le client est roi, l’altérité bannie et le déviant honni. Doit-on se résoudre, dès
lors, à ne plus envisager la ville du futur qu’au travers de ce faux-semblant consensuel d’une urbanité ressus-
citée auquel on injectera un semblant de vie à l’occasion d’une « manifestation » culturelle sponsorisée par
les marchands ou d’un « événement » festif programmé par les autorités ? (Garnier, 2010)
46
(…) que no hay cabeza que no sea cuerpo. Es decir, que no se puede ver el mundo sin recorrerlo y que sólo
se piensa de manera inscrita y situada. Parece simple, pero es lo más difícil porque exige cambiar el lugar y
la forma de mirar. (Garcés, 2011)

o ‘ESPAço CoMUM’ 101


A distância é o meio para a proximidade, se o corpo nela se implicar. Retoma-se
assim a ideia de ‘abraçar a cidade’ proposta no início desta reflexão. Mas a produção de
espaço na cidade actual induz ao movimento em atenção instável. Como pode assim um
corpo abraçar? A possibilidade do ‘nós’ dissolve-se no ‘todos’. A possibilidade da proxi-
midade dissolve-se na abstracção do que é imenso e demasiado vago para ser tangível. As
cidades oferecem cada vez mais condições de percepção para a dispersão do olhar. Faltam
condições de percepção que suscitem o retomar do olhar, que levem a percorrer a cidade
para ir ver, não necessariamente algo que se apresenta mediado por programações e pro-
gramadores, mas simplesmente ‘ir ver’. Chegar a ver mesmo o que já lá estava.

o colectivo de arte pública IMPoSSIBLE SITES.dans la rue, coordenado pela


artista Giuditta Nelli, tem vindo a desenvolver desde 2008 uma prática persistente e con-
tinuada que toca estes aspectos. Com base no que designa como ‘ateliês urbanos’, os pro-
jectos desenvolvem-se através de um prática colaborativa gratuita e voluntária, com grupos
específicos e situados em diversas cidades italianas e de países do norte de África (até à
data). Alunos e outros habitantes, artistas, educadores, arquitectos, psicólogos, ou outros
profissionais consoante as especificidades dos contextos e entidades envolvidas (escolas,
centros de acolhimento, colectividades, etc), trabalham em conjunto na criação de dife-
rentes leituras sobre o espaço urbano quotidianamente vivido, tendo em conta as carac-
terísticas das dimensões social e política da vida colectiva em causa. Estas leituras derivam
da procura de ‘lugares impossíveis’ através do processo de concepção e utilização da câ-
mara estenopeica (também conhecida em português como ‘câmara pinhole’). Um meio
de captação de imagens (fig. 41 e 42) extremamente simples e de muito baixo custo que
consiste na transformação de uma qualquer caixa fechada (por exemplo, uma lata de feijão,
de bebida ou de biscoitos) em ‘câmara fotográfica’. o interior da caixa é pintado ou
revestido de papel preto e é feito um pequeno furo numa das faces (com prego ou broca).
Sobre este, pelo lado de dentro da caixa, é aplicado um rectângulo de folha de alumínio,
ou cartão, com outro furo (que se designa estenopo, por relação com a ‘câmara escura’),
realizado com uma agulha e a ficar centrado em relação ao primeiro. Através deste a luz
entra e projecta, no interior, uma imagem invertida da realidade sobre a face oposta que
se encontra revestida com um pedaço de papel fotográfico ou de filme. Com fita adesiva
isolante, colocada exteriormente sobre a zona do furo, é controlado o momento da entrada

o ‘ESPAço CoMUM’ 102


de luz. o tempo de exposição pode ir desde segundos até mais de uma hora. Assim, é con-
struído um instrumento de observação, e criação de imagem, que permite um modo de re-
lação com a realidade envolvente pelo qual se articula o exercício da subjectividade com
a prática de uma percepção crítica, pois todos os momentos do processo, desde a con-
cepção da câmara ao seu uso, revelação dos resultados e sua mostra, são acompanhados
pela interpretação comparativa de pontos de vista e argumentação sobre as opções nas
suas tomadas de posição. Nelli refere que se trata de relacionar lugares “físicos e emo-
tivos”, levando à reflexão sobre o habitar e partilhar espaço, estabelecida, sobretudo, du-
rante o próprio momento da travessia em conjunto pela cidade na procura e mapeamento
dos ‘lugares impossíveis’. Estes são, por outras palavras, lugares desejados mas aos quais
o acesso é interdito. Ao longo do processo, Nelli salienta frequentemente a importância
de ‘olhar diversamente’ a cidade que se habita.

Fig. 41 e 42. Fotografias estenopeicas (de Enrico Petracchi e Giovanni De


Leo) resultantes do workshop conduzido por Giuditta Nelli, organizado por
Deaphoto em colaboração com IMPoSSIBLE SITES.dans la rue, 13-14 No-
vembro 2010, Florença.

o ‘ESPAço CoMUM’ 103


os limites dos percursos habituais são assim ultrapassados, cada ‘operador’ (como
designa Nelli) toma consciência de ser ‘protagonista e autor’ do seu próprio olhar e, por
consequência, da/na cidade. Para tal, é determinante a percepção temporal específica que
a utilização da câmara estenopeica possibilita, considerada pelo senso comum como uma
técnica obsoleta dos primórdios da fotografia. o tempo de exposição é muito mais longo
do que o praticado de um modo geral pelos jovens nas câmaras digitais ou as câmaras dos
telemóveis. Entre a escolha do enquadramento e a captação da imagem o olhar é levado a
abrandar perante o que observa, o instântaneo habitual é necessariamente substituído pela
hesitação e pela duração, o que dá tempo para que outros transeuntes se interroguem sobre
o que esperam aquelas pessoas paradas, a observar, junto de uma caixa colocada sobre
um muro, assente num marco de correio, afixada a um poste, na berma de um passeio ou
num banco de jardim. Nos sítios de onde decidiram tomar o olhar sobre a cidade.
Abordemos como exemplo, dos vários possíveis, o projecto designado WIDE-
SPREAD STARES. Sguardi diffusi in azione e conversAzione (2010-11), realizado em
Génova (cidade com um complexo mosaico de diversidade cultural) em colaboração com
a Comune di Genova - Ufficio Cultura e città e Settore Musei, a Cooperativa Sociale
ONLUS “Il Laboratorio” e a Ente di Formazione Alberghiera Professionale “Città di
Lavagna”, tendo assim envolvido os vários profissionais destas instituições, alunos e
jovens frequentadores do centro social. Para além da oficina estenopeica realizada no in-
terior e na zona envolvente do Museo di Sant’Agostino, no centro histórico de Génova
(fig. 43), foram realizadas uma exposição e conferência, também no museu, publicados
um livro e um vídeo, e uma intervenção nas ruas com algumas das fotografias ampliadas
e aplicadas sobre outdoors habitualmente publicitários, nas quais constava a questão “Qual
é o teu lugar impossível?” (fig. 44). A exposição designou-se Sguardi in azione (fig. 45 e
46) e mostrou imagens documentais do projecto equivalente realizado em Marraquexe
(2010), em colaboração com o centro de ajuda para jovens em dificuldades Al Karam.
Funcionou como um território simbólico estruturado por um modo comum de indagar a
urbanidade em contextos culturais díspares. A conferência debateu arte, antropologia, me-
diação cultural e investigação social. Na opinião do colectivo IMPoSSIBLE SITES.dans
la rue,

o ‘ESPAço CoMUM’ 104


As potencialidades do laboratório foram testadas: garante a ausência de frustração, recompensa
sempre, gera autonomia, mas provoca a colaboração; cria competencias. outra força está na ca-
pacidade de envolver os espectadores: atraídos pelo fascínio de tirar fotos na caixa são incentivados
a participar e a reflectir. (...) As áreas percorridas pelo projecto são múltiplas, indo desde as rela-
cionadas com o trabalho sobre a responsabilidade e inclusão social, às relacionadas com a drenagem
da universalidade e da gestão de conflitos; o todo, usando ferramentas de artes visuais e de comu-
nicação, capazes de atingir o pequeno e o grande público. o aspecto mais importante consiste na
capacidade de criar, de forma eficaz, competências artísticas / expressivas / restituíveis tanto nos
jovens participantes como nos operadores, funcionários de organizações parceiras e portadores da
nova prática adquirida. o uso inovador do espaço na cidade, dos lugares consagrados à cultura
(museu) ou comunicação pública (cartazes) torna-os diversamente vivos num agir criativo e con-
sciente, que tem como verdadeiros protagonistas os jovens participantes. (IMPoSSIBLE
SITES.dans la rue, 2012)47

Fig. 43 e 44. IMPoSSIBLE SITES.dans la rue, WIDE-


SPREAD STARES. ULAB, ateliê urbano de fotografia
estenopeica (31 Maio-23 Junho de 2011), captação fo-
tográfica de ‘lugares impossíveis’ com caixa/câmara es-
tenopeica na Piazza Dante e detalhe da exposição
WIDESPREAD STARES. 6x3 (11-24 de outubro 2011)
nas ruas de Génova.

47
Le potenzialità del laboratorio sono state verificate: garantisce assenza di frustrazione, gratifica sempre,
genera autonomia ma spinge alla collaborazione; crea competenze. Altra forza sta nella capacità di coinvolgere
gli spettatori: attirati dal fascino del fare foto in scatola sono stimolati a partecipare e riflettere. (…) Gli ambiti
attraversati dal progetto sono molteplici, da quelli legati al lavoro sull'inclusione e la responsabilizzazione
sociale, a quelli attinenti l'eduzione alla mondialità ed alla gestione dei conflitti; il tutto, utilizzando strumenti
delle arti visive e della comunicazione, capaci di arrivare al piccolo ed al grande pubblico. L'aspetto più im-
portante consiste nella capacità di creare, fattivamente, competenze artistiche/espressive/restitutive sia nei
giovani partecipanti che negli operatori, dipendenti degli enti partner e portatori dell'acquisita nuova pratica.
L'innovativo utilizzo degli spazi della città, dei luoghi consacrati alla cultura (museo) o alla comunicazione
pubblica (affissioni) li rende diversamente vivi in un agire creativo e consapevole, che ha come veri protag-
onisti i giovani partecipanti. (IMPoSSIBLE SITES.dans la rue, 2012)

o ‘ESPAço CoMUM’ 105


Fig. 45 e 46. IMPoSSIBLE SITES.dans la rue, 2X WIDESPREAD STARES.
Sguardi in azione, detalhes da exposição no claustro do
Museo di Sant’Agostino, 7-23 de Junho 2011, Génova.

Trata-se de propor um modo de ver que é em si mesmo um processo criativo. A


câmara estenopeica não tem lente, não tem filtro, não permite a repetição nem a pré-vi-
sualização do enquadramento pretendido. Assim, implica um olhar em construção que tem
de indagar não só o detalhe a registar mas também o que está em redor, a ser surpreendido
com a imagem resultante que será, inevitavelmente, outra muito aquém da imaginada e
portanto em si mesma revelação de subjectividade sobre a realidade. o dedicado acompan-
hamento do projecto por Nelli, e os outros elementos do colectivo, garante que esta cons-
trução é partilhada entre os ‘operadores’, criadores e activadores do próprio dispositivo
que gera as imagens do território que lhes é comum. Por vezes, quando confrontados com
o conjunto dos resultados finais, surgem dúvidas sobre a autoria das fotografias, não por
esquecimento dos pontos de vista pessoais mas porque olharam juntos a cidade enquanto

o ‘ESPAço CoMUM’ 106


a percorriam. Experiência que para além de desenvolver pensamento e processo criativo
contempla ainda a possibilidade da apresentação pública dos resultados, a sua comuni-
cação. Neste sentido, considero que estas acções propostas pelo colectivo IMPoSSIBLE
SITES.dans la rue, conduzidas pelo lema o território somos nós, vão ao encontro de algu-
mas das ideias de Garcés (2006) quando reflecte sobre o ‘comum’, sobre o ‘nós’, na con-
sideração de que estas noções ocorrem através do ‘entre’ que vai de uma pessoa a outra,
quando

Desenhámos as coordenadas de uma dimensão comum. Apareceu um mundo entre nós. (...) Quando
levantamos a questão pelo nós entre nós temos os nossos olhares uns nos outros. (...) o entre que
há entre nós é hoje o lugar secreto da politização. (...) A libertação tem hoje a ver com a capacidade
de explorar e fortalecer o vínculo: os laços com um mundo-planeta, reduzido a objecto de consumo,
superfície de deslocações e depósito de resíduos, e os laços com esses outros, que condenados a
ser sempre outros, foram expulsos da possibilidade de dizer ‘nós’. (...) A pergunta pelo ‘comum’
hoje exige a coragem de se afundar na experiência do mundo, embora esteja nua e desprovida de
promessas. (...) Politizamo-nos quando nos inscrevemos no mundo de maneira conjunta. o mundo
é o que a globalização nos tem roubado e colocado diante de nós como espelho da impotência que
nos reduz a espectadores, consumidores ou vítimas. (Garcés, 2006)48

o ‘espaço comum’ na cidade de hoje só pode existir enquanto transversal ao ‘es-


paço público’ produzido pelo actual capitalismo, uma vez que no ‘público’ deste o
‘comum’ não encontra expressão. Como diagonais traçadas sobre uma quadrícula, o ‘es-
paço comum’ constitui-se pelas travessias dos que ousam retomar o olhar em harmonia
com o tempo do corpo que se implica num movimento conjunto de interrogação. Intersecta
as zonas delimitadas do plano estabelecido evidenciando assim o que as separa. No ‘espaço
comum’ o tempo abranda porque há um agir partilhado. A limitação de um pode ser re-
duzida pelo alcançe de outro. É um espaço que se configura através do traçado invisível
que vai de uma posição a outra, por entre as diferentes presenças, de modo semelhante ao
traçado das constelações. Como estas, embora temporariamente evidente, leva ao encontro
dos pontos cardeais.

