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Luiza Vidotto

histórias do
cotidiano

Luiza Vidotto

Trabalho Final de Graduação em Arquitetura e Urbanismo


Universidade de São Paulo
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo + Design

Orientado por Eduardo Costa

Dezembro 2021
Agradecimentos

À minha mãe Eugraci e à minha tia Maria Ignez por serem


meus alicerces, exemplos de inteligência, determinação
e generosidade.
Aos meus irmãos, Giuliano e Vinícius, e à minha irmã, Isabelle,
por serem parte de mim.
Aos meus amigos e amigas Catarina, Otávio, Maria, Nacho
e Daniel por estarem ao meu lado durante esse ano de trabalho,
por todo o carinho e pelas inúmeras trocas que me fizeram
chegar até aqui.
Ao Eduardo por ter topado essa pequena aventura
e contribuído de maneira muito leve e enriquecedora.
À FAU por ser tão marcante e estimulante e a todas as
pessoas que lá cruzaram meu caminho de alguma forma
e participaram do meu crescimento e aprendizado.

À Marina e à Tutty.
“Uma flor nasceu na rua!
Passam de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.”

A Flor e a Náusea, Carlos Drummond de Andrade


Este trabalho foi desenvolvido para o formato impresso.
histórias do
cotidiano
Histórias do cotidiano se trata de uma pesquisa sobre o “Todo relato é um
cotidiano nas cidades que deu origem a duas publicações: relato de viagem - uma
Mapas da experiência e Cartela de desejos. Ambas partem da prática do espaço."
vontade de produzir conhecimento sobre as cidades a partir da Michel de Certeau, 1998
perspectiva da experiência e da percepção de seus cidadãos-
usuários, para além da perspectiva técnica dos arquitetos-
urbanistas, respaldados por dados estatísticos e geográficos.
Nesse espaço, entre a representação da cidade construída e da
cidade percebida, pretende-se provocar uma reflexão a respeito
da produção do meio urbano no presente, mas também sobre
as possibilidades de sua formulação no futuro.
Mapas da experiência coloca foco sobre a vivência
cotidiana nas cidades latino-americanas, ao relatar os saberes
acumulados durante trajetos rotineiros realizados a pé ou em
transporte público, por moradores de grandes centros urbanos
da região. Tais relatos são narrados por meio de textos e imagens,
mas também traduzidos para um mapa de pictogramas,
representativos dos principais temas que emergiram da
memória de cada trajeto. A ativação dessa memória propicia
um registro afetivo da utilização do espaço público, bem
como uma reflexão sobre a construção do cotidiano urbano
nessas cidades.
Já Cartela de desejos abrange as aspirações individuais e
coletivas da população em sua relação com a concepção da
realidade urbana. O texto, em formato de conversa, gera uma
pequena coletânea dos desejos que motivam os passageiros
de ônibus da cidade de São Paulo. Essa coletânea de desejos
confirma a transformação das demandas estruturais da vida
urbana em objetos de consumo e, ao mesmo tempo, revela a
dissonância entre as necessidades comuns e as ambições
individuais da população.

1
O processo de investigação que apoiou a urbanização (Silva, 2006). O imaginário caracteriza, portanto,
produção das publicações descritas acima nasce a cidade sensível, percebida e concebida mentalmente pela
da interseção entre urbanismo crítico e cultura população, mas que se desdobra e se materializa no ambiente
visual. O primeiro diz respeito à revisão da prática físico, ao guiar a manutenção ou a alteração das estruturas
tradicional do urbanismo, aquela que almeja a urbanas existentes.
transformação urbana via diagnóstico, plano e Essa camada simbólica de leitura das cidades encontra
projeto. Nesse novo ciclo do urbanismo (Gorelik, respaldo na análise da experiência afetivo-corporal do
2005), busca-se questionar os sentidos da espaço, proposta pelo movimento situacionista no final dos
modernidade e mergulhar na dimensão cultural anos 1950. Os situacionistas defendiam a deriva urbana, uma
das cidades, de modo a agregar outras disciplinas forma de experimentar o espaço urbano sem rumo definido,
à reflexão sobre o espaço urbano. cuja intenção era estimular a percepção espacial do cidadão
Por outro lado, os estudos sobre cultura visual e fomentar a reflexão coletiva sobre a cidade. Tal método não
permitem evidenciar a dimensão visual do urbano, propunha uma forma material de cidade, mas sim uma forma
alçada a uma posição de protagonismo, dada de vivê-la, por meio da qual seus habitantes deixariam de ser
a centralidade dos debates sobre imagem nas meros espectadores e se tornariam agentes de transformação
cidades contemporâneas. Dessa forma, o trabalho do ambiente em que viviam (Berenstein Jacques, 2003).
parte do entendimento da arquitetura e urbanismo Bastante críticos aos urbanistas, os situacionistas
enquanto prática multidisciplinar e da visualidade acreditavam que a sociedade deveria tomar a frente dos
enquanto importante ferramenta para a criação de processos de definição dos rumos das cidades. Os arquitetos
significados sobre a realidade urbana. e urbanistas, por vezes, limitam-se a observar o meio urbano
O recorte escolhido foi o das “cidades latino- a partir de uma visão técnica e distante, que não incorpora
americanas”, categoria que ganhou força durante as informações advindas das práticas cotidianas. Planejar as
os anos 1950 e 1970, devido à produção de estudos cidades deveria consistir, para além de saber levantar e aplicar
e à implementação de políticas e projetos urbanos conhecimentos técnicos sobre o espaço, em saber articular a
com o objetivo de, supostamente, emancipar a pluralidade de significados da realidade urbana (De Certeau,
região do subdesenvolvimento (Gorelik, 2005). 1998) - desenhados no espaço pelos corpos caminhantes.
O que se observou foi, na verdade, o progressivo Nesse sentido, os estudos sobre arquitetura e urbanismo
agravamento da crise urbana nessas cidades, que têm se reorganizado para além do objeto construído, passando
hoje lidam com a financeirização das dinâmicas a considerar novas fontes e novas mídias, de modo a não
locais de produção do espaço (Pereira, 2017). restringir a arquitetura à sua dimensão material, mas extrapolar
Acredita-se que o chamado desenvolvimento as reflexões para além da linguagem da edificação (Costa,
almejado para a América Latina resulta um bom 2021). Dessa forma, a produção gráfica e audiovisual, assim
negócio para os países mais “ricos”, possível como a manutenção de acervos e a elaboração de exposições,
de ser alcançado após anos de apropriação e constituem práticas que têm sido muito importantes para a
exploração de outras culturas via colonização proposição de novas questões e caminhos de pesquisa.
(Lang, 2016). Uma vez que esse projeto não nos Sob esse ponto de vista, o presente trabalho tem a intenção
serve, faz-se necessário buscar alternativas ao de explorar o tema do cotidiano urbano como recurso para
desenvolvimento, presentes nas possibilidades aproximar mais a representação das cidades da América
de transformação das relações que se tem com as Latina de suas vivências reais. Para isso, são propostas
cidades e de construção de novas subjetividades e formas alternativas de cartografia e construídas narrativas
imaginários urbanos. visuais e verbais, que amparam expressões sensíveis sobre
Os imaginários urbanos são as simbologias as cidades, relativas aos conhecimentos e afetos acumulados
de cidade criadas por seus habitantes, a partir por meio da experiência urbana. Trabalhar com os aspectos
dos significados gerados na vivência do espaço imaginativos e sentimentais das cidades representa,
construído. Essas simbologias são moldadas de aqui, uma aposta intelectual e política, com potencial para
acordo com as fantasias e os desejos manifestados estimular a participação cidadã e a reflexão sobre a produção
pela coletividade, ao apropriar-se do processo de e a ocupação das cidades.

2
Referências
Literatura

Berenstein Breve histórico da Internacional Situacionista – IS (1). Arquitextos, São Paulo, ano 03, n. 035.05, Vitruvius,
Jacques, Paola. abr. 2003.
Corpografias urbanas. Arquitextos, São Paulo, ano 08, n. 093.07, Vitruvius,
fev. 2008.
Elogio aos errantes. Breve histórico Arquitextos, São Paulo, ano 05, n. 053.04, Vitruvius,
das errâncias urbanas. out. 2004.
Campbell, Brígida. Arte para uma cidade sensível. Invisíveis Produções, São Paulo, 2015.

Cançado, Wellington. Desconstrução civil. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 10, p. 102-111, 2017.

Carrión, Ulises. El arte nuevo de hacer libros. Tumbona Ediciones, México, D.F., 2012.

Costa, Eduardo Augusto. Mudanças epistemológicas na arquitetura: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.
entre arquivos, exposições e publicações. 34, n. 72, p. 129–147, abr. 2021.
Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Contraponto, Rio de Janeiro, p. 13–25 e 111–118, 1997.

De Certeau, Michel. A invenção do cotidiano - Artes de fazer. Editora Vozes, Petrópolis, p. 169–207, 1998.

Dilger, G.; Lang, M.; Descolonizar o imaginário: debates sobre pós- Fundação Rosa Luxemburgo, São
Pereira Filho, J. extrativismo e alternativas ao desenvolvimento. Paulo, p. 12–45, 2016.
Do Rio, João. A alma encantadora das ruas. Fundação Biblioteca Nacional, p. 1-13, 1908.

Gorelik, Adrián. A produção da “cidade latino-americana”. Tempo Social, São Paulo, v. 17, n. 1, p. 111–133, 2005.

Halbwachs, Maurice. A memória coletiva. Edições Vértice, São Paulo, p. 131–144, 1990.

Meneses, Ulpiano Fontes visuais, cultura visual, História visual. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 23, n. 45,
Toledo Bezerra de. Balanço provisório, propostas cautelares. p. 11–36, 2003.
Pereira, Paulo Produção imobiliária e reconfiguração FAUUSP, São Paulo, p. 139–154, 2017.
César Xavier. da cidade contemporânea.
Rede, Marcelo. História a partir das coisas: tendências Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material,
recentes nos estudos de cultura material. São Paulo, v. 4, n. 1, p. 265–282, 1996.
Rolnik, Suely. Cartografia sentimental. Editora UFRGS, Porto Alegre, p. 23-37, 2011.

Santiago Júnior, A virada e a imagem: história teórica do pictorial/iconic/ Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material,
F. das C. F. visual turn e suas implicações para as humanidades. São Paulo, v. 27, p. 1–51, 2019.
Santos, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único Record, Rio de Janeiro, p. 96-98, 2001.
à consciência universal.
Santos Junior, Políticas públicas e direito à cidade: programa Letra Capital, Rio de Janeiro, p. 11-19, 2017.
Orlando Alves dos. interdisciplinar de formação de agentes sociais.
Schiavinatto, I. L. Cultura Visual & História. Alameda, São Paulo, p. 11–31, 2016.
F.; Costa, E. A.
Silva, Armando. Imaginarios urbanos. Arango Editores, Bogotá, 2006.

Vera, Paula. Ciudades (in)descifrables. Imaginarios y Ediciones USTA, Bogotá, p. 13–39, 2019.
representaciones sociales de lo urbano.

3
Referências
Exposição

Cidade Gráfica. Itaú Cultural. Brasil, 2014.

Monolith Controversies. Pavilhão do Chile na Bienal de Veneza. Itália, 2014.

La Metrópolis en América Museo Amparo. México, 2018.


Latina: 1830-1930.
Decolonizing Marble. Settler Colonial City Project. EUA, 2019.

Audiovisual

As Mãos sobre a Cidade. Francesco Rosi. Itália, 1963.

Blow Up. Michelangelo Antonioni. Reino Unido/Itália, 1966.

Ways of Seeing. John Berger. Reino Unido, 1972.

O Céu de Suely. Karim Aïnouz. Brasil, 2006.

En el Hoyo. Juan Carlos Rulfo México, 2006.

O Homem na Coisa. Tom Tyker. Alemanha, 2008.

O Peso de uma Casa. Sara Lambranho. Brasil, 2013.

Nação Especulação. Sabine Gruffat e Bill Brown. EUA/Espanha, 2014.

Driving to the Ends Erin Coates. Austrália, 2016.


of the Earth.
Banco Imobiliário. Miguel Antunes Ramos. Brasil, 2016.

Push: Ordem de Despejo. Fredrik Gertten. Suécia, 2019.

4
Referências
Publicações e Intervenções Artísticas

Guy Debord. The Naked City. 1957.

Vito Acconci. Following Piece. 1969.

Regina Silveira. Brazil Today. 1977.

Radek Community. Manifestations. 2001.

Coletivo Poro. Propaganda política dá lucro!!! 2002, 2004, 2008 e 2010.

Cartazes: Por outras práticas e espacialidades. 2010.

Perca tempo. 2010.

Eduardo Foresti. Arqueologia Afetiva Urbana. 2011.

Renata Marquez e Atlas Ambulante. 2011.


Wellington Cançado.
Trinca SP. Serviços Gerais. 2011-em curso.

Gustavo Ferro. Piquetes Anônimos. 2012-2017.

Fallen Fruit. Public Fruit Maps. 2014-em curso.

Bruno Moreschi. Art Book. 2014.

A História da _rte. 2017.

Giorgia Lupi e Dear Data. 2015.


Stefanie Posavec.
Lucas LaRochelle Queering the Map. 2017.

Giorgia Lupi. Data Selfies. 2018.

Micrópolis. Guia da Leste. 2019.

5
Trabalho Final de Graduação
realizado por Luiza Vidotto e
orientado por Eduardo Costa.
FAUUSP, 2021.
Histórias do
Cotidiano
Estudo sobre

mapas da
as experiências
urbanas na
América Latina

experiência

Luiza Vidotto
Trabalho Final de Graduação
realizado por Luiza Vidotto e
orientado por Eduardo Costa.
FAUUSP, 2021.
Mapas da Experiência
faz parte de uma
pesquisa chamada
Histórias do Cotidiano
partida
tijuana, méxico
caracas, venezuela
medelín, colômbia
belém, brasil
lima, peru
salvador, brasil
belo horizonte, brasil
rio de janeiro, brasil
são paulo, brasil
buenos aires, argentina
chegada

pictogramas
imagens
bibliografia
agradecimentos
pontos de vista
partida
Este livro é sobre as
experiências urbanas nas
cidades latino americanas

