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FACULDADE DE BELAS-ARTES
DOUTORAMENTO EM BELAS-ARTES
Especialidade de Arte Pública
2012
i
RESUMO
ii
ABSTRACT
City, memory and identity, public space and construction of place, spaces of re-
presentation. What quality of artistic practice can act transversaly in these dimensions?
What is the potential of such practice for the (re)compositions of the individual’s memory
and identity in the present city? These are central questions for the upcoming reflexion,
resulting from a theoretical-practical transdisciplinary path, aware of vivencial and iden-
titary dimensions allowing an access to the world through the affirmation of existential
singularities facing the tendency for the absence of spaces of representation in the city,
resulting from programmed and evasive forms of acting of the contemporary capitalism,
mostly materialized in the characteristics of the so called ‘public spaces’. A critical ap-
proach will be taken about the valorization of the private space that proliferates in the city
centers nullifying the voice of difference, but also a look over the possibility of spaces for
spontaneous occupations that resist to the negative consequences of the regulated areas.
The first part will focus situations, materialities and specific actions of the urbanity,
catalyst or inhibitory of ‘memory’ and ‘identity’ updates (individual and collective),
crossed by the questioning arising from artists’ works. In the attention to the architecture
as a device of experiences that generate new problematics between ‘memory’ and ‘’iden-
tity’; taking the possibilities of their (re)compositions in the relationship with the indivi-
dual’s spaces of representation that faces the difference, sighting the occurrence of
‘common space’; considering the potential of the limits between areas in the development
of sociabilities.
The second part will present the artistic practice articulated with the developed
ideas. A trilogy of ‘proposals for action’, propitious to a recovered look over the city, on
the presence of the ‘other’, from points of view taken in interior shared spaces; for the ex-
perimentation of the essential for a space to become public, yet rare in the open spaces
available in streets and squares, supposedly accessible to all.
Keywords: city; difference; public space; common space; spaces of representation; pro-
posal for action; conversable art.
iii
AGRADECIMENTOS
A investigação da qual deriva o resultado que aqui se apresenta não teria sido possível
sem o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, no âmbito da Bolsa Individual de
Doutoramento que me foi atribuída.
O processo de trabalho foi acompanhado pela Professora Maria João Gamito, cuja clareza
e perspicácia de pensamento foram fundamentais à resolução de cada circunstância adversa
que surgiu.
O projecto Que cor tem agora o céu? em Lisboa contou com a colaboração de Nuno Sacra-
mento (acompanhamento do processo e cedência do espaço) e em Bruxelas com a cola-
boração de Sílvio Salgado, Jan Verbruggen, Francis Denys e Korneel Devillé
(acompanhamento do processo e cedência do espaço), Maria do Carmo Abreu (tradução
de conteúdos português-francês), Antti Kaski (estadia). O tapete berbere utilizado no pro-
jecto Para um estado de encontro foi cedido por Rui e Albertina Sousa. O processo do
projecto Livre Acesso foi desenvolvido conjuntamente com Francisco Pinheiro e contou
com o apoio da Biblioteca Municipal Camões (cedência do espaço), nomeadamente
através de Lithales Soares (acompanhamento do processo e mediação). Os três projectos
tiveram divulgação realizada por Rui Clemente e traduções de conteúdos português-inglês
por Ana Cristina Traquino. Para além destas pessoas, a concretização dos mesmos deve-
se também a quem realizou as ‘propostas para acção’.
Os dias, e dias, e mais dias, de todos os trabalhos foram ajardinados com carinho especial
pela minha família (Henrique, Odete, Cristina, Ricardo, Rita, Ana Luísa, Carolina), e pelos
meus amigos António C., Albertina S., Cristina E., Gaspar M., Rita C., Rui S., Samuel Z.,
Sofia N., Sónia B., Sílvio S., Susana S. e Verónica C..
iv
ÍNDICE
Introdução 1
Parte I – ENTRAR 13
1.1. Paredes de vidro 19
1.2. Limites com vista 48
1.3. O ‘espaço comum’ 79
Parte II – ATRAVESSAR 108
2.1. Que cor tem agora o céu? 112
2.2. Para um estado de encontro 124
2.3. Livre Acesso 134
Considerações finais (para uma ‘arte conversável’) 149
Referências bibliográficas 153
Índice de figuras 161
v
INTRODUÇÃO
A leitura que aqui se inicia deverá ter em conta que o pensamento e a prática artís-
tica delineados ao longo das páginas seguintes, propostos como tese de Doutoramento na
especialidade de Arte Pública pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa,
são antecedidos e consequentes de um percurso de reflexão realizado no âmbito de um
mestrado (pré-Bolonha) pelo Departamento de Sociologia do ISCTE que viria a dar origem
ao livro A Construção do Lugar pela Arte Contemporânea (Ed. Húmus, 2010). Neste
foram investigadas práticas de abordagem ao ‘espaço’ e ao ‘lugar’ pela arte em contexto
urbano, procurando, através de uma revisão crítica e actualizada sobre ‘arte pública’, es-
tabelecer as diferenças entre ambas tendo em conta modos de produção de espacialidades
e temporalidades pelas actuais dimensões económicas, políticas, culturais e subjectivas
originadas dos múltiplos processos que constituem a ‘globalização’ e a sua expressão na
cidade. Reteve-se que a abordagem ao ‘lugar’ surge quando a observação do ‘espaço
vivido’ foca aspectos mais subjectivos e singulares que podem não ser evidentes na aparên-
cia superficial das materialidades e mobilidades urbanas. Por outras palavras, se a abor-
dagem ao ‘espaço’ tem em conta o corpo com ele relacionado, quando o sentido de ‘lugar’
está em causa acrescenta-se a atenção à pessoa (Traquino, 2010). Como tal, ‘experiência’,
‘memória’ e ‘identidade’ constituem directrizes chave na investigação artística sobre o
‘lugar’, sendo os espaços de representação enquadramentos da expressão destas na cidade,
do encontro das suas (re)configurações, do individual ao colectivo e vice-versa. Relem-
brando os três conceitos que o filósofo Henri Lefebvre (1974) propôs para a observação
do ‘espaço’ (tomado enquanto realidade socialmente produzida), a prática espacial, a rep-
resentação do espaço e os espaços de representação (percepção, concepção e vivência do
‘espaço’, respectivamente), entendam-se os últimos como apropriações do espaço físico
da cidade pelas quais se evidenciam subjectividades e dimensões simbólicas resistentes
às práticas dominantes, podendo até transgredi-las (Traquino, 2010). Do ‘espaço público’
aos ‘lugares habitados’, foram então sinalizadas abordagens artísticas ao ‘lugar’ em con-
textos urbanos actuais e as suas origens, tendo-se aprofundado questões relativas às
(re)configurações da dimensão da ‘experiência’ e deixado as relativas às dimensões de
‘memória’ e de ‘identidade’ para reflexões futuras, ou seja, para as páginas que se seguem.
INTRoDUção 1
Cidade, memória e identidade, espaço público e construção de lugar, espaços de
representação. Que qualidade de prática artística pode actuar transversalmente a todas
estas dimensões? Qual o potencial de tal prática para as (re)composições de memória e
identidade do indivíduo na cidade de hoje?
A primeira parte desta reflexão focará situações, materialidades e acções específi-
cas da urbanidade catalisadoras ou inibidoras de actualizações de ‘memória’ e de ‘identi-
dade’, individual e colectiva, atravessadas pelo questionamento provocado por trabalhos
de artistas. Pretende-se perspectivar campos de acção possíveis que suscitem a percepção
crítica e criativa sobre a cidade por parte do indivíduo, com base no favorecimento da ex-
periência directa e situada com o ‘outro’, visando um sentido de ‘lugar’ possível de emergir
no espaço público. Este entendido pela necessidade de um (re)equacionamento sobre as
características que o definem como tal, tendo em conta a articulação entre actuais confi-
gurações espaciais (formais) e humanas (vivênciais), sempre na presença da heterogenei-
dade do habitante que aí se revela. Porque, na cidade
Somos, na verdade, o destino significativo que nos oferece o olhar do outro. Se o olhar do outro
não alicerçar a nossa presença numa significação solidária, estaremos irremediavelmente ausentes.
E a perda de significação pessoal inicia-se no momento em que somos avaliados como parte in-
diferenciada de um conjunto. (Kovadloff, 2007: 238)
Grande parte da população das grandes cidades é constituída por pessoas deslo-
cadas dos seus lugares de origem por necessidade de sobrevivência, facto que se irá acen-
tuar mais ainda num futuro próximo. Para estas pessoas, a ‘memória’ e a ‘identidade’ não
têm raízes num passado vivido em relação com a cidade onde habitam, estão ainda por
construir. Poderão apenas emergir a partir de experiências no presente, em grande parte
vividas nos espaços públicos da cidade onde os seus desejos possam, de algum modo, en-
contrar forma. Contudo, tal possibilidade é frequentemente camuflada por discursos políti-
cos que aparentemente a parecem contemplar, como acontece, por exemplo, nos que não
consideram claramente a diferença que existe entre ser habitante da cidade e cidadão da
mesma. A este último cabem direitos que o primeiro pode não ter, como os direitos políti-
cos, o direito a ter casa e à igualdade perante a lei. Como salientam os cientistas políticos
Robin Harper e Hani Zubida (2009), a cidadania é uma das bases mais importantes para
o sentido de pertença na nossa época, podendo ser utilizada tanto para incluir como para
INTRoDUção 2
excluir indivíduos, bem como grupos (mesmo em sistemas políticos supostamente
democráticos).
Num mundo que tende a categorizar e a classificar as pessoas, a cidadania tornou-se uma das iden-
tidades mais poderosas e importantes que uma pessoa pode possuir. (…) No entanto, apesar da sua
centralidade, a definição de cidadania impõe muitas barreiras. Na maioria dos casos, em vez de
uma definição inclusiva orientada para os direitos humanos, encontramos uma de segregação. Como
resultado, em muitos casos, a cidadania é usada para separar e não para incorporar. (…) o Estado
utiliza estes direitos e as obrigações como um mecanismo de exclusão, com o objectivo de manter
certos grupos na periferia ou fora da sociedade. (Harper; Zubida, 2009)1
(…) a lembrança é um processo tornado aparente para o sujeito experienciador através do encontro
contínuo e dinâmico entre o sujeito e o mundo material que ele ou ela habita em vez de uma
transacção abstracta e desapaixonada entre o mundo externo e a mente. Em vez de se tratar a
memória como uma função dos processos internos da mente humana, podemos considerar a memória
enquanto produzida através do encontro entre pessoas e o mundo material. (Jones, 2007: 26)
1
In a world that tends to categorize and classify people, citizenship has become one of themost powerful
and important identities a person can hold. (…) However, in spite of its centrality, citizenship definition im-
poses many barriers. In most cases instead of a human rights oriented, inclusive definition, one finds a seg-
regated one. As a result, in many cases, citizenship is used to separate and not incorporate. (…)The state
uses these rights and obligations as an excluding mechanism in order to keep certain groups on the periphery
of or outside society. (Harper; Zubida, 2009)
INTRoDUção 3
esquecendo como determinados processos políticos e económicos podem conduzir ou apa-
gar fontes de memória de determinadas sociedades, gerando assim estados de crise iden-
titária tanto a nível colectivo como individual. Processos que distanciam as pessoas da
sua relação com a cidade ou, até mesmo, a impossibilitam.
Qualquer Eu que não seja querido, trabalhado por uma força, esculpido por uma energia, consti-
tui-se por defeito com todos os determinismos que ocupam o seu lugar. Genéticos, sociais, famil-
iares, históricos, psíquicos, geográficos, sociológicos, são muitos os determinismos que modelam,
a partir de fora, um Eu que recebe selvaticamente todas as forças procedentes da brutalidade do
mundo. (onfray, 2009: 98)
Um dos fenómenos culturais mais interessantes dos nossos dias é o modo pelo qual a memória e a
temporalidade têm invadido espaços e média que pareciam entre os mais estáveis e fixos: cidades,
monumentos, arquitectura, e escultura. (Huyssen, 2003: 6-7)2
2
one of the most interesting cultural phenomena of our day is the way in which memory and temporality
have invaded spaces and media that seemed among the most stable and fixed: cities, monuments, architec-
ture, and sculpture. (Huyssen, 2003: p.6-7)
INTRoDUção 4
recem a intolerância e o conflito entre diferentes comunidades de habitantes (Burdet e
Sudjic, 2007).
Nós não pertencemos a uma geração com a fé apreciada e partilhada pelos pioneiros arquitectos
modernistas, quando fretaram um navio para atravessar o Mediterrâneo em agradável conforto e
desenhar a sua visão sobre o que a cidade moderna deveria ser na Carta de Atenas. Dividiram a
sua cidade ideal em zonas funcionais, moldadas por ângulos da luz do sol. (...) Estamos cheios de
dúvidas — ou pelo menos deveríamos estar. Nós somos as testemunhas de muitas azedadas utopias
urbanas inventadas pelos arquitetos naquela linha e propagadas por um sistema político que media
o sucesso pelo número de novos edifícios que podia entregar em cada mês. (...) Tratam-se de visões
de cidades como máquinas de fazer dinheiro, se não para transformar os pobres em não-tão-pobres,
que é o que atrai os ambiciosos e os desesperados para elas em primeiro lugar. Existem outros tipos
de visão que começam, como tantas visões urbanas têm feito, com uma tentativa de lidar com a
patologia da cidade. o Modernismo, apesar de tudo, foi, provavelmente, tanto sobre noções de
higiene como qualquer outra coisa. (Sudjic, 2007: 42)3
o problema real com a gentrificação, assim como com a criação de enormes áreas de habitação so-
cial, é que proíbe prosseguintes mudanças sociais ou físicas. (...) A versão de urbanismo mais rica,
subtil, efectiva é a do género que permite que as cidades se transformem e mudem com o passar do
tempo, em vez do género que congela um bairro numa forma particular. (Sudjic, 2007: 47)4
3
We do not belong to a generation with the shared faith enjoyed by the pioneer architectural modernists,
when they chartered a liner to cruise the Mediterranean in agreeable comfort and drew up their vision of
what the modern city ought to be in the charter of Athens. They divided their ideal city into functional zones,
shaped by sunlight angles. (…) We are full of doubt — or at least we should be. We are the witnesses to the
many soured urban utopias invented by the architects on that line and propagated by a political system that
measured success by the number of new buildings it could deliver each month. (…) These are visions of
cities as machines for making money, if not for turning the poor into the not-so-poor, which is what attracts
the ambitious and the desperate to them in the first place. There are other kinds of vision that start, as so
many urban visions have done, with an attempt to deal with the pathology of the city. Modernism, after all,
was probably as much about notions of hygiene as anything else. (Sudjic, 2007: 42)
4
The real trouble with gentrification, just as with the creation of huge swathes of social housing, is that it
prohibits further social or physical change. (…) The richer, subtler, more effective version of urbanism is
the kind that allows cities to mutate and change as time passes, rather than the type that freezes a neigh-
bourhood into a particular form. (Sudjic, 2007: 47)
INTRoDUção 5
A co-existência e a permeabilidade entre diferentes modos de uso do espaço não
constituem uma forma de caos mas, pelo contrário, representam uma forma de ordem com-
plexa e desenvolvida (Jacobs, 1961). Para quem são realmente concebidas as cidades de
hoje? Que usos da cidade são possibilitados? A quem e como? Que memórias e identidades
individuais e colectivas podem derivar desses usos? A historiadora urbana M. Christine
Boyer (1994) lembra-nos que o sentido contemporâneo do termo ‘público’ tem implícita
a ideia de uma construção universal que assume existir um todo colectivo, quando na re-
alidade o ‘público’ da cidade é fragmentado em grupos marginalizados. o sociólogo e his-
toriador Richard Sennett (2007) salienta que a arte de desenhar cidades nunca teve ao seu
dispôr tantos recursos, mas que estes não são utilizados criativamente devido a uma sobre-
determinação com respeito à visualidade das formas e às funções sociais. A experimen-
tação possível tem sido subordinada a um regime de poder que impõe ordem e controlo.
Na opinião de Sennett, falta ao urbanismo contemporâneo um ‘sentido de tempo’, pois
este entende o ‘crescimento’ da cidade como uma questão de apagamento e não de
evolução. Parece ignorar o facto de que o crescimento de um ambiente urbano requer um
diálogo entre passado e presente, e não simplesmente a substituição, muitas vezes gratuita,
do que existia antes. A estrutura de uma comunidade necessita de tempo e espaço para se
desenvolver, o que não é possível através de tal estratégia. Como alerta Sennett, esta ausên-
cia de ‘sentido de tempo’ leva a sociedades que são sistemas fechados, onde a imprevisi-
bilidade não tem lugar. onde qualquer experiência não prevista é rejeitada porque pode
contestar ou desorientar o equilíbrio estabelecido. Pelo contrário, uma sociedade aberta
permite a dissonância.
Já me perguntei que tipos de formas visuais podem promover esta experiência de tempo. Poderão
ser projectados por arquitectos? Que projectos podem contemplar relações sociais que perdurem
através de ser dada a oportunidade de evoluir e de transformar? (Sennett, 2007: 293)5
Por esta ordem de ideias, será contemplada uma aproximação à ideia de ‘comu-
nidade’ não necessariamente definida por grupos de linguagem, origem, convicções reli-
giosas ou outras comuns, mas antes direccionada pela interrogação sobre o que faz com
5
I have wondered what kinds of visual forms might promote this experience of time. Can these attachments
be designed by architects? Which designs might abet social relationships that endure through being given
the opportunity to evolve and mutate? (Sennett, 2007: 293)
INTRoDUção 6
que as pessoas se possam sentir ligadas mesmo sem se conhecerem, o que as faz mover,
por exemplo, no sentido da participação cívica. Acreditando que a cultura se faz nas mar-
gens entre as diferenças, como sugere Sennett (2007) ao considerar que as fronteiras e os
limites são lugares socialmente mais importantes na cidade do que o ‘centro’ de uma co-
munidade, e que a inclusão activa de múltiplas identidades é sinónimo de civismo. Assim,
a ideia de ‘comunidade’ a considerar será focada em acções de encontro e de partilha entre
sigularidades no espaço público, visando a criação de conexões que evidenciem a respon-
sabilização do indivíduo. Como sugere o filósofo Peter Pál Pelbart (2003), uma ‘comu-
nidade’ que contempla a imprevisibilidade porque consiste em seres únicos e nos seus
encontros. A importância da ‘comunidade de estranhos’, face ao facto de que
(...) a centralidade do lugar num contexto de processos globais engendra uma abertura econômica
e política transnacional na formação de novas reivindicações de direitos ao lugar e pertença. A
cidade emergiu como um local para novas reivindicações: pelo capital global que utiliza a cidade
como uma ‘mercadoria organizacional’, mas também por sectores mais desfavorecidos da popu-
lação tomando a mesma presença internacionalizada como capital. A ligação das pessoas ao ter-
ritório nas cidades globais é muito menos provável de ser intermediada pelo estado nacional ou
‘cultura nacional’. Há uma perda das identidades a partir de fontes tradicionais, como a nação ou
a aldeia. Este desamarrar da formação de identidade engendra novas noções de comunidade, de
filiação e de direito. Contudo uma outra maneira de pensar sobre as implicações políticas desse
espaço estratégico transnacional é a formação de novas reivindicações sobre esse espaço. (Sassen,
2007: 289)6
6
(…) centrality of place in a context of global processes engenders a transnational economic and political
opening in the formation of new claims for rights to place and belonging. The city has emerged as a site for
new claims: by global capital that uses the city as an ‘organizational commodity’ but also by disadvantaged
sectors of the population taking the same internationalized presence as capital. The linkage of people to ter-
ritory in global cities is far less likely to be intermediated by the national state or ‘national culture’. There
is a loosening of identities from traditional sources such as the nation or the village. This unmooring of
identity formation engenders new notions of community of membership and of entitlement. Yet another
way of thinking about the political implications of this strategic transnational space is the formation of new
claims on that space. (Sassen, 2007: 289)
INTRoDUção 7
mação da singularidade sem identidade, do ‘ter-lugar’, da perfeita exterioridade que não
comunica outra coisa que não seja ela própria. Tais práticas reafirmam a ideia de que
A noção de espaço público anda de mãos dadas com a cidadania social, de um contrato social trans-
cendendo os indivíduos e ligando-os através de um acordo tácito em princípios comuns. Espaços
públicos aparecem assim como ‘os sítios primários da cultura pública’ sem os quais a democracia
é severamente prejudicada. (Body-Gendrot, 2007: 358)7
Desse esvaziamento de subjectividade padecido pelo mundo psíquico fala-nos a crescente volatiliza-
ção do cidadão em favor do consumidor, como se pode verificar principalmente nas nações mais
desenvolvidas do ocidente. Fala-nos dela, a angústia perante a diversidade imposta pela figura do
estrangeiro, promovida pela tendência à uniformidade e à homogeneidade. (Kovadloff, 2007: 223)
o homem que perde o seu presente na cidade de hoje, e que nela também não en-
contra o seu passado (como acontece com grande parte dos habitantes das cidades) en-
contra-se privado da possibilidade de actualização da sua memória e da sua identidade,
ou melhor, da sua singularidade, do direito de ser, de ser na cidade.
7
The notion of public space goes hand in hand with social citizenship, of a social contract transcending indi-
viduals and linking them via an unspoken agreement on common principles. Public spaces appear then as ‘the
primary sites of public culture’ without which democracy is severely harmed. (Body-Gendrot, 2007: 358)
INTRoDUção 8
Na segunda parte da reflexão que se segue será apresentada a prática artística rea-
lizada em articulação com as ideias desenvolvidas. Uma trilogia de ‘propostas para acção’
apresentadas separadamente em tempos diferentes, em espaços não institucionais e com
pressupostos não vendáveis, mas com divulgação pelos diversos média de modo a garantir
a heterogeneidade dos visitantes/participantes. A partir da livre interpretação de breves ins-
truções escritas, durante o tempo da luz de um dia as pessoas passaram por um atelier para
olhar o céu da janela e pintar a sua cor, em várias tardes enrolaram e desenrolaram um
tapete no chão de uma casa para activar um espaço de encontro e ao longo de alguns dias
introduziram cartões escritos nos livros das estantes de uma biblioteca, compondo con-
teúdos para sessões de leitura colectiva improvisada. As acções aconteceram em espaços
interiores com janelas que se podiam abrir, espaços como ‘cápsulas’ de tempo onde abran-
dar, ou retomar, o movimento do olhar sobre o ‘outro’ e a cidade comum. Traços das pre-
senças e do resultado das acções passaram de umas pessoas para outras, presencialmente
ou mesmo apesar da ausência, comunicando a diversidade e complementaridade dos
modos de ver o mesmo a partir de espaço partilhado e com igualdade de acesso e de meios
de expressão.
As instalações que pela realização das acções por parte dos visitantes/participantes
iam sendo progressivamente desenvolvidas, de características harmonizadas com o fun-
cionamento quotidiano dos espaços, eram como estações de revelação do que é essencial
a um ‘espaço público’ para ser público, contudo raro nos espaços abertos à vista nas ruas
e praças, supostamente acessíveis a todos.
