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As contribuições de Jung para os sentimentos e as emoções

James Hillman

Traduzido por Flora Schroeder Garcia

Na virada do século, quando Jung começou a escrever sobre psicologia, não


havia distinção clara entre os vários componentes que haviam sido agrupados na —
ou descartados da — caixa denominada “faculdade afetiva”. Desde a época do
Iluminismo na Alemanha (escritores do século XVIII como Moses Mendelssohn, J.N.
Tetens e Kant), a alma havia sido dividida em três partes: o pensamento (“thinking”),
a disposição (“willing”) e o sentimento (“feeling”) — as faculdades cognitiva, conativa
e afetiva. Na faculdade afetiva, foi colocado tudo que não coube no pensamento e na
disposição. Então, ela envolveu desejos, ímpetos e impulsos, assim como intuições,
instintos, humores, sensações e, evidentemente, sentimentos, emoções, afetos,
paixões. Diferentes psicólogos em diferentes épocas resgatariam uma ou outra peça
da faculdade afetiva, como a sensação ou o impulso, incorporando-a no sistema do
pensamento ou no sistema da disposição. Porém, fundamentalmente, essa terceira
região da psique, assim como a terceira classe de homens de Platão, era considerada
inferior. O modelo a partir do qual foi concebida ecoava a antiga divisão trinária da
alma, cujo aspecto mais baixo era associado ao que estava localizado abaixo do
diafragma, especialmente o fígado. Além disso, essa velha bruxa — o sentimento —
opunha-se sempre ao pensamento ou, como Mendelssohn disse no começo da
divisão tripartite moderna, “Nós não mais sentimos assim que pensamos.” Aliás, a
oposição entre o pensamento e o sentimento ainda pode ser encontrada na psicologia
cientificista sem coração e na psicologia romântica sem cabeça. Também Jung, como
veremos, apresenta o pensamento e o sentimento enquanto funções opostas. No
entanto, a psicologia de Jung, cujo objetivo geral é a união dos opostos na alma, não
se apoia na cisão entre cabeça e coração.

Teorias modernas do sentimento

A falta de diferenciação ao conceituar a faculdade afetiva e as funções dessa


trai uma falta de experiência diferenciada desses processos na psiquê coletiva do
homem ocidental do século XIX, que, afinal de contas, está simplesmente
1
descrevendo a si mesmo, pintando seu próprio autorretrato, em suas teorias. É como
se o sentimento e a emoção houvessem perdido contato com a consciência ou
houvessem caído no inconsciente. Portanto, não surpreende que a diferenciação mais
aguda entre o sentimento e a emoção tenha sido feita pelos psiquiatras em suas
investigações do inconsciente e em suas descrições da psicopatologia. A invenção
dessa linguagem, principalmente em clínicas e em hospícios ao longo do século XIX,
envolveu uma ampla gama de paixões da alma; porém, a partir do seu lado contrário,
anormal, inconsciente. Enquanto a psicologia acadêmica do século XIX fazia
observações agudas em relação aos processos do pensamento, da sensação, da
percepção e da memória, o sentimento e a emoção eram ainda em grande parte
mantidos em uma gaveta. Alguns psicólogos, principalmente alemães (Lersch,
Bollnow, Krueger)1 acreditavam que essa gaveta deveria permanecer fechada. O
âmbito afetivo pertenceria ao interior, às profundezas da pessoa. Abri-lo ao
pensamento mataria o próprio objeto de observação. “Nós não mais sentimos assim
que pensamos.” Em outras palavras, havia, no século XIX, um problema de
sentimento e de emoção não somente acadêmico como conceitual. O problema
conceitual expressa um problema psicológico, um problema de sentimento da alma
humana. É um problema que não solucionamos até hoje.