Primeiramente, entendo a experiência de espaços de lazer e do cuidado com


urbana enquanto o resultado das o meio ambiente, entre vários outros
percepções individuais acumuladas nos âmbitos de operação do poder público.
trajetos cotidianos pela cidade. Aquelas No entanto, essa atuação pode ser
memórias, concepções e sentimentos bastante eficiente em alguns pontos de
que são gerados por uma pessoa em uma cidade e menos em outros, da mesma
sua relação com o espaço. Essa série de forma que certo grupo urbano pode ser
informações afetivas sobre um território muito afetado por determinada política
é produzida mentalmente por cada - ou pela ausência dela -, enquanto para
indivíduo, mas não está necessariamente outros grupos é indiferente. Isso porque
codificada e nem sempre está muito o espaço físico é atravessado também
bem desenvolvida na consciência. por outras dimensões - econômicas,
O desenvolvimento dessa afetividade sociais, políticas, raciais, etc - que
aflorada durante a experiência urbana condicionam a vida nele. Disso resulta que
está diretamente relacionado à atuação as desigualdades presentes na história
dos setores públicos e privados sobre o de uma sociedade terminam impressas
espaço e também sobre os corpos. As em seu território e, consequentemente,
normas oficiais e a gestão pública da nas mentes e corpos de quem o habita.
cidade se fazem presentes de maneiras Segundo a definição de Milton Santos
mais ou menos perceptíveis, através da (2001), o território é sempre um território
administração do trânsito nas vias, da usado”, decorrente de um processo histórico
ação das forças de segurança, da oferta de ocupação baseado em necessidades e
de transporte público, da manutenção interesses humanos.
Ao mesmo tempo, um território é o convívio, altera drasticamente a paisagem Essa competência de estruturar as - arte e fotografia -, e têm muito a dizer
traçado de um limite, uma linha (nem e faz crescer a aversão à coisa pública. concepções que se têm a respeito da cidade sobre as imagens de passado, presente e
sempre) invisível que define o que Não é preciso se afastar muito é um objeto de disputa constante no debate futuro que permeiam o imaginário popular.
está dentro e o que está fora, o que é de casa para observar o poder de público, seja no campo da arte, na esfera A construção desse imaginário se
nativo e o que é estrangeiro. Logo, a transformação urbana capturado pelo política, na academia ou no mercado. Por dá o tempo todo nas diversas relações
delimitação de um território pode envolver mercado: grandes obras de infraestrutura se tratarem de questões complexas e até estabelecidas dentro da atmosfera urbana.
exclusão e violência, principalmente se viária, condomínios enormes e torres abstratas - o medo da violência, a aceitação É a capacidade que temos de cultivar
as relações humanas naquele local já envidraçadas ocupam o lugar de casas e de modais de transporte alternativos, a conceitos, ideias e imagens a respeito do
registrarem esses comportamentos. praças cheias de história. Bairros pacatos empatia por novos empreendimentos, mundo ao nosso redor, que amparam a
Do mesmo modo, as atividades privadas se descaracterizam completamente, os a antipatia pela ocupação de espaços nossa construção de opiniões e tomada de
são bastante determinantes nas formas cursos d’água são colocados de escanteio públicos, a identificação com o decisões. Motivados pelo imaginário,
de ocupação da cidade. Configuram, e favelas são queimadas para abrir patrimônio - estão sujeitas a filtros morais, interpretamos o planeta, a
inclusive, tendências de comportamento espaço para arquiteturas escandalosas ideológicos e religiosos, para além de sociedade e as micro sociedades
no tempo e espaço, tais como a crescente e para a suposta “revitalização urbana”. aspectos técnicos e objetivos, como em que estamos inseridos.
privatização do convívio até a quase Importante aliada do mercado nessa o simples cumprimento de direitos. De modo recíproco, o meio-ambiente
supressão da vida coletiva. O desenho trajetória de transformações bruscas Um movimento que vem buscando urbano, através de suas camadas
e a produção das cidades por meio na cidade, a publicidade introduz outro nadar contra a corrente da capitalização publicitárias e institucionais, oferece
do mercado sustentam, portanto, um aspecto delimitante da experiência, o radical das cidades é o do direito à cidade, uma série de valores, muitas vezes
papel central de poder na definição das das narrativas subjetivas presentes no que não diz respeito diretamente ao direito sutis, sobre ele mesmo, que vão ser
maneiras de experimentar as cidades. imaginário urbano. Visíveis em empenas às infraestruturas e serviços urbanos, processados pelo nosso imaginário
As predominâncias do carro como e outdoors e agora principalmente nas mas demanda que a produção do espaço e acessados ou não no momento em
meio de transporte e do shopping center telas de aparelhos com conexão à internet, urbano esteja subordinada ao valor de que experimentamos a cidade. Ou seja,
como forma de lazer, por exemplo, estão as propagandas, bem como todas as uso e não ao valor de troca, conforme esses valores podem ser elaborados de
fortemente relacionadas ao controle sobre mídias visuais, interferem constantemente explica Orlando dos Santos Junior (2017). maneira ativa, pelo próprio indivíduo, ou
o direito de deslocamento na cidade e na construção de pensamentos e na É um direito simbólico de imaginar outros de maneira passiva, pelas mídias físicas
à cultura da privatização do convívio. elaboração de desejos dos cidadãos. modelos de futuro em que a ocupação de ou digitais, que batalham constantemente
Nesta cidade onde dominam as práticas Aqueles que controlam as mídias espaços e a vida nas cidades seja menos para se antecipar ao pensamento ativo
individualizadas e controladas, o espaço utilizam sua aptidão e potência de individualista e mais democrática. e condicionar a experiência urbana.
urbano é uma mera mercadoria que deve comunicar saberes publicamente para O direito à cidade representa a luta Por esses motivos, ativar as
atender aos interesses privados, que vender produtos e ideias. Absolutamente pela construção de narrativas contra- informações afetivas sobre a cidade se faz
hoje prevalecem no imaginário urbano. tudo é comercializado, desde a cidade hegemônicas sobre o futuro das cidades, tão importante. Ao pensar criticamente
O binômio violência-insegurança possui até a intimidade, de modo que as já que as narrativas “oficiais” costumam sobre nossas experiências individuais no
grande força de atração da população esferas do público e do privado se trabalhar para amparar determinadas espaço, desenvolvemos a capacidade de
para longe da vida coletiva, o que conflui encontram totalmente entrecruzadas e vivências em detrimento de outras. Essas interpretar aquelas noções que nos foram
com uma produção imobiliária baseada em confiscadas pelas ambições do mercado. narrativas sobre cidade são subjetivas oferecidas, de modo a decodificar seus
rigorosos padrões de vigilância. O Estado, Seja na cidade física ou na cidade porque se utilizam muitas vezes de verdadeiros sentidos. Esses significados
em acordo com esse mercado, cada vez virtual, a publicidade tenta mobilizar o linguagens que não comunicam de maneira que construímos sobre a cidade moldam
menos regula a produção desse modelo imaginário público antes que a população direta, mas sim através de símbolos. a nossa experiência nela e nossos desejos
de cidade genérico e individualista, que dá possa fazê-lo por conta própria. Símbolos que podem ser expressões verbais para ela. Acessar essas informações
as costas para a rua e para os lugares de - slogans urbanos e publicitários - ou visuais permite uma análise mais fiel sobre o
espaço urbano, aproximando o ambiente territoriais e a espaços que custam complicações. A cidade do diagnóstico Paola Berenstein Jacques (2008) afirma
construído do ambiente percebido. a responder às necessidades e a se é uma cidade enferma que precisa ser que a experiência corporal, ou corpografia,
A busca por essa consciência crítica adequar às características locais. apaziguada na velocidade e no momento é o registro do urbano traduzido pelo corpo.
a respeito da experiência urbana está No imaginário popular ainda é comum exigidos pelo mercado. Essa cidade, porém, Esse registro representa o contraponto à
contida na origem deste livro, cuja intenção que as cidades latino-americanas sejam não representa a lentidão do cotidiano, cidade-espetáculo, aquela com pouca ou
não é somente observar as diversas agrupadas dentro de uma representação nem as demandas diárias da vida. nenhuma participação cidadã, uma espaço
experiências possíveis, mas eventualmente única, de modo a homogeneizar a Michel de Certeau (1998) já apontava “desencarnado”. A experiência do corpo
transformar a forma como se percebe e experiência urbana regional. As análises que existe uma forma do conhecimento no espaço revela o que o projeto urbano
experimenta os espaços comuns. Essa sobre a região são marcadas por espacial que é própria do usuário da omite ou descarta: as pequenas práticas
transformação não se pretende enquanto diagnósticos urbanos calamitosos, repetidas cidade, um tipo de saber lúdico que é cotidianas e as inúmeras apropriações
algo quantitativo, mas sim enquanto denúncias de negligência e índices sociais originado no caminhar pela cidade a que se faz do espaço urbano.
projeto sensível cujo objetivo é alimentar preocupantes. Também é recorrente a partir de uma espécie de “cegueira” sobre Já é passada a hora, então, de
a discussão sobre a importância da vida utilização de uma mesma régua cultural suas representações. Esses indivíduos, entendermos nossas cidades de uma
pública e mobilizar outros imaginários do tamanho do subcontinente, o que praticantes da cidade, a experimentam maneira mais profunda e completa, fazendo
urbanos que não o mercadológico. segue reproduzindo o projeto colonial. “por dentro”, e não através do olhar o esforço de representar a realidade
Vimos, então, que a experiência As cidades latino-americanas, no plural, aéreo e distante dos urbanistas. urbana como ela de fato é, repleta de
urbana corresponde a um conjunto de merecem ser observadas a partir da lente A análise urbana exclusivamente técnica corpografias diversas e de limites invisíveis.
concepções individuais formadas na relação da diversidade, tomando o cuidado de não deixa escapar essas camadas subjetivas O tipo de cartografia que se pretende criar
com a cidade, que são administradas reduzir as experiências locais e reproduzir de interpretação do espaço. Camadas que aqui não é baseado em dados precisos
coletivamente devido ao poder de manejar o o apagamento dos conhecimentos demonstram as diferenças das vivências ou predeterminados, mas em dados
espaço que o Estado e - principalmente - o populares. As vivências do cotidiano relativas a gênero, raça, sexualidade e sugeridos pelas próprias condições da
mercado detêm. Essa experiência tem uma urbano de cada cidade guardam saberes classe no território. Camadas que trazem experiência corporal e sensível do espaço.
dimensão física, condizente com os modelos próprios, informações que nem sempre à tona os aspectos afetivos da experiência A cartografia é uma prática bastante
de cidade desenhados por arquitetos, são lembradas nas leituras urbanas e nos urbana. Essas outras camadas “oficializam” antiga definida por uma representação
urbanistas, governantes, incorporadores diagnósticos urbanísticos e econômicos. os conhecimentos dos “praticantes das geométrica plana, sobre a qual é possível
e pela própria população. Porém, também Essa perspectiva técnica, que observa cidades”, em adição aos conhecimentos espacializar informações. O termo vem da
assume uma dimensão abstrata, relativa ao a cidade “de cima”, faz levantamentos obtidos por meio dos medidores e geografia, que utiliza esse método para
imaginário e aos ideais dos indivíduos, assim sobre topografia, tipologia, malha viária, das representações tradicionais. registrar a paisagem e acompanhar suas
como às narrativas simbólicas que marcam infraestrutura, uso e ocupação do solo, Atentar-se às informações afetivas mudanças com o tempo. Suely Rolnik (2011),
presença continuamente nas mídias. cursos d’água e vegetação. Um método da experiência cotidiana ajuda a evitar no entanto, define o trabalho do cartógrafo
Todos esses aspectos da experiência tradicional que se utiliza do cruzamento generalizações a respeito da realidade. como uma prática “antropofágica”, ou
urbana poderiam se aplicar a muitas desses dados para elaborar análises, depois É uma abordagem que se volta para a seja, o cartógrafo deve estar disposto a
regiões do planeta, hoje organizado diagnósticos - qualificação digna de uma vivência do usuário da cidade, do corpo absorver qualquer informação relevante
predominantemente pela estrutura urbana. enfermidade -, para então dar embasamento em movimento afetado pelo espaço. Esse para a formação de seu quadro espacial.
Entretanto, essa hegemonia do urbano a projetos, planos e políticas públicas. “afetamento” se opõe à cidade espetacular, Seguindo essa linha de pensamento,
ganha camadas próprias quando se Assim, corre-se o risco de que a cidade usada apenas de cenário e limitada a uma este livro é o resultado de uma pesquisa
trata da América-Latina. Por aqui, desde seja zelada com a frieza cirúrgica de um imagem publicitária rasa, além de se opor sobre uma forma de cartografia alternativa
suas fundações, as cidades apresentam médico que não evita tratamentos abruptos, também àquela cidade enferma, que é à tradicional. Alternativa porque se
problemas profundos, que deram os quais podem não resolver o problema a preenchida por curativos ineficazes. alimenta das experiências e das narrativas
origem a enormes contrastes sócio- longo prazo e ainda por cima gerar novas afetivas. É uma cartografia que coleta
práticas cotidianas da vida nas cidades Os trajetos foram escolhidos por um
e, portanto, depende da ativação de praticante de cada cidade com a premissa
imagens abstratas por parte de praticantes de terem sido feitos repetidas vezes,
de andanças urbanas carregadas de necessariamente a pé ou em transporte
sensibilidade, história e memória. público. A conversa sobre cada experiência
Essa cartografia da experiência tem foi gravada em entrevista online e o trajeto
a intenção de comunicar as percepções revisitado com a ajuda das ferramentas
de um trajeto pela cidade por meio da de localização geográfica do Google.
utilização de símbolos, ou pictogramas, Diversos aspectos cotidianos do
que permitem a comparação entre espaço são documentados, desde
cidades, mas também geram sequências características físicas do ambiente
únicas para cada uma. Os mapas são urbano construído até as memórias
elaborados a partir de um conjunto desses mais pessoais. Há inúmeras camadas de
pictogramas que não se enquadram significado advindas da experiência do
em uma malha urbana tradicional, ou espaço. Sonoridades, odores, texturas
seja, não estão geolocalizados. e cores. Edificações, paisagens naturais
Para dar enfoque exclusivo à experiência, e muros. Lugares para comer, comprar,
não foi necessário seguir a construção aprender e contemplar. Sentimentos,
tradicional de um mapa, mas sim a emoções e opiniões abundantes.
construção da narrativa de certo praticante Ao fazer um simples - porém radical
da cidade. Dessa forma, os pictogramas - afastamento do espaço onde se vive,
representam categorias da experiência permitindo-se deixar de ver a cidade como
que aparecem na ordem (da esquerda lugar exclusivo de trânsito e da velocidade,
para a direita, de cima para baixo) em que torna-se viável entendê-la como lugar da
são narradas, mas não correspondem experiência, do convívio coletivo. É quando
ao ponto de localização preciso onde vêm à tona todas as camadas poéticas e
determinada experiência foi vivida. sentimentais que compõem a diversidade
As categorias de pictogramas e a complexidade da experiência urbana.
fazem referência aos dados espaciais- Por fim, temos uma miscelânia de mapas,
afetivos coletados, portanto não foram imagens e textos que dão corpo a uma
predeterminados. O desenho da família espécie de arqueologia da experiência
de pictogramas é resultado de estudos urbana na América Latina. Esse arranjo
baseados em formas geométricas básicas diverso de vivências e conhecimentos
e a intenção desse desenho é simplesmente espaciais não tem a pretensão de encerrar
o de alcançar uma uniformidade e coerência o debate sobre a percepção do que
visual entre todos os mapas. Os textos, por é ou representa determinada cidade,
outro lado, não seguem os relatos verbais mas sim apresentar uma das inúmeras
à risca, pois apresentam opiniões e ideias perspectivas possíveis sobre o que pode
ora dos praticantes, ora da narradora. ser o cotidiano latino-americano.
0° 0° 0m 0h
tijuana,
méxico
BAIRRO MURO DA BAIRRO
VALLE DE LAS FRONTEIRA VISTO ÓTIMOS TACOS MADERO OU
PALMAS DA JANELA CACHO
DE CASA

PONTE LOCAL DE CENTRO RIO TIJUANA MONUMENTO


BINACIONAL PARA LIVRARIA EMISSÃO DO REGIÃO DE CULTURAL ABRIGA MÉXICO OU
PEDESTRES GANDHI PASSAPORTE ESCRITÓRIOS TIJUANA DEPORTADOS LAS TIJERAS
MEXICANO

REDUZIRAM A RESTAURANTE
FREQUÊNCIA DO GALERIA DE BARES LOJAS DE ONDE ZONA ROJA
BRT POR PRESSÃO SHOPPING DA FREQUENTADA AVENIDA LEMBRANCINHAS INVENTARAM REGIÃO DE
DAS PERUAS ADOLESCÊNCIA COM AMIGOS DA REVOLUCIÓN PARA TURISTAS A SALADA PROSTITUIÇÃO
CLANDESTINAS FACULDADE CAESAR’S

PONTO DA VIA EXPRESSA


ARCO DO RELÓGIO POLÍCIA NÃO CASAS DE REGIÃO REGIÃO BEM FRONTEIRA INTERNACIONAL
SUPOSTO SÍMBOLO REPRESENTA STRIP-TEASE PERIGOSA POBRE PROPÍCIO PARALELA À
DE TIJUANA SEGURANÇA DE TRÁFICO A FUROS FRONTEIRA
Tijuana não é uma
cidade linear