48
(…) Hemos dibujado las coordenadas de una dimensión común. Ha aparecido un mundo entre nosotros.
(…) Cuando hemos planteado la pregunta por el nosotros entre nosotros, hemos puesto nuestras miradas unas
en las otras. (…) el entre que hay entre nosotros es hoy el lugar secreto de la politización. (…) La liberación
tiene hoy que ver con la capacidad de explorar el lazo y fortalecerlo: los lazos con un mundo-planeta, reducido
a objeto de consumo, superficie de desplazamientos y depósito de residuos, y los lazos con esos otros, que
condenados a ser siempre otros, han sido desalojados de la posibilidad de decir ‘nosotros’. (…) La pregunta
por lo común hoy exige la valentía de hundirse en la propia experiencia del mundo, aunque esté desnuda y
desprovista de promesas. (…) Nos politizamos cuando nos inscribimos en el mundo de manera conjunta. El
mundo es lo que la globalización nos ha robado y ha puesto frente nuestro como espejo de la impotencia que
nos reduce a espectadores, consumidores o víctimas. (Garcés, 2006)

o ‘ESPAço CoMUM’ 107


PARTE II – ATRAVESSAR

Uma vez entrados na cidade logo nos damos conta que entre nós e tudo o resto à
nossa volta há… a cidade. Entre o ponto de partida e o de chegada de qualquer direcção
que tomemos, inevitavelmente atravessamos a cidade. Atravessamos ruas, praças, arqui-
tecturas sempre na presença de outros, passando de lado a lado, por entre visibilidades e
invisibilidades. Questiono-me sobre o movimento da visão do corpo que atravessa, sobre
como é que o olhar acompanha o passo que o leva. Penso sobre a possibilidade de um
‘olhar posicionado’, na relação com a horizontalidade, por oposição ao ‘olhar panorâmico’,
cada vez mais verticalizado, que o actual modelo de produção de espaço urbano cultiva.
o primeiro, capaz de relacionar, contrapor e interrogar porque decorre podendo parar, he-
sitar, recuar, retomar e avançar entre o que está de um lado e do outro. o segundo, imerso,
difuso, vago pela velocidade e sequência ininterruptas que o conduzem. Este mantém a
distância e a indiferença, o outro estabelece proximidade e implicação porque ausculta a
medida do seu corpo na relação com o que o rodeia.

Pierangelo Schiera (2011), professor de História e Pensamento Político, propõe o


que considera ser um critério extremamente simples e geral para estudar a actual crise
política, económica e cultural europeia que é, exactamente, o critério de ‘medida’ como
princípio organizador da vida comum. Uma medida que possa ser reconhecida pelo próprio
homem que necessita hoje de se entender melhor, de poder medir as suas forças pessoais
na relação com os outros, com a sua cidade, mas também com a nova dimensão global
que o domina em cada dia. Trata-se de uma questão de ‘proporção justa’. As soluções
políticas actuais não se estabelecem nesta proporção face às situações existentes. Segundo
Schiera, temos de encontrar uma nova medida das coisas que significará uma verdadeira
revolução cultural, a única saída para o nosso mundo, e tal não é possível de se esperar de
uma organização política que está gasta, incapaz de se adaptar ao momento presente que
é de grande transformação, de revolução. os exemplos dos vários totalitarismos do século
XX comprovam o desajuste proporcional das medidas políticas tomadas que procuraram
alcançar tudo de um só golpe. Schiera alerta para a necessidade urgente de uma ‘huma-

PARTE II – ATRAVESSAR 108


nização da medida’ como factor dinâmico do comportamento do indivíduo na sociedade,
porque o Estado

(…) perdeu há muito tempo a sua ‘capacidade de medida’ e não pode dar mais respostas às neces-
sidades da ‘sociedade’. Para sobreviver, esta última deve, reciprocamente, elaborar uma nova cons-
ciência dos seus compromissos e tarefas. Mas tudo isso é impossível sem o esforço maior em
restabelecer a capacidade dos próprios homens para a ‘medida-própria’, para se reconhecerem nas
novas ordens que vão organizar a sua vida múltipla de acordo com novas lógicas. Capacidade não
é só conhecimento técnico ou ardil prático. Participa também do mundo extremamente móvel de
valores e esperanças, de princípios e ideais. (Schiera, 2011)49

Levar o indivíduo a atravessar a cidade para tomar uma visão sobre esta a ser ex-
pressa segundo a medida do seu corpo, é o intuito das três ‘propostas para acção’ a apre-
sentar em seguida, constituintes da prática artística paralela ao pensamento que aqui tem
vindo a ser delineado. As propostas Que cor tem agora o céu?, Para um estado encontro
e Livre Acesso podem, antes de mais, ser entendidas como auto-convocatórias à experiên-
cia de um imprevisível e temporário ‘espaço comum’ de onde recuperar o olhar sobre a
cidade, estabelecido pela determinação das coordenadas pessoais na diversidade interpre-
tativa possível de se elaborar e transmitir a partir de uma igualdade de meios e de acessos.
Enquadradas numa situação espacial partilhada, as acções a realizar fundem a corporeidade
com a produção de subjectividade, na atenção ao facto de que

Anteriormente, podemos imaginar um mundo no qual a anticipação intelectual representa uma


ajuda para a acção e permite chegar a um certo nível de universalidade. Hoje, a produção material
alimenta-se da produção intelectual, uma e outra estão interligadas e fazem parte do contexto
biopolítico. Sem produção intelectual não haveria o enorme poder do capitalismo. Ao mesmo
tempo, deve-se ser capaz de imaginar uma resistência plena na qual o elemento corporal e o ele-
mento intelectual sejam inseparáveis e que, em lugar de ser o terreno em que se consolida e se re-
formula a dominação capitalista, torna-se a própria matéria de uma nova organização da resistência.
(Negri, 2007) 50

49
(…) has lost long ago its ‘measure-capacity’ and cannot give any more answers to the needs of ‘society’.
In order to survive the latter must, reciprocally, elaborate a new awareness of its commitments and tasks. But
all this is impossible without the greatest effort of restoring the capacity of men themselves to ‘self-measure’,
to recognize themselves in the new orders which are going to organize their multiple life according to new
logics. Capacity is not only technical know-how or practical ruse. It also participates to the extremely mobile
world of values and hopes, of principles and ideals.” (Schiera, 2011)
50
Autrefois, on pouvait imaginer un monde dans lequel l’anticipation intellectuelle représentait une aide pour
l’action et permettait d’atteindre un certain niveau d’universalité. Aujourd’hui, la production matérielle est
nourrie par la production intellectuelle, l’une et l’autre sont enchevêtrées et font partie de ce contexte biopoli-
tique. Sans production intellectuelle il n’y aurait pas le pouvoir énorme du capitalisme. Du même coup, il
faut arriver à imaginer une résistance pleine dans laquelle l’élément corporel et l’élément intellectuel soient
inséparables et qui, au lieu d’être le terrain sur lequel se consolide et se reformule la domination capitaliste,
deviennent la matière même d’une nouvelle organisation de la résistance. (Negri, 2007)

PARTE II – ATRAVESSAR 109


As três ‘propostas para acção’ apresentam-se através de uma breve instrução escrita
que deve ser entendida, no que respeita às suas possibilidades interpretativas, à semelhança
de uma partitura musical. São um meio para a criação de ‘espaços de agir’, em afinidade
com o que referem os arquitectos Constantin Petcou e Doina Petrescu (2007), por relação
com as práticas do L’Atelier d’Architecture Autogérée (catalisador de micro-práticas e
micro-políticas espaciais desde 2001) do qual são fundadores,

(…) Metendo em causa o funcionamento estereotipado dos espaços normalizados, esses espaços
de agir podem tornar-se espaços de desaprendizagem dos usos sujeitos ao capitalismo e de re-
aprendizagem dos usos singulares, produzindo uma subjetividade coletiva e espacial própria aos
assuntos investidos . (...) o investimento no agir espacial deve permitir permanecer livre de sua
acção, livre de mudar, de parar, de se revezar. A liberdade de acção corresponde à capacidade de
transmitir (um projceto, uma acção, um movimento ...) mas também à de interromper, de suspender,
de introduzir um intervalo (auto)crítico num percurso subjectivo. (Petcou e Petrescu, 2007)51

A juntar à instrução escrita das propostas, os meios necessários à realização das


acções são familiares às qualidades e funções dos espaços em causa e as alterações na or-
ganização destes são à partida uma possibilidade na lógica do seu funcionamento. Nos
ateliês municipais (em Lisboa e Bruxelas) onde se realizou a proposta Que cor tem agora
o céu? foram instaladas duas mesas com materiais de pintura, uma cadeira do local e
quadros de cortiça para afixação de papéis. A sala da casa onde se realizou a proposta
Para um estado encontro estava vazia na consequência de obra de restauro do tecto, tendo-
-se apenas instalado um tapete. A proposta Livre Acesso realizou-se numa das salas de
uma biblioteca, à qual se acrescentaram três novas mesas de trabalho embutidas nos vãos
das janelas (apropriadas para uso quotidiano após o fim da proposta), cadeiras do local e,
sobre cada mesa, uma caixa com cartões pautados e lápis.
As três ‘propostas para acção’ articulam, de diferentes modos, questões rela-
cionadas com os três temas abordados na primeira parte desta reflexão, Paredes de vidro,
Limites com vista e O ‘espaço comum’. Não na rua ou na praça como provavelmente seria

51
(…) Mettant en cause le fonctionnement stéréotypé des espaces normés, ces espaces de l’agir peuvent de-
venir des espaces de dés-apprentissage des usages assujettis au capitalisme et de ré-apprentissage d’usages
singularisés, en produisant une subjectivité collective et spatiale propre aux sujets investis. (…) l’investisse-
ment dans l’agir spatial doit permettre de rester libre de son action, libre de changer, de s’arrêter, de se relayer.
La liberté d’agir correspond à la capacité de transmettre (un projet, une action, un mouvement…) mais aussi
à celle d’interrompre, de mettre en suspension, d’introduire un intervalle (auto)critique dans un parcours sub-
jectif. (Petcou e Petrescu, 2007)

PARTE II – ATRAVESSAR 110


expectável, mas a partir de um ‘dentro’ onde se proporciona um estado de atenção especí-
fico sobre como diferentes modos de ver o ‘mesmo’ podem convergir movidos por uma
acção comum. Tratam-se intencionalmente de espaços interiores, no centro da cidade, nos
quais as ‘propostas para acção’ catalizam a reflexão sobre as condições que no tecido ur-
bano podem tornar um espaço efectivamente ‘público’, mesmo que temporário, contra-
riando a ideia da condição indispensável de ser a ‘céu-aberto’ (condição que pode ser
ilusória, como sugerido na primeira parte desta reflexão). A realização das acções propostas
começa no momento em que a pessoa, sugestionada pelo título, atravessa a cidade di-
rigindo-se ao endereço anunciado na divulgação. Desloca-se então com o objectivo de ser
espectador do que, provavelmente, considera ser mais um evento cultural, mas na realidade
vai encontrar uma situação geradora de um mosaico de subjectividades onde a sua terá
lugar na composição do conjunto.