A função sentimento de Jung

Jung separou claramente o sentimento de outros processos afetivos e, assim,


ajudou a restabelecê-lo. Em seu Psychologische Typen (1921), definiu o sentimento
como uma função distinta da consciência, colocando-o ao par com o pensamento.
Retornaremos à sua definição do sentimento.
Jung deparou o papel do sentimento também experimentalmente. Suas
descrições iniciais do sentimento derivam dos experimentos de associação que criou
e realizou na primeira década do século. Nesses experimentos, às vezes encontrava
reações afetivas a palavras-estímulo, como “sim”, “mal”, “eu gosto”, em vez de
associações ideativas no sentido mais estrito. Essas reações afetivas julgavam a
palavra-estímulo, qualificavam-na com uma apreciação subjetiva e estabeleciam, por
meio da apreciação subjetiva, uma conexão entre o indivíduo e o estímulo.

1
Ver James Hillman, Emotion: A Comprehensive Phenomenology of Theories and Their Meanings for
Therapy (Londres: Routledge & Kegan Paul, 1960), capítulo 9, para exemplos.

2
Em uma tentativa de reconhecer plenamente essas reações afetivas, ele
começou a formular sua teoria dos tipos em um artigo lido no Congresso Psicanalítico,
em Munique, em 1913. Nessa primeira formulação, delineou uma divisão básica entre,
de um lado, o pensamento, a introversão e a dementia praecox e, de outro, o
sentimento, a extroversão e a histeria.2 Essa simplificação foi completamente
transformada em sua elaboração final sobre o sentimento, como aparece na
importante obra de 1921, publicada em inglês em 1923 como Psychological Types.
Dessa obra, cito a essência da definição de sentimento de Jung:3

O sentimento é principalmente um processo que ocorre entre o ego e


um dado conteúdo, um processo, além disso, que transmite ao
conteúdo um valor definido no sentido de aceitação ou de rejeição
(“gostar” ou “desgostar”); mas também pode aparecer, por assim dizer,
isolado na forma de humor, bastante afastado do conteúdo
momentâneo da consciência ou das sensações momentâneas.
... o sentimento é uma espécie de julgamento, diferindo, contudo,
de um julgamento intelectual no sentido de que não objetiva
estabelecer uma conexão intelectual, e sim preocupa-se somente em
estabelecer um critério subjetivo de aceitação ou de rejeição. A
avaliação pelo sentimento estende-se a todo conteúdo da consciência,
de qualquer tipo que seja. Quando a intensidade de sentimento é
aumentada, resulta um afeto, que é um estado de sentimento
acompanhado de suas inervações corporais notáveis.
... O sentimento, como o pensamento, é uma função racional,
uma vez que, como demonstrado pela experiência, valores, em geral,
são atribuídos de acordo com as leis da razão, assim como conceitos
em geral são emoldurados de acordo com as leis da razão.
Naturalmente, a essência do sentimento não é caracterizada
pela renúncia às definições: elas servem somente para expressar suas
manifestações externas. A capacidade conceitual do intelecto prova-
se incapaz de formular em termos abstratos a natureza real do
sentimento, uma vez que o pensamento pertence a uma categoria que
não possui unidade de medida em comum com o sentimento...
Quando a atitude total do indivíduo é orientada pela função do
sentimento, falamos de um tipo sentimento.

A função sentimento é o processo psicológico que avalia. Por meio da função


sentimento, compreendemos uma situação, uma pessoa, um objeto, um momento em
termos de valor. Um pré-requisito para o sentimento é, portanto, uma estrutura de
memória de sentimento, um conjunto de valores aos quais cada evento pode ser
relacionado. Enquanto um processo contínuo que dá ou que recebe tons sentimentais

2
C. G. Jung, Collected Papers on Analytical Psychology, ed. Constance E. Long (Londres: Baillière,
Tindall and Cox, 1916), 402.
3
C. G. Jung, Psychological Types or The Psychology of Individuation, trad. H. Godwyn Baynes (Nova
Iorque: Hartcourt, Brace & Co., 1923), 543-47; cf. CW6: 724-29.