No conjunto, estas propostas partiram de convicções afins às do filósofo Michel
onfray (2006), quando refere
A ideia do puro instante não exclui a sua duplicação. A reiteração dos instantes contribui para a
formação de uma longa duração: não se começa pelo fim, não se fazem apostas sobre a destinação
de uma história, mas ela é pré-fabricada peça a peça. Deste modo, torna-se possível imaginar o
momento enquanto laboratório do futuro, seu crisol. o instante não funciona como um fim em si
mesmo, mas como momento arquitectónico de um movimento possível. (onfray, 2009 :125)
Na instrução escrita era definida, de modo sucinto, cada etapa dos movimentos do
corpo para o desempenho da acção proposta, contemplando a possibilidade de um tempo
personalizado. Se alguma imagem ou objecto derivasse do conjunto das acções realizadas,
seria de carácter colectivo, de forma aberta, mas com singularidades identificáveis pela
expressão da ‘medida’ de cada um. A natureza do conteúdo das propostas favorecia a sin-
INTRoDUção 9
tonia entre a percepção visual e a percepção física, em atenção ao facto de que é sobretudo
pela qualidade de experiência física de uma cidade que se subentende a qualidade da
democracia praticada.
Como se irá demonstar, trata-se de uma prática artística que se auto-convoca face
à urgência de motivação à imaginação crítica da cidade, à valorização dos ‘territórios de
passagem’ e das ‘narrativas em desenvolvimento’ (Sennett, 2007), aceitando voluntaria-
mente colocar-se sob o desafio de questões como as lançadas pelo ensaísta João Barrento
(2007):
Empenhar-se-ão a arte e a cultura do futuro em alguma forma de compromisso com a vida e a ex-
periência (para lá dos ‘interesses de divertimento’ hoje dominantes)? (…) Voltará o pensamento,
ultrapassando a actual bulimia de casos e factos, a ter aceitação na polis, a ter casa numa linguagem
audível e num espaço de diálogo? E a ética a ter de novo o seu lugar na estética?
Poderá a cultura do futuro, depois do mercado e da democracia mole, das concordatas sem confli-
tualidade produtiva, vir a ser uma cultura do sério (sem cair necessariamente no sisudo), quebrando
a ligeireza alienante da cultura da publicidade? Terá a arte ainda lugar numa sociedade
‘democrática’ global, totalmente americanizada, o que significa — mas por vezes esquecem-se
estes traços determinantes — imperial e puritana ressentida? (Barrento, 2007: 82-83).
A reflexão que se segue opera assim transdisciplinarmente, por entre várias áreas
de conhecimento, nomeadamente a Sociologia, a Antropologia, a Filosofia, a Arquitectura,
o Urbanismo, a História da Arte Contemporânea e a prática artística. As obras dos artistas
abordadas em articulação com as questões em causa, e outros géneros de intervenção em
espaços públicos da cidade, não foram previamente definidos ou tomados como pontos
de partida, antes surgiram em articulação com o progresso das ideias ao longo da investi-
gação realizada e em função da sua pertinência por relação com as opções que foram sendo
tomadas em diferentes momentos do processo da escrita, este por sua vez em constante
conecção com um conhecimento empírico da cidade no presente. Contudo, e prosseguindo
a natureza da conduta ética e conceptual da investigação precedente, foram valorizadas
propostas com base na experiência directa, na possibilidade de diálogo colaborativo, na
especificidade contextual, em modelos de acção e de sociabilidade situada, numa ‘estética’
do inter-humano, como resistência à formatação social sob influência dos média, de carác-
ter não objectual, acções e relações que se produzem num dado espaço físico e que sensi-
bilizam para o sentido de se habitar um mundo em comum.
Tendo em conta a temática em questão, pretendeu-se um desvio intencional da lin-
guagem e modos de discursos circunscritos ao ‘mundo da arte’, visando contribuir para o
INTRoDUção 10
posicionamento da prática artística no debate actual, e alargado a vários domínios, sobre
os problemas que a cidade enfrenta no presente e futuro próximo. Neste sentido, ao longo
dos últimos quatro anos foram extremamente enriquecedores os resultados da experiência
de contacto, de conhecimento dos trabalhos e da participação em conferências dos grupos
internacionais de investigação EastBordNet (CoST), CRESC (Manchester University /
open University), SIEF (Meertens Institute, Amesterdão) e on Walls (grupo independente
que integro). Destacam-se as conferências, respectivamente, Remaking Borders (2010),
Framing the City (2011), People make Places (2011) e Intertices: Carving (and Painting)
Urban Environments (2009).
A participação no Walkshop - Aqueduto das Águas Livres / Um percurso através
das realidades materiais e imateriais da metrópole contemporânea, realizado pelo grupo
Stalker em Lisboa (27- 30 de Maio, 2009), e o acompanhamento durante 2011 do processo
criativo do Pedras d’água 11 realizado pelo c.e.m. - centro em movimento, foram expe-
riências determinantes para a prática desenvolvida de observação da cidade, a primeira
explorando a aproximação progressiva ao centro, em travessia, a partir da periferia e a se-
gunda integrada em micro-geografias no coração da cidade e os seus ‘pequenos gestos’
quotidianos, através de acções retomadas e continuadas. Prática complementada pelo vi-
sionamento de cerca de quarenta documentários, a maior parte realizados na última década,
focados em temáticas relacionadas com migração, interculturalidade, arquitectura, urba-
nismo, identidade, memória e globalização.
A prática artística realizada com base em ‘propostas para acção’ tomou a criação
de ‘situações’ como ponto de partida, reveladoras do modo de fazer que lhes era intrínseco
e temporariamente autónomas de espaço e tempo. Situações para a experimentação de
possibilidades de expressão e de comunicação pelo encorajamento à participação, fundindo
o ‘diálogo’ que a pessoa estabelecia consigo mesma com o ‘diálogo’ estabelecido entre as
várias pessoas através dos resultados das realizações da acção proposta, proporcionando
(…) um ‘conjunto significante’ que expande os meios de expressão para incluir o audível, o visual,
o gestual, o espacial (…) o não ensaiado, etc, como práticas significantes que não só sustentam e
lubrificam o desejar e, portanto, o vir-a-ser, mas que, tomadas juntas como um conjunto temporal-
INTRoDUção 11
mente unificado, extraiem uma mais ampla participação do que a confinada à categoria de ‘arte’.
Numa situação, os enigmas que somos para nós mesmos e para os outros são a base de uma prática
comunicativa que, não mais confiante no conhecimento/poder, aprende a enunciar-se a si mesma
como produção de subjectividade (…) o desejo é o método, a comunicação emotiva é a metodolo-
gia. (Slater, 2001)8
8
(…) a 'signifying ensemble' that expands the means of expression to include the aural, the visual, the ges-
tural, the spatial, the abreactive, the unrehearsed etc, as signifying practices that not only sustain and lubricate
desiring and hence becoming, but which, taken together as a temporarily unified ensemble, elicit a far wider
participation than that confined to the category of 'art'. In a situation the enigmas that we are to ourselves
and to others are the basis of a communicative practice that, no longer reliant on knowledge/power, learns
how to enunciate itself as a production of subjectivity, a becoming, a new social relation. (…) Desire is the
method, emotive communication its methodology. (Slater, 2001)
INTRoDUção 12
PARTE I – ENTRAR
“Abracei a cidade e a cidade abraçou-me.”, diz Jonas Mekas num dos seus ‘filmes-diário’
mais recentes, no qual nos revela memórias da sua chegada e integração na cidade de Nova
Iorque. Nascido em Semeniskiai (1922), no norte da Lituânia, Mekas emigrou para os
E.U.A. em 1949 onde vive desde então, sendo uma figura de referência do cinema de van-
guarda experimental. Foi um dos muitos refugiados que deixou o seu país de origem nas
consequências da 2ª Guerra Mundial. É poeta e ‘um homem que filma’, conforme se auto-
designa, e não tanto um ‘realizador de cinema’ no sentido comum do termo. Como explica
numa entrevista, há cerca de doze anos,
Na realidade, todo o trabalho em filme é um filme longo que ainda continua... Na realidade eu não
faço filmes: apenas me mantenho a filmar. Eu sou um filmador, não um cineasta. E eu não sou ‘di-
rector’ de filmes, porque não dirijo nada. Apenas continuo a filmar. (Mekas, 2005)9
Mekas filma detalhes da vida diária, da sua, dos seus amigos, dos encontros. A mesa
com comida, os sorrisos em volta. Pensamentos, conversas e revelações. Momentos de
leitura, dança e música. Celebrações. o gesto de brindar com vinho em nome de alguém
querido e ausente é ‘assunto’ recorrente. Nos seus filmes nada de especial acontece, o que
faz com que tudo o que acontece perante a câmara seja assim potencialmente especial. São,
nas suas palavras,
(...) uma espécie de obra-prima de nada. Pequenas celebrações pessoais e alegria... milagres de
todos os dias, pequenos momentos de Paraíso. (Mekas, 2005)10
9
In reality, all my film work is one long film which is still continuing… I don’t really make films: I only
keep filming. I am a filmer, not a film-maker. And I am not a film ‘director’ because I direct nothing. I just
keep filming. (Mekas, 2005)
10
(…) a sort of masterpiece of nothing. Personal little celebrations and joy… miracles of everyday, little
moments of Paradise. (Mekas, 2005)
PARTE I – ENTRAR 13
registando a lembrança do que na/da sua vida mais tarde poderá querer partilhar com outros.
os seus filmes são memórias contadas, dão-se como poemas visuais e/ou pensamentos fal-
ados, fazendo o espectador ouvinte quase acreditar que faz parte da sua constelação íntima
de amigos.
Este homem que filma, e a sua obra, não são propriamente assunto das páginas que
se seguem, embora sejam referências cujo conhecimento motiva convicções que me movem
no que diz respeito a um certo modo de olhar (e praticar) a relação entre a arte e a vida.
Mais especificamente, e na aproximação com o tema em causa, no que diz respeito à qual-
idade de relação entre o indivíduo e a cidade que habita, pela possibilidade do sentido de
lugar emergente de uma prática consciente da subjectividade do primeiro, na percepção da
segunda. o percurso da presente reflexão foi por diversas vezes pontuado de encontros im-
previstos com as palavras e as imagens de Mekas. De um desses encontros retive a frase
citada no início deste texto, ouvida no visionamento da retrospectiva da sua obra apresen-
tada no festival DocLisboa 2009. Desde então, reverberações desta resplandecem frequente-
mente em momentos do meu pensamento crítico em torno das ideias de ‘comunidade’,
‘multiculturalismo’, ‘cidadania’, ‘espaço público’, e outras que integram os discursos
anexos a toda uma diversidade de propostas artísticas em contextos urbanos, de modo gen-
eralista designadas de ‘arte pública’. Ideias sobretudo utilizadas quando tais propostas de-
rivam de iniciativa camarária e ilustram, antes de mais, agendas políticas muito específicas
de grupos restritos, embora possam até argumentar elaboradas considerações pela hetero-
geneidade factual e crescente que caracteriza a população da grande cidade, sendo nestas
o ‘imigrante’ protagonista central sempre que se abordam questões de ‘diferença’ e ‘diver-
sidade’. Questões em si extremamente complexas mas que quando abordadas superficial-
mente continuam, ainda assim, a servir de argumento válido para eventos culturais e
atracções turísticas. Saliento, desde já, que no decorrer desta reflexão a ideia de ‘imigrante
na cidade’ poderá contemplar um sentido mais abrangente do que o do seu possível sig-
nificado imediato, pois se ‘imigrante’ é o ‘outro’ oriundo de um país diferente daquele em
que se encontra estabelecido, é certo que a presença deste também influi nas (re)com-
posições da memória e da identidade do autóctone através da sua percepção da cidade, tor-
nando-se este também um ‘imigrante’ não pela deslocação geográfica mas pela deslocação
de perspectivas no seu modo de ‘ver’ a realidade envolvente.
PARTE I – ENTRAR 14
Tomo a sugerida ideia de ‘abraçar’ uma cidade, e por esta ser ‘abraçado’, como um
diafragma para a minha óptica sobre modos e meios de relação entre o indivíduo e a cidade
de hoje. Como é que uma cidade ‘abraça’ uma pessoa? ou por outras palavras, o que leva
alguém a sentir-se ‘abraçado’ por uma cidade? Sobretudo quando a esta se chega em adulto
para começar uma nova vida, como acontece a grande parte da sua população (em alguns
casos, mesmo a maioria). Boas condições de acesso ao trabalho, à habitação, à saúde, à edu-
cação e ao estatuto de cidadão, são à partida as condições essenciais para que qualquer pes-
soa se sinta, podemos dizer, ‘abraçada’ por uma cidade, no sentido de se sentir acolhida,
recebida, participante. São condições básicas para que o processo de integração se possa
desenvolver, devendo ser exteriores à pessoa e pré-existentes à sua chegada., Contudo, no
domínio de acção que é o meu, da teoria e da prática artística que trabalha com ‘espaço’ e
‘lugar’ na cidade, interessa-me, antes de mais, pensar a qualidade da percepção do indivíduo
face ao que o rodeia na relação com estas questões, observando as cirscunstâncias que a
condicionam em contraponto com as que a podem catalizar e levar ao exercício e à prática
da subjectividade. Estou convicta de que esta última se encontra desvalorizada e em risco
no modelo da cidade capitalista contemporânea, produtora de imagens prontas a consumir,
onde a imaginação é congelada pela sucessão de estímulos visuais para a eficiência instan-
tânea.
A prática da subjectividade é, na realidade, uma travessia entre interior e exterior,
através dos limites do corpo. Um processo que, como tal, necessita de um tempo próprio
ao indivíduo. É neste sentido que me serve de mote a referida frase de Mekas, entendida
enquanto enunciação metafórica que remete para a importância da antecipação de um movi-
mento deliberado do corpo, direccionado à realidade envolvente. o corpo emancipado e
não expectante, pois quando se abraça é-se movido pelo desejo de reduzir a distância entre
si e algo, ou alguém. Quer seja um movimento corpóreo, ou no plano das ideias, trata-se
de experienciar a aproximação através da medida própria, a da abrangência do braço ou da
capacidade de visão (no sentido ocular e do pensamento). Para tal, uma direcção tem de
ser tomada, pois no movimento do abraço vai-se ao encontro do que se quer tornar próximo.
Sabemos que o facto de vivermos os nossos dias numa cidade não significa obriga-
toriamente que tenhamos uma relação de proximidade com esta. Basta a este respeito pen-
sar, por exemplo, no caso dos imigrantes portugueses em Paris oriundos da vaga de
emigração de há quatro ou cinco décadas atrás. Será uma minoria a que relata um conhe-
PARTE I – ENTRAR 15
cimento da cidade que ultrapasse a circunscrita geografia dos percursos e universos quo-
tidianos entre a casa e o trabalho, sendo a família ou outros membros da comunidade por-
tuguesa os protagonistas recorrentes das vivências memorizadas e comunicadas com maior
ênfase. Evidentemente, causas como as de carácter económico ou, entre outras, a natureza
fragmentária da estrutura espacial das cidades, que pode ganhar evidência, por exemplo,
com défice de infra-estruturas que permitam a devida mobilidade entre centro e periferia,
deverão ser consideradas neste distanciamento cognitivo e afectivo para com a cidade na
qual se vive durante décadas. Distanciamento que anula as possibilidades da (re)composição
(ou actualização) da memória e da identidade do indivíduo que derivam, e só podem derivar,
do confronto e relação com a diferença que a cidade permite. Como nos lembra o sociólogo
Zygmunt Bauman,
Seja qual for o futuro das cidades, e por muito que o seu traçado mude, ou mudem o seu aspecto e
o seu estilo, ao longo dos anos e dos séculos, haverá uma sua característica que continuará sempre
presente: as cidades são lugares de desconhecidos que convivem em estreita proximidade. (Bauman,
2006: 33)
(…) estão pré-destinados a permanecer na sua zona, o que faz com que seja lógico e forçoso pre-
sumir que centrarão toda a sua função, com todas as suas queixas, sonhos e esperanças, nas questões
ligadas ao seu lugar. A sua luta pela sobrevivência e por um lugar digno no mundo — luta que, por
vezes, ganham, mas fundamentalmente perdem — tem por cenário o interior da cidade que habitam.
(Bauman, 2006: 24)
PARTE I – ENTRAR 16
Para os outros que vivem em condições económicas privilegiadas, dispondo assim
de mais meios e qualidade de tempo para viver a cidade, a proximidade com as ruas tende
a ser escassa, em alguns casos até inexistente. Tendencialmente prevenida por muros e câ-
maras de vigilância que garentem o cultivo da uniformidade, a antítese da diversidade que
é o maior contributo que a cidade pode proporcionar para a ampliação dos horizontes cog-
nitivos dos seus habitantes. A dimensão perceptiva sobre a realidade envolvente é, assim,
voluntariamente limitada e desinteressada de pontos de vista afins aos de Sennett, quando
considera que a cidade
(...) não é apenas um lugar para viver, fazer compras, sair e ter os filhos a brincar. É um lugar que
implica em como nós conduzimos a nossa ética, como desenvolvemos um sentido de justiça, como
aprendemos a falar com pessoas (e aprendemos delas) que são diferentes de nós, trata-se de como
um ser humano se torna humano. (Sennett, 1989: 84)11
11
(…) isn’t just a place to live, to shop, to go out and have kids play. It’s a place that implicates how one
derives one’s ethics, how one develops a sense of justice, how one learns to talk with and learn from people
who are unlike oneself, which is how a human being becomes human. (Sennett, 1989: 84)
PARTE I – ENTRAR 17
Sobre os tópicos sugeridos, e outros relacionados, dedicarei as páginas que se
seguem. De momento, e concluíndo assim a minha insistência na ‘visita’ de Mekas no de-
curso destas primeiras páginas, guardemos em mente que o modo como ‘abraçou’ a cidade
desconhecida foi a pé e com uma câmara de filmar na mão. A este propósito, e reflectindo
sobre o modo como Mekas figura a memória através do acto de filmar, refere Genevieve
Yue, investigadora em Estudos Críticos:
Mekas filma o mundo exterior como o seu interior, e é como se não houvesse distinção entre os
dois. (...) No outro ambiente industrial de Nova Iorque, a insistência de Mekas em filmar temas
naturais, como flores e árvores e neve foram uma via para reposicionar a Lituânia rural de sua in-
fância. A aleatoriedade aparente e a natureza imprevisível dos seus disparos são de facto cuida-
dosamente reconstruídos e ligados entre si pela memória. Como observa Scott Nygren, essas
imagens estão ‘cheias de significado através da memória, através do que está ausente da tela. (Yue,
2005)12
(...) ler em e através de diferentes camadas e estratos da cidade requere que os espectadores esta-
belecem um jogo constante entre superfície e profundas formas estruturadas, entre alusões pura-
mente visíveis e intuitivas ou evocativas. (Boyer, 1994: 19-21)13
12
Mekas films the outside world as his interior one, and it is as if there is no distinction between the two.
(…) In the otherwise industrial environment of New York, Mekas’ insistence on filming natural subjects
like flowers and trees and snow were a way of relocating the rural Lithuania of his childhood. The seeming
randomness and improvisatory nature of his shots are in fact carefully reconstructed and linked together by
memory. As Scott Nygren notes, these images are ‘filled with significance through memory, through what
is absent from the screen’. (Yue, 2005)
13
(…) to read across and through different layers and strata of the city requires that spectators establish a
constant play between surface and deep structured forms, between purely visible and intuitive or evocative
allusions. (Boyer, 1994: 19-21)
PARTE I – ENTRAR 18
1.1. Paredes de vidro
Para além das características relevantes para funcões específicas, os materiais pos-
suem potencialidades expressivas que influem na qualidade da nossa percepção visual,
física e, por consequência, nas nossas emoções e desempenho cognitivo face ao ambiente
que nos rodeia. Na construção dos espaços que configuram as cidades (públicos e priva-
dos), este será um dado ao qual os protagonistas da representação do espaço (arquitectos,
urbanistas…) deverão ser atentos, mas nem sempre o são as pessoas que na realidade prati-
cam quotidianamente esses espaços. Pelo menos, não de um modo conscientemente crítico.
Penso este facto tendo em mente a relação entre arquitectura e poder (político,
económico…) e o modo como os primeiros podem manipular o potencial expressivo dos
materiais de acordo com os desejos e objectivos dos seus clientes, nem sempre sensíveis
à qualidade da vivência, a longo prazo, dos espaços em questão por parte de quem mais
frequentemente os confronta (interiormente ou exteriormente). Assim acontece, sobretudo,
com edifícios corporativos e empresariais, espaços destinados a comércio ou a serviços
públicos, mas também com outros como os de actividades culturais e, sobretudo, os de
características híbridas nos quais as fronteiras entre diferentes usos tendem, intencional-
mente, a esbater-se.
Nesta linha de ideias, estou a considerar as possibilidades da arquitectura enquanto
metáfora, em afinidade com o que refere José M. G. Cortés, professor de Teoria da Arte,
seguindo o trilho do pensamento dos filósofos Georges Bataille e Michel Foucault:
Contudo, devemos ter em conta que a arquitetura, como a linguagem, é uma estrutura que ajuda a
construir e a organizar as nossas experiências, é um discurso que edifica significados e enquadra
conteúdos. os espaços urbanos contam-nos histórias que lemos como se fossem ‘textos espacias’,
actos realizados no espaço. A arquitectura tem uma muito destacada participação na formação da
imagem da ordem social, inclusivamente, na sua configuração e imposição. (Cortés, 2006: 25)14
14
Sin embargo, debemos tener en cuenta que la arquitectura, como el lenguaje, es una estructura que ayuda
a construir y ordenar nuestras experiencias, es un discurso que edifica significados y enmarca contenidos.
Los espacios urbanos nos cuentam historias que nosotros leemos como si fueram ‘textos espaciales’, hechos
realizados en el espacio. La arquitectura tiene una muy destacada participación en la formación de la imagen
del ordem sociale, incluso, en su configuración e imposición. (Cortés, 2006: 25)
PAREDES DE VIDRo 19
os materiais, na configuração das cidades, podem ser trabalhados na relação com
a forma, a função e a tecnologia de modos catalizadores da nossa possibilidade de cons-
trução de pontos de vista ou exactamente o contrário, condicionando e alienando a nossa
percepção influindo, por exemplo, no tempo e qualidade de permanência nos espaços.
Podem favorecer determinados movimentos e direcções tomados pelo corpo em detri-
mento da possibilidade de outros. Cortés salienta, por exemplo, a incidência revigorada
nas últimas décadas da utilização do vidro com o ferro e a cor branca, e a sua influência
na criação de um mundo lógico e terrivelmente racional nas cidades ocidentais, alertando
para o facto de que são os materiais que compõem os enquadramentos que dão abrigo aos
‘sujeitos-números’ uniformizados e carentes de personalidade.
‘Sujeitos-números’ que são produtores e consumidores na lógica de um sistema
capitalista que lhes reduz, ou mesmo elimina, o espaço e o tempo sintonizados para o ex-
ercício da sua subjectividade. Carentes de personalidade, assim, pela impossibilidade do
encontro, antes de mais, consigo mesmos.
