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Postei na minha página de Facebook, no final de abril, uma pequena citação de Christopher Bollas

sobre o ¨O Estado da Mente Fascista¨ e essa citação suscitou um bom debate. Debate Vivo com
vários psicanalistas. É por essa razão que a postagem e o debate abrem a coluna: Conversando
sobre Bollas. Amnéris Maroni.

O Conceito Bollasiano de Fascismo e Outros


Comentários

¨ O fascismo pode existir na mente do indivíduo e do grupo. Sob a pressão


de intensa necessidade ou ansiedade, o self/grupo perde seu modo
democrático de funcionar e começa a projetar. A mente deixa de ser
complexa, pois perde o caráter polissêmico da ordem simbólica e começa
a operar de maneira tirânica, eliminando toda a oposição. Em vez de
dúvida, incerteza e autoquestionamento, ela emprega a função patológica
da certeza, e isso deixa um vazio moral. Uma vítima é escolhida para
conter esse vazio, e ela deve ser exterminada. Assim, um estado de mente
torna-se um ato de violência e o processo de aniquilação é idealizado. O
processo de genocídio intelectual envolve distorção dos pontos de vista do
oponente, descontextualização, depreciação, caricatura e assassinato de
personagem. Também pode haver genocídio intelectual por omissão: os
oponentes são eliminados por uma ausência de referência ao seu trabalho
ou cultura¨. É assim que pensa Christopher Bollas, em um artigo seminal
“O estado de mente fascista”, contido em seu livro Sendo um
Personagem.

Daniel Omar Perez: Excelente reflexão. Obrigado pela referência. Vou


procurar para compreender melhor. Identidades individuais e coletivas é
parte do meu tema de pesquisa.
Diogo Mendonça: Muito bem lembrado.
Carlos Alberto Araújo: Muito pertinente na análise da conjuntura atual.
Maurício Santos: Que beleza de trecho!!!
Sílvio Lopes Peres: O “genocídio intelectual” está em curso há bastante
tempo. A lucidez do autor lança um pouco de luz sobre a tenebrosa situação
que nos encontramos. Obrigado Amnéris Maroni, por compartilhar conosco.
Janaína Bliz: Minha alma tem FOME disso!
Amnéris Maroni: Fome do que Janaina? Me conta que eu te alimento...
Janaína Bliz: Do que a linguagem do Bollas traz. Sinto como se imensas
janelas e portas fossem abertas numa casa fechada à minha revelia por muito
tempo. Quando entro em contato com os fragmentos que vc coloca aqui
sinto como se eu encontrasse um espaço aberto onde eu posso respirar
livremente. Tem sido surreal esse encontro. Tenho fome dessa
desconstrução que garante arejamento, uma espécie de autonomia que
parece ter sido uma construção individual minha — quase escondida — mas
que encontra nessa nova linguagem um espaço aberto, comum, de partilha
— com uma força afetiva impressionante. A saída do fascismo tem uma
convocação para sua desconstrução interna — e o encontro do caráter
polissêmico é de fundamental importância — mas a partilha, o diálogo
polissêmico é o que sustenta esse movimento de vida, esse arejamento. A
saída dos genocídios que operaram e/ou operam em nós — necessitam de
pontes significativas, diálogos — e sinto Bollas chegando com a carga dessa
significação da saída do fascismo e genocídios internos (e, assim, como
nova ação/ser externos). Tenho fome disso!
Tales Ab’Sáber: Que importante a percepção de fundo, e primeira, de
Freud e de Klein, posteriormente de Bion, sobre o sentido redutor e
degradante do si mesmo da “projeção”, que Bollas usa pra pensar aqui, não?
Aqueles autores geniais que perceberam o vínculo entre ódio, destrutividade
e projeção, que nos permite “entender” e criticar, com a psicanálise, o
fascismo. E tem mais ainda, sobre a ilusão vinculante e regredida do grupo,
e o psiquismo grupal contra o pensamento, que Freud trabalhou demais em
“Psicologia das massas e análise do eu”...
