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Corpos malditos: gênero e violência política em uma perspectiva psicológica

Ao falar sobre corpos, ou corpo, o tema geral desse seminário, creio que convém
recordar de duas afirmações de Jung. A de que o primeiro paradoxo com o qual deparamos
ao estudar a psique, um objeto infinitamente paradoxal, é a de que a psique depende do
corpo e de que o corpo depende da psique, em outra parte, ao se questionar sobre as
definições de espírito e vida, algo que parecia por demais abrangente e especulativo, ele,
Jung, se restringe a pensar no corpo vivo e na psique, bem como em sua relação com esse
corpo vivo, chegando a afirmar que a psique é a própria vida do corpo. Ao falarmos aqui
de corpos e gênero, não escapamos então ao próprio objeto da psicologia, que seja, em
termos amplos: a psique. Creio igualmente, que não é ocioso recordar que,
metodologicamente, como Jung ensina, a Psicologia não fala das coisas como elas
realmente são, mas apenas da maneira como são imaginadas. Os corpos dos quais falo
aqui são corpos malditos, e a maldição tem a ver com a fala, o aspecto comunitário do
pensamento, como a denominou Schleiermacher de uma maneira um tanto unilateral.
Os corpos, por óbvio, podem ser estudados por muito enfoques, Foucault pensou
em como esses corpos eram disciplinados, a medicina se debruça sobre sua anatomia e
fisiologia, a história igualmente tem muito a dizer no que concerne a esse assunto. O lugar
de onde pretendo falar, todavia, é a partir de uma ótica psicológica, mas especificamente
de uma psicologia profunda, e como escreveu Toni Wolff em seu Einführung in die
Grundlagen der Komplexen Psychologie, eu traduzo “Essa fundamentação da construção
de conceito (Begriffsbildung) da consciência e da inconsciência é tanto mais justificada
na medida que a Psicologia Complexa estabelece a visão (Anschauung) dinâmica da
psique como seu princípio supremo.” Ainda Toni nos diz que “a psique não apresenta um
carácter estático, mas sim dinâmico, ao qual só se pode fazer jus através de uma
concepção energética.” O que me conduz a mais algumas palavras a guisa de introdução
ao que pretendo fazer aqui.
O conceito de gênero é estranho a Psicologia de Jung, em especial da maneira, ou
melhor maneiras, como atualmente lidamos com esse conceito, o que pode dar ocasião as
maiores confusões e anacronismos. Jung não era filósofo, mas seus pés estavam
firmemente apoiados na modernidade filosófica, talvez com a notável exceção de
Nietzche, isso se olharmos em retrospecto, e, via de regra, a noção mais em voga no
mercado dos conceitos para gênero é pós-moderna. Há enormes recessividades entre o
pensamento de Jung e a pós-modernidade, fora o fato, lamentável e fartamente
documentado por Shamdasani e Elenberger de que Jung é um autor profundamente
incompreendido. Uma abordagem rigorosa, em termos epistemológicos requeria de mim
uma revisão do conceito de gênero, a escolha de um mais deles para usá-los aqui,
compará-los a obra de Jung e perceber suas aproximações e distanciamentos, mas isso
por si só resultaria numa conferência, e requereria muito mais tempo e disposição do que
disponho. Em virtude desse fato, terei de fazer o que a maioria dos coachs de oratória
adverte para que não seja feito, me desculpar por essa limitação e seguir adiante mesmo
sabendo dessa lacuna, e aceitando as evidentes críticas que decorrem dela.
Como última parada antes de realmente começar, convém explicar quem fala, sou
historiador e analista junguiano, um home judeu praticante e religioso, e politicamente
um marxista leninista e que estuda desenhos animados. Tendo já abusado da paciência
das senhoras e senhores, ou qualquer outro gênero aqui presente, historicamente em
diversas latitudes sempre existiram mais de dois gêneros em outras latitudes mais
distantes da Europa, na China e na Índia, os eunucos, enquanto existiram, eram tidos
como um terceiro sexo, para citar apenas esses exemplos.
Metodologicamente, o que farei aqui, por mais indigesto que possa ser, é tratar de
interpretar as falas públicas de certos grupos e atores políticos, mas nem sempre políticos
em sentido estrito, mas sempre no sentido mais amplo, acerca das mulheres. Para ser mais
claro, terei o desprazer de mostrar a todos os presentes uma infeliz enxurrada de violência
verbal explícita e algumas vezes explícita, contra as mulheres. Na esperança, de como
entedia Schleiermacher, passar do aspecto comunitário, hermeneuticamente, ao privado,
e levantar algumas hipóteses psicodinâmicas sobre esses atores, mas não apenas sobre
eles, mas sobre o espírito do nosso tempo.
Mais uma vez me apoio em Toni Wolff, faço um rápido parênteses, Toni é uma
mulher vítima de uma violência insidiosa, porque a despeito de teórica brilhante e soberba
escritora, só é referida nos meios junguianos, por homens e mulheres, como a amante de
Jung para reproduzir fofocas já quase seculares, um hábito que eu considero
particularmente repugnante e asqueroso. Mas voltando a Toni que era uma brilhante
intelectual, ela nos esclarece, algo fundamental, na já referida obra, pois ao diferenciar
inconsciente pessoal de inconsciente impessoal (persönliches und unpersönliches
Unbewußtes), ela acrescenta:
“Mas, à rigor, deve ser falado aqui também da consciência pessoal e impessoal
(von persönlichem und unpersönlichem Bewußtsein) ou, expressado psicologicamente,
da consciência do Eu (Ich-Bewußtsein) e da consciencia geral (von allgemeinem
Bewußtsein). A consciência geral corresponde ao respectivo Zeitgeist, ou seja, às ideias e
valores universais dominantes em uma época. A consciência do Eu tem parte nisso [na
consciência geral], mas não é idêntico a isso, na medida em que se desvia dela por
diferenças tipológicas ou de personalidade.”
Estaremos aqui, paradoxalmente, lidando com a consciência do eu dos atores
elencados para a minha análise, mas igualmente, naquilo em que eles participam da
consciência geral de nossa época, e não podemos perder de vista esse paradoxo. O que
Toni chama aqui de consciência geral (allgemeinem Bewußtsein) é o mesmo que Jung
chama de consciência coletiva, assim como o inconsciente impessoal é o mesmo
inconsciente coletivo de Jung, Toni preferia esses termos por julgar que causavam menos
confusão, e eu me inclino a concordar com ela.