PARTE II – ATRAVESSAR 111


2.1. Que cor tem agora o céu?

1. Entrar na sala.
2. Sentar na cadeira junto à mesa.
3. Procurar o céu com o olhar.
4. Observar a cor de uma porção de céu.
5. Pintar na folha de papel uma amostra da cor observada.
6. Assinar e escrever a hora do registo da cor.
7. Fixar a folha de papel no quadro da parede.
8. Lavar o pincel, fechar os tubos de tinta, deixar o excesso
da tinta usada na paleta.

Estes são os oito momentos da acção a realizar pelo visitante/participante do pro-


jecto Que cor tem agora o céu?. Escritos numa folha de papel com a designação ‘proposta
para acção’ a entregar em mão, por mim, a cada pessoa no momento da sua entrada na
sala.
Que cor tem agora o céu? é uma instalação/acção a acontecer no centro de uma
grande cidade, num espaço/sala cuja função de origem seja a de um lugar de trabalho/cria-
ção (enquanto ateliê ou oficina, por exemplo). o espaço deverá ter uma janela da qual
apenas uma pequena porção de céu possa ser vista, delimitada pelas arestas dos volumes
dos edíficios ou outras construções envolventes.
A instalação/acção terá a duração das horas da luz natural que passa pelo espaço
ao longo de um dia, do nascer ao pôr do sol. A sua concretização será consequente da co-
laboração entre mim, os responsáveis pelo espaço em causa e todos os visitantes/partici-
pantes.

QUE CoR TEM AGoRA o CÉU? 112


Apenas uma pessoa poderá entrar na sala de cada vez consoante a ordem de
chegada. o momento da acção é individual, sem pré-definição do tempo para execução
da proposta (fig. 47-49). Enquanto a pessoa permanecer na sala, eu aguardarei no exterior
junto à entrada de modo a prestar apoio técnico na mistura de cor, caso seja solicitado.
No convite/divulgação da realização do projecto em Lisboa, lia-se:

Que cor tem agora o céu?


Olha-se o céu para responder à pergunta. Um movimento banal, à partida. Mas
identificar qual a cor do céu pode implicar mais do que apenas olhar. As possibi-
lidades do que (e como) se pode ver serão também determinadas pelo sítio de onde
se olha.
Na cidade, através de uma janela, numa sala há muito tempo construída para ser
lugar de criação, a percepção da cor do céu acontecerá através de uma acção
criativa. Pela soma dos olhares, de quem por lá passar, a razão de esta sala existir
e o questionar da efectividade do seu uso serão activados.
Na luz que durar do nascer ao pôr do sol, a cada um o seu tempo para ver o céu
que cabe na janela desconhecida, e talvez rever o que cabe do céu na janela que
é a sua (se a tiver) na cidade.
E se uma pergunta leva a um determinado sítio para que dele se veja a cor do céu,
será o percurso realizado até ali já uma parte desse ver?

Fig. 47, 48 e 49. Marta Traquino com a colaboração dos visitantes, Que cor tem agora o céu?, momentos de realizações da acção
proposta, 16 de Janeiro de 2010, Ateliê 50 – Coruchéus, Lisboa.

QUE CoR TEM AGoRA o CÉU? 113


Para além da luz natural, os outros materiais necessários são duas mesas e uma
cadeira (equipamento do local); um ou mais quadros/suportes de parede para fixação das
folhas de papel com as amostras de cor realizadas. A mesa ao pé da qual se coloca a cadeira
terá um conjunto de cores primárias em tubos de tintas acrílicas; pincéis espatulados; base
para secagem dos pincéis; espátula; paleta descartável (em bloco); pequeno recipiente para
água; rolo de papel para limpeza; bloco de papel aguarela com espiral de formato A6
aproximadamente; caixa de pioneses brancos; caneta de tinta da china (cinzenta); lateral-
mente, no chão, caixote branco para colocar papel sujo de tinta.
A outra mesa terá dois recipientes brancos de igual formato com água (para lavar
mãos e pincéis); um recipiente branco mais pequeno com sabão; rolo de papel para
limpeza; lateralmente, no chão, caixote branco para colocar o papel usado. Todos os re-
cipientes utilizados serão de plástico branco de diversos tamanhos. Próximo da porta de
entrada na sala, no exterior desta e em suporte de parede ou de chão (consoante o equipa-
mento existente no local) deverão estar as folhas da proposta para a acção a entregar a
cada visitante/participante (fig. 50-52).

Fig. 50 e 51. Marta Traquino com a colaboração dos visitantes, Que cor tem agora o céu?,
vista da entrada da sala e da instalação,
16 de Janeiro de 2010, Ateliê 50 – Coruchéus, Lisboa.

QUE CoR TEM AGoRA o CÉU? 114


Fig. 52. Marta Traquino com a colaboração dos visitantes, Que cor tem agora o céu?,
vista da instalação/resultados da acção proposta,
16 de Janeiro de 2010, Ateliê 50 – Coruchéus, Lisboa.

QUE CoR TEM AGoRA o CÉU? 115


Que cor tem agora o céu? realizou-se pela primeira vez no dia 16 de Janeiro de
2010 no Ateliê 50 que integra o conjunto de ateliês municipais dos Coruchéus, em Lisboa.
o projecto foi acolhido pelo grupo Nó - Colectivo de Colectivos coordenado por Nuno
Sacramento, ocupante do espaço no momento.
Ao entrar no edifício, o visitante/participante subia até ao terceiro e último andar
(fig. 53). Em cada piso, ao longo de um comprido corredor/varanda, no lado esquerdo dis-
tribuiam-se as portas dos vários ateliês e, no lado direito, tinha-se uma ampla vista de céu
aberto sobre o jardim que envolve o Palácio dos Coruchéus (o percurso ascendente real-
izado ao longo do edifício, pelas escadas e patamares, permitia o contacto visual perma-
nente com o exterior). o Ateliê 50 era o último, num dos topos extremos do edifício.
Foi utilizada a sala rectangular de pequena área, cuja parede de frente era quase
totalmente preenchida por uma janela. No centro desta encontrava-se a mesa com material
de pintura e a cadeira posicionadas de frente para a janela (fig. 54). A mesa com materiais
para a lavagem dos pincéis estava posicionada lateralmente, à esquerda, e três quadros
para fixação das folhas de papel estavam colocados na parede oposta à da janela.
Do interior da sala pouco céu se conseguia ver devido ao reduzido espaço existente
entre as traseiras dos edifícios e a altura destes. A porção de céu possível de se ver era
configurada pela massa arquitectónica circundante.

Fig. 53 e 54. Marta Traquino com a colaboração dos visitantes,


Que cor tem agora o céu?, vistas do acesso à sala e da instalação,
16 de Janeiro de 2010, Ateliê 50 – Coruchéus, Lisboa.

QUE CoR TEM AGoRA o CÉU? 116


Nenhuma pessoa recusou realizar a acção proposta e, em média, cada uma de-
morou 10 minutos (fig. 55). Não houve solicitação de apoio para a mistura de cores. Par-
ticiparam 45 pessoas ao longo de um período de 12 horas, aproximadamente. Estiveram
presentes cerca de 60 mas o desaparecimento natural da luz já não permitiu as restantes
participações. A acção decorreu das 06H30 às 18H22.

Fig. 55. Marta Traquino com a colaboração dos visitantes, Que cor tem agora o céu?,
detalhe dos resultados das acções,
16 de Janeiro de 2010, Ateliê 50 – Coruchéus, Lisboa.

Considerando o Ateliê 50 enquanto local intencionalmente escolhido para a real-


ização do projecto, há que salientar que foi tido em conta o carácter da utilização que o
conjunto de ateliês municipais no qual se integra tinha vindo a ter desde a sua inauguração.
Em alguns casos, os ateliês estavam a ser ocupados pelos mesmos utilizadores já há mais
de trinta anos. Tendo em conta a sua qualidade de estruturas municipais, poderiam dar re-
sposta a projectos artísticos com calendário e planos de trabalho concretos que dependem
da possibilidade da utilização temporária deste género de espaços físicos na cidade. Neste
sentido, Que cor tem agora o céu? questionava o sub-aproveitamento do potencial destes

QUE CoR TEM AGoRA o CÉU? 117


espaços de trabalho/criação ao longo de quase quatro décadas (quer pelo pouco ou nenhum
uso de alguns, quer pela inadaptação do tipo de uso praticado face às características dos
espaços), activando a função original de um deles, o Ateliê 50, através das acções criativas
de 45 pessoas realizadas durante um só dia, no curto tempo cronológico equivalente à luz
do dia 16 de Janeiro de 2010.
o resultado final, de carácter colectivo, é constituído por um conjunto de pequenas
folhas de papel com 45 amostras da cor do céu em diferentes momentos daquele dia, assi-
nadas pelos seus autores. Cada uma caracteriza-se pelos factores subjectivos inerentes ao
acto criativo proposto (cor, textura, forma, expressão, composição…). Será realizada uma
publicação/documento da acção (ainda em projecto) a conter a reprodução individualizada
à escala real de todas as amostras. Cada participante receberá um exemplar.

Na realidade, a acção proposta começa logo no momento em que a pergunta Que


cor tem agora o céu? é lida, ou ouvida, em qualquer dos suportes de divulgação do pro-
jecto. Começa no primeiro momento do acto perceptivo ao qual a pergunta induz. olhar
naturalmente para o céu é um gesto banal, quotidiano, mas o olhar como reacção à pergunta
será com uma qualidade de atenção específica, neste caso dirigida à tentativa de identificar
a cor do céu num exacto momento.
‘Cor’ e ‘céu’ são por si mesmas palavras potencialmente catalizadoras da imagi-
nação. Foi curioso constatar, por exemplo, a liberdade tomada por parte de alguns jornal-
istas na divulgação do projecto ao utilizarem imagens de céus escolhidas por si em vez da
imagem cedida para o efeito.
Lendo o pequeno texto que acompanhou a divulgação do projecto, tornava-se claro
que se tratava de um convite para a percepção da cor do céu a partir de um determinado sítio
na cidade, durante um determinado dia. Ao decidir participar, num momento desse dia a pes-
soa terá tomado uma direcção na cidade do seu ponto de partida ao local indicado para a
acção. Por outras palavras, uma das actividades daquele seu dia terá sido percorrer a cidade
com o objectivo de ir ver que cor tinha o céu a partir de um dado sítio. Não será, então, o
percurso realizado já uma parte desse ver? Não será já parte da sua ‘resposta’ à pergunta?
Várias possibilidades de olhar o céu terão ocorrido entretanto, porções de diferentes dimen-
sões e formas terão sido vistas, bem como cores diversas… todos estes dados gerados, ou
filtrados, pelas condições dos meios e circunstâncias dos momentos em que aconteceram.

QUE CoR TEM AGoRA o CÉU? 118


Chegando ao local anunciado para a instalação/acção, acresce ao decorrer deste
processo um espaço interior com as condições necessárias para que o sugerido acto de
olhar o céu se traduza na expressão de uma cor pintada sobre uma pequena folha de papel.
Um espaço de passagem no qual o tempo de permanência equivale ao tempo do fazer de
cada pessoa. Por vezes há tempos de espera, e então o tempo de permanência resulta da
soma dos tempos do fazer de diferentes pessoas. o encontro entre si acontece não apenas
pela conversa que pode surgir na partilha do motivo comum que as faz ali estar, mas tam-
bém no momento a sós em que cada uma afixa a sua amostra de cor na parede, con-
frontando-a com as outras realizadas pouco tempo antes naquele mesmo espaço em
circunstâncias equivalentes. Como se de uma “comunidade de estranhos” se tratasse, es-
tabelecida transitoriamente através da acção conjunta enformada pela expressão dos dife-
rentes modos de ver detalhes de um espaço e tempo comuns (fig. 56 e 57).