3
— mesmo o tom sentimental da indiferença — a função sentimento conecta tanto o
“mim” subjetivo ao objeto, conferindo valor ou “importância” (cf. Whitehead), quanto o
objeto ao “mim” subjetivo, recebendo-o no sistema de valor subjetivo.4 O sentimento,
portanto, funciona como uma relação e é, frequentemente, chamado “a função do
relacionamento”. Por relacionar-nos, tem a ver com adaptação — extrovertidamente,
a um ambiente ou, introvertidamente, ao nosso milieu interne subjetivo. Por meio do
sentimento, o sujeito é relacionado ao objeto, aos conteúdos de sua psique enquanto
valores e à sua própria subjetividade enquanto um humor ou um tom sentimental geral.
Enquanto um processo, o sentimento requer tempo, mais tempo do que é
necessário para a percepção. Comporta-se do mesmo modo que o pensamento,
organizando racionalmente as percepções. É coerente, se não sistemático. A
habilidade de lidar com um problema ou de conversar com uma pessoa do modo
correto demonstra uma discriminação racional e uma adaptação ao que é necessário,
conduzindo a conclusões corretas. No entanto, a operação toda pode não ser
intelectual. Uma pessoa diz coisas diferentes a pessoas diferentes de acordo com os
valores da situação, com os requisitos da outra pessoa e com a própria psique objetiva
do modo como é sentida subjetivamente. Essas respostas a perguntas podem não
ser, no sentido da lógica, verdadeiras ou corretas, e, no entanto, no sentido do
sentimento, ser precisas. Quando uma criança pede uma explicação, uma resposta
pode ser dada a partir do pensamento ou do sentimento; às vezes, uma história que
responde à ansiedade da criança pode ser “mais verdadeira” do que uma explicação
intelectual sobre causas. Atingir verdadeiramente o alvo não significa dizer sempre a
verdade factual e lógica. Em terapia, um problema pode com frequência ser aliviado
pelos absurdos de uma anedota ou de uma parábola em vez de por uma perseguição
analítica incansável. Com frequência, um quadro geral harmonioso é mais importante
na resolução de um conflito do que a lógica ou os fatos. A função do sentimento, então,
cria uma situação na qual pontos de vista podem misturar-se razoavelmente ainda
que as questões lógicas e factuais em oposição possam não ter sido apaziguadas e
possam mesmo ter sido comprometidas. Uma pessoa pode estar irracionalmente em
desacordo com uma obrigação ou um compromisso exteriores, embora em sintonia
com seus valores e seus humores. Agir quando “sente que há algo errado” pode ser
mais destrutivo e irresponsável do que faltar ao compromisso. Ao acordarmos pela

