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A criação da consciência - O Mito de Prometeu

Apostila elaborada por Ajax Perez Salvador1

Começa-se com um cuidado: no campo onde se fala de consciência e


inconsciente não se trata “de afirmar alguma coisa, mas de construir um modelo que
prometa um questionamento mais amplo” (JUNG, 1984)§381. 2
Haveria a criação de um campo onde “Eu” e consciência estariam
intrinsecamente associados numa problematização continua. Pode-se perceber uma
interessante circularidade nas descrições do Eu e da consciência pois o Eu é entendido
como o complexo de representações que constitui para mim o centro do meu campo
consciente e chama-se consciência à referência dos conteúdos psíquicos ao Eu.
Em “Tipos Psicológicos” (JUNG, 1981a) é definido consciência como:
Chamo consciência à referência dos conteúdos psíquicos ao Eu, na medida em
que for entendida pelo Eu como tal. As referências ao Eu, desde que não sejam
percebidas pelo Eu como tal, são inconscientes. A consciência é a função ou
atividade que mantém a relação entre conteúdos psíquicos e o Eu. Em
minha opinião, a consciência nada tem de idêntico com a psique, uma vez que
esta representa, quanto a mim, o conjunto de todos os conteúdos psíquicos, dos
quais nem todos evidenciam uma ligação direta e necessária com o Eu, quer
dizer, não estão referidos ao Eu numa tal medida que seja lícito atribuir-lhes
qualidade consciente. Há uma quantidade de complexos psíquicos que não estão
necessariamente vinculados ao Eu.
(JUNG, 1981a) p.489 negritos meus
E, quanto a descrição do Eu tem-se:
Por Eu entendo o complexo de representações que constitui para mim o centro
do meu campo consciente e me parece da máxima continuidade e identidade, a
respeito de si próprio. Por isso costumo falar de complexo do Eu. O complexo
do Eu tanto é um conteúdo da consciência como a condição da consciência, por
quanto, para mim, um elemento é consciente na medida que referido ao
complexo do Eu. (...) não passando de um complexo entre vários outros.
(JUNG, 1981a) p.497

1
Utilizada para aula no curso de pós graduação do IJEP – e-mail: apersal@uol.com.br
2
Pode-se entender construir modelos, como semelhante a pensar por modelos como aparece na “Dialética
Negativa” (ADORNO, 1970) que se inspira no pensar por constelação ou por metáforas como falava
Walter Benjamim em “A Origem do Drama Barroco Alemão”
“a ideia pertence a uma esfera fundamentalmente distinta daquela em que estão os objetos que ela apreende.
(...) Sua significação pode ser ilustrada por uma analogia. As ideias se relacionam com as coisas como as
constelações com as estrelas. O que quer dizer, antes de mais nada, que as ideias não são nem os conceitos
dessas coisas, nem as suas leis. Elas não servem para o conhecimento dos fenômenos, e estes não podem, de
nenhum modo, servir como critérios para a existência das ideias.” (BENJAMIN, 1985) p.56

1
Reflete-se que “existem no inconsciente representações e atos volitivos, ou seja,
algo parecido com os processos conscientes” (JUNG, 1984)§380. É feito referência de
que as descobertas de Freud e Janet mostram que “tudo continua aparentemente a
funcionar no estado inconsciente como se fosse consciente. Há percepção, pensamento,
sentimento, volição, intenção, justamente como se o sujeito estivesse presente” (JUNG,
1984)§383. Porém “o estado dos conteúdos inconscientes não é de todo idêntico ao
estado consciente. ” (JUNG, 1984)§383. Na consciência poderiam ser corrigidos e
perderiam seu “caráter automático” (JUNG, 1984)§384; chega-se a: “o estado
inconsciente é manifestamente distinto do estado consciente. Embora, à primeira
vista, o processo continue no inconsciente. ” (JUNG, 1984)§384 negritos meus.
Quando perguntado a Jung se o inconsciente é capaz de formular uma crítica de
algum modo construtiva para nossa mentalidade de homens ocidentais? É dito:
Seria realmente um absurdo se tomássemos o problema do ponto de vista
intelectual e atribuíssemos ao inconsciente uma psicologia consciente. (...)
não tem funções diferenciadas, nem pensa segundo os moldes daquilo que
entendemos por "pensar". Ele somente cria uma imagem que responde à
situação da consciência;
(JUNG, 2001) §289 negritos meus
Isto não retira a função reguladora3 nem a importância e cuidado necessário para
não substancializar, unificar ou literalizar a noção de inconsciente. Seria a identificação
total como o Ego racional e volitivo que produziria um conceito de inconsciente
hipostasiado e escrito com maiúscula (HILLMAN, 1984). O termo “inconsciente” não
deveria ser usado, nem para indicar comportamento inferior, ignorante, instintivo; nem
mesmo ser tratado como uma pessoa à qual se possa pedir opiniões. Jung refere que:
“Acho, no entanto, que seria um erro supor que em tais casos o inconsciente atua
segundo um plano geral e preestabelecido, tendendo para uma determinada meta e
sua realização. Jamais encontrei algo que pudesse fundamentar tal hipótese.” (JUNG,
2001) §291 negritos meus.
Inconsciente pode ser personificado! Alma como personificação do
inconsciente4. O inconsciente é problematizado como “um meio diferente da
consciência” (JUNG, 1984)§385. A consciência é relativa pois abrangeria “toda uma

3
Jung segue a ideia da psique como um sistema regulador. “a consciência, devido a suas funções
dirigidas, exerce uma inibição” (Jung, 1984) §132 sobre “todos os elementos psíquicos que parecem ser,
ou realmente são incompatíveis” (Jung, 1984) §136.
4
“O fator determinante das projeção é a anima, isto é o inconsciente representado pela anima. (...) ela
(Alma) aparece personificada. (JUNG, 1982)§26 - “Do mesmo modo que a anima, assim também o
animus (...) também é um psychopompos, isto é um intermediário entre a consciência e o inconsciente,
e uma personificação do inconsciente.” (JUNG, 1982)§33

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escala de intensidades. Entre o que “eu faço” e o “eu estou consciente daquilo que eu
faço” há não só uma distância imensa, mas algumas vezes uma contradição aberta.”
(JUNG, 1984) §385. Assim, chega-se “à conclusão paradoxal de que não há conteúdo
consciente que não seja também inconsciente” (JUNG, 1984)§385 negritos meus.
Pode-se dizer que todas as manifestações e ações são sempre conduzidas5, de alguma
forma, por algum complexo, em inúmeras constelações! “(...) a série psíquica normal se
desenvolve sob a constante influência de inúmeras constelações psicológicas que, via de
regra, não nos são conscientes. ” (JUNG, 1999) p.3. Desta forma, só pensaria que age
“livremente” quem não pensa no que o leva a agir, ou na dimensão da ação, do
julgamento, da conduta, não se trataria nunca de um indivíduo que age, julga, se
comporta como instância isolada, independente e autônomo da totalidade em que vive
no presente, mas tratar-se-ia de muitas forças que o levam a agir julgar e se comportar 6.
Ao falar sobre a orientação da consciência, Jung diz que a decisão por si só resultaria
em nada, se não fosse capaz de vencer as resistências e ser levada pelo entusiasmo 7 - “O
entusiasmo, a continuidade, e o executar dão origem à ação e é só nela que o homem
aparece como totalidade vivente e como unidade. ” (JUNG, 2012)§407 negritos
meus. A determinação ativa e a ação corresponderiam a uma tríade correspondente “... à
necessidade (desejo instinto), à agressividade, à decisão da vontade." (JUNG,2012,
§407), porem haveria também relacionado à esta tríade uma díade passiva, receptiva,
cuja função seria conceber (dar forma, fecundar). Pode-se refletir que o homem só
apareceria como totalidade vivente e como unidade no ato! O ato que se origina
como resultado de impulso, sucessão e realização, que teria relação direta com algo
concebido como tendo uma forma. O “ato” seria o resultado de um evento que abarca