Fig. 56 e 57. Marta Traquino com a colaboração dos visitantes, Que cor tem agora o céu?,
vistas da espera para a realização da acção, 16 de Janeiro de 2010, Ateliê 50 – Coruchéus, Lisboa.

QUE CoR TEM AGoRA o CÉU? 119


Uma possibilidade afim da urgência actual em se pensar e compreender o siginifi-
cado do ‘estar em comum’ na cidade. Como refere a crítica de arte Chantal Pontbriand,
“(…) para além das comunidades exclusivas, as comunidades do Eu que se reconhecem
apenas através das características comuns, quer seja a linguagem, raça ou religião.” (Pont-
briand, 2000: 8)52. Um estar em comum com lugar para a representação do “ser qualquer”
que é “o ser que vem”, invocando as palavras de Agamben (1990).
A pergunta Que cor tem agora o céu? é dirigida a qualquer um, mas a acção su-
gerida como meio para a resposta é em si um processo de criação, e como tal será realizada
enquanto acto consequente de uma escolha pessoal ainda que o seu sentido se intensifique
por relação com o resultado conjunto (fig. 58-60). Como refere Agamben,

A passagem da potência ao acto, da lingua à fala, do comum ao próprio acontece sempre nos dois
sentidos, segundo uma linha de cintilação alternativa em que a natureza comum e singularidade,
potência e acto se tornam reversíveis e se penetram reciprocamente. (Agamben, 1993: 24)

Neste sentido, este projecto poderá fazer eco da declaração de onfray, quando diz
que “repolitizar a arte (não como uma arte política, no sentido militante do termo) implica
a introdução de um conteúdo capaz de produzir um ‘agir comunicacional’ segundo a ex-
pressão de Habermas.” (onfray, 2009: 162). Considerando aqui que político será qualquer
acto pacífico por parte do indíviduo que procura na cidade dos espaços públicos envidraça-
dos o seu espaço de representação. Lembrando a expressão da filósofa política Hannah
Arendt, um simples acto pode tornar-se uma acção política na esfera pública. Agamben
recorda que

A singularidade qualquer, que quer apropriar-se da própria pertença (…) é o principal inimigo do
Estado. onde quer que estas singularidades manifestem pacificamente o seu ser comum, haverá
um Tienanmen e, tarde ou cedo, surgirão os tanques armados. (Agamben, 1993: 68)

Algumas pessoas foram extremamente atentas aos dados físicos do espaço no qual
se encontravam por relação com a posição que nele ocupavam, procurando ser rigorosas
na amostra de cor realizada. outras pintaram antes uma amostra da cor do céu de acordo
com o seu estado de espírito. Na sua maioria diziam “obrigado” quando partiam. Porquê?

52
(…) beyond exclusive communities, that I communities that recognize themselves only through common
characteristics, whether language, race or religion. (Pontbriand, 2000: 8)

QUE CoR TEM AGoRA o CÉU? 120


Talvez a situação proporcionada tenha a ver com o que refere a crítica de arte Nathalie
Delbard: “Restituindo ao indíviduo a sua singularidade, a arte contemporânea permite-lhe
então encontrar um lugar. Enfrentando o mundo, no mundo, ele está pronto a sair de si
mesmo, pronto a ser uma zona de trocas.” (Delbard, 2000: 81)53.

Trata-se de uma proposta que se posiciona à margem do caudal do fluxo informa-


tivo que nos torna incapazes de agir, fluxo que nos remete para uma geografia virtual na
qual nos ausentamos da nossa temporalidade. Considerando o que refere o filósofo San-
tiago Kovadloff,

Um homem privado de subjectividade é um homem privado de discernimento, um homem que se


tem ausentado de si, banido da percepção temporal, isto é, da dinâmica da sua pessoa. E, se levar-
mos em conta a nossa caracterização da actualidade, diremos então que o homem do nosso tempo,
esvaziado de subjectividade, ao ficar à mercê da sucessão ininterrupta dos factos, perde o seu pre-
sente. Quando essa sucessão ininterrupta dos factos recebe o nome de ‘manchetes’ ou ‘notícias’, o
homem sem subjectividade que delas se alimenta, passa a constituir-se um telespectador. (Ko-
vadloff, 2007: 224)

Fig. 58, 59 e 60. Marta Traquino com a colaboração dos visitantes, Que cor tem agora o céu?,
momentos de realizações da acção proposta,
16 de Janeiro de 2010, Ateliê 50 – Coruchéus, Lisboa.

53
En restituant à l’individu sa singularité, l’art contemporain lui permet donc de retrouver une place. Face au
monde, dans le monde, il est prêt désormais à s’incliner hors de lui meme, prêt à constituer une zone
d’échanges. (Delbard, 2000: 81)

QUE CoR TEM AGoRA o CÉU? 121


Na origem, a criação deste projecto considera assim três domínios de questões ar-
ticulados entre si e que se relacionam com a especificidade da sala onde acontece em re-
lação com o edifício do qual faz parte (função, uso, dados formais, entre outros) e o seu
posicionamento na cidade; factores relativos às possibilidades de percepção visual do in-
terior para o exterior dos espaços edificados que quotidianamente vivenciamos (conotados
com dimensões sociais, psicológicas, económicas, e outras, tomando a ‘janela’ enquanto
dado semântico da morfologia arquitectónica pelo qual estas se podem subentender); a di-
mensão metafórica do acto criativo proposto ao visitante/participante, através do qual os
aspectos referidos podem ser activados pelo exercício da subjectividade individual, da
construção do ponto de vista pessoal, ou seja, pela criação como modo de acção.

No dia 22 de Maio de 2010 o projecto Que cor tem agora o céu? realizou-se em
Bruxelas no espaço moorDNoCES, em colaboração com a sua equipa, o Vienna Interna-
tional Apartment e visitantes/participantes (fig. 61-65). No futuro, deverá ser realizado
em mais cidades. A realização em diferentes cidades de diferentes países torna evidentes
as possibilidades de articulação entre dados locais e factores globais (sem que os segundos
anulem os primeiros), através da singularidade do indíviduo expressa em relação com o
espaço urbano que o envolve. Uma obra em desenvolvimento que aspira à ideia de Jacobs
de que as cidades têm a capacidade de proporcionar algo para todos só porque, e somente
quando, são criadas por todos, mas retendo-se, antes de mais, na atenção a como e de onde
se olha.

Fig. 61 e 62. Marta Traquino com a colaboração dos visitantes, What colour has the sky got now?,
momentos de realizações da acção proposta, 22 de Maio de 2010, moorDNoCES, Bruxelas.

QUE CoR TEM AGoRA o CÉU? 122


Fig. 63, 64 e 65. Marta Traquino com a colaboração dos visitantes, What colour has the sky got now?,
vistas da instalação/resultados das acções e da espera para a realização da acção,
22 de Maio de 2010, moorDNoCES, Bruxelas.

QUE CoR TEM AGoRA o CÉU? 123


2.2. Para um estado de encontro

1. Desenrolar o tapete no chão.


2. Sentar sobre o tapete de frente para a outra pessoa.
3. Permanecer em silêncio.
4. Escutar.
5. Trocar de lugar com a outra pessoa.
6. Permanecer em silêncio.
7. Escutar.
8. Enrolar o tapete conforme encontrado.

São estes os oito momentos que constituem a ‘proposta para acção a realizar por
duas pessoas’ do projecto Para um estado de encontro. Instalação/acção decorrida entre
21 de Novembro e 7 de Dezembro de 2011 (com prolongamento de três dias relativamente
à data inicialmente divulgada). A ‘proposta para acção’ apresentava-se em texto por mim
manuscrito, em folha de papel colocada na parede ao lado da janela de uma pequena sala
(planta 210x330 cms) que apenas continha um tapete enrolado, no tecto uma lâmpada
comum que iluminava tenuemente o ambiente no decair da luz natural e a sonoridade am-
biente de um ribeiro num bosque. o tapete enrolado posicionava-se no chão, ao centro,
podendo esta posição variar consoante as pessoas o deixavam após a realização da acção.
A sala era um dos espaços da minha casa, com entrada independente de acesso directo às
escadas do prédio, na Rua de ‘o Século’, Bairro Alto, em Lisboa (fig. 66).

Fig. 66. Marta Traquino com a colaboração dos visi-


tantes, Para um estado de encontro, vista do acesso à
sala, Nov.-Dez. 2011, Rua de ‘o Século’ 157-1º, Lis-
boa.

PARA UM ESTADo DE ENCoNTRo 124


Fig. 67. Vista do local do registo sonoro para o projecto Fig. 68. Marta Traquino com a colaboração dos visi-
Para um estado de encontro, tantes, Para um estado de encontro, vista da insta-
30 de Novembro 2011, Mata da Albergaria, Gerês. lação/resultado da acção, Nov.-Dez. 2011, Rua de
‘o Século’ 157-1º, Lisboa.

o tapete utilizado era um tapete berbere, produzido manualmente por tribo nómada
do Norte de África, de cores quentes, com padrão composto por linhas paralelas irregulares
e dois motivos geométricos abstractos, distanciados entre si, semelhantes mas não iguais.
Na casa à qual pertence é habitualmente estendido à entrada nos dias em que se aguardam
visitas de amigos. o registo sonoro instalado provinha da captação directa de som na
margem de um ribeiro num bosque (fig. 67 e 68). No primeiro momento de entrada na
sala o som do fluxo de água era imediatamente perceptível mas ainda em fusão com os
sons da rua, gerando dúvida sobre se era intencional ou acidental. Só após algum tempo
de permanência as pessoas conseguiam distinguir o som de pássaros, e outros, da natureza
do local do registo e perceber que o som, embora difuso, tinha origem do lado de lá de
uma das paredes da sala (o equipamento da instalação não se encontrava visível).
Na informação da divulgação do projecto não era explícito que se tratava de uma
casa de habitação. Era referido apenas o endereço Para um estado de encontro, as datas
de início e fim, o horário, o número de telefone através do qual deveria ser marcada a
visita até um dia antes do desejado, a indicação de que se tratava de uma proposta de in-
stalação/acção a ser realizada exclusivamente por duas pessoas em cada vez, com combi-
nação prévia, e o seguinte texto:

PARA UM ESTADo DE ENCoNTRo 125


Pela possibilidade da extensão de espaço.
Na escolha consciente da sua activação.

Para um estar convergente.

Pelo tempo que se dá na atenção que encontra.


Na matéria do que fluí.

Ao marcar a visita, a pessoa deveria indicar o dia, hora e os primeiros nomes das
duas pessoas em causa. Contemplava-se no mínimo 15 minutos para a duração de cada
visita/acção a realizar, mas poderia ser mais tempo consoante o fluxo de visitas agendadas.
Algumas pessoas chegaram a permanecer uma hora na sala, até à chegada do par seguinte.
Eram recebidas por mim no patamar do piso que tinha duas portas, a de acesso directo à
sala e, ao lado, a de acesso principal à casa. A entrada fazia-se sem sapatos. Após se
descalçarem eu abria a porta da sala para entrarem, indicava-lhes o tempo máximo de que
poderiam dispôr e pedia-lhes que tocassem à campainha da outra porta para me avisarem
quando saíssem. A realização da acção proposta era uma situação exclusivamente das duas
pessoas, não existindo assim qualquer tipo de registo documental realizado por mim sobre
a mesma. A porta da sala permanecia encostada ou fechada no trinco, conforme opção. A
janela poderia manter-se fechada ou aberta, as suas portadas de madeira poderiam também
ser livremente manuseadas para permitir a entrada de mais ou menos luz.
Quarenta e dois pares de pessoas realizaram o Para um estado de encontro. A do-
cumentação do projecto compõe-se de fotografias tiradas aos sapatos das pessoas conforme
deixados no patamar do piso, enquanto se encontravam dentro da sala a realizar a acção,
fotografias tiradas ao interior da sala após se irem embora (fig. 69-76) e dois pequenos
cadernos nos quais cada par registou a sua presença numa página escrevendo os respec-
tivos primeiros nomes, segundo lhes pedia antes de partirem (foram usados dois cadernos
formato A6 pautados, da capa lisa cinzenta).

PARA UM ESTADo DE ENCoNTRo 126


Fig. 69-74. Marta Traquino com a colaboração dos visitantes,
Para um estado de encontro, vistas após momentos de entrada e de saída das pessoas
da sala (instalações/resultados das acções), Nov.-Dez. 2011,
Rua de ‘o Século’ 157-1º, Lisboa.