‘Ver através’ é a função que logo à partida se tende a associar com a ideia da pre-
sença do vidro na arquitectura, derivada naturalmente da qualidade de transparência que
este pode ter e a sua associação directa à ‘janela’. A permeabilidade à luz que lhe é carac-
terística permite, no entanto, a este material um mais amplo e poderoso potencial
metafórico com expressão historicamente evolutiva, sobretudo ao nível da sua utilização
enquanto ‘pele’ dos edifícios. Do primeiro Palácio de Cristal (Londres, 1851) aos arranha-
céus modernistas de 1920s-30s, e destes ao presente, a extensão das paredes de vidro su-
gere, paradoxalmente, ideais de leveza, clareza, abertura e desmaterialização em
construções representativas, na sua maioria, de um modelo de sociedade geradora de val-
ores não harmonizados com tais ideais. Mais curioso ainda é observar, nas últimas décadas,
a transferência para edíficios de habitação destas paredes de vidro predominantemente
características das altas estruturas comerciais, corporativas e empresariais. Do seu interior,
a cidade dá-se a ver na distância, enquanto panorama, ao corpo que sobre ela se eleva sem
que seja necessário abrir uma janela para ver mais. Como um pássaro sem asas, este corpo
atravessa em movimento ocular o vácuo da verticalidade urbana onde os olhares podem
tomar direcções convergentes sem o saberem. A possibilidade do ‘ver através’ para os
habitantes destes invólucros transparentes é a de uma ‘visão’ soberana. Dá-se de modo
unilateral e não nivelado. A cidade olhada como ‘espectáculo’, embora sendo real, parece
PAREDES DE VIDRo 20
tornar-se virtual dentro destas habitações cujo acesso visual ao exterior (aparente ‘abertura’
de grandes dimensões) dissimula uma sofisticada tecnologia de prevenção ao contacto
com este. Melhor dizendo, de prevenção ao tacto. De modo semelhante, assim acontecerá
também nos espaços de trabalho destes mesmos habitantes. A presença da cidade, tão perto
mas tão longe, é consumida por uma espécie de visão higiénica intervalada pelos percursos
de automóvel entre as garagens imprescindíveis a tais arquitecturas.
Numa cena no filme As Asas do Desejo (1987), do realizador Wim Wenders,
quando os anjos Damiel e Cassiel deambulam juntos por Berlim ao longo do muro que
dividia a cidade (e o país), Damiel, que então se questionava sobre o desejo de se tornar
humano, diz a Cassiel: “Desçamos do alto do nosso miradouro de não nascidos. olhar não
é olhar do alto, é olhar à altura dos olhos.”
PAREDES DE VIDRo 21
fronta. Constituído por três fileiras de arbustros, e três paredes de vidro com duas faces
em estruturas de aço inoxidável, activa a consciência da percepção através das pro-
priedades simultaneamente transparentes e reflexivas do vidro em permanente relação
com o ambiente envolvente, pela mutabilidade da luz e movimentação dos observadores.
Fig. 1. Dan Graham, Two- Way Mirror Punched Steel Hedge Labyrinth, 1994-96, Minneapolis Sculpture Garden.
PAREDES DE VIDRo 22
partes da obra constituídas pelas fileiras de arbustros, em contraste, não permitem estes
jogos de visão. Não criam ilusão, a densidade da folhagem é impenetrável para o olhar e
suscita a percepção táctil. É concreta.
Graham refere que as suas obras estão algures entre a arquitectura e a televisão e
que qualquer que seja o meio que utiliza (vídeo, fotografia, performance, escultura ou in-
stalação) é sempre à cultura de massas que vai buscar referentes. As suas esculturas e ins-
talações ‘habitáveis’ funcionam como citações e comentários à modalidade da arquitectura
instituída pelo ocidente com raiz nos ideais universalistas do Modernismo. Investigam e
dão a vivenciar a natureza do vidro enquanto superfície comunicante que, de acordo com
o que defendiam os arquitectos modernistas, possibilita uma continuidade relacional entre
interior e exterior. No entanto, a transparência do vidro é, como já referido, apenas uma
das suas muitas possibilidades. Antes de mais, uma parede de vidro cria um enquadramento
visual no qual decorrem imagens em movimento, pelo que se pode considerar como um
limite entre espaço privado e público de materialidade camuflada pelo fluxo de imagens
que capta, sugerindo dispersão e não propriamente o foco no que está para lá ou para cá
de si. A parede como um écran.
Na imagem que aqui se mostra da referida obra de Graham, é interessante a relação
que se estabelece entre esta, em primeiro plano, e alguns dos edifícios que se observam
em último plano. o enquadramento dá ênfase à sugestão de que a obra parece mesmo con-
stituir-se de fragmentos de alguns daqueles edifícios, como se Graham tivesse retirado
partes que no conjunto da sua arquitectura se diluem para as mostrar em detalhes, distan-
ciando-as assim da origem e transferindo-as para uma escala à medida do corpo que as
pode circundar, captando uma perspectiva do todo pela proximidade física.
A vitalidade das paredes de vidro de Graham (nomeadamente as das esculturas e
instalações de exterior), propõe uma revisão e actualização crítica da arquitectura mod-
ernista e da sua herança, em afinidade com o que pensa Sennett sobre a dupla qualidade
do vidro enquanto membrana entre interior e exterior,
(...) um princípio importante para visualizar mais formas urbanas do viver moderno. Sempre que
construimos uma barreira, temos que fazer igualmente a barreira porosa; a distinção entre o interior
e o exterior tem de ser brechiforme, se não ambígua.
o uso habitual contemporâneo de placa de vidro para paredes não faz isto. É verdade que no plano
térreo vê-se o que está dentro do edifício mas não se pode tocar, cheirar ou ouvir nada do interior.
As placas são normalmente fixadas rigidamente de modo a haver apenas uma, regulada, entrada.
o resultado é que nada mais se desenvolve de ambos os lados destas paredes transparentes, como
PAREDES DE VIDRo 23
no Edifício Seagram de Mies van der Rohe em Nova Iorque ou o novo London City Hall de Norman
Foster — há espaço morto em ambos os lados da parede e a vida no edifício nele se acumula. (Sen-
nett, 2007: 295)15
15
(…) an important principle for visualizing more modern living urban forms. Whenever we construct a
barrier, we have to equally make the barrier porous; the distinction between inside and outside has to be
breachable, if not ambiguous. The usual contemporary use of plate glass for walls does not do this. It is true
that on the ground plane you see what is inside the building but you cannot touch, smell or hear anything
within. The plates are usually rigidly fixed so that there is only one, regulated, entrance. The result is that
nothing much develops on either side of these transparent walls, as in Mies van der Rohe’s Seagram Building
in New York or Norman Foster’s new London City Hall — there is dead space on both sides of the wall and
life in the building does accumulate there. (Sennett, 2007: 295)
16
Everywhere the architect and the city planner cut the fabric into discrete units and recomposed them into
a structured and utopian whole (…). These cuts and insertions, by imposing their ideal model of scenic unity
in which solids dematerialized into transparent and interpenetrating forms and structures filled in or hollowed
out space, decomposed the city into a random array of homogeneous sites, emptied of historic reference
and ignorante of building types and city places specific to each location. (Boyer, 1994: 46)
PAREDES DE VIDRo 24
Hornig salienta o carácter da superfície de vidro enquanto mediadora de ambiguidade
entre alcance visual e possibilidade de acesso físico. A montra é um limiar do encontro
com o objecto de consumo desejado, remetendo-nos enquadramentos de visibilidades in-
tencionalmente cons-truídas, direccionando o nosso olhar. Pelo acto de fotografar montras,
Hornig funde um duplo enquadramento da realidade consequente da sobreposição entre o
que o seu próprio olhar selecciona e o que é dado a ver dentro dos limites físicos do campo
visual que a montra define, os quais Hornig salienta fazendo-os coincidir com as margens
da fotografia enquanto suporte. o facto dos espaços fotografados se encontrarem vazios
leva a que o olhar incida mais a fundo na procura de referentes através da transparência
do vidro. Desta auscultação progressiva da visão em profundidade vai emergindo a reali-
dade exterior absorvida pelas propriedades reflexivas do vidro. Lentamente o olhar emerge
do espaço interior ao (re)encontro da cidade face à qual, por sugestão do enquadramento
da fotografia, o observador se encontra de costas.
Fig. 2. Sabine Hornig, No.4, 2003 (fotografia, 150 x 270 cm), Berlim.
PAREDES DE VIDRo 25
Fig. 3. Sabine Hornig, The Destroyed Room, 2006 (fotografia, 100 x 159 cm), Berlim.
(…) interligar imagens disjuntivas e incomensuráveis para estabelecer ligações através da cidade
e reapropiar a sua promessa utópica. Somos compelidos a criar novos percursos de memória através
da cidade, novos mapas que nos ajudem a resisitir e a subverter as mensagens envolventes e pro-
gramadas da nossa cultura de consumo. (Boyer, 1994: 28-29)17
17
(…) interweave disjunctive and noncommensurable images to establish connections across the city and
reappropriate its utopian promise. We are compelled to create new memory walks through the city, new
maps that help us resist and subvert the all-too-programmed and enveloping messages of our consumer cul-
ture. (Boyer, 1994: 28-29)
PAREDES DE VIDRo 26
processo de transformação, sendo esta a condição que acentua e evidencia o seu efeito de
lente. Apesar da montra como limite físico ser o objecto fotografado, o que se coloca em
questão é, sobretudo, a possibilidade de ver para além da superfície. Se as montras servem
usualmente, nos nossos percursos quotidianos, para nos determos na imagem refletida do
nosso corpo, como quando olhamos para um espelho, Hornig impede esse facto nestas fo-
tografias evitando mesmo o registo do reflexo do seu corpo enquanto fotografa, propondo
uma visão em trajecto para além do obstáculo. Assim, a ideia de um olhar em construção
e, portanto, sujeito também ele a processo de transformação. Com alguma ironia, estas
fotografias sugerem-nos a recuperação de uma certa temporalidade no olhar, suscitada
pelo congelamento de um momento desfuncional na vida destes espaços destinados, à par-
tida, a actividades de consumo. A estas, o culto do éfemero será tendencialmente mais fa-
vorável do que o sentido de tempo.
o vidro em si mesmo, e sobretudo na função de montra, constituí uma superfície
cuja limpeza frequente permite recuperar o brilho e a transparência. Neste sentido, para-
doxalmente, a insistência de Hornig em revelar os diferentes níveis de visão correspon-
dentes a diferentes espaços fundidos pelos reflexos, remete-nos para um modo de ver não
muito comum na cultura ocidental, mas mais afim à cultura oriental. Relacionemos com
o que diz o escritor Junichiro Tanizaki (1933), ao reflectir exactamente sobre as diferenças
entre oriente e ocidente,
Não é que tenhamos uma reserva a priori relativamente a tudo o que brilha, mas, a um brilho su-
perficial e gelado, preferimos sempre os reflexos profundos, um pouco velados; (…) esse brilho
ligeiramente alterado que evoca irresistivelmente os efeitos do tempo. (Tanizaki,1999: 22)
Abordemos agora um exemplo que toma como referente uma acção criativa de
carácter transgressor perante a lei, uma cabina de telefone público em Paris interven-
cionada nos seus vidros por tags. Uma peça de mobiliário urbano que, apesar de mantida
a função utilitária a que se destina, torna-se assim catalizadora de um complexo percurso
de subjectividades. Da intenção dos anónimos autores dos tags ao exercício do olhar atento
de um transeunte que toma a intervenção, por relação com as especificidades do suporte
em que acontece (forma, materiais, função, uso), como um meio que activa a cabina en-
quanto dispositivo para a tomada de pontos de vista sobre a cidade. Exercício reflexivo
realizado em 2010 por Luciano Spinelli, fotógrafo e sociólogo visual, através da série de
fotografias designada Acid sur Verre (fig. 4 e 5) e também como ensaio escrito.
PAREDES DE VIDRo 27
Fig. 4 e 5. Luciano Spinelli, da série fotográfica Acid sur Verre, 2010, Paris.
PAREDES DE VIDRo 28
Spinelli toma como ponto de partida na sua pesquisa a interrogação sobre quem
actualmente utiliza, e com que objectivos, as cabinas de telefone público em Paris. Maiori-
tariamente, são utilizadas por imigrantes para chamadas telefónicas de longa distância.
Pela constatação do progressivo desinteresse visível na manutenção das mesmas pela mu-
nicipalidade, Spinelli refere que
(…) as cabinas passam a ser um dos poucos territórios de sombra a subsistir na cidade de Paris,
mesmo em plena luz do dia. Entender os seus usos e principalmente observar que inscrições trans-
portam são questões fundamentais no nosso objectivo de ler a cidade olhando através do jogo de
espelhos que as cabinas nos proporcionam. (…) vemos através das suas lâminas de vidros entre-
postas uma cidade distorcida. Comparável a um diamante que reflecte ângulos do urbano, essa ca-
bina compõe certamente um prisma que nos permite entrever uma outra cidade, com os seus outros
habitantes. (Spinelli, 2008: 50)
(…) mesmo que observada ao nível da rua e à vista de todos, a cabina configura-se como um refúgio
onde se orquestram elementos do ‘regime nocturno’ (Durand, 1992). Afinal, em frente dos olhos,
as coisas escondem-se melhor. Na cabina, um sistema cíclico de renovação/ocupação se estabelece,
originando uma ‘zona de sombra’ (Maffesoli, 1991). Nesse espaço que escapa ao olhar totalitário
do Estado, talvez pelo fato de ser transparente, temos não somente habitantes regulares como um
todo ecossistema de usuários e de comunicações. (Spinelli, 2008: 53)
o tag é realizado sobre o vidro com ácido sulfúrico. o efeito não é o de pintura
mas de corrosão, o que leva a que a sua eliminação implique a substituição total do vidro.
Não adiciona matéria à superfície, antes subtraí. É a inscrição de um pseudónimo relativo
a uma pessoa ou grupo de pessoas que integram uma tribo urbana, repetido em várias su-
perficies da cidade (paredes, montras, equipamentos urbanos…) com o intuito de afirmar
PAREDES DE VIDRo 29
visibilidade, reconhecimento, fama e respeito por parte de quem o consegue descodificar
(elementos da mesma tribo urbana ou de outra). De certo modo, enquanto símbolo parece
expressar objectivos semelhantes aos das marcas invasivamente publicitadas pelas ruas
mas, ao contrario destas, não subentende a venda de nada e não pretende ser legível pelas
massas. Reivendica presença, durabilidade, permanência, ou por outras palavras, resistên-
cia. A sua inscrição sobre uma parede de vidro acentua ainda mais estas intenções porque
o que se torna questão logo à partida é, realmente, o que se passa na superfície. No vidro
da cabina de telefone público a inscrição do tag activa a consciência do limite físico, da
fronteira entre exterior e interior, com grande potencial metafórico transferível a outras
dimensões como as sociais, identitárias, políticas, entre outras. A percepção do que está
‘para lá’ da superfície é disto consequente, diferentemente do que se passa nas fotografias
de Hornig, nas quais a montra de vidro é como que dissimulada no processo de percepção
que gera. A cabina transparente torna-se “(…) um lugar social, um lugar de socialização
(…) vai da oferta de um telefone para a comunicação entre duas pessoas a um suporte
físico para a escrita urbana, que comunica com os habitantes.” (Spinelli, 2008: 52). Tal
comunicação faz-se em jeito de provocação, de interpelação. Características que ganham
ênfase quando o suporte da inscrição é transparente e acessível de ambos os lados. Spinelli
explora este dado na sua série de fotografias, tornando evidente o poder de intercepção do
tag sobre a leitura da realidade envolvente. o modo como Spinelli se relaciona com a ca-
bine, inquirindo-a performativamente enquanto dispositivo perceptivo intersticial, tem
semelhanças com a atitude lúdica, anteriormente referida, dos observadores das estruturas
de vidro e aço de Graham, mas depara-se com uma maior complexidade. A estrutura de
vidro e aço que a cabina é, para além da sua funcionalidade, tornou-se suporte de repre-
sentação de uma identidade simultaneamente individual e colectiva, não apenas dispositivo
de percepção como acontece no caso das estruturas de Graham. Uma identidade que se
revela através da inscrição que é parte expressiva de uma constelação de inscrições dis-
seminada pela cidade, parte integrante de uma narrativa urbana, de uma
(…) voz sinestésica, de textura lisa e coloração âmbar, proferida por pessoas anónimas (…) o escrito
NBK (…) passa a evocar um colectivo para as pessoas que se identificam com esse símbolo. (…) Sen-
sação análoga é causada pela bandeira francesa junto da maioria da população. (Spinelli, 2008: 55).
PAREDES DE VIDRo 30
As fotografias de Spinelli evidenciam como, sobre a parede de vidro, o tag filtra
a visão de dentro para fora e vice-versa. Para quem está dentro da cabina, a visão da cidade
através do vidro dá-se fragmentada pelo tag, pois as àreas que a sua forma preenche no
vidro são opacas pela corrosão do ácido. Quem passa na rua e olha para a cabine, tem tam-
bém uma visão fragmentada da pessoa que estiver no seu interior. Sobre o vidro, a inscrição
anónima ganha o poder de se impôr entre espaços. Cria opacidade na transparência e in-
terrupção sobre o que se pode ver através, sobrepondo-se. Um efeito semelhante é provo-
cado pelos diversos meios publicitários de marcas, produtos e serviços que ocupam as
paredes e invadem até o chão das ruas, sobrepondo-se também ao mobiliário urbano, e
especificamente às superfícies de vidro que utilizam como suporte. No entanto, as pessoas
comummente reagem passivamente a estes e indignadamente aos tags, entendidos como
ruído visual, esquecendo no entanto que ambos os casos são, na sua essência, representa-
tivos de intenções privadas que procuram e afirmam estratégias de visibilidade fazendo
uso do espaço público.
Spinelli leva-nos a olhar a cabina de telefone público intervencionada pelos tags
como uma metáfora que, entre outras questões, leva a reflectir sobre como através do ob-
jecto, e dos seus usos, se subentendem factos urbanos que lhe são exteriores, neste caso
até as condições de acesso e circulação consequentes da desigualdade social, e análoga
fragmentação espacial, da cidade. Na abrangência do que designa como “ a importância
dos detalhes ‘fora de campo’ no imaginário parisiense.” (Spinelli, 2008: 53).
Relaciono a qualidade da atenção que leva a este ensaio visual e escrito de Spinelli
com o tipo de preocupações que conduzem o projecto de investigação Urban Experiments
levado a cabo pelo CRESC - Centre for Research on Social-Cultural Change, Faculty of
Social Sciences (Manchester University / open University) no Reino Unido. Partindo da
convicção de que tal temática tem sido marginalizada no seio dos estudos urbanos, o pro-
jecto procura uma análise da cidade conduzida pelo estudo dos objectos no espaço público,
sendo estes abordados enquanto processos através do tempo e do espaço, enquanto medi-
adores e produtores de diferença e nas relações e fronteiras que estabelecem com o corpo.
os investigadores alertam para o facto de que os objectos
(…) antecipam e formatam o comportamento dos humanos por autorizarem ou proibirem, prome-
terem ou permitirem. (…) e habitam cidades em múltiplas mas estandardizadas formas que encon-
PAREDES DE VIDRo 31
tramos todos os dias. (…) cada um e todos eles formatam a experiência da cidade, dão possibili-
dades e transportam a acção que lhes é dada pelos humanos através do tempo e do espaço. (Ruppert,
et al., 2011)18
Consideram que ainda não foi levado a cabo um estudo suficientemente crítico e
analítico sobre as intenções políticas, poderes e relações subentendidas no mobiliário ur-
bano através do tempo e do espaço, um estudo sobre o espaço público centrado nos ob-
jectos. Uma das principais questões que colocam poderia ser tomada como ponto de partida
para as fotografias de Spinelli: “Num lugar e tempo particulares podemos perguntar, qual
é a conjugação ou cadeia de relações, presentes e ausentes, que se tornam materializadas
nos objectos vindo a actuar em relação aos humanos?” (Ruppert, et al., 2011)19
18
(…) they anticipate and format the behaviours of humans by authorizing or prohibiting, promising or per-
mitting. (…) and inhabit cities in multiple but standardized forms that we encounter every day. (…) each
and all of them format experience of the city, afford possibilities, and transport the action given to them by
humans across time and space. (Ruppert, et al., 2011)
19
At a particular place and time we can ask, what is the assemblage or chain of relations, both present and
absent, that get materialised in objects and come to act in relation to humans? (Ruppert, et al., 2011)
PAREDES DE VIDRo 32
bilidade de uma percepção criticamente construtiva por parte do indivíduo em relação à
cidade. Por exemplo, projectos como o designado Reciclar o Olhar pela Galeria de Arte
Urbana da Câmara Municipal de Lisboa (de 2010 ao presente ano, 2012) que consiste na
utilização dos vidrões e camiões de recolha de resíduos enquanto ‘telas’ de ‘pintura’. ‘Ca-
muflagem’ ou ‘dissimulação’ dos objectos utilizados é o que caracteriza este tipo de in-
tervenção. As ilustrações pintadas induzem o olhar à ilusão, a um outro ‘mundo’ que se
sobrepõe aos objectos em causa remetendo as suas características físicas, funcionais, ou
outras, para um plano não passível de questionamento. Estratégias deste género desval-
orizam assim a relação corpo/objecto, sendo a antítese das preocupações que conduzem a
uma atenção à cidade e às suas materialidades como a do projecto Urban Experiments an-
teriormente referido. Defendendo a prática do grafite nos seus argumentos (que a publi-
cidade nas ruas também já utiliza), este projecto em Lisboa promove, paradoxalmente,
modos e localizações de actuação instituídos, incutindo a ordenação numa forma de ex-
pressão de cariz urbano cuja pertinência reside, exactamente, na imprevisibilidade espacial
e temporal da sua ocorrência. Embora afirmando-se como manifestação artística, este pro-
jecto faz uso de um tipo de abordagem bastante próximo das estratégias utilizadas pela
publicidade no que diz respeito ao efeito visual e relacional que provoca entre os suportes
utilizados e os transeuntes, sobretudo as que mais recentemente têm vindo a ‘plantar’ di-
rectamente sobre o chão dos passeios públicos, em zonas pedonais, objectos publicitários
tridimensionais que impõem presença de estatuto equivalente ao do mobiliário urbano.
Numa parede de um edíficio nas Escadinhas do Duque, em Lisboa, não muito
longe de alguns dos referidos vidrões ilustrados, lia-se há umas semanas a esta data (Março
de 2012) a frase “Paredes limpas, povo mudo”, escrita com algumas pinceladas de tinta,
por autor anónimo, sobre a parede de um dos vários edifícios restaurados. Perante a ‘do-
mesticação’ do grafite proposta pelo projecto Reciclar o Olhar, esta frase fez-me pensar
que, de facto, a cidade para ter as paredes das ruas limpas de inscrições teria de ser um
exemplo de harmonia social que não movesse inquietações e onde a todos fosse permitida
equivalente possibilidade de voz, ou então teria de ter um pesado dispositivo de controlo
e vigilância do espaço público por parte do Estado e das entidades privadas monopolizado-
ras de capitais. Destas duas hipóteses, evidentemente, a segunda é a provável.
PAREDES DE VIDRo 33
As paredes de vidro, como temos estado a reflectir, influem poderosamente na per-
cepção da cidade para quem caminha pelas ruas, sejam os transeuntes conscientes ou não
desse facto. Enquanto montras ou fachadas de edifícios, ou como paredes de outras arqui-
tecturas à escala do uso de um corpo (como uma cabina de telefone público), activam
várias possibilidades de níveis de visão pela articulação entre a inerente função de limite
físico e as características específicas (e expressivas) do vidro. Transparente ou não, limpa
ou com inscrições, uma parede de vidro é um meio de enquadramento da cidade que gera
performatividades específicas, não só ao nível visual mas ao nível da totalidade do corpo.
Quando o movimento deste se pretende trangressor à previsibilidade das práticas espaciais,
por exemplo na consequência de tensões sociais, uma parede de vidro pode também pro-
porcionar uma qualidade de ‘voz’ publicamente afirmativa. Considero aqui a sua dimensão
sonora que se activa através do gesto que a fractura. Um movimento de braço, em força
persistente, e a contiguidade acontece entre o ‘lado de lá’ e o ‘lado de cá’. Pelo menos,
simbolicamente.