5
Quando Jung fala “do processo criador” (JUNG, 1985) p.62 discute questões sobre arte e refere que a
convicção de estar criando com liberdade absoluta seria uma ilusão do consciente. “Ele (artista)
acredita estar nadando, mas na realidade está sendo levado por uma corrente invisível.” (JUNG, 1985)
p.63 negritos meus. “A maneira de produzir aparentemente consciente e proposital seria apenas uma
ilusão subjetiva” (JUNG, 1985) p.65 negritos meus.
6
Pode-se tomar a liberdade em outra perspectiva. Liberdade de não ter que ser só Eu; reconhecer no
que aparece como mais outro (inconsciente) os traços do que foi excluído, pelo processo dirigido da
consciência, na configuração do Eu. As manifestações do desejo do complexo do Eu ou da consciência
que aparecem como a própria direção da vontade consciente como efeito da internalização de
princípios de conduta- “vontade tirânica de um governo interior que apresenta traços de uma supra-
humanidade demoníaca (...) (JUNG,1978, p.60). E para que a liberdade não seja apenas o nome dado a
uma vontade construída a partir da internalização de “dispositivos disciplinares” travestidos de práticas
de auto-controle caminha-se para uma liberdade de poder dizer não, limitar o Eu; este que é também
um outro complexo em mim. Liberdade de ouvir, conversar e realizar o desejo de outros que não só o
complexo do Eu.
7
Do grego en + theos, literalmente 'em Deus'- inspiração ou possessão por uma entidade divina.

3
a totalidade anímica e não apenas a decisão autônoma e independente da consciência
livre.
A problematização da necessidade da consciência como “consciência-de-si”
aparece em Nietzsche dizendo que seria possível pensar, sentir, querer, recordar-nos e
"agir" sem que fosse preciso a consciência pois ela estaria relacionada a necessidade de
comunicação.
O problema do ter-consciência (mais corretamente: do tomar-consciência-de-
si) só se apresenta a nós quando começamos a conceber em que medida
poderíamos passar sem ela (...) Poderíamos, com efeito, pensar, sentir, querer,
recordar-nos, poderíamos igualmente "agir" em todo sentido da palavra: e, a
despeito disso, não seria preciso que tudo isso nos "entrasse na consciência" (...)
Para que em geral consciência, se no principal ela é supérflua? (...) força da
consciência estão sempre em proporção com a aptidão de comunicação (...) por
sua vez, em proporção com a necessidade de comunicação (...) onde a
necessidade, a indigência, coagiram longamente os homens a se comunicarem
(NIETZSCHE, 1978)§354
Porem pode-se pensar que nem toda forma de consciência é “consciência-de-si”.
Este poderia ser um estado secundário que aconteceria apenas em algumas situações
especiais quando alguém se dá conta de que está fazendo algo ou se pergunta do sentido
do que faz. No entanto pode-se imaginar vários momentos em que se está consciente
sem a duplicação.
Na “A Natureza da Psique” (JUNG, 1984) é falado do “inconsciente como
consciência múltipla” e refere-se ao “estado semelhante à consciência dos conteúdos
inconscientes” (JUNG, 1984)§388. Recupera-se através da Alquimia a ideia das
“Scintillae”, das centelhas; “eram sementes de luz espalhadas no caos (...) sementeira do
mundo futuro (...) centelha ígnea da alma do mundo como puras formas essenciais das
coisas.” (JUNG, 1984)§388. Estas formas “correspondem ás ideias platônicas, o que nos
permitiria comparar as ideias platônicas com os arquétipos, (...) uma versão filosófica
dos arquétipos.” (JUNG, 1984)§388. Os arquétipos teriam em si “um certo brilho ou
certa semelhança com a consciência” (JUNG, 1984)§388 8. Pode-se entender que está
sendo dito que as narrativas, mesmo que filosóficas, são maneiras, versões, para
problematizar um tema.

8
Isto permite uma aproximação como os relatos do mito de Prometeu, que será realizada na sequência,
uma vez que o tema da centelha ou do fogo como ligado a noção de consciência aparece nas narrativas.

4
Para Platão a ideia ou forma (eidos9) é alcançada através das coisas sensíveis;
assim, para se chegar na forma ou ideia do “Igual” toma-se conhecimento com base
várias coisas que são vistas ou percebidas como iguais (livros, pedras etc.) e disto
concebe-se o “Igual” que é diferente das coisas ditas iguais. Este igual é concebível e
não sensível; é uma intelecção e não uma sensação. O próprio “Igual” é concebível, mas
não visível. Haveria dois tipos de seres: os sensíveis e os concebíveis. Por isso não se
procura, para Platão, um homem justo, mas a Justiça; para este as ideias ou formas são a
realidade10 e não um pensamento. As ideias ou formas tem realidade autônoma e
independente do próprio conhecimento. A realidade mesma seria invariável, idêntica a
si própria e não muda. As coisas sensíveis participariam das formas imutáveis. Isto será
chamado, posteriormente, por Aristóteles de abstração. Platão pode ser considerado por
alguns (CHAUÍ, 1994) inventor da razão ocidental quando torna possível um estilo de
consciência no qual a verdade perde o seu sentido negativo de não esquecido (Alétheia)
e ganha sentido afirmativo – a verdade plenamente visível para o espírito. “A verdade se
transfere do Ser para o conhecimento total, integral e pleno de uma essência (...)”
(CHAUÍ, 1994) p.197. A verdade e a razão tornam-se theoría, contemplação das ideias.
A relação entre o sensível e o inteligível é a imitação – mímeses11. O sensível participa
do inteligível por imitação. As ideias se comunicam e relacionam sem alterar sua
identidade. “A ideia da beleza participa das ideias do Uno, Mesmo, Ser, Outro, Múltiplo
e Não Ser. Sem esta participação nas ideias originárias a ideia de Beleza (...), não
existiria.” (CHAUÍ, 1994) p.203. Aristóteles contestou o Uno invocado por Platão
dizendo que este não é um Ser, mas uma qualidade (beleza seria qualidade dos seres). A
permanência da representação significa apenas que nosso pensamento a conserva e não
que seria uma realidade em si. As ideias, que não eram subjetivas nem estavam presas
nas pessoas, passam a não ter mais vida própria no mundo inteligível. “Aristóteles se

9
Eidos - a forma inteligível – a ideia como essência que não é só captada pela inteligência. A
inteligibilidade é o ser mesmo dela, não é propriedade do eidos, mas é o que ele é. É também o modelo
ou o paradigma ideal de perfeição que orienta o movimento correto de perfeição uma dinamis. A
essência eterna imutável imóvel. E por isso uma forma perfeita. Necessariamente imaterial. Existe
separada num outro mundo que não o mundo das coisas sensíveis. (CHAUÍ, 2012)
10
No Capítulo X da República (PLATÃO, 2002) conta como se ao pegar num espelho e andar com ele por
todos os lados far-se-ia imediatamente o sol e os astros do céu, mas seriam aparências, e não objetos
reais. Fala de três espécies de coisas (camas por exemplo): uma que existe na natureza das coisas e de
que podemos dizer, creio, que deus é o criador (forma ou ideia de Cama); uma segunda é a do
marceneiro; uma terceira, a do pintor. Chama imitador ao autor das produção afastadas em graus da
natureza. Por isso argumenta que os poetas criam fantasmas, e não seres reais e pede que não peçamos
contas a Homero nem a nenhum outro poeta sobre vários assuntos.
11
“A impressão das formas puras e eternas na matéria bruta, informe e imperecível, dá origem ao
Kósmos, que imitação do mundo inteligível, possui uma alma inteligente.” (CHAUÍ, 1994) p.200.