Bolsonaro se tornou célebre, infame talvez seja a palavra correta, por episódios
insólitos como a briga televisionado com Maria do Rosário em 2003, ela afirma que ele
é um estuprador, e Bolsonaro retruca “jamais estupraria você porque você não merece”,
ela o ameaça com uma bofetada, ao que ele retruca “dá que eu te dou outra” e a empurra
com a mão esquerda espalmada enquanto permanece com o dedo em riste da mão direito
direcionado a ela e finaliza a chamando repetida vezes de vagabunda. isso foi bem antes
dele ser alçado à condição de presidente. Onze anos depois, em 2014, ele repete a mesma
ofensa a Maria do Rosário na tribuna da câmara, ele estava debatendo a comissão da
verdade, e ao se referir ao ocorrido disse “dias atrás ali no salão verde você disse que eu
era estuprador”, esses dias na verdade eram mais de quatro mil dias, mas a ferida aberta
no então deputado o fazia recordar do caso como meros “dias atrás” (sic), ele segue
dizendo que dia dos direitos humanos no Brasil é o dia da vagabundagem e coisa
similares. O interessante nessa fala, é que ao listar os bandidos que os direitos humanos
supostamente defendiam no Brasil, ele listou estupradores e até corruptos, guardem bem
isso, voltaremos a essa fala.
A despeito do que costumamos crer, digo nós da esquerda, Bolsonaro se comunica
bem com seu público, ele não é simplesmente um mentecapto, coisa que ele de fato
também é, nós é que não somos capazes de decodificar as suas falas, compreender o seu
sentido. Para mim a fala soa enigmática, toda a cena é farsesca, ele se ofende ao ser
chamado de estuprador para logo em seguida reiterar a fala dela dizendo que só não a
estupraria porque ela não merece. Apesar do insulto, ele imediatamente assume que é sim
capaz de ser um estuprador, e só não o faria naquele caso, o que me leva a crer que o
problema não é ser ou não ser estuprador, mas o fato de um mulher o desafiar
publicamente.
A outra parte do mistério que essa frase representa para quem não pertence a esse
universo simbólico tão específico, é a infame afirmação “jamais estupraria você porque
você não merece”, ao dissecar as palavras de Bolsonaro, podemos inferir que há pessoas
que merecem ser estupradas, mas quem? É quase como se para o logo ex-presidente, e
por essa época deputado, estupro e sexo fossem a mesma coisa. Teríamos, evidências para
sustentar essa hipótese? Convém recordar que um dos heróis de Bolsonaro e por extensão
de seus seguidores é o Coronel Brilhante Ustra, que empregava como método de tortura
o estupro, o mesmo brilhante Ustra foi o algoz de Dilma e durante o processo de
impedimento Bolsonaro homenageou publicamente o torturador ao emitir o seu voto.
Convém recordar que o Brasil é um país violento, e que é o único país da América
do Sul que não puniu seus torturadores, Brilhante Ustra morreu de velho, fora da cadeia,
sem jamais ter sido cobrado por seus muitos crimes e violações dos direitos humanos.
Mais recentemente o ex-deputado Mamãe-Falei disse coisas similares, peço que
me perdoem (vocês e os coachs de oratória) pelo recorte temporal das falas ser tão
aleatório, sendo eu um historiador isso pode soar estranho, mas importa aqui como elas
se concatenam em termos de sentido, apesar de separadas no tempo e no espaço elas
habitam o mesmo campo social de significado na nossa consciência geral (allgemeinem
Bewußtsein). O tal ex-deputado, do grupo MBL, diz as seguintes coisas sobre a sua
experiência em uma área de guerra repleta de refugiados para onde ele foi tirar selfies e
fazer postagens sensacionalistas:
“São fáceis, porque elas são pobres. E aqui minha carta do Instagram, cheia de
inscritos, funciona demais. Não peguei ninguém, mas eu colei em duas ‘minas’, em dois
grupos de ‘mina’. É inacreditável a facilidade. Essas 'minas' em São Paulo você dá bom
dia e ela ia cuspir na sua cara e aqui são super simpáticas. Acabei de cruzar a fronteira a
pé aqui, da Ucrânia com a Eslováquia. Eu juro, nunca na minha vida vi nada parecido em
termos de ‘mina’ bonita. A fila das refugiadas, irmão. Imagina uma fila de sei lá, de 200
metros ou mais, só deusa. Sem noção, inacreditável, é um bagulho fora de série. Se pegar
a fila da melhor balada do Brasil, na melhor época do ano, não chega aos pés da fila de
refugiados aqui. Passei agora quatro barreiras alfandegárias, duas casinhas pra cada país.
Eu contei, são doze policiais deusas. Que você casa e faz tudo que ela quiser. Eu estou
mal cara, não tenho nem palavras para expressar. Quatro dessas eram 'minas' que você se
ela cagar você limpa o c* dela com a língua. Assim que essa guerra passar eu vou voltar
para cá”
O que significa “deusas”, na fala do Mamãe Falei? Isso fica mais claro quando ele
cita outro dos membros do MBL, o Renan que faz um “Tour de Blonde”, somente para
pegar loiras, a tal ponto ele é dedicado a isso que aprendeu sueco e aconselhou o amigo a
ir nas cidades mais pobres e não nas cidades litorâneas ou as melhores baladas. Deusa
aqui significa branca e loira, o que deve espantar esses jovens liberais encontrar pessoas
pobres brancas, visto em regra, a pobreza no brasil ser negra e parda. Além da abjeta
objetificação de mulheres pobres, que calham de serem brancas e loiras, há um racismo
insidioso. Mas gostaria de sublinhar uma passagem interessante da fala do membro do
MBL, “Essas 'minas' em São Paulo você dá bom dia e ela ia cuspir na sua cara” e em
seguida “são doze policiais deusas. Que você casa e faz tudo que ela quiser”. A despeito
de vivermos em um país machista, o que o áudio de Arthur do Val nos revela é que no
que concerne aos relacionamentos eróticos, ele se sente terrivelmente inferiorizado, sem
o desnível econômico a seu favor, ele só receberia uma cusparada na cara. Esse
sentimento expressado por ele, essa fragilidade é fundamental para compreendermos a
psicodinâmica desse tipo de abuso.
Gostaria de deixar claro que compreender e justificar são coisas diversas, como
dizia Jung, só podemos nos defender de um inimigo que conhecemos, e a compreensão
desse fenômeno é crucial, pois a atitude de simplesmente ridicularizar não funcionou e
nem funciona, a despeito do fato de que eles são mesmo ridículos.