PAREDES DE VIDRo 34
meses antes do sucedido) não me passou despercebida, tendo-me levado a uma atenção es-
pecífica sobre as paredes de vidro ao longo das deambulações que fiz pelo centro da cidade.
Foi a arquitetura meramente incidental para os motins do último verão? Não pareceu não apenas
conter as coisas desejadas ou injuriadas, mas também ser detestada em si mesma: o banco compla-
cente e a boutique elegante, tanto quanto os galpões decorados dos parques de retalho? Não poderão
alguns dos danos ser vistos como um ataque (…) sobre as formas arquitetónicas do nosso ‘desen-
freadamente selvagem’ capitalismo? (...) Porque este dano foi em grande parte para as lojas e ruas
caras, apesar de ter sido facilmente assumido à vista dos políticos que os motins não eram sintomas
PAREDES DE VIDRo 35
de desagregação social, mas surtos oportunistas de criminalidade aquisitiva. Contudo, em tal se-
quência complexa de eventos e causas, não poderia alguma desta edificação confusa ser interpretada
de um modo diferente? (Crinson, 2012)20
obviamente, como Crinson também refere, é mais fácil partir uma parede de vidro
do que uma de tijolo ou de betão, mas há que ter em conta que a predominância da presença
do vidro nas ruas tem sido acentuadamente evolutiva nas últimas décadas na construção
de quarteirões inteiros, usado não apenas nas paredes mas também nos tectos e pisos de
lojas e escritórios ‘aquário’, nas torres brilhantes que negam a passagem do tempo. Este
dado, segundo Crinson, está relacionado com um novo tipo de violência urbana que não
dever ser negligenciado pelo pensamento sobre arquitectura e espaço urbano da actuali-
dade.
Crinson sugere, com ironia, que este confronto directo do corpo com a arquitectura,
pela destruição da fachada de vidro, protagoniza literalmente a promessa dos arquitectos
modernistas e dos seus actuais seguidores, pois realiza a ‘desmaterialização das paredes’,
a exposição dos interiores previamente escondidos, uma nova ‘transparência social’, a ‘so-
ciedade aberta’. Lembra, contudo, que semelhantes argumentos continuam a ser utilizados
por arquitectos contemporâneos, como Richard Rogers e Norman Foster, quando insistem
que as paredes de vidro são símbolo de
(...) ‘valores democráticos de abertura e participação ... [ou] a acessibilidade de um sistema judicial’,
‘a transparência e a abertura do processo democrático’, ‘transparência, dignidade e abertura’. Em
tudo este vidro estava sempre intimamente enraizado na dialética do modernismo sobre o racional
e o encantador. (...) Se tal é a retórica dos arquitectos modernos e dos seus clientes, para outros o
vidro pode não e pode nunca ter significado destes modos: pode na realidade ser sobre acessibili-
dade falsa, sobre tentação e aberrações dominantes. (Crinson, 2012)21
20
Was architecture merely incidental to last summer’s riots? Did it seem not only to contain the things
desired or reviled, but in itself to be loathed: the complacent bank and the sleek boutique, as much as the
decorated sheds of retail parks? Could not some of the damage be seen as an attack (…) on the architectural
forms of our ‘rampantly feral’ capitalism? (…) Because this damage was largely to shops and high streets,
however, it was easily subsumed to the politicians’ view that the riots were not symptoms of social break-
down but opportunistic outbreaks of acquisitive criminality. Yet, in such a complex sequence of events and
causes, could not some of this building bashing be interpreted in a different way? (Crinson, 2012)
21
(…) ‘democratic values of openness and participation… [or] the accessibility of a judicial system’, ‘the
transparency and openness of the democratic process’, ‘dignity, transparency and openness’. In all this glass
was always closely bound into modernism’s dialectics of the rational and the enchanting. (…) If such is the
rhetoric of modern architects and their clients, for others glass may not and may never have signified in
these ways; it may actually be about false accessibility, about temptation and leading astray. (Crinson, 2012)
PAREDES DE VIDRo 36
Fig. 7. Motins no centro de Manchester, Agosto de 2011 (loja Esprit na Market Street).
PAREDES DE VIDRo 37
Fig.8. Loja Emporio Armani e Biblioteca John Rylands, Spinningfields, Manchester, 2012.
(...) desconstrutivismo tardio misturado com alta tecnologia, Daniel Libeskind cruzado com Nor-
man Foster. Tais edifícios devem ter um ‘conceito’, e aqui este é baseado num jogo de mente-sim-
ples que corta um paralelogramo, lançando-o e, em seguida, desalinhando os dois blocos. o balanço
criado por este desalinhamento fornece uma cobertura em forma de cunha para os clientes, com
uma aresta cortante de painéis de vidro apontando para a rua. Detectamos que preocupações re-
centes sobre arquitetura e segurança entraram no inconsciente de muitos arquitectos — mesmo
numa loja como esta há uma estranha combinação de vulnerabilidade e agressão, chegar-próximo
e repulsão. Através de todo o edifício e reforçando a sua estridente geometria há um revestimento
jazzy diagonal de painéis de vidro trapezoidais. (Crinson, 2012)22
22
(…) late deconstructivism mixed with high tech, Daniel Libeskind crossed with Norman Foster. Such
buildings must have a ‘concept’, and here this is based on a simple-minded game of slicing a parallelogram,
flipping it and then misaligning the two blocks. The cantilever created by this misalignment provides a
wedge-shaped canopy for shoppers, with a sharp-edged arris of glass panes pointing at the street. one detects
that recent concerns about architecture and security have entered many architects’ unconscious — even in
a shop like this there is a strange combination of vulnerability and aggression, come-hitherness and repulsion.
Across the whole building and reinforcing its strident geometry is a jazzy diagonal cladding of trapezoidal
glass panels. (Crinson, 2012)
PAREDES DE VIDRo 38
A visão extremamente crítica de Crinson sobre este tipo de edifícios considera que
a valorização dada aos efeitos da superfície, sobretudo através das potencialidades do
vidro, gera as qualidades perceptivas ‘intoxicantes’ que caracterizam os “logotipos da
nossa era neoliberal, os seus cacos de vidro, obeliscos and pepinos.” (Crinson, 2012).23
Pensamento sintonizado com a opinião do crítico de arte Hal Foster (2011), ao
considerar que este género de arquitectura já não é só geradora de espaços ‘opacos’ (em-
bora aparentemente ‘transparentes’) mas é sobretudo ilusionista, no sentido de apresentar
ao indivíduo uma espécie de percepção pré-feita para ser consumida, em vez de carac-
terísticas que favoreçam a experiência perceptiva que se processa orientada pela descoberta
progressiva. Na realidade, esta foi a sensação que tive ao visitar a Biblioteca John Rylands.
A de um percurso em diferentes etapas através de momentos de luz e som variáveis, sin-
tonizados com os detalhes das diferentes salas, corredores e escadarias. o contacto com o
edifício da loja Emporio Armani não permitiu tal aproximação. Entre reflexos, brilhos e
luzes, quando finalmente comecei a discernir os elementos do ambiente através do vidro
da montra, dei-me conta de que todos os meus movimentos eram rigorosamente observa-
dos e controlados há já algum tempo sem que reparasse, estando ainda apenas no exterior.
Estratégia conciliada, evidentemente, com o objectivo de filtrar os visitantes ideais de
quem se espera, exclusivamente, o acto de compra. Contudo, o que me deixa a pensar é a
desproporção que existe entre a dimensão do impacto que uma arquitectura destas tem
sobre o contexto exterior que a envolve (visual, relacional, afectivo…) e as restrições de
acesso que pressupõe.
A bilioteca está hoje rodeada de outras lojas de luxo e de um complexo de tribunais.
Apesar de ser o edifício mais antigo do conjunto, parece ter sido transplantada para o local,
como se o plano urbanístico procurasse integrar o que é pré-existente no local com o novo,
e não o contrário como seria suposto. Ao velho corpo da biblioteca foi assim acrescentada
uma extensão em função da estética dos novos edifícios construídos em volta, um espaço
de loja e café por onde se faz actualmente a entrada, na rua pedonal. o pórtico principal
foi assim encerrado. Questionando esta solução, Crinson salienta
A glória original da biblioteca vitoriana, agora transformada num mero apêndice pela nova extensão,
23
(…) logos of our neoliberal age, its glass shards, obelisks and gherkins. (Crinson, 2012)
PAREDES DE VIDRo 39
era a forma como abordava directamente a rua e depois absorvia o visitante nos seus espaços de
entrada evocativos. Usava a escuridão da tectónica do neo-Gótico para sugerir os mistérios especiais
da aprendizagem; o acesso aqui era uma questão de passar por sucessivas densidades espaciais.
Agora as estruturas ocultas da arquitectura contemporânea não sugerem nada mais do que a leveza
do ser moderno. (Crinson, 2012) 24
As ruas pedonais entre estes edifícios são exemplo do modelo de rua na qual o
transeunte, embora esteja no exterior, parece caminhar pelo interior de uma loja gigante,
como se fosse ele próprio um objecto de montra. Contudo, estas não são ruas cobertas de
tectos de vidro e ferro como as galerias comerciais do início do século XX, antecipatórias
dos actuais centros comerciais. Se a experiência pode até ser semelhante em alguns as-
pectos, há a grande diferença entre a evidência dos usos e funções expectáveis das ruas de
lojas cobertas de arcadas e a natureza ambígua destas ruas de hoje onde, a céu aberto, cada
passo é vigiado. São ruas que não suscitam o estar, o permanecer, a receptividade e inter-
acção espontânea com o ambiente, mas antes estimulam o desejo e actividade de consumir.
Nas arcadas parienses, observadas e pensadas pelo filósofo, historiador e crítico literário
Walter Benjamin entre 1927 e 1939, o movimento do olhar dos potenciais consumidores
detinha-se pela curiosidade em observar os outros, pois a própria situação de coexistência
temporária de tantos desconhecidos numa ‘rua’ que oferecia um conforto como se de um
espaço interior se tratasse era uma novidade que, a ser verdadeiramente desfrutada, era
percorrida em passo lento. Uma observação atenta e crítica, como a de Benjamin, podia
identificar entre a multidão uma diversidade de tipologias de posturas e atitudes. Nas ruas
das paredes de vidro de hoje a natureza da multidão caracteriza-se essencialmente por
duas modalidades de transeuntes, os que têm o poder de compra e os que não o têm, rea-
lidade exemplar da antecipatória visão de Benjamim sobre as arcadas parisienses enquanto
objecto histórico significante de uma ‘imagem dialética’ expressiva, simultaneamente, de
opressão e de libertação, da ideologia do consumo versus uma utopia de abundância. Se
Benjamin tomasse os quarteirões de paredes de vidro nos centros das cidade de hoje (como
o caso de Spinningfields em Manchester) para uma qualidade de observação semelhante
24
The original Victorian library’s glory, now made into a mere appendix by the new extension, was the way
it addressed the street directly and then absorbed the visitor in its evocative entrance spaces. It used the
gloom of neo-Gothic tectonics to suggest the special mysteries of learning; access here was a matter of pass-
ing through successive spatial densities. Now the hidden structures of contemporary architecture suggest
nothing but the lightness of modern being. (Crinson, 2012)
PAREDES DE VIDRo 40
à que dedicou às ruas parisienses de tectos de vidro, talvez os jovens e crianças autores
dos referidos motins ganhassem notoriedade ‘semelhante’ à do flâneur de então. Inevi-
tavelmente, para além das quase oito décadas que os separam, haveria que considerar tam-
bém a diferença de condição social a que pertencem em relação com as sua práticas
espaciais em tais contextos. Se o último tomava o passo ao ritmo de tartarugas que levava
a passear nas arcadas, os primeiros são levados pelo balanço do braço que parte montras.
Se então Benjamin estava atento ao ‘tempo perdido incorporado nos espaços das coisas’
que as arcadas parisienses continham, talvez agora estivesse atento ao ‘espaço perdido in-
corporado nos tempos das coisas’.
Nas ruas das paredes de vidro de Spinningfields (fig. 9) a circulação é contínua e
direcionada pela necessidade de aproximação às montras na procura dos objectos. o corpo,
embora na rua, movimenta-se com a visão dirigida para os interiores que as paredes de
vidro sedutoramente permitem vislumbrar. os escassos elementos orgânicos existentes
parecem dispostos ao longo do chão como bibelôs na decoração de uma prateleira. outras
ruas de características semelhantes a estas, nas materialidades que as constituem e usos
afins, foram o cenário dos referidos motins,
(...) onde os mundos de vidro contemporâneos da lei, segurança, consumismo e aprendizagem foram
recentemente expostos em termos de quem tem o direito de usar estas ruas da maneira para a qual
foram projectadas. (Crinson, 2012)25
25
(…) where the contemporary glassworlds of the law, security, consumerism and learning were newly ex-
posed in terms of who is entitled to use these streets in the manner for which they had been designed. (Crin-
son, 2012)
PAREDES DE VIDRo 41
A acção de quebrar paredes de vidro nas ruas remete-me para a memória da obra
Através (1983-89) do artista Cildo Meireles (fig. 10), a qual tive possibilidade de experi-
enciar na sua segunda materialização em Janeiro de 2001, realizada no Palacio de Cristal
del Parque del Retiro, em Madrid. ocupando uma área de 16 metros quadrados, um reves-
timento de cacos de vidro cobria a superfície do chão. o visitante percorria sobre estes
um espaço de estrutura labiríntica, passando por entre barreiras físicas, dispostas geomet-
ricamente, de diferentes materiais e dimensões mas com a característica comum de per-
mitirem ver ‘através’. Entre outros materiais com função de delimitar ou interditar espaços,
a instalação compunha-se de cercas de madeira, de arame e de metal, superfícies translú-
cidas de plástico, postes com fitas de delimitação de zonas. Havia também um aquário
com pequenos peixes cujas espinhas se revelavam pela translucidez dos seus corpos. Ao
centro, do qual o visitante se aproximava lentamente pelo cuidado implícito ao pisar dos
vidros, encontrava-se uma esfera à escala do corpo feita em papel celofane amachucado.
Material comum à embalagem ou acondicionamento de produtos de consumo mas que
pela sua concentração esférica se tornava translúcido, parecendo emanar uma luminosidade
vinda do seu interior. No entanto, ali o papel celofane não era invólucro de nada, excepto
de si mesmo.
PAREDES DE VIDRo 42
o som dos cacos era um inevitável acompanhante da descoberta progressiva que
o olhar ía fazendo na travessia da obra. o caminho possível, por entre as barreiras, era de-
limitado pela sua organização no espaço, direccionado e sem hipótese de desvios, embora
na realidade não existissem paredes. À medida que se avançava para o centro, a sensação
física era de confinamento apesar de se tratar de uma estrutura aberta (e transparente). A
experiência de Através levava a uma tomada de consciência face à presença dos inúmeros
obstáculos que interpelam o acesso físico à realidade que nos envolve, ainda que sejam
penetráveis pelo alcance da visão. É um facto que a interdição de acesso ou circulação do
corpo no espaço não se pratica apenas pela implantação de paredes ou muros, existindo
muitos outros modos para o fazer cada vez mais desmaterializados. o ‘alimento’ para a
visão pode ser dissimulador da percepção da materialização de restrições das possibili-
dades de uso e permanência, como acontece em muitos dos espaços ditos ‘públicos’ nas
cidades nos quais o transitar e o fruir não são coincidentes. Para Meireles os materiais nas
suas obras simplesmente ‘estão’, não significando nada à partida. Assim parecem ‘estar’
também os objectos que configuram o espaço urbano, pelo menos ao olhar da generalidade
dos transeuntes, até que a imprevisibilidade de certos gestos os façam ‘falar’.
o som dos cacos de vidros que se pisam nesta obra de Meireles remete para o chão
a arquitectura das paredes de vidro, dando-lhe a sonoridade que se activa pela experiência
física do andar. A instalação no Palacio de Cristal, construído em 1887, terá sido provavel-
mente a mais pertinente de todas as suas apresentações, pois trata-se de uma das primeiras
arquitecturas de ferro e de vidro. Através coloca em confronto a consciência do plano hori-
zontal, e dos nossos passos nele, com a dimensão ilusória e condicionante que pode ter a
verticalidade que nos envolve.
o desenho urbano passa de ‘campos’ para ‘enquadramentos’: o uso logístico da terra sobre super-
fícies horizontais perde relevância (relativa) no que diz respeito ao uso semântico das verticais.
Se, no passado, o projecto da cidade tinha sido basicamente desenhar planos a partir de um ponto
de vista aéreo, distribuindo funções através do espaço físico numa articulação primeiramente hori-
zontal, agora enfrentamos o emergir de uma disciplina incumbida em organizar a percepção visual
de um ‘palimpsesto urbano’, constituído por uma sucessão de enquadramentos essencialmente ver-
tical. Essa nova perspectiva apela para questões fundamentais sobre quem são os actores a produzir,
PAREDES DE VIDRo 43
regular e controlar tal articulação visual que se está a tornar uma expressão substancial do espaço
social contemporâneo. (Tripodi, 2009: 60)26
26
Urban design moves from ‘fields’ to ‘frames’: land’s logistic use of horizontal surfaces lose (relative) rel-
evance in respect to the semantic use of vertical ones. If, in the past, the design of the city has been basically
drawing plans from an aerial point of view, distributing functions through the physical space in a primarily
horizontal articulation, now we face the emergence of a discipline aimed at organizing the visual perception
of an ‘urban palimpsest’, constituted by an essentially vertical succession of frames. This new perspective
calls for fundamental issues about who are the actors producing, regulating and controlling such visual ar-
ticulation that is becoming a substantial expression of contemporary social space. (Tripodi, 2009: 60)
PAREDES DE VIDRo 44
possibilidades comunicantes dominada pelas poderosas marcas globais, onde a arquitectura
‘concreta’ é colonizada por uma ‘cenografia’ concebida em função de uma percepção vi-
sual desmembrada da percepção física, através das possibilidades de um universo tec-
nológico sem precedentes ligado à economia do mercado. Trata-se da substituição da
experiência vivida pela experiência representada. A criação de um ‘espaço público’ que é
essencialmente ‘interface’ onde, como nos alerta Tripodi,
A vida social está cada vez mais a tornar-se um sub-produto da infra-estrutura mediada, gerido
como um conteúdo transmitido por canais privatizados: o que temos a temer, reconhecendo a fusão
progressiva do tradicional espaço ‘horizontal’ com a entrada do ‘vertical’ espaço cinematográfico,
é a progressiva extensão de uma filosofia de ‘pagar-para-ver’ em todos os domínios da vida social
urbana. (Tripodi, 2009: 61)27
27
Social life is increasingly becoming a by-product of mediated infrastructure, and managed as a content
conveyed by privately channels: what we have to fear, acknowledging the progressive conflation of tradi-
tional ‘horizontal’ space with the incoming ‘vertical’ cinematic space, is the progressive extension of a ‘pay
per view’ philosophy to all the realms of urban social life (Ibidem: 61)
PAREDES DE VIDRo 45
Em causa parece estar uma ‘fome’ não apenas circunscrita à necessidade de comer,
mas uma ‘fome’ por determinados objectos que a sociedade de consumo proclama como
balizadores de ‘identidade’. Falo aqui da ‘identidade’ que se constroí com base na priori-
dade do ‘ter’ sobre o ‘ser’, difundida em grande escala pelas imagens publicitárias que se
estendem ao longo do ‘urbanismo vertical’ referido por Tripodi. Neste, a transparência,
que pelo vidro as superficies verticais podem ter, evidencia e acentua a disparidade que
pode existir entre o que se deseja e o que efectivamente se tem. As ‘identidades prontas a
consumir’ apresentam-se disponíveis ao alcance da visão de todos, mas do poder de com-
pra só de alguns. Se este facto é por si só, logo à partida, gerador de tensão social, esta
agrava-se ainda mais quando as ruas não oferecem condições para modos de estar que não
girem exclusivamente em torno do acto de consumo. Na ausência de espaços para ‘realizar’
ou ‘partilhar’, as ruas dos centros das cidades ‘oferecem’ horizontes que seduzem a visão
na direcção do desejo de ‘alcançar’, o que traduzido em acção implica um movimento que
tem de ultrapassar uma certa distância para chegar a tocar o que está mais adiante. De um
modo radical, o ataque às lojas nos recentes motins em Inglaterra é exemplo deste movi-
mento, sendo as paredes de vidro a ‘distância’ a ultrapassar. Uma nova ‘coregorafia’ urbana
que, sendo desempenhada por multidões e reincidente em diferentes cidades, deverá ser
tida em conta como uma nova prática espacial a ser considerada à luz das consequências,
físicas e morais, derivadas de certas especificidades da materialidade urbana que lhe são
contemporâneas. Se os seus actores se expressam através do acto de partir paredes de
vidro, de modo a atingir e a possuir o que estas guardam, torna-se necessário que a análise
dos motivos e causas que levam a tal transgressão se detenha sobre o que se encontra para
lá do limite físico transgredido, e não apenas no que é visível do lado de cá.
As paredes configuram as ruas não só em termos estruturais, funcionais, estéticos,
mas também em termos da qualidade de vivência do espaço que lhes é exterior, pelo que
escondem ou revelam, protegem ou liberam, mesmo quando parecem não emanar vida do
seu interior, como as fachadas de casas desabitadas e emparedadas. os centros das cidades
de hoje, como no exemplo referido de Manchester, tendem a ser enformados pelo vidro,
material que através das sua propriedades reflexivas nos devolve continuamente o mo-
mento presente, o movimento contínuo. Como se caracteriza em termos sociais, económi-
cos e culturais o que, e quem, está por detrás destas paredes? Como se caracteriza a sua
relação (se existente) com a rua? De que modo participa ou influi na qualidade de vivência
PAREDES DE VIDRo 46
desta? A que usos e modos de habitar se destinam os novos centros envidraçados das
cidades? Como pode a memória, e portanto a identidade, ter expressão sobre a superfície
de vidro? A imagem que mostra a fenda intencionalmente infligida, pela mão de um jovem,
sobre a montra de uma loja Nike (fig. 11) em Manchester parece-me uma metáfora
poderosa a considerar em relação a estas questões. Uma inevitável interrupção no presente
quando a própria identidade já não é localizável. o emergir da individualidade à tona da
liquidez de que é feito o anónimo consumidor, pois é certo que na transgressão os rostos
importam e procuram-se.
Fig. 11. Motins no centro de Manchester, Agosto de 2011 (montra de uma loja Nike).
Retomando uma das questões que lancei no início desta reflexão, a de como a
cidade se dá ver, avancemos para o capítulo seguinte com a convicção de que a resposta
se encontra na performatividade dos corpos face às materialidades do espaço urbano, por
adaptação ou reacção, quase sempre inconsciente e intuitiva, contudo reveladora de
‘sonoridades’ que, embora imperceptíveis ao ouvido, ressoam no espírito determinando,
a curto ou a longo prazo, a cadência dos movimentos na cidade.
PAREDES DE VIDRo 47
1.2. Limites com vista
Fig. 12. Paulo T. Silva, Travessia de Fronteira – Parte I, 2007 (vista geral da instalação).
Sala do Veado – Museu Nacional de História Natural, Lisboa.
Na parede do fundo da sala, ocupando quase a sua área total como se de uma aber-
tura ao exterior se tratasse, uma projecção contínua de 44 diapositos de 35 mm mostrava
momentos da construção de um edifício de habitação, realizados sempre a partir do mesmo
ponto de vista, através de uma janela de um outro edifício no lado oposto da rua, selec-
cionados de um conjunto maior composto por um registo em cada dia ao longo de cerca
de dois anos (fig. 13-15). Em primeiro plano, preenchendo a metade inferior do enquadra-
mento da imagem, via-se parte de um jardim privado pertencente ao edifício da tomada
do ponto de vista. Em segundo plano, a metade superior da imagem era ocupada por uma
das fachadas do edifício em construção. Uma fila de árvores erguia-se do primeiro plano
sobrepondo-se visualmente ao segundo.