5
esforçará por mostrar que o inteligível está no sensível, que é possível uma ciência
verdadeira do sensível.” (CHAUÍ, 1994) p. 253.
Interessante retomar as narrativas platônicas olhando metaforicamente, uma vez
que, na alegoria da caverna apresentada nos diálogos o tema da luz, do fogo, da centelha
etc. aparece ligado a formas de consciência, assim como no mito de Prometeu. Pode-se
ver uma problematização de uma relação entre estilos de consciências que tomariam por
realidade apenas sombras (das estatuas carregadas por pessoas entre o fogo na entrada
da caverna e a parede do fundo), levando a ideia de que o mundo sensível é precário e
ilusório. Outro estilo de consciência - personificado na figura do filósofo - que após
período de habituação (educação estudando as ciências da fixidez dos números, dos
movimentos dos planetas e finalmente das formas) aprende a lidar com o inteligível
(que não muda); habitua a visão a luz do sol.
A consciência poderia ser então reimaginada, metaforicamente, como uma
multiplicidade de estilos de consciência? Jung já apontava que unidade da consciência
é uma mera ilusão. “Gostamos de pensar que somos unificados; mas isso não acontece
nem nunca aconteceu (...)” (JUNG, 1983) p.67. A própria ideia de unidade já era
entendida por Jung como complexo. “o complexo é uma unidade psíquica” (Jung,
1999)p.33. Não haveria algo que pudesse ser unitário, isolado e fora da psique pois:
Todo acontecimento afetivo torna-se um complexo. Se o acontecimento não
estiver relacionado a um complexo já existente, possuindo assim um significado
momentâneo, ele submerge (...) até o momento em que uma impressão
semelhante a reproduza novamente.
(JUNG, 1999) p.58
A unidade aparece como um complexo de relações associativas e as normas
poderiam estar consteladas e internalizadas através de padrões ou fantasias coletivas
dominantes (padrões arquetípicos ou deuses) que dariam configuração aos elos de
associação abstraídos das vivencias empíricas, agregados pelos afetos pulsantes no
acontecimento. Jung fala de “unidade funcional” no texto sobre “o complexo de
tonalidade afetiva e seus efeitos gerais sobre a psique” (JUNG, 1999) p.31; ali descreve,
num exemplo, que ao encontrar na rua um velho amigo: “em meu cérebro, surge uma
imagem, uma unidade funcional” (JUNG, 1999) p.31.
Estas “unidades psíquicas” construídas por abstração de alguns elementos
presentes em determinados acontecimentos configurariam sistemas complexos; estes
podem ser descritos ou como traços arquivados em conexões neuronais chamados
de memória, ou como experiências históricas sedimentadas nos processos mais

6
elementares, modos de vida, valores sociais, condutas etc. que se atualizariam em
todos os indivíduos.
Pode-se aproximar as funções parciais como sendo padrões arquetípicos que
constelam diversos estilos de consciência? Como os pequenos demônios ou as pequenas
pessoas – os complexos- que nos configuram e nos constituem. Uma leitura histórica
feita por Jung indica que estas “pequenas pessoas” foram em grande parte postas a
serviço do Eu (vontade do homem) levando a uma dissociação entre uma
autoconsciência e um inimigo invisível. Isto poderia fazer “sucumbir a uma vontade
tirânica de um governo interior que apresenta traços de uma supra-humanidade
demoníaca” (JUNG, 1978) p.57 negritos meus. Pode-se entender que este governo
interior, tirânico, de traços supra-humanos poderia ser a dominação fundamentalista de
um estilo de consciência? Este que vê como a melhor, mais saudável, mais valorizada a
vontade da forma homem/indivíduo ou uma vontade unificada na forma do Eu
transcendental (no modelo Kantiano) ou mesmo o que Hillman apresenta como Ego
Heroico 12
- estado em que o ego é dominado pelo estilo de consciência heroico -
unificador e literalizante.
Interessante na perspectiva Junguiana/arquetípica não é perguntar o que é a
“consciência” como uma coisa literal (quer seja concreta ou abstrata); nem procurá-la
como uma entidade definida e explicada, mas assume-se uma postura dinâmica
indagando: De que maneira aparece o que é chamado de consciência?
Em psicologia da transferência Jung descreve como “o alquimista busca superar
o paradoxo ou antinomia e fazer do duplo o um.” (JUNG, 1978) p. 60. O tema segue
com surgimento do “outro”: “a aparente unidade da pessoa que declara com
firmeza: “eu quero, eu penso etc., se racha e se dissolve como consequência do
choque com o inconsciente” (JUNG, 1978) p.60. Uma pergunta fundamental é
colocada: “O que é mais primordial do que o conhecimento de que “isso sou eu”?”
(JUNG, 1978) p.61. Como se o fundamento estivesse em chegar ao “isso”; reconhecer
algo do sujeito no que aparece como “isso” como apresentação de algo tão
indeterminado que dele só posso dizer que é “isso”. Assim o Eu aparece como apenas

12
O Ego Heroico configura-se com a dominação do estilo heroico na consciência. Este diante do diverso,
do múltiplo, da tensão busca unificar; constitui “uma” representação diante do diverso da existência;
diante de uma questão vê problemas literais a serem resolvidos; realiza sua tarefa de coagular o
múltiplo em significados particulares que é chamado: fatos, dados, problemas, realidade. “Nosso estilo
de consciência é baseado no herói e ego-centrado. Nós damos o crédito aos problemas e
desacreditamos as fantasies, de modo que as fantasias se apresentam primeiramente projetadas como
os problemas, que são fantasias literalizadas.” (HILLMAN, 2010, p.268)

7
um dos complexos e não o fundamento do que se é. A unidade que emerge não é o
Eu anterior em sua ficção, senão que um outro que é designado por si - mesmo .
Uma unidade que nunca perde o sentimento doloroso de sua natureza dual. Há
nestas passagens um esforço para colocar em questão uma noção de unidade que é tensa
e nunca se unifica. Através do olhar metafórico tornar-se “Si-mesmo” pode tornar-se
devir outros, sem que o “Eu” se desfaça. Reconhecer que o que aparecia como sendo
“Eu” é apenas um dos complexos entre muitos. Um complexo configurado como todos
os outros pelo hábito; neste caso talvez o hábito de dizer Eu. Há coerência entre estas
ideias e a afirmação de Jung que a unidade da consciência é uma mera ilusão; um sonho
de desejo. Que gostamos de pensar que somos unificados, mas isso não acontece nem
nunca aconteceu.
Reimaginar “consciência”; assim como outras a palavra; “consciência” também
é uma presença que têm etimologia, história e pode ser personificada. “(...) as palavras
são pessoas” (HILLMAN, 2010, p.54). Pode-se buscar a alma na palavra vista então
como um mensageiro portador de sentido metafórico; cheio de poderes invisíveis. Pode-
se ver através da palavra “consciência” e metaforizar ou reimaginá-la como uma
configuração que constela um campo onde se problematiza temas como conhecimento,
saber, ser, vontade, liberdade, essência, unidade etc.
Diante de um campo tenso e complexo como este não é de se surpreender que a
psique tenha construído tantos mitos13. As narrativas são fantasia explicativas que
procuram dar sentido às questões, aos elementos restritivos, tensões e limitações em
relação a tudo que está determinadamente configurado. Isto pode ser chamado de
mitologizar.
O mito de Prometeu pode ser lido então como uma das narrativas que busca dar
um sentido para este tema. Prometeu personifica o “criador da humanidade” (GRAVES,
2008) p.172. Como um dos sete titãs remete ao que metaforicamente é titânico – grande
força; poderosíssimo, colossal, gigantesco, descomunal – todas as fantasias,
sentimentos, pensamentos titânicos. A narrativa explicativa do que dá sentido à
construção do homem teria um poder imenso, titânico? Prometeu aglutina atributos
como da sabedoria e da capacidade de prever os acontecimentos; tanto que “previu o