Aqui surge outro elemento, de maneira insidiosa: o racismo. Não um racismo
declarado, mas a idealização de uma beleza branca, claramente sinônimo de
superioridade. Devemos nos recordar de que Bolsonaro é literalmente um nazista, com
farta documentação de sua ligação com movimentos neo-nazistas, e que um dos
elementos fundamentais de sua retórica política é o racismo. Até mesmo a sua tentativa
de mimetizar a extrema direita estadunidense passa por essa imitação da “White
supremacy” inclusive com seus gestos e simbologias sendo usados por seus seguidores.
Não fosse isso o bastante, não devemos jamais esquecer do amigo de do Val, Kim
Kataguire ao lado de Monark defendendo a legalização de um partido nazista. É
importante lembrarmos que o Brasil foi o último país do mundo a abolir a escravidão, e
temos relatos muito chocantes da violência do período escravocrata, onde o assassinato,
o cárcere, e a tortura de seres humanos era legal desde que fossem negros. Darwin quando
esteve no Brasil nos deixou um relato eloquente de suas impressões: "Nunca mais ponho
os pés em um país escravocrata! No Recife um jovem mulato era constante e brutalmente
espancado pelo seu senhor. Até hoje, quando escuto um grito na madrugada penso que é
um escravo brasileiro e tremo todo. Em Salvador e no RJ as donas de casa tinham
tarrachas para esmagar as articulações dos dedos dos escravos domésticos. E aos
domingos iam à igreja, onde diziam amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como
a si mesmo". No livro O Capitão Mouro, um excelente romance histórico picaresco, o
autor reproduz algumas dessas descrições do horror da escravidão em terras tupiniquins:
em um desses exemplos, uma senhora da casa grande descobriu que uma escrava tinha
tido um filho recém nascido e seu marido era o pai, para se vingar da escrava ela pegou o
bebê vivo, colocou dentro do forno e o acendeu.
Mas voltemos a enigmática – para nós ao menos – fala de Bolsonaro “jamais
estupraria você porque você não merece”, a fala do ex-deputado e membro do MBL nos
ajuda a compreender melhor o que se passa com Bolsonaro, ou seja, eles são incapazes
de conseguir “deusas”, leia-se mulheres loiras, brancas e de olhos claros; tais mulheres
em condições normais, simétricas em termos sociais, intelectuais e econômicos jamais
ficariam com eles, ou, ao menos, assim eles sentem. Logo, as mulheres que eles realmente
desejam merecem ser estupradas, pois sem algum artifício de força, seja física, econômica
ou de qualquer outro tipo, eles sentem que jamais as teriam.
Parece um contrassenso, especialmente se levarmos em conta as condições
materiais objetivas de nossa sociedade onde há uma inegável vantagem dos homens sobre
as mulheres e uma subalternização da mulher que persiste apesar dos esforços em
contrário. Mas, o fundamental em termo psicológicos, como Jung afirma em Símbolos da
Transformação, é que importam menos os objetos e mais a forma de apetecer. E aqui,
começamos a adentrar na psicodinâmica do fenômeno. Em Psicologia e Religião, Jung
afirma que para que uma ideia seja real, basta que ele exista, nesse sentido, devemos
recordar que, em termos psicológicos, tudo aquilo que age que atua é real. Por óbvio,
devemos igualmente recordar, sempre e de novo, que a ideia da realidade psíquica em
Jung não é irrestrita, como ele mesmo anota em Espírito e Vida ao tratar da posição do
esse in Anima:
“Se levarmos a sério este ponto de vista, as consequências daí resultantes serão
peculiares, pois verificaremos que não podemos submeter a validez dos fatos psíquicos
nem ao exame da crítica epistemológica nem à verificação científica direta. A única
questão que se põe aqui é se existe ou não um conteúdo consciente. Se existe, então é
válido em si mesmo. Só podemos invocar a Ciência, se o conteúdo pretender ser a única
asserção válida a respeito de algo que encontramos no mundo exterior; e só podemos
apelar para a crítica epistemológica, quando uma coisa que não se pode conhecer é
apresentada ou postulada como cognoscível” (parágrafo 625)
Como o próprio Jung deixa explícito no Aion, com rara clareza, acerca da sombra
e o condão que ela tem de ser projetada sobre o mundo, eu cito:
“Suponhamos agora que um determinado indivíduo não revele tendência alguma para
tomar consciência de suas projeções. Neste caso, o fator gerador de projeções tem livre
curso para agir, e, se tiver algum objetivo, poderá realizá-lo ou provocar o estado
subsequente que caracteriza sua atividade. Como se sabe, não é o sujeito que projeta, mas
o inconsciente. Por isso não se cria a projeção: ela já existe de antemão. A consequência
da projeção é um isolamento do sujeito em relação ao mundo exterior, pois em vez de
uma relação real o que existe é uma relação ilusória. As projeções transformam o mundo
externo na concepção própria, mas desconhecida. Por isso, no fundo, as projeções levam
a um estado de auto-erotismo ou autismo, em que se sonha com um mundo cuja realidade
é inatingível. O "sentiment d'incomplétude" [sentimento de incompletude] que daí resulta,
bem como a sensação mais incômoda ainda de esterilidade são explicados de novo, como
maldade do mundo ambiente e, com este círculo vicioso, se acentua ainda mais o
isolamento” (parágrafo xx)
Finalizando as minhas citações, em Presente e Futuro, Jung nos mostra um quadro
um tanto desolador no que concerne a política, pois esse estado de coisas neurótico, esse
auto-erotismo e "sentiment d'incomplétude" interfere poderosamente nos debates
políticos, pois enquanto esse estado de coisas não se resolve, as pessoas julgarão estarem
fazendo e discutindo política, quando na verdade estarão simplesmente lidando com suas
próprias neuroses e projeções no campo político. Por óbvio, essa situação não é
simplesmente individual, mas um estado de coisas que pode estar implicado em nossa
consciência geral e ser não apena sum problema individual, mas geral, ou seja cultural.
Deve-se recordar que a projeção não é simplesmente um erro consciente que pode ser
facilmente sanado, mas possui um caráter emocional e autônomo que a torna persistente
e muito difícil de ser retirado, um dos exemplos públicos mais notórios disso é o podcaster
Monark, que é absolutamente incapaz de abandonar o estado de autismo e auto-erotismo
descrito por Jung e vive em uma completa fantasia acerca do mundo que o cerca, e mesmo
que essa fantasia o esteja lentamente destruindo a olhos vistos, sua incapacidade de se
confrontar moralmente com isso é das mais impressionantes e elucidativas para o tema
com o que, meus amigos e amigas, nos debruçamos aqui.
Assim, não importam para essas pessoas os fatos materiais objetivos, importam a
maneira peculiar com que se sentem em relação as mulheres, e esse sentimento de
incompletude e esterilidade são explicados pela maldade do mundo ambiente, nesse caso,
a maldade das mulheres, como já veremos.