Amnéris Maroni: Acho o trecho bem bioniano: as duas partes da mente, a
psicótica e a neurótica... Mas também claro o “sentido degradante do si
mesmo da ‘projeção’”. Penso que exatamente por perceber isso, Bollas, a
uma certa altura, nos últimos anos “abre mão” até certo ponto da
identificação projetiva — e, então, da projeção — e pensa em identificação
perceptiva: está não encolhe, nem degrada o si mesmo... Penso que é por
isso, mas para pensar o fascismo é preciso pensá-lo sobre a égide da
projeção e dessa degradação...
Tales Ab’Sáber: Gosto demais da ideia dele, derivada do saber sobre os
vínculos dependentes originais, de Winnicott e de Khan, e até mesmo do
incrível psicanalista americano Searles, da identificação extrativa. Ela
acentua a dinâmica real das relações originais de dependência, e chama a
atenção para as condições humanas, ou não, daqueles responsáveis pelo
desenvolvimento e formação psíquica de um bebê. Nesta perspectiva, que é
a winnicottiana de Bollas, o ambiente e o adulto, mais desenvolvido, é
responsável pela política do cuidado, que oferta ou não ao humano. Raízes
ambientais originárias da psicopolítica.
Amnéris Maroni: Bollas chama de ‘introjeção extrativa’. Li É isso um
homem de Primo Levi, sob a luz desse último conceito, a introjeção
extrativa, e fiquei arrepiada pois a defesa mais usada pelos nazistas nos
campos de concentração foi essa. Roubar o Self do outro como roubaram
nos campos é sinônimo de roubar a humanidade e foi, exatamente, o que
fizeram... Bollas antes de ser psicanalista estudou História — e também
literatura — mas os ecos dessa disciplina, a História, lhe permite estudar os
objetos transicionais de toda uma geração! Os dispositivos culturais e seu
enlace pelo self se desdobrando estão facilitados, muito facilitados, nas
mãos de Bollas. Talvez por isso me sinto tão à vontade com ele. Tem muita
sensibilidade histórica e artística...
Tales Ab’Sáber: É preciso muita energia e muito poder explícito para
roubar o self de alguém constituído. E os fascistas, que adoram o poder,
buscam fazer isso, no limite com o extermínio da diferença. Já na origem
aberta e em estado de potencial do bebê humano basta uma mente autoritária
e um narcisismo excessivo dos cuidadores para de fato lesar e roubar
aspectos do self. Modos de ser da “mãe má”, do ambiente não bom o
suficiente.
Amnéris Maroni: Como diz Guimarães Rosa: “viver é perigoso”!
MVera Lucia: Quero pedir licença para fazer um comentário referente ao
diálogo entre Amnéris Maroni e Tales Ab’Sáber . E peço licença porque não
diz respeito ao tema: fascismo. Mas sim a um grande incomodo a despeito
de como a coisa vai em torno de Christopher Bollas. Talvez seja mais um
depoimento do que um comentário. Bollas é um psicanalista peculiar,
recebeu sim influência de Sigmund Freud, Donald Winnicott, Wilfred Bion,
Jacques Lacan e outros psicanalistas. Tanto quanto dos grandes mestres da
literatura universal. Não esqueçamos que ele é graduado em história, doutor
em literatura e pintor. Todo este arcabouço resultou num pluralismo teórico
e na criação de uma metapsicologia que trabalha conceitos tais como idioma
pessoal, inconsciente receptivo e criativo, genera psíquico, conhecido não
pensado e experiência estética, que ele aborda de forma singular. Por
exemplo, Bollas diz que o sujeito possui um idioma pessoal que não é
formado por conteúdos de significado latente, mas é uma estética da
personalidade, a qual no encontro com os objetos possibilita o
engendramento de uma experiência plena de significado. Conhecer a
metapsicologia BOLLASIANA foi para mim uma experiência estética, que
me capturou num processo de total e constante transformação.