PARA UM ESTADo DE ENCoNTRo 127


Algumas das pessoas telefonaram mais do que uma vez para agendar a visita, pois
tinham dificuldade em encontrar alguém que aceitasse o convite Para um estado de en-
contro. Houve até quem chegasse a referir que estaria disponível para aceitar a combinação
com alguém desconhecido, que de igual modo quisesse participar e não tivesse par, e que
pudesse nos mesmos dia e hora. Também houve quem marcasse mais do que uma visita
com diferentes convidados. A natureza das relações entre os elementos dos pares era di-
versa. Casais, amigos de longa data e amigos recentes, namorados na primeira semana da
relação, mãe e filha, colegas de trabalho que se viam todos os dias mas que nunca tinham
estabelecido uma conversa, uma pessoa que conhecia de vista outra de quem se desejava
aproximar, entre outros casos, de diversas faixas etárias e nacionalidades. Na realidade, a
acção Para um estado de encontro começava a ser realizada no momento em que alguém,
sabendo e desejando participar, decidia sobre com quem queria realizar tal acção e tomava
a inicativa em dirigir o convite. Continuaria depois pelo percurso que juntas (ou separadas)
fizessem pela cidade até à morada indicada.

Na sua essência, a proposta levava ao acto consciente, em livre-arbítrio, da acti-


vação e desactivação de um espaço possível para o encontro com o ‘outro’. o tapete en-
rolado era esse espaço em potência que poderia ser, ou não, realizado. Um espaço possível

Fig. 75 e 76. Marta Traquino com a colaboração dos visitantes,


Para um estado de encontro, vistas após momentos de saída das pessoas da sala
(instalações/resultados das acções), Nov.-Dez. 2011, Rua de ‘o Século’ 157-1º, Lisboa.

PARA UM ESTADo DE ENCoNTRo 128


para a proximidade, fisicamente delimitado mas simultaneamente aberto, a acontecer num
ambiente desconhecido mas cujas características induziam naturalmente ao ‘estar’, a um
‘estar com’. Acção que temporariamente personalizava o espaço encontrado sem no en-
tanto alterar a sua forma, para uma inesperada visão sobre o ‘outro’, provavelmente vendo-
-o de novo. Quando as pessoas partiam, o único indício da sua presença na sala residia no
reposicionamento do tapete enrolado, mantendo assim a possibilidade Para um estado de
encontro entre outros.

o tapete em causa era em si mesmo a presença de um ‘outro’, significante de uma


cultura para a qual, de modo diverso da cultura ocidental, os tapetes são muito mais do
que apenas adereços utilitários, decorativos ou luxuosos. Delimitam lugares simbólicos
para acções específicas como a oração, o convívio, a refeição, o descanso, o aquecimento
do corpo. onde se estendem configuram espaços de vivência nos quais identidade e
memória se recriam. São, portanto, lugares possíveis. Podem estar presentes em contextos
díspares e a sua qualidade de transportabilidade é praticada. São usados em casas da cidade
ou em casas rurais, são estendidos na rua ou na paisagem do deserto e das montanhas.
Sobre chão liso ou irregular. Ainda que sem paredes, estarão mais próximos do que poderá
ser uma ‘arquitectura’ de limites diluídos, como uma ‘obra-acontecimento’, do que a ar-
quitectura de Perrault (relacionando com a abordagem a esta nas páginas 71-74).

A acção Para um estado de encontro activava o potencial metafórico do tapete


berbere enquanto ‘arquitectura de horizontalidade’, trabalhando ideias que se contrapõem,
por exemplo, às inerentes ao ‘urbanismo vertical’ identificado por Tripodi (referido nas
páginas 43-45). Para os seus artesãos, o tapete terá sido a construção de um território de
expressão, de subjectividade, intimamente conectado com a sua vida quotidiana. No caso
específico dos tapetes barberes, os motivos e as cores introduzidos ao longo da tecelagem
podem ser alusivos a acontecimentos dos dias ou desenvolverem-se de modo orgânico,
intuitivo, sem ideia ou desenho pré-concebidos. Quando estendido, o tapete revela-se si-
multaneamente imagem fixa e espaço usável. Imagem vivida e a viver, da implicação cor-
poral no seu moroso processo do fazer aos usos a que se destina.
A presença do som do ribeiro na sala enfatizava o decorrer de algo em extensão
pelo chão, sobre terreno, na relação inevitável com a vista da janela para a rua. Tal sonori-

PARA UM ESTADo DE ENCoNTRo 129


dade será afim à da paisagem de onde terá procedido a matéria e o fazer do tapete berbere.
A água no seu constante fluir nunca é a mesma, mas no fundo do ribeiro há sedi-
mentos que permanecem e se vão transformando através de um decurso mais lento. Algo
de semelhante acontecerá num estado de encontro entre pessoas.

Como terá sido o enrolar e o desenrolar do tapete a quatro mãos? E a opção con-
junta da posição a ocupar na sala? E a decisão do momento da troca de lugares? Terá
havido consenso em relação ao silêncio e à escuta sugeridos? A ‘horizontalidade’ em causa
na acção proposta relaciona-se, na sua possível tradução para uma dimensão colectiva
mais ampla, com o que refere Marina Sitrin (2012), escritora, advogada e activista:

A horizontalidade é uma relação social que implica, como o seu nome sugere, uma superfície plana
sobre a qual se comunicar. Horizontalidade implica necessariamente o uso da democracia directa
e a luta por consenso, processos nos quais são feitos esforços de modo a que todos sejam ouvidos
e criadas novas relações. A horizontalidade é um novo modo de relacionar, baseado em política
afectiva e contra todas as implicações dos ‘ismos’. É uma relação social dinâmica. Não é uma ide-
ologia ou programa político que deve ser encontrado para criar uma nova sociedade ou uma nova
ideia. É uma ruptura com estes modos verticais de organização e de relacionamento, e uma ruptura
que é uma abertura. (Sitrin, 2012)54

Na sua reflexão sobre como encontrar o ‘nós’ na sociedade actual (e de nós se faz
o tapete berbere), Garcés (2006) refere que a privatização da vida tem sido acompanhada
de uma procura deseperada do ‘outro’, individual e cultural, mas que a pergunta por este
deveria ser antecedida da pergunta pelo ‘nós’, porque “encontrar o outro não é aceder ao
outro. Nem dar-lhe um sítio, simplesmente. Nem tolerá-lo, nem integrá-lo, nem estar mais
relacionado. Encontrar o outro é poder dizer ‘nós’. Que a nossa alteridade deixe de ser
um objecto da paisagem do outro para que passe a ser uma dimensão do nosso mundo
comum.” (Garcés, 2006)55

54
Horizontalidad is a social relationship that implies, as its name suggests, a flat plane upon which to com-
municate. Horizontalidad necessarily implies the use of direct democracy and the striving for consensus,
processes in which attempts are made so that everyone is heard and new relationships are created. Horizon-
talidad is a new way of relating, based in affective politics and against all the implications of ‘isms’. It is a
dynamic social relationship. It is not an ideology or political program that must be met so as to create a new
society or new idea. It is a break with these sorts of vertical ways of organizing and relating, and a break that
is an opening. (Sitrin, 2012)
55
Encontrar al otro no es acceder al otro. Ni hacerle un sitio, simplemente. Ni tolerarlo, ni integrarlo, ni estar
más comunicados. Encontrar al otro es poder decir nosotros. Que nuestra alteridad deje de ser un objeto del
paisaje del otro para que pase a ser una dimensión de nuestro mundo común. (Garcés, 2006)

PARA UM ESTADo DE ENCoNTRo 130


os tapetes berberes podem habitar mundos tão distintos como o dos acampamentos
e das casas humildes dos seus artesãos, algures pelo Norte de África, ou o das casas com
decorações sofisticadas, de gosto cosmopolita, nos países ocidentais. Pelo meio, atraves-
sam o trânsito do negócio através das fronteiras da Europa e dos E.U.A. que se abrem à
sua passagem, mas se fecham à dos seus criadores.
Ao escrever sobre vulnerabilidade, espaços e construção de fronteiras, Manuela
Ribeiro Sanches (2009), investigadora em Estudos Culturais, refere,

(…) assiste-se à mercadorização da diferença que parece vender sempre bem. o exótico torna o
próximo distante, tolerável, quando reduzido a mero enfeite multicultural (…) as grandes transna-
cionais sabem bem até que ponto a globalização não só fomentou o cosmopolitismo efectivo e o
democratizou como reforçou o paroquialismo mais limitado, a par das reivindicações em torno do
local. (Sanches, 2009: 160)

Quando o tempo disponível o permitia, até à chegada de outros visitantes/partici-


pantes, a mair parte das pessoas permanecia para conversarmos um pouco depois de re-
alizarem a acção. Não colocavam muitas questões mas sobretudo partilhavam as reacções
e sensações que tinham experienciado. Uma questão que de um modo geral se manifestava
logo de início era a de quererem saber se existia alguma câmara de filmar escondida dentro
da sala, pois estranhavam que eu, enquanto autora da proposta e sendo artista, não tivesse
necessidade de registar visualmente as situações. De facto, as pessoas que colocavam esta
questão eram as que à chegada tinham também ficado surpreendidas por eu lhes abrir a
porta da sala mas não entrar com elas, talvez para as guiar ou explicar algo. No entanto a
dúvida não as fez recuar ou sair imediatamente, o que leva a pensar sobre o tipo de relação
que as pessoas estabelecem hoje com a ideia de poderem estar a ser filmadas em espaços
interiores, mesmo quando à partida possa não existir qualquer motivo que o justifique. Al-
guns pares, segundo o disseram, debateram mesmo a questão entre si nos casos em que
uma das pessoas achava que era impossível não estarem a ser filmados e a outra achava
absurda tal suposição. Claro que inicialmente colocavam a hipótese de poderem estar num
espaço, ainda que informal, de exposições ou de outras inicativas de âmbito cultural. Só na
conversa comigo confirmavam tratar-se da minha casa.
Depois de ter sabido alguns detalhes sobre a natureza das relações entre as pessoas,
e sobre a coordenação (e descoordenação) entre elas durante a realização da acção, é curioso
ver como nos cadernos de presenças se posicionam os nomes dos pares no espaço da página,
entre si e por relação com as margens desta (fig. 77 e 78). Gaspar e Melchior, dois amigos

PARA UM ESTADo DE ENCoNTRo 131


de 6 anos que ainda não sabiam ler, foram acompanhados por mim. Agilmente sintonizados,
desenrolaram o tapete em menos de cinco segundos e sentaram-se sobre ele, lado a lado,
de frente para a origem do som do ribeiro. Não foi necessária alguma palavra minha ou a
leitura da proposta. Estiveram efectivamente em silêncio porque, de olhos fechados, iam
contando alternadamente os pássaros que ouviam cantar. os seus nomes ficaram escritos
bem juntos um do outro na página do caderno das presenças. Albertina e Ana, colegas de
trabalho há muito tempo, nunca tinham estado tão próximas… Sílvia disse no final à sua
amiga Catarina que nunca se tinha dado conta de como ela era tão bonita… André, acom-
panhado da sua amiga Verónica, dizia ter ‘recuperado o tempo do olhar’… algumas pessoas
comentavam como se tornaram mais conscientes de factores relativos à sua percepção visual
e sonora no momento da troca de lugar com o ‘outro’… em mais do que num caso o tapete
foi intencionalmente posicionado no chão segundo orientação paralela ao rio Tejo embora
este nem fosse visível da janela da sala…
o comentário mais comum era relativo à dificuldade de ficar a olhar em silêncio
para a outra pessoa, mesmo no caso de quem já se conhecia de longa data. No entanto, a
‘proposta para acção’ referia apenas sentar sobre o tapete de frente para a outra pessoa
mas não especificava nada sobre como ou para onde olhar.
Através da sobreposição temporária de espaços, de subjectividades e afectos não
previsíveis, da possibilidade de um ‘espaço comum’ ser momentaneamente activado num
lugar alheio, a acção Para um estado de encontro é, em extensão modesta mas efectiva,
uma prática da consideração do filósofo Peter Sloterdijk, segundo a qual “a esfera pública
não é só o efeito das pessoas se juntarem mas de facto recua à construção de um espaço
para as conter e no qual as pessoas juntas são, primeiramente, capazes de se juntar.” (Slo-
terdijk, 2005: 179)56.