Vou lhes trazer o que considero um exemplo paradigmático e que,
comparativamente, nos ajudará a compreender tanto Bolsonaro quanto Arthur do Val,
lembrando mais uma vez, compreender não é o mesmo que justificar e eu mesmo, se
pudesse, daria um belo cruzado no queixo desses lixos, mas só podemos nos defender de
um inimigo que conhecemos. Esse exemplo é o Tiktoker Taylor Simão, que ensina
homens a, basicamente, serem homens. Ele cobra um bom dinheiro por isso, e é
relativamente famoso. Ele faz parte do que se chama hoje em dia de Red Pill, em
referência ao filme Matrix, mostrando mais uma vez que a capacidade interpretativa de
jovens de direita é exígua. Seria algo como um despertar para a realidade do mundo com
um efeito libertador e uma capacidade superior para lidar com a realidade em virtude
desse saber superior e livre de autoilusões e autoenganos, mas, como já compreendemos
anteriormente, trata-se de um mergulho na projeção de uma maneira ainda mais
dramática. Agora tenho o desprazer de apresentar para vocês as ideias desse sujeitinho,
que nem sequer são dele, ele apenas vocaliza certas ideias em voga e que possuem muita
repercussão.
Por uma questão de praticidade e saúde mental, eu vou seguir um recorte
específico feito por um canal chamado Tiago Santineli, que é um react ao tal Taylor
Simão, recomendo que assistam, é um vídeo engraçado, apesar de trágico em certo
sentido.
Antes de falar diretamente, vamos ao vídeo uma verdade da red pill que todo
homem deveria saber que é um encontro desse tipo de gente numa live, um dos canais,
por exemplo se chama atitude alfa – a despeito de não existirem na natureza lobos alfa
nem de qualquer outra letra grega – segundo o rapaz do atitude alfa eu cito:
“sua mulher todos os dias manda sinais de escolha prum homem, todos os dias ela
tá procurando um cara melhor do que você, todos os dias, você dá a sua atenção não
sexual para ela, agora entrando nesse esquema que a gente sempre fala toda vez, você dá
a sua atenção pra ela, entendeu, moderadamente é claro, dentro do que a gente fala lá 60
a 40, por exemplo, no sentido em que você está amando ela sim, mas sem amar ela dentro
do coração, isso é o red pill, já o cara que é blue pill ele ama dentro do coração, acho que
todos nós aqui já passamos por isso [...] nunca mais você vai conseguir amar uma mulher
como um blue pill amava, você nunca mais vai deixar uma mulher entrar 100% no seu
coração quando você conhece a verdade sobre a natureza feminina: que ela sempre está
procurando um cara melhor do que você inconscientemente, se aparecer esse cara, é bem
provável que ela vai dar um chapéu em você e você não vai nem ver a cor da bola irmão”
Logo, ser um red pill significa conhecer a verdadeira natureza da mulher, que num
reducionismo biológico típico de um Jordan Peterson – achou que eu não ia falar dele?
Achou errado, otário! A mulher segue um padrão de comportamento puramente instintivo
de procurar no homem apenas proteção e recursos materiais. Aqui cabe um porém, por
óbvio não podemos deixar de lado características individuais, tipológicas e culturais e
reduzir as mulheres a esse comportamento tão simplório, o que não significa que não ajam
mulheres que de fato sejam assim, especialmente se forem muito inconscientes. Nenhum
analista se se preze pode embarcar no outro lado da moeda, a versão enantiodrômica essa
bobagem de red pill, a que o fato de ser mulher lhe dá uma superioridade moral
automática, porque qualquer superioridade moral só pode ser alcançada ao se olvidar
enormes esforços morais. Jung gostava de um ditado suíço bastante espirituoso que dizia
“atrás de todo rico há um demônio, atrás de todo pobre há dois”, poderíamos parafrasear
esse ditado para os nossos fins e dizer com bastante certeza que em nossa sociedade “atrás
de todo homem há um demônio, atrás de toda mulher há dois”.
A despeito de hoje em dia, especialmente o hillmanianismo, fazer um tremendo
espantalho da noção de anima e animus, convém lembrar que aquilo que atrapalha um
relacionamento no homem é o sexo, aquilo que se interpõe em um relacionamento
amoroso no caso de uma mulher são considerações materiais. Logo, há um traço de
verdade psicológica nessa bobagem, especialmente em mulheres muito inconscientes e
possuídas pelo animus, porque quanto mais conscientes nos tornamos mais livres também
somos, homens e mulheres. Essa bobagem surge como uma explicação simples, simplória
até, para explicar a “natureza da mulher” em regra com alguma explicação que apela a
uma biologia das mais rudimentares, até pelo motivo de não existir uma natureza da
mulher, isso seria uma afirmação metafísica impossível de ser provada – a rigor a
afirmação negativa também. Por isso em termos psicológicos ao invés de natureza
falamos de uma estrutura hipotética do psiquismo que a posteriori nos ajuda a explicar o
aspecto geral dos fenômenos a estabilidade do acontecer humano.
Essa explicação, ou seja engolir a tal red pill, também serve para se alienar dos
seus sentimentos, o que é uma doidice, os sentimentos não deixam de existir pelo fato de
você os reprimir, ao contrário, passam a levar uma vida autônoma no inconsciente e
ocorre um processo de transformação subliminal em que se tornam infantis, compulsivos
e bizarros, atuando de maneira insidiosa, inconscientemente. Numa consideração
energética, pelo princípio da equivalência se uma certa quantidade de libido desaparece
na consciência ela deve surgir em outra parte do sistema, nesse caso possivelmente haverá
o surgimento ou o agravamento de certos sintomas, de fantasias mórbidas ou talvez de
sintomas psicossomáticos, e, pensando no fator de extensividade, uma certa quantidade
de libido ao passar de uma forma a outra análoga, arrastará certas qualidades da forma
anterior – e é muito fácil ver nesse discurso maluco essa qualidade sentimental inferior,
ou seja a incapacidade de fazer distinções sentimentais individuais.
Voltando a vaca fria, no caso o Taylor Simão, bom, no primeiro vídeo dessa
seleção, ele reage a um vídeo de “coisas que os meninos acham sexy nas meninas e você
não sabia”, e, surpreendendo zero pessoas, ele começa com loira: “loira, magra, 1,60cm,
olho claro, magra – só reforçando caso alguém esqueceu (sic)”; e estamos de volta ao tour
de blonde e ao nosso velho conhecido racismo e ao branco como um universal.
