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Wilfred R.

Bion

Seminários

Italianos

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Texto completo

dos Seminários

com W. R. Bion

em Roma

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Tradução: Renzo Birolini

Capítulo Primeiro

Roma, 8 de julho de 1977

BION: Antes de mais nada, eu sinto não saber falar italiano, mas consola-me o pensamento de
que o assunto que quero discutir é um dos que eu considero difícil de falar em qualquer língua,
mesmo quando estou em condições de mobilizar todo o inglês que sei. Terei motivos para voltar,
em seguida, a este ponto.
Com o que nos ocupamos? Por que motivo estamos todos aqui? Do que temos intenção de falar?
Certamente poderíamos dizer Ade psicanálise@, mas a palavra não significa absolutamente nada.
É um termo que é usado se queremos Afalar da coisa@, mas não diz o que Aa coisa@ é. Não
podemos sentir o seu cheiro, não podemos tocá-la, e é na verdade muito difícil dizer qual é o
componente sensorial da psicanálise. Enquanto pretendemos ter uma perspectiva científica,
presume-se habitualmente que devem existir provas que a corroborem. O ponto que gostaria de
tocar aqui é o da importância da existência de uma base de fato, e de como estes fatos devam ser
observados por nós.
O meu training no British Institute of Psycho-analysis, a minha experiência com John Rickman,
com Melanie Klein B tudo isso era verbal. Presume-se talvez que nós sejamos cegos e surdos para
tudo, exceto para aquilo que entra através das orelhas? Quando um paciente vem até mim, existe
realmente um corpo que pode ser visto por mim, e até este ponto posso recorrer à evidência dos
meus sentidos e à informação que os meus sentidos me fornecem. Não julgo que possamos nos
permitir ignorar o que nos dizem os nossos sentidos, porque de qualquer maneira os fatos são
muito poucos.
Até agora, a coisa mais válida que tenho é a evidência dos sentidos e a informação que os
sentidos me fornecem. Quando digo Asentidos@ tomo emprestado o vocábulo da anatomia e da
fisiologia, e o utilizo como um modelo a fim de ter condições de falar de outras coisas para as
quais não tenho o mesmo tipo de evidência. Por este aspecto eu dependo do fato de ter um
sistema nervoso sadio que responde às irritações B no sentido fisiológico do termo; as nossas
terminações nervosas são irritadas pelo universo em que vivemos. Alguns desses sentidos são
extremamente potentes. Por exemplo, o sentido da visão e a capacidade ocular parecem alcançar
um papel dominante, em boa parte porque posso ver coisas mesmo quando não posso tocá-las.
Dentro de certos limites pode-se dizer a mesma coisa a respeito da audição; posso ouvir mesmo
sem ter um efetivo contato físico com um organismo físico.
Gostaria de chamar a atenção de vocês para uma citação extraída de um texto de Freud de 1926:
AEntre a vida intra-uterina e a primeiríssima infância, existe mais continuidade do quanto nos
autorizaria a acreditar a impressionante cesura do nascimento@. Ele já havia expressado este
conceito antes, mas não parece que o tenha seguido até o fundo; estava muito perto do fim de sua
vida. Além do que, desafortunadamente B em parte, creio, por causa de uma intervenção de
Ernest Jones que me parece ter levado Freud a criar uma certa prevenção em relação a Otto Rank