Tales Ab’Sáber: Bollas se expressa de um modo contemporâneo acessível
a muitos. Mas existem tantos mestres, inventores radicais de psicanálise
nele, ele diz tanto que outros deixaram preparado para ele: Freud, Klein,
Bion, Winnicott, Milner, Khan... O idioma estético, por exemplo, é uma
ideia expressa por Masud Khan, o seu querido analista, dez anos antes dele,
e que o próprio Khan recebeu da teoria do self e sua dimensão criativa que
se articula em um momento transicional de Winnicott... objeto
transformacional é um modo de dizer do trabalho da revêrie materna de
Bion, e das múltiplas experiências ontológicas proporcionadas pela mãe boa
o suficiente de Winnicott... enfim, um psicanalista criando na tradição...
Amnéris Maroni: Não é raro substituir a experiência por uma espécie de
esgrima conceitual! Sai desesperada da Universidade por que lá a esgrima
conceitual é a regra básica. Isso tudo afetou tanto Foucault que escreveu
sobre a “morte do autor” na modernidade, dito de forma simples, o autor
tem que citar todos e tantos para formular um pensamento que Foucault
insistiu na sua morte. O autor morreu. Que a universidade goste e se
alimente disso compreendemos, se não fosse a esgrima conceitual a maioria
dos doutores/ autores não teriam o que fazer na vida — nem os pareceristas
da FAPESP/CNPQ etc., Mas, pensava eu, na psicanálise o que conta é a
experiência! não é a esgrima conceitual! Bem ingenuamente, reconheço,
pensava isso porque a(s) psicanálise(s) também podem ser e, ousaria dizer,
em geral é/são, um grande matadouro da experiência e da própria escuta,
principalmente quando “aplica-se” psicanálise nos consultórios e todos os
defensores de escolas o fazem. Pois é, tudo isso para dizer, que quando se
trata de Christopher Bollas é simplesmente de praxe, esvaziá-lo de potência
e a forma como isso é feito é lembrando incansavelmente a tradição
psicanalítica: ele é um bom herdeiro, tem a importância do herdeiro... E,
assim, como insistiu Foucault, o autor é morto. Com isso se esvazia também
— não é sempre — a potência de um autor, sua criatividade, sua doação
para o mundo...vamos brincar pelo avesso: alguém já chegou para um
professor e psicanalista freudiano e para uma plateia freudiana e ousou dizer
que o conceito de inconsciente era o conceito mais usual e corriqueiro na
segunda metade do século XIX e esperou para ver o que acontece? Inclusive
com pesquisas empíricas em torno do inconsciente, como foi o caso de Carl
Gustav Karus? Já fiz isso e fui muito mal recebida, pois a Freud está
destinado um “novo começo” radical. Para freudianos essa lembrança não é
bem-vinda. Aí, não é de bom tom lembrar que quase e em todas as áreas não
criamos nada mas retomamos o que a tradição nos legou! Também não vejo
a esgrima conceitual quando se trata de Winnicott e de Klein... Quando se
fala na importância desses autores, na sua — deles — fertilidade e potência
a insistência na tradição não os esvazia. Só alguns autores na psicanálise são
esvaziados de sentido e de potência em nome da tradição psicanalítica,
Bollas é um deles. Esse é um dos meus temas de pesquisa e então voltarei a
ele: por que Christopher Bollas incomoda tanto as demais “escolas” de
psicanálise; por que precisa ser esvaziado e transformado em herdeiro
inofensivo?!
MVera Lucia: Nossa Amnéris, agradeço profundamente, de coração, você
colocar tão bem e claramente o que tanto me inquietava. É isto, inquietava-
me a insistência do esvaziamento e não reconhecimento de um autor com
tamanho potencial, original, criativo e livre. Mas que não segue a trilha da
tradição, ousa da forma nova. E isto incomoda muita gente! E o que tentam
fazer é esvazia-lo. Mas ele segue firme nos presenteando com pérolas!