Não é linear porque não pôde ser mas não no sentido contrário. E a Avenida
descrita em um trajeto com início, meio e Revolución talvez represente bem isso.
fim, mas sim por vários. São os caminhos O trajeto pela Revolución começa bem
de casa à universidade, à praia e ao e termina cheio de tensões. A Avenida
centro cultural, também um percurso pela já foi repleta de cassinos e restaurantes
principal avenida do centro antigo e alguns frequentados pelos norte-americanos
outros pontos importantes como uma na época da Lei Seca. Depois de um
taqueria muito boa, o bairro do trabalho e período de decadência, hoje vive de
uma ponte no aeroporto que se conecta bares populares e do turismo. O burro
ao país vizinho. Esse último com certeza zebra”, o restaurante Caesar’s e as lojas
representa o grande estigma da cidade, de suvenires atraem os estrangeiros, já
sua fronteira com os Estados Unidos. os bares são frequentados por todos,
Apesar de não ser a capital, Tijuana é o inclusive pelos jovens locais. A mudança
centro econômico e a cidade mais populosa começa a partir do cruzamento com a Calle
do estado da Baixa Califórnia. A urbanização Tercera, quando os usos se transformam
se volta para a fronteira, é mais densa à medida que se aproxima a fronteira.
quanto mais nos aproximamos dela, mas É quando começa a Zona Roja de Tijuana,
também se adensa em outros sentidos, uma região da qual não se gosta muito de
em franco processo de conurbação com falar, por ser considerada incômoda, mas
as vizinhas Rosarito e Tecate. Muitas das que existe. A partir da não é recomendável
dinâmicas urbanas da região se centralizam que uma mulher esteja sozinha. Talvez nem
ao redor da travessia do muro-fronteira. acompanhada se sentiria segura. Os bares
A travessia flui muito bem de lá para cá, e restaurantes vão se tornando motéis e
2 3
clubes noturnos para homens. O turismo Outro lugar bastante afastado é a
sexual é uma das primeiras coisas que Universidade do Valle de Las Palmas,
recebem o visitante que cruza a Ready Lane localizada em um grande vale isolado nos
San Ysidro Mexican Border, enorme posto arredores da cidade. São necessários dois
viário de passagem aos Estados Unidos. longos trajetos de ônibus para chegar
Ao seguir pela Revolución chegamos aí, considerando uma casa que já está
ao Arco-Relógio, monumento símbolo da em uma zona periférica. A Universidade
cidade. Ao lado está a polícia local, que está em uma área ambiental protegida,
não inspira confiança alguma. Daí em cheia de coelhos, águias, linces e coiotes
diante a paisagem muda de vez, a rua se que, fugindo de incêndios na região,
esvazia e crescem os sinaleiros de clubes passam temporadas ali. Outra ocupação
de strip-tease. É também uma região de que se apropriou do local é a do bairro
tráfico de drogas e onde os migrantes Valle San Pedro, um bairro “fantasma” de
se concentram quando há deportações. loteamentos muito baratos e minúsculos.
É conhecida pelo estabelecimento de Fantasma não porque não há quem more
refugiados haitianos. A avenida termina aí, mas sim pelas condições enfrentadas
em uma enorme via expressa, seguida do pelos seus habitantes. O Valle San Pedro
Rio Tijuana e do muro. Há uma atuação é o típico bairro planejado pela iniciativa
intensa da patrulha da fronteira nessa privada que promete muito e entrega pouco.
área, já que às vezes os migrantes tentam Na teoria um bairro sustentável, com todos
desesperadamente ultrapassar essas os equipamentos urbanos necessários,
três grandes barreiras sem sucesso, perfeito para as crianças da família
sendo comum haver “acidentes”. crescerem e próximo da faculdade onde
Essa enorme via expressa se constitui estudariam. Na prática, não há sequer um
4
quase como um segundo muro, já que mercado, apenas as lojas de conveniência
está em um nível elevado em relação à das franquias estrangeiras que inundam
cidade. Ela segue paralela à fronteira até o país. Também não há bombeiro, polícia
chegar às Playas de Tijuana, a parte mais ou posto médico. E muitas casas não
fresca dessa cidade que está em um foram terminadas pela construtora do
região muito montanhosa e desértica. Aí bairro. Um lugar difícil de se viver, tanto
vivem pessoas de mais dinheiro. A praia para os estudantes que estão apenas de
não tem uma cultura de preservação passagem, quanto para as famílias que são
muito forte, apesar de atualmente recolhidas e devolvidas diariamente, em
estarem lutando por isso. E a despeito um movimento pendular de ida e volta à
da água fria do mar, a praia representa zona industrial de Tijuana para trabalhar.
um local afetivo para os moradores, Um lugar onde também há presença de
mesmo os que se deslocam desde o atividade imobiliária predatória é a Colonia
outro extremo da cidade para chegar ali. Madero (ou Cacho).

5
6 7
É a zona residencial mais cara da cidade, que empregam alguns dos egressos da
onde se concentram os edifícios novos Universidade do Valle de Las Palmas. Um
de apartamentos de uma cidade inteira lado bom disso é que as gorjetas dadas aos
horizontal. É muito raro que se viva em baristas costumam ser em dólar também.
apartamento em Tijuana, quase todo E para falar de coisas boas, um trecho
mundo vive em casa. As pessoas que têm da Avenida Paseo de los Heroes, paralela
apartamentos geralmente são ricas e têm ao rio, concentra quase todas as memórias
bons empregos. Alguns são empresários positivas de Tijuana. Uma livraria, um
estadunidenses, outros vivem temporadas enorme e majestoso centro cultural e uma
nos Estados Unidos e temporadas em quadra exclusivamente de bares compõem
Tijuana e há também locatários. um trajeto feliz de final de semana. Apesar
Moradia é um super negócio já que o de ser uma cidade bastante estigmatizada
dólar flutua muito, então os beneficiados pela fronteira, onde é pouco comum que
são sempre os proprietários locadores. seus habitantes tenham nascido lá, a
Com uma economia orientada pelo trânsito geração mais recente tem tentado mobilizar
na fronteira, é comum pagar o aluguel em a apropriação de espaços e a construção
dólar, assim como o dentista, o táxi e o de uma identidade própria de Tijuana, para
café. Inclusive, são os cafés dessa zona além de um lugar apenas de travessia.
de escritórios e de apartamentos caros

8 9
10
0° 0° 0m 0h

S 22° L 50° 03’ Δ 880 m 2.208 h


caracas,
venezuela
SHOPPING MERCADO COMPLEXO
ESCOLA DA SAN IGNACIO MUNICIPAL DE RESIDENCIAL
INFÂNCIA TEMPO COM CHACAO PARQUE CENTRAL
OS AMIGOS

UNIVERSIDADE
BARRIO ESTAÇÃO DE PARQUE PLAZA CENTRAL DA
SAN AGUSTÍN TELEFÉRICO LOS CAOBOS VENEZUELA VENEZUELA

FEIRA DE BIBLIOTECA
VARIEDADES DA CENTRAL DA
UNIVERSIDADE UNIVERSIDADE
Caracas sequer está
no mapa

11

Do Google Street View, no caso, o que e pertencimento -, o que poderia


dificulta o cálculo preciso do trajeto partindo confirmar a eficácia da arquitetura em
de Tijuana. Deslocar-se por aí dependendo corroborar uma identidade social, ainda
da orientação dos satélites (desse gigante que num momento de caos político.
monopolizador do mercado de tecnologia Honestamente, nessa Caracas a
global) pode não ser uma boa ideia. O fato descrição verbal do espaço não ajuda
de não existir uma sucursal da Google na tanto a desvendar o cotidiano urbano. O
cidade muda toda a experi ncia. Estamos apego às construções talvez revele uma
atrasados em vários aspectos”. A sensação memória já bastante restrita aos espaços
de negligência permeia os trajetos pela privados. Fogem à regra, entretanto, os
cidade, restritos a uma vista aérea. lugares relativos à comida. Sejam os postos
Apesar da paisagem deslumbrante de autônomos vendendo café da manhã
das montanhas do Parque Nacional El no decorrer da longa trilha que atravessa
Ávila, que abraça a cidade e a separa o Parque Los Caobos, seja a feira de
do mar caribenho, os destaques desses produtos artesanais no último andar do
dois pequenos caminhos percorridos Mercado de Chacao e a própria lembrança
são as construções. Casarões da variedade de alimentos do mercado,
abandonados, um antigo mercado, uma os locais que aludem à alimentação
favela no centro da cidade. Edifícios reacendem facilmente a memória afetiva.
modernos, um shopping e duas torres No polo oposto, também reacendem
corporativas monumentais. Esses últimos essa memória as ruínas urbanas. Aqui
representam pontos significativos de entra uma questão sobre o descuido
apego ao espaço - baseado em orgulho com o patrimônio público. Uma das duas
12 13
torres empresariais do Parque Central Outra “vítima” do descuido é a
(grande complexo urbanístico composto Universidade Central, lugar muito querido,
de espaços comerciais, moradias, museus cheio de espaços verdes onde passar o
etc) está desocupada, após sofrer um tempo entre as aulas. Seus corredores
incêndio há quase 20 anos e nunca ter externos cobertos por marquises
sido restaurada. Supostamente não está hospedam, periodicamente, feiras de livros e
totalmente vazia já que as pessoas sempre variedades. A cobertura de concreto de um
“invadem”. Apesar dos perigos de se habitar desses corredores desabou recentemente.
uma construção insegura, é importante Apesar de não ter ferido ninguém, sai ferida
sempre contestar o termo invasão, já que a consciência coletiva, que acumula dores
a ocupação de um espaço na cidade pode pela negligência com os lugares que ama.
sim significar o cuidado com o patrimônio.

14 15
0° 0° 0m 0h

S 22° L 50° 03’ Δ 880 m 2.208 h

S 04° 16’ O 08° 40’ Δ 595 m 343 h


medelín,
colômbia
MONTANHAS
JACARANDÁS QUEBRADA AVENIDA 80 INÍCIO DA PONTOS DE
LA GUAYABALA CICLOVIA REFERÊNCIA
URBANOS

TIPOLOGIA DE AO LADO DE VIADUTO


PARQUE EDIFÍCIOS UMA IGREJA INTERROMPE RETOMADA
JUAN PABLO II COM ESCADAS NORMALMENTE A CICLOVIA DA CICLOVIA
EXTERNAS HÁ UMA PADARIA

ESCULTURA REGIÃO DE TAPETE ROSA PARQUE PONTO DE TORRE DO


ENTERRADA AVENIDA OFICINAS FORMADO PELA RESIDENCIAL ENCONTRO RELÓGIO INDICA ACÁCIAS
NA PRAÇA SAN JUAN MECÂNICAS QUEDA DE FLORES NUEVO COM AMIGOS NECESSIDADE DE AMARELAS
NARANJAL APRESSAR-SE

BAIRRO QUEBRADA RUA DE CASAS FESTA DE 15 ESTÚDIO


UNIVERSITÁRIO IGUANA ESPETACULARES ANOS DA PRIMA DE BALÉ
Medelín não te deixa
percorrer mais de sete
quadras sem cruzar
com um curso d’água

16

São os afluentes do rio que leva o mesmo tem uma visão panorâmica da cidade.
nome da cidade. A chuva nos relembra sua De bicicleta é mais rápido que de carro e
localização em um profundo vale, devido às você não perde o ar fresco, as sombras
potentes inundações que tomam as ruas. das árvores, os tapetes coloridos de
As montanhas desse vale também formam flores e os enquadramentos preciosos
parte da vida urbana. Essenciais, são pontos do céu. Aqui a bicicleta é uma política
de orientação e contemplação constantes. pública de mobilidade, há estações
Em contraposição à cidade anterior, aqui gratuitas espalhadas pela cidade.
a natureza é a protagonista do nosso trajeto. No caminho até a universidade, há
A vegetação chama atenção do início ao três momentos de destaque em que as
fim por sua variedade de espécies, flores, montanhas, os jacarandás ou as acácias
texturas e cores. Esse vislumbre da magia amarelas deixam de ser preponderantes.
da natureza só é interrompido quando Primeiro, o bairro operário que antecede
cruzamos avenidas de trânsito mais intenso a estação Suramericana do metrô. Está
(Ochenta e San Juan , onde o barulho das cheio de oficinas mecânicas em um
folhas é substituído pelo dos carros. Aliás, ponto bem central da cidade, perto das
saímos de casa e estamos indo em direção universidades e do rio. Por esse motivo,
à Universidad Nacional de Colombia, que é surgiu o parque residencial Nuevo Naranjal,
vizinha da pequena montanha El Volador. projeto que derrubou uma quadra inteira
O percurso é todo feito em bicicleta, dessas oficinas para ser levantado.
havendo ciclovia na maior parte dele, O parque residencial possui unidades de
exceto por um momento, quando cortamos interesse social e um sistema de autogestão
caminho subindo um viaduto, de onde se de res duos, além das janelas urbanas ,
17 18
aberturas entre os compridos edifícios Terminamos nosso trajeto com uma
criados por Laureano Forero. No entanto, memória de infância que se passa no Prado,
esse mesmo projeto inovador criou um bairro tranquilo próximo à universidade,
grande problema social, já que muitos mas a leste do rio. Depois de levantar
trabalhadores locais foram removidos das cedo no sábado, apagava no carro da
oficinas onde estiveram a vida toda, sem tia durante quase todo o trajeto, mas
que lhes tenham sido oferecidos novos acordava quando chegava nessa rua para
postos de trabalho. A velha história do observar suas lindas casas passando
projeto arquitetônico-urbanístico que resulta pela janela. Casas lindas que mesclam
em espoliação, transformação radical da estilos arquitetônicos europeus e locais,
paisagem e segregação socioterritorial. desejo da elite na época da construção.
E falando em problema social, vamos Uma rua muito calma, que faz o
ao segundo ponto de destaque do trajeto. passante sentir-se fora de Medelín. No
No estreito limite entre o rio Iguana e a final dela, um casarão azul e mostarda de
universidade existe uma pequena favela já esquina era o destino final da carona da
bastante inserida no contexto universitário. tia. A parte preferida da aula de balé era a
Aí moram pessoas que prestam vários hora do lanche porque a dança em si não
serviços aos estudantes, desde cópias agradava muito. A vergonha do próprio
de textos até aluguéis econômicos de corpo era um desafio, mas as colegas do
quartos. É uma comunidade que sofre balé também não ajudavam. Fazia pela mãe,
bastante com as enchentes e aloja muitos que dizia que tudo que se começa na vida
migrantes do Chocó, região na Colômbia é necessário terminar. Hoje não sente falta
onde está a maioria de sua população do balé, mas sim da bela rua que agora tem
negra. Também fazem festas incríveis. muitos cafés e algumas galerias de arte.
19
Cerveja e salsa na saída da aula.

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0° 0° 0m 0h

S 22° L 50° 03’ Δ 880 m 2.208 h

S 04° 16’ O 08° 40’ Δ 595 m 343 h

S 07° 41’ L 27° 04’ 1.485 m 1.362 h


belém,
brasil
PARÓQUIA
ANTIGA CASA ANTES DO PIST O BATATA FRITA Nª SENHORA DO
DA AVÓ ASFALTO POINT TRADICIONAL BOM REMÉDIO
HOJE UMA ALAGAVA PÓS MISSA DO CONJUNTO LUGAR DA
ESCOLA SEMPRE SATÉLITE PRIMEIRA
COMUNHÃO

CONJUNTO
PRESÍDIO MANGUEIRAS PEDRO TEIXEIRA
TRECHO DE FEMININO EM FRENTE AO COMÉRCIO BOM QUERMESSE
ACÚMULO DE LIXO JÁ TEVE FUGA PRESÍDIO ENTRADA NA PRAÇA
CONTROLADA

AVENIDA
PRIMEIRO PRIMEIRO ALMIRANTE PONTO DE TROCA
CONDOMÍNIO SUPERMERCADO FÁBRICA DA BARROSO DE ÔNIBUS E
DE CASAS ALTO DA REGIÃO COCA-COLA CORAÇÃO ENCONTRO DE
PADRÃO DA REGIÃO DE BELÉM AMIGOS

ORLA DO
ENCONTRO ENTRE RIO GUAMÁ
RIO GUAJARÁ E LUGAR DE PRAIA ICOARACI PRAIA OTEIRO
RIO GUAMÁ PASSEIOS
TURÍSTICOS
Belém é a memória da
cidade em expansão

21

A vivência de um bairro cujo próprio a barraquinha de batata-frita ao lado da


nome - Conjunto Satélite - comunica sua Paróquia Nossa Senhora do Bom Remédio
localização, atualmente já não tão periférica, é a mais antiga e tradicional do Satélite.
porque o centro lotou eventualmente e Perto dali, na praça do Conjunto
os investimentos se espalharam. Cidade- Teixeira, montam pula-pula e outros
investimento. Antes, a longa Avenida brinquedos à noite para as crianças. É
Almirante Barroso atravessava grandes quando a lembrança da quermesse vem
campos até chegar no Satélite e o horizonte à cabeça. O Conjunto Teixeira era um
ficava a perder de vista. Hoje, já está bairro invejado e bastante frequentado
tomada de construções, principalmente porque tinha os melhores comércios
supermercados e condomínios residenciais. da região, mas agora subiram uma
Embora tenha crescido, a simplicidade grade e colocaram uma cancela com
do Satélite prevalece nos trechos não portaria. Está parecendo condomínio.
asfaltados, nas inundações e no horário E o Círio de Nossa Senhora do Bom
de funcionamento do escasso comércio Remédio, que acontecia todo mês de
- que fecha ao meio-dia e só reabre a setembro, também guarda muita tradição
partir das quatro da tarde. Também os e afetividade. A procissão passava a cada
costumes se afastam daqueles de uma ano por uma rua do Conjunto Satélite,
cidade grande. O pistão é a pracinha onde da Tv e 1 até a Tv e 12. As pessoas
os jovens se reúnem depois da missa. enfeitavam suas casas, montavam altares
Nela não tem quase nada , só umas na frente dos portões e penduravam
barraquinhas de lanche e batata-frita, mas bandeirinhas na rua. Tudo para ver a
quase nada pode significar muito. Aliás,
22
Santa passar. Mas hoje em dia já não é Inclusive, a relação da população
mais assim, a tradição foi se perdendo. com a cidade representa um grande
Perdeu-se a tradição e ganhou-se um problema ambiental, já que o lixo se
sistema BRT na Almirante Barroso. Mas o acumula facilmente nas ruas e nos canais.
novo nem sempre é respeitado e passa de A imprudência com o meio ambiente é
tudo na faixa exclusiva de ônibus: carro, uma questão delicada em Belém. Mas os
moto, bicicleta, gente. Em Belém passam espaços verdes seguem sendo importantes
muitos barcos também pelos rios Guamá e marcos afetivos. O Bosque é uma linda
Guajará, que muitas vezes se confundem. reserva de floresta nativa no centro da
Aqui as palavras derivam muito da língua cidade. A Universidade Rural está dentro
indígena e os costumes também, já que a do enorme Parque Estadual do Utinga. E
pesca ainda é uma atividade muito relevante o Parque dos Igarapés é uma das joias do
em bairros como Outeiro e Icoaraci. Satélite, onde é possível tomar banho em
Seus habitantes mantêm uma relação de uma piscina natural de água corrente.
bastante intimidade com as águas, diferente
daqueles que as cruzam a passeio.

