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15/4/2014 Rubedo - Artigos

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Individoação: do Eu para o Outro, Eticamente


Carlos Bernardi

Trabalho apresentado no III CONGRESSO LATINO-AMERICANO DE PSICOLOGIA


JUNGUIANA, maio de 2003, Salvador, Bahia.

O senhor... Mira veja: o mais importante e bonito,


do mundo, é isto: que as pessoas não
estão sempre iguais, ainda não foram
terminadas -- mas que elas vão sempre
mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior.
Guimarães Rosa, Grande Sertão, Veredas

É quase uma unanimidade considerar o processo de individuação, formulado por Jung, como uma
de suas maiores contribuições à psicologia e um de seus conceitos fundamentais.

Contudo, em sua não sistematicidade, característica marcante de sua obra, Jung deixou espaço
suficiente para respondermos de maneira singular aos seus escritos. Somos instigados a continuar
reformulando suas idéias originais, de forma que o nome próprio "Jung" se transforma em um estilo de
pensamento ou em um conjunto de questões que pedem respostas ou contra-assinaturas, isto é, que
sejam rigorosamente lidos, mas não literalmente repetidos. Sob uma perspectiva, podemos dizer que
Jung, através das ferramentas conceituais que ele e sua psicologia nos fornecem, ajuda-nos a olhar o
mundo e seus fenômenos de uma determinada maneira. Assim, seus escritos tornam-se apenas as
respostas que ele próprio deu a estes mesmos fenômenos, mas não, necessariamente, as únicas
respostas possíveis. A importância desta perspectiva encontra-se no afastamento da constituição de
uma ortodoxia controladora.

Foi por intermédio desta abertura que pude estabelecer um polilóquio entre Jung e dois grandes
pensadores contemporâneos, a saber: Jacques Derrida e Emmanuel Levinas. Com suas reflexões
buscarei re-ver justamente o conceito de individuação, dedicando atenção especial à possibilidade de
sua leitura ontológica redutora, controlada pela perspectiva do Mesmo, fato que, no meu entender,
diminui a força da dimensão ética da individuação, já claramente estabelecida pelo próprio Jung.
Portanto, seguindo Levinas, proporemos uma inversão: levar a reflexão acerca do processo de
individuação da dimensão ontológica para uma dimensão ética. Derrida, por sua vez, nos ajudará, entre
outras coisas, a pensar o relacionamento entre o ego e os "conteúdos" do si-mesmo no processo de
individuação em termos das problemáticas e aporias da hospitalidade.

Sem sombra de dúvida, há uma dimensão ética no encontro com as imagens no processo de
individuação. Jung sempre enfatizou sua importância no relacionamento entre o consciente e o
inconsciente. No prefácio ao seu texto "A Função Transcendente", escreveu em relação às fantasias e
imagens do inconsciente:

O significado e valor dessas fantasias somente serão revelados através de sua


integração na personalidade como um todo - quer dizer, no momento em que se é
confrontado não apenas com o que elas significam, mas também com suas demandas
morais.(The Transcendent Function, CW vol. 8, pág. 68)

Portanto, para Jung, as imagens da fantasia fazem exigências morais à consciência. Estas
devem ser respondidas, caso contrário, formações neuróticas poderão ocorrer. Uma outra possibilidade
por ele levantada, aponta para o risco de procedimentos puramente estéticos comandarem a dialética
consciente-inconsciente, tornando-a inócua. O encontro com as imagens exigem uma seriedade que
Jung sempre se esforçou em demonstrar.

Gostaria, contudo, de destacar um trecho desta citação, tornando ainda mais meticulosa minha

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análise, como exige a ética da leitura desconstrutora. Trata-se da expressão "integração na


personalidade como um todo", . Ela toma, aqui, uma grande importância pois, dependendo de como
será entendida, obteremos resultados diferentes na constituição de um modelo junguiano de sujeito. É,
inclusive, em relação a estas possibilidades, que as preocupações éticas de Levinas ocorrerão. Lendo
este trecho com Levinas, duas palavras devem ser seriamente repensadas: integração e todo. Surgem
duas questões: onde ou a quem integrar? Que espécie de todo é possível ser pensado?