Tales Ab’Sáber: Amnéris, você ama muito Bollas, um mestre de
psicanálise, que, como Winnicott já fez quarenta anos antes, não entende a
psicanálise como um espaço de escolas, propriedades e pais totens de
grupos. A psicanálise é realmente maravilhosa, nos proporciona tanto saber,
e tantas experiências intelectuais e humanas da maior qualidade. Não vejo
porque, aliás como Bollas, jogarmos fora a sua riquíssima história
conceitual e humana. Isso nada tem a ver com esgrima conceitual. A não ser
que queiramos esgrimir, o que pode ser divertido também.
MVera Lucia: Deve ser mesmo muito “divertido” o exercício de tentar
esvaziar o autor, se não por qual outro motivo alguém o faria?
Tales Ab’Sáber: Temos nossos autores de predileção na rica vida teórica e
humana da psicanálise. Eles correspondem a algo especial de nós mesmos.
E há quem ame mais esse autor, ou aquele, do que a própria história da
disciplina. E há quem ame mais a psicanálise como ciência do que o vínculo
amoroso com este ou com aquele pensador psicanalítico. O próprio Bollas,
um pós-winnicottiano contemporâneo, ama mais a psicanálise do que o
vínculo com um grande mestre, que explica tudo. Esse é o impulso que
acaba criando tipos de territórios ao redor de um centro incandescentes de
sentido, um mestre, etc... Não entendo que reconhecer a inscrição e o uso
que um psicanalista faz da história teórica da psicanálise seja esvazia-lo.
Acho notável a presença de teoria psicanalítica dos anos 1920, de Freud e
Klein, na passagem trazida pela Amnéris para pensar o fascismo, e hoje.
Reconhecer isso não é esvaziar Bollas, mas é não esvaziar a história da
psicanálise. Nem Freud, nem Klein. Pessoalmente tenho visão diferente de
Bollas de vocês, e aqui acontece uma confusão de línguas — Ferenczi —
típica das resistências internas da psicanálise a si própria. Todos os
elementos tão bem descritos da face estética do self — como diz o Gilberto
— por Bollas eu aprendi, antes de lê-lo, com Winnicott e Khan, que o
antecederam historicamente nessa dimensão fundamental da vida humana.
Não posso mentir para mim mesmo a respeito porque vocês amam muito o
modo de Bollas dizer este ponto do campo winnicottiano. Para mim,
diferente de para vocês, ele é um grande mestre, e não um pensador de
fundo, um inventor radical, de raiz, de psicanálise. Tudo bem, são posições
diferentes nos sentidos múltiplos da vida da psicanálise contemporânea.
Essa conversa pode ser rica e divertida, ou uma esgrima, esportiva ou
mortal. Isso depende mais de nossas paixões do que dos pensamentos
demonstrados de uma ciência, mesmo que ela seja a psicanálise, em que
razão e desejos tem vínculo. O que mais me interessa em Bollas é sua
tentativa de uma teoria do fluxo do si mesmo, das modulações entre mundo
interno e objetos externos e culturais, onde existimos em movimento e
surpresa. Naquela fenomenologia misteriosa do self ele tocou algo que me
parece muito vivo e novo, em Being a Character. Enfim, como disse, um
mestre. Mas que não pode, nem quer, ser lido de nenhum modo sem Freud,
Klein, Bion, Winnicott e Khan. Essa continuidade criativa me alegra em
psicanálise. Vocês sentem como esvaziar e negar um autor, mundialmente
reconhecido, que não precisa de mim de nenhum modo para ser o que
verdadeiramente é. Obrigado pela oportunidade de esclarecer minimamente
estes pontos.