No segundo vídeo ele responde a uma pergunta “Taylor, fiz a sua mentoria e agora
estou conversando com várias meninas, só que ainda não sei como introduzir na conversa
o peso e a altura dela”, isso é sério, parece piada, mas o triste é que não é piada, mas
vamos a resposta do nosso guru red pill, o jovem Taylor: “irmão cê não tem que ter medo
de perguntar o peso e altura dela, se você fez a minha mentoria você só tá conversando
com menina top, e mina top faz academia, algum esporte, pede ela pra fazer uma
avaliação física e te mandar, eu sempre faço isso com a menina que eu vô sair (ele mostra
na tela uma avalição física com o nome borrado) se você virou um cara foda e a mina
quer sair com você ela vai ter que suar a camisa, bota ela pra suar a camisa e é isso.”
Lembrando que o jovem Taylor é um rapaz magricelo de 1,56cm de altura que pesa 45
quilos, e que não tem olhos claros (como ele exige das garotas) e tampouco pode se dizer
que ele é bonito.
Percebam que o que o Taylor vende, tendo em vista a fantasia da mulher ter uma
posição de superioridade no que concerne aos relacionamentos e sua natureza egoísta e
interesseira, é que o homem ao se tornar foda, logicamente com a mentoria que custa a
bagatela de 600 reais, vira o jogo. Ao invés de ser vítima das exigências femininas que
podem a qualquer instante, digamos que aparece um jovem de 1,57cm, te trocar ou, te dar
um chapéu em que você não vai ver nem a cor da bola, é o homem quem se coloca nessa
posição. O mais curioso é que essa concepção da mulher interesseira ou que busca
segurança material em um homem e isso é tudo, é uma concepção machista, no sentido
em que parte de homens. Vou contar uma anedota, por óbvio por ser uma anedota possui
parco valor comprobatório, mas é interessante mesmo assim. Estudei em uma escola de
elite em Fortaleza na década de noventa, e gosto de mencionar que por aquela época todo
mundo era o Bolsonaro. O politicamente correto ainda não estava nem no horizonte mais
remoto de possibilidades, piadas racistas com negros era comuns, corriqueiras até, piadas
sexistas com loiras existiam aos milhares, piadas homofóbicas então nem se fala, meus
professores eram pródigos em piadas homofóbicas. Um dos meus professores, de
geografia – nem era dos piores, diga-se de passagem – disse que ensinava a filha a
escolher os namorados pelo veículo, se o namorado tinha uma bicicleta e aparecesse
alguém de moto ela deveria trocá-lo, se depois surgisse um que tivesse um carro, o de
moto devia dançar, aí então ele passou a narrar um evento específico em que eles estavam
no Fortal, um carnaval de rua ou algo similar, e ela estava se agarrando com um rapaz de
maneira excessivamente entusiasmada, ele se incomodou, ao que ela simplesmente
apontou a chave do carro na cintura dele. Essa concepção partiu do pai, e não da filha, ela
simplesmente a assimilou dele.
Voltando ao Taylor, pra piorar, e pra chocar um total de zero pessoas, o moleque
é bolsonarista. A extrema direita como um todo, em sua retórica, depende desse estado de
auto-erotismo ou autismo, em que se sonha com um mundo cuja realidade é inatingível.
Há um fator a mais, quando se observa a psicologia da extrema direita de maneira mais
ampla, é um certo traço paranoide, vago e nebuloso, pela existência de um “sistema” de
algum tipo de perseguição, que a retórica odienta Olavo de Carvalho soube como
capitalizar e instrumentalizar de maneira magistral, por sinal, tomara que o velho esteja
queimando no fogo do inferno. Percebam, que esse traço paranoide se encontra
igualmente nessa mentalidade red pill, pois as mulheres “todos os dias manda sinais de
escolha prum homem, todos os dias ela tá procurando um cara melhor do que você, todos
os dias”. Esse aspecto não é central nesse tipo de misoginia repaginada como red pill, mas
mesmo sendo secundário, se faz presente, ajudando a criar esse estado de identidade
arcaica, extremamente perigoso em termos sociais e individuais.
Só um rápido adendo, em uma de suas lives Bolsonaro reagiu ao fato de que era
tachado de misógino, pois não gostava de mulheres, ao que ele responde de uma maneira
um tanto parva que ele não é gay, que ele gosta (sexualmente) de mulheres. Para pessoas
que não engoliram e se engasgaram com a tal red pill, essa resposta parece indicar apenas
uma severa limitação verbal e cognitiva por parte do mentecapto e logo, logo ex-
presidente. Mas, se você está nessa corrente contemporânea de misoginia red pill, a fala
faz sentido, Bolsonaro gosta de mulheres apenas sexualmente, mulheres são seres
interesseiros e sem escrúpulos, essa é a sua verdadeira natureza, logo nenhum sentimento
deve ser dirigido a elas por “um homem de verdade”, e dessa maneira, ao invés de
grosseria e estupidez, vê-se que o tratamento dispensado por Bolsonaro as mulheres a sua
volta é um tipo de iluminação, um conhecimento profundo e arguto da verdadeira
natureza das filhas de Eva. O que a nós parece um comportamento medonho e inaceitável,
ao olhos do público bolsonarista, é um comportamento exemplar, digno de nota e capaz
de causar inveja e admiração. Nesse sentido, Bolsonaro e seu público estão em um estado
de identidade arcaica, o que faz com que qualquer reação racional a ele seja barrada pelo
estado de autoerotismo em que se encontram coletivamente. Não podemos nem devemos
ser ingênuos quanto a esse estado de coisas.
Taylor, em outro vídeo, aconselha ironicamente que os homens casem, e utiliza o
caso de Will Smith no oscar (a bofetada que ele deu em Chris Rock) e a reação de sua
esposa Jada Pinkett que depois da repercussão negativa do caso “virou as costas” para o
marido. Sua conclusão é “você que é cavalheiro, que protege as mulheres, é isso aí que te
aguarda, amigão. Um beijo, casem muito”. Como se vê, atos de cavalheirismo não são
vistos como antiquados apenas pela esquerda, o são também pela extrema direita e não
apenas fora de moda, mas um ato de estupidez de quem ainda não engoliu uma red pill.
O que reforça a conclusão que tirei anteriormente, os atos de estupidez de Bolsonaro com
as mulheres ao seu redor, suas aliadas, são o exato oposto de qualquer cavalheirismo,
antiquado ou não, mas como nos ilumina o nosso guru Taylor, é assim mesmo que se faz.
O reducionismo a que aludi logo no início de nossa conversa, serve igualmente como uma
justificativa para esse tipo de conduta, mas esperem o “melhor” está por vir.
