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Amnéris Maroni[1]
Repensar essa separação que dávamos como certa é a condição, a meu ver, para
sobrevivermos à crise iminente que está no nosso calcanhar e que nós, alegremente, ainda
não percebemos: a crise ecológica e de valores. E isso porque sair do altar antropocêntrico
da alma nos é exigido neste momento. Temos que fazer conexões com outros entes,
distantes, partes de Gaia, Gaia viva.
Pois é, Christopher Bollas repensa essa separação — essa fronteira — e põe em diálogo
interativo esses dois mundos, o interno e o externo. D. Winnicott já tinha sim dado o
primeiro passo, tímido passo, pois ainda dava primazia ao sujeito, um sujeito autônomo e
que ganha essa autonomia através dos objetos transicionais. Bollas então ressoa Winnicott,
mas a relação que estabelece é muito outra, pois, para ele, existe uma espécie de
inteligência vital ligando os dois mundos, já que o desdobrar do self verdadeiro seleciona
objetos externos para ser elaborado, vir a ser, devir.
Bollas faz uma crítica radical às “relações de objeto” que, sabemos, é assumida por todas as
escolas de psicanálise sem exceção — principalmente a kleiniana. Essas escolas fizeram dos
objetos externos, do mundo, da materialidade do mundo, containers para as projeções
inconscientes do mal — também do bem — dos nossos objetos internos. E, exatamente por
isso, a psicanálise nos aprisionou em nós mesmos! Bollas repensa isso. Diz ele: o que
importa não são os objetos como containers, mas as estruturas dos objetos. O diálogo está
aberto com a materialidade do mundo; o mundo interno está selecionando e interagindo com
os objetos externos que deixam/deixaram de ser depósitos das nossas projeções. Querem
um exemplo? Um paciente — ou você mesmo leitor — começa a se impressionar com uma
pintura de jaguar, lê sobre jaguar, pensa no jaguar. O jaguar se torna o objeto externo que
de alguma forma diz algo sobre você: a estrutura desse objeto externo conversa com
o self verdadeiro, com o seu fingerprint querendo se desdobrar. Como a psicanálise clássica
nos ensina a ler o jaguar? É uma parte nossa, pois só “sonhamos” conosco mesmo,
aprisionados que estamos “no dentro”: é nossa raiva, é nossa força, nossa agressividade.
Como a teoria de Bollas nos permitiria ler essa aproximação com o jaguar?
Nosso self verdadeiro — nosso fingerprint — está em devir com o jaguar; jaguar é o nosso
novo objeto transformacional! Foi exatamente isso o que aconteceu entre Bollas e a baleia
Moby Dick, a baleia o arrastou e permitiu a elaboração de um novo aspecto do seu — do
Bollas — self verdadeiro!
Christopher Bollas em relação a esse diálogo entre o mundo interno e o mundo externo está
mais para Davi Kopenawa em A queda do Céu, do que para S. Freud! Com Bollas dizemos
não ao aprisionamento da alma e lemos o interno e o externo, o dentro e o fora, como
mundos em interação criativa, em dialogo, em devir.
Bollas é conhecido no Brasil e tem vários livros publicados, mas faltava para melhor
compreendê-lo algo que ele mesmo não fez: uma metapsicologia. Coube a Sarah desenhá-
la, sem traí-lo, e digo isso por que o livro é um mapa para consulta dos diversos jogos
conceituais bollasianos, sem, todavia, avançar (concluir e/ou legislar) mais que o autor.
Bollas já delineara todos os pontos, enlaces, perguntas e a Sarah coube, com sensibilidade,
resgatá-los e dar-lhes uma certa coerência — “certa” porque afinal Bollas é pluralista.