As características do cimento que reveste toda a superfície da sala integravam as
imagens que eram projectadas directamente sobre a parede. A porção de céu visível no
enquadramento de cada imagem reduzia progressivamente à medida que o edíficio em
construção ganhava corpo. o passar do tempo tornava-se perceptível não só pela evolução
do volume do edifício mas também pelos diferentes momentos da luz dos dias em que os
registos foram feitos, e sobretudo pela mudança das estações do ano incorporadas nas àr-
Fig. 14 e 15. Paulo T. Silva, Travessia de Fronteira – Parte I, 2007 (detalhes da projecção em loop de 44 diapositivos
de 35 mm cada, fragmento da instalação). Sala do Veado – Museu Nacional de História Natural, Lisboa.
As construções mais inovadoras, publicitadas com orgulho e profusamente imitadas, são os ‘espaços
vetados’ [interdictory spaces], ‘destinados a interceptar, repelir ou filtrar os possíveis intrusos’. (…)
a finalidade dos referidos espaços não é senão dividir, segregar e excluir; e, de modo algum, a de
construir pontes, acessos e lugares de encontro que facilitem a comunicação e aproximem os habi-
tantes da cidade. (Bauman, 2006: 38).
o que somos, então, convidados a ver através da lupa, colocados numa posição idêntica à do cien-
tista que perscruta o interior das coisas? Somos colocados perante o incómodo do que não queremos
ver, perante o incómodo do que nos esquecemos de ver, perante o incómodo do que olhamos sem
ver. A ‘normalidade’ (…) é devolvida ao olhar do espectador de um modo que o convida a ver nela
a ‘anormalidade’. (…) é, antes de mais, o próprio ‘olhar demorado’ que está em travessia de fron-
teiras, a janela — primeiro mediador entre um ‘mundo privado’ e um ‘mundo público’ (…) a câmara
— segundo mediador entre um ‘mundo natural’ e um ‘mundo artifical’ (…) — e finalmente o
tempo, o seu fluir — mediador omnipresente entre o ‘ainda não’ e o ‘já não’, que permanentemente
constroí e destroí não permitindo a ‘estabilidade do lugar’ e desta forma fazendo dos espaços ‘terras
de ninguém’. (Bártolo, 2007).
Projectos de habitação como o edifício que é o referente das duas peças descritas
podem servir de exemplos ao que o crítico de arquitectura Deyan Sudjic (2007) considera
ser a criação de condições que servem para congelar um bairro numa determinada forma,
para produzir homogeneidade e anular a possibilidade de trocas, da mudança social e física
que dever ser constante para a vitalidade de uma cidade.
Sennett considera que a iniciativa da participação do cidadão se relaciona com o
modo como as pessoas se sentem conectadas mesmo quando não se conhecem. Um espaço
será democrático quando cria a possibilidade para a interacção de estranhos. Reflectindo
sobre a ideia de ‘cidade aberta’ da urbanista e activista Jane Jacobs, Sennett questiona
quais os projectos que podem estimular relações sociais que perduram porque têm a opor-
tunidade de evoluir e de se transformar, e se esses projectos serão possíveis em arquitec-
tura. Sennett defende que
(…) a estruturação visual do tempo evolutivo é uma propriedade sistemática da cidade aberta que
tem três importantes elementos sistemáticos: territórios de passagem, forma incompleta e narrativas
em desenvolvimento. (Sennett, 2007: 293).
Estes elementos são sugeridos na terceira peça que completava a parte do projecto
de Paulo T. Silva. Um conjunto de três fotografias realizadas entre 2006-07, impressas a
jacto de tinta sobre papel de algodão (duas de 100 x 100 cm e uma de 100 x 145 cm), com
molduras em faia natural, aplicado numa das paredes laterais, na direcção em frente ao
observador sentado na peça com a caixa de luz (fig. 20). As três fotografias tinham em
comum o facto de serem registos diurnos de pessoas em momentos de pausa na passagem
por espaços verdes nos centros de cidades. À partida, sabemos que estes espaços estarão
Fig. 20. Paulo T. Silva, Travessia de Fronteira – Parte I, 2007 (tríptico de fotografias, fragmento da instalação).
Sala do Veado – Museu Nacional de História Natural, Lisboa.
Fig. 21. Paulo T. Silva, Travessia de Fronteira – Parte I, 2007 (detalhe do tríptico de fotografias, fragmento da instalação).
Sala do Veado – Museu Nacional de História Natural, Lisboa.
Fig. 22. Paulo T. Silva, Travessia de Fronteira – Parte I, 2007 (detalhe do tríptico de fotografias,
fragmento da instalação). Sala do Veado – Museu Nacional de História Natural, Lisboa.
Fig. 23. Paulo T. Silva, Travessia de Fronteira – Parte I, 2007 (detalhe do tríptico de fotografias,
fragmento da instalação). Sala do Veado – Museu Nacional de História Natural, Lisboa.
Plotino dizia que a arquitectura é aquilo com que ficamos quando retiramos a uma construção todos
os seus elementos materiais, isto é, uma lógica de sentido que define acerca da disposição desses
elementos materiais num determinado espaço. A prática arquitectónica e, também, a prática artística
modernas tornaram explícito que esta disposição de sentido no espaço não opera apenas com ele-
mentos materiais (e menos ainda, exclusivamente, com elementos estruturais) mas igualmente com
elementos imateriais, ou seja, tal como os teóricos da espacialidade social (Foucault, Henri Lefeb-
vre, Edward Soja) deixaram claro, a arquitectura está envolvida num processo de construção e de
disposição dos corpos e dos seus ritmos, das mentalidades e dos seus processos de organização,
das emoções e das suas lógicas de controlo, das formas de imaginário e das suas ritualizações no
espaço. (Bártolo, 2007)
Não podemos adivinhar o que ali nos espera, e assim que se entra sente-se uma suspensão operar
sobre a nossa percepção do tempo e do espaço. A sala não tem saída e seis janelas oferecem o
jardim ao nosso olhar, coado pelo que a princípio parece ser uma chuva leve que embacia a visão.
o despojamento desta sala, que surge como uma câmara que guarda um segredo, torna mais vivo
o mundo lá fora filtrado pelo estranho véu que teremos de atravessar. Neste sentido, algo de reve-
lador se passa em nós e experimentamo-lo confusamente como uma coisa há muito conhecida que
surge subitamente a uma nova luz. Entramos nesta sala e é como acordar. (…) A Sala do Veado
transformada num peculiar espaço de tempo, é disso que se trata aqui. (Branco, 2007)
As reacções e atitudes das pessoas foram diversas, desde as que nem chegavam a
entrar na sala, às que permanceram uma hora ou mais e ainda as que regressaram várias
vezes em diferentes dias. Importa referir que embora esta sala faça parte do circuito de
exposições de arte contemporânea em Lisboa já há mais de vinte anos, o público que a
visita é mais heterógeneo e imprevisível do que seria se fosse um museu de arte.
A atitude espontânea de atravessar o corredor entre as paredes de linhas não era
comum a todas as pessoas. As que não fizeram a travessia por considerarem que nada mais
existia para descobrir no lado de lá que não fosse já visível no lado de cá, não chegaram
a saber da existência da água nos tabuleiros que aprentemente pareciam apenas chapas de
ferro com superfícies polidas. Também não chegaram a ver as porções do céu e das copas
das árvores que entravam para dentro da sala, e ficaram ainda sem saber como tudo seria
já diferente no percurso inverso, embora tudo fosse o mesmo de há instantes. As crianças
avançavam sempre naturalmente e assim que chegavam ao lado de lá tocavam a imagem
reflectida nos tabuleiros, tocavam a água. Citando ainda Branco:
Fig. 27. Marta Traquino, Travessia de Fronteira – Parte II, 2007 (vista geral da instalação).
Sala do Veado – Museu Nacional de História Natural, Lisboa.
28
Understood as convergence zones between the material and the immaterial, walls basically concern the
relathionship between bodies and their environment, speeds and affects, the enginnering of affects and mo-
bility through one another. (Brighenti, 2009: 68)
Fig. 28 e 29. José Luis Guerin, En Construccìon, 2001 (fotogramas do filme), Barcelona.
29
En el resultado sorprende la inclusión preponderante de imágenes de destrucción y derribo frente a las de
construcción propiamente. Pone de manifiesto la fragilidad actual de la arquitectura, la forma artística con-
siderada de la permanencia, al enseñar cómo edificaciones recientes son demolidas con el propósito de erigir
otras nuevas en su lugar. (…) sólo la arquitectura de poder perdura en el tiempo mientras que, por el con-
trario, no hay respeto por la arquitectura más habitable, la que pertenece a aquellos que deambulan por la
pantalla víctimas de las disposiciones políticas de embellecimiento urbano. El nuevo orden implica una se-
lección de lo que debe desaparecer y de lo que es merecedor de indulto. (…) La reconstrucción del Raval
trae consigo no sólo la metamorfosis del paisaje urbano sino también del paisaje humano. (Merás, 2002)
In Comparision apresenta o tijolo como uma metáfora global para a interacção humana nos proces-
sos de construção e resultados finais construídos. o filme começa em Gando, Burkina Faso — uma
aldeia num dos países mais pobres do mundo. os tijolos para um pequeno hospital estão a ser ma-
ufacturados pela comunidade da aldeia, simplesmente através do uso das mãos e dos pés. Homens,
mulheres e crianças falam e riem juntos através do processo (…) A meio do filme (…) imagens de
uma nova fábrica de tijolos alemã com processos de produção totalmente automatizados. A única
pessoa que ainda está na imagem é um operário sentado de braços cruzados junto a um computador
rodeado por máquinas. Durante todo o processo, o ser humano nunca toca o material básico, a terra,
nem o produto concreto, o tijolo. (Lepik, 2010)30
Estes modos de observação em torno do enformar das paredes dão ênfase à dimen-
são de temporalidade que estas subentendem. Não a temporalidade apenas por sugestão
visual que, por exemplo, pode derivar das metamorfoses de cor e textura nas suas super-
ficies, mas a temporalidade que é activada pelo movimento do corpo que ousa indagar
sobre o que ‘oculta’ aquilo que se dá a ver, sobre o que pode um limite mostrar através de
si mesmo, no seu ‘porquê’ e ‘como’. A existência de limites no espaço físico, como os de-
terminados por paredes ou fronteiras geográficas, é inerente à efectiva limitação ou res-
trição de movimentos. De um modo ou de outro, é a afirmação de uma imposição de
distância ideológica na proximidade espacial que está em causa. Só o movimento não ex-
pectável dos corpos poderá revelar a natureza destes limites porque os põe à prova, con-
frontando o seu desígnio com o momento presente. os limites deixam então de ser uma
representação no espaço para se tornarem experiência, ou por outras palavras, um possível
espaço de representação para quem os pratica, zonas para o exercício da subjectividade.
onde exista uma fronteira que não seja praticável estaremos provavelmente perante uma
situação onde a liberdade corre risco.
30
In Comparison presents the brick as a global metaphor for human interaction in the process of building,
and final built results. The film starts off in Gando, Burkina Faso – a village in one of the world’s poorest
countries. The bricks for a small hospital building are being manufactured communally by the village com-
munity, simply through the use of hands and feet. Men, women and children talk and laugh together through-
out the process (…) Around half way through the film (…) images of a brand new German brick
manufacturing facility’s fully automised production processes. The only person still in the picture is a blue-
collar worker sitting cross-armed at a computer surrounded by machinery. During the whole process, a
human never touches the basic material, earth, nor the actual product, the brick. (Lepik, 2010)
(...) o distanciamento, o agrupamento, a proteção. Muitas vezes é muito mais do que apenas uma
simples distância (gated communities), porque atrás de uma descontinuidade física ela pode reivin-
dicar uma autonomia política (separatismo). Procuramos então à distância o que não encontramos
no local. os modos de transporte aéreo e marítimo, as tecnologias de comunicação permitem
moverem-se no interior do seu ‘mundo de referência’. No entanto, superar o seu ambiente não é
fácil: os recursos apresentam fragilidades e permanecerem inscritos no seu ambiente imediatamente
vizinho. A proximidade revela-se fonte potencial de conflitos. A distribuição de água, de energia,
o saneamento, os transportes são factores que exigem relações entre estes enclaves e as comu-
nidades vizinhas. o isolamento total parece difícil. (Group Frontière, 2004)31
o sistema que produz este tipo de territórios urbanos, movido pelos interesses e
capitais privados que circulam entre aqueles que os concebem, projectam, constroem,
comercializam e habitam, caracteriza-se por um profundo autismo evidenciado pelo com-
plexo impacto de consequências negativas que causa sobre o exterior que o rodeia, tanto
ao nível material como imaterial, sobre a cidade propriamente dita, sobre as estruturas dos
espaços que outros habitam. Sennett (2005) considera que cada vez que uma gated com-
munitie se ergue um novo gueto passa a existir, tornando-se necessário analisar a cumpli-
cidade deste tipo de construção com a violência e a insegurança na cidade, pois trata-se
de um modo de habitar que recusa o civismo, que pressupõe que as diferenças devem ser
policiadas.
31
(…) la mise à distance, le regroupement, la protection. Il s'agit souvent plus qu'une simple distanciation
(gated communities), car derrière une discontinuité physique elle peut revendiquer une autonomie politique
(sécessionnisme). on cherche alors à distance ce qu'on ne trouve pas sur place. Les modes de transport
aérien et maritime, les technologies de communication permettent de se déplacer à l'intérieur de son « monde
de référence ». Cependant, s'affranchir de son environnement n'est pas chose aisée : les réseaux présentent
des fragilités et demeurent inscrits dans leur environnement immédiatement voisin. La proximité se révèle
source potentielle de conflits. La distribution de l'eau, de l'énergie, l'assainissement, les transports sont autant
d'éléments qui exigent des relations entre ces enclaves et les collectivités environnantes. L'isolement total
semble difficile. (Group Frontière, 2004)
Fig. 31. Dominique Perrault, Grand Theatre D’Albi, 2009-13 (simulação do edifício), Albi.
Transparência significa que a visão não é apenas a visão de algo mas através de algo. Primeira-
mente, o transparente pode ser imaginado como o meio da visão; em última análise, no entanto,
não há distinção clara entre o meio e seu objeto. Transparência implica sobreposição constante e
ambiguidade visual — um facto que evoca o problema da profundidade (…). (Brighenti, 2010c:
13-14)32
32
Transparency means that vision is not only vision of something but through something. At first, the trans-
parent can be imagined as the medium of vision; ultimately, however, there is no clear distinction between
the medium and its object. Transparency entails constant superimposition and visual ambiguity — a fact
that evokes the problem of depth (…). (Brighenti, 2010c: 13-14)
Num contexto público e discursivo mais amplo, o velar de Christo funcionou de facto como uma
estratégia para tornar visível, desvelar, para revelar o que estava escondido quando era visível.
Conceptualmente, o velar do Reichstag teve outro efeito salutar: silenciou a voz dos políticos como
era habitual, a memória dos discursos das suas janelas, o levantamento das bandeiras alemã ou so-
viética no telhado e a retórica política oficial no interior. Assim, abriu um espaço para reflexão e
contemplação, bem como para a memória. A transitoriedade do evento em si — os artistas re-
cusaram prolongar a mostra sob demanda popular — era tal que iluminou a temporalidade e a his-
toricidade do espaço construído, a relação ténue entre lembrar e esquecer. (Huyssen, 2003: 36)33
33
In a larger discursive and public context, Christo’s veiling did function as a strategy to make visible, to
unveil, to reveal what was hidden when it was visible. Conceptually, the veiling of the Reichstag had another
salutary effect: it muted the voice of politics as usual, the memory of speeches from its windows, of the
raising of German or soviet flags on its roof and of the official political rhetoric inside. Thus it opened up a
space for reflection and contemplation as well as for memory. The transitoriness of the event itself — the
artists refused to prolong the show upon popular demand — was such that it highlighted the temporality and
historicity of built space, the tenuous relationship between remembering and forgetting. (Huyssen, 2003: 36)
(…) duas ou mais culturas se orlam mutuamente, onde pessoas de diferentes raças ocupam o mesmo
território, sob o qual, classes baixa, media e alta se tocam, onde o espaço entre dois indivíduos en-
colhe com a intimidade. (Anzaldúa, 1987)34
34
(…) two or more cultures edge each other, where people of different races occupy the same territory, where
under, lower, middle and upper classes touch, where the space between two individuals shrinks with intimacy.
(Anzaldúa, 1987)
o ‘ESPAço CoMUM’ 79
o antropólogo Jean-Loup Amselle (2011) tem uma visão original e muito crítica
sobre ‘multiculturalismo’ que é pertinente à linha de pensamento aqui em causa, ao con-
siderar como a instrumentalização do termo tem conduzido à afirmação de dois segmentos
distintos na população da cidade, o de uma comunidade maioritária (que designa como
‘branca’ e cristã’) e outro no qual se englobam as comunidades minoritárias, sendo disto
exemplo o que se passa em Paris:
Por uma espécie de efeito bumerangue, a aparição no seio do espaço público de minorias etno-cul-
turais e raciais causou, em cada caso, o fortalecimento de uma identidade ‘branca’ e cristã. (...) Ao
definir a priori a cultura de um povo, ou a sua identidade, racisando-a a fortiori, corremos o risco
de ser negados pela historicidade dessa cultura, isto é, pela sua capacidade em integrar uma in-
finidade de elementos que tinhamos postulado, por princípio, não lhe pertencer. (...) Culturalisar,
ou etnicisar ou racisar identidades é o melhor caminho, em particular, para encerrar os jovens das
periferias nos guetos, a melhor maneira de mantê-los sob o jugo do poder. (Amselle, 2011)35
35
Par une sorte d'effet boomerang, l'apparition au sein de l'espace public de minorités ethno-culturelles et
raciales a provoqué, dans chaque cas, le renforcement d'une identité "blanche" et chrétienne. (…) En définis-
sant a priori la culture d'un peuple, ou son identité, a fortiori en la racisant, on prend le risque d'être démenti
par l'historicité de cette culture, c'est-à-dire par sa capacité à intégrer une multitude d'éléments dont on avait
postulé, par principe, qu'ils ne lui appartenaient pas. (…) Culturaliser, ethniciser ou raciser les identités est
le meilleur moyen, notamment, d'enfermer les jeunes des banlieues dans des ghettos, la meilleure façon de
les maintenir sous la chape du pouvoir. (Amselle, 2011)
o ‘ESPAço CoMUM’ 80
2012 (fig. 33). Uma notícia no jornal Público (5 de Maio de 2012) referia o seguinte sobre
a inauguração:
A praça do Martim Moniz, em Lisboa, vai transformar-se, já em Junho, num espaço multicultural
onde serão servidas comidas de vários países (…) aos fins-de-semana, um ‘mercado de fusão’
aberto a vários tipos de comércio, associações e comunidades. (…) De acordo com José Rebelo
Pinto, gerente da NCS - Produção, Som e Vídeo (…) os clientes levarão os seus tabuleiros e in-
stalar-se-ão numa esplanada central (…) com capacidade para 300 pessoas sentadas. ‘Isto fun-
cionará como no Colombo ou em qualquer centro comercial do género. Nós faremos a gestão do
espaço’, diz Rebelo Pinto. Está prevista a instalação de restaurantes com comida chinesa, africana,
japonesa, indiana, portuguesa e não só. (…) aos fins-de-semana haverá uma série de actividades
dominadas pela ideia da multiculturalidade, mantendo e aprofundando a vocação adquirida pela
Mouraria nos últimos anos como lugar de encontro de povos e culturas. (…) salienta o gerente da
NCS, frisando que o novo Martim Moniz ‘é para ficar virado para a Mouraria e não de costas para
a Mouraria. (jornal Público, 5 Maio 2012)
o ‘ESPAço CoMUM’ 81
dida no que refere o próprio mentor do projecto (administrador da NSC), na notícia acima
citada, ao estabelecer a analogia entre a praça do Martim Moniz e um qualquer centro
comercial da cidade, salientando a garantia da gestão do ‘espaço’ pela sua empresa. o
que, por outras palavras, revela a intenção de transformar a praça num espaço maioritaria-
mente orientado para o consumo, ou seja, atribuir-lhe o poderoso filtro selectivo de ‘públi-
cos’. o empresário fala mesmo em ‘clientes’ da praça. Parcelas de chão que antes deste
projecto eram atravessáveis por qualquer transeunte tornam-se delimitadas por áreas qua-
drangulares cobertas de plástico verde a imitar relva, com aviso afixado onde se lê “A
zona lounge destina-se ao uso exclusivo dos consumidores dos quiosques”.
Na realidade, junto à praça do Martim Moniz existe há décadas um centro comer-
cial que se mantém activo e se caracteriza pela ‘diversidade cultural’. o que impede afinal
que o bairro da Mouraria, embora situado no coração de Lisboa, não seja mais conhecido
pela generalidade dos seus habitantes? Qual é a responsabilidade do poder local na exis-
tência dos ‘limites’ que podem justificar a falta de motivação à sua descoberta? os restau-
rantes e outros comércios existentes, bem como as actividades das associações e
colectividades, não oferecem de modo genuíno o que este novo projecto na praça publicita?
Em diversas notícias nos jornais é comum a referência ao Martim Moniz como uma praça
esquecida pelos ‘lisboetas’. Mas não serão as pessoas que todos os dias ali passam, e per-
manecem, também ‘lisboetas’? Quais são afinal os ‘limites’ no espaço que, para que pos-
sam ser atravessados por outras pessoas que não as residentes, justificam a necessidade
de uma ocupação programada da praça com gestão privada?
Fig. 33. Mercado de Fusão, Praça do Martim Moniz, Junho 2012, Lisboa.
o ‘ESPAço CoMUM’ 82
Numa outra notícia, também no jornal Público (9 de Junho de 2012), o mentor do
projecto revela o desejo de revitalizar a zona “encaixando com o que já existe na zona en-
volvente” e de “criar uma nova cidade dentro da cidade”. Duas intenções à partida con-
traditórias, pois sugerem integração e demarcação do contexto pré-existente em
simultâneo. “Uma cidade dentro da cidade” foi o lema publicitário do primeiro grande
centro comercial que abriu em Lisboa (e no país) em 1985, o Amoreiras Shopping Center.
Quase após 30 anos a expressão é utilizada num projecto de ‘reabilitação’ para uma praça
ao ar livre, espaço público por excelência que, como tal, não deveria ser condicionado a
um modelo de uso pré-definido. Através de uma visão com direcção oposta à do exemplo
em questão, e tomando o caso da vivência dos espaços públicos em Istambul, a arquitecta
Hüya Hertas defende a importância dos espaços não-programados na vitalidade do tecido
urbano,
o espaço não-programado não requere que as pessoas vão e criem atividades dentro dele: está ape-
nas lá à espera de ser descoberto e improvisado. É auto-organizado, instável e variável.
o espaço não-programado está aberto à transformação e à mudança, é flexível, e de baixo para
cima em vez de cima para baixo; é espaço público que está aberto para ser privatizado pelos
próprios cidadãos. (Hertas, 2010: 52-57)36
A deambulação de uma criança a passar de bicicleta numa ampla praça pode ser
mais reveladora da natureza verdadeiramente pública do espaço do que a concentração de
300 pessoas numa esplanada. Um mercado ao ar livre também, claro, mas quando por or-
ganização colectiva dos grupos que nele participam, não por iniciativa e gestão de uma
empresa que ganha a concessão do espaço. Como poderia ser o caso dos mercados infor-
mais, que são um elemento fundamental e estruturante da vida social de algumas das cul-
turas mais representativas do bairro da Mouraria. obviamente, pela sua dimensão e
localização, a praça do Martim Moniz seria ideal para tal ocupação éfemera caso o poder
local o permitisse, mas verifica-se que a ‘diversidade cultural’ é por este mais facilmente
reconhecida pelo poder de atracção turística do que pela sua capacidade de iniciativa e rea-
lização.