MVera Lucia: Concordo, temos nossos autores de predileção, que bom que
os temos. Mas discordo que se ame mais o autor que sua teoria, ou a história
da disciplina. A começar pela medida, penso que amamos de forma
diferente os diversos autores, e não os concebo separados de suas teorias a
respeito das disciplinas sobre as quais escrevem. E não vejo como amar algo
pelo seu valor científico sem que se passe pela experiência e pela afetação.
Penso que para apropriar de determinado autor é preciso passar por aquilo
que nos afeta enquanto leitores, estudiosos. Bollas é um pensador
contemporâneo que defende o pluralismo teórico por acreditar que as teorias
são formas de percepção e não apenas maneiras de pensar, que precisamos
de todos os conceitos teóricos porque cada um deles permite perceber os
fenômenos de uma maneira singular, distinta. Mas, após familiarizados com
uma determinada teoria, devemos mantê-la no fundo da mente e não nos
deixarmos controlar por preconcepções relacionadas a modelos. Isto talvez
baste para valorizar a influência por ele recebida de tantos autores,
psicanalistas e não psicanalistas (visto que contrariando as regras da IPA
não segue a tradição, vem de áreas inconcebíveis para tornar-se um
psicanalista, talvez uma das razões porque causa tanto incômodo). Mas
também para reconhecer o que lhe é próprio, Bollas precisou também de sua
vasta experiência clínica e pessoal, (aqui vale lembrar um relato de uma
experiência de sua pré-adolescência. Que ilustra seu conceito de experiência
estética. Bollas conta que em certa ocasião, com 11 anos, nadando em uma
praia da Califórnia, uma baleia aproximou-se dele causando-lhe profundo
mal-estar, o que mais tarde, ao escrever sua tese de doutorado sobre Moby
Dick, ele relacionou a uma experiência anterior, com 9 anos, quando
furando uma onda chocou-se com o corpo inchado de uma mulher morta, o
que o levou a pensar a escolha do tema como sendo uma escolha intuitiva
com os fins de elaborar tal experiência. Segundo relata, o romance de
Herman Melville lhe permitiu elaborações, permitiu “ser sonhado” por ele,
movimentar elementos de seu idioma pessoal, diz ele: “selecionei um objeto
que poderia usar para me envolver num trabalho inconsciente profundo, um
esforço que me possibilitaria experimentar e articular algo do meu self”
(Sendo um personagem, 1998, p. 42)) para fazer um percurso criativo de
retomada e apropriação da teoria psicanalítica conforme seu próprio idioma,
e criar uma metapsicologia que ofereça um modelo diferenciado, que amplia
e enriquece o arcabouço teórico e técnico da psicanálise.
Tales Ab’Sáber: Sim. Muito bom e bonito o trabalho desse grande
psicanalista. O que não impede de “ser sonhado por um objeto” ser
exatamente a dimensão constitutiva de um “fenômeno transicional”, ali onde
ele se radica junto ao sonho. E, Bollas sabe perfeitamente dessa sua
inscrição reinvenção da tradição. Que sejamos sonhados, de acordo com o
que possamos conceber, e ser concebidos, na psicanálise.
MVera Lucia: Ser sonhado por um objeto pode ser muitas coisas de acordo
com o ponto de vista e abordagem de cada autor, e para Winnicott com
certeza é a dimensão constitutiva de um fenômeno transicional. Já para
Bollas, o encontro com os objetos convoca a uma metamorfose da estrutura
dos objetos e permite movimentar elementos do idioma pessoal, que são
transformados pela estrutura da experiência. Para Bollas a experiência com
o objeto é um novo nascimento, que modifica a história e sua estrutura.