56
The public sphere is not just the effect of people assembling but in fact goes back to the construction of a
space to contain them and in which the assembled persons are first able to assemble. (Sloterdijk, 2005: 179)

PARA UM ESTADo DE ENCoNTRo 132


Fig. 77 e 78. Marta Traquino com a colaboração dos visitantes, Para um estado de encontro, páginas do
caderno de presenças das pessoas que realizaram a acção proposta, Nov.-Dez. 2011,
Rua de ‘o Século’ 157-1º, Lisboa.

PARA UM ESTADo DE ENCoNTRo 133


2.3. Livre Acesso

1. Sentar na cadeira.
2. Tirar da caixa um cartão.
3. Escrever no cartão algo relativo ao percurso de hoje pela cidade até chegar à
biblioteca, assinar e datar.
4. Escolher um livro nas estantes.
5. Inserir o cartão dentro do livro.
6. Colocar o livro na estante com a fita do cartão visível.
7. Ler outros cartões inseridos nos livros.

Numa sala de leitura da Biblioteca Municipal Camões, em Lisboa, três pequenas


caixas abertas, cada uma em cima de uma mesa, continham manuscrita nas suas frentes a
‘proposta para acção’ composta por estes sete momentos e, nos seus interiores, cartões
pautados (formato A6), cada um com uma fita vermelha de tecido numa das extremidades,
possível de funcionar como marcador de página de livro. Esta proposta foi uma das duas
componentes estruturantes do projecto Livre Acesso realizado entre os dias 9 e 27 de Junho
de 2012. A outra, da autoria do artista Francisco Pinheiro, consistiu num mesa de luz (con-
cebida especificamente para o projecto) com uma instalação de desenhos compostos por
sombras de formas, realizadas com sal sobre placas de vidro, projectadas sobre folhas de
papel. As primeiras assentes num plano de vidro interno à mesa, as segundas assentes num
segundo plano de vidro paralelo ao anterior, superfície da mesa. As formas representavam
elementos orgânicos e inorgânicos recolhidos das margens do rio Tejo (avistável das
janelas da sala) e gravuras com este relacionadas provenientes de livros do espólio da bi-
blioteca. A mesa estava posicionada no centro da sala, paralela ao nível do rio. Sobre esta
obra faz-se aqui apenas breve referência ficando a devida abordagem para outro contexto,
uma vez que as questões que lhe são implícitas não se relacionam com o tema da reflexão
em causa.
Em vez de utilizar a sala de exposições da biblioteca, como seria suposto, o pro-
jecto Livre Acesso ocupou intencionalmente a sala de leitura que ainda tem as paredes
revestidas com as estantes mais antigas, a Sala das Artes e Cultura, e uma vista ampla das

LIVRE ACESSo 134


janelas sobre o Bairro da Bica, o rio e a outra margem (fig. 79 e 80). Durante o período de
tempo da realização do projecto a sala manteve a sua função habitual de consulta aos livros
nas estantes, disponíveis em livre acesso, mas as suas duas grandes mesas e cadeiras foram
transferidas para a sala de exposições. ou seja, esta passou a ser sala de leitura e, simul-
taneamente, a ‘expôr’ o acto de ler.
Para a realização da ‘proposta para acção’ foram instalados três tampos de MDF,
embutidos nos vãos de três das quatro janelas da sala (apenas por encaixe nos rebordos
existentes). Junto a cada um foi colocada uma cadeira e, em cima, a referida caixa e três
lápis. os tampos activaram novas zonas (mesas) de leitura que foram apropriadas para
utilização quotidiana da biblioteca após o fim do projecto. A outra das quatro janelas dava
acesso a um pequeno terraço sem função onde foi colocada uma pilha de livros, doados à
biblioteca mas ainda não catalogados. Compondo um pequeno ‘muro’ alinhado com o rio
Tejo, integravam-se nas cores e texturas da paisagem urbana, pautando uma potencial ex-
tensão da palavra das estantes para a rua (fig. 81).

Fig. 79. Francisco Pinheiro e Marta Traquino com a colaboração dos visitantes,
Livre Acesso, vistas geral da instalação/proposta para acção,
Junho 2012, Biblioteca Municipal Camões, Lisboa.

LIVRE ACESSo 135


Fig. 80 e 81. Francisco Pinheiro e Marta Traquino com
a colaboração dos visitantes, Livre Acesso, vista geral
da instalação/proposta para acção e vista da janela com
intervenção no terraço, Junho 2012, Biblioteca Muni-
cipal Camões, Lisboa.

LIVRE ACESSo 136


os funcionários da biblioteca foram os primeiros a realizar a acção proposta du-
rante o horário normal de trabalho no dia da apresentação pública do projecto, que acon-
teceu ao fim da tarde. Uma hora após o início desta já dezenas de fitas vermelhas eram
visíveis nas estantes, pendendo do interior dos livros (fig. 82-84).

Fig. 82, 83 e 84. Marta Traquino com a colaboração dos


visitantes, Livre Acesso (com Francisco Pinheiro), mo-
mentos de realizações da acção proposta, Junho 2012,
Biblioteca Municipal Camões, Lisboa.

LIVRE ACESSo 137


Durante as cerca de três horas que durou a primeira sessão do projecto, as pessoas
distribuiram-se na sala em volta da mesa dos desenhos, sentadas às mesas junto às três
janelas enquanto escreviam os cartões, à procura dos livros nas estantes onde introduzir
os cartões escritos, a consultar outros livros com e sem os cartões (fig. 85-87).

Fig. 85, 86 e 87. Marta Traquino com a colaboração dos visitantes, Livre Acesso (com Francisco Pinheiro),
momentos de realizações da acção proposta, Junho 2012,
Biblioteca Municipal Camões, Lisboa.

LIVRE ACESSo 138


No final da segunda hora foi realizada uma sessão de leitura colectiva, impro-
visada. Alternadamente, uma pessoa tirava da estante um livro com fita vermelha, lia
primeiro o conteúdo escrito do cartão introduzido e depois o conteúdo da(s) página(s)
onde o cartão se encontrava. No fim da leitura voltava a colocar o livro no sítio de origem,
momento em que outra pessoa prosseguia do mesmo modo. Nenhuma pessoa leu o seu
próprio cartão. As duas primeiras leituras eram realizadas por mim e pelo Francisco, depois
outras pessoas espontaneamente iam também participando. No total foram realizadas três
sessões de leitura colectiva (dias 9, 26 e 27 de Junho, 2012), cada uma com a duração de
cerca de 01h30 e ultrapassando as vinte presenças (fig. 88 e 89).

Fig. 88 e 89. Francisco Pinheiro e Marta Traquino com a colaboração dos visitantes,
Livre Acesso, momentos das sessões de leitura improvisada e colectiva,
Junho 2012, Biblioteca Municipal Camões, Lisboa.

LIVRE ACESSo 139


Ao longo dos dias, durante o funcionamento normal da biblioteca, o número de
fitas vermelhas dos livros foi aumentando. Qualquer pessoa que entrava na sala para ir
buscar um livro às estantes acabava por encontrar livros intervencionados com os cartões
e podia também realizar a acção proposta. No final do projecto contavam-se 94 cartões
escritos e introduzidos nos livros. o conteúdo da maior parte referia detalhes dos percursos
da rua até à bilblioteca, conforme era sugerido na proposta, mas outros revelavam detalhes
pessoais das vidas dos seus autores, alegrias, preocupações, encontros e desencontros. No
conjunto, ofereciam uma paisagem específica daqueles dias quentes de Verão sobre Lisboa,
sobre a situação política no país, sobre a biblioteca, sobre metereologia, sobre anseios e
desejos (fig. 90 e 91).

Fig. 90. Marta Traquino com a colaboração dos visitantes, Livre Acesso (com Francisco Pinheiro),
cartão escrito resultante de realização da proposta para acção, Junho 2012,
Biblioteca Municipal Camões, Lisboa.

LIVRE ACESSo 140


Fig. 91. Marta Traquino com a colaboração dos visitantes, Livre Acesso (com Francisco Pinheiro),
cartão escrito resultante de realização da proposta para acção, Junho 2012,
Biblioteca Municipal Camões, Lisboa.

LIVRE ACESSo 141


Numa tarde em que me encontrava a trabalhar numa outra sala de leitura da
bibioteca, um dos funcionários levou até mim uma senhora que tinha acabado de deixar
na recepção um recado escrito para me ser entregue, no qual se lia (em inglês): “Tenho 2
escritos que seria muito importante ficarem. Poderiam ter uma importância histórica se
pudessem permanecer. obrigado. Jill Campbell”. Seguido dos seus contactos e dos das
filhas, e as cotas dos livros nos quais tinha introduzido os cartões escritos. Tratava-se de
uma turista norte-americana, com cerca de setenta anos de idade, que atraída pela fachada
antiga do edifício da biblioteca resolveu entrar e encontrou por acaso a ‘proposta para
acção’ que realizou duas vezes. Viajava sozinha pela Europa com o objectivo de deixar
em cada cidade visitada um vestígio seu, de modo a construir uma rota a realizar pelos
netos após a sua morte. Em Lisboa, tinha naquele momento decidido que o seu vestígio
ficaria na estante daquela biblioteca municipal, nos dois cartões manuscritos introduzidos
nos livros (fig. 92). Conversámos e, naturalmente, o seu desejo gerou muitas questões
sobre a possibilidade de permanência dos cartões nos livros após o projecto finalizar, e
também sobre a confiança que as pessoas continuam a depositar no livro, na sua durabil-
idade, e nas bibliotecas como lugares de preservação da memória. Há a intenção de realizar
uma réplica de cada um dos cartões, acrescentando no verso a cota e número de página do
livro onde se introduzem, voltando a colocá-los nos respectivos lugares conforme deter-
minados pelos seus autores. Intenção ainda a acordar com a biblioteca, pois tal implicará
o seu compromisso em relação à gestão da possibilidade de extravio dos mesmos,
nomeadamente tendo em conta que qualquer um dos livros intervencionados pode ser re-
quisitado para o exterior. Entretanto, todos os cartões foram fotografados com os respec-
tivos livros e plano de páginas onde se encontravam.
o exemplo descrito revela uma espontânea ‘apropriação’ (afectiva, subjectiva) da
proposta artística (processual, colectiva, aberta) por parte de uma pessoa que, neste caso,
nela encontrou lugar para o desejo em deixar numa cidade desconhecida vestígios da sua
memória para os seus descendentes. Relaciono este dado com a convicção de que a arte
para ser ‘pública’ deverá possibilitar uma qualidade de experiência pela qual ‘a pessoa
qualquer’ pode tomar uma via, à sua medida, para se expressar. Sendo imprescindível,
para tal, a condição de ocorrer num espaço de livre acesso.

LIVRE ACESSo 142


Fig. 92. Marta Traquino com a colaboração dos visitantes, Livre Acesso (com Francisco Pinheiro),
cartão escrito resultante de realização da proposta para acção, Junho 2012,
Biblioteca Municipal Camões, Lisboa.