4
A. N. Whitehead, Modes of Thought (New York: Macmillan, 1938).

4
manhã, o sentimento nos diz como as coisas vão conosco independentemente da
racionalidade externa do clima, da hora no relógio, dos deveres do dia, do estado do
corpo. Acima de tudo, o sentimento proporciona a ordem e a lógica do amor.
Consideremos a seguir algumas implicações.
Em primeiro lugar, o uso do termo sentimento feito por Jung difere nitidamente
de outros modos como “sentimento” é usado, como sentir certeza (“feeling certain”),
sentir algo no ar (“feeling something is in the air”), sentir que algo é suspeito, podre
(“feeling something is fishy, rotten”) — expressões que pertencem ao que Jung
denomina a função da intuição. Do mesmo modo, sentir-se confortável, exausto
(“feeling comfortable, exhausted”) ou sentir a textura de um tecido (“feeling the texture
of cloth”) referem-se à função da sensação. Em um ou outro indivíduo, em um ou outro
momento, o sentimento pode confundir-se com a intuição ou com a sensação, mas,
por definição, o sentimento é distinto da intuição e da sensação.
Em segundo lugar, o sentimento é uma função. Uma função (de fungor) atua,
performa, opera. Uma função é uma atividade, um processo que dura um período de
tempo. Tem consistência, continuidade e identidade. Como tal, pode ser uma função
da personalidade egóica. O sentimento é um instrumento pelo qual eventos ganham
forma e coloração, um instrumento com o qual avaliamos experiências. Temos o
sentimento nas mãos para utilizar: por meio da função sentimento, fazemos
julgamentos éticos e estéticos, desenvolvemos uma hierarquia de valores,
elaboramos modos e gostos, desenvolvemos relações íntimas e sociais,
experimentamos a vida religiosa.
Em terceiro lugar, o sentimento como função difere dos sentimentos como
conteúdos. A distinção entre a função sentimento e os sentimentos tem grande
importância e grandes implicações na obra de Jung. A função sentimento pode avaliar
pensamentos, objetos, conteúdos psíquicos ou eventos de qualquer tipo. Não se
restringe a sentimentos. A função sentimento sente (aprecia e relaciona a) não
somente sentimentos. Sentir não se limita a sentimentos mais do que pensar não se
limita a pensamentos. Nós podemos sentir nossos pensamentos, descobrir seu valor,
sua importância. Do mesmo modo, podemos pensar o sentimento e pensar sobre
sentimentos — como estamos fazendo, por exemplo, neste simpósio. Os próprios
sentimentos — irritação, divertimento, tédio — podem ser manuseados adequada ou
inadequadamente, estimados positiva ou negativamente pela função sentimento.
Podemos estar apropriadamente entediados ou incorretamente entediados; podemos

5
estar própria ou impropriamente irritados. A organização dos sentimentos depende
menos dos sentimentos do que da função.
Em quarto lugar, na psicologia junguiana, muito é feito, tanto na teoria quanto
na prática, da função inferior. A função sentimento pode ser dominante, como no tipo
sentimento, ou pode ser menos desenvolvida e subalterna. Pode ser um modo típico
como a personalidade egóica funciona ou pode ser carregada de afeto e um tanto
alheia ao ego. O sentimento inferior refere-se à inadequação da função. Estropia
valores e faz os julgamentos sentimentais errados. Apresenta-se do modo errado ou
do modo correto no momento errado. O timing do sentimento inferior está fora de
sintonia. Ele não informa a pessoa a respeito de como ela se sente sobre isso ou
aquilo, se ela gosta ou ama, se ela se relaciona de modo adaptativo ao que ocorre
externa ou internamente. Ela pode sentir-se triste somente quando adoece ou sentir-
se feliz somente quando é reconhecida. Os sentimentos dela dependem das
apresentações de seu corpo ou da ação dos outros. A própria função da pessoa
parece não estar presente. O mundo laboral dela não tem consequências sentimentais
(morais ou sociais). Mesmo sentimentos positivos como amor, alegria ou
generosidade podem ser manipulados inadequadamente por uma função sentimento
inferior de modo que estejam fora de lugar, sejam inapropriados ou destrutivos. Nosso
amor é autoerótico, nossa alegria sem entusiasmo, nossa generosidade sem
consideração. Uma analogia pode ser feita com o pensamento: o pensamento inferior
pode refletir sobre noções importantes como Deus, a natureza da matéria ou da
energia, a interrelação das células. Entretanto, essas noções, positivas e significativas
em si mesmas, podem ser manuseadas de modo mistificador, confuso, arcaico,
revelando a impropriedade e a inadequação do pensamento inferior, mesmo que ele
seja criativo de modo original ocasionalmente.
Porém, em quinto lugar, o sentimento inferior não deve ser confundido com os
sentimentos negativos. Os sentimentos negativos são aqueles que ou são
internamente experienciados como maus e dolorosos, por exemplo, a culpa, o tédio,
o medo, ou são socialmente condenados como o ódio e a inveja. Assim, como os
sentimentos positivos podem ser mal conduzidos por uma função sentimento inferior,
os sentimentos ditos negativos podem ser expressados apropriada e adequadamente.
Pense em Jonathan Swift e no que ele fez com os sentimentos negativos do ódio e da
misantropia. A partir desse ponto de vista, podemos dizer, portanto, que não há
sentimento que seja negativo em si mesmo. Muito depende do modo como o