Para respondê-las será preciso dialogar com outros escritos de Jung.

Em "Consciência, inconsciente e individuação", Jung nos oferece uma conceituação sucinta e


central de individuação.

Uso o termo 'individuação' no sentido do processo que gera um um 'in-divíduum'


psicológico, ou seja, uma unidade indivisível, todo. (Os arquétipos e o inconsciente
coletivo, pág. 269)

Individuar, aqui, é separar e diferenciar elementos de um todo. Contudo, esta unidade recém
formada, constitui, por sua vez, um outro todo, desta vez indivisível, ou seja, não mais passível de ser
diferenciado. Temos, então, duas espécies de todo. O primeiro, de onde elementos se separam; o
segundo, constituído por cada um desses elementos. Não seria isso, uma grande contradição, a
existência dessas duas espécies de todo? No capítulo "Definições" de seu livro Tipos Psicológicos,
Jung escreve mais à respeito da individuação.

Em geral, é o processo pelo qual seres individuais são formados e diferenciados; em


particular, é o desenvolvimento do indivíduo psicológico como um ser distinto da
psicologia coletiva geral. Individuação, portanto, é um processo de diferenciação, tendo
como meta o desenvolvimento da personalidade individual. (Tipos Psicológicos, par. 757)

Podemos claramente perceber que o todo a partir do qual a individuação processa suas
diferenciações, é um todo indiferenciado, equiparado aos valores coletivos onde os elementos se
encontram, usando uma expressão alquímica, em um estado de massa confusa ou inconsciência. Já
o "segundo" todo, seria fruto do meu posicionamento individual diante de tudo que me cerca. O todo é
tudo, poderia ser a expressão resumida deste processo. Isto fica explícito quando Jung, afirma que o
indivíduo, que vai se constituindo através do processo de individuação, não é um ser isolado, mas
pressupõe um relacionamento coletivo. Dessa forma, ele conclui: "o processo de individuação deve
levar a relacionamentos coletivos mais amplos e mais intensos e não a um isolamento" (Tipos
Psicológicos, par. 758). Esta é a dimensão propriamente política da individuação. Nela não pode haver
uma oposição a uma norma coletiva. Isto seria, para Jung, apenas uma outra norma contrária à
primeira. Trata-se aqui da aderência cega à norma coletiva. É esta aderência ou submissão que evita o
caminho da responsabilidade individual. Nas palavras de Jung: "Quanto mais a vida de um homem é
moldada pela norma coletiva, maior é sua imoralidade individual." (Tipos Psicológicos, par. 761).

Resumindo: o todo de que fala Jung quando pensa em individuação é diferente deste outro
indiferenciado. Vamos guardar esta última expressão na memória, pois será nela que ocorrerá a
inversão que mencionei há pouco tempo atrás, e que, inclusive, fornecerá um título a este trabalho,
comandando do alto, como fazem os títulos segundo Derrida, a direção deste texto: do outro
indiferenciado à diferenciação do outro. Só que este título não está no alto em sua posição de poder,
mas está em meio ao texto e foi por ele produzido; foi, na verdade, produzido por seu outro. Isto já é
ética.

Todo e totalidade são palavras carregadas de peso no pensamento ocidental, nos adverte
Levinas. O grande perigo para o qual chama a atenção é, nesta totalidade, o Outro ser reduzido ao
Mesmo, ou a ele integrado. Traduzindo isto para a linguagem psicológica, seria reduzir os conteúdos
do inconsciente ao ego. Este risco é real na medida em que o ego ou a consciência-do-ego, em seu
"orgulho de juventude", se acha no controle dos processos psíquicos e identifica-se com a totalidade
destes mesmos processos.