13
As fantasias explicativas e as variantes permitem a manifestações de fragmentos da “verdade” como
diz Calasso quando fala da aproximação entre Zeus e Nêmesis: “Esta não poderia ser uma das aventuras
usuais de Zeus, (...) Mas, quando suas aventuras são demasiado grandiosas, Zeus permite que se
manifestem com variantes, a fim de que em cada uma delas se deposite um fragmento luminoso da
verdade. Foi o caso de Nêmesis.” (CALASSO, 1996, p. 91) negritos meus.

8
resultado da rebelião contra Cronos” (GRAVES, 2008)p.173 feita por Zeus, Hades e
Posseidon e ficou ao lado de Zeus. Prometeu é o conhecimento da arquitetura,
astronomia, matemática, navegação, medicina, metalurgia, e outros ofícios. E estas
qualidades não teriam funções e valores titânicos nas formas de vida atuais?
Na tragédia “Prometeu Acorrentado14”, quando Prometeu explica ao coro sobre
seu suplício e diz que trouxe a semente do fogo para os homens e que com ele
aprenderam todas as técnicas. Que tornou os mortais racionais e dotados de inteligência,
com técnica de discernir, os números, as letras, dominação dos animais; ele que com
Metis deu tudo aos mortais. Assim todas as técnicas os mortais devem a Prometeu.
(CHAUÍ, 2012).
É possível, através da mitologia Grega, uma perspectiva onde o mortal (forma
homem e depois indivíduo) não é o proprietário das habilidades das artes ou da
"techne"15. A "techne" estava ligada as Moiras e exercia-se através dos Demiurgos,
poetas, videntes etc. Metis era uma divindade que aglutinava os atributos relativos à
"techne", mas era uma potência invisível. Os atributos que Metis e seus filhos (Atena,
Poros16, Skotos17, Tekmar18 etc.) personificavam não eram propriedades dos mortais.
“Atena, a quem (Prometeu) ajudou a nascer19” (GRAVES, 2008) p.173 está a ele
relacionada. Prometeu acorrentado no Cáucaso “com seu sarcasmo e orgulho
atormentava Júpiter (Zeus). Afirmava conhecer um segredo a seu respeito, mas só o
contaria quando fosse libertado.” (MITOLOGIA II, 1973) p.320; Após Hercules tê-lo
liberado revela o mistério: Zeus andava apaixonado pela Nereida Metis (ou Tetis) se a
esposasse “teria com ela um filho que mais tarde o destronaria” (MITOLOGIA II,
1973)p.320. “(...) o próximo descendente em Métis seria homem e destronaria o pai,
(...). Para defender o poder ameaçado, qualquer sacrifício era válido. Zeus convidou a
amante e, quando a teve em seus braços, engoliu-a.” (MITOLOGIA I, 1973) p.145. A
narrativa leva ao nascimento de Atena saindo da cabeça de Zeus com ajuda de Hefesto e
Prometeu.
É como se a fantasia prometeica ajudasse o nascimento do que personifica a
sabedoria, mas estes atributos ou capacidades seriam maiores do que o “homem”. A
14
Ésquilo - 452 e 459 a.C. aproximadamente.
15
A palavra arte vem do latim "Ars" foi usada em substituição do termo grego "Techne" (técnica).
16
O estratagema, a habilidade, o expediente engenhoso, o criador de caminho, o resolvedor de
dificuldades e de aporias (CHAUÍ, 2012)
17
As sombras, trevas, ausência de caminhos. (CHAUÍ, 2012)
18
Criador de signos sinais capazes de indicar o caminho e objetivos que orientam um caminho. (CHAUÍ,
2012)
19
Junto com Hefestos, chamado por Hermes. (MITOLOGIA I, 1973)p.145

9
sabedoria, habilidade, astucia, prudência etc. não seriam propriedades do homem. Elas
seriam manifestações de algo maior que o mortal deveria reconhecer e vive-las na
medida do mortal. A limitação desta fantasia pode ser vivida como angústia.
O prometeu acorrentado começa com Prometeu sendo preso e amarrado nos
confins do mundo, sob a coação da Necessidade 20. É como se, nos extremos da
existência, removido tão longe quanto possível, ele encontrasse a força e a
violência (Bia) maiores da Necessidade e ai fosse pregado. Apenas a
Necessidade é capaz de limitar a fantasia prometeica, sendo ela vivenciada com
angústia.
(HILLMAN, 1997) p.18
Há no mito de Prometeu o tema da criação do homem.
O mundo está pronto. Entretanto, falta ainda um ser capaz de odiar e amar.
Julgar e Punir. Perdoar e esquecer. Lembrar e criar. Um ser que com sua
poderosa alma, seja humilde o bastante para temer os deuses e render-lhes
homenagens e cultos. Falta o homem. Para forjá-lo Prometeu arranca o
barro do chão e mistura-o com suas próprias lágrimas. Incessantemente
trabalha, com paixão e arte, aquela massa informe, até que ela obtém feições
semelhantes às de um deus. (...) Então, o grande artista insufla nas estátuas
caracteres de animais: a coragem do leão, a fidelidade do cavalo, a foça do
touro, a esperteza da raposa, a avidez do lobo. (...) Mas ainda falta-lhes a faísca
do espírito divino, que as tornará capazes de ousar. Atena, a filha inteligente de
Zeus, a deusa da sabedoria, decide ajudar Prometeu. Pega uma taça cheia de
néctar divino. Desce ao mundo. E entrega-a a todos aqueles seres, já dotados de
vida, para que sorvam algumas gotas. De repente, sobre a cabeça de cada um,
surge uma luz nova e bela. Agora são homens. Tem uma alma. Mas ainda não
sabem o que fazer com ela.
(MITOLOGIA II, 1973)p.305, negritos meus
É interessante a metáfora pois ela mostra com a fantasia prometeica agindo em
todos vai ao que se apresenta como “barro” (terra úmida, maleável); todos os eventos
com a solidez, consistência e maleabilidade do barro e os arranca de onde estavam (de
seu chão) e misturando-os com lágrimas (com o fluxo, liquido que verte com emoções
intensas) forja o Homem. A forma homem é fruto de um trabalho intenso, incessante
onde o pathos e a Ars (Techne) moldam uma figura que se assemelha aos deuses. Mas
há uma diferença fundamental: são mortais e, portanto, limitados.
Entendendo-se que padrões Arquetípicos, são melhor comparáveis aos deuses
gregos - infinitos verdadeiros sem bordas, sem começo ou fim que conduziam os
mortais nas ações - ou como diz o mitólogo Calasso: “Quando a vida se inflamava, no
desejo ou no sofrimento, ou mesmo na reflexão, os heróis homéricos sabiam que ali
havia um deus em ação (...).” (CALASSO, 1996) p.68.21 Sendo assim as formas de
viver, pensar, de sentir etc. seriam, então, alegorias destes estilos e não o contrário.