36
Unprogrammed space does not require that people come and create activities within it; it is just there wait-
ing to be discovered and improvised. It is self-organising, unstable and variable.
Unprogrammed space is open to transformation and change, it is flexible, and bottom-up rather than top-
down; it is public space that is open to being privatized by the citizens themselves. (Hertas, 2010: 52-57)
o ‘ESPAço CoMUM’ 83
Ao encontro da visão de Hertas vai o amplo conjunto de diversas e continuadas
acções genericamente designado Pessoas e Lugares praticado pelo c.e.m. - centro em
movimento, dirigido por Sofia Neuparth (investigadora, criadora e professora do Corpo),
intensivamente desde 2005 em toda a zona da Mouraria:
(…) Pessoas e Lugares não fala de quem nem de onde, mas da experiência de Estar-Com. Também
não fala de ‘o quê’. Estar-Com para nós não denuncia a necessidade de um quê para onde desagua
o Estar. Pessoas e Lugares não são por isso alvos a ‘estar com’, mas sim potenciadores da relação
que faz aparecer a particularidade da acção Estar-Com enquanto ela própria, sem necessidade de
qualquer finalidade para se cumprir. É dessa atenção, desse espaço aberto que convida a fazer
aparecer o que até aqui não tinha forma, que se reorganiza tudo o resto que já lá estava (…) uma
evidência física. Para mim é no fazer tocar essa evidência (do potencial da realidade) que recai a
pertinência do trabalho que fazemos na rua – com as pessoas e os lugares. (Agostinho, 2010: 4)
o ‘ESPAço CoMUM’ 84
propriedade mas pela especificidade de um modo de apropriação temporária. Limpar e
conversar para nada é abrir espaço para ‘dar lugar a’, com tempo de estar, escutar, rever-
berar, integrar, para, nas palavras de Neuparth (2010), deixar que o outro, o espaço, a si-
tuação, façam também o seu movimento na nossa direcção. o trabalho que o c.e.m. tem
vindo a realizar interroga a cidade,
o ‘ESPAço CoMUM’ 85
Interessa assim pensar a ‘diferença’ e os ‘limites’ que a evidenciam no espaço ur-
bano, o que revela a sua articulação, tendo em conta que a tendência crescente que se ver-
ifica para a criação de áreas de habitação (e mesmo de espaço públicos) destinadas a
pessoas com hábitos semelhantes não é propícia ao desenvolvimento da capacidade de
diálogo, fundamental à tolerância entre estranhos que coexistem num mesmo território (o
que inevitavelmente acontece em qualquer cidade). A este respeito Bauman salienta,
Quanto mais tempo permanecemos num meio uniforme — na companhia de pessoas semelhantes,
com as quais podemos comunicar em termos superficiais e prosaicos sem nos expormos a mal-en-
tendidos nem termos a necessidade humilhante de nos esforçar por traduzir significações radical-
mente diferentes — , maior se torna a probabilidade de ‘desaprendermos’ a arte de chegar a
formulas de conciliação e a um modus convivendi. (Bauman, 2006: 42)
A compreensão mútua completa, integral e precisa é uma bitola impossível, desde logo se tivermos
em conta os desafios colocados pela separação entre indíviduos e comunidades em função da cul-
tura, da língua e da história. Mas a compreensão completa ao nível das convicções éticas, religiosas
ou políticas fundamentais implica ainda um outro perigo: o impulso para eliminar totalmente as
diferenças fundamentais. (Appadurai, 2008: 25)
o ‘ESPAço CoMUM’ 86
Esta ‘invenção’ da identidade que refere o sociólogo Michel Wieviorka tem em
conta que o ‘multiculturalismo’ não deve ser entendido apenas como característica das
cidades, mas antes de mais como característica dos indivíduos que constituem os próprios
grupos ‘étnicos’ em questão. Quando tal entendimento é negligenciado pela respectiva so-
ciedade, como alerta Sennett, os valores de cidadania são postos em causa,
Quando a civilidade na cidade funciona bem, as pessoas adquirem múltiplas identidades. (...)
Quando a civilidade falha na cidade, as identidades permanecem singulares em vez de compostas;
alguém que pode ser facilmente estereotipado é mais vulnerável à discriminação do que alguém
com uma identidade social mais complexa. (Sennett, 2005)37
37
When civility in the city works well, people acquire multiple identities. (…) When civility fails in the city,
identities remain singular rather than compound; someone who can be easily stereotyped is more vulnerable
to discrimination than someone with a more complex social identity. (Sennett, 2005)
o ‘ESPAço CoMUM’ 87
superior, com efeitos descriminatórios decorrentes, por exemplo, das desigualdades
económicas. Sendo a imigração a força de trabalho mais explorada pelo neoliberalismo
praticado nestes países, o acesso ao ensino superior torna-se inacessível à condição
económica da grande parte dos elementos dos diferentes grupos que constituem essa força.
Nunca o ensino superior teve uma população de estudantes (e professores) tão caracteri-
zada pela diversidade cultural como no presente, é certo, mas como alerta a este respeito
o teórico literário Walter Benn Michaels (2012) essa ‘diversidade’ cultural caracteriza-se
por uma ‘igualdade’ económica, isto é, os alunos são das famílias materialmente mais
ricas das diversas culturas em causa. Michaels considera que os modos actuais de ‘cele-
bração da diferença’ cultural e étnica podem camuflar as desigualdades económicas, que
a promoção da ‘diversidade’ nas actuais políticas dos países mais desenvolvidos é a des-
culpa e a justificação para o crescente ‘fosso’ que existe entre ricos e pobres, lembrando
que para o neoliberalismo praticado é mais barato ‘respeitar a identidade’ do que pagar
um salário justo. A nova mobilidade do capital e do trabalho produziu, segundo Michaels,
um anti-racismo contemporâneo que funciona como legitimização de capital em vez de
resistência ou crítica. Dando um exemplo do que se passa nas universidades norte ameri-
canas, contexto que como professor conhece bem, refere que todas publicitam o ‘multi-
culturalismo’ que caracteriza o seu corpo de estudantes, no entanto é sabido que 80% dos
jovens norte americanos não têm hipótese de estudar em Harvard, facto que se deve à
diferença de ‘classe’ e não de ‘etnia’.
Se o problema é não respeitar a diferença, então a solução é começar a respeitá-la. Mas se pensarmos
na diferença em termos de uma estrutura de classe onde a essência é ‘mais do que’ ou ‘menos do
que’ e não apenas diferente de, o problema não é apenas que as pessoas pobres pertencem a uma
cultura diferente, é que os pobres são privados de centenas de oportunidades das quais as pessoas
ricas não são privadas, e o importante não é apreciar as suas privações ou as coisas que conseguem-
notavelmente gerir apesar das suas privações mas libertar das privações. (Michaels, 2011)38
38
If the problem is not respecting difference, then the solution is to start respecting it. But if you think of dif-
ference in terms of a class structure where the essence is “more than” or “less than” and not just different
from, the problem is not just that poor people belong to a different culture, it’s that poor people are deprived
of hundreds of opportunities that rich people are not deprived of and the important thing is not to appreciate
their deprivations or the things they remarkably manage to do in spite of their deprivations but to get rid of
the deprivations. (Michaels, 2011)
o ‘ESPAço CoMUM’ 88
Estas ideias de Michael são desenvolvidas no seu polémico livro The Trouble with
Diversity: How We Learned to Love Identity and Ignore Inequality (2006), antecedidas
por uma reflexão sobre a ideia de ‘raça’ que, segundo o autor, é actualmente substituída
pela de ‘cultura’. Neste sentido, a ideia de ‘diferença’ implícita no ‘multiculturalismo’ não
tem a ver, segundo o autor, com as diferenças de ordem biológica (de sangue) que errada-
mente se associavam com ‘raça’ mas com as de pensamento e atitude, com o que as pessoas
de diferentes grupos pensam e praticam. A experiência da universidade, como via privile-
giada para o desenvolvimento do indivíduo pelo contacto com a diversidade de pensa-
mento e opção que possibilita, é determinante para contrariar a condição de ‘imobilidade’,
ou de ‘mobilidade limitada’ que parece estar em acordo com a ideia de ‘diferença’ con-
forme tem vindo a ser praticada pelas políticas dos países ocidentais, na qual ‘diversidade
cultural’ não é sinónimo de ‘liberdade cultural’. Limitar tal acesso com base na desigual-
dade económica será impedir que aqueles que são alvo dos trabalhos mais injustamente
remunerados possam reunir condições para a (re)invenção das suas identidades, e estes
são exactamente, não exclusivamente mas na sua maioria, os que pertencem às comu-
nidades minoritárias que, pela sua existência culturalmente confinada, permitem as so-
ciedades e os discursos ‘multiculturalistas’.
Na conferência acima mencionada, a propósito da citação de Appadurai, o psicólo-
go social Jorge Vala, focando a dimensão polissémica do conceito de ‘diferença’, referiu
que “A diferença entre iguais remete para a ideia de diversidade e pode ser celebrada como
um valor. A atribuição de diferença entre desiguais pode ser ela própria um factor de acen-
tuação de desigualdade e de inferiorização.” (Vala, 2008: 102). A segunda hipótese é a
que nos parece corresponder a usos dos espaços públicos como o exemplo referido do
projecto na Praça do Martim Moniz, ainda que a ideia de ‘diferença’ promovida em asso-
ciação com valores de ‘tolerância’ ou ‘interculturalidade’ possa sugerir que o que está em
causa é a prática do contrário. Na realidade, à porta do bairro que no coração de Lisboa é
habitado pela maior diversidade de comunidades imigrantes, instalou-se um modelo de
uso da praça pública com programação e gestão estabelecida por entidades não represen-
tativas dessas comunidades minoritárias, embora tomando como ‘tema’ a valorização das
suas diferenças culturais mas para consumo de um público que se caracteriza, de um modo
geral, pela cultura maioritária do país de ‘acolhimento’. Através deste modelo de uso, ape-
sar de gerador da presença e movimento de muito mais pessoas do que o habitual no quo-
o ‘ESPAço CoMUM’ 89
tidiano do sítio, será que a praça se torna efectivamente um ‘espaço comum’?
Do nosso ponto de vista, o ‘espaço comum’ na cidade será aquele onde o ‘diálogo’
pode acontecer como processo de troca entre diferenças que se encontram em condições
de mobilidade equivalentes, e não quando uma avança pelo espaço da outra confinando a
possibilidade dos movimentos desta, como tendencialmente acontece nos eventos culturais
(incluíndo de ‘arte pública’) que se publicitam via ‘multiculturalismo’ e ‘celebração da
diferença’ nas principais cidades europeias.
(...) estamos constantemente privados de uma característica crucial do espaço urbano que também
acontece ser característica crucial de qualquer cultura legal: a capacidade e a oportunidade para com-
parar, para disputar pela comparação, para investigar os modos como os limites são impostos. os
limiares podem ser duplamente experiências urbanas espaço-temporais e áreas de activamente ex-
perimentar indistinções: indistinções espaciais e jurídico-políticas igualmente. (Stavrides, 2010: 34)39
39
(…) we are constantly deprived of a crucial characteristic of urban space which also happens to be crucial
characteristic of any legal culture: the ability and the opportunity to compare, to dispute by comparing, to in-
vestigate the ways limits are imposed. Thresholds can be both spatiotemporal urban experiences and areas of
actively experiencing indistinctions: spatial and juridico-political indistinctions alike. (Stavrides, 2010: 34)
o ‘ESPAço CoMUM’ 90
Estas ideias assentam na convicção de que a existência do ‘comum’ nos espaços
públicos das cidades só poderá emergir do encontro estabelecido entre as diferenças dos
indivíduos, e não entre as semelhanças, o que implica, segundo Stravides, que se estabeleça
o foco nas possibilidades de trocas em vez de na afirmação de identidades. Caso contrário,
estaria em causa uma ideia do ‘comum’ relacionada com a ideia de ‘comunidade’ que,
confinada cultural e geograficamente, mais cedo ou mais tarde pressupõe sempre a ex-
clusão e o privilégio. Encontramos expressão da relação entre ‘comum’ e ‘espaço público’,
por exemplo, no que há de semelhante nos modos de ‘ocupação’ das ruas e praças realiza-
dos em diversas cidades de diferentes países, ao longo de 2011 e de 2012, em defesa de
uma ‘democracia verdadeira’, como aconteceu por exemplo em Madrid, Atenas ou Nova
Iorque. Antoni Negri e Michael Hardt (2011), filósofos políticos e activistas, têm prestado
uma atenção especial a este movimento de uma amplitude geográfica sem precedentes e
focam, a este respeito, a estratégia espacial do ‘acampamento’ como uma das principais
características comuns da especificidade da organização interna das várias ocupações, com
as suas assembleias e estruturas participativas horizontais, sem líderes ou outros repre-
sentantes, onde foram construídas e tomadas decisões durante semanas ou meses (fig. 36-
39). A temporalidade a que leva a ‘permanência’ de uma multidão de desconhecidos em
ocupação do espaço público, sem agenda pré-definida, depende da capacidade quotidiana
de ‘criação’ de situações, o que induz a uma relação entre espaço/tempo contrária à pro-
duzida pelo actual capitalismo que leva antes à constante necessidade de ‘responder’ a
Fig. 36. Occupy Wall Street , acampamento no Zuccotti Park (Liberty Plaza Park),
outubro 2011, Nova Iorque.
o ‘ESPAço CoMUM’ 91
situações. Como salienta Jason Adams (2011), professor e investigador de cultura, média
e política:
Em vez de manter esta estratégia espacial a todo custo, o que é mais interessante sobre o ocupar
agora é que está a complicar acentuadamente imagens estáticas de espaço: está, resumidamente,
a ocupar o tempo. Isto tem significado uma mudança para uma abordagem mais fluida, táctica, não
apenas apropriada para as especificidades de situações em constante mudança implantadas de cima,
mas que, mais importante, permite trazer novas situações de baixo. De facto, a introdução inicial
de uma duração em aberto para os eventos ocupar orientou os eventos subsequentes principalmente
face ao temporal e ao táctico em vez do espacial e estratégico. Esta foi realmente a sua maior força
e é a principal razão pela qual a estratégia espacial fez tão bem como fez. (Adams, 2011)40
Fig. 37. Occupy Wall Street , acampamento no Zuccotti Park (Liberty Plaza Park), outubro 2011, Nova Iorque.
40
Rather than maintaining this spatial strategy at all costs, what is most interesting about occupy now is that
it is increasingly complicating static images of space: it is, in short, occupying time. This has meant a shift to
a more fluid, tactical approach, one not only appropriate to the specifics of constantly changing situations
deployed from above, but one that more importantly, allows it to bring forth new ones, from below. Indeed,
the initial introduction of an open duration for the occupy events already oriented the subsequent events pri-
marily towards the temporal and the tactical rather than the spatial and strategic. This was truly its greatest
strength and is the major reason the spatial strategy did as well as it did. (Adams, 2011)
o ‘ESPAço CoMUM’ 92
Fig. 38. Occupy Wall Street , acampamento no Zuccotti Park (Liberty Plaza Park), outubro 2011, Nova Iorque.
Erik olin Wright (2011), sociólogo interessado em reflectir sobre o que na so-
ciedade ‘pode vir a ser’, considera esta apreensão e ocupação do espaço público através
do ‘acampamento’ à luz da sua força simbólica emancipatória, enquanto proposta de
prática de resistência à crise de legitimação do sistema político económico (europeu e
norte-americano). Trata-se da demonstração pública de um modelo experimental de de-
liberação democrática e de intensidade participativa orientado por valores que visam uma
sociedade alternativa. Um modo de actuação que Wright identifica como sendo do âmbito
das ‘transformações intersticiais’ que visam a aquisição de poder social a partir de ‘nichos’
considerados à margem da sociedade capitalista, à partida não constituintes de nenhuma
ameaça imediata às elites e classes dominantes mas que, acumulativamente, não só podem
gerar mudanças concretas nas vidas das pessoas envolvidas como contribuir significati-
vamente para ampliar o alcance transformador de tal aquisição de poder na sociedade
como um todo. No entanto, estes modos de ocupação das praças e ruas têm sido frequente-
mente referidos pelos jornalistas nas notícias como sendo vazios ou pouco claros no que
respeita às suas reivindicações, pois não se fazem representar por ‘líderes’ que possam fa-
cilitar a comunicação mediática. Tais jornalistas demonstram assim carecer de uma ob-
o ‘ESPAço CoMUM’ 93
servação capaz de articular e interpretar as relações entre as práticas espaciais em causa e
as características dos espaços onde acontecem. Hardt constata que é exactamente a recusa
da representação e qualquer identificação partidária que levam à consciência da capacidade
de acção política à escala individual. Durante o período da ocupação as pessoas aprendem
como na realidade não têm tempo para se governar a si próprias. Como salienta a socióloga
Saskia Sassen (2011), reflectindo a este respeito sobre os exemplos das ocupações na Praça
Tahrir (Cairo) e no Parque Zuccotti (Nova Iorque), trata-se de uma prática de ‘produção
de presença’ por parte daqueles que não têm poder,
(…) que reivindicam direitos à cidade e ao Estado, em vez de protecção de propriedade. o que as
duas situações partilham é a noção de que novas formas do político (para Weber, cidadania) estão
a ser constituídas, com a cidade como um local chave para este tipo de trabalho político. A cidade
é, por sua vez, em parte constituída através destas dinâmicas. Muito mais além do que um subúrbio
calmo e homogéneo, a cidade contestada é onde o cívico é feito. (Sassen, 2011)41
Sassen considera também centrais a esta prática a relação entre o ‘ocupar território’
e os limites da ‘opinião digital’ que, apesar dos seus vastos poderes tecnológicos, deve
aqui ser entendida apenas como uma ferramenta útil ao novo meio de comunicação social
que é o próprio ‘acampamento’ no espaço público. Este último a ser entendido por relação
com o conceito de Rua Global, um espaço onde novas formas do ‘social’ e do ‘político’
podem acontecer por diferenciação de um espaço de rotinas previsíveis conforme o tradi-
cional conceito europeu de ‘espaço público’ associado à piazza e ao boulevard. Segundo
Sassen, o primeiro assinala ‘acção’ e o segundo assinala ‘ritual’. Desigualdade social, ex-
pulsões de lugares e de modos de subsistência, classes políticas corruptas, ganância e
opressão extremas são alguns dos motivos que estão hoje a fazer emergir a Rua Global
em diversos países de diferentes continentes. Sassen frisa que aqueles que não têm poder
estão a fazer História (e histórias) e uma nova política através da sua ‘presença’ na rua,
por se darem a ver uns aos outros.
o que este modelo de ocupação do espaço público põe em prática é exactamente
o questionar do sistema capitalista existente através de acções de democracia participativa.
41
(…) that claims rights to the city and to the state rather than protection of property. What the two situations
share is the notion that new forms of the political (for Weber, citizenship) are being constituted, with the city
as a key site for this type of political work. The city is, in turn, partly constituted through these dynamics. Far
more so than a peaceful and homogenous suburb, the contested city is where the civic is made. (Sassen, 2011)
o ‘ESPAço CoMUM’ 94
Como tal, não pode partir de reivindicações pré-definidas como seria desejo de grande
parte dos jornalistas. Através do acto de ‘ocupar’, a rua ou a praça tornam-se ‘espaços do
fazer’, porque diferentemente da ‘demonstração’ (como por exemplo é o caso das mani-
festações ou dos desfiles), ‘ocupar’, como diz Sassen, dá muito trabalho. Pela ‘ocupação’
os corpos permanecem num sítio específico, na ‘demonstração’ os corpos estão em trânsito.
‘ocupar’ implica assim criar um ‘novo território’ para a co-habitação diária de uma imensa
diversidade cultural e para isto não pode existir um plano pré-definido, os próprios códigos
de comunicação e a organização e distribuição das diversas funções necessárias à sobre-
vivência no local estão a ser inventados, no momento da acção, por aqueles que se encon-
tram a partilhar um mesmo chão e a recusa de serem expulsos do direito à cidade (e à
própria vida) pelo actual sistema. A imprevisibilidade, à partida, do tempo de permanência
é uma das especificidades que caracteriza estas ocupações mas, quer seja por alguns dias
ou por meses, será sempre efectiva a destabilização dos significados que tal sistema impõe
como estáveis, sustidos, como diz Sassen, por poderosas explicações que pretendem fazer
esquecer que a ‘pobreza’ ou a ‘descriminação’ são sempre situações criadas, produzidas
por ‘alguém’. Demonstram-se novas visões do social, pela prática de outras formas de
vida num inesperado território que se instala como um buraco estrutural no território ins-
tituído pelo sistema da Finança Global (cujos actores principais são instituições e orgãos
reguladores que actuam ao nível internaciona). Sassen defende que tal modelo de ocupação
actua na zona de sombra entre a ausência de poder e o poder dominante, activando o que
designa como ‘capacidades urbanas’, ou seja, a mistura do território pré-existente (que é
a cidade) com as pessoas.
Também reflectindo sobre os ‘acampamentos’ nas ruas e praças de diversas
cidades, o crítico de arquitectura Michael Kimmelman (2011) salienta como a organização
destes contraria a tendência actual para substimar o potencial político dos lugares físicos
e como evidencia o quanto se tem permitido que o ideal cívico do espaço público, como
palco de expressão e assembleia de cidadãos, se transforme em mais uma área de negócio
para as grandes empresas (Lisboa é actualmente uma das cidades europeias mais exem-
plificativa de tal permissão).
o ‘ESPAço CoMUM’ 95
[Afirmar] Que a mensagem dos ocupantes do Parque Zuccotti é confusa, de algum modo perde o
essencial. o acampamento em si tornou-se o essencial (...) E era óbvio para mim, vendo a multidão
a coalescer ao longo de vários dias, que o consenso emerge urbanisticamente, significando que os
manifestantes, que conceberam a sua própria forma de governo sem liderança para manter a paz,
encontrar a unidade na comunidade. (...) Dito isto, é no terreno onde os manifestantes estão a
cconstruir uma arquitetura de consciência. (Kimmelman, 2011)42
Fig. 39. Occupy Wall Street, The People’s Library, Liberty Plaza Park, Novembro 2011, Nova Iorque.