Só se pode falar de integração se esta for entendida não como um processo de unificação ou
simplificação, mas como um processo de complexidade e reconhecimento constante da existência
das diferenças produzidas no movimento de diferenciação. Integração, portanto, deve ser entendido
como o resultado do reconhecimento mútuo de todas as partes. É esta mutualidade que pode ser
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chamada de totalidade. Nada nem ninguém pode ser segregado, reprimido ou esquecido. Mesmo com
esta advertência o perigo de redução ao Mesmo ainda existe. Para Levinas, em princípio, todo todo
pensa em ser totalizável. Este "desejo" do todo reaparece na psicologia junguiana nas fantasias da
individuação após a morte ou através de sucessivas reencarnações, no final das quais, o eu (Mesmo)
adquire a totalidade há muito almejada, uma espécie de nirvana psicológico. Este desejo de
totalização pode estar, também, por detrás do conceito de individuação da humanidade (conceito por
si só globalizante) que encontramos em Aniela Jaffé. Este conceito, que vincula o desabrochar, através
da história, de aspectos e traços que gradual e hierarquicamente se aproximam da verdade totalizada
através de um modelo. A ela estão associadas as idéias de globalização e de fim da história como
estágio final do desenvolvimento político-social através da democracia liberal. Em "Espectros de Marx",
Jacques Derrida faz um comentário que em nada nos espanta.

Portanto, deve ser anunciado, no momento em que alguém tem a audácia de neo-
evangelizar em nome do ideal de uma democracia liberal que finalmente compreendeu a
si-mesma como o ideal da história humana: nunca a violência, desigualdade, exclusão,
fome e opressão econômica afetaram tantos seres humanos na história da terra e da
humanidade.

Zygmunt Bauman, um dos grandes teóricos da globalização e do pós-modernismo, escreveu que


a globalização "reivindica sua própria imunidade ao questionamento" e que, embutida nesta proposta,
está um "viver sem alternativas". Tudo isto é passado como se fosse o processo natural da evolução
histórica e não como uma ideologia que é imposta a todos, gerando, nas palavras de Bauman, "a
tentação de reduzir a diferença à força".

Segundo Levinas, o pensamento ocidental é caracterizado por um esquecimento sistemático do


Outro. Este só é permitido como um momento de um processo em que ele irá, finalmente, ser
compreendido, incorporado e integrado ao Mesmo, uma outro forma de pensar e nomear o eu. Mesmo
e Outro formam uma oposição que será, em última instância, unificada. Levinas chamou esta
unificação de totalidade. Como deseja pensar o homem a partir de uma posição essencialmente ética,
julga imprescindível proteger o Outro de ser reduzido ao Mesmo. Em outras palavras, deseja que o
Outro seja recebido em sua irredutível estranheza. A subjetividade passa a ser entendida como a
abertura original ao Outro. Este Outro não é um outro que eu possa compreender pela empatia. Ele é
sempre um mistério essencial, nunca conhecido nem conhecível. Levinas substitui a filosofia do
fenômeno pela filosofia do enigma, uma filosofia da escuridão na qual o Outro nunca é plenamente
visto, conhecido ou possuído.

A problemática do Mesmo e do Outro é exemplicada por duas personagens conhecidas por


todos: Ulisses e Abraão. Enquanto o primeiro parte de Ítaca em direção a Tróia, se perde por 10 anos,
mas retorna ao seu ponto de origem, Abraão parte em busca de uma terra desconhecida,
estabelecendo uma eterna errância. Em Ulisses, o Outro é reduzido ao Mesmo; em Abraão, o Outro é
mantido inatingível enquanto Outro.

O Outro me coloca em questão e é este colocar-me em questão pelo Outro que Levinas
denomina ética. Por isso, a ética é uma ótica, brota da percepção impossível do Outro que mostra sua
face, se revela epifanicamente, mas nunca se constitui um objeto de percepção ou conhecimento. A
imagem é sempre um discurso que nunca consigo compreender em sua plenitude.

É em seu ensaio "Sobre o Renascimento" que Jung vai se referir, explicitamente, à individuação
como uma conversa com o outro. Menciona os Dióscuros, o par mortal-imortal de gêmeos da mitologia
grega, para ilustrar o encontro psíquico do ego com o outro.