20
Ananke
21
Como premeditação era Metis agindo e conduzindo um mortal.
10
Deuses como padrões Arquetípicos manifestam-se como estilos de consciência,
fantasias dominantes ou estilos imaginativos de discurso; aglutinam constelações de
eventos que se organizariam seguindo e funcionando como complexos autônomos;
seriam o que organiza os eventos em constelações.
Assim as questões entre a consciência e o inconsciente aparece como a tensão
entre deuses e mortais problematizada nesta narrativa mítica. Se por um lado “Prometeu
decide dar uma consciência à bela e trágica espécie que criara. (...) Agora os homens
podem reinar. Conhecem a natureza. Conhecem a si mesmos. (...) tem cinco sentidos.
Uma consciência. Uma vontade. Uma força poderosa.” (MITOLOGIA II, 1973) p.310
Por outro “Júpiter começa a desconfiar dos homens. São inteligentes demais. Com sua
sabedoria e seu trabalho, constituem perigosa ameaça a raça divina.” (MITOLOGIA II,
1973)p.312 Segue que “se os homens erguerem súplicas, pedindo-lhes ajuda, e
sacrificarem animais aos celestes poderes, os olímpicos continuaram velando (...)”
(MITOLOGIA II, 1973) p.312. Os homens submetem-se e os deuses estão satisfeitos
pois estes aprenderam o dom da humildade. “Porem o filho de Iápeto (Prometeu)
reserva outro destino para suas criaturas: os homens serão mais inteligentes que os
deuses. E haverão de vencê-los. A eterna luta se inicia.” (MITOLOGIA II, 1973)
p.313. A eterna luta que permanece, metaforicamente. Quem está conduzindo a ação? A
consciência (vontade do complexo do Ego) ou forças maiores que o levam a querer e
agir (deuses ou padrões arquetípicos- inconsciente).
“Havia uma única coisa que eles (Homens) não conheciam. Faltava-lhes um
elemento fundamental (...): O fogo. Os homens são compelidos a comer o alimento cru
e frio. (...) Prometeu decide entregar o fogo aos homens. (...) (com isto) Pouco os difere
dos deuses.” (MITOLOGIA II, 1973) p.314. Comer cru e frio pode ser a forma poética
de falar de uma ação automática, imediatista. O que faltava ao mortal era a energia
(fogo) para cozinhar os acontecimentos; para que os eventos não tivessem que ser
engolidos sem amolecimentos, misturas, temperos - “na consciência (os conteúdos)
poderiam ser corrigidos e perderiam seu “caráter automático” (JUNG, 1984)§384;
Esta habilidade de espera, de interrupção do ato automático é um grande poder e
“Júpiter novamente teme que os homens tentem destruir os deuses, esquecendo-os ou
sobrepujando-os. (...) Os deuses estão em pânico. Discutem no céu, como tornar os
homens novamente submissos e humildes.” (MITOLOGIA II, 1973) p.315. O
inconsciente aparece como regulador da consciência. Esta habilidade não poderia
prescindir dos deuses. Não é porque se pode interromper um processo e não comer cru

11
que esta função pode tornar-se tirânica e querer dominar o campo todo – esquecendo-se
de que sempre se é conduzido por algum complexo.
“Júpiter inventa forma mais rápida de destruir o paraíso dos homens: a mulher
(...) deveria assemelhar-se ao homem, mas em alguma coisa deveria diferir dele de tal
forma que o encantasse e comovesse, atrasando-lhe o trabalho e transtornando-lhe a
alma.” (MITOLOGIA II, 1973) p.316. O paraíso é dos “homens”; se homem personifica
a vontade ligada à consciência que adquiriu o poder do fogo, de interromper os
processos automáticos do inconsciente e poder cozinhar antes de comer, paraíso dos
homens seria a dominação da consciência? A regulação do inconsciente deve
atrapalhar, atrasando seu trabalho ou transtornando-o. Interessante que o que atrapalha
não é muito diferente dele mesmo, mas que encanta, comove desviando o caminho do
Ego. Hillman citando versos de Prometeu acorrentado diz: “nada que fere virá com uma
face nova” (HILLMAN, 1997)p.17. Como se para desviar o caminho dirigido fosse
preciso algo semelhante porem com alguma diferença que instigasse o padrão
dominante.
O encaminhamento é criar uma figura que aglutine em si a multiplicidade de
todos os deuses. Prometeu (o pensar antes) adverte seu irmão Epimeteu (o agir antes de
pensar) a não receber ofertas dos deuses ou de Zeus. Talvez por saber que a
multiplicidade dos deuses limitaria a ação dirigida que vinha sendo realizada. O estilo
de consciência prometeico é dirigido, orientado pela sabedoria, capacidade de prever
acontecimentos, inteligência, discernimento, cálculos numéricos, as letras, dominação
do que é animal. Tudo isto fica limitado e sente-se angustiado diante do múltiplo, novo,
desconhecido. Assim a narrativa mítica conta da criação de uma personagem com
formada com a contribuição de todos os deuses a bela Pandora - “dotada por todos” -
pronta para cumprir sua missão.
Júpiter entrega-lhe uma caixa onde “estão contidas as misérias destinadas a
assolar os mortais” (MITOLOGIA II, 1973)p.316 ou “todos os males que podiam
infestar a raça humana” (GRAVES, 2008) p.174. As misérias do mundo “reumatismo,
gota, dores para enfraquecer o corpo humano. E inveja, despeito, vingança (...)”
(MITOLOGIA II, 1973)p316. Em outra versão “Prometeu entregara ao irmão (um pote)
com a advertência de jamais abri-lo, pois dentro dele, havia conseguido encerrar, com
grande esforço, todos os males (...) a Velhice, o Trabalho, a Doença, a Loucura, o Vicio,
e a Paixão.”. É a fantasia dominante da antecipação, de cálculo que prevê, que com
muito esforço procura esconder e trancar tudo o que julga errado e que pode vir a lhe

12
atrapalhar. Pode-se ver as “doenças” como presentes dos outros deuses. Outros padrões
arquetípicos que atrapalham o dominante. São estes que limitam a fantasia prometeica;
“sintomas ou doenças” trazem a diversidade dos infinitos deuses que limitam e
interrompem o caminho dirigido unilateralmente pela consciência prometeica. Se os
sintomas apresentam complexo(s) com posição relativamente autônoma em relação ao
complexo do Eu e os deuses aparecem como o que conduz, faz sofrer, rir, chorar,
pensar, interrompe e limita o caminho do ego, então, os Deuses tornaram-se doenças!
(JUNG, 2003)§54; E, “é através dos ferimentos na vida humana que os deuses entram”
(HILLMAN, 1983) p.71 e a “patologia é a maneira mais palpável de testemunhar os
poderes que estão além do controle do ego” (HILLMAN, 1983)p.71.
Em uma versão “Agradecido (Epimeteu) abre a tampa da caixa fatal.
Imediatamente, saltam de dentro dela todas as desgraças do mundo. Entretanto no fundo
do recipiente (...) permanece (...) a esperança.” (MITOLOGIA II, 1973) p.317. Em outra
“Epimeteu, alarmado com o destino do Irmão, apressou-se em se casar com Pandora (...)
(GRAVES, 2008) p.174. E o que teria ficado encerrado no fundo do pote seria a
“ilusória Esperança” que “desencorajou-os com suas mentiras, a não cometer suicídio
coletivo” (GRAVES, 2008) p.174. A questão da Esperança é uma polemica
interessante. Se no pote estavam todos os males e se lá estava a esperança então está
seria um mal? Ou seria um mal a ilusória esperança? Mas seria este mal que protegeu os
homens do “suicídio coletivo”?
Sendo as narrativas, fantasia explicativas que procuram dar sentido às questões,
aos elementos restritivos, tensões e limitações em relação a tudo que está
determinadamente configurado - “(...) contamos a nós próprios algo na língua do
“porque” (...) o imediato torna-se parte de uma narrativa. Esse é o processo de
mitologização”. (HILLMAN, 2010) p.277. Assim pode-se entender todas as explicações
médicas, biológicas, sociológicas, psicológicas etc. de hoje são os mitos atuais.
O prêmio Nobel de medicina Erik Kandel afirma que: “A consciência é,
portanto, muito mais complicado de entender do que qualquer outra propriedade
do cérebro.” (KANDEL, 2006) p.215.
As narrativas neurofisiológicas sobre a consciência apontam-na como: “(...)
definição de consciência é como um estado de percepção acordada, ou atenção
seletiva em larga escala. Na sua essência, a consciência nas pessoas, é uma consciência
de si, uma noção de estar presente. (KANDEL, 2006)p.213. Kandel refere que