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0° 0° 0m 0h

S 22° L 50° 03’ Δ 880 m 2.208 h

S 04° 16’ O 08° 40’ Δ 595 m 343 h

S 07° 41’ L 27° 04’ 1.485 m 1.362 h

S 10° 36’ O 28° 32’ Δ 91 m 1.013 h


lima,
peru
GRADE PARA
PARQUE RAMÓN AVENIDA POLO DE AMARRAR A
CASTILLA DESENVOLVIMENTO” BICICLETA

LINHA DO A PARTIR
TREM DAQUI VOCÊ AREAL QUE PORTÃO DE REGIÃO O CIRCO É
DIVIDE A PODE SER PODERIA SE BLOQUEIO DA RUA PERIGOSA PILHA DE AREIA MONTADO ENTRE
CIDADE ASSALTADO TORNAR UM COLOCADO PELA CAMINHAR NÃO NO MEIO DA VIA JULHO E AGOSTO
EM DUAS A QUALQUER PARQUE LINEAR VIZINHANÇA É UMA OPÇÃO
MOMENTO

MINISTÉRIO
BARRAQUINHAS PORTÃO DE PORTÃO DE PÚBLICO
DE CAFÉ DA BLOQUEIO BLOQUEIO EDIFÍCIO
MANHÃ DA RUA DA RUA ALIENÍGENA
ONDE
TRABALHA
Lima é um trajeto
casa-trabalho

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Desses que a origem e o destino enxerga na bicicleta uma solução para


parecem pertencer a cidades distintas. os problemas do congestionamento e do
Aliás, contraste urbano é um tema favorito esgotamento das matrizes energéticas. É
também nas outras cidades pelas quais um esforço isolado, pouco contemplado
estamos passando. Lima, em termos na cultura e nas políticas públicas locais.
de transporte, pode ser multimodal, Os riscos do trajeto em bicicleta
sendo cada um dos modais registro de não terminam, é claro, na carência de
uma experiência afetiva muito distinta planejamento e estímulo do uso. Bem
da anterior. Aqui, saímos em bicicleta infraestruturado ou não, o ambiente
de um bairro rico, entramos no (túnel urbano é composto também por estruturas
do tempo também conhecido como) sociais, no caso, pouco estáveis. Disso
trem e terminamos descendo de um resulta que é necessário levar o assento
mototáxi em um bairro periférico. da bicicleta na mochila para evitar que
A falta de segurança é notável no seja roubado, isso depois de ter amarrado
primeiro e no último trecho. No primeiro a bicicleta em uma grade qualquer,
está relacionada à ausência de ciclovia correndo o risco de mesmo assim não
em uma via arterial da cidade, um suposto encontrá-la na volta. Apesar disso, viver
polo de desenvolvimento que não está essa incerteza é preferível a tomar uma
preparado para os ciclistas. Por aqui (e combi para chegar à estação de trem.
não só por aqui), ter um carro representa São três os tamanhos de veículos de
o mito de vencer na vida . Na contramão transporte público em Lima. Os pequenos
desse mito, a escolha pelo uso da bicicleta (peruas) e os medianos (ônibus) são
representa a defesa de um ideal, que totalmente piratas. São dirigidos por
27 28
autônomos, não estão formalizados. Os por todos os lados. Às vezes é como se
motoristas competem por passageiros você vivesse dentro de um bloco de água,
e dirigem de forma imprudente, é uma mas essa umidade não é do tipo que
experiência atroz. Já os trens, por sua promove vida vegetal, o que fica evidente
estrutura elevada, cortam a cidade ao meio. nas pequenas montanhas de areia que
Em regiões periféricas, algumas passarelas cobrem os terrenos baldios e até o meio
não estão terminadas, o que te obriga a das pistas, forçando os veículos a desviar.
caminhar grandes distâncias para completar Se bem cuidados, quem sabe esses areais
uma travessia. De qualquer forma, o trem não pudessem se tornar parques, como
com certeza é muito melhor que as combis, o belo Parque Ramón Castilla, que está
apesar de ir completamente lotado depois ao lado da casa do início do percurso.
das sete da manhã e de ter sido pouco Três construções bastante distintas
lembrado na descrição desse trajeto. marcam picos afetivos do trajeto por
O último trecho é considerado o mais Lima. O destino final, onde toma lugar
perigoso. Ao subir no mototáxi, surge uma sede do Ministério Público local, é
uma ameaça iminente e invisível. O descrito como um edifício alienígena.
mototáxi pode ser compartilhado ou usado Alto, azul e espelhado, diverge bastante
individualmente por um valor mais alto. das cores quentes dos sobrados e da
Deslizam nos areais e não respeitam regras cor de areia que se repete no chão e nos
de trânsito, mas em um bairro pobre, onde tijolos das casas inacabadas. Como se
supostamente há gente armada e onde sua “modernidade” tivesse sido arrancada
convivem as torcidas organizadas, caminhar do centro e implantada ali, na periferia.
não parece uma boa alternativa. Apesar A segunda construção marcante não
da paisagem monótona, em comparação é feita de tijolos. No meio do caminho
com o primeiro trecho da avenida percorrido pelo mototáxi, é possível ver uma
movimentada, passar por aí desperta tenda de circo montada. O circo representa
bastante ansiedade devido à sensação de algo bem bonito e amoroso. Normalmente
poder ser assaltado a qualquer instante. é montado entre julho e agosto. Destoando
Interessante, neste momento, comparar dos desenhos de palhaços e personagens
os grandes portões das casas do bairro infantis da tenda, há um letreiro bem grande
de origem com os portões improvisados sobre um talude onde se lê “Cristo está
que fecham a entrada de algumas ruas no vindo”. É sinal da presença da “Associação
bairro de chegada. Caberia questionar- Evangélica da Missão Israelita do Novo
nos o que exatamente gera a sensação Pacto Universal”, grupo religioso e político
de insegurança, se é a pobreza, a que se veste de túnicas, usa cabelos longos
ausência de vida nas ruas ou os dois. e espalha sua doutrina pela cidade. Soa
Contudo, mesmo não se encaixando divertida a dureza da profecia religiosa em
nas categorias anteriores, o bairro rico justaposição à leveza infantil do circo.
tem optado por manter imponentes os Terminamos o trajeto relembrando
seus portões. Há, portanto, uma terceira uma casa, escondida atrás de uma árvore
categoria geradora de insegurança a logo que entramos naquela avenida
ser considerada: o desconhecido. arterial do início. É a casa de um grande
Além dos meios de transporte, o clima amigo. Daqueles que você visita sem
de Lima também é emocionalmente avisar, voltando do trabalho exaustivo no
significativo. A umidade do ar, muito alta edifício alienígena. É só tocar a campainha,
perto da temporada de chuvas, contrasta logo ele aparece. Vocês acendem um
com a secura dos areais que se formam cigarro, riem e o tempo passa.

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30 31
0° 0° 0m 0h

S 22° L 50° 03’ Δ 880 m 2.208 h

S 04° 16’ O 08° 40’ Δ 595 m 343 h

S 07° 41’ L 27° 04’ 1.485 m 1.362 h

S 10° 36’ O 28° 32’ Δ 91 m 1.013 h

S 0° 55’ L 38° 34’ 93 m 1.196 h


salvador,
brasil
AVENIDA
PALACETE SUPER
DAS ARTES BARRAQUINHA ARBORIZADA BARRAQUINHA
ÁREA DE JARDIM DE FRUTAS BOA DE DE FRUTAS
BEM GOSTOSA CAMINHAR

EDIFÍCIO INÍCIO DA PAISAGEM


MONSENHOR COMUNIDADE LADEIRA ANTIQUÁRIO SE ABRE IATE CLUBE
MARQUES VILA BRANDÃO CAMINHADA PARA A BAÍA
APERTA

FESTA DE RUÍNAS DE BARRAQUINHAS


TRECHO MURADO SANTO ANTÔNIO EDIFÍCIO DE ACARAJÉ, FORTE DE
MOVIMENTA EMBARGADO COCADA, COCO SÃO DIOGO
A LADEIRA

PONTA DE ESCOLAS DE TRECHO ONDE


ORLA DA BARRA MAR SANTA MARIA MERGULHO ANDAM DE
SKATE, PATINS

TRECHO DE
FORTE DE SANTO EDIFÍCIO OCUPAÇÃO INTENSA MORRO
ANTÔNIO DA BARRA OCEANIA AOS FINAIS DE DO CRISTO
SEMANA
Salvador é uma
cidade que aguça
todos os sentidos

32

O cheiro da comida de rua, as conversas Descendo a ladeira, entre um antiquário e


descontraídas de esquina, as cores do a Igreja de Santo Antônio, por um momento
carnaval e o vento grudando areia no corpo. desaparecem os edifícios e a paisagem
Nesse trajeto a pé, percorremos um trecho se abre para a baía. Dependendo do dia
da Avenida Sete de Setembro, importante e da hora, você vê um lindo pôr do sol
via de acesso à orla da Barra. Para quem laranja, o prata das nuvens refletido no
nasceu na cidade, a ligação com o mar mar ou a água em vários tons de azul.
é forte. Botar o pé na areia ou tomar um Há dois edifícios controversos que
banho de mar pode ser quase terapêutico. são lembrados nesta primeira etapa
Qualquer coisa aqui parece monótona ou do percurso. Aliás, há uma presença
maçante quando comparada à vista para marcante de torres altas em boa parte
a Baía de Todos os Santos, por isso vamos da Avenida Sete, criando uma espécie
dividir o trajeto em dois momentos, o que de paredão que interfere bastante na
antecede a orla e o que passa por ela. paisagem natural da baía. Uma delas é a
Antes de chegar à Avenida Sete, mansão Wildberger, uma comprida torre
cruzamos um pedaço do bairro da Graça de apartamentos multimilionários. Para
bastante residencial e tranquilo, nada construí-la, demoliram (sim) a verdadeira
demais”. O que marca o início da caminhada mansão Wildberger, um casarão atrás
mais puxada é o Largo da Vitória, onde da paróquia de Nossa Senhora da Vitória
começa a ladeira. No outro sentido da (tombada pelo governo federal), com a
ladeira temos uma Avenida Sete versão contrapartida de entregar um pequeno
alameda, o céu é completamente escondido mirante e restaurar a própria paróquia e o
pelas árvores e o clima é mais ameno. Largo da Vitória. Na época da demolição,
os tratores chegaram e derrubaram o Santo Antônio da Barra. Para a cidade,
casarão ainda com móveis dentro. apenas um comprido muro do qual
Outro fato inusitado é que também despontam árvores. A Família Mariani
atrás da paróquia, entre a mansão, o teve a maior parte de seu Banco, o BBM,
mirante e o edifício modernista Monsenhor comprado por um banco chinês. Apesar
Marques, está a entrada para a pequena do tamanho e da localização mais do que
e consolidada favela de Vila Brandão. privilegiada, é possível que o sítio esteja
“Controlada”, “fixa”, “nenhum morador hospedando apenas seus funcionários.
mais consegue chegar”. Lá tem posto São feitas três outras paradas antes
médico e odontológico, há várias entidades de chegar à orla. Dois antigos casarões
envolvidas no território, incluindo a Igreja. reformados abrigam espaços culturais
Vila Brandão compõe o encadeamento de e cafés chiques. A terceira parada é a
ocupações heterogêneas sobre o talude tradicional Festa de Santo Antônio que
que cresce do mar até a Avenida Sete, movimenta bastante a ladeira na época
junto de um Iate Clube e do Cemitério de São João. E, enfim, chegamos ao nível
dos Ingleses. Sortudos os ingleses do mar. Para acessar a orla passamos por
que repousam diante dessa vista. uma praça que aguça todos os sentidos.
Não tão bem sucedida em sua aventura É a música que estala na caixa de som,
nas alturas foi a torre que ficaria em também o perfume do acarajé, a textura
frente ao Grande Hotel da Barra, cuja da cocada e a vista da praia. Daí em diante
cobertura viria a pertencer a Geddel quase que só temos olhos para o mar.
Vieira, ex-deputado federal e ex-ministro Tem o Forte de São Diogo. O local de
da integração nacional, hoje condenado fundação da cidade. Os restaurantes em
por lavagem de dinheiro. A torre excedia casinhas históricas. A praia. E o mar…
o gabarito permitido e foi embargada A ponta de Santa Maria. Escolinhas de
a tempo pelo órgão de patrimônio, mergulho. O vento que te puxa. E o mar…
restando agora apenas as ruínas de É o Farol da Barra. A galerinha andando
seus primeiros andares em um terreno de skate e patins. O edifício Oceania.
que (neste caso) estava desocupado. E o mar… A ocupação total da avenida
Atrás desse terreno está o sítio de pelos pedestres. O vai e vem de pessoas.
uma família muito rica que já nem mora Os camarotes do carnaval vazios. A
em Salvador. Para o Google é a Praça praia. O Morro do Cristo. E o mar…

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34 35
0° 0° 0m 0h

S 22° L 50° 03’ Δ 880 m 2.208 h

S 04° 16’ O 08° 40’ Δ 595 m 343 h

S 07° 41’ L 27° 04’ 1.485 m 1.362 h

S 10° 36’ O 28° 32’ Δ 91 m 1.013 h

S 0° 55’ L 38° 34’ 93 m 1.196 h

S 06° 57’ O 05° 28’ Δ 844 m 258 h


belo
horizonte,
brasil
CASA DA FESTA
AMIGA QUE CEMITÉRIO DA RUA ESCURA MURO COMPRIDO JUNINA
MORAVA EM SAUDADE NO CANIL
FRENTE

BASE DA CURSINHO
POLÍCIA POPULAR MURO DA TRECHO SORVETERIA RUA CENTRAL PAGODE
MILITAR DO BAIRRO PEGAÇÃO ESCURO ADRIANA DE COMÉRCIO

IGREJA DO
PADRE LEO RUA DAS CLUBE DE PONTO DE CASA DAS IRMÃS
PRAÇA GRÉCIA NÃO PERMITIA CASAS BONITAS FUTEBOL ONDE ENCONTRO QUE ESTAVAM MURO DA
LUGAR DA SOCIAL MULHERES ONDE MORAM OS O TIO JOGAVA COM AMIGOS SEMPRE NA JANELA PEGAÇÃO
DIVORCIADAS RICOS DO BAIRRO