Amnéris Maroni: Essa discussão é boa mesmo! Não é o caso do Tales não,
já deixo claro. Mas tenho encontrado greenianos, winnicottianos que está na
cara não entenderam nada do Bollas, falam besteiras mesmo a respeito dele
para melhor desqualificá-lo, rapidamente aliás. É bem esquisito tudo isso. Já
estou bem treinada na psicanálise com isso. Afinal estudei Carl Gustav
Jung, o grande nome e o grande desafeto da psicanálise e só eu sei e mais
ninguém o tratamento que recebi, a hostilidade de que fui vítima, quando
demonstrei um vínculo afetivo, que aliás mantenho, com um desafeto da
grande corrente da psicanálise. Seus membros são e foram cruéis com Jung
e com quem demonstra um pensamento próximo a Jung. Está mais do que
na hora, Tales, de a grande corrente do pensamento psicanalítico fazer
autocrítica. Está na hora de parar de vangloriar-se e recolher os mortos e
enlutar. Está na hora de a grande corrente da psicanálise abrir-se para o
século XXI, produzir algum pensamento crítico em torno da catástrofe
planetária que, também ela, a psicanálise, ajudou a criar, na medida que
sempre insistiu em universalizar o homem branco, europeu e a família
burguesa — tudo em nome da ciência... europeia, claro! Está na hora de
fazer autocrítica, Tales, e perder tempo com o que de fato importa... Mas,
não tenho esperança em relação à “grande corrente do pensamento
psicanalítico”, mas tenho esperanças em você, caro Tales... Está na hora de
arregaçar as mangas e fazer algo diferente, diferente da defesa da
psicanálise, pois ela não está em perigo, ela se pôs em perigo porque é
arrogante e não se deixa AFETAR pelos demais saberes...
Há uma diferença para mim muito grande entre Bollas e todos os grandes
nomes da psicanálise: ele me AFETA e se deixa AFETAR. Não sou boba
nem nada e o Tales sabe bem disso, li os grandes nomes da psicanálise e
aprendi muito com todos eles. Nenhum deles me AFETOU. Nenhum deles,
e eu preciso ser AFETADA. Esse é o grande mérito que Bollas tem para
mim: ele me AFETOU e movimentou meu idioma pessoal como nenhum
outro grande e radical inventor da psicanálise o fez — nem mesmo Jung se
me permitem colocá-lo nessa corrente, por um momento. Esse poder de
AFETAÇÃO é o que distingue Bollas dos demais psicanalistas, para mim...
E, por isso, dissecá-lo para ver de onde vem os seus conceitos, logo de
cara... Bollas diz algo e aí lá vem um “sabido” mostrar que seus conceitos
são herdados. Isso é sim esvaziá-lo, Tales. Pode ser divertido, mas não me
interessa porque o que importa é o poder de AFETAÇÃO. E Bollas que
acho nunca leu Espinosa, é o espinosano da psicanálise. Isso não é pouco! E
isso para mim é uma diferença radical... pois abre a psicanálise e seus
membros para outros saberes por exemplo. É disso que estamos
sedentamente precisando: ser AFETADOS!
Tales Ab’Sáber: Amnéris, pois então, Freud, Ferenczi, DWW, Khan e Bion
me afetam mais, cada um ao seu modo, do que Bollas. Não há nada que
possa me afetar tanto do que uma sessão de uma hora de DWW, brincando e
desenhando com uma criança, falando dos próprios sonhos, sobre os Beatles
e sobre os riscos da mágica que trazemos em nós, que salva a vida de uma
criança doente, de um modo belo e simples como um acontecimento da
própria vida. Ainda bem que Bollas, e outros prosseguiram esse saber vivo,
saber vida, que foi inventado, criado ou descoberto por Winnicott desde as
suas leituras de Freud — “a quem devemos tudo”, segundo ele — e de
Melanie Klein — “a maior das psicanalistas”, nas suas palavras. Ainda bem
que a afetação da experiência da psicanálise não se estanca, aqui ou ali. Um
beijo Amnéris.
Amnéris Maroni: Tales, viva o pluralismo teórico! Abaixo as “escolas” de
psicanálise...Viva a liberdade de pensar que as “escolas” recusam. Viva a
alegria de afetar e abaixo a esgrima conceitual.
