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Desdobramento do Self/Destino e Jouissance

Amnéris Maroni[1]

O livro de Sarah Nettleton, supervisionanda e assistente de Christopher Bollas acaba de ser


publicado no Brasil, pela editora Escuta: A Metapsicologia de Christopher Bollas: Uma
introdução. A tradução impecável é de Liracio Jr.
Em seus livros, Bollas, e também Sarah, estão sempre a insistir o que compreendem por
metapsicologia (desdobramento do idioma pessoal, do fingerprint, do self verdadeiro, que dá
a quem assim vive, uma destinação, acompanhada de jouissance). A singularidade do ser-
homem é a chave de Bollas. Ora, cá e lá, desenvolvemos fixações — fixações na mãe — e
então distúrbios de caráter (histeria/psicose/ esquizofrenia/narcisismo/ borderline/autismo
etc.). Essas fixações, as conhecidas psicopatologias, demandam psicanálise e, dificilmente,
haverá cura sem essa prática. Sair da fixação é condição para retomarmos o desdobramento
do self.
Estudo Christopher Bollas há muitos anos e compreendi, agora também com a ajuda de
Sarah, alguns pontos que fazem dele uma voz própria na psicanálise contemporânea. Cito
três desses pontos: o inconsciente receptivo, a relação fecunda entre mundo interno e
mundo externo e o pluralismo teórico

1. Inconsciente recalcado e/ou inconsciente receptivo


A base da metapsicologia bollasiana é o inconsciente receptivo e todos os conceitos que lhe
são afins: idioma pessoal/fingerprint/self verdadeiro, objeto transformacional, interação
entre mundo interno e mundo externo. Bollas não se contrapõe a S. Freud e ao inconsciente
recalcado — base da metapsicologia freudiana! E, todavia, constrói uma teoria ancorada não
no recalcado, mas no receptivo. Que diabos é isso?
A metapsicologia de Bollas, cujo principal conceito é o inconsciente receptivo, emerge dos
infinitos encontros existenciais da mãe e do pai e do bebê: esses encontros são a base do
inconsciente pensado por Bollas. Claro está que algo antecede
— idioma pessoal/ fingerprints/ estéticas próprias de cada um dos parceiros — esses infinitos
encontros entre pai-mãe-bebê, e algumas passagens de Bollas sugerem-nos encontros entre
todos os entes do planeta terra. Aparecemos e brilhamos no mundo a partir da nossa
potência, do nosso idiomapessoal que antecedem os encontros, as experiências no mundo.
Mas cadê as pulsões? Cadê o Id? Cadê a guerra entre Eros e Tânatos, entre o amor e a
morte? Fiquem calmos, pois Bollas não joga isso fora não e nem poderia. O idioma pessoal/
o figerprint/ a potência que nos constitui é quem seleciona no caldeirão de pulsões — que é o
Id — o que lhe convém; uma espécie de inteligência vital está em curso. O mundo vira com
Bollas de cabeça para baixo!
O inconsciente receptivo organiza o sentido do que vai acontecendo nos encontros
pragmáticos entre pai/mãe/bebê/família, numa espécie de associação de “pontos nodais”, os
que tem a mesma forma, a mesma estética emocional, se juntam nessas constelações que
Bollas chamará de genera, processos generativos e imensamente criativos. Cá e lá
os genera liberam novas possibilidades existenciais e essas novas perspectivas pôr-se-ão,
através da inteligência vital que nos constitui, a enredar objetos externos — dispositivos
culturais — para se elaborarem, para se dizerem, em um enlace único entre mundo interno e
mundo externo, em devires.
Dá muita vontade de festejar e dizer: viva Davi Kopenawa, viva Christopher Bollas. Através
deles encontramos saídas culturais, de um mundo se fazendo em rede — tanto interna como
externamente.

1. Interação do mundo interno e do mundo externo


Bollas, com certeza, pertence à tradição psicanalítica e, todavia, emerge com um idioma
próprio nessa tradição. A relação fecunda entre mundo interno e mundo externo dá-lhe esse
lugar!

Os séculos XIX e XX nos aprisionaram no “mundo interno”: românticos, místicos e a própria


psicanálise, nas suas múltiplas escolas, nos convocaram para o “mundo interno” e a
compreensão desse mundo nos seus mais delicados meandros: em especial as fronteiras
entre mundos. Dentro e fora foram trabalhados e cuidadosamente separados. Foram tão
eficazes que, hoje, estamos sufocados, completamente aprisionados no “mundo interno”, no
“mundo da alma”.

Repensar essa separação que dávamos como certa é a condição, a meu ver, para
sobrevivermos à crise iminente que está no nosso calcanhar e que nós, alegremente, ainda
não percebemos: a crise ecológica e de valores. E isso porque sair do altar antropocêntrico
da alma nos é exigido neste momento. Temos que fazer conexões com outros entes,
distantes, partes de Gaia, Gaia viva.