Os processos de transformação pretendem aproximar ambos, a consciência porém


resiste a isso, porque o outro lhe parece de início como algo estranho e inquietante, e
não podemos acostumar-nos à idéia de não sermos senhores absolutos na própria casa.
Sempre preferiríamos ser 'eu' e nada mais. Mas confrontamo-nos com o amigo ou
inimigo interior, e de nós depende ele ser um ou outro.(Sobre o renascimento, pág. 135)

"Sermos senhores absolutos na própria casa". Esta é uma expressão metafórica utilizada
repetidamente tanto por Jung quanto por Freud. Ela está diretamente vinculada com as preocupações
e questionamentos éticos de Levinas e Derrida, principalmente quando pensam o encontro com o outro
através da hospitalidade, ou, como prefere Derrida, hostipitalidade. Aqui também surgem alguns
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questionamentos. Quem disse que somos senhores absolutos na própria casa? Quem é o autor desta
idéia? Quem autorizou pronunciá-la e com qual autoridade ela é mantida? Estou elencando algumas
palavras cuja raíz vem do grego auton, o Mesmo. Para Levinas, o Mesmo constitui a dimensão
ontológica por excelência. É a dimensão do ser. A filosofia primeira no entender de Aristóteles. Nela o
outro só tem sua existência reconhecida na medida em que pode ser conhecido e reduzido ao Mesmo.
Podemos denominar esta atitude de integração ontológica, que diferenciaremos de uma integração
ética.

A posição de Jung é similar a de Levinas. Esta conversa com o outro pode ser chamada de
“associação” ou “solilóquio”. O outro é reduzido aos mesus próprios pensamentos como se, nas
palavras de Jung, “tudo o que fosse psíquico pertencesse à alçada do eu!” (pág. 136). Não é concedido
ao Outro uma realidade absoluta ou alteridade radical. Jung, contudo, nos adverte que não é o caso,
como muitos ingenuamente pensam, de “seguir” o ditames do inconsciente, como se este fosse um
proveta. Jung é claro: o ‘Outro’ deve ser tão unilateral quanto o eu. É através do conflito que se instala
que pode surgir a verdade e o sentido. Mas este conflito só tem chances de acontecer se ao Outro é
concedida condição de realidade. Jung fala sobre o “outro”:

Este último tem uma personalidade própria, sem dúvida, tanto quanto as vozes dos
doentes mentais; porém um colóqui verdadeiro só se torna possível quando o eu
reconhece a existência de um interlocutor. Este reconhecimento não é comum entre as
pessoas, pois nem todos se prestam aos Exercitia spiritualia. Não se trata naturalmente
de uma conversa quando somente um dirige a palavra ao outro - como faz George Sand
em suas conversas com seu amigo espiritual; só ela fala nas trinta páginas em questão
e ficamos esperando inutilmente a resposta do outro. Ao colóquio dos Exercitia segue-se
talvez a graça silenciosa, na qual o cético moderno não acredita. Mas como seria se
Cristo com o qual falamos desse uma resposta imediata através das palavras de um
coração pecador? Que terríveis abismos de dúvida se abririam então? Que loucura
temeríamos? Compreende-se que é melhor a mudez das imagens divinas e que a
consciência do eu acredite em sua supremacia em vez de prosseguir associando.
Compreende-se que o amigo interno apareça tantas vezes como inimigo e, por estar tão
longe, sua voz é fraca.(págs. 136-137)

O tamanho da citação se justifica, pois ao mencionar Cristo e penetrar, assim, na esfera


religiosa, Jung e Levinas uma vez mais se aproximam. Para obter do eu o reconhecimento da
alteridade radical, ambos divinizam o outro, pensando Deus ou o nome-Deus como a expressão
máxima desta alteridade radical da qual nunca obterei pleno conhecimento e, portanto, nunca
conseguirei integrá-la a mim mesmo. Só posso me sujeitar ao seu discurso e recebê-lo em toda sua
estranheza. Na face do outro vislumbramos o rastro de Deus. Este é o arqué de toda alteridade.
Levinas condensou tudo isso na econômica expressão: a hospitalidade antecede a propriedade. Na
linguagem da psicologia analítica isto pode ser traduzido dessa maneira: hospedo o si-mesmo antes
mesmo de me auto possuir. Assim, ao invés de sugar a libido das imagens do inconsciente para o
engrandecimento do eu, tal qual um vampiro, a ética do processo de individuação me diz, ao contrário,
para doar meu sangue, pacificamente ofertando-me ao vizinho. Por isso, daqui por diante, mudarei
levemente a dicção do nosso conceito central e passarei a pronunciar “processo de individoação,
movimento semelhante aquele feito por Derrida, quando introduz, na palavra diferença, a letra “a”,
transformando-a em diffèrance, o processo incessante de diferenciar e adiar o estabelecimento do
sentido, ou seja, o sentido nunca se dá de uma vez para sempre. Está sempre se fazendo,
desfazendo, refazendo, como o solve-et-coagula dos alquimistas. O mesmo ocorre no processo de
individoação.