13
“Searle e Nagel atribui duas características para o estado consciente:
unidade e subjetividade. A natureza unitária da consciência refere-se ao fato
de que nossas experiências chegam até nós como um todo unificado. Todas as
várias modalidades sensoriais são fundidos em uma única experiência
coerente, consciente”
(KANDEL, 2006) p.215.
Não seria dificil traçar paralelos ou imaginar a influência da fantasia explicativa
kantiana nesta narrativa. Afinal, no pensamento de Kant, tem-se dois tipos de
conhecimento: um empírico (relacionado as experiencias sensíveis ao “eu empírico”) e
o transcedental (puro ou a priori; universal e necessário). A consciência da diversidade
no tempo produziria por um lado a consciência de um eu unificado (transcendental) e do
outro lado a consciência de algo que constitui o objeto enquanto objeto do
conhecimento? “Eu penso deve acompanhar todas as minhas representações.(...)
caso contrario algo poderia ser representado em mim que não poderia ser pensado isto
equivale dizer que a representação seria impossível ou que não seria nada para mim.”
(CHAUÍ, 1999) p.10.
Esta unidade, entretanto, entra em cheque. Kandel segue dizendo que “esta
natureza unitária pode quebrar. Em um paciente cirúrgico cujo cérebro é cortado entre
os dois hemisférios22, existem duas mentes conscientes, cada um com a sua própria
percepção unificada.” (KANDEL, 2006)p.215.
Já a narrativa explicativa apresentada por Damásio em “E o cérebro criou o
homem” a consciência surge como um personagem com atributos de possuidor,
protagonista, inspecionador: “(…) chamamos consciência essa fenomenal faculdade de
ter uma mente dotada de um possuidor, um protagonista de sua própria existência,
um self a inspecionar seu mundo interior e o que há em volta, um agente pronto para
a ação.” (DAMÁSIO, 2011)p.15. A fantasia segue agregando outros atributos como:
administrador, regulador: “Administrar e preservar eficientemente a vida são duas das
proezas reconhecíveis da consciência.” (DAMÁSIO, 2011) p.41;“a mente consciente
emerge na história da regulação da vida” (DAMÁSIO, 2011) p.42; “a consciência
humana (...) como as zeladoras do valor nas criaturas (...) (DAMÁSIO, 2011) p. 44.
Chega-se a noção de proprietário: “(...) os inúmeros conteúdos exibidos em minha

22
Roger Sperry - Conduziu um experimento de separação do cérebro em pessoas que o hemisfério
esquerdo do cérebro tinha sido separado por um tratamento para epilepsia. Ele mostrou que, em certas
condições, cada hemisfério podia ter diferentes pensamentos e intenções. Questionando se as pessoas
tem um único “Self”. Ambos os hemisférios poderiam estar com experiências mentais,
simultaneamente conscientes, de formas diferentes e mesmo conflitante seguindo em paralelo. Sperry
1974 (CARTER, et al., 2009)p.11

14
mente (...) estavam ligados à mim, o proprietário da mente, por fios invisíveis que
reuniam estes conteúdos na festa movediça que é o self.” (DAMÁSIO, 2011) p. 16
negritos meus Se o homem for reduzido a funções de propriedade, controle, regulação
zeladorias talvez faça muito sentido dizer que o cérebro criou isto que é chamado de
homem no texto.
Nesta narrativa também aparecem as questões entre o todo e as partes como
surgiu no debate entre consciência e inconsciente e entre deuses e mortais. Aqui a figura
emergente é de um “Self”. “(...) existe um self, mas ele é um processo, não uma coisa, e
o processo está presente em todos os momentos em que presumivelmente estamos
conscientes.” (DAMÁSIO, 2011) p.21. Esta figura processo apresenta-se em duas
perspectivas: “Uma é a do observador que aprecia o objeto dinâmico (...) certos
funcionamentos da mente, certas características do comportamento e certa história de
vida.” (DAMÁSIO, 2011) p.21. “A outra perspectiva é a do self como um conhecedor,
o processo um foco ao que vivenciamos e por fim permite refletir sobre esta vivência.”
(DAMÁSIO, 2011) p.21. Entretanto ele mesmo segue apontando algo muito
interessante:
O mais curioso nos aspectos superiores da consciência é notável ausência de
um maestro antes da execução ter início, embora surja um regente conforme a
execução acontece. (...) o maestro passa a reger a orquestra, ainda que a
execução tenha criado o maestro – self- e não o contrário. O maestro é gerado
pela junção de sentimentos a um mecanismo de narrativa cerebral, (...)
(DAMÁSIO, 2011) p.40 negritos meus
A pergunta quem em essência seria o maestro 23 é interessante. Tomando-se
como referência o pensamento aristotélico “... essência ou quididade é tudo o que
atribuímos ou predicamos a uma substância; é o conjunto de qualidades, propriedades
ou atributos sem os quais ela não seria o que ela é.” (CHAUÍ, 1994)p. 280. No entanto
para Hegel (HEGEL, 1995) toda determinação é um processo relacional. Só se
determinaria algo em relação a outro algo que é posto ao mesmo tempo; quando é posto
em uma situação, em um contexto próprio a existência. Determina-se um objeto através
do acesso as suas qualidades, mas como toda qualidade é uma determinação relacional,
a identidade do ser consigo mesmo é sempre em trabalho de contraste relacional
tentando excluir uns dos outros. Fora das estruturas de relação só pode haver
indeterminação. O Ser aparece como o excesso que indica como toda estruturação
23
A figura do “maestro” é contestada pelo neurocientista John R. Searle quando diz que a consciência
não é um epifenômeno, mas uma propriedade emergente da relação entre elementos; como liquidez de
uma substancia em estado líquido ou a solidez de algo em estado sólido. Não poderia ser separado nem
ser elemento isolado. Seria apenas a forma de falar do conjunto do comportamento dos elementos.