MVera Lucia: Uau! Que gostoso Amnéris! Que delicia é ler você, é ser
prazerosamente afetada não somente pelo que você diz, mas pela forma
maestrina de colocar as palavras e me fazer representada. E logo pela
manhã, abrindo o dia é um verdadeiro encontro estético. Pegando
emprestado uma frase muito usada por uma pessoa maravilhosa que tanto
quanto o Bollas sabe afetar e ser afetada, eu digo que “fico de joelhos”!
Gosto muito do que em geral escreve, fala o Tales, acompanho-o por aí e o
admiro profundamente, também por sua posição política e suas intervenções
sociais. Mas particularmente aqui, ao falar de Bollas penso que ele peca, e
resgata uma postura muitas vezes arrogante sim, da tradição psicanalítica
escolar, que por excessiva doutrinação mata seus próprios autores. Bollas
defende o pluralismo teórico e isto já é um grande diferencial. Mas sou
tocada pela forma, lê-lo, estudá-lo é uma experiência corporal. E é disto que
se trata, os encontros com objetos transformacionais, são experiências
estéticas que tocam o idioma e metamorfoseia.
Bernardo Lewgoy: Amei seu texto Amnéris Maroni. Gostaria de ler esse
autor.
Amnéris Maroni: Leia Bernardo! Sendo um Personagem foi traduzido para
o português é de leitura fácil e tem artigos extraordinários, entre eles, um
sobre a consciência generacional e os objetos generacionais. Bollas estudou
literatura e história antes de se formar em psicanálise e isso faz toda a
diferença...
Milson Santos: Que belo! Hoje soube, com imenso pesar, de mais um
amigo que confessa sua intenção de votar em Bolsonaro. É assustador! Por
trás do desejo dele, justifica: “tem que ferrar os bandidos mesmo”. São essas
pessoas que colocarão Bolsopsicopata lá.
Amnéris Maroni: Vamos nos esforçar para que isso não aconteça, pois
seria uma gigantesca catástrofe coletiva...
Milson Santos: Amnéris Maroni com certeza. Penso que precisaremos,
próximo às eleições, unir esforços para ações concretas em São Paulo.
Amnéris Maroni: Precisamos montar, Milson, uma frente de esquerda da
área psi! Fazer uma página no Facebook e comparecer com uma cara, a
nossa, nas manifestações. Tem um monte de psicólogos, área psi, que não se
sentem representados pelos Psicanalistas pela Democracia, mas que fariam
parte de uma outra Frente Ampla de Esquerda, a nossa. Preciso quem me
ajude, conversei com algumas pessoas que acharam bárbara a idéia, mas não
tenho tempo para tudo e isso neste momento é muito importante...
Milson Santos: Eu topo ações concretas. Performances. Pichos. Faixas.
Mãos na massa. Paulista de domingo: cheia de coxinhas e isentões...
Precisamos ocupar aquilo ali
Tales Ab’Sáber: Essas pessoas fazem uma transfiguração e um pacto
profundo com o mal. A sua questão é de mágica, e do próprio direito ao
mal. Sabe, quando se pede na macumba que um Exu dê conta de um
inimigo, e se torna o próprio mal? Ou crianças muito pequenas, que
acreditam de modo simples e maniqueísta no Batman, na Polícia ou no
Bombeiro, para matar os bandidos? Pela perspectiva da conversão mágica
ao mal, ou infantil a justiça maniqueísta, a questão é que condições da crise
profunda contemporânea — uma crise mundial do capitalismo — produz
essas espetaculares regressões como tentativa de defesa e salvação. E que o
psiquismo é múltiplo e tem múltiplas faces abertas a história.
Daniel Omar Perez: Excelente reflexão. Obrigado pela referência. Vou
procurar para compreender melhor. Identidades individuais e coletivas é
parte do meu tema de pesquisa.

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