CENTRO
CULTURAL
IUNA
Belo Horizonte é uma
ida à sorveteria

36

A princípio inocente, mas na verdade o costume de ficar na porta de casa ou


cheia de camadas profundas. Algumas na janela. Então quem passava, parava e
doloridas e melancólicas, outras leves e começava a conversar. Todo mundo sabia
saudosistas. Talvez tenha a ver com o fato de todo mundo. Mas já estão mais vazias
de estarmos no bairro da Saudade, onde as ruas e os hábitos parecem ter mudado.
há um cemitério com o mesmo nome. Por Há alguns anos as crianças cresciam
causa do cemitério, as casas vizinhas mais soltas no Saudade. Não tinham
sofrem com a infestação de baratas e até nenhuma preocupação em estar na rua.
escorpiões. Depois de sair de casa no início Inclusive, as ruas mais desertas eram
da noite e encontrar a amiga que morava aproveitadas pelos espertos que queriam
em frente, já nos primeiros quarteirões era dar beijo na boca escondido, nos muros
possível ver as baratas voando ao redor da pegação. A vida também acontecia
dos postes de luz. Hoje talvez pareça na festa junina ou no pagode do bairro
desesperador, na época era só cômico. e a praça da igreja era um dos lugares
Mas fique tranquilo, estamos em família. preferidos pra tomar vinho. Alguns
Logo ali está a casa de uma amiga. Mais amigos se juntavam nas férias e invadiam
pra frente de uma outra. Tem o vizinho casas na Pampulha. Mas isso algumas
peladão, meio doido e engraçado. Os tios mães nem sonham. E esses amigos já
e a madrinha também estão por perto. nem estão aqui pra contar a história.
Ou pelo menos estavam. Agora, a casa É que na esquina da rua das casas
daquela amiga ou a da madrinha talvez nem bonitas (onde morava um pessoal com
existam mais. Talvez os moradores sejam mais grana, donos do comércio da região)
outros. Antigamente as pessoas tinham e do clube de futebol com a rua daquela
37 38
padaria bem antiga, estava sempre esse mas quanto mais você subia o morro, mais
grupo de amigos, de plantão. Não se o bairro se tornava favela. Então quem
criava essa relação direta com o mundo do morava no Saudade deixava claro que ali
crime. Eram amigos conhecidos do bairro, não era o Vera Cruz, e quem era do Vera
fazendo coisas que não deviam. Boa parte Cruz tinha uma tendência a dizer que era
desses amigos se foram, jurados de morte do Saudade, para se diferenciar do Taquaril
pelo tráfico. Mas, só quando você sai do (o mais “favela” dos bairros da região).
Saudade é que percebe que a violência Seja hoje bairro ou favela, toda a região a
ali é naturalizada e o modo de ser é mais princípio era uma fazenda. Diferentemente
agressivo devido à dura realidade. da fazenda da ex-deputada Maria Elvira,
Acontece que nem todo mundo incrustada hoje no meio do Taquaril,
consegue sair de lá. É uma espécie de essa antiga fazenda foi loteada e sua
isolamento geográfico e social. A escola ocupação estimulada a partir da criação
é vizinha da base da polícia militar do cemitério, que foi o segundo da cidade.
e o cursinho popular do bairro está O Cemitério da Saudade, de planta em
dentro dessa mesma base. Não deveria formato de sepultura, foi criado para
surpreender que o jovem periférico queira aliviar o fluxo de enterros no Cemitério
evitar a polícia e acabe evitando também do Bonfim e para atender uma população
os lugares que poderiam tirá-lo das ruas, “mais carente”. Aqueles de maior prestígio
como o Espaço Comunitário da Igreja, que jaziam no Bonfim, os outros no Saudade.
ensina informática, e o Centro Cultural Iuna, Essa população carente, em parte
que ensina capoeira e promove todo ano o migrada do nordeste do país, foi
Festival Comunitário Latino-Americano. praticamente quem deu vida àquela
A vida ali é uma vida de limites. Entre porção de cidade. Organizados em grupos
39
a vida e a morte. Entre o Saudade e o comunitários, políticos e religiosos,
Vera Cruz. Entre o bairro e a favela. Às promoveram a abertura de ruas, depois
vezes, indo para a escola, era necessário o calçamento em pedras, até por fim
se esconder no sacolão, para se proteger chegarem ao asfalto. Se tornaram donos
do tiroteio na rua. A violência marcava de bares e comércios locais. Faliram. Mas
presença tanto em um quanto no outro, abriram caminho para as futuras gerações.

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0° 0° 0m 0h

S 22° L 50° 03’ Δ 880 m 2.208 h

S 04° 16’ O 08° 40’ Δ 595 m 343 h

S 07° 41’ L 27° 04’ 1.485 m 1.362 h

S 10° 36’ O 28° 32’ Δ 91 m 1.013 h

S 0° 55’ L 38° 34’ 93 m 1.196 h

S 06° 57’ O 05° 28’ Δ 844 m 258 h

S 02° 16’ L 01° 17’ 850 m 85 h


rio de
janeiro,
brasil
UMA IGREJA TROMBA D’ÁGUA PRAÇA DA
EVANGÉLICA A NO RIO VIZINHO CAPELA NO TOPO MANTIQUEIRA
CADA PASSO INUNDOU A CASA DA MONTANHA TABLADO SOCIAL

MARCO POLO CENTRO DE INMETRO RODOVIA


SALÕES DE PICO DO FÁBRICA DE TREINAMENTO DO ONDE A MÃE WASHINGTON
BELEZA CONGONHAS ÔNIBUS FLUMINENSE ERA FAXINEIRA LUIZ

WHITE
MARTINS AVENIDA COQUEIROS ORLA DA BAÍA CENTRAL
FÁBRICA DE BRASIL DE GUANABARA DO BRASIL
OXIGÊNIO

REGIÃO DE
SHOPPING-CH O PROSTITUIÇÃO

CASARÃO COM EDIFÍCIO CONSULADO


CARA DE MAL ONDE GOSTARIA BISTRÔ GRÉGORA CLUB 117 DA SUÍÇA
ASSOMBRADO DE MORAR

QUILOMBO
URBANO
O Rio de Janeiro
é o caminho do
Glória a Xerém

41

Na verdade, o contrário. Mas assim bairros. Descer nela para trocar de ônibus
como o disco de Bethânia, nosso trajeto é uma experiência tenebrosa. Os coqueiros
faz menção aos lugares de origem. Às que enfeitam o canteiro central soam quase
diversas casas que temos na vida. Nesse como uma ofensa. Uma tentativa descarada
caso, uma na periferia da cidade vizinha de maquiar a hostilidade da avenida. A
e outra numa região central do Rio. No vontade de quem passa por ali todos os
meio do caminho entre as duas há lugares dias é descer e arrancar os coqueiros, para
totalmente inóspitos e outros bastante deixar explícito que aquele lugar representa
sedutores. Neste Rio de Janeiro são uma ferida urbana para muita gente.
importantes as marcações de tempo e Vamos então começar pela residência
espaço. Os trajetos curtos são os que atual e depois voltar ao passado. Para quem
carregam mais significado, enquanto há aterrissa no Glória pela primeira vez pode
pedaços muito longos quase sem memórias. ser assustador, por incrível que pareça.
Aliás, o que determina o entrar e sair da Os moradores de rua, as prostitutas e o
cidade não são seus limites administrativos shopping-chão (camelôs que vendem
e sim a percepção afetiva do espaço. A seus produtos sobre panos na calçada)
Rodovia Washington Luiz marca a saída de compõem uma realidade muito diferente
Xerém, enquanto que a (empresa) White para quem viveu a simplicidade de Xerém.
Martins e a vista da baía de Guanabara Com o tempo, essas complexas camadas
revelam que Duque de Caxias ficou para sociais vão se tornando familiares e deixam
trás. A Avenida Brasil nos leva cidade de causar medo e desconforto, para se
adentro. É uma comprida e hostil via adequarem à normalidade do cotidiano.
expressa que atravessa e divide vários
A subida da rua faz parte da subida O consulado da Suíça, um pouco adiante,
de um morro recortado por escadarias. reativa a sensação de estar numa zona
Começa repleta de bares, restaurantes rica da cidade, ainda que em meio aos
e mercadinhos. Um com péssimo camelôs, aos moradores de rua e à sauna
atendimento, outro com um ótimo PF gay. Sim, vizinha de uma escola católica
(almoço comercial). Um caro, só para bem tradicional e em frente ao bistrô
emergências, outro bom para comprar Grégora está uma casinha azul. Suas janelas
cerveja. Neste primeiro trecho, a generosas e adornos art-déco até enganam,
calçada tem inúmeras funções além do mas ali funciona uma sauna gay, o Club 117.
caminhar. Abriga uma pequena feira de Continuando a subida, passamos em
frutas, roupas e artesanatos, além de frente a um bar que causa desconforto
ser estacionamento de carrinhos do pela concentração de homens marrentos e
supermercado e de mototáxis. Também mal-educados na entrada. Depois entramos
tem barraquinha de açaí e chaveiro. Fora as em uma curva, subindo por uma escada
mesinhas de bar que sediam o campeonato perfeitamente ergonômica que circunda
de jogos de mesa do quarteirão. uma casa “mística”, que tem uma (planta)
Mais adiante está o bistrô Grégora, que espada de São Jorge na porta. Nessa
oferece uma atmosfera bem diferente da curva há um paredão coberto de graffiti e
que acabou de ser descrita. É um lugar a memória agradável da resistência de um
bastante querido, desejável de estar a quilombo urbano ali naquele quarteirão.
cada refeição. Para ir numa tarde tranquila, O trajeto termina chegando ao edifício
tomar um café e escrever. Um espaço “não- sombrio-meio-casa-da-bruxa que é a
utilitário”, que te convida a permanecer.

42
casa atual. A antiga também pode parecer pela ditadura. Na região impera a cultura
meio sombria, mas por outro motivo. sustentada pela Igreja. Tem uma Igreja
Voltando à Xerém, no muro da travessa evangélica não a cada esquina, mas a
que leva à casa da infância, foi pintada uma cada passo. Então os meninos se casam
bandeira para celebrar a Copa do Mundo. e constituem família cedo. Daí tentam
Embora agora represente essa coisa ganhar a vida nessa fábrica ou no Centro
sombria e autoritária, a pintura dá o nome de Treinamento do Fluminense, logo
popular de “Beco do Bandeira” à Travessa ao lado, para sustentar a família.
Assunção. A entrada para a travessa As jovens esposas por vezes vão
está na Estrada de Xerém e perto dali há trabalhar nos salões de beleza ao redor
um rio que corre em paralelo, descendo da Praça da Mantiqueira, ponto central
a montanha. Uma vez esse rio alagou a do bairro, praticamente “o tablado da
região devido a uma tromba d’água, mas vida social de Xerém”. Lá você pode ficar
depois nunca mais causou inundação. sabendo quem começou a fumar e quem
Xerém é cercada por montanhas largou, quem engravidou, saiu da Igreja,
inexploradas. A Capela de Santa Rita trocou de marido. É onde a vida do bairro
de Cássia está no alto de uma delas e é acontece. Lá você vai às compras, à feira,
avistada no trajeto. A Pedra do Congonha além de fazer a mão, o pé e a sobrancelha
está em um ponto ainda mais alto, de todo no salão, ou então cortar o cabelo na própria
lugar dá para ver. É frequentemente usada praça, com o Bozó. Na adolescência, essa
como logotipo pelos empreendimentos da praça era um lugar que causava vergonha,
região. Próxima da saída para a rodovia você não queria estar ali porque sua tia
está uma fábrica de ônibus, que antes ia passar e te ver, e depois contar para
era uma fábrica da Fiat e antes ainda, sua mãe quando chegasse em casa.
um esconderijo de pessoas perseguidas

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S 22° L 50° 03’ Δ 880 m 2.208 h

S 04° 16’ O 08° 40’ Δ 595 m 343 h

S 07° 41’ L 27° 04’ 1.485 m 1.362 h

S 10° 36’ O 28° 32’ Δ 91 m 1.013 h

S 0° 55’ L 38° 34’ 93 m 1.196 h

S 06° 57’ O 05° 28’ Δ 844 m 258 h

S 02° 16’ L 01° 17’ 850 m 85 h

S 01° 22’ O 03° 58’ Δ 758 m 90 h


são paulo,
brasil
BAR ONDE O PAI
TRECHO BEM ESCOLA DA ESPERAVA A SAÍDA ESCOLA DO ENSINO ESCOLA DO
TRANQUILO INFÂNCIA DA ESCOLA FUNDAMENTAL ENSINO MÉDIO

PAPELARIA MAGAZINE CARTÓRIO DA POSTO DE


DE ROUPAS CASA VERDE GASOLINA

SOCIEDADE LOJA DE LOJA DE DOCES


CHOCOLATERIA AMIGOS DA REVELAÇÃO LOJA DE DO INTERVALO DA PADARIA AUTOESCOLA TRECHO DOS
CASA VERDE DE FOTOS CALÇADOS AULA DE INGLÊS FRANCESA BANCOS

FAIXA EXCLUSIVA
DE ÔNIBUS ESCOLA ONDE LOJA DE SHOPPING-GALERIA
MELHOROU O RIO TIETÊ QUERIA ESTUDAR CALÇADOS FOI DEMOLIDO
TRÂNSITO
NA PONTE

ESCOLA LANCHONETE
SALA DE MÚSICA AMARELINHO
SÃO PAULO FREQUENTOU ONDE SEMPRE
POR 15 ANOS ALMOÇAVA
São Paulo é a cidade
das compras

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Um território assimilado pela lembrança lanchonete foi substituída por um estande


exata de onde fica - ou ficava - cada de vendas, cercado por bandeiras e birutas
loja, cada mercadinho, cada padaria. São desengonçadas. Alguns desses lugares
muitas as categorias de comércio que estarão simplesmente fechados, cobertos
ativam a memória. Desde aquela padaria por placas de vende-se ou aluga-se.
boa, passando pela cara, francesa , até Outros terão dado lugar a uma sucursal
a lanchonete amarelinha dos inúmeros do empreendimento modinha da vez.
almoços e o mercadinho da esquina para os Talvez essas dinâmicas sejam mais
imprevistos. Também aquela chocolataria evidentes no centro antigo da cidade, onde
famosa e a doceria do intervalo do curso de fica aquela escola de música frequentada
inglês, que virou um estacionamento. por quinze anos. Lugar de crescimento,
A papelaria da foto 3 4, o cartório do bairro. aprendizados e amizades. Foram muitos
O magazine de roupas da rua de cima onde anos dedicados a esse trajeto até a escola,
a mãe adorava ir, as lojas de calçados cujo feito no nibus Lgo. do Paissand 9031-10.
dono era amigo da família, aquele enorme Desde os 12 anos era feito sozinha. Antes
shopping-galeria que foi demolido. com a mãe, que não cansava de repetir
O comércio não está livre da volatilidade todas as recomendações para circular por
que arrebata as dinâmicas de ocupação ali. No bolso apenas dez reais. Andar rápido
dessa cidade. Então, quando você passar e sempre pela rua mais movimentada.
em frente àquela padaria de muitos anos Celular ainda nem tinha naquela época.
atrás talvez ela já não esteja lá. O galpão Além dos aprendizados na escola de
da loja de roupas foi vendido para uma música, o próprio trajeto também ensinou
incorporadora e a fachada amarelinha da muito sobre a cidade e ajudou a construir
46 47
noção espacial, bastante necessária praça próxima à antiga casa da família,
numa cidade grande como São Paulo. onde também era o escritório do pai.
Além da música e da cidade, outras O pai trabalhava como contador para
escolas são relevantes no percurso. A do o fundador da escola de samba do bairro.
maternal até o pré-escolar, que ficava em Depois de um encontro entre os dois, se
frente ao ponto de ônibus. Hoje em dia, uma despediram neste posto de gasolina, de
farmácia. O Zecão (Professor José Carlos onde o pai saiu para buscar a família e levá-
Dias), da primeira à quarta série. la para casa. Quando chegaram já estava em
A escola técnica estadual, do ensino médio. todos os noticiários. O fundador da escola
A escola dos sonhos, que tinha um Jesus de samba havia sido assassinado naquele
na entrada. Era uma escola católica super posto, uma morte encomendada devido à
bem conceituada (Legião da Boa Vontade), disputa por território. Disseram que saíram
cujo uniforme chamava a atenção. E até três caras de dentro de um carro com
a auto-escola, da carta de motorista metralhadoras. O posto ficou interditado
que nunca foi usada. Tudo pertinho. por muito tempo e a vizinhança demorou
Do lado de cá do rio, as memórias mais para se recuperar do ocorrido. Dez minutos
marcantes são as relativas ao pai. O rio a mais naquele posto seriam definitivos
era atravessado diariamente através de para uma história ainda mais trágica.
uma ponte mal cheirosa e congestionada. O pai era uma figura bastante presente e
Pelo menos antes da faixa exclusiva carismática. Tinha amigos no bar do Jhony
de ônibus. Depois, fluiu bem somente Boy, que ficava na esquina oposta à da
para quem ia de transporte público, mas escola de infância. Estava sempre por ali
o cheiro permaneceu para todos. jogando conversa fora, na espera da saída
Uma vez, quando o pai dava carona da aula. Também frequentava os eventos da
em seu carro até a escola de música, sociedade de amigos do bairro e costumava
vivenciaram seu primeiro assalto. Parados levar a família junto. Um passatempo
no semáforo vermelho, foram abordados particular do pai era a fotografia. Ia tantas
por um menino armado com uma faca, vezes à casa onde revelavam fotos que se
que pedia celular e dinheiro. Apesar das tornou amigo do dono, que dava brindes e
ameaças do menino e do desespero da descontos. Agora o lugar é um petshop, já
família no banco de trás, o pai se manteve que o formato analógico vem sendo cada
irredutível e saiu em disparada com o vez menos usado. Porém, o arquivo de
carro, deixando o menino para trás, mas fotos formado pelo pai ainda é um sucesso.
não a tensão no ar. Outra memória tensa O acervo familiar, na casa atual, recebe
envolve o posto de gasolina de uma visitantes assíduos entre os parentes.