De acordo com Taylor, o homem “foda” é aquele que não quer casar e deseja curtir
a vida, algo que ele ensina a outros “homens”. No vídeo seguinte, dessa singela seleção,
ele reage a uma react em que um homem desses alfa, red pill não sei mais o quê, afirma
que “se a sua fizer mais dinheiro do que você, tomou no cu, ela não vai te respeitar mais.
Deixa a sua mulher ganhar mais dinheiro, ela vai dar um chute na sua bunda e te tratar
igual a um merda, é o que eu estou vivendo hoje nesse país”, em seguida Taylor dá sua
preciosa contribuição a esse debate: “relax, isso é completamente natural e o nome disso
é hipergamia, basicamente hipergamia é a mulher se interessar pelo homem que tem mais
a oferecer a ela, então se ela ganha mais do que você, você não tem tanto a oferecer a ela,
isso faz com que ela não te admire e vá procurar outro cara, sim exatamente isso, a mulher
não se apaixona por você ela se apaixona pelo que você pode oferecer a ela, e
provavelmente você não sabia disso e gosta de mulher, mas não sabe como elas agem e
como elas pensam, isso faz com que você esteja no escuro e eu sei que a maioria dos
homens está no escuro e pra isso existe o meu “close” (close friends) que é basicamente
uma lanterna que vai te mostrar por que que eles fazem e como que elas fazem (sic)”.
Novamente temos aqui a lógica supostamente evolutiva do homem como provedor,
caçador etc, que obviamente não tem qualquer lógica, é um preconceito afetivo apenas,
mas é interessante notar que não se trata de um certo conservadorismo, mas de um
reacionarismo mal disfarçado. Sem algum tipo de poder exercido sobre as mulheres elas
sempre se comportarão de uma maneira insubmissa e francamente demoníaca, como se
pode auferir, por exemplo, em uma leitura superficial da lenda cabalística do meu povo
acerca da segunda mulher de Adão, a que veio logo antes de Eva, Lilith que se recusa a
ficar por baixo na relação sexual e quando o primeiro homem tenta estupra-la ela profere
um encanto e voa pelos ares, o senhor envia seu anjo Samael para encontra-la, mas ela já
copulou com inúmeros demônios e se tornou ela mesma um demônio do tipo empusa, que
mata recém nascidos, mas fez um acordo com o anjo e as crianças protegidas pelo selo de
Samael seriam poupadas.
Um rápido adendo, meu povo não crê literalmente nessas histórias, nem as
interpreta tão superficialmente, há uma complexa interpretação cabalística já quase
psicológica do texto sagrado e dessas histórias orais, mas no geral essa história tem sido
interpretada simplesmente como uma insubmissão feminina demoníaca e, portanto, pela
maneira como foi absorvida pelo ocidente cristão, serve como um bom paralelo: mulheres
livres sexualmente ou com vontade própria não passam de demônios.
No próximo vídeo o jovem influencer reage a um react de um de seus vídeos,
quase uma cena do filme inception, o vídeo se chama “por que gente feia fala tanta
merda?”, a gente feia no caso é o Taylor Simão, que de fato é feio mesmo e objetivamente
fala muita merda, mas não vamos deixar os feios pagarem o pato, seria outro
reducionismo, apesar de que título é uma piada pra desmoralizar o suposto treinador don
Juan. Ele começa: “ó, vamo vê a galera aí que tá me refutando ó, por que gente feia fala
tanta merda, eu como estudante de economia tentando ouvir isso (título completo do tal
vídeo) tamo esperando a refutação aqui, né? Vai vim, ao longo do vídeo vem [...] ele não
terminou o ensino médio, tá, eu não terminei o ensino médio, mas vai me refutar não,
como é que é?”. Um outro adendo, vivemos num país de profunda desigualdade social,
em que muitas pessoas infelizmente não têm acesso a educação, e apesar de não ser
Foucaltiano, concordo com suas críticas com relação ao diploma universitário: “O
diploma serve apenas para constituir uma espécie de valor mercantil do saber. Isto permite
também que os não possuidores de diplomas acreditem não ter direito de saber ou não
serem capazes de saber. Todas as pessoas que adquirem um diploma sabem que ele nada
lhes serve, não tem conteúdo, é vazio. Em contrapartida, os que não têm diploma dão-
lhes um sentido pleno. Acho que o diploma foi feito precisamente para os que não o têm”
e depois desse momento “citei Foucault”, o problema de verdade é falar um monte de
merda sobre um assunto que você nunca estudou, coisa que Taylor faz com grande
maestria, há que se dar o braço a torcer quanto a isso.
Prosseguindo com o react do react do react, ele afirma “a diferença é que enquanto
você tá fazendo provinha de economia eu tô girando a economia, eu sou empresário, você
não, pois é”. Aqui se completa a lista de elementos “teóricos” constitutivos do
pensamento articulado dessa extrema direita: a misoginia red pill, o racismo, e o
pensamento empreendedor. A rigor, a rigor, empreendedor é quem produz inovações
tecnológicas, mas o termo adquiriu uma plasticidade para caber o sentido de qualquer
pessoa que tem o seu próprio negócio ou “não tem patrão”, o que em geral significa
possuir um trabalho precarizado, como uber por exemplo, ou viver desse tipo de golpe
que Taylor Pratica, e que possui uma receita simples: Construa autoridade para um certo
público, ganhe notoriedade com esse público e por fim venda um curso para esse público.
Basicamente: minta, convença um bando de otários, e depois tome dinheiro de todos eles.
Por óbvio, nem todos os que vendem cursos na internet são espertalhões vendendo
esquemas de pirâmides, eu mesmo tenho cursos a venda no hot marte que podem ser
encontrados o site: inserir site. Se você está gostando dessa palestra, clica lá e aprenda
mais! Depois desse momento “merchan”, fica claro que Taylor é de fato um exemplo
paradigmático de uma certa fauna virtual com a qual não nos preocupamos em virtude de
seu exotismo e ridículo, mas que urge ser compreendida ou seremos devorados por
aqueles que acreditam em Taylor, que são fisgados emocionalmente por sua retórica.