Pois é, Christopher Bollas repensa essa separação — essa fronteira — e põe em diálogo
interativo esses dois mundos, o interno e o externo. D. Winnicott já tinha sim dado o
primeiro passo, tímido passo, pois ainda dava primazia ao sujeito, um sujeito autônomo e
que ganha essa autonomia através dos objetos transicionais. Bollas então ressoa Winnicott,
mas a relação que estabelece é muito outra, pois, para ele, existe uma espécie de
inteligência vital ligando os dois mundos, já que o desdobrar do self verdadeiro seleciona
objetos externos para ser elaborado, vir a ser, devir.
Bollas faz uma crítica radical às “relações de objeto” que, sabemos, é assumida por todas as
escolas de psicanálise sem exceção — principalmente a kleiniana. Essas escolas fizeram dos
objetos externos, do mundo, da materialidade do mundo, containers para as projeções
inconscientes do mal — também do bem — dos nossos objetos internos. E, exatamente por
isso, a psicanálise nos aprisionou em nós mesmos! Bollas repensa isso. Diz ele: o que
importa não são os objetos como containers, mas as estruturas dos objetos. O diálogo está
aberto com a materialidade do mundo; o mundo interno está selecionando e interagindo com
os objetos externos que deixam/deixaram de ser depósitos das nossas projeções. Querem
um exemplo? Um paciente — ou você mesmo leitor — começa a se impressionar com uma
pintura de jaguar, lê sobre jaguar, pensa no jaguar. O jaguar se torna o objeto externo que
de alguma forma diz algo sobre você: a estrutura desse objeto externo conversa com
o self verdadeiro, com o seu fingerprint querendo se desdobrar. Como a psicanálise clássica
nos ensina a ler o jaguar? É uma parte nossa, pois só “sonhamos” conosco mesmo,
aprisionados que estamos “no dentro”: é nossa raiva, é nossa força, nossa agressividade.
Como a teoria de Bollas nos permitiria ler essa aproximação com o jaguar?
Nosso self verdadeiro — nosso fingerprint — está em devir com o jaguar; jaguar é o nosso
novo objeto transformacional! Foi exatamente isso o que aconteceu entre Bollas e a baleia
Moby Dick, a baleia o arrastou e permitiu a elaboração de um novo aspecto do seu — do
Bollas — self verdadeiro!
Christopher Bollas em relação a esse diálogo entre o mundo interno e o mundo externo está
mais para Davi Kopenawa em A queda do Céu, do que para S. Freud! Com Bollas dizemos
não ao aprisionamento da alma e lemos o interno e o externo, o dentro e o fora, como
mundos em interação criativa, em dialogo, em devir.
Bollas é conhecido no Brasil e tem vários livros publicados, mas faltava para melhor
compreendê-lo algo que ele mesmo não fez: uma metapsicologia. Coube a Sarah desenhá-
la, sem traí-lo, e digo isso por que o livro é um mapa para consulta dos diversos jogos
conceituais bollasianos, sem, todavia, avançar (concluir e/ou legislar) mais que o autor.
Bollas já delineara todos os pontos, enlaces, perguntas e a Sarah coube, com sensibilidade,
resgatá-los e dar-lhes uma certa coerência — “certa” porque afinal Bollas é pluralista.

III. Pluralismo teórico


Em 1989, Christopher Bollas, em uma entrevista para a Revista Percurso, do Sedes
Sapientiae, abraçava o “pluralismo teórico” na psicanálise. Dizia ele, que a formação do
analista deveria contemplar as várias escolas de psicanálise (S. Freud, J. Lacan, M. Klein, D.
Winnicott, W. R. Bion, H. Kohut etc.) e os seus principais comentadores. Ora perguntei-me,
então: o que fazer com essas várias ontologias no consultório? Como trabalhar com elas?
Recorri a uma formulação do próprio Bollas para responder essa questão, refiro-me àquela
do “conhecido não pensado” — subtítulo do livro seminal chamado A Sombra do Objeto. O
par analítico transformava o que era muito conhecido — no paciente — em algo pensado.
Vale dizer, tinha sentido a formulação do pluralismo teórico na medida em que as várias
escolas de psicanálise nos permitiam pensar melhor com o paciente/cliente suas questões.
Passados alguns anos — e depois de ter lido outros livros do autor — tive outra compreensão
bem mais sofisticada do pluralismo teórico. Em Forças do Destino, Bollas afirma que
interpretação não é sinônimo de insight e o que lhe interessa são os insights do analista e do
analisando. Com isso Bollas queria dizer que as ofertas do analista deveriam se constituir em
objetos para o paciente apreender algo em si. Cito-o: “As várias escolas de psicanálise dão
ênfase a diferentes características da vida mental e, proporcionam ao paciente objetos
analíticos diferentes. Daí o pluralismo se fazer necessário… O paciente evocará
inconscientemente diferentes partes da personalidade do analista para desempenhar funções
específicas. Precisamos de uma “teoria das relações do sujeito” que reconheça o idioma
único de cada pessoa…” Rendi-me a essa “fala”: o que importa é o paciente, o idioma do
paciente, sua singularidade, não a escola de psicanálise e suas verdades! Foi uma
compreensão redentora e eu disse “sim!” ao pluralismo teórico.
Mas a “vida não para” — parafraseando Cazuza! — e Bollas também não. Um terceiro
momento da sua obra me permitiu ressignificar ainda uma vez o porquê de uma formação
plural do analista e o que fazer com essa pluralidade no consultório. Nessa fase mais tardia,
Bollas fez um interessante “retorno a Freud” — no livro O Momento Freudiano. Retomou
como linha central da psicanálise a livre associação (ou, como ele diz em alguns momentos,
a conversa livre) para o paciente e a atenção suspensa para o analista. Neste terceiro
momento o que conta é o pensamento inconsciente de ambos (analista e analisando) e o
desenvolvimento de skills inconscientes, os famosos genera: um brotar incessante de
possibilidades criativas nos parceiros analíticos. Aliás, essa criatividade inconsciente —
através de inúmeros skills — é o objetivo da psicanálise bollasiana.
O livro de Sarah Nettleton permitiu-me compreender melhor essas passagens, peças chaves
do pensamento bollasiano.

[1] Sou professora doutora da UNICAMP, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,


Departamento de antropologia. Sou também psicanalista, no bairro de Pinheiros.

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