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B Rank não foi verdadeiramente capaz de levar muito adiante as próprias idéias a respeito do
trauma do nascimento. Ele instituiu o trauma do nascimento: Freud inclinou-se a ignorar esta
Aimpressionante cesura@. Mas Freud, sendo o que era, não deixava de compreender que havia
uma verdade inerente ao fato do nascimento, e o fato que fosse um acontecimento extremamente
impressionante.
Quero propor que se acolha a sugestão e se leve em consideração o fato de que nós somos
indevidamente impressionados pelo trauma do nascimento. Eu faço desta maneira: Quando
nasceram? Quando é o seu aniversário ? Se me fornecessem respostas costumeiras, poderia dizer:
ANão, isso é muito útil para as estatísticas demográficas do governo que quer saber que o seu
aniversário é em tal dia, em tal mês, em tal ano. Isso iria lhe servir muito bem@.
Mas eu gostaria de conseguir dizer: APor favor digam-me quando foi, aproximadamente no
terceiro somito**1, que começaram a funcionar as suas fossetas oculares. Digam-me quando
começaram a funcionar as suas cavidades auditivas@. Naturalmente sei muito bem que ninguém
pode responder estas perguntas.
Poderia fazer um grande número de perguntas B não espero que tentem respondê-las; eu, de
minha parte, não procuraria respondê-las. Não obstante, sem mesmo uma migalha de prova a
favor disso, considero que sejam perguntas importantes.
Os embriologistas nos dizem que no corpo humano existe a prova da sobrevivência daquilo que
eles definem como as Afissuras branquiais@. É uma idéia interessante e podemos brincar com ela.
Mas seria mais adequada se tivéssemos sido, ou fôssemos, ou se tivéssemos elementos
sobreviventes em nossa constituição, que fossem apropriados ao nosso ser peixes. Os
embriologistas também falam de caudas rudimentares. Se estes resíduos existem no que diz
respeito ao corpo, por que não poderiam estar por aí, em algum lugar, até mesmo no que diz
respeito àquilo que definimos como nossa mente? É possível que algumas de nossas
características seriam mais compreensíveis se fossemos animais aquáticos? Ou se vivêssemos nas
árvores como macacos? Não é muito difícil compreender porque as pessoas freqüentemente
falam B mesmo que seja em sentido metafórico B dos nossos ancestrais simiescos e das nossas
características simiescas; no entanto, não acontece que se fale tão freqüentemente das nossas
características de peixes B apesar de os cirurgiões falarem de Atumores da fissura branquial@.
Porquanto eles não estejam operando um embrião, utilizam aquilo que nos dizem os
embriologistas, para levar a termo uma intervenção cirúrgica sofisticada naquilo que eles
definem ainda como Atumor da fissura branquial@.
Aquilo sobre o que gostaria de chamar a sua atenção é a idéia de que o animal humano tenha uma
mente, ou um caráter, ou uma personalidade. Parece ser uma teoria muito útil, e nos
comportamos como se estivéssemos tratando de algo mais do que uma teoria. Quando acontece
sermos psicanalistas e psiquiatras não podemos enfrentar o assunto como se estivéssemos
tratando simplesmente de uma teoria divertida. Nem sequer os pacientes vêm até nós porque
sofrem de uma teoria divertida. Poderíamos dizer que existe um único colaborador, que temos na
análise, com quem podemos contar, porque se comporta como se realmente tivesse uma mente, e
porque pensou que alguém, que não era ele mesmo, poderia ajudá-lo. Em suma, é provável que a
maior ajuda que um psicanalista possa obter, não a receba do seu analista, ou de seu supervisor,
ou do seu professor, ou dos livros que pode ler, mas de seu paciente. O paciente B e somente o

1
** N. do T. B metâmero.

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paciente B sabe o que significa ser si mesmo ou si mesma. O paciente é também a única pessoa
que sabe como se sente alguém que tenha as idéias que tem aquele determinado homem ou
mulher. Eis porque é tão importante que nós sejamos capazes de ouvir, ver, cheirar, até mesmo
sentir emocionalmente, que informação o paciente está tentando fazer chegar até nós. Ele é o
único que conhece os fatos; estes fatos portanto estão destinados a ser a principal fonte de
qualquer interpretação, de qualquer observação verossímil que tenhamos condições de fazer. A
nossa primeira reflexão, portanto, deve ser sobre o modo com que devemos observar, no caso de
acolhermos esta opinião científica sobre a importância das provas B as provas que estão
acessíveis para nós num brevíssimo lapso de tempo, cinqüenta minutos ou o que for B através do
que o paciente consente tornar-se acessível. É muito importante que cada um de nós estabeleça
por própria conta qual é o mínimo requerido para estar em condições de fazer uma análise.
Parece-me que as provas que são diretamente acessíveis aos meus sentidos tenham um valor
incomparavelmente maior que as provas que chegam até mim pelo Aouvi dizer@. Imaginando um
valor, para essa discussão, poderia dizer que as provas que me são acessíveis enquanto o paciente
está comigo valem o 99%; aquilo que posso ouvir dizer do paciente ou da minha maneira de levar
adiante o caso, ou qualquer outra coisa, vale no máximo 1%. Assim sendo, segundo este ponto de
vista, não devo preocupar-me muito com qualquer coisa que eu ouça dizer ou que me seja
referida assim que o meu paciente tenha deixado a minha área visual ou auditiva; posso ser cego
e surdo para todo o resto. Isto me poupa um monte de incômodos, devo admitir, mas acho que é
também muito sensato.
Voltando novamente às perguntas: o que estamos observando e o que devemos fazer com as
nossas observações? Lembro que certa vez me perguntou: Ao senhor faz algo mais além de
falar?@, eu respondi: Asim, fico calado@. Temo que para vocês seja difícil de acreditar enquanto
estou aqui falando, mas em análise eu amo estar em condições de permanecer calado. É muito
difícil fazê-lo, como bem sabemos, porque sobre nós é exercida uma pressão para que digamos
ou façamos algo. APor que não diz alguma coisa?@ @Por que não faz alguma coisa?@. Isto
acontece especialmente quando temos que lidar com um paciente B uma criança, digamos B que
depende de pais ou parentes que querem que o analista faça alguma coisa. Com o que eles
querem dizer, fazer algo que eles possam entender. Para as pessoas que não são da profissão, é
difícil acreditar que nós utilizamos um gênero de discurso que não é distinguível da ação.
No decurso dos contatos humanos normais, chegamos a ter tão pouco cuidado com o nosso
vocabulário, que as palavras que utilizamos, a linguagem que falamos, torna-se aleatória,
desvalorizada. Penso, portanto, que seja importantíssimo tornar mais exata possível a sua
linguagem, a linguagem que vocês utilizam tanto para se comunicarem com vocês mesmos,
quanto para se comunicarem com alguém que não é vocês.
Não acredito que seja uma boa coisa que no decurso da sua introspecção vocês se concentrem
para escrever aquilo que vocês pensam que tenha dito o paciente B uma espécie de história do
caso. Este tipo de narração pode ser útil; não quero rejeitá-la e talvez falaremos a respeito em
seguida. Mas enquanto isso, pensem nas palavras que vocês utilizam com maior freqüência em
análise, reduzam-nas para um número sempre menor, depois utilizem-nas com maior sobriedade,
com muita exatidão, somente a fim de dizer aquilo que entendem dizer. Se utilizarem
pouquíssimas palavras, se as utilizarem sempre corretamente B a acepção delas deve estar em
relação direta com aquilo que vocês pensam ou sentem B então pode ser que o paciente chegue
aos poucos a compreender a linguagem que vocês falam.