Levinas irá acrescentar ao pensamento da totalidade, que nunca tem um fora, a idéia de infinito,
inspirando-se na terceira meditação de Descartes. Nesta meditação, Descartes acrescenta à certeza
da existência do eu, até então, a única não passível de dúvida, uma outra certeza. Como explicar que
um ser finito pode conceber o infinito? Esta idéia só pode ter sido criada por um ser infinito. Descartes
concluiu que além do sujeito há um outro ente, Deus, que Levinas reinterpreta como o absolutamente
Outro que nunca poderá ser plenamente falado. O Outro é, portanto, o infinito. A relação ética me faz
desejar este Outro, um desejo que nunca será satisfeito, pois não brota da falta nem se dirige à
totalidade. Não é necessidade que se esforça por ser saciada, mas é desejo de infinito e
transcendência.

Em seu livro mais importante, Outramente que Ser, ou Além da Essência, Levinas acrescenta
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uma diferenciação crucial que muito nos ajudará neste projeto de ler Jung com Levinas. Trata-se da
distinção entre o Dizer e o Dito. Estes são dois aspectos da linguagem. Enquanto o dito se constitui
de temas, idéias ou observações que comunicamos através do discurso, o Dizer nunca pode ser
encapsulado no Dito, nunca está plenamente presente, mas apenas deixa traços nele. O Dizer é o
lugar utópico onde me aproximo do Outro, onde o infinito, aquilo que me escapa, é buscado e
desejado, mas, novamente, nunca plenamente apreendido.

O Dizer é, portanto, da ordem da significância, enquanto o Dito o é do significado. O Dizer nada


diz que possa ser tematizado. É meramente um aqui estou ao qual estou exposto como sujeito. É um
diálogo responsável com o vizinho, outro nome com que Levinas se refere ao Outro, um nome menos
abstrato e mais corporal. Dialogo com o vizinho, contudo, porque não sei o que ele está me dizendo.
Esta é a essência ética da minha subjetividade.

A distinção entre ego e si-mesmo, na psicologia analítica, não se deve a um processo de


recalque, mas se dá como a condição original do ser humano. Isto Levinas denomina a presença do
infinito no finito. Vamos, portanto, deixar de pensar o processo de individoação como o movimento em
direção à totalidade, mas pensá-lo como um movimento em direção ao infinito, o reconhecimento da
existência de um Outro que epifanicamente revela sua face. Ao eu cabe a tarefa enorme de dizer ao
Outro: “aqui estou”, colacando-me à disposdição de ouvir seu discurso, aquilo que James Hillman
chamou de retórica das imagens, sem chegar a qualquer tipo de integração total ou a qualquer espécie
de deciframento final. Somos, portanto, anti-édipos, sempre devorados pelo Outro e nunca capazes de
decifrar seus enigmas.

A diferença proposta por Levinas entre o Dizer e o Dito é fundamental e se encaixa perfeitamente
nas reflexões de Jung sobre a formação simbólica. Se o símbolo é a melhor tentativa de se formular
algo desconhecido, o que dele podemos pensar é sempre da ordem de uma aproximação, nunca de
um esgotamento. À tradução completa em algo conhecido Jung chamou de signo, que podemos dizer
que é a morte do desconhecido, a morte do Outro: sua radical estranheza é reduzida ao meu total
conhecimento de seu sentido, dando vazão ao nosso sonho de estabilidade. A imagem simbólica se
revela como um Dizer ao qual só posso responder aproximadamente com um Dito. Cada imagem é
uma alteridade radical e absoluta, infinitamente me instigando. Com isso, o si-mesmo deixa de ser o
arquétipo do significado, que pode ser esgotado em um Dito, passando a ser o arquétipo da
significância, da ordem do Dizer, um enigma que provoca minha responsabilidade.