LIVRE ACESSo 143


Considerando como refere Brighenti (2010),

(…) o domínio público existe como ponto de convergência e na zona de indistinção entre processos
materiais e imateriais, por meio do qual um significado imaterial é criado através de actos de ins-
crição e de projecção material. (Brighenti, 2010b: 8) 57

Em questão está o entendimento de que a ‘publicidade’ de um espaço (no sentido


da qualidade do que é público) não está necessariamente no dar-se à vista de todos mas
sim na possibilidade de ser tocado por muitos (fig. 93-96).
A ‘proposta para acção’ na biblioteca pode ser considerada como uma proposta
para levar à ‘criação de um reservatório de linguagem’, no sentido do que refere o filósofo
Peter Sloterdijk, no seu texto intitulado Atmospheric Politcs (2005), ao considerar que a
arte de escrever é a técnica cultural que mais terá contribuído para o emergir da democra-
cia. Sloterdijk refere

Dar à palavra falada uma presença espacial, obriga mesmo a coisa mais fugaz do mundo a ficar
conosco um pouco mais de tempo do que seria possível num mundo puramente oral. o mundo
gravado ou petrificado pode, então, ser repetido, e deste modo novos objetos mentais podem ser
trazidos à vida (...) A res publica surge a partir deste acto de captar objectos. Se não possuir técnicas
adequadas para prendê-los, então não pode estabilizar acontecimentos fugazes e não lhes pode dar
voz no domínio político. Nesta medida, a democracia é precedida por uma dimensão pré-política na
qual os meios para retardar o fluxo do/s discurso/s se tornam disponíveis. (Sloterdijk, 2005: 180)58

57
(…) the public domain exists at the point of convergence and in the zone of indistinction between material
and immaterial processes, whereby an immaterial meaning is created through acts of material inscription and
projection. (Brighenti, 2010b: 8)
58
By giving the spoken word a spatial presence, it forces even the most fleeting thing in the world to tarry
with us a while longer than would be possible in a purely oral world. The recorded or petrified world can
then be repeated, and in this way new mental objects can be brought to life (…) The res publica arises from
this act of capturing objects. If you do not possess suitable techniques for arresting them, then you cannot
stabilize fleeting events and cannot give voice to them in the political domain. To this extent, democracy is
preceded by a prepolitical dimension in which the means to slow down the flow of speech/es is made available.
(Sloterdijk, 2005: 180)

LIVRE ACESSo 144


As sessões de leitura colectiva, cujo conteúdo derivou do facto das pessoas terem
realizado a acção proposta, podem ser tomadas como metáfora à luz da ideia que mais
adiante Sloterdijk expõe no mesmo texto,

A democracia depende da capacidade de emprestar uma dimensão espacial às coisas ditas uma
após a outra; como tal implica constante treino de paciência. Só aquele que levar isto sobre si
mesmo poderá ter certeza que não vai prejudicar a sua honra esperar pelo momento em que lhe é
dada a palavra. Assegurar que tal espera não é sentida para acarretar humilhação pode ser realização
cultural considerável e incomparável. (Sloterdijk, 2005: 181)59

Fig. 93. Marta Traquino com a colaboração dos visitantes, Livre Acesso (com Francisco Pinheiro),
cartão escrito resultante de realização da proposta para acção e respectivo lugar no livro
onde foi introduzido, Junho 2012, Biblioteca Municipal Camões, Lisboa.

59
Democracy depends on the ability to lend a spatial dimension to things said one after the other; it therefore
implies constant training in patience. only he will take this upon himself who can be sure that it will not
impair his honour to wait for the moment when he is given the word. Ensuring that such waiting is not felt to
entail humiliation can be considered and incomparable cultural achievement. (Sloterdijk, 2005: 181)

LIVRE ACESSo 145


os cartões escritos introduzidos nos livros das estantes da biblioteca levaram para
dentro desta um sopro da cidade lá fora, por quem ali chegava. Palavras anónimas e quo-
tidianas, por entre pensamentos inscritos e resguardados, na certeza de serem descobertas.
Intercepções entre o intencionalmente procurado e o imprevisivelmente encontrado.

Fig. 94 e 95. Marta Traquino com a colaboração dos visitantes, Livre Acesso
(com Francisco Pinheiro), cartões escritos resultantes de realizações da proposta
para acção e respectivos lugares nos livros onde foram introduzidos, Junho 2012,
Biblioteca Municipal Camões, Lisboa.

LIVRE ACESSo 146


Garcés (2008), ao interrogar-se sobre quando é que a palavra faz de facto algo
conosco, independentemente de todas as justificações que possa ter a sua necessidade, re-
fere que é precisamente quando desloca os muros da nossa auto-referencialidade, quando
nos põe em movimento e nos leva a pensar o que não sabemos. A ‘proposta para acção’
na biblioteca, da escrita do cartão à participação na sessão de leitura, pode ser tomada
como um acontecimento colectivo que se converte numa auto-convocatória no sentido
que refere Garcés, de ser o ‘nós’ aquilo que dá sentido ao acontecimento, ao contrário da
maior parte dos acontecimentos colectivos que a cidade oferece para audiências, públicos
ou clientes, de onde cada um volta a casa com

(…) a sua dose de conhecimento, diversão, emoção, mas nada saiu da sua pessoa singular, do seu
eu consumidor de experiências. É sabido que o saber e o conhecimento estão sofrendo um forte
processo de privatização, quer seja na forma de divulgação e transmissão através de instituições
cada vez mais fechadas, quer através do seu patentear. Mas na raiz disto, temos de levar em conta
que não só o conhecimento, mas também a experiência foi privatizada. A guetização social vai de
mão com uma guetização vital e experiencial que é um dos problemas chave que qualquer projecto
educativo deve enfrentar hoje. Como quebrar as paredes da auto-referencialidade que, paradoxal-
mente, organizam e compartimentam a sociedade da informação e da comunicação?
(Garcés, 2008)60

Concomitante com a ideia de Brighenti (2010) quando, evocando o pensamento


de Arendt (1958), afirma que é a experiência do ‘comum’ que define a esfera pública como
lugar onde as pessoas e as coisas podem ser vistas e adquirir o estatuto de ‘público’, ao
contrário da esfera privada que se caracteriza pela privação e domínio da razão económica.
o ‘comum’ não corresponde a uma entidade totalitária, indistinguível, mas é composto
por uma pluralidade de perspectivas que são e permanecem separadas.

o público, portanto, emerge no espaço entre a resistência invisível e a hegemonia normativa. (...)
o domínio público é um movimento que consiste numa série de sempre reversíveis apropriações
situacionais; é um território de afeição definido pela acessibilidade, visibilidade e resistência.
(Brighenti, 2010b: 40) 61

60
(…) su dosis de conocimiento, diversión, emoción, pero nadie ha salido de su persona singular, de su yo
consumidor de experiencias. Es sabido que el saber y el conocimiento están sufriendo un fuerte proceso de
privatización, ya sea en sus formas de difusión y transmisión a través de instituciones cada vez más cerradas,
ya sea a través de su patentización. Pero más en la raíz de eso, hay que tener en cuenta que no sólo el
conocimiento sino también la experiencia ha sido privatizada. La guetización social va de la mano de una
guetización vital y experiencial que es uno de los problemas clave que cualquier proyecto educativo debe
afrontar hoy. Cómo romper los muros de autorreferencialidad que de manera paradójica organizan y com-
partimentan la sociedad de la información y la comunicación? (Garcés, 2008)
61
The public thus emerges in the space between invisible resistance and normative hegemony. (…) The public
domain is a movement consisting of a series of always reversible situational appropriations; it is a territory
of affection defined by visibility, accessibility and resistance. (Brighenti, 2010b: 40)

LIVRE ACESSo 147


Neste sentido, a ‘proposta para acção’ Livre Acesso pode levar a ver a cidade que
há ‘entre nós’, através das diversas acções individuais tomadas pela orientação de um
movimento que é um processo colectivo. Uma possibilidade de inscrição no mundo de
maneira conjunta que, da perspectiva de Garcés (2006), é em si um modo de politização
porque desafia o poder que nos reduz a espectadores, consumidores ou vítimas, expro-
priados da nossa dimensão comum.

A soma de tu e eu não é dois. É um entre no qual pode aparecer qualquer. (Garcés, 2006)62

Fig. 96. Marta Traquino com a colaboração dos visitantes, Livre Acesso
(com Francisco Pinheiro), cartão escrito introduzido num livro,
resultante da realização da proposta para acção, Junho 2012,
Biblioteca Municipal Camões, Lisboa.

62
La suma de tú y yo no es dos. Es un entre en el que puede aparecer cualquiera. (Garcés, 2006)

LIVRE ACESSo 148


CONSIDERAÇÕES FINAIS (PARA UMA ‘ARTE CONVERSÁVEL’)

Caminhar hoje pelo centro de uma cidade com uma visão que ousa não se deter na
aparência superficial das suas materialidades, atravessando-as pela implicação do corpo,
é uma experiência que revela como a transparência do vidro é afinal opaca, como os dis-
cursos sobre diluição de limites pela arquitectura ou pelas ‘regenerações’ dos espaços su-
postamente públicos é apenas um exercício de estilo para quem faz negócio com a
diferença do outro, como o chão se enche de obstáculos enquanto cores e formas globa-
lizantes preenchem a verticalidade, fazendo esquecer que uma parede é muito mais do que
uma superfície. A actual produção do espaço tem vindo a criar condições para a prevalência
da visão unilateral, para a diferença como direito exclusivo de quem nunca atravessou as
fronteiras da diversidade, para a horizontalidade de acesso restrito.
Procurando entender como a cidade se dá a ver e a aceder, a atenção focou-se na
performatividade dos corpos face às configurações do espaço urbano. Não tanto a de movi-
mentos consonantes com estas mas sobretudo a de movimentos não expectáveis e, por
isso mesmo, reveladora de limites na urbanidade para além dos fisicamente visíveis porque
os interroga pelo acto de os atravessar. É o movimento transversal sobre as quadrículas
espaciais estabelecidas que evidencia o que está ‘entre’, possibilitando a visão bilateral e
descongelando o exercício da subjectividade acondicionado nos moldes da privatização
da experiência que o capitalismo contemporâneo produz.
Conciliando reflexão teórica e prática artística, investigaram-se zonas de con-
vergência entre características materiais comuns aos centros das grandes cidades ocidentais
e as imaterialidades das relações que as pessoas estabelecem com e através destas, partindo
da observação de acontecimentos de visibilidade, circulação, acessibilidade, apropriação
e resistência que constituem o ‘domínio público’ (Brighenti, 2010), visando a proposta de
alternativas à produção de memória e identidade conduzida pela prioridade do ‘ter’ sobre
o ‘ser’, realidade propícia a novos fenómenos urbanos como os motins de 2011 em
Inglaterra. Exemplo de como das materialidades da cidade se subentendem factos que lhes
são exteriores, implícitos aos usos induzidos pelos meios de acesso e de circulação de-
rivados das fracturas espaciais/sociais que geram distanciamento cognitivo/afectivo entre
o indivíduo e a cidade.

CoNSIDERAçÕES FINAIS (PARA UMA ‘ARTE CoNVERSÁVEL’) 149


Neste sentido, as ‘propostas para acção’ realizadas, e apresentadas nas páginas an-
teriores, assumem-se como uma prática artística pela qual a referida qualidade de movi-
mento transversal é tomada, e questionada, em temporalidades espaciais propícias à
consideração do modo de ver a cidade que a acompanha. Cidade que é, antes de mais, a
presença dos outros. Tal prática só é possível na condição de se posicionar fora do mer-
cado, uma vez que contempla as considerações que em seguida se afirmam, rumo a uma
‘arte conversável’.

Uma arte fora do mercado será uma arte que não se vende.
Será uma arte que se dá.

Toda a arte, qualquer que seja a sua expressão, dá-se sempre de algum modo. Dá-
-se a ver, a ler, a ouvir, a experienciar. Enquanto objecto ou como quando mais desmate-
rializada, no caso da dança, da performance ou da música, por exemplo. Mas no considerar
aqui o ‘dar-se’ por diferenciação e desvio do ‘vender-se’ está em causa algo que simul-
taneamente antecede e se estende para lá do modo de apresentação em si. Algo que
evolverá da tomada de decisão do artista em fazer com a exclusiva intenção de dar.

(a pensar: o que significa ‘dar’?…)

o ‘dar’ no sentido de ‘lançar de si’ para ‘dar lugar a’. Quando o artista abre uma
via para a expressão que proporciona espaço aberto ao estar e agir de outros. Como quando
uma pessoa se dá a outra, abrindo em si espaço para que esta nela tome lugar. Não
deixando ambas de ser quem são mas sendo através de uma visão que, por percorrer as
distâncias, se torna mais ampla. Como quando se conversa, podendo até acontecer quando
não se espera que aconteça.
Proponho então que uma arte fora do mercado será uma arte conversável. Não a-
presentará uma visão unilateral mas antes disponibilizará espaço a um possível centro de
convergência, uma possível estação para a coexistência do diverso. Assim, a imprevisi-
bilidade será condição da sua natureza. Característica que não é conveniente nem desejável
ao mercado da arte, pois a previsibilidade de movimentos dos que nele se movem não está

CoNSIDERAçÕES FINAIS (PARA UMA ‘ARTE CoNVERSÁVEL’) 150


apta a lidar com o que não espera. Uma conversa, se aqui tiver lugar, será sempre entre
parceiros.