6
sentimento funciona. O problema psicoterapêutico, mesmo cultural, não é um
problema dos sentimentos negativos — o ódio, a agressão, a inveja e os sete pecados
mortais que trazemos originalmente conosco à vida. O problema terapêutico e cultural
diz respeito ao desenvolvimento da função sentimento de modo que ela se torne um
recipiente, um canal ou um modo adequado de operação para esses sentimentos. A
inferioridade geral dessa função em nossa sociedade tem muitas fontes: a ênfase no
intelecto, o sistema educacional competitivo, a falta de cultivo das virtudes femininas
no homem e na mulher, o declínio de sistemas de pensamento como religião, moral,
estética, modos, amizades, a perda de interesse nos ensaios pessoais, nas cartas e
nos diários e em amar em vez de em suas programáticas legais e em suas técnicas.
Em sexto lugar, uma educação da função sentimento é possível. Uma vez que
a educação do sentimento está em grande parte ausente de nossa educação usual,
tornou-se um tema central na terapia, seja em grupos, em treinamentos de
sensibilidade, seja na análise individual. Essa educação começa com a própria função
sentimento, exatamente onde está. Se consentir, é uma educação pela fé. Fé na
própria função, que pode ser desenvolvida se for permitido exercitá-la. Portanto, a
educação do sentimento significa renunciar às condenações familiares sobre a
inferioridade do sentimento. Condenações vindas de cima, vindas de nosso
pensamento superior. A educação do sentimento começa com a coragem do coração:
gostar do que gosta, sentir o que sente, recusar o que não pode verdadeiramente
suportar. Requer admitir à consciência e reavaliar os sentimentos ditos negativos.
Embora a educação do sentimento possa começar no nível das reações sentimentais
altamente pessoais, eventualmente a discriminação torna-se mais objetiva e o fator
pessoal recua.
Em sétimo lugar, finalmente, o sentimento tem um papel central na psicologia
de Jung. Não podemos ler Jung somente com o intelecto. A compreensão consciente
da psicologia junguiana significa também a compreensão sentimental. Todos os
principais símbolos conceituais — introversão, complexo, sombra, self, sincronicidade,
por exemplo — são experiências de sentimento. Um complexo é uma realidade
sentida. Um símbolo não é somente uma imagem sensorial com conteúdo intuitivo e
intelectual; apresenta-se como um valor e um relacionamento vivo, evocando
sentimento.

7
Emoção e Afeto

Chegamos à emoção. Jung usa o termo de modo mais ou menos


intercambiável com afeto. Uma distinção entre a emoção e o afeto, parcialmente
baseada em Jung, foi feita por Ernst Harms no Mooseheart Symposium de 1948.5
Também diferencio emoção e afeto. No meu livro, a emoção e o afeto são
diferenciados. Concebo a emoção, por um lado, como um evento total da
personalidade, ativando todos os níveis e, portanto, um tipo simbólico de consciência
transformada com “corpo” nela. A emoção é, portanto, menos do que a consciência
não emocional normal, pois tem níveis de afeto que intensificam estreitamente a
consciência e, no entanto, mais do que a consciência não emocional normal, pois é
uma condição total elevada. Concebo os afetos, por outro lado, como não totais, mas
parciais, primitivos e relativamente inconscientes. Simplesmente: o afeto abaixa o
nível mental ao que Janet chamaria la partie inférieure d’un fonction, enquanto a
emoção eleva, transforma e simboliza. A emoção é essencialmente um estado criativo
intencional que contem afeto.
A imagem do centauro expressa o que quero dizer. No mito grego, o centauro,
meio homem, meio animal, instrutor de Aquiles, de Jasão e de Hércules — i.e., da
consciência heroica —, assim como de Asclépio — i.e., da consciência terapêutica —
, e o inventor da música e da medicina — de fato um alto estado de consciência
emocional — é também a criatura usada para capturar um touro selvagem ou o
impulso cego do afeto. O homem íntegro, em harmonia com a consciência corporal —
ou em um estado de ser emocional — supera os afetos.6
Em suas definições, Jung não distingue o afeto e a emoção.7 A distinção entre
sentimento e emoção/ afeto é principalmente quantitativa.8 Os sentimentos
transformam-se nos afetos quando liberam inervações físicas.