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0° 0° 0m 0h

S 22° L 50° 03’ Δ 880 m 2.208 h

S 04° 16’ O 08° 40’ Δ 595 m 343 h

S 07° 41’ L 27° 04’ 1.485 m 1.362 h

S 10° 36’ O 28° 32’ Δ 91 m 1.013 h

S 0° 55’ L 38° 34’ 93 m 1.196 h

S 06° 57’ O 05° 28’ Δ 844 m 258 h

S 02° 16’ L 01° 17’ 850 m 85 h

S 01° 22’ O 03° 58’ Δ 758 m 90 h

S 11° 06’ O 11° 49’ 735 m 403 h


buenos
aires,
argentina
CAFÉ
CENTRO RUA FLORIDA LONDON CITY TEATRO ASTROS
CULTURAL PONTO NEURAL TRECHO DOS EXCLUSIVA PARA ESTÁTUA OBRAS MAIS
KIRCHNER DE TRANSPORTE BANCOS PEDESTRES DO JULIO COMERCIAIS
CORTÁZAR

RESTAURANTE
TEATRO MAIPO TEATRO SUIPACHA CONFITERÍA IDEAL
E -APARTAMENTO ONDE FOI UM TEATRO GRAN REX ÓPERA ORBIS PARA QUANDO CAÍA FECHOU PARA
SAUDOSO MONTÃO DE VEZES DO PETER PAN ELITISTA A ENERGIA E NÃO REFORMA E
PODIA COZINHAR NUNCA REABRIU

TRECHO REPLETO CHEIRO DE


MC DONALD’S MANIFESTAÇÕES DE LIVRARIAS COMIDA BOA NO
NO OBELISCO FICAM ABERTAS ATÉ CAFÉ PETIT COLÓN
DE MADRUGADA
Buenos Aires emana
um fulgor cultural
constante

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Está repleta de teatros e cinemas na quarteirões um pouco morta , ocupada


Avenida Corrientes, que fica coberta de principalmente por bancos e escritórios.
luzes no período da noite. Isso sem contar Tudo muda quando chegamos à
os letreiros publicitários, também luminosos, Rua Florida, uma rua para pedestres,
que abraçam os prédios. É uma avenida perpendicular à Corrientes, na qual gera
que banha de luz artificial a vida noturna uma divisão entre onde se pode caminhar à
pulsante. Mas, ao redor, o que pulsa é a noite e onde não. A partir da Florida começa
vida diurna dos escritórios. Estamos no o movimento dos teatros, os protagonistas
coração do centro comercial da cidade, desse trajeto. A duas quadras da Florida,
destino diário de inúmeros trabalhadores. estava o antigo e saudoso apartamento, que
Porém, não estamos falando de alguém dava de frente para a avenida, mas era só
que ia à Corrientes a trabalho e depois fechar a janela e todo o barulho sumia.
voltava para casa a muitos quilômetros O apartamento estava rodeado de teatros,
de distância. Nesse caso, trata-se da cada um com seu significado e importância.
experiência inversa. Alguém que ia O Teatro Astros é um teatro de obras
trabalhar fora da cidade e voltava para mais comerciais, não agradava tanto. Já o
o centro, onde vivia uma vida doméstica Teatro Maipo era um pequeno teatro muito
agitada. Esse movimento pendular era feito querido que ficava do lado da churrascaria
de BRT e terminava no Centro Cultural do Rick , onde vendiam choripanes (pães
Kirchner, um ponto de convergência de com linguiça) duvidosos. Antes o Maipo era
atividades culturais mas também de várias um teatro de revistas, mas passou a ser de
linhas de transporte público. Dali entramos tudo. Inclusive lá se apresentou cinco vezes
na Corrientes, que segue por quatro o cantor argentino Gerónimo Rauch.
Das cinco apresentações, esteve presente O Cine Lorca é um bem pequenininho
em quatro, uma delas na primeira fileira. mas bastante frequentado. E o Buenos
O Opera Orbis é um teatro muito elitista. Aires Mon Amour é dedicado ao cinema
Tem dois níveis, sendo que os assentos internacional independente. Está logo
mais baratos são os de cima, de onde embaixo do metrô, então dependendo
não se vê um terço do palco. E qualquer da sala em que você estiver, vai sentir
obra deveria poder ser vista por todos, os a vibração de quando passa o trem.
que pagam mais e os que pagam menos, São os efeitos especiais da cidade.
somente a partir de ângulos diferentes. E, evidentemente, um bom filme e uma
Em contrapartida, o Teatro Gran Rex é boa peça são sempre acompanhados de
excelente, bastante generoso e diverso. café ou pizza. Há três cafés importantes,
O Gran Rex é um local cheio de todos de fachadas majestosas e interiores
memórias. Uma delas é de um dia que lembram o famoso navio Titanic.
entediante, muito frio. No Gran Rex estava O primeiro deles atualmente está fechado.
passando um musical infantil durante É a Confeitaria Ideal, onde se apresentou
as férias de inverno das crianças, o o primeiro grupo de tango totalmente
Peter Pan. Para matar o tédio, decidiu feminino. Fechou para reparos e nunca
comprar o bilhete mais barato e entrar. mais abriu. O Café Petit Colon é outro
Só que o mais barato também é o mais café histórico, com uma “cara bem
distante. A sorte é que não estava tão europeia”. Só de falar já dá pra sentir
cheio e deixaram ir mais para frente. Foi o cheiro bom dos pães do balcão.
divertido estar ali com as crianças, depois Finalmente, o Café London City é famoso
disso sempre que podia recomendava o por estar em um livro de Julio Cortázar.
Peter Pan para quem quer que fosse. A história de um de seus romances tem
Na Corrientes também estão o início aí e, por isso, em uma mesa você
Teatro Nacional e o Metropolitan. Mas encontra a estátua do escritor fumando
além dos teatros há cinemas de rua. um charuto. Os croissants desse café são

50
inesquecíveis. Mas além disso, a experiência que o cruzamento esteja bloqueado
que o café proporciona deve dar créditos e atrás dele se forme um longo
à movimentação constante na Avenida de congestionamento, dando motivos para
Mayo. O lugar perfeito para simplesmente que os argentinos pratiquem um de
sentar e contemplar as pessoas passando. seus hábitos preferidos: reclamar.
Assim como a Avenida de Mayo, Mas não são só protestos que
a Corrientes também é lugar de movimentam o obelisco. Cada vez que o
contemplação. Lugar de caminhar. O tipo de Boca (Juniors) ou o River (Plate) ganham
lugar que te faz descer uma estação antes algum campeonato, é uma tradição que
da sua, para poder andar umas quadras até os torcedores se reúnam no obelisco.
chegar em casa. As livrarias funcionam até Também é parte da tradição terminar a
de madrugada e sempre têm movimento de comemoração no McDonald’s da Corrientes
pessoas devido aos já mencionados teatros, que, para alegria de alguns e tristeza de
cafés e cinemas. Os restaurantes e pizzarias outros, sempre acaba meio destruído
também são vários e marcam presença. no final da noite. As comemorações
O obelisco engrossa esse caldeirão das torcidas podem ser bem mais
sócio-cultural. No cruzamento da intensas que os próprios protestos. Seus
Corrientes com a Avenida 9 de Julio, pulos e gritos chegam a fazer o asfalto
o monumento acolhe manifestações vibrar. A rua parece ter vida própria.
populares quase diárias. É muito comum

51 52
chegada
As cidades latino
americanas podem ser
tudo isso, mas também
muitas coisas mais

Esse pequeno recorte de experiências deles, estimulam um estilo de vida mais


urbanas na América Latina demonstra a individualista e afastado da rua.
variedade de contextos sociais existentes A rua é, por essência, o lugar do encontro
em uma mesma cidade e entre as várias e da troca. É o lugar onde, supostamente, os
cidades abordadas. Os contrastes entre vários universos da vida privada poderiam
riqueza e pobreza permeiam quase todos conviver harmoniosamente. É um bem
os pontos de parada desse itinerário comum, de livre acesso e uso por todos.
que cruzou seis países. E a própria João do Rio (1908) reitera que a rua é a
descrição dos trajetos diz um pouco alma da cidade, é a origem de todos os
sobre as pessoas que o experimentaram: atributos relativos a uma cidade e, por isso,
seus valores, sonhos e crenças. tem um papel fundamental na construção
Isso porque a cultura dos lugares de significados da experiência urbana.
que vivenciamos ajuda a moldar nossa O autor também denuncia a definição
percepção de mundo. Pessoas que estão fácil , comumente atribu da rua: espaço
ou estiveram em uma atmosfera urbana entre fachadas por onde se anda e se
mais propícia à vida coletiva terão mais passeia”. É fato que a rua também é o
memórias espaciais da cidade. Bairros lugar do trânsito, mas reduzi-la a essa
de moradias menores e mais horizontais utilidade apaga todo seu potencial poético
tendem a propiciar uma vivência mais e disruptivo de manifestação popular, o
voltada para os espaços coletivos, enquanto que interessa à manutenção da ordem
os novos produtos das incorporações, hegem nica da cidade. uem tá na
sendo o condomínio o mais comum rua sabe”, diz o pixo disseminado pelos
muros de São Paulo, porque estar na “corpografia” que, conforme ensina Paola espaço é questionável. Descrições de rede de ciclovias deficiente, para poder
rua é diferente de simplesmente passar Berenstein (2008), é o espaço afetado pelo zonas mais pobres acompanham cargas desfrutar de um trajeto feito em bicicleta.
por ela, é praticar a cidade e participar corpo e o corpo sensível ao acúmulo de sentimentais muito intensas nos trajetos Ainda que represente um momento
ativamente da construção do cotidiano. apropriações e improvisações cotidianas. em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro, de alegria e tranquilidade nos percursos
E o praticante da cidade, na maioria No trajeto feito em Buenos Aires, mas também em Buenos Aires e Medelín, por Salvador e Buenos Aires, o caminhar
das vezes, é o usuário do transporte por exemplo, os teatros, cinemas e onde são percorridas regiões mais ricas também pode ser um marcador de
público. Embora não encerre a definição restaurantes poderiam representar essa da cidade. Da mesma forma, em Belém, medo e insegurança. Em Tijuana e Lima,
da experiência urbana, a mobilidade cidade-espetáculo, voltada somente ao a experiência de um bairro periférico andar por determinadas ruas representa
não deixa de ser um fator decisivo na entretenimento e à publicidade, não fossem em pleno processo de transformação algo inimaginável devido à violência
percepção da cidade. O motorista do as minúcias da experiência corporal, que colaborou para que as as marcas afetivas iminente. Nas duas últimas, o fantasma
carro não costuma poder desfrutar invadem esses espaços. Há, portanto, do lugar fossem ficando no passado. da insegurança tem a ver com o estigma
daquela atenção contemplativa particular teatros mais amigáveis que outros e Isso ajuda a demonstrar que a da violência que acompanha as regiões
do pedestre, do ciclista e do passageiro cinemas menos comerciais que outros. posição social de um sujeito e o pobres das cidades, com a diferença
de ônibus. Não que seja uma regra, já Restaurantes que te fazem sentir em casa, desenvolvimento econômico de um de que em Tijuana o gênero denuncia
que até mesmo esses praticantes são cujos funcionários sabem quando você não lugar não determinam, necessariamente, outra camada da violência urbana,
arrebatados pelo fenômeno da pressa, está tendo um bom dia. Também, a vivência uma vivência espacial mais ativa, mas relativa à vivência das mulheres.
que esvazia o cotidiano de significados. dos protestos políticos e a comemoração sim o tipo e o grau da relação que um Violência, medo e insegurança
Ao impor-nos uma rotina de velocidade das torcidas de futebol alteram a indivíduo estabelece com o espaço, além determinam, então, limites intangíveis
acelerada, perdemos a capacidade de atmosfera turística do lugar. E aquele café de sua capacidade de gerar memórias e nas cidades latino-americanas. São
registrar informações e criar imagens que tão querido não seria o mesmo sem a concepções afetivas sobre a cidade. símbolos que operam no cotidiano
alimentam a nossa memória. Transitamos contemplação de todo o movimento da rua. Um fator afetivo que atravessa tanto urbano, direcionando o comportamento
frequentemente entre as condições de Paralelamente, Rio de Janeiro e Caracas zonas pobres quanto zonas ricas é o medo dos indivíduos. Definem, por exemplo,
praticante e passante das ruas, mas para ajudam a demonstrar as variações entre da violência e as consequências dela no até que ponto é possível caminhar por
pender mais para um lado que para o outro praticantes e passantes das cidades. Na comportamento cotidiano. Em suas variadas certa rua, quais esquinas devem ser
faz-se necessário despertar um certo primeira cidade, a memória do dia em que a formas - verbal, física, econômica, racial evitadas e quais zonas estão totalmente
estado contemplativo da vida, pelo qual é casa inundou faz com que o córrego vizinho ou de gênero -, a violência fica gravada proibidas para um pedestre.
possível ativar a sensibilidade espacial, que não passe despercebido na descrição do no corpo, na mente e no território, muitas Mas essas regras variam conforme
permite a construção da reflexão que cada trajeto, enquanto na segunda, o enorme rio vezes de maneira abstrata ou invisível, mas o grupo social, além de representarem
um faz sobre o ambiente que o circunda. que atravessa toda a cidade, e também o não deixa de condicionar a experiência acordos sociais velados, sintomas da
Esse estado contemplativo ou reflexivo trajeto percorrido, sequer foi lembrado. Ao urbana. No entanto, esse medo não aparece discriminação sócio-territorial. Às mulheres,
é determinante para diferenciar a cidade- mesmo tempo, a percepção das montanhas nos trajetos de formas convencionais. por exemplo, está proibida a circulação
espetáculo da cidade-experiência. densas de vegetação que envolvem ambas No caso de Belo Horizonte, não eram por muitas zonas da cidade, ainda que
A sociedade do espetáculo, conceito as cidades foram bem distintas. Em Caracas, baratas e escorpiões nem as ruas escuras o caminhar seja o principal modo de
desenvolvido por Guy Debord (1997), é as montanhas representam somente algo que causavam medo. O principal medo transporte entre mulheres de países
aquela que habita a cidade mediada por que os turistas adoram, já no Rio de Janeiro relatado era o causado pela polícia que, latinos. Da mesma forma, corpos negros
imagens pré-concebidas e superficiais, que fazem parte da paisagem cotidiana, são para alguns, representava uma ameaça são comumente perseguidos tanto em
estimulam uma espécie de comportamento para onde olha-se no caminho para casa. de violência maior do que a representada espaços públicos quanto privados, de
hipnótico, caracterizado pela abstenção É interessante salientar que a afirmação pela atmosfera do crime. Já em Medelín acordo com relatos que cada vez mais têm
da força pensante do indivíduo. Por outro de que a periferia estaria, obrigatoriamente, e Lima, em contrapartida, valia a pena vindo à público através das redes sociais.
lado, a cidade-experiência é a cidade da mais propícia à experiência afetiva do correr os perigos decorrentes de uma
Essas variações das experiências a favela, baseadas em um pensamento como uma forma de captura do potencial para que a urbanização pudesse ser
urbanas entre os grupos sociais são meritocrático, que atribui a debilidade econômico local, já que o capital gerado menos destrutiva ao meio ambiente.
observadas dentro do recorte de trajetos de um organismo à sua incompetência em torno dos empreendimentos é sempre Por esses motivos, retomar a experiência
apresentados. Em todas as cidades, homens individual, em lugar de atribuí-la ao contexto em benefício do investimento estrangeiro. das cidades latino-americanas, através de
e mulheres caminham e se deslocam em social em que está inserido. A ideia de que Aliás, a população local de Tijuana um deslocamento que põe foco sobre a
transporte público, já que esse era um as favelas são do jeito que são porque é afetada diretamente pela reprodução vida cotidiana ao invés de colocá-lo sobre a
critério exigido do percurso. Contudo, assim mereceram ser - e não porque não do capital global no espaço urbano. Os construção do espaço, é fundamental para
é simples perceber que os dois trajetos tiveram melhores condições para serem moradores da cidade, cada vez mais o entendimento da realidade vivida nessas
afetivamente mais curtos, ou seja, cuja construídas -, contribui para isentar as dominada pelo dólar e pelas dinâmicas cidades. A busca pela representação das
descrição da experiência foi mais enxuta, instituições de sua responsabilidade de da travessia da fronteira com os Estados vivências reais e sensíveis dos cidadãos
são aqueles feitos pelos dois únicos homens garantir os direitos básicos das populações Unidos, se vêem forçados a irem cada urbanos se insere em um contexto de
heterossexuais entre as dez cidades. As urbanas, sendo a moradia um deles. vez mais para as periferias devido à acelerada financeirização das cidades e
experiências de Caracas e Lima apontam Outra questão que passeou por diversos dificuldade de acesso à moradia, o que desumanização dos espaços comuns.
que a sensibilidade espacial pode estar trajetos foi a percepção espacial do leva ao crescimento acelerado da mancha Entender as cidades a partir do
relacionada também à feminilidade das tempo. Alguns dos mais longos trechos urbana em direção às cidades vizinhas. ponto de vista das experiências afetivas
mulheres e das pessoas LGBTQ+. dos caminhos percorridos, seja dentro Essa espécie de urbanização “predatória” permite rebater as soluções “fáceis”
Outro limite intangível no imaginário de um trem elevado ou de um ônibus faz parte da ilusão publicitária da cidade para a crise urbana na América Latina,
popular latino-americano está na relação intermunicipal, não suscitaram nenhuma mercadológica, que instrumentaliza propostas pelo mercado financeiro e da
que se cria com as favelas. Mesmo observação. Em contraponto, caminhos descontroladamente o espaço urbano, construção civil e também pelo poder
na própria periferia, como no caso do muito curtos, às vezes restritos a uma aumenta continuamente o preço da terra público. A urbanização promovida por
percurso em Belo Horizonte, a favela única rua e percorridos a pé, registraram e força as populações locais para as esses setores vêm sendo baseada em
é um estigma. Ausente dos registros lembranças muito profundas. Por isso, periferias e favelas. A movimentação do perspectivas técnicas e econômicas das
“oficiais” de urbanização, até para um nota-se que a passagem do tempo nas mercado que produz as cidades latino- cidades, que optam por deixar escapar
morador pode ser difícil dizer onde a favela cidades pode estar mais relacionada ao americanas é sempre representada como suas camadas sensíveis, relativas à
começa e onde termina, porém não tão acúmulo de memórias afetivas do que ao algo positivo, mas está no cerne da criação contextualização histórica e social.
difícil é determinar um “estrangeiro” para próprio movimento do ponteiro do relógio. dos enormes contrastes urbanos e da É de grande relevância, portanto,
a favela e um “favelado” para a cidade. A cidade lenta das lembranças profundas desigualdade sócio-territorial que formam que o debate sobre as cidades latino-
Em Belo Horizonte, o que delineia a opõe-se à das transformações velozes parte estrutural da realidade desses lugares. americanas incorpore a análise das
noção de favela são as ruas mais estreitas, promovidas pelo mercado imobiliário. Não significa que os governos locais não experiências urbanas, cuja espinha dorsal
os loteamentos menores e os “puxadinhos”. Várias cidades latino-americanas, como tenham seu papel nessa movimentação. está na vivência compartilhada de espaços
Já no Rio de Janeiro, apesar da presença de Tijuana e São Paulo, vêm sofrendo a Frequentemente financiado por esse setor conectados pelas ruas. A experiência
becos, casas não finalizadas e chão de terra, financeirização das dinâmicas imobiliárias do mercado, o poder público retribui o urbana guarda informações valiosas para
a palavra favela não é citada. Por outro lado, locais, representadas principalmente favor, alçando a atividade imobiliária aos a construção das representações das
em Caracas e Lima, a favela é observada de pela construção de empreendimentos postos mais estratégicos para a vida das cidades, que retroalimentam os modelos
longe, por pessoas “estrangeiras”. Nestes habitacionais condominiais, como explica cidades. Ao invés disso, deveria estar de cidades desejados pela população
casos, as pinturas vibrantes das casas, a Paulo Cesar Pereira (2017). Essa atividade mobilizando esforços para tornar efetiva e produzidos via mercado e Estado.
precariedade das construções e o teleférico imobiliária pode até representar um avanço a regulação da produção das cidades, No entanto, é importante reiterar que a
que cruza a paisagem chamam a atenção. positivo em Belém, por exemplo, já que com o objetivo de tornar o crescimento amostra de vivências apresentadas neste
Essa visão estrangeira, no entanto, dá mobilizou a oferta de serviços básicos em urbano menos desigual, ou até viabilizar livro não pretende encerrar a reflexão
origem a concepções negativas sobre áreas remotas, mas em Tijuana é percebida a desaceleração desse crescimento, sobre o que é a vida nas cidades latino-
americanas, mas sim contribuir à amálgama
ilimitada de experiências que compõem
a estrutura psíquica dessas cidades.
Sem dúvida, Lima não se restringe
aos seus limites urbanos e aos areais,
nem Caracas às ruínas de seus edifícios
modernos, ou Tijuana à sua fronteira com
os Estados Unidos. Tampouco Buenos
Aires é feita só de teatros e cafés, Medelín
é inteira arborizada e “pedalável”, ou
Salvador é somente a contemplação do
mar na orla da Barra. Belém também não é
apenas a vida pacata das pracinhas, São
Paulo é muito mais que uma cidade de
compras, a periferia de Belo Horizonte não
se resume à violência do tráfico de drogas
e o Rio de Janeiro tem inúmeras camadas
sociais para além das apresentadas.
As cidades latino-americanas podem
ser tudo isso, mas também muitas
coisas mais. Representar uma cidade
jamais deverá ser uma tarefa simples,
principalmente quando se trata de
um espaço urbano intrinsecamente
diverso e desigual, recheado de feridas
profundas. Este livro-trajeto, livro-
território, ou livro-cartografia, forma
parte, portanto, do esforço de reativação
da sensibilidade espacial, da memória
urbana e dos saberes cotidianos nas
análises urbanas sobre a América Latina.
Pictogramas