42
That the message of the Zuccotti Park occupiers is fuzzy somewhat misses the point. The encampment
itself has become the point (…) And it was obvious to me watching the crowd coalesce over several days
that consensus emerges urbanistically, meaning that the demonstrators, who have devised their own form of
leaderless governance to keep the peace, find unity in community. (…) That said, on the ground is where the
protesters are building an architecture of consciousness. (Kimmelman, 2011)
o ‘ESPAço CoMUM’ 96
Se é possível aqui falar de um sentido de ‘comunidade’ como refere Kimmelman,
não poderá ser com base na ideia de ‘comunidade’ que subentende uma linguagem, raça,
religião, condição económica, ou outras condições comuns aos seus membros que em úl-
tima instância podem levar à exclusão da diferença (sendo um exemplo extremo o caso
do Regime Nazi). o sentido de ‘comunidade’ em causa nestas recentes ocupações nas ruas
e praças das cidades constitui-se pela heterogeneidade e pluralidade, contrariando os
‘micro-fascismos’ que se observam nas estratégias usadas para a fragmentação espacial e
social da urbanidade que segregam e excluem, produzindo e sustentando o medo, a inse-
gurança e a desconfiança. A ‘imprevisibilidade’ será assim condição inevitável. Sassen
considera que estas ocupações sem partido, sem plano ou programa, inauguram um ‘espaço
semântico’ de onde certos debates podem emergir que de outro modo jamais seriam pos-
síveis. Ao encontro do pensamento de Agamben no seu livro A comunidade que vem
(1993), e que me parece visionário face ao debate que tais ocupações instalaram no pre-
sente, trata-se da ‘comunidade’ tida como um acontecimento, como uma forma de resistên-
cia vinda das pessoas anónimas que sem afirmarem uma identidade específica ou condição
de pertença manifestam o seu ‘ser comum’. Este, segundo Agamben, é a nossa própria
natureza linguística cuja possibilidade é expropriada pela violência do espectáculo
mediático, alienante da nossa habilidade em comunicar, em relacionar com os outros, em
cooperar, em partilhar memória colectiva, em criar novas relações,
(…) aí, onde o mundo real se transformou numa imagem e as imagens se tornam reais, a potência
prática do homem separa-se de si própria e apresenta-se como um mundo em si. É na figura deste
mundo separado e organizado através dos ‘media’, em que as formas do Estado e da Economia se
penetram mutuamente, que a economia mercantil acede a um estatuto de soberania absoluta e ir-
responsável sobre toda a vida social. Depois de ter falsificado a totalidade da produção ela pode
agora manipular a percepção colectiva e apoderar-se da memória e da comunicação social, para
transformá-las numa única mercadoria espectacular, em que tudo pode ser posto em questão, ex-
cepto o próprio espectáculo, que, em si, nada mais diz do que isto: o que aparece é bom, o que é
bom aparece . (Agamben, 1993: 61-62)
Jean-Luc Nancy (2000), um dos filósofos que mais tem reflectido sobre a ideia de
‘comunidade’ nas duas últimas décadas, evita o uso do termo porque o seu pensamento
toma uma direcção divergente da tradicional visão de ‘comunidade’ enquanto algo que
tende para ser socialmente positivo. Nancy considera que onde a ‘sociedade’ começa ine-
vitavelmente desaparece a ‘comunidade’, pois a cumplicidade que à partida é suposta exis-
tir entre os membros desta dissolve-se necessariamente por entre a amplitude das
o ‘ESPAço CoMUM’ 97
dimensões da primeira. Prefere assim falar de ‘estar-em-comum’ ou ‘estar-com’, o que
nos parece consonante com a ideia de ‘espaço semântico’ de que fala Sassen a propósito
da ‘ocupação’ do espaço público pela multidão. ‘Estar’ implica o corpo ocupar uma
posição num determinado espaço por um período de tempo. ‘Estar-com’ pressupõe que
na mesma situação espacio-temporal haja mais do que um corpo e que cada um reconheça
a presença de outro(s), reconhecimento que em si potencia relação. As ‘presenças’ como
significantes (como se fosem palavras) que, pelo seu posicionamento simultâneo, rela-
cional e de permanência num mesmo espaço, constituem significado (como se fosse um
texto).
Não há significado se o significado não é partilhado, e não porque haja um significado último ou
primeiro que todos os seres têm em comum, mas porque o significado é em si a partilha do Ser. o
significado começa onde a presença não é pura presença mas onde a presença vem à parte [se dis-
joint] a fim de ser como tal. Este ‘como’ pressupõe o distanciar, o espacear e a divisão da presença.
Apenas o conceito de ‘presença’ contém a necessidade desta divisão. Pura presença não partilhada
— a presença de nada, do nada, para nada — não é nem presente nem ausente. É a simples implosão
de um ser que nunca poderia ter sido — uma implosão sem qualquer vestígio. (Nancy, 2000: 2)43
Dar corpo ao espaço. Um corpo colectivo que estabelece acesso a outros modos
de ver o espaço que ocupa, através do que se revela entre as posições tomadas pelas sin-
gularidades que o constituem, expostas umas às outras em movimento demorado. Neste
‘estar-com’ é possível a estabilidade do olhar que, como considera Brighenti, é um modu-
lador crítico da interacção social, “não é simplesmente sintomático das intenções que as
pessoas têm quando começam uma interação, mas antes constitutivo do significado que a
interação assume para as pessoas envolvidas na mesma.” (Brighenti, 2010c: 24)44
Este ‘espaço comum’ apenas pode emergir de uma interrupção no sistema de co-
ordenadas pré-existente segundo o qual se configuram as práticas espaciais habituais.
43
There is no meaning if meaning is not shared, and not because there would be an ultimate or first signifi-
cation that all beings have in common, but because meaning is itself the sharing of Being. Meaning begins
where presence is not pure presence but where presence comes apart [se disjoint] in order to be itself as such.
This ‘as’ presupposes the distancing, spacing, and division of presence. only the concept of ‘presence’ contains
the necessity of this division. Pure unshared presence — presence to nothing, of nothing, for nothing — is
neither present nor absent. It is the simple implosion of a being that could never have been — an implosion
without any trace. (Nancy, 2000: 2)
44
The gaze is not simply symptomatic of the intentions people have when thay begin an interaction, but rather
constitutive of the meaning the interaction assumes for those engaged in it. (Brighenti, 2010c: 24)
o ‘ESPAço CoMUM’ 98
Como um novo território de co-existência que, embora provisório, tem o poder de se so-
brepor ao território estabelecido retomando uma ‘presença comum’ movida pelo desejo
de fazer acontecer em colaboração. Desejo que terá estado na origem da cidade, mas que
a actual sociedade capitalista apaga da memória e da vontade dos seus habitantes. Para tal
amnésia contribuem, por exemplo, a densidade de programas festivos organizados pelos
poderes locais para animar os espaços públicos (sendo muitos deles eventos promocionais
de marcas globais) aos quais a multidão ocorre apenas como espectadora e consumidora.
Nunca a oferta cultural nas cidades foi tanta e tão variada, é certo, mas o problema é a es-
cassez de alternativas que contrariem a actual tendência para a instituição de um entendi-
mento exclusivo dos espaços públicos como locais de entretenimento programado ou, na
ausência deste, apenas locais de passagem. Qual, é na realidade, a dimensão pública de
um espaço onde não é possível a implicação do indivíduo na sua (re)criação?
As ruas e praças na cidade tendem cada vez mais a ser essencialmente zonas de
passagem contínua. Mesmo quando dispõem de equipamentos e infra-estruturas que
aparentemente induzem à permanência (como bancos ou zonas relvadas), o tempo de
‘estar’ pode ser condicionado por soluções formalmente discretas mas concebidas com o
objectivo de criar desconforto pelo uso demorado. Por exemplo, os bancos públicos con-
cebidos com dimensões que impedem deitar, os rebordos de corrimãos ou separadores em
volta de canteiros que magoam o corpo ao sentar, ou as fontes com o nível de água definido
de modo a manter sempre húmidos os bordos ou o chão em volta para que ninguém se
sente. o documentário Pas Lieu D’être (2003), de Philippe Ligniéres (fig. 40), é bastante
sugestivo sobre a identificação destas situações através das observações de sociólogos,
médicos, assistentes sociais, filósofos, moradores, geógrafos, entre outros, relativas a
cidades francesas que conhecem bem. Situações exemplificativas de como em nome da
requalificação, segurança e higiene, os arquitectos, urbanistas e paisagistas colaboram
numa remodelação do espaço urbano segundo o que nos países anglo-saxónicos se designa
como ‘espaço defensivo’ e em França como uma ‘arquitectura de prevenção situacional’.
Por outras palavras, a criação de estratégias para a exclusão, descriminação, e estigmati-
zação de certos habitantes da cidade (sobretudo os que necessariamente dormem na rua,
mas não só) através de detalhes específicos na morfologia e equipamentos das ruas que
impedem a possibilidade de ‘estar’ no espaço (aparentemente) público. Possibilidade
remetida quase exclusivamente para as cadeiras das esplanadas dos cafés e restaurantes,
o ‘ESPAço CoMUM’ 99
tornando-se assim necessário pagar para permanecer na rua com algum conforto físico. o
filósofo urbano Thierry Paquot refere a tendência para a supressão progressiva do cidadão
anónimo livre em favor do consumidor, alerta sobre a actual construção da ‘cidade da in-
terdição’ que é a negação da própria cidade, pois a habitabilidade é condição essencial
desta. No entanto, é curioso constatar como desde os referidos movimentos de ‘ocupação’
se observa, em várias cidades europeias, a tendência dos jovens em se sentarem no chão
das ruas e praças para conviver, não necessariamente junto aos edifícios ou nos degraus
das portas e passeios, mas literalmente no trajecto do trânsito pedonal.
Fig. 40. Philippe Ligniéres, Pas Lieu D’être, 2003 (fotograma do filme),
Montpellier, Paris, Sète e Toulouse.
Este cuidado da ‘pequena diferença’ com os seus semelhantes será mais intensa do que a ‘grande’
com outras pessoas totalmente desaparecidas. Para ‘viver de outro modo a cidade’, segundo o slo-
gan das ‘operações de comunicação’ lançadas pelos municipalidades, o neocidadão jamais deverá
ser confrontado com encontros não anunciados, com o estranho e o inesperado. Em suma, com o
45
Ce souci de la « petite différence » avec ses semblables sera d’autant plus vif que la « grande » avec des
gens totalement autres aura disparu. Pour « vivre autrement la ville », selon le slogan des « opérations de
communication » lancées par les municipalités, le néocitadin ne devra jamais être confronté aux rencontres
inopinées, à l’étrange et l’inattendu. Bref, à ce qui faisait le sel de la sociabilité urbaine. Surtout si l’altérité
provient de ces gens qui, venus des banlieues proches ou lointaines de l’humanité, ne peuvent participer à la
kermesse urbaine globalisée. Dans la civilisation « ludico-commerciale » en gestation, où ceux-ci ne peuvent
que faire figure de trouble-fête, le client est roi, l’altérité bannie et le déviant honni. Doit-on se résoudre, dès
lors, à ne plus envisager la ville du futur qu’au travers de ce faux-semblant consensuel d’une urbanité ressus-
citée auquel on injectera un semblant de vie à l’occasion d’une « manifestation » culturelle sponsorisée par
les marchands ou d’un « événement » festif programmé par les autorités ? (Garnier, 2010)
46
(…) que no hay cabeza que no sea cuerpo. Es decir, que no se puede ver el mundo sin recorrerlo y que sólo
se piensa de manera inscrita y situada. Parece simple, pero es lo más difícil porque exige cambiar el lugar y
la forma de mirar. (Garcés, 2011)
47
Le potenzialità del laboratorio sono state verificate: garantisce assenza di frustrazione, gratifica sempre,
genera autonomia ma spinge alla collaborazione; crea competenze. Altra forza sta nella capacità di coinvolgere
gli spettatori: attirati dal fascino del fare foto in scatola sono stimolati a partecipare e riflettere. (…) Gli ambiti
attraversati dal progetto sono molteplici, da quelli legati al lavoro sull'inclusione e la responsabilizzazione
sociale, a quelli attinenti l'eduzione alla mondialità ed alla gestione dei conflitti; il tutto, utilizzando strumenti
delle arti visive e della comunicazione, capaci di arrivare al piccolo ed al grande pubblico. L'aspetto più im-
portante consiste nella capacità di creare, fattivamente, competenze artistiche/espressive/restitutive sia nei
giovani partecipanti che negli operatori, dipendenti degli enti partner e portatori dell'acquisita nuova pratica.
L'innovativo utilizzo degli spazi della città, dei luoghi consacrati alla cultura (museo) o alla comunicazione
pubblica (affissioni) li rende diversamente vivi in un agire creativo e consapevole, che ha come veri protag-
onisti i giovani partecipanti. (IMPoSSIBLE SITES.dans la rue, 2012)
Desenhámos as coordenadas de uma dimensão comum. Apareceu um mundo entre nós. (...) Quando
levantamos a questão pelo nós entre nós temos os nossos olhares uns nos outros. (...) o entre que
há entre nós é hoje o lugar secreto da politização. (...) A libertação tem hoje a ver com a capacidade
de explorar e fortalecer o vínculo: os laços com um mundo-planeta, reduzido a objecto de consumo,
superfície de deslocações e depósito de resíduos, e os laços com esses outros, que condenados a
ser sempre outros, foram expulsos da possibilidade de dizer ‘nós’. (...) A pergunta pelo ‘comum’
hoje exige a coragem de se afundar na experiência do mundo, embora esteja nua e desprovida de
promessas. (...) Politizamo-nos quando nos inscrevemos no mundo de maneira conjunta. o mundo
é o que a globalização nos tem roubado e colocado diante de nós como espelho da impotência que
nos reduz a espectadores, consumidores ou vítimas. (Garcés, 2006)48
48
(…) Hemos dibujado las coordenadas de una dimensión común. Ha aparecido un mundo entre nosotros.
(…) Cuando hemos planteado la pregunta por el nosotros entre nosotros, hemos puesto nuestras miradas unas
en las otras. (…) el entre que hay entre nosotros es hoy el lugar secreto de la politización. (…) La liberación
tiene hoy que ver con la capacidad de explorar el lazo y fortalecerlo: los lazos con un mundo-planeta, reducido
a objeto de consumo, superficie de desplazamientos y depósito de residuos, y los lazos con esos otros, que
condenados a ser siempre otros, han sido desalojados de la posibilidad de decir ‘nosotros’. (…) La pregunta
por lo común hoy exige la valentía de hundirse en la propia experiencia del mundo, aunque esté desnuda y
desprovista de promesas. (…) Nos politizamos cuando nos inscribimos en el mundo de manera conjunta. El
mundo es lo que la globalización nos ha robado y ha puesto frente nuestro como espejo de la impotencia que
nos reduce a espectadores, consumidores o víctimas. (Garcés, 2006)
Uma vez entrados na cidade logo nos damos conta que entre nós e tudo o resto à
nossa volta há… a cidade. Entre o ponto de partida e o de chegada de qualquer direcção
que tomemos, inevitavelmente atravessamos a cidade. Atravessamos ruas, praças, arqui-
tecturas sempre na presença de outros, passando de lado a lado, por entre visibilidades e
invisibilidades. Questiono-me sobre o movimento da visão do corpo que atravessa, sobre
como é que o olhar acompanha o passo que o leva. Penso sobre a possibilidade de um
‘olhar posicionado’, na relação com a horizontalidade, por oposição ao ‘olhar panorâmico’,
cada vez mais verticalizado, que o actual modelo de produção de espaço urbano cultiva.
o primeiro, capaz de relacionar, contrapor e interrogar porque decorre podendo parar, he-
sitar, recuar, retomar e avançar entre o que está de um lado e do outro. o segundo, imerso,
difuso, vago pela velocidade e sequência ininterruptas que o conduzem. Este mantém a
distância e a indiferença, o outro estabelece proximidade e implicação porque ausculta a
medida do seu corpo na relação com o que o rodeia.
(…) perdeu há muito tempo a sua ‘capacidade de medida’ e não pode dar mais respostas às neces-
sidades da ‘sociedade’. Para sobreviver, esta última deve, reciprocamente, elaborar uma nova cons-
ciência dos seus compromissos e tarefas. Mas tudo isso é impossível sem o esforço maior em
restabelecer a capacidade dos próprios homens para a ‘medida-própria’, para se reconhecerem nas
novas ordens que vão organizar a sua vida múltipla de acordo com novas lógicas. Capacidade não
é só conhecimento técnico ou ardil prático. Participa também do mundo extremamente móvel de
valores e esperanças, de princípios e ideais. (Schiera, 2011)49
Levar o indivíduo a atravessar a cidade para tomar uma visão sobre esta a ser ex-
pressa segundo a medida do seu corpo, é o intuito das três ‘propostas para acção’ a apre-
sentar em seguida, constituintes da prática artística paralela ao pensamento que aqui tem
vindo a ser delineado. As propostas Que cor tem agora o céu?, Para um estado encontro
e Livre Acesso podem, antes de mais, ser entendidas como auto-convocatórias à experiên-
cia de um imprevisível e temporário ‘espaço comum’ de onde recuperar o olhar sobre a
cidade, estabelecido pela determinação das coordenadas pessoais na diversidade interpre-
tativa possível de se elaborar e transmitir a partir de uma igualdade de meios e de acessos.
Enquadradas numa situação espacial partilhada, as acções a realizar fundem a corporeidade
com a produção de subjectividade, na atenção ao facto de que
49
(…) has lost long ago its ‘measure-capacity’ and cannot give any more answers to the needs of ‘society’.
In order to survive the latter must, reciprocally, elaborate a new awareness of its commitments and tasks. But
all this is impossible without the greatest effort of restoring the capacity of men themselves to ‘self-measure’,
to recognize themselves in the new orders which are going to organize their multiple life according to new
logics. Capacity is not only technical know-how or practical ruse. It also participates to the extremely mobile
world of values and hopes, of principles and ideals.” (Schiera, 2011)
50
Autrefois, on pouvait imaginer un monde dans lequel l’anticipation intellectuelle représentait une aide pour
l’action et permettait d’atteindre un certain niveau d’universalité. Aujourd’hui, la production matérielle est
nourrie par la production intellectuelle, l’une et l’autre sont enchevêtrées et font partie de ce contexte biopoli-
tique. Sans production intellectuelle il n’y aurait pas le pouvoir énorme du capitalisme. Du même coup, il
faut arriver à imaginer une résistance pleine dans laquelle l’élément corporel et l’élément intellectuel soient
inséparables et qui, au lieu d’être le terrain sur lequel se consolide et se reformule la domination capitaliste,
deviennent la matière même d’une nouvelle organisation de la résistance. (Negri, 2007)
(…) Metendo em causa o funcionamento estereotipado dos espaços normalizados, esses espaços
de agir podem tornar-se espaços de desaprendizagem dos usos sujeitos ao capitalismo e de re-
aprendizagem dos usos singulares, produzindo uma subjetividade coletiva e espacial própria aos
assuntos investidos . (...) o investimento no agir espacial deve permitir permanecer livre de sua
acção, livre de mudar, de parar, de se revezar. A liberdade de acção corresponde à capacidade de
transmitir (um projceto, uma acção, um movimento ...) mas também à de interromper, de suspender,
de introduzir um intervalo (auto)crítico num percurso subjectivo. (Petcou e Petrescu, 2007)51
51
(…) Mettant en cause le fonctionnement stéréotypé des espaces normés, ces espaces de l’agir peuvent de-
venir des espaces de dés-apprentissage des usages assujettis au capitalisme et de ré-apprentissage d’usages
singularisés, en produisant une subjectivité collective et spatiale propre aux sujets investis. (…) l’investisse-
ment dans l’agir spatial doit permettre de rester libre de son action, libre de changer, de s’arrêter, de se relayer.
La liberté d’agir correspond à la capacité de transmettre (un projet, une action, un mouvement…) mais aussi
à celle d’interrompre, de mettre en suspension, d’introduire un intervalle (auto)critique dans un parcours sub-
jectif. (Petcou e Petrescu, 2007)
1. Entrar na sala.
2. Sentar na cadeira junto à mesa.
3. Procurar o céu com o olhar.
4. Observar a cor de uma porção de céu.
5. Pintar na folha de papel uma amostra da cor observada.
6. Assinar e escrever a hora do registo da cor.
7. Fixar a folha de papel no quadro da parede.
8. Lavar o pincel, fechar os tubos de tinta, deixar o excesso
da tinta usada na paleta.
Fig. 47, 48 e 49. Marta Traquino com a colaboração dos visitantes, Que cor tem agora o céu?, momentos de realizações da acção
proposta, 16 de Janeiro de 2010, Ateliê 50 – Coruchéus, Lisboa.
Fig. 50 e 51. Marta Traquino com a colaboração dos visitantes, Que cor tem agora o céu?,
vista da entrada da sala e da instalação,
16 de Janeiro de 2010, Ateliê 50 – Coruchéus, Lisboa.
Fig. 55. Marta Traquino com a colaboração dos visitantes, Que cor tem agora o céu?,
detalhe dos resultados das acções,
16 de Janeiro de 2010, Ateliê 50 – Coruchéus, Lisboa.
Fig. 56 e 57. Marta Traquino com a colaboração dos visitantes, Que cor tem agora o céu?,
vistas da espera para a realização da acção, 16 de Janeiro de 2010, Ateliê 50 – Coruchéus, Lisboa.
A passagem da potência ao acto, da lingua à fala, do comum ao próprio acontece sempre nos dois
sentidos, segundo uma linha de cintilação alternativa em que a natureza comum e singularidade,
potência e acto se tornam reversíveis e se penetram reciprocamente. (Agamben, 1993: 24)
Neste sentido, este projecto poderá fazer eco da declaração de onfray, quando diz
que “repolitizar a arte (não como uma arte política, no sentido militante do termo) implica
a introdução de um conteúdo capaz de produzir um ‘agir comunicacional’ segundo a ex-
pressão de Habermas.” (onfray, 2009: 162). Considerando aqui que político será qualquer
acto pacífico por parte do indíviduo que procura na cidade dos espaços públicos envidraça-
dos o seu espaço de representação. Lembrando a expressão da filósofa política Hannah
Arendt, um simples acto pode tornar-se uma acção política na esfera pública. Agamben
recorda que
A singularidade qualquer, que quer apropriar-se da própria pertença (…) é o principal inimigo do
Estado. onde quer que estas singularidades manifestem pacificamente o seu ser comum, haverá
um Tienanmen e, tarde ou cedo, surgirão os tanques armados. (Agamben, 1993: 68)
Algumas pessoas foram extremamente atentas aos dados físicos do espaço no qual
se encontravam por relação com a posição que nele ocupavam, procurando ser rigorosas
na amostra de cor realizada. outras pintaram antes uma amostra da cor do céu de acordo
com o seu estado de espírito. Na sua maioria diziam “obrigado” quando partiam. Porquê?
52
(…) beyond exclusive communities, that I communities that recognize themselves only through common
characteristics, whether language, race or religion. (Pontbriand, 2000: 8)
Fig. 58, 59 e 60. Marta Traquino com a colaboração dos visitantes, Que cor tem agora o céu?,
momentos de realizações da acção proposta,
16 de Janeiro de 2010, Ateliê 50 – Coruchéus, Lisboa.
53
En restituant à l’individu sa singularité, l’art contemporain lui permet donc de retrouver une place. Face au
monde, dans le monde, il est prêt désormais à s’incliner hors de lui meme, prêt à constituer une zone
d’échanges. (Delbard, 2000: 81)
No dia 22 de Maio de 2010 o projecto Que cor tem agora o céu? realizou-se em
Bruxelas no espaço moorDNoCES, em colaboração com a sua equipa, o Vienna Interna-
tional Apartment e visitantes/participantes (fig. 61-65). No futuro, deverá ser realizado
em mais cidades. A realização em diferentes cidades de diferentes países torna evidentes
as possibilidades de articulação entre dados locais e factores globais (sem que os segundos
anulem os primeiros), através da singularidade do indíviduo expressa em relação com o
espaço urbano que o envolve. Uma obra em desenvolvimento que aspira à ideia de Jacobs
de que as cidades têm a capacidade de proporcionar algo para todos só porque, e somente
quando, são criadas por todos, mas retendo-se, antes de mais, na atenção a como e de onde
se olha.