5
Ernest Harms, “A Differencial Concept of Feelings and Emotions” in Feelings and Emotions: The
Mooseheart Symposium, ed. Martin L. Reymert (New York: McGrawHill, 1950), 147-57.
6
Hillman refere-se a um centauro específico: Quíron, que se diferenciava dos outros centauros por ser
menos selvagem e mais civilizado, mais inteligente e mais racional. Quíron é um curandeiro imortal que
foi atingido por uma flecha envenenada e que não pode nem morrer nem se recuperar, preso em um
estado perpétuo de ferimento. Como tal, no contexto desse ensaio, Hillman está se referindo à Quíron
como imagem de uma função sentimento dominante, desenvolvida ou “educada”, diferenciada de seus
colegas centauros em sua sensibilidade, em sua sofisticação e em sua dedicação ao ensino e ao alívio
do sofrimento dos outros. Deve-se observar ainda que o asteroide Quíron figura fortemente na
astrologia como marcador de trauma, de ferimento ou de sensibilidade interpessoal e espiritual. [N.E.]
7
Jung, Psychological Types, 541.
8
Ibid, 522.

8
As inervações físicas, que caracterizam o afeto distinguindo-o do sentimento,
são importantes no pensamento de Jung de dois modos. Em primeiro lugar, o
componente físico do afeto torna possível medir o complexo utilizando métodos físicos
(fenômeno psicogalvânico). Em segundo lugar, a visão de Jung da esquizofrenia, que
remonta aos primeiros anos do século, requer também essa visão físico quantitativa
do afeto. Jung sugeriu que as inervações físicas ou as cargas afetivas conectadas aos
fatores psíquicos em um complexo reprimido poderiam agir por fim como uma toxina,
induzindo mudanças fisiológicas que resultariam na esquizofrenia.

O conceito de complexo de Jung

Claramente, a teoria do afeto de Jung não pode ser separada de sua teoria do
complexo. Inicialmente, sua psicologia não era chamada de psicologia analítica, mas
de psicologia complexa, atestando o papel central que, em sua visão, o complexo tem
na psique humana. Um complexo pode ser definido como um grupo de conteúdos
psíquicos entrelaçados em um padrão específico e unidos de modo coeso por um tom
afetivo similar e ambivalente. Eles são repletos de afeto. A ambivalência é
experienciada como compulsão e inibição, como desejo e ansiedade. Complexos,
como afetos, são alheios ao ego; experienciamos os complexos como intrusos. Não
somente temos os complexos, mas eles nos têm, dominando-nos, conduzindo-nos,
inibindo-nos. O aspecto pessoal do complexo consiste em eventos da vida pessoal —
associações, memórias, hábitos e seus semelhantes. O núcleo arquetípico do
complexo é tanto um padrão instintivo de comportamento quanto uma ideia imagética.
Por exemplo, o complexo da mãe afeta o ego com desejos por incesto; com humores
exigentes, indecisos, mal-humorados de claudicação; com impulsos de onipotência e
desejos de proeza sexual; com desejos de liberação e de transcendência. Esses
afetos são apresentados no nível da fantasia por imagens e ideias simbólicas como a
da luta entre dragão e herói, a do herói ferido, a do amante forte e fálico, a de Jesus,
o portador da Verdade, etc.