Mas vamos a cereja do bolo, justamente pra quem achou que não tinha mais como
piorar, mas no Brasil é importante recordar e nunca esquecer que o fundo do poço é uma
concepção de otimistas. Seguem dois vídeos aparentemente contraditórios, mas em que
não há contradição de fato. No primeiro ele responde a uma caixinha de perguntas do
instagram “quais os requisitos de uma garota decente pra você?” ao que ele responde
prontamente: “primeira coisa virgem, ser de família boa, fiel, e rica, gata, tem que ser
bonita, não pode ser promíscua, valores cristãos, não pode ser feminista, obvio né?”. Tava
faltando os valores cristãos, não está mais. Mas segue o próximo vídeo em que ele
compara o que vale mais a pena uma garota normal ou uma gp (garota de programa) –
sim, ele usa o termo normal para contrastar com garota de programa, que por
consequência são anormais – “o que será que compensa mais sair com uma garota gp ou
com uma mulher normal, compartilhe esse vídeo e deixe os homens saberem a verdade”,
ao que ele compara as seguinte coisas: você vai ter de pagar pra sair com ela? ela vai
pegar geral? Ela vai dar em cima dos seus amigos? Ela vai tentar te usar e te manipular
para conseguir coisas em cima de você? Ela vai fazer você perder tempo dando atenção
a ela para aumentar o ego dela e depois não vai querer sair com vc? Ela vai fazer tudo o
que você pede na cama? Você corre o risco de sofrer uma falsa acusação saindo com ela?
corre o risco de você pagar e não receber pelo o que você pagou? Agora presta atenção e
percebe se você não e perdendo muito tempo e pagando por algo que que você poderia tá
fazendo a mesma coisa por um preço bem menor”. A gp, segundo ele, não vai dar em
cima dos seus amigos, não via te manipular pra conseguir coisas de você, não vai fazer
você perder tempo, nem vai falsamente te acusar de estupro, ou não vai te dar o que pagou,
além de fazer tudo o que ele pede na cama, e no mais ela se iguala as meninas “normais”.
Por mais repugnante que esse discurso pareça, além de meio insensato e
contraditório, Jung em um de seus seminários explica que a moral tradicional inclui o
puteiro. Nesse sentido, ou seja, para aqueles imbuídos da moral tradicional, pra que as
mulheres de bem permanecem virgens, é indispensável que exista o puteiro para que os
desejos sexuais dos homens sejam realizados, sua masculinidade comprovada entre outras
coisas. O que coloca a puta numa posição ambivalente, ao mesmo tempo em que ela é a
mulher ideal, é o pior xingamento possível para se diminuir e achincalhar uma mulher,
como na fala absolutamente impublicável de Bob Jef ao insultar publicamente a ministra
Carmem Lúcia. Mas chega de material empírico, eu temo pela saúde mental de vocês
caso eu prossiga elencando mais fatos. Como podemos tentar compreender
psicologicamente todo esse show de horrores – hoje um show de horrores, na minha
adolescência na década de noventa uma segunda feira fraca – eu preciso deixar claro que
o que vou expor aqui é uma tentativa de compreensão, não pretendo esgotar o assunto,
que por sinal, requer maiores estudos e reflexão, especialmente, porque aminha amostra
foi muito reduzida, mas espero que significativa e exemplar no que concerne a muitas
características comum a essa particular psicologia.
Para começar a esboçar uma compreensão mais profunda desse fenômeno tão
curioso quanto indigesto, me apoio nas reflexões de Joseph Campbell, em particular no
livro Reflexões Sobre a Arte de Viver, um dos meus favoritos. Ao abordar a mitologia da
Índia ele tira conclusões preciosas para nossa reflexão aqui, ele começa pela Torá, a velha
história de Adão e Eva na Bereshit (‫אשית‬
ִׁ ‫)בְּ ֵר‬, sendo a serpente do paraíso a consciência
lunar e a vida no campo do tempo, onde existem os pares de opostos, aqui está
simbolizado início da consciência no tempo e o papel simbólico da mulher, a fêmea ativa
o macho; depois ele é ação e ela assume os resultados. No Bereshit está descrita
metaforicamente uma dinâmica psicológica, que pode ser encontrada em outras
mitologias, como no Upanishad, onde no princípio havia um si-mesmo na forma de um
ser humano cósmico que ao adquirir consciência olhou ao redor e primeiro sentiu medo
e depois desejo e que era tão grande quanto um homem e uma mulher abraçados e se
dividiu em homem e mulher e daí surgiu a humanidade, ela virou uma vaca ele um touro
e assim por diante, até que o mundo do tempo e dos opostos surgisse. Assim como a
história de Aristófanes no banquete de Platão.
Devemos nos recordar, com tristeza até, que essa psicologia da red pill fala sobre
eros, sobre relacionamentos amorosos, sobre a complicada relação entre homens e
mulheres e sobre a nossa moderna inadequação para lidar com o fato de que depois de
centenas de anos de casamentos arranjados completamente desprovidos de amor temos
hoje a possibilidade de seguirmos os nossos sentimentos, e que depois de um bom tempo
de repressão sexual, no qual as mulheres sofreram a pior parte, há a possibilidade de
liberdade sexual. Para usar uma frase muito feliz de Campbell, estamos todos em queda
livre em direção ao futuro, nossos velhos modelos já não nos servem mais. Em um sentido
simbólico profundo, o casamento não é simplesmente uma relação amorosa, mas
reconstrução do andrógino e essas pessoas, que se engasgaram com a red pill, estão
completamente separadas dessa possibilidade.
Joe Campbell é muito feliz ao indicar que o casamento não é um caso de amor
prolongado, mas um ordálio, uma experiência religiosa, um sacramento, a graça de
participar da vida de alguém, nesse ordálio ambos precisam deixar de lado as inclinações
puramente egoístas não em prol do outro, mas da relação, da possibilidade de
reconstrução desse andrógino. Por certo, no que concerne a psique masculina, e é dela
que falamos aqui, ou, ao menos, de sua versão menos sofisticada, infantil e primitiva, um
homem aprende algo sobre a sua anima assim como uma mulher sobre o seu animus
segundo sua reação ao sexo oposto. Barbara Hannah, em seu livro Encounters with the
Soul, onde fala sobre imaginação ativa, na primeira imaginação ativa o homem encontra
sua anima presa em um bordel e sua primeira ação deve ser a de libertá-la, somente assim
dá início a uma perigosa jornada interior onde pôde libertar, entre outras coisas, seu
espírito criativo. Esse paciente tinha estado impotente por causas psíquicas por um bom
tempo.
Campbell faz uma interpretação psicológica interessante do mito babilônico de
Marduk e Tiamat. Marduk mata a drago a primordial e a partir dela remodela o mundo e
Joe nos fala:
“Ela acabaria se esculpindo sozinha, mas permite que seu neto seja o agente desse
feito, pois é preciso existir esse tipo de confiança por aí para que o mundo possa viver.
Logo, essa é uma mulher generosa que permite que o neto pense que está realizando a
tarefa, na verdade, ela poderia fazê-lo por conta própria.