Deve ser hospitaleiro ao Dizer do outro. Isto Levinas e Derrida resumem na fórmula: ética é
hospitalidade.

Derrida vê a hospitalidade como a atitude fundamental do eu em relação ao Outro. Em seu livro


“Da Hospitalidade” começa falando sobre a questão do estrangeiro. Tanto a questão sobre seu
estatuto político quanto sobre a questão que ele nos lança. Entre elas, a questão da linguagem. Por
não compartilhar a mesma linguagem ele deve ser recebido com mais tolerância. Mesmo assim
hospedar o estrangeiro ou o estranho torna-se uma questão condicional. Dependendo de quem é, qual
o seu nome, de onde vem, serei capaz ou não de recebê-lo. Derrida deseja, contudo, pensar uma outra
espécie de hospitalidade, que denominou hospitalidade absoluta, onde recebo o outro sem lhe
perguntar seu nome e, até mesmo, exigir reciprocidade. O oposto disso, quando, por exemplo, nos
sentimos invadidos ou violados, é um etnocentrismo e nacionalismo ampliado, ambos xenófobos. É
construído um limiar onde o hospedeiro tenta calcular as chances e riscos que o novo chegante lhe
trará ao atravessar o mencionado limiar. Isto, por sua vez, limita a aplicação da lei da hospitalidade.
Por um lado há a Lei da hospitalidade inconsndicional ou hiperbólica; por outro lado, as leis que
regulam, na prática as condições da hospitalidade, agora, condicional e jurídico-politica. Para Derrida,
estes dois regimes são contraditórios, não-dialetizáveis e inseparáveis.

Como pensar estas questões em relação à individuação? Vamos pensar os conteúdos do


inconsciente como o estrangeiro de que fala Derrida. Ele é aqule que vem de “fora” do campo da
consciência. Como recebê-lo “em minha casa”, em minha consciência? Temos aqui as duas
possibilidades levantadas por Derrida.

Por um lado, recebemos a imagem através do registro condicional. Dependendo de como ela se
apresenta, será rejeitada pelo ego, ou seja, reprimida, ou de tal maneira domesticada que o mistério
que ela apresenta se transforma no conhecido que eu posso aceitar e suportar. Isto reduz a
individoação no projeto egóico de ampliação e estabilidade.
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Por outro lado, o processo de individoação só ocorerá em toda sua força ética no registro da
hospitalidade absoluta, onde o eu torna-se o sujeito que se sujeita ao Outro, hospedando sua face
enigmática sem tentar reduzí-lo ao Mesmo. Aqui o eu diz sim àquilo que se apresenta.

Estas duas possibilidades, que refletem as tensões e aporias da Individoação, leva-nos a concluir
que ela é o encontro entre o eu e o Outro, onde não há uma repetição cega do segundo pelo primeiro,
mas que tem, como condição sina qua non, o posicionamento ético do eu em relação ao Outro, quer
dizer, minha pré-disposição de ouvir o que ele tem a Dizer.

Ego e si-mesmo, enquanto opostos, estão perpetuamente em movimento. Podemos falar em


negociação, principalmente depois de Derrida ter resgatado a força da palavra através de sua
etimologia, não-descanso. No processo de individoação não há estabelecimento de posições fixas. A
neurose, em sua função prospectiva, abala o ego em seu desejo de dominação e apropiação por meio
de um posicionamento unilateral, que não estabelece negociações éticas com o outro.

Nos seminários sobre o Zaratustra de Nietzsche, Jung comenta que ”não podemos individuar
sem outros seres humanos. Não podemos individuar no cume do Monte Evereste ou numa caverna
onde não vemos ninguém durante 70 anos. Só podemos individuar com ou contra alguém ou alguma
coisa” (Zaratustra, pág. 209). Com estra frase, demonstra que a tarefa é tanto interna quanto externa e
que não posso me furtar a dar minha contribuição responsável a nenhum desafio e questionamento que
a vida me apresenta. Dizer sim à vida, amar o destino, como propõe Nietzsche, no processo infinito de
confrontá-lo, sem nenhum ponto de chegada, mas somente ceder ao desejo de ir ao encontro dos
Outros, caracteriza a plenitude de um processo de individoação que deseja ser pensado como ético.

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