9
O “ego-afeto” (“affect-ego”) de Perry

A última contribuição junguiana à teoria da emoção foi feita recentemente por


John Weir Perry.9 Suas ideias são relevantes aqui. O complexo sempre constela o
ego de um modo específico; ao afetar o ego, dá-nos um “ego-afeto”. por exemplo,
quando o complexo da mãe me tem, meu ego pode representar o filho-amante fraco
e ferido. Quando o complexo do pai me tem, o ego é capturado pela imagem e pelos
afetos do filho de um de seus modos próprios: o obediente príncipe sucessor, o
rebelde parricida, o complicado Pequeno Polegar que se recusa a crescer. Hoje, a
luta geracional é carregada de problemas de ego-afeto, os filhos constelando os pais,
os pais constelando os filhos por meio desses complexos arquetípicos de modo que
a percepção um do outro é afetada e distorcida em imagens arquetípicas pré-
existentes. Os padrões de afeto em supressão ou em rebelião ao nosso redor são tão
universalmente similares — tanto em comportamento quanto em imagem ideacional
— que parecem carimbados em um padrão típico — ou arquetípico.
Portanto, o complexo é primordial na prática junguiana. Sempre se presume
que um afeto contém um núcleo arquetípico que se revela em padrões de
comportamento específicos e em imagens de fantasia específicas. Perseguimos
avidamente essas fantasias e essas imagens (pela via dos sonhos, digamos) de modo
a descobrir que complexo está constelado, que padrão arquetípico está sendo
concretizado. Então, comparamos os motivos do complexo com o material psicológico
objetivo. Ou seja, ampliamos o motivo para além de suas associações pessoais,
considerando as brigas familiares pessoais em vista também de padrões simbólicos
específicos da Mãe e do Filho-Amante ou das brigas do Pai e do Filho, etc. Então,
olhamos para os afetos com um olho mítico, enquanto encenações simbólicas
fantásticas da pessoa, que são necessárias à personalidade como um todo e
intencionais, ainda que alheias ao ego no momento em que ocorrem. Consideramos
os estímulos que disparam um afeto, mesmo se vindos do exterior e aparentemente
triviais e incidentais, como necessários ao padrão de vida mítico de uma pessoa, caso
contrário não a afetariam. Assim, afetos têm um valor de sobrevivência. Além disso,
consideramos que as mudanças de humor e as expressões de afeto pertencem à

9
John Weir Perry, “Emotions and Object Relations”. Artigo lido em 1968 no Fourth International
Congress on Analytical Psychology em Zurique e publicado em The Journal of Analytical Psychology
15, no. 1 (January 1970): 1-12.

10
transformação da personalidade e que esse processo de transformação não poderia
ocorrer sem humor e sem afeto. Então, são importantes para a nossa abordagem a
origem intrapsíquica do humor e do afeto e a questão de como o humor e o afeto
surgem de fantasias completamente interiores e auto direcionadas.
Há outros aspectos da teoria da emoção de Jung que teremos que deixar de
lado, como a Sombra e a Anima. A “Anima” em particular (o aspecto feminino do
homem) é o arquétipo envolvido com os complexos irracionais e temperamentais da
personalidade masculina. (Ocupei-me em algum detalhe da relação disso com o afeto
no último capítulo do meu livro Insearch e também em Anima).10 Devemos deixar de
lado ainda as implicações da visão de Jung sobre a emoção para a parapsicologia.
Sua teoria da sincronicidade, um princípio de conexão a-causal para explicar
coincidências significativas, também envolve sua teoria da emoção.

Implicações para a terapia

Podemos, contudo, discutir as implicações práticas do que a visão de Jung


oferece para a terapia. Isso parece muitíssimo relevante, uma vez que a terapia
envolve todos lidando com o problema da própria vida emocional. Estamos todos,
indefinidamente, em terapia com nós mesmos. O problema perene da emoção — para
usar a frase de Magda Arnold — não é teórico, mas, nas palavras de Joseph Conrad,
“como viver” ou “como ser”. Como podemos sobreviver e como o mundo ao nosso
redor pode sobreviver aos nossos ataques afetivos? Como o afeto pode tornar-se
emoção, sem a qual não podemos sobreviver? O grande enigma do afeto é o duplo
vínculo: “Não reprimirás [o afeto]” e, por outro lado, “Não encenarás [o afeto]”. Então,
o que devemos fazer com nossos afetos? Não posso me livrar deles nem os
reprimindo e nem os encenando.
Isso deixa somente uma escolha: viver com os afetos11, conservá-los, retê-los
com toda a intensidade que eles trazem consigo, de modo a ganhar seu segredo, sua