CASA CASA
ATUAL ANTIGA

CASA DE CASA DE
AMIGO FAMILIAR

PARQUE PRAÇA

CEMITÉRIO ÁRVORE
MURO/GRADE/ FRONTEIRA POLÍCIA/
PORTÃO/LINHA INTERNACIONAL BIBLIOTECA PRESÍDIO
FÉRREA

ESTAÇÃO PONTO TRABALHO EQUIPAMENTO


TREM/METRÔ MOTOTÁXI PÚBLICO

ESTAÇÃO BRT
(BUS RAPID PONTO IGREJA CIRCO
TRANSPORT) ÔNIBUS

ESTAÇÃO ESTAÇÃO FESTA/SALÃO MUSEU/CENTRO


BICICLETA TELEFÉRICO DE EVENTOS CULTURAL

RIO INUNDAÇÃO TEATRO CINEMA

ESCOLA/ CLUBE ESPORTIVO/ SAUNA GAY/ CLUBE


UNIVERSIDADE CURSINHO ESTÚDIO DE DANÇA DE STRIP-TEASE
RESTAURANTE BAR RUA AVENIDA

PIZZARIA SORVETERIA BAIRRO FAVELA

BARRAQUINHA CAFÉ REGIÃO/ CICLOVIA


DE COMIDA DE RUA TRECHO

PADARIA SHOPPING ESCADA QUILOMBO

MERCADO FEIRA VIADUTO ORLA

COMPRAS EDIFÍCIO/ MONUMENTO/


DIVERSAS BOCA CONDOMÍNIO ESCULTURA
FÁBRICA MAR/PRAIA

MONTANHA AREAL

NADA DEMAIS/
SEM COMENTÁRIOS

PRESSUPÕE PRESSUPÕE
AFETIVIDADE REFERÊNCIA
Imagens

1-9 Michelle Diaz Arquivo pessoal


10 Google
11 Elizabeth Ostos Google
12 Robert Marín Google
13 Carmen Ramirez Google
14 Ruben Bedoya Google
15 Oscar Delgado Google
16-19 Google
20 Sofía Patiño Arquivo pessoal
21-33 Google
34 Gabriel Candia Google
35 Agrieszka Bednarz Google
36 Google
37 Dávila Regina Arquivo pessoal
38 Google
39-40 Dávila Regina Arquivo pessoal
41-45 Google
46 Siddo Habbo Google
49-52 Google
Bibliografia

Berenstein Jacques, Paola. Corpografias urbanas. Arquitextos,


São Paulo, ano 08, n. 093.07, Vitruvius, fev.
2008. Disponível em: https://vitruvius.com.
br/revistas/read/arquitextos/08.093/165.
Acesso em: 18 maio. 2021.
Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de
Janeiro: Contraponto, p. 13–25 e 111-118, 1997.
De Certeau, Michel. A invenção do cotidiano - Artes de fazer.
Petrópolis: Editora Vozes, p. 169–207, 1998.
Do Rio, João. A alma encantadora das ruas. Fundação
Biblioteca Nacional, p. 1-13, 1908.
Pereira, Paulo César Xavier. Dinâmica imobiliária das metrópoles
latino-americanas: ruptura ou
continuidade? In: Produção imobiliária e
reconfiguração da cidade contemporânea.
São Paulo: FAUUSP, p. 139–154, 2017.
Rolnik, Suely. Cartografia sentimental. Porto
Alegre: Editora UFRGS, p. 23-37, 2011.
Santos, Milton. Por uma outra globalização: do
pensamento único à consciência universal.
Rio de Janeiro: Record, p. 96-98, 2001.
Santos Junior, Orlando Alves dos. Políticas públicas e direito à
cidade: programa interdisciplinar de
formação de agentes sociais. Rio de
Janeiro: Letra Capital, p. 11-19, 2017.
Agradecimentos

Anne Feitosa Mateus Reis Joaquín Jarama


Caroline Souza Michelle Diaz Juliana Lima
Dávila Regina Sandra Serra Maria Gabriela Feitosa
Eloá Mattos Sebastian Gomez Marian Ferrara
Esteban Gutierrez Sofía Castillón Otávio Bergamini
Humberto Cuapio Sofía Patiño Patrícia Porto
Kevin Monsalve Daniel Mendonça Sariana Monsalve
Pontos de vista

Anne Feitosa, São Paulo, Brasil Caroline Souza, Belém, Brasil


Esteban Gutierrez, Bogotá, Colômbia Humberto Cuapio, Cidade do México, México Kevin Monsalve, Caracas, Venezuela Mateus Reis, Rio de Janeiro, Brasil

Dávila Regina, Belo Horizonte, Brasil Eloá Mattos, Salvador, Brasil Michelle Diaz, Tijuana, México Sandra Serra, Santiago, Chile
Sebastian Gomez, Lima, Peru Sofía Castillón, Buenos Aires, Argentina

Sofía Patiño, Medelín, Colômbia Luiza Vidotto, São Paulo, Brasil


Impresso em Plantin,
Neue Haas Grotesk e
Inter sobre papel Alta
Alvura e Colorplus
Histórias do
Cotidiano
Estudo sobre
os desejos

cartela de
relativos à
cidade

desejos

Luiza Vidotto
Trabalho Final de Graduação
realizado por Luiza Vidotto e
orientado por Eduardo Costa.
FAUUSP, 2021.
Cartela
de Desejos
faz parte
de uma
pesquisa
chamada
Histórias
do Cotidiano
Oi, moça. Posso te fazer
umas perguntas?
Eu tenho que pagar alguma
coisa?
Nada! É só responder
mesmo.
Então tá bom.
Você sabe como funciona
uma rifa?
Ah, sei o básico do básico.

Olha, a verdade é que eu


sei mas eu não participo
dessas coisas, porque não
acho certo.

Sei. Inclusive hoje em dia


fazem na internet, né? Eu
tô pensando em fazer uma.
Um conhecido meu vai
organizar pra mim. A gente
vai juntar várias pessoas,
cada uma dá um pouquinho,
até alcançar o valor.
Se você fosse fazer uma
rifa pra você, o que você
financiaria?
Hmm...
Qual seria seu maior desejo
neste momento?
Ah, o que eu mais desejo?
(risos) Deixa eu ver, sabe
aqueles relógios… anjo,
minha perua chegou.
Desculpa, tá?
3112-10
3160-10
573A-10
373T-10
311C-10
2101-41
373M-10
N504-11
175P-10
477A-10
As pessoas desejam muito
uma casa, um carro, essas
coisas, né? Mas não sei
se daria pra colocar como
prêmio da rifa uma casa,
geralmente não dá pra
coisas grandes…
Vamos considerar uma
situação hipotética, sem
um limite de valor.
Ai, seria um carro então.

Pra mim? Eu queria um


carro.

Um carro... não! Uma casa!

Talvez agora o que eu mais


esteja precisando seja um
carro.
Seria um carro, né?

Um carro!
Ah, um carro, talvez…

Com certeza, um carro.

Olha, no momento eu
preciso de um carro,
porque, graças a Deus,
casa eu já tenho.
Acho impossível comprar
uma casa fazendo uma
rifa… mas se desse, seria
uma casa.
Nem eu sei, tem tanta
coisa... mas uma casa, vai.

Uma casa própria.

Meu apartamento.

Ah, eu queria terminar


minha casa, falta só finalizar
a construção.
Ah, sei lá... uma casa?

Uma casa… se é pra sonhar


alto, uma casa.
Eu tô na faculdade agora e
o que eu mais tô desejando
é um estágio (risos).
Acho que eu financiaria uma
faculdade. De confeitaria.
Um computador.
Pode ser algo material, mas
também imaterial.
Uma cozinha nova.

Eu precisaria fazer uma


prótese superior e um
implante.
Oferecer equipamento para
os meus alunos. Eu dou
aula de luta... kung fu, tai chi
chuan e boxe chinês.
Filha, graças a Deus
eu não tenho nenhuma
necessidade não. É claro
que eu participo de sorteio,
loteria. Tem que participar,
né? Mas olha, meu ônibus
acabou de chegar.
478P-10
715M-10
775P-10
805L-10
857P-10
857R-10
874T-10
875A-10
875H-10
875P-10
Eu não desejo nada não.
Na minha idade, a gente
já não tem mais grandes
planos igual os jovens.
Nem desejos pequenos do
seu dia-a-dia? Coisas que
te mobilizam?
Claro, eu desejo essas
coisas básicas do cotidiano,
igual a todo mundo. Mas,
na minha idade, não se
tem mais essas ambições
pro futuro, a gente só
quer terminar a vida com
tranquilidade.
Desejo só mais saúde
pra seguir de pé. Tendo
saúde, basta. E eu fico
tranquilo com o pouco
que eu já tenho.
877T-10
917H-10
917M-10
975A-10
N506-11
917M-31
701U-10
702U-10
715M-10
719R-10
E se esse desejo a
ser financiado fosse,
necessariamente, algo
voltado para a cidade,
o que você desejaria?
Agora você me pegou,
hein…
Se fosse algo em
benefício coletivo e não
somente individual, algo
que melhorasse a vida
na cidade…
Interessante… mas não me
vem nada na cabeça não.