Fig. 61 e 62. Marta Traquino com a colaboração dos visitantes, What colour has the sky got now?,
momentos de realizações da acção proposta, 22 de Maio de 2010, moorDNoCES, Bruxelas.
São estes os oito momentos que constituem a ‘proposta para acção a realizar por
duas pessoas’ do projecto Para um estado de encontro. Instalação/acção decorrida entre
21 de Novembro e 7 de Dezembro de 2011 (com prolongamento de três dias relativamente
à data inicialmente divulgada). A ‘proposta para acção’ apresentava-se em texto por mim
manuscrito, em folha de papel colocada na parede ao lado da janela de uma pequena sala
(planta 210x330 cms) que apenas continha um tapete enrolado, no tecto uma lâmpada
comum que iluminava tenuemente o ambiente no decair da luz natural e a sonoridade am-
biente de um ribeiro num bosque. o tapete enrolado posicionava-se no chão, ao centro,
podendo esta posição variar consoante as pessoas o deixavam após a realização da acção.
A sala era um dos espaços da minha casa, com entrada independente de acesso directo às
escadas do prédio, na Rua de ‘o Século’, Bairro Alto, em Lisboa (fig. 66).
o tapete utilizado era um tapete berbere, produzido manualmente por tribo nómada
do Norte de África, de cores quentes, com padrão composto por linhas paralelas irregulares
e dois motivos geométricos abstractos, distanciados entre si, semelhantes mas não iguais.
Na casa à qual pertence é habitualmente estendido à entrada nos dias em que se aguardam
visitas de amigos. o registo sonoro instalado provinha da captação directa de som na
margem de um ribeiro num bosque (fig. 67 e 68). No primeiro momento de entrada na
sala o som do fluxo de água era imediatamente perceptível mas ainda em fusão com os
sons da rua, gerando dúvida sobre se era intencional ou acidental. Só após algum tempo
de permanência as pessoas conseguiam distinguir o som de pássaros, e outros, da natureza
do local do registo e perceber que o som, embora difuso, tinha origem do lado de lá de
uma das paredes da sala (o equipamento da instalação não se encontrava visível).
Na informação da divulgação do projecto não era explícito que se tratava de uma
casa de habitação. Era referido apenas o endereço Para um estado de encontro, as datas
de início e fim, o horário, o número de telefone através do qual deveria ser marcada a
visita até um dia antes do desejado, a indicação de que se tratava de uma proposta de in-
stalação/acção a ser realizada exclusivamente por duas pessoas em cada vez, com combi-
nação prévia, e o seguinte texto:
Ao marcar a visita, a pessoa deveria indicar o dia, hora e os primeiros nomes das
duas pessoas em causa. Contemplava-se no mínimo 15 minutos para a duração de cada
visita/acção a realizar, mas poderia ser mais tempo consoante o fluxo de visitas agendadas.
Algumas pessoas chegaram a permanecer uma hora na sala, até à chegada do par seguinte.
Eram recebidas por mim no patamar do piso que tinha duas portas, a de acesso directo à
sala e, ao lado, a de acesso principal à casa. A entrada fazia-se sem sapatos. Após se
descalçarem eu abria a porta da sala para entrarem, indicava-lhes o tempo máximo de que
poderiam dispôr e pedia-lhes que tocassem à campainha da outra porta para me avisarem
quando saíssem. A realização da acção proposta era uma situação exclusivamente das duas
pessoas, não existindo assim qualquer tipo de registo documental realizado por mim sobre
a mesma. A porta da sala permanecia encostada ou fechada no trinco, conforme opção. A
janela poderia manter-se fechada ou aberta, as suas portadas de madeira poderiam também
ser livremente manuseadas para permitir a entrada de mais ou menos luz.
Quarenta e dois pares de pessoas realizaram o Para um estado de encontro. A do-
cumentação do projecto compõe-se de fotografias tiradas aos sapatos das pessoas conforme
deixados no patamar do piso, enquanto se encontravam dentro da sala a realizar a acção,
fotografias tiradas ao interior da sala após se irem embora (fig. 69-76) e dois pequenos
cadernos nos quais cada par registou a sua presença numa página escrevendo os respec-
tivos primeiros nomes, segundo lhes pedia antes de partirem (foram usados dois cadernos
formato A6 pautados, da capa lisa cinzenta).
Como terá sido o enrolar e o desenrolar do tapete a quatro mãos? E a opção con-
junta da posição a ocupar na sala? E a decisão do momento da troca de lugares? Terá
havido consenso em relação ao silêncio e à escuta sugeridos? A ‘horizontalidade’ em causa
na acção proposta relaciona-se, na sua possível tradução para uma dimensão colectiva
mais ampla, com o que refere Marina Sitrin (2012), escritora, advogada e activista:
A horizontalidade é uma relação social que implica, como o seu nome sugere, uma superfície plana
sobre a qual se comunicar. Horizontalidade implica necessariamente o uso da democracia directa
e a luta por consenso, processos nos quais são feitos esforços de modo a que todos sejam ouvidos
e criadas novas relações. A horizontalidade é um novo modo de relacionar, baseado em política
afectiva e contra todas as implicações dos ‘ismos’. É uma relação social dinâmica. Não é uma ide-
ologia ou programa político que deve ser encontrado para criar uma nova sociedade ou uma nova
ideia. É uma ruptura com estes modos verticais de organização e de relacionamento, e uma ruptura
que é uma abertura. (Sitrin, 2012)54
Na sua reflexão sobre como encontrar o ‘nós’ na sociedade actual (e de nós se faz
o tapete berbere), Garcés (2006) refere que a privatização da vida tem sido acompanhada
de uma procura deseperada do ‘outro’, individual e cultural, mas que a pergunta por este
deveria ser antecedida da pergunta pelo ‘nós’, porque “encontrar o outro não é aceder ao
outro. Nem dar-lhe um sítio, simplesmente. Nem tolerá-lo, nem integrá-lo, nem estar mais
relacionado. Encontrar o outro é poder dizer ‘nós’. Que a nossa alteridade deixe de ser
um objecto da paisagem do outro para que passe a ser uma dimensão do nosso mundo
comum.” (Garcés, 2006)55
54
Horizontalidad is a social relationship that implies, as its name suggests, a flat plane upon which to com-
municate. Horizontalidad necessarily implies the use of direct democracy and the striving for consensus,
processes in which attempts are made so that everyone is heard and new relationships are created. Horizon-
talidad is a new way of relating, based in affective politics and against all the implications of ‘isms’. It is a
dynamic social relationship. It is not an ideology or political program that must be met so as to create a new
society or new idea. It is a break with these sorts of vertical ways of organizing and relating, and a break that
is an opening. (Sitrin, 2012)
55
Encontrar al otro no es acceder al otro. Ni hacerle un sitio, simplemente. Ni tolerarlo, ni integrarlo, ni estar
más comunicados. Encontrar al otro es poder decir nosotros. Que nuestra alteridad deje de ser un objeto del
paisaje del otro para que pase a ser una dimensión de nuestro mundo común. (Garcés, 2006)
(…) assiste-se à mercadorização da diferença que parece vender sempre bem. o exótico torna o
próximo distante, tolerável, quando reduzido a mero enfeite multicultural (…) as grandes transna-
cionais sabem bem até que ponto a globalização não só fomentou o cosmopolitismo efectivo e o
democratizou como reforçou o paroquialismo mais limitado, a par das reivindicações em torno do
local. (Sanches, 2009: 160)
56
The public sphere is not just the effect of people assembling but in fact goes back to the construction of a
space to contain them and in which the assembled persons are first able to assemble. (Sloterdijk, 2005: 179)
1. Sentar na cadeira.
2. Tirar da caixa um cartão.
3. Escrever no cartão algo relativo ao percurso de hoje pela cidade até chegar à
biblioteca, assinar e datar.
4. Escolher um livro nas estantes.
5. Inserir o cartão dentro do livro.
6. Colocar o livro na estante com a fita do cartão visível.
7. Ler outros cartões inseridos nos livros.
Fig. 79. Francisco Pinheiro e Marta Traquino com a colaboração dos visitantes,
Livre Acesso, vistas geral da instalação/proposta para acção,
Junho 2012, Biblioteca Municipal Camões, Lisboa.
Fig. 85, 86 e 87. Marta Traquino com a colaboração dos visitantes, Livre Acesso (com Francisco Pinheiro),
momentos de realizações da acção proposta, Junho 2012,
Biblioteca Municipal Camões, Lisboa.
Fig. 88 e 89. Francisco Pinheiro e Marta Traquino com a colaboração dos visitantes,
Livre Acesso, momentos das sessões de leitura improvisada e colectiva,
Junho 2012, Biblioteca Municipal Camões, Lisboa.
Fig. 90. Marta Traquino com a colaboração dos visitantes, Livre Acesso (com Francisco Pinheiro),
cartão escrito resultante de realização da proposta para acção, Junho 2012,
Biblioteca Municipal Camões, Lisboa.
(…) o domínio público existe como ponto de convergência e na zona de indistinção entre processos
materiais e imateriais, por meio do qual um significado imaterial é criado através de actos de ins-
crição e de projecção material. (Brighenti, 2010b: 8) 57
Dar à palavra falada uma presença espacial, obriga mesmo a coisa mais fugaz do mundo a ficar
conosco um pouco mais de tempo do que seria possível num mundo puramente oral. o mundo
gravado ou petrificado pode, então, ser repetido, e deste modo novos objetos mentais podem ser
trazidos à vida (...) A res publica surge a partir deste acto de captar objectos. Se não possuir técnicas
adequadas para prendê-los, então não pode estabilizar acontecimentos fugazes e não lhes pode dar
voz no domínio político. Nesta medida, a democracia é precedida por uma dimensão pré-política na
qual os meios para retardar o fluxo do/s discurso/s se tornam disponíveis. (Sloterdijk, 2005: 180)58
57
(…) the public domain exists at the point of convergence and in the zone of indistinction between material
and immaterial processes, whereby an immaterial meaning is created through acts of material inscription and
projection. (Brighenti, 2010b: 8)
58
By giving the spoken word a spatial presence, it forces even the most fleeting thing in the world to tarry
with us a while longer than would be possible in a purely oral world. The recorded or petrified world can
then be repeated, and in this way new mental objects can be brought to life (…) The res publica arises from
this act of capturing objects. If you do not possess suitable techniques for arresting them, then you cannot
stabilize fleeting events and cannot give voice to them in the political domain. To this extent, democracy is
preceded by a prepolitical dimension in which the means to slow down the flow of speech/es is made available.
(Sloterdijk, 2005: 180)
A democracia depende da capacidade de emprestar uma dimensão espacial às coisas ditas uma
após a outra; como tal implica constante treino de paciência. Só aquele que levar isto sobre si
mesmo poderá ter certeza que não vai prejudicar a sua honra esperar pelo momento em que lhe é
dada a palavra. Assegurar que tal espera não é sentida para acarretar humilhação pode ser realização
cultural considerável e incomparável. (Sloterdijk, 2005: 181)59
Fig. 93. Marta Traquino com a colaboração dos visitantes, Livre Acesso (com Francisco Pinheiro),
cartão escrito resultante de realização da proposta para acção e respectivo lugar no livro
onde foi introduzido, Junho 2012, Biblioteca Municipal Camões, Lisboa.
59
Democracy depends on the ability to lend a spatial dimension to things said one after the other; it therefore
implies constant training in patience. only he will take this upon himself who can be sure that it will not
impair his honour to wait for the moment when he is given the word. Ensuring that such waiting is not felt to
entail humiliation can be considered and incomparable cultural achievement. (Sloterdijk, 2005: 181)
Fig. 94 e 95. Marta Traquino com a colaboração dos visitantes, Livre Acesso
(com Francisco Pinheiro), cartões escritos resultantes de realizações da proposta
para acção e respectivos lugares nos livros onde foram introduzidos, Junho 2012,
Biblioteca Municipal Camões, Lisboa.
(…) a sua dose de conhecimento, diversão, emoção, mas nada saiu da sua pessoa singular, do seu
eu consumidor de experiências. É sabido que o saber e o conhecimento estão sofrendo um forte
processo de privatização, quer seja na forma de divulgação e transmissão através de instituições
cada vez mais fechadas, quer através do seu patentear. Mas na raiz disto, temos de levar em conta
que não só o conhecimento, mas também a experiência foi privatizada. A guetização social vai de
mão com uma guetização vital e experiencial que é um dos problemas chave que qualquer projecto
educativo deve enfrentar hoje. Como quebrar as paredes da auto-referencialidade que, paradoxal-
mente, organizam e compartimentam a sociedade da informação e da comunicação?
(Garcés, 2008)60
o público, portanto, emerge no espaço entre a resistência invisível e a hegemonia normativa. (...)
o domínio público é um movimento que consiste numa série de sempre reversíveis apropriações
situacionais; é um território de afeição definido pela acessibilidade, visibilidade e resistência.
(Brighenti, 2010b: 40) 61
60
(…) su dosis de conocimiento, diversión, emoción, pero nadie ha salido de su persona singular, de su yo
consumidor de experiencias. Es sabido que el saber y el conocimiento están sufriendo un fuerte proceso de
privatización, ya sea en sus formas de difusión y transmisión a través de instituciones cada vez más cerradas,
ya sea a través de su patentización. Pero más en la raíz de eso, hay que tener en cuenta que no sólo el
conocimiento sino también la experiencia ha sido privatizada. La guetización social va de la mano de una
guetización vital y experiencial que es uno de los problemas clave que cualquier proyecto educativo debe
afrontar hoy. Cómo romper los muros de autorreferencialidad que de manera paradójica organizan y com-
partimentan la sociedad de la información y la comunicación? (Garcés, 2008)
61
The public thus emerges in the space between invisible resistance and normative hegemony. (…) The public
domain is a movement consisting of a series of always reversible situational appropriations; it is a territory
of affection defined by visibility, accessibility and resistance. (Brighenti, 2010b: 40)
A soma de tu e eu não é dois. É um entre no qual pode aparecer qualquer. (Garcés, 2006)62
Fig. 96. Marta Traquino com a colaboração dos visitantes, Livre Acesso
(com Francisco Pinheiro), cartão escrito introduzido num livro,
resultante da realização da proposta para acção, Junho 2012,
Biblioteca Municipal Camões, Lisboa.
62
La suma de tú y yo no es dos. Es un entre en el que puede aparecer cualquiera. (Garcés, 2006)
Caminhar hoje pelo centro de uma cidade com uma visão que ousa não se deter na
aparência superficial das suas materialidades, atravessando-as pela implicação do corpo,
é uma experiência que revela como a transparência do vidro é afinal opaca, como os dis-
cursos sobre diluição de limites pela arquitectura ou pelas ‘regenerações’ dos espaços su-
postamente públicos é apenas um exercício de estilo para quem faz negócio com a
diferença do outro, como o chão se enche de obstáculos enquanto cores e formas globa-
lizantes preenchem a verticalidade, fazendo esquecer que uma parede é muito mais do que
uma superfície. A actual produção do espaço tem vindo a criar condições para a prevalência
da visão unilateral, para a diferença como direito exclusivo de quem nunca atravessou as
fronteiras da diversidade, para a horizontalidade de acesso restrito.
Procurando entender como a cidade se dá a ver e a aceder, a atenção focou-se na
performatividade dos corpos face às configurações do espaço urbano. Não tanto a de movi-
mentos consonantes com estas mas sobretudo a de movimentos não expectáveis e, por
isso mesmo, reveladora de limites na urbanidade para além dos fisicamente visíveis porque
os interroga pelo acto de os atravessar. É o movimento transversal sobre as quadrículas
espaciais estabelecidas que evidencia o que está ‘entre’, possibilitando a visão bilateral e
descongelando o exercício da subjectividade acondicionado nos moldes da privatização
da experiência que o capitalismo contemporâneo produz.
Conciliando reflexão teórica e prática artística, investigaram-se zonas de con-
vergência entre características materiais comuns aos centros das grandes cidades ocidentais
e as imaterialidades das relações que as pessoas estabelecem com e através destas, partindo
da observação de acontecimentos de visibilidade, circulação, acessibilidade, apropriação
e resistência que constituem o ‘domínio público’ (Brighenti, 2010), visando a proposta de
alternativas à produção de memória e identidade conduzida pela prioridade do ‘ter’ sobre
o ‘ser’, realidade propícia a novos fenómenos urbanos como os motins de 2011 em
Inglaterra. Exemplo de como das materialidades da cidade se subentendem factos que lhes
são exteriores, implícitos aos usos induzidos pelos meios de acesso e de circulação de-
rivados das fracturas espaciais/sociais que geram distanciamento cognitivo/afectivo entre
o indivíduo e a cidade.
Uma arte fora do mercado será uma arte que não se vende.
Será uma arte que se dá.
Toda a arte, qualquer que seja a sua expressão, dá-se sempre de algum modo. Dá-
-se a ver, a ler, a ouvir, a experienciar. Enquanto objecto ou como quando mais desmate-
rializada, no caso da dança, da performance ou da música, por exemplo. Mas no considerar
aqui o ‘dar-se’ por diferenciação e desvio do ‘vender-se’ está em causa algo que simul-
taneamente antecede e se estende para lá do modo de apresentação em si. Algo que
evolverá da tomada de decisão do artista em fazer com a exclusiva intenção de dar.
o ‘dar’ no sentido de ‘lançar de si’ para ‘dar lugar a’. Quando o artista abre uma
via para a expressão que proporciona espaço aberto ao estar e agir de outros. Como quando
uma pessoa se dá a outra, abrindo em si espaço para que esta nela tome lugar. Não
deixando ambas de ser quem são mas sendo através de uma visão que, por percorrer as
distâncias, se torna mais ampla. Como quando se conversa, podendo até acontecer quando
não se espera que aconteça.
Proponho então que uma arte fora do mercado será uma arte conversável. Não a-
presentará uma visão unilateral mas antes disponibilizará espaço a um possível centro de
convergência, uma possível estação para a coexistência do diverso. Assim, a imprevisi-
bilidade será condição da sua natureza. Característica que não é conveniente nem desejável
ao mercado da arte, pois a previsibilidade de movimentos dos que nele se movem não está
Neste sentido, a arte conversável será uma arte sem forma definível, porque nela
muitas formas são potencialmente possíveis. Deriva de um certo modo de fazer que é em
si uma proposta de um caminho percorrível por quem o quiser percorrer, sendo que entre
caminho e caminhante não haverá distinção. Como tal, não será possível captar um estilo
desta arte, o que é conforme a uma posição fora do mercado pois a vitalidade deste depende
de aparencias típicas localizáveis.
Nas vanguardas artísticas do século xx encontram-se nos percursos da desmateri-
alização da obra de arte, do observador participante e da morte do autor, da exploração
criativa do acaso e do efémero (consequentes da procura de fusão entre arte e vida, dando
ênfase ao processo e à experiência) exemplos de que mesmo de uma arte sem forma per-
manente é possivel elaborar um estilo. A documentação intencional de propostas deste
âmbito tornou-se ela mesmo vendável, como é o caso da fotografia de performances ou
do registo vídeo de obras de carácter processual, ou ainda do registo audio de instalações
ou eventos sonoros. A sua análise e interpretação podem levar a identificar e construir um
Mas que espaços possíveis existem nas vidas de hoje, sobretudo na cultura oci-
dental, onde possamos dar ou receber o que é da ordem do imprevisível e da forma in-
definível?
Lembro-me aqui de algumas das reflexões do escritor Junichiro Tanizaki (1933)
no seu ensaio Elogio da Sombra, ao procurar entender as diferenças entre os olhares oci-
dental e oriental pelo modo como cada um destes se relaciona com a luz e com a sombra.
No desenho de um jardim, onde o primeiro priveligia um amplo relvado, o segundo prefere
um pequeno bosque sombrio. Nivelamento ou irregularidade. Imaginemos os efeitos do
percurso da luz, com os seus jogos de sombras, em cada um destes ambientes…
As ideias podem ser vendáveis mas não se pode vender o exercício do pensamento.
Assim como não se vende o movimento do corpo, embora os corpos se possam vender.
Uma arte fora do mercado será uma arte que não move dinheiro, será uma arte a mover
pensamento livre onde o momento em que o intraduzível acontece se pode suster, assim
como desejamos que aconteça quando sentimos o prazer de um encontro.
Dar, conversar, comunicar, receber, encontro. Uma arte fora do mercado será uma
arte de persistência que se pratica em estado de atenção.
Fig. 1. Dan Graham, Two- Way Mirror Punched Steel Hedge Labyrinth, 1994-96, Minneapolis
Sculpture Garden. URL:
http://collections.walkerart.org/item/enlarge_fs.html?type=object&id=7673&image_num=1,
acedido em Mar. 2012.
Fig. 2. Sabine Hornig, No.4, 2003 (fotografia, 150 x 270 cm), Berlim. URL:
https://arttattler.com/archivesabinehornig.html, acedido em Mar. 2012.
Fig. 3. Sabine Hornig, The Destroyed Room, 2006 (fotografia, 100 x 159 cm), Berlim. URL:
https://arttattler.com/archivesabinehornig.html, acedido em Mar. 2012.
Fig. 4 e 5. Luciano Spinelli, da série fotográfica Acid sur Verre, 2010, Paris. URL:
http://www.lucianospinelli.com/#Acide-sur-Verre, acedido em Mar. 2012.
Fig. 6. Motins em Manchester, Agosto de 2011 (saque a loja em Sainsbury). URL:
http://www.dailymail.co.uk/news/article-2024203/UK-RIoTS-2011-David-Cameron-orders-po-
lice-come-hard-looters.html, acedido em Mar. 2012.
Fig. 7. Motins em Manchester, Agosto de 2011 (loja Esprit na Market Street). URL:
http://www.dailymail.co.uk/news/article-2024203/UK-RIoTS-2011-David-Cameron-orders-po-
lice-come-hard-looters.html, acedido em Mar. 2012.
Fig. 8. Loja Emporio Armani e Biblioteca John Rylands, Spinningfields, Manchester, 2012.
URL: http://citiesmcr.wordpress.com/2012/01/, acedido em Set. 2012.
Fig. 9. Detalhe de rua em Spinningfields, Manchester, 2012. URL:
http://citiesmcr.wordpress.com/2012/01/, acedido em Set. 2012.
Fig. 10. Cildo Meireles, Através, 1983-89, instalação no Palácio de Cristal, Parque del Retiro,
Madrid, 2001. URL: http://www.artnexus.com/Notice_View.aspx?DocumentID=7411, acedido
em Nov. 2012.
Fig. 11. Motins no centro de Manchester, Agosto de 2011 (montra de uma loja Nike). URL:
http://blogs.voanews.com/photos/2011/08/10/august-10-2011/, acedido em Set. 2012.
Fig. 12-17 e 20.Paulo T. Silva, Travessia de Fronteira – Parte I, 2007, Sala do Veado – Museu
Nacional de História Natural, Lisboa. Registos fotográficos de Daniel Malhão-DMF.
Fig. 18, 19 e 21-23. Paulo T. Silva, Travessia de Fronteira – Parte I, 2007, Sala do Veado –
Museu Nacional de História Natural, Lisboa. Registos fotográficos de Paulo T. Silva.
Fig. 24-27. Marta Traquino, Travessia de Fronteira – Parte II, 2007 (vista geral da instalação).
Sala do Veado – Museu Nacional de História Natural, Lisboa. Registos fotográficos de Marta
Traquino.
Fig. 28 e 29. José Luis Guerin, En Construccìon, 2001, (fotogramas do filme), Barcelona. URL:
http://cineyarquitectura.blogspot.pt/2008/08/en-construccin-1998-director-jos-lus.html, acedido