15
de objeto será sempre assombrada pela indeterminação. Ser e Nada são abstrações.
O devir seria o primeiro pensamento concreto. O devir introduziria a oposição no
interior do Ser. Nada no interior do Ser é o devir. Pode-se pensar então em
determinação para além da ideia da determinação atributiva de predicados limitadores e
em objeto para além da ideia do objeto como polo fixo da identidade.
Talvez a questão do maestro ausente, que só aparece após a orquestra começar,
pudesse conversar melhor com a fantasias hegeliana e Junguiana associadas. Diversos
complexos começam inúmeras execuções que funcionam automática e
autonomamente24. Conforme as diversas execuções acontecem é que um padrão ocupa o
lugar de direção da “orquestra” ou vários padrões podem alternar-se na maestria. 25 Os
complexos podem interferir e realizar processos de invasão na consciência; estes não
seriam de forma alguma patológicos, a não ser no sentido do “pathos”, quando
patologia significava a ciência das paixões26. A alternância seria protetora e embora a
psicose aparece como a invasão de complexos, é com a assimilação destes que há a
proteção contra o isolamento e a psicose 27. Jung diz que se as invasões se tornam
habituais conduzem a Neurose28. De forma inusitada as ideias em Jung mostram que a
gravidade maior como na psicose não se daria por ausência de maestro, mas pelo
domínio permanente de um complexo insuperável ou quando o complexo se fixa,
não se modifica de forma alguma; isto intoxicaria e comprometeria as funções psíquicas
aparecendo como uma psicose29. O homem, talvez o “maestro” só apareça como
unidade no ato – talvez quando um dos padrões arquetípicos, através dos complexos,
põe em ação um ato.

24
Os complexos tem uma posição relativamente autônoma (diante do complexo do Eu) e se configuram
num processo que leva a automatização “O resultado da repetição contínua é a formação de uma
passagem cada vez mais "suave", onde a atividade se realiza praticamente sem a nossa ajuda, ou seja,
"automaticamente".” (Jung, 1999) p.80
25
Ou pode-se dizer numa linguagem psicanalítica quando as múltiplas pulsões parciais de órgão não
tinham sido unificadas no primado genital.
26
Seriam momentos em que a pessoa fica subitamente alterada, tomada por algo; como se perdesse a
cabeça. Historicamente isto era atribuído a um demônio, a um encosto ou a um "espírito" que tomou o
indivíduo. Emoções dominadoras podem ser indesejáveis para o complexo do Ego, mas não seriam em si
patológicas.
27
“a assimilação do inconsciente protege contra o perigoso isolamento” (JUNG, 2008) p.425.
28
“A ideia de dissociação psíquica é a maneira mais segura com que consigo definir uma neurose.”
(JUNG, 1983)p.156 A dissociação da personalidade se daria devido à existência de complexos
incompatíveis, que por estar em posição por demais contrária a parte consciente, separam-se. Qualquer
incompatibilidade poderia causar uma dissociação.
29
“Devemos postular, no caso da dementia praecox, uma manifestação específica do afeto (toxina?) que
aciona definitivamente a fixação do complexo, comprometendo o conjunto das funções psíquicas.”
(JUNG, 1999) p.30

16
Seriam então os eventos e atos que transformados em acontecimentos ao se
ligarem a uma configuração complexa que produziriam o maestro? Ou como diria
Deleuze comentando Hume “o hábito não é a função de um Eu, mas algo que permite a
produção de um Eu. (...) há um Eu porque o hábito aparece como “princípio ativo que
fixa e desdobra as sínteses passivas da associação” (SAFATLE, 2012) aula 2. Seguindo
a mesma linha pode-se recuperar ideias em Levi-Strauss quando fala que são os mitos
que pensam nos homens ou talvez sejam os mitos que pensem entre si.30
Estas explicações recuperam ao “nada” um valor, um lugar fundamental; pois é
o que resiste e não está submetido as qualidades, propriedades ou atributos
determinados. Este “nada” que não é inexistente, paradoxalmente, não é pouca coisa;
pois é o que pulsa indeterminando tudo o que parece determinado pelos atributos ou
categorias. Assim como as coisas podem ser vistas como sendo apenas no limite do seu
desaparecimento. O que cada pessoa é? A soma dos atributos ou qualidades que
conseguiu acumular em si até o presente? As expectativas do que possa ver a ser no
futuro? Ou “nada” disto? Faria parte essencial do fundamento o “nada” que pulsa e que
só pode existir em tensão com tudo que está determinado e que ao mesmo tempo é por
ele indeterminado.
A reflexão pode remeter também “unidade paradoxal” do bem e do mal; “faz-se
necessário conceber o mal de forma um pouco mais substancial” (JUNG, 1982)§75; o
conceito da “privatio boni” “destrói a realidade do mal” (JUNG, 1982)§80. “O mal é,
como o bem uma categoria humana de valor” (JUNG, 1982) §84.
Quando da problematização da noção de inconsciente Jung diz que “não se
identifica simplesmente com o desconhecido (...) um estado de coisas extremamente
fluido (...) conteúdos mais ou menos capazes de se tornarem conscientes (...) (JUNG,
1984) §382. Na sequência aponta-se que “é preciso também incluir no inconsciente as
funções psicóides capazes de se tornarem conscientes e de cuja existência temos
apenas um conhecimento indireto.” (JUNG, 1984)§382. Haveria coisas que só se
pode ter conhecimento delas de forma indireta, talvez porque não se submetam ás
categorias nem aos princípios lógicos como da identidade, não contradição e terceiro
excluído. Isto não faz delas inexistentes, irreais ou supra reais. Jung refere como
realidade tudo que age, atua e produz efeito, mesmo que não se refira a uma realidade

30
“Não pretendemos mostrar como os homens pensam nos mitos, mas como os mitos se pensam nos
homens, e à sua revelia. E, como sugerimos, talvez convenha ir mais longe, abstraindo todo sujeito para
considerar que, de um certo modo, os mitos se pensam entre si.” (LÉVI-STRAUSS, 2004) p.31

17
palpável, sensível ou mensurável.31 Não surpreende que o sujeito para Jung possa surgir
como lócus de indeterminação; possibilidade de mudança e transformação de si e do
mundo:
Entendo por sujeito, convêm dizer desde já, todos aqueles estímulos,
sentimentos, pensamentos, e sensações vagos e obscuros que não é possível
demonstrar que promânem da continuidade da vivência consciente do objeto,
mas que pelo contrário, surgem como perturbação e obstáculo, (...)
(JUNG,1981a)p.478, §756
Na narrativa explicativa Junguiana “o complexo é uma unidade psíquica”
(JUNG,1999) p.33. E, “todo acontecimento afetivo torna-se um complexo. Se o
acontecimento não estiver relacionado a um complexo já existente, possuindo assim um
significado momentâneo, ele submerge (...) até o momento em que uma impressão
semelhante a reproduza novamente.” (JUNG, 1999) p.58. A narrativa neurofisiológica
surpreendentemente dirá:
(...) sistemas formados por grandes números de elementos que interagem entre
si. (...) são classificados como sistemas complexos, entidades cujas
propriedades mais fundamentais tendem a "emergir" por meio da
interação coletiva de seus múltiplos elementos individuais. (...) o cérebro
humano representa um modelo arquetípico de um sistema complexo.
(NICOLELIS, 2011)p. 35
Jung propunha que pensar por complexos, metáforas ou constelações tensiona a
unidade objetivante da consciência.32 A aproximação metafórica quebra a vivência de
unidade ou de imediaticidade de qualquer coisa porque para o olhar metafórico uma
coisa nunca é “uma” coisa apenas; ela é sempre muitas coisas ao mesmo tempo sem
deixar de ser ela; a coisa surge como todos os seus atributos e todos eles sempre estão
em posição de relação com outros que também são múltiplos. Toda operação de relação
é uma operação sintética. Há uma forma de síntese no olhar metafórico, mas nunca é
possível representá-la numa forma única; são sínteses não violentas. Uma coisa pode ser
não só várias coisas, mas ser coisa opostas, contraditórias ao mesmo tempo, sem deixar
de ser. Se a palavra é o assassinato da coisa, a metáfora seria a traição da palavra como
designação ostensiva?