Nossa, não faço a mínima


ideia…

Não sei te dizer, meu amor…


Ah, muita coisa, né? Precisa
melhorar tudo.
Mas, quando você pensa
no que está faltando no seu
bairro, por exemplo, ou na
cidade como um todo, no
que você pensa? Algo que
beneficiasse o cotidiano
das pessoas e que você
tivesse o poder de financiar.
Tá, algo para as pessoas…
Não precisa ser de valor,
né?
Estamos falando do campo
das ideias, então não tem
nenhuma restrição.
Uma praça, então. Uma
praça mais voltada ao
esporte. Acho que é o
que está faltando.
Depende da necessidade
de cada pessoa. Acho que
cada pessoa deveria ter o
que ela necessita. E o que
falta é saúde, educação, um
transporte público melhor.
Transporte público gratuito?
Não sei se gratuito, mas
melhor, entendeu?
775A-10
775V-10
778J-10
809R-10
809V-10
7411-10
8705-10
8707-10
8705-51
Eu queria que tivessem
mais ônibus.

Eu melhoraria o transporte
público, no sentido de ser
mais acessível, mais barato.
Faria melhorias nas ruas e
no transporte público, tem
uns pontos de ônibus que a
gente encontra totalmente
detonados.

Precisaria ter mais ônibus,


porque eles ficam muito
lotados... devido a essa
situação que a gente tá
passando, a frota reduziu.
O que falta mesmo, e eu
até trabalho nessa área, é
transporte. Sou cobrador.
O que, exatamente, falta?
Como você acha que
o transporte na cidade
poderia melhorar?
Ah... por exemplo, durante
o final de semana e à noite
sempre é uma dificuldade
ir embora pra casa. Passa
pouco ônibus. Daí ter um
veículo próprio facilitaria.
Essa seria a melhor
solução?
Olha, o que eu gostaria de
financiar para a sociedade
não tem como financiar.
É uma ideologia. Queria
que o sistema deixasse de
ser arcaico, feudal. Que
deixasse de escravizar as
pessoas e desvalorizar o
trabalho. O empresariado
brasileiro faz o empregado
de escravo. O patrão é
sempre o beneficiado. Pois
é… se você gravou isso daí,
acho que ficou bom.
Eu queria que as pessoas
não fossem trabalhar
desmotivadas todos os dias.
Seria importante ter mais
segurança e estabilidade.
Ter os direitos garantidos.
Acho que, neste momento,
deveriam melhorar a
educação e a saúde.
São os pilares, né? Sem
essas duas coisas não
tem um equilíbrio…
É um desejo individual ou
coletivo?
Ah, a gente sempre quer
alguma coisa pra gente,
mas primeiro tem que
pensar no coletivo. Não
adianta pensar só na gente,
se o mundo estiver caindo
aos pedaços.
Este é seu ônibus?
Não, o meu eu já perdi. Vai
demorar uns 40, 50 minutos
pra passar de novo.
Puts…
É... mas vai, pode perguntar,
eu respondo.
Este livro
é sobre
os desejos
relativos à
cidade
Os desejos são, segundo Suely
Rolnik (2011), formas de produzir a
realidade promovidas pela agitação de
afetos. Logo, entendo que os desejos
relativos à cidade são as aspirações
cultivadas no ambiente urbano que,
mobilizadas pela força dos fluxos
de afeto da população, integram os
caminhos tomados na construção
das cidades. Significa, portanto, que
a mobilização de desejos forma parte
da manutenção - ou perturbação -
das estruturas urbanas existentes.
Nesse contexto, os relatos aqui
transcritos expressam a captura
de uma pequena amostra desses
desejos relativos à cidade. Trata-
se de uma cartografia textual, que
registra os desejos coletados em
pontos de ônibus de grandes avenidas
de São Paulo. Os pontos de ônibus
simbolizam, aqui, uma das raras pausas
no ritmo frenético do cotidiano. Não
é, necessariamente, um momento de
reflexão, mas sim um desvio à lógica
veloz da cidade, uma “perda de tempo”
à qual a população, mobilizada por sido, inclusive, adotada em plataformas
suas ambições, precisa se sujeitar virtuais de financiamento coletivo
em seus deslocamentos diários. Por de trabalhos de artistas, projetos
isso, a espera nos pontos de ônibus diversos e necessidades pessoais.
mostra-se um momento estratégico A rifa é, então, esse método
para tentar provocar uma reflexão a de patrocínio coletivo de causas
respeito da construção de desejos. variadas. O criador da rifa financia
O ponto de partida deste processo algo com o capital arrecadado por
de investigação é a reflexão sobre meio da colaboração de um público,
o modelo de financiamento das mas, tradicionalmente, também
rifas. Em O Céu de Suely, de Karim oferece um prêmio de contrapartida,
Aïnouz, as rifas são amplamente a ser sorteado entre aqueles que
utilizadas como forma de ganhar colaboraram. Dessa forma, a rifa
a vida, na praça central de uma atua em uma via dupla de satisfação
pequena cidade do interior do Ceará. de desejos: o primeiro, individual, do
Também é um formato muito comum criador da rifa e o segundo, coletivo,
nas arrecadações promovidas por dos colaboradores. Há dois caminhos,
jovens estudantes, no ambiente portanto, de mobilização de desejos
universitário. Advinda das quermesses suscitados pelo método rifa: um de
e festas populares, a rifa possui caráter individual e outro coletivo.
um caráter dúbio, já que pode ser O trabalho desenvolvido para este
compreendida dentre os jogos de livro se apropria da lógica da rifa
azar, sujeitos a punição conforme a lei para levantar uma discussão sobre
das contravenções penais (Decreto- a mobilização de desejos na cidade.
lei nº 3.688/1941). Contudo, sua A proposta é que a ideia da rifa atue
popularidade no país é inegável, tendo como mote, para fazer com que as
pessoas pensem ativamente sobre pensar e desejar, como se deve agir
os desejos que as mobilizam no -, antes de ser vendido um produto.
cotidiano. O surgimento de padrões Dessa forma, existe uma
entre as respostas ajuda a traçar um supervalorização do ter, em detrimento
desenho do imaginário popular de do ser, nas práticas cotidianas da
desejos pessoais. Em contrapartida, vida coletiva. Os desejos individuais
as pessoas são questionadas também representam grandes latifúndios
a respeito de seus desejos coletivos, no território do imaginário popular,
que envolvem a cidade onde vivem. enquanto os desejos coletivos
Neste segundo momento, quando perdem cada vez mais espaço. Na
é introduzido o caráter coletivo dos busca infinita por um consumo vazio,
desejos, surge a oportunidade de as pessoas deixam de buscar seus
fazer conexões entre as aspirações desejos interiores, deixando também
pessoais cultivadas pelos indivíduos de refletir sobre sua própria existência.
e como elas refletem na construção Quando o consumo é a justificativa
da vida coletiva. O modelo atual da final de tudo, a vida, assim como
vida em sociedade é conduzido, sem a cidade, se torna um produto. A
dúvida, pelo desejo (delirante) do predominância da individualidade
consumo. Os meios de comunicação na mobilização dos desejos da
têm um papel fundamental nessa população caminha em direção oposta
lógica espetacular (Debord, 1997). à construção coletiva da cidade.
São onipresentes, invadem o As longas pausas que antecedem
cotidiano para estimular o consumo respostas confusas e vagas à
de produtos superestimados e, por pergunta sobre o desejo coletivo,
vezes, desnecessários. É vendido demonstram a indisposição social
um modo de vida - o que se deve para pensar aquilo que é comum.
Alienada e indisposta, a população ao conduzi-los por um caminho
só consegue contemplar as imagens pronto. No caminho não percorrido,
dominantes do desejo, amplamente fica esquecida a possibilidade
disseminadas pela publicidade. de construção espontânea de
Na cidade contemporânea, a significados e desejos, usualmente
persuasão consumista da publicidade elaborados no encontro com o outro
foi potencializada pelas redes sociais e na dedicação de tempo à reflexão.
e também pelos outdoors e letreiros. Ao desejar exatamente aquilo que é
A força da palavra e da informação oferecido pelo mercado, a população
deixa de ser pública para ser se rende à formulação de modos
propriedade daqueles que têm algo de vida elaborada e promovida pela
a vender (Flórido, M. apud Campbell, publicidade, que visa principalmente
2015). Essa publicidade atual, seja ao lucro, antes do bem-estar. Assim, os
no espaço público físico, seja no cidadãos se tornam figuras passivas,
virtual, a todo tempo tenta introduzir capazes apenas de absorver ideias
imagens definidoras de certos tipos e informações, ao invés de refletir e
de desejo e ambições, mobilizando elaborar desejos por si mesmos, para
o imaginário popular antes que ele si mesmos e para os outros. Dentro
possa mobilizar-se por conta própria. dessa lógica, sobra pouco espaço para
Esse modo de vida, individualista a imaginação. O imaginário popular
e passivo, propõe um afastamento se reduz ao imaginário da cidade-
do debate público e da vivência mercado, saturado de imagens visuais,
de espaços comuns. Carlos Hissa mas deficiente de imagens abstratas,
(Campbell, 2015) comenta que essa carregadas de sensibilidade, história e
imersão na “cidade-mercado” gera memória (Hissa apud Campbell, 2015).
uma falsa liberdade nos indivíduos,
Por esses motivos, compreender “Assumimos outros modos
o modelo de cidade que vem sendo de vida e, com isso, até mesmo
construído passa por entender como as nossas casas de algumas
os desejos de cidade são concebidos.
décadas atrás já não nos
Passado, presente e futuro conectam-
se nas transformações resultantes da servem no presente. Posto
escolha, individual e coletiva, de certos de outra maneira, a história
modos de vida. É possível reconhecer, nos diz que fizemos algumas
por exemplo, que quando a destruição negociações com as nossas
do patrimônio arquitetônico, cultural
ou ambiental - que dá lugar a produtos
próprias vidas. Alguns poderiam
imobiliários pouco acessíveis - não dizer que nos adaptamos,
causa muita agitação social, é nos conformando com as
porque a população escolheu o novo possibilidades oferecidas pelo
produto imobiliário, mesmo que ele
descaracterize o bairro radicalmente,
trágico presente — produto
ou expulse a população local. de nós mesmos, de nossas
atitudes e omissões. Mas,
certamente, negociamos mal
ou sequer negociamos. Caso
fosse possível uma leitura
psicanalítica das sociedades
urbanas e moderno-ocidentais,
ela poderia nos indicar que, no
mínimo, dissimulamos as nossas Quando a maioria da população
grandes perdas e, socialmente, é pouco ou nada consciente de
superestimamos os nossos seus direitos e de sua história,
essa maioria torna-se alvo fácil da
supostos ganhos. Trocamos
cidade-mercado, aquela na qual os
— em diversas circunstâncias, direitos básicos são continuamente
obrigados a fazê-lo — as privatizados e a preocupação
nossas abertas e espaçosas com a preservação da memória e
casas por acanhados da paisagem é sistematicamente
neutralizada. Não significa, no
apartamentos; obrigados a fazê- entanto, que esse encadeamento
lo, mas, contraditoriamente, de situações, que envolvem a
nos entregamos ao processo participação “cega” da população,
histórico de produção — seja resultado de uma espécie de
autossabotagem (talvez seja?),
desigual e injusto — dos nem que seja irreversível. Despertar
espaços urbanos e, com isso, desse sonambulismo orquestrado
contribuímos, com algum pela cidade-mercado demanda,
cinismo e arrogância, para a sua em primeiro lugar, disposição para
assumir que somos parte dos
reprodução.”
rumos controversos que tomaram
(Hissa apud Campbell, 2015) e continuam tomando as cidades.
Sobre a “responsabilidade do
capitalismo” nesse processo, Hissa
inverte os papéis e lembra que a
cultura urbana capitalista é formada
pelos desejos, escolhas e práticas da de serem plenamente ofertados nas
“minoria hegemônica”, porém, diante cidades latino-americanas, de forma
da conivência da maioria. O autor tenta a transformar, nesses lugares, os
colocar foco sobre a facilidade com próprios direitos em objetos de desejo.
que se transfere responsabilidades Isso fica evidente no fragmento
individuais para essa “coisa” abstrata de desejos populares retratados
e superior, chamada capitalismo, anteriormente, dentre os quais
já que, segundo ele, a estrutura da predominam, como já era esperado,
transformação está na revisão de si a ambição pela casa e carro
mesmo, na transformação interior. próprios. A recorrência desses dois
David Harvey (Harvey, 2005 apud temas, bastante contemplados nos
Campbell, 2015) segue uma linha estudos urbanos, reflete, primeiro,
de pensamento parecida, quando o enorme desequilíbrio no acesso
afirma que “ao refazer as cidades, à terra e, portanto, à moradia,
estamos refazendo a nós mesmos”. vivido em São Paulo e nas cidades
De modo geral, as cidades são latino-americanas. Transformado
financiadas pelos impostos e em ativo financeiro pelos bancos e
outorgas pagos ao Estado e também investidores, o morar está subordinado
através do capital movimentado pelo às forças da especulação imobiliária,
mercado imobiliário. Supostamente, gerando inúmeros desabrigados
ambos deveriam responder às ou locatários que vivem no aperto.
demandas da população, entre as Em segundo lugar, as estruturas
quais estão direitos básicos para urbanas que, continuadamente,
a reprodução da vida humana nas privilegiam os deslocamentos
cidades, como moradia e mobilidade. feitos em carro, tornam bastante
Esses direitos básicos estão longe
incômoda a vida dos cidadãos que cidades atuais, as noções de espaço
dependem do transporte público. público e urbanidade têm ganhado
São muitas as iniciativas e os um caráter virtual, à medida que
embates liderados por organizações, a vivência das relações na cidade
movimentos sociais e pelo Estado, vão se transferindo também para a
no sentido de democratizar o acesso atmosfera online, configurando uma
à mobilidade e à moradia no espaço extensão dos espaços de reflexão
urbano. É interessante observar, no e disputa de narrativa. Daí resulta
entanto, que boa parte da população que os dispositivos eletrônicos
continua tendo o carro, por exemplo, tenham se tornado outro pilar entre
como principal objeto de desejo, ainda os desejos populares. Ao assumir
que consiga conceber a necessidade uma posição de protagonismo nas
de ampliar e aperfeiçoar o sistema práticas urbanas, o virtual é elevado
de transporte público. Ao invés de também à condição de direito
desejarem essa transformação, básico da população e, novamente,
seguem desejando a concretização transformado em objeto de desejo.
do velho paradigma do carro, o que dá Podemos notar, por fim, que é
sobrevida às problemáticas urbanas profunda a relação entre a construção
modernas. Fica nítida, assim, a força de de desejos em uma sociedade e a
persuasão da publicidade na cidade- produção das estruturas e modos
mercado, regida muito livremente pelos de vida do ambiente urbano. As
interesses da indústria automobilística decisões tomadas cotidianamente pela
e do mercado imobiliário, entre outros. população, apesar de induzida pela
Atualmente, junto ao paradigma saturação de imagens publicitárias,
da casa e carro próprios, soma- revelam a passividade com que se
se o do acesso à internet. Nas assume os rumos da vida na cidade.
E mesmo essa passividade representa
a escolha frequente por renovar
um pacto unilateral com a cidade-
mercado, que guia a população
por um caminho de reduzida
autorreflexão e senso de coletividade.
A verdadeira transformação das
cidades, no sentido de torná-las
mais justas e democráticas, deve
passar pelo reconhecimento de que
é necessário rever a construção
daquilo que se deseja da vida urbana
e daquilo que se quer abdicar dela.
Essa espécie de cartografia de
desejos fundamenta o desenho
dos padrões de vida nas cidades. A
forma como se vive o urbano hoje
pode nos ensinar algo sobre o que
estamos nos tornando enquanto
sociedade, e os desejos presentes
no imaginário popular podem nos
indicar o que, potencialmente,
nos tornaremos no futuro.
Cartela
não dá
direito a
brindes
Bibliografia

Campbell, Arte para uma


Brígida. cidade sensível.
São Paulo: Invisíveis
Produções, 2015.

Debord, A sociedade do
Guy. espetáculo. Rio de
Janeiro: Contraponto,
p. 13–25 e 111-118, 1997.

Rolnik, Cartografia sentimental.


Suely. Porto Alegre: Editora
UFRGS, p. 23-37, 2011.
Agradecimentos

Viviane Lucilia
Tiago Sebastião
Janete Regina
José Zacarias
Nicolas Rose
Laura Josiane
Fábio Ronaldo
Jane Valquiria
Vitor Isaías
Cássia Lúcio
Gleici Sueli
Taís Wilgner
Dana Zenaide
Gabriela Felipe
Impresso em Neue Haas
Grotesk e Inter sobre papel
Pólen e Colorplus

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