Esse é o modo de ser do animus ele é uma projeção de alguma coisa que a mulher
poderia fazer, mas que deixa o homem fazer por ela. embora não tenha uma presença
vital, nem pela metade, ele é uma máquina com um corpo especializado, e por isso pode
fazer coisas. Perceber que o poder está dentro d você é uma coisa, mas perceber que a
ação implicada por esse poder pode ser realizada mais adequadamente por um homem do
que por você mulher é aceitar o relacionamento.
Quando uma mulher percebe que o poder está dentro dela, o homem emerge como
um indivíduo, não como um exemplo do que ela supõe que precisa. Do ponto de vista
masculino, quando um homem olha para uma mulher e só vê alguém com quem pode ir
pra cama, ele a vê com relação à satisfação de uma necessidade sua, não como uma
mulher. Como se víssemos vacas e só pensássemos em rosbifes” (pp. 38 e 39).
Na perspectiva indiana, o poder é feminino, é shakti, o homem é visto apenas como
um veículo adequado para esse poder, o homem desbrava o campo do desconhecida, mas
a mulher é o campo do desconhecido, segundo Espengler o homem faz a história, mas a
mulher é a história. Ao analisar as histórias do graal, Campbell se pergunta acerca dos
relacionamentos “posso me abrir a compaixão? Não a luxúria, mas a compaixão, pois a
chave para o Graal é a compaixão. Nas minhas descrições anteriores não há o menor
indício de compaixão, apenas medo e amargura e um fechar-se a experiência do amor.
Quando estamos falando dessas coisas em termos psicológicos, em seu sentido
simbólico, temos de resistir um pouco a tentação de reduzir as coisas a questões concretas,
o que Jung chamava de hipóstase. É preciso sempre lembrar que feminino me termos
psicológicos não é igual a mulher, tampouco masculino é igual a homem. Quando
ouvimos a lamentável retórica dos jovens misóginos da internet, devemos lidar com um
paradoxo peculiar, pois sociologicamente eles estão se referindo a mulheres concretas e
históricas com as quais se relacionam, mas sabemos psicologicamente que homem
aprende algo sobre a sua anima assim sua reação ao sexo oposto; mas podemos inverter
tranquilamente essa lógica, pela reação de um homem ao sexo oposto podemos aprender
algo sobre a sua anima. O que vemos nesses casos é uma relação deplorável com a própria
alma, sabemos que a questão que a anima coloca ao homem é o que ele realmente sente?
E em todos os casos elencados eles se fecham a compaixão, e aos seus próprios
sentimentos. Sabemos que a anima é o arquétipo da vida, que faz o homem viver a vida
como se fosse uma aventura, logo, imaginem o vazio e pobreza espiritual daqueles que
se fecham a essa experiência interior, por medo e paranoia. Por mais que eles nos soem
patéticos e mereçam um soco na cara, eles também são dignos da nossa compaixão, e
nesse ponto não devemos abdicar nem do soco na cara nem da compaixão, mas sustentar
esses opostos sem contradição.
A psique masculina é muito mais frágil do que a psique feminina, deixada a si
mesma a natureza transforma uma menina em mulher, o homem é um produto cultural,
que sozinho é incapaz de escapar a influencia esmagadora da psique feminina,
representada num primeiro momento pela mãe. Os povos primitivos, mas próximo do
inconsciente e de suas necessidades, sabiamente possuíam cruentos rituais de iniciação
masculinos, onde o corpo era marcado e desfigurado para que essa mudança fosse
concretizada, uma metamorfose artificial para imitar a transformação natural do corpo da
mulher que foi a primeira fonte de magia e assombro. Estar preso ainda a essa psicologia
tem o poder de nos torna neuróticos, a neurose do puer está em primeiro lugar ligada a
um complexo materno particularmente poderoso. Em nossos dias não temos mais
iniciações masculinas, estamos entregues a nossa própria sorte e, ao que parece, muitos
de nós fracassamos. Esse fracasso provavelmente implica essa fraqueza do eu, esse temor
do próprio inconsciente, que no homem é o eterno masculino e que obviamente é
projetado na mulher. Fundamentalmente, temos nesses homens tanto uma fraqueza
constitucional, quanto uma incapacidade para a compaixão que leva a esse tipo de super
compensação de cunho puramente intelectual, apesar de se tratar de um pensamento
redutivo, estéril e esterilizante, em que um saber especial reprime o sentir.
Creio que depois de todo esse tempo vocês devem estar se perguntando, mas
Heráclito, qual a saída e a solução para esse estado de coisas? Bem, lembram-se de
Peterson? O canadense que não passa de um Olavo de Carvalho com diploma de doutor
e um arremedo de Junguiano? Exatamente, esse mesmo, ele ensina qual o sentido da vida
para homens, isso o faz um arremedo de junguiano, mas para muitas pessoas ele é um
balsamo em um deserto espiritual, tal é a carência de sentido dessas pessoas. O homem
das lagostas os oferece uma saída demoníaca, similar aquela que Mefistóteles ofereceu a
Fausto, a de voltar a natureza. Peterson não faz a mesma proposta, mas sua oferta possui
o mesmo espírito regressivo, um retorno as formas históricas de masculinidade, tal
espírito regressivo é tão ou mais daninho e alienante quanto tudo o que vimos até aqui. O
nosso desafio é sermos capazes de criar novas formas de expressar a masculinidade e a
feminilidade, novas formas de nos relacionar. A coisa aqui é que a vida é também um
processo irracional, então quando eu digo inventar, quero dizer tanto a invenção
consciente de algo, quanto o confronto com a nossa vida instintiva, ir ao encontro daquela
capacidade mitopoética que desde sempre produziu saídas irracionais para a vida, os dois
juntos. Somente a saída consciente nos leva a racionalismo estéril e vazio de vida e
potência e o simples mergulho no inconsciente pode levar a um abandono da vida ou a
um esteticismo fútil e irresponsável. Precisamos, na verdade, de algo que ainda não existe,
mas para o qual temos a potência imorredoura daquilo que é perene no humano.
Não sou profeta, não tenho essa resposta, o máximo que posso fazer é procurar o
sentido psicológico de tudo isso e, individualmente, procurar um sentido para a minha
própria e lidar com o eros em mim, o que já é uma tarefa desmedida, mas imprescindível.
Devo confessar que estou longe de ter sucesso, o que me torna ainda pior conselheiro,
mas ao menos estou consciente da minha pobreza espiritual. A sombra coletiva da
Psicologia Analítica é que os junguianos tentam se apropriar do desenvolvimento
espiritual de Jung para fugir a própria alma e se inflarem como balões. Creio que o
primeiro passo seja admitir, veja, estou muito mal e bastante perdido, pois, para finalizar
com o pensamento de um mulher extraordinária, Ema Jung, o castelo do Graal é um local
onde só se chega ao se perder.

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