10
James Hillman, Insearch: Psychology and Religion [Uma busca interior em psicologia e religião, São
Paulo: Paulus, 1998] e Anima: An Anatomy of a Personified Notion (Putnam, Conn: Spring Publications,
2014) [Anima: Anatomia de uma Noção Personificada, trad. Gustavo Barcellos e Lúcia Rosenberg. São
Paulo: Cultrix, 1990].
11
Aqui podemos respeitar a atitude introvertida, internalizadora que Hillman descreve e, ao mesmo
tempo, podemos recordar seu movimento posterior de expandir a reflexão imaginária ao mundo como
uma forma de profundidade extrovertida. Nesses ensaios posteriores, Hillman avança os esforços de
Jung para superar o dualismo cartesiano (interior versus exterior) — pela via de conceitos como a
sincronicidade e a camada psicóide do inconsciente — reconhecendo a presença da alma no mundo e

11
imagem, sua fantasia, seu propósito na minha vida. Se for conservado, assistido e
sentido, o afeto irá por fim revelar sua imagem, i.e., o outro lado do complexo (na
hipótese de que a imagem e o afeto sejam aspectos de um complexo). Ao viver com
o afeto, ao concentrar-se nele, ao fantasiar o terror, o ódio, a luxúria até o fim — nem
reprimindo, nem encenando —, ao sonhar o sonho conjuntamente, nas palavras de
Jung, responde-se à questão “como ser” de Conrad com a resposta do próprio Conrad:
“imergir a si mesmo no elemento destrutivo.” Pois, então, a experiência mostra que o
afeto irá, com graça, transformar-se em emoção; por meio da vigília mantida em
relação a ele, acrescentou-se consciência ao que até então era cego. Ao ter vivido
próximo ao afeto, uma pessoa une-se a ele. Não mais um homem lutando com um
touro selvagem. Temos um novo tipo de consciência emocional: homem e animal
unidos — o centauro. Então, o afeto pode transformar-nos, em vez de nós
transformarmos a ele; o afeto transforma nossa vida, nossa consciência em
experiência simbólica e emocional. O que até então era, no histórico de nosso caso,
um sintoma com o qual lidar ou o qual explicar, agora é, com graça, psicologicamente
integrado, considerado parte da experiência e incorporado à história de nossa alma.
Na psicologia esotérica hindu (Tantra), no sistema chamado Kundalini Yoga, o
lugar do afeto é a barriga imaginária entre o umbigo e o plexo solar. A área incluiria o
fígado da antiguidade grega e o cólon superior da psiquiatria do século XVIII,
considerado por tanto tempo o “locus da insanidade”. Essa região é descrita no
sistema Kundalini como um caldeirão fervilhante, um lugar de fogo, e, ali, o deus
Rudra, o “rugidor”, habita. Mas há ainda referência a esse lugar como “repleto de
joias”. Afetos, por mais que possam urrar, ferver e queimar não são nada de que
devemos “nos livrar” com ab-reação, terapia comportamental e tranquilizantes, pois
isso seria nos livrarmos de joias em potencial. Se forem contidos psicologicamente —
se vivermos com eles, se os conservamos e os retermos e, sobretudo, se os
valorizarmos com sentimento —, a paixão pode transformar os corpos feitos de
diamante das experiências psíquicas indestrutíveis em tesouros psicológicos valiosos.

a psique como um campo imaginário que inclui tanto mente quanto matéria e que torna tanto introversão
quanto extroversão atitudes inerentemente psicológicas. [N.E.]

12

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