31
“Não conheço nada a respeito de uma supra-realidade. A realidade contém tudo o que podemos
saber, pois aquilo que age, que atua, é real.” (JUNG, 1984)p. 331 §742; “O pensamento existiu e existe,
mesmo que não se refira a uma realidade palpável, e produz inclusive efeito.” .” (JUNG, 1984) p. 332
§744
32
“... as leis de associação seguidas pelo fluxo do pensamento: são, fundamentalmente, as de
semelhança, coexistência, combinações verbomotoras e consonâncias (...) A possibilidade de o
complexo vir a se explicitar é inibida pela atividade objetivante da consciência. O complexo apenas se
fará notar de maneira obscura como acontece nos automatismos melódicos que, em geral, trazem os
pensamentos do complexo de forma metafórica.” (JUNG, 1999)p.47 negritos meus.

18
Seria o a dominação do pensamento dirigido nas múltiplas consciências nas
pequenas pessoas que reforçaria a literalidade? No pensamento literal subjaz a ideia de
que semelhanças e analogias não são formas de conhecimento e sim ficções do espírito
e discernir seria estabelecer identidades; o ser pensado é essencialmente representado e
aparece como objeto adequado a categorização. Isto leva a ideia de autodeterminação e
liberdade que se caracteriza pela certeza subjetiva; ou seja, só se aceita algo que
satisfaça as exigências de verdade para o Eu. Tal qual Pandora a “Alma” segue
configurando, construindo vasos, constelando, mas também “ele se move ao longo da
Via negativa tentando desliteralizar todas as formulações” (HILLMAN, 1983)p.76.
A via negativa aparece na narrativa neurofisiológica do processo de percepção.
A consciência é como um estado de percepção acordada, porem a percepção não é
descrita como o efeito da ação das “coisas em si” sobre os sujeitos; “a percepção é um
processo ativo, que começa dentro da mente (...) se alguma dessas informações
ascendentes não confirmam a expectativa criada pelo cérebro, ele reagirá criando um
momento de surpresa e desconforto.”33 (NICOLELIS, 2011) p.55.
(...) o cérebro relativista literalmente “vê” antes de enxergar, para impor a cada
um de nós seu próprio ponto de vista sobre o mundo que nos circunda. (...) são
os encontros e desencontros entre estes dois sinais gerados dentro do cérebro e
outro proveniente da transdução de estímulos do mundo exterior, que definem o
que percebemos como realidade.
(NICOLELIS, 2011) p.417
Na mesma direção afirma-se que: “Nossa percepção é precisa e diretamente
uma ilusão – uma ilusão perceptiva. (...) Sensação é uma abstração e não uma
replicação do mundo real.” (KANDEL, 2006)p.174. Mesmo a memoria, considerda tão
fudamental no que julgamos ser34 e na continuidade da identidade individual 35 não
permanece: “Resgatar uma memória é um processo criativo. O que se pensa que o
cerebro guarda é apenas um núcleo da memória. Após resgate, este núcleo se memória
é então elaborado e reconstruído com subtrações, adições, elaborações e distorções.
(KANDEL, 2006)p.163
Em outro momento diz-se: “(cérebro é) um criador que conhece muito bem os
detalhes da arte de esculpir a realidade, o cérebro nos prove com a sensação de habitar
um corpo concreto e real que, no final das contas,não passa de mera ilusão neural.”

33
(“a dor pode atacar sub-repticiamente quando se nota, com surpresa, a primeira gota de sangue
brotar de um talho que foi produzido segundos ou até minutos antes” (NICOLELIS, 2011)p.110
34
“Somos o que somos devido ao que aprendemos e lembramos.” (KANDEL, 2006) p.10
35
“Memória é essencial não apenas para a continuidade da identidade individual, mas também para
transmissão da cultura.” (KANDEL, 2006) p.10

19
(NICOLELIS, 2011) p. 119. Chega-se mesmo da dizer que: “(...) mesmo as duas mais
preciosas possessões do ser humano – seu senso de eu e sua imagem corporal – não
passam de criações fluídas e altamente plásticas, edificadas e mantidas pela
mobilização de microeletricidade e punhado de moléculas, (...)” (NICOLELIS, 2011)
p.38/39 negritos meus. “Mapas sensórios não são uma simples réplica direta no cérebro
da topografia da superfície corporal. Há uma distorção dramática da forma corporal.
Cada parte do corpo é representada proporcionalmente a sua importância na percepção
sensorial, não relativa ao seu tamanho” (KANDEL, 2006)p.173; “Estes mapas podem
ser modificados pela experiência.” (KANDEL, 2006)p.173
A via negativa alcança mesmo a liberdade de escolha da consciência quando as
experiencias de Benjamim Libet citadas por Kandel36 e Carter mostram que a
consciência não decide o que fazer, apenas veta. Conseguir vetar a ação pode ser a
possibilidade de interromper o automatismo ou do tempo necessário para outras versões
entrem em relação colocando outros temperos e o material possa ser cozido e não
comido cru.
No inicio dos anos 80 demonstrou que o que pensávamos ser decisões
conscientes para agir são de fato apenas reconhecimentos do que o cérebro
inconscientemente já estava fazendo. Sugere que não teríamos decisões
conscientes sobre o que fazer. Volição consciente seria exercida apenas na
forma de poder de veto – liberdade de não agir. Uma vez que a experiência
subjetiva da decisão consciente precede a ação 200 milissegundos, isto deixa a
consciência apenas 100 a 150 antes do ato para vetar.
(CARTER, et al., 2009)p.11.
Reimaginando “consciência” através das inúmeras narrativas ou fantasia
explicativas pode-se ver que o campo é vasto e longe de se chegar a uma resposta literal
e definitiva abrem-se possibilidades de vida e reflexão sobre o conhecido e
desconhecido.
O poeta Fernando Pessoa talvez possa trazer inspiração.

36
“O que sobra para escolha pessoal ou para liberdade de ação? (...) o potencial de prontidão está
presente 1 segundo antes da pessoa levantar um dedo (...) o potencial de prontidão aparece não depois,
mas 200 milissegundos antes da pessoa sentir a urgência de mover seu dedo! (...) poder-se-ia predizer o
que a pessoa faria antes que ela estivesse realmente consciente de ter decidido fazer algo. (...) Se a
escolha está determinada no cérebro antes que nós decidamos agir, onde está a liberdade de ação?
Seriam nossos sensos de desejo, nossos movimentos, apenas uma ilusão, uma racionalização após o fato
que já teria acontecido? Ou seria a escolha feita livremente, porém não conscientemente? Se for assim
escolha na ação, assim como na percepção, pode refletir a importância das inferências do inconsciente.
(...) o processo de inicialização do ato voluntário ocorre numa parte inconsciente do cérebro, mas
exatamente antes da ação ser iniciada, a consciência é recrutada para aprovar ou vetar a ação. Nos 200
milissegundos antes do dedo levantar, consciência determina se ele move ou não. (...) nossa mente
consciente talvez não tenha liberdade de ação, mas tem certamente liberdade de não agir. (Kandel,
2006) p. 220/221

20
(...) Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem.
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?
És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?
Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?
Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente:
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células nocturnamente conscientes
Pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atómica das coisas,
Pelas paredes turbilhonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...
(PESSOA, 1977)

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