(a pensar: o que significa ‘conversar’?…)

Pensando em centro de convergência lembro-me de um dizer do filósofo Agostinho


da Silva (1979), numa das cartas que dirigiu ao seu amigo José Flórido, sobre a necessidade
de tudo ter um centro e que quanto mais diversa e individualizada for a periferia melhor
será. Ideia em afinidade com as reflexões sobre a virtude do vazio do filósofo Lao Tse
(séc. VI a.C.), onde escreveu que trinta raios convergem para o centro mas é o vazio do
centro que faz avançar a roda. Relaciono também a ideia de uma arte conversável com a
ideia de vida conversável a que Agostinho da Silva se referia, defendendo a colocação do
‘e’ onde o ‘ou’ se encontrasse. Falo então de uma prática na arte que será espaço para o
encontro de singularidades individuais. o mesmo é dizer que será uma via para a comu-
nicação.

(a pensar: o que significa ‘comunicar’?…)

Neste sentido, a arte conversável será uma arte sem forma definível, porque nela
muitas formas são potencialmente possíveis. Deriva de um certo modo de fazer que é em
si uma proposta de um caminho percorrível por quem o quiser percorrer, sendo que entre
caminho e caminhante não haverá distinção. Como tal, não será possível captar um estilo
desta arte, o que é conforme a uma posição fora do mercado pois a vitalidade deste depende
de aparencias típicas localizáveis.
Nas vanguardas artísticas do século xx encontram-se nos percursos da desmateri-
alização da obra de arte, do observador participante e da morte do autor, da exploração
criativa do acaso e do efémero (consequentes da procura de fusão entre arte e vida, dando
ênfase ao processo e à experiência) exemplos de que mesmo de uma arte sem forma per-
manente é possivel elaborar um estilo. A documentação intencional de propostas deste
âmbito tornou-se ela mesmo vendável, como é o caso da fotografia de performances ou
do registo vídeo de obras de carácter processual, ou ainda do registo audio de instalações
ou eventos sonoros. A sua análise e interpretação podem levar a identificar e construir um

CoNSIDERAçÕES FINAIS (PARA UMA ‘ARTE CoNVERSÁVEL’) 151


estilo. Assim, paradoxalmente a documentação pode dar um corpo fixo à impermanência
desejada da forma. Mas para uma arte desta natureza significará a venda da sua documen-
tação que ela própria é vendável?
Um estilo será sempre delimitado. A sua prática limita a liberdade de movimentos.
Uma arte conversável, porque lhe é intrínseco o passar de lado a lado, não poderá ser iden-
tificável por um estilo. Não representa, antes propõe e acolhe. Revela-se enquanto acção
e revela pelos modos de acesso a si. Como arte que se dá, realiza-se pela sua recepção. o
dar e o receber são actos complementares.

(a pensar: o que significa ‘receber’?…)

Mas que espaços possíveis existem nas vidas de hoje, sobretudo na cultura oci-
dental, onde possamos dar ou receber o que é da ordem do imprevisível e da forma in-
definível?
Lembro-me aqui de algumas das reflexões do escritor Junichiro Tanizaki (1933)
no seu ensaio Elogio da Sombra, ao procurar entender as diferenças entre os olhares oci-
dental e oriental pelo modo como cada um destes se relaciona com a luz e com a sombra.
No desenho de um jardim, onde o primeiro priveligia um amplo relvado, o segundo prefere
um pequeno bosque sombrio. Nivelamento ou irregularidade. Imaginemos os efeitos do
percurso da luz, com os seus jogos de sombras, em cada um destes ambientes…
As ideias podem ser vendáveis mas não se pode vender o exercício do pensamento.
Assim como não se vende o movimento do corpo, embora os corpos se possam vender.
Uma arte fora do mercado será uma arte que não move dinheiro, será uma arte a mover
pensamento livre onde o momento em que o intraduzível acontece se pode suster, assim
como desejamos que aconteça quando sentimos o prazer de um encontro.

(a pensar: o que significa ‘encontro’?…)

Dar, conversar, comunicar, receber, encontro. Uma arte fora do mercado será uma
arte de persistência que se pratica em estado de atenção.

CoNSIDERAçÕES FINAIS (PARA UMA ‘ARTE CoNVERSÁVEL’) 152


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ÍNDICE DE FIGURAS

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Sculpture Garden. URL:
http://collections.walkerart.org/item/enlarge_fs.html?type=object&id=7673&image_num=1,
acedido em Mar. 2012.
Fig. 2. Sabine Hornig, No.4, 2003 (fotografia, 150 x 270 cm), Berlim. URL:
https://arttattler.com/archivesabinehornig.html, acedido em Mar. 2012.
Fig. 3. Sabine Hornig, The Destroyed Room, 2006 (fotografia, 100 x 159 cm), Berlim. URL:
https://arttattler.com/archivesabinehornig.html, acedido em Mar. 2012.
Fig. 4 e 5. Luciano Spinelli, da série fotográfica Acid sur Verre, 2010, Paris. URL:
http://www.lucianospinelli.com/#Acide-sur-Verre, acedido em Mar. 2012.
Fig. 6. Motins em Manchester, Agosto de 2011 (saque a loja em Sainsbury). URL:
http://www.dailymail.co.uk/news/article-2024203/UK-RIoTS-2011-David-Cameron-orders-po-
lice-come-hard-looters.html, acedido em Mar. 2012.
Fig. 7. Motins em Manchester, Agosto de 2011 (loja Esprit na Market Street). URL:
http://www.dailymail.co.uk/news/article-2024203/UK-RIoTS-2011-David-Cameron-orders-po-
lice-come-hard-looters.html, acedido em Mar. 2012.
Fig. 8. Loja Emporio Armani e Biblioteca John Rylands, Spinningfields, Manchester, 2012.
URL: http://citiesmcr.wordpress.com/2012/01/, acedido em Set. 2012.
Fig. 9. Detalhe de rua em Spinningfields, Manchester, 2012. URL:
http://citiesmcr.wordpress.com/2012/01/, acedido em Set. 2012.
Fig. 10. Cildo Meireles, Através, 1983-89, instalação no Palácio de Cristal, Parque del Retiro,
Madrid, 2001. URL: http://www.artnexus.com/Notice_View.aspx?DocumentID=7411, acedido
em Nov. 2012.
Fig. 11. Motins no centro de Manchester, Agosto de 2011 (montra de uma loja Nike). URL:
http://blogs.voanews.com/photos/2011/08/10/august-10-2011/, acedido em Set. 2012.
Fig. 12-17 e 20.Paulo T. Silva, Travessia de Fronteira – Parte I, 2007, Sala do Veado – Museu
Nacional de História Natural, Lisboa. Registos fotográficos de Daniel Malhão-DMF.
Fig. 18, 19 e 21-23. Paulo T. Silva, Travessia de Fronteira – Parte I, 2007, Sala do Veado –
Museu Nacional de História Natural, Lisboa. Registos fotográficos de Paulo T. Silva.
Fig. 24-27. Marta Traquino, Travessia de Fronteira – Parte II, 2007 (vista geral da instalação).
Sala do Veado – Museu Nacional de História Natural, Lisboa. Registos fotográficos de Marta
Traquino.
Fig. 28 e 29. José Luis Guerin, En Construccìon, 2001, (fotogramas do filme), Barcelona. URL:
http://cineyarquitectura.blogspot.pt/2008/08/en-construccin-1998-director-jos-lus.html, acedido

ÍNDICE DE FIGURAS 161


em Mar. 2012.
Fig. 30. Harun Farocki, In Comparison, 2009 (fotograma do filme), vários países. URL:
http://www.thelmagazine.com/imager/b/magnum/2207464/019d/12155.jpg, acedido em Mar.
2012.
Fig. 31. Dominique Perrault, Grand Theatre D’Albi, 2009-13 (simulação do edifício), Albi.
URL: http://www.perraultarchitecte.com/fr/projets/2545-grand_theatre_dalbi.html, acedido em
Mar. 2012.
Fig. 32. Christo e Jeanne-Claude, Wrapped Reichstag, [1971-95] 1995, Berlim. URL:
http://www.theartsdesk.com/sites/default/files/imagecache/mast_image_landscape/mastim-
ages/Wrapped%20Reichstag%20C%20Christo.jpg, acedido em Abril 2012.
Fig. 33. Mercado de Fusão, Praça do Martim Moniz, Junho 2012, Lisboa. URL:
http://www.guiadacidade.pt/pt/art/martim-moniz-com-mercado-de-fusa-o-103189-11,
acedido em Agosto 2012.
Fig. 34 e 35. c.e.m. –centro em movimento com a colaboração de habitantes e transeuntes do
local, Limpezas Performativas, 4 de Fev. e 4 de Março de 2011, Rua da Mouraria, Lisboa.
URL: http://www.c-e-m.org/?p=1045, acedido em Agosto 2012.
Fig. 36. Occupy Wall Street , acampamento no Zuccotti Park (Liberty Plaza Park), outubro
2011, Nova Iorque. URL:
http://money.cnn.com/2011/10/06/news/companies/occupy_wall_street_park/index.html,
acedido em Jun. 2012.
Fig. 37. Occupy Wall Street , acampamento no Zuccotti Park (Liberty Plaza Park), outubro
2011, Nova Iorque. URL:
http://publicdomainclip-art.blogspot.pt/2011/11/zuccotti-park-occupy-wall-street.html,
acedido em Jun. 2012.
Fig. 38. Occupy Wall Street , acampamento no Zuccotti Park (Liberty Plaza Park), outubro
2011, Nova Iorque. URL:
http://globetribune.info/2011/10/27/zuccotti-park-troubles-in-paradise/, acedido em Jun. 2012.
Fig. 39. Occupy Wall Street, The People’s Library, Liberty Plaza Park, Novembro 2011, Nova
Iorque.. URL:
http://globetribune.info/2011/10/27/zuccotti-park-troubles-in-paradise/, acedido em Jun. 2012.
Fig. 40. Philippe Ligniéres, Pas Lieu D’être, 2003 (fotograma do filme), Montpellier, Paris, Sète
e Toulouse. URL: http://traac.info/blog/?p=542, acedido em out. 2012.
Fig. 41 e 42. Fotografias estenopeicas (de Enrico Petracchi e Giovanni De Leo)
resultantes do workshop conduzido por Giuditta Nelli, organizado por Deaphoto em colabo-
ração com IMPoSSIBLE SITES.dans la rue, 13-14 Novembro 2010, Florença. URL:
http://www.deaphoto.it/Galleria%20Mostre/pinhole/content/Enrico_Petracchi_3__large.html,
acedido em out. 2012.

ÍNDICE DE FIGURAS 162


Fig. 43 e 44. IMPoSSIBLE SITES.dans la rue, WIDESPREAD STARES. ULAB, ateliê urbano
de fotografia estenopeica (31 Maio-23 Junho de 2011), captação fotográfica de ‘lugares impos-
síveis’ com caixa/câmara estenopeica na Piazza Dante e detalhe da exposição WIDESPREAD
STARES. 6x3 (11-24 de outubro 2011) nas ruas de Génova. URL:
http://www.facebook.com/events/201041776625277/ e
http://jajp.facebook.com/events/278733468818078/, acedido em out. 2012.
Fig. 45 e 46. IMPoSSIBLE SITES.dans la rue, WIDESPREAD STARES. ULAB, Sguardi in
azione, detalhes da exposição no claustro do Museo di Sant’Agostino, 7-23 de Junho 2011,
Génova.
Fig. 47-60. Marta Traquino com a colaboração dos visitantes, Que cor tem agora o céu?, 16 de
Janeiro de 2010, Ateliê 50 – Coruchéus, Lisboa. Registos fotográficos de Marta Traquino.
Fig. 61-65. Marta Traquino com a colaboração dos visitantes, What colour has the sky got
now?, 22 de Maio de 2010, moorDNoCES, Bruxelas. Registos fotográficos de Marta Traquino.
Fig. 66-78. Marta Traquino com a colaboração dos visitantes, Para um estado de encontro,
Nov.-Dez. 2011, Rua de ‘o Século’ 157-1º, Lisboa. Registos fotográficos de Marta Traquino.
Fig. 79-96. Francisco Pinheiro e Marta Traquino com a colaboração dos visitantes, Livre
Acesso, Junho 2012, Biblioteca Municipal Camões, Lisboa. Registos fotográficos de Marta
Traquino.

ÍNDICE DE FIGURAS 163

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