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Freqüentemente os pacientes me dizem: ANão entendo o que o senhor quer dizer@.
Existem duas possíveis respostas a isso: uma é que não existe nenhum motivo particular pelo
qual deveriam entender, dado que não têm nenhuma familiaridade com as coisas de que falo; a
outra é que não compreendem os meus usos das poucas palavras que uso. Mas é realmente muito
difícil para os pacientes acreditar que eu digo aquilo que quero dizer. De certa maneira têm
absoluta razão B são pouquíssimas as pessoas que dizem aquilo que querem dizer. Assim, é
difícil acreditar que isso seja o que o analista está fazendo. Com o tempo pode ser que
descubram, por quanto seja extraordinário, que o analista pretende dizer exatamente aquilo que
diz, ou pelo menos que procura dizer aquilo que pretende dizer, o que é muito difícil. É como
realizar uma intervenção cirúrgica e ter que afiar o bisturi e torná-lo perfeitamente eficiente
enquanto estamos operando. Assim, enquanto vocês exercitam a profissão analítica, devem
também exercitar a arte de afiar e tornar exato o vocabulário que utilizam. É importante que
estejam certos do que é o seu vocabulário, aquelas poucas palavras que lhes são verdadeiramente
úteis, e mantê-las atualizada e em condições tais que possam transmitir o que pretendem dizer.
Façamos por um momento uma digressão: por que falamos? É uma técnica de aquisição recente.
Suponho que o animal humano tenha inventado e desenvolvido um discurso articulado somente
nos últimos milênios B não faz muito tempo. Assim que, há muito que dizer a favor da
comunicação verbal e de mantê-la a mais acurada possível. No entanto não acredito que seja
justo ignorar o fato que existem outras formas de comunicação. Mesmo a comunicação verbal foi
feita incidindo letras na pedra. Existem outros que incidem e esculpem figuras que também são
métodos de comunicação. Recentemente pessoas como Henry Moore e Barbara Hepworth
incidiram figuras que incluíam buracos. Isso é recorrer a um método de comunicação no qual é
preciso que haja também um receptor; presume-se que alguém olhe para as esculturas.
Analogamente os pintores usam os pigmentos B como os impressionistas. Os pintores
impressionistas B aliás, todos os pintores Brecorrem à comunicação da luz; podem usar diversas
variedades de cores, diversas oscilações do espectro visual. Seria útil, da parte de vocês, que
pudessem considerar os vários métodos de comunicação que lhes são conhecidos, seus
respectivos méritos, e até que ponto são capazes de grande sutileza.
Falei muito e eu, pessoalmente, acho difícil suportar que me sejam fornecidas informações sobre
questões, a respeito das quais eu não havia feito perguntas. Portanto, penso que seria bom se
estabelecessem que perguntas gostariam efetivamente de fazer, e depois, entre todos nós,
poderemos talvez encontrar algum tipo de resposta.

PART.: Se quiser eu posso começar, só para quebrar o gelo. B Deixando de lado os elogios e
coisas do gênero, o assunto para o qual eu não estava preparado, como não estavam preparados
vocês B naturalmente impressionou-me pelo que diz respeito à surpresa, a maneira de se exprimir
e o patos**2 que é sempre comunicado. Todavia, com relativa surpresa minha, descobri que se
inseria num filão de interesses profissionais meus deste momento, por quanto eu estive me
interessando exatamente pela função simbólica das emoções, isto é, a função sinalizadora das
emoções, retomando o que foi o cavalo de batalha do último Freud, ou também os que foram uma
série de conceitos utilizados por Hartman e por outros psicólogos de sua escola, e que foram
retomados recentemente por Ranghel, isto é a função sinalizadora das emoções: as emoções que

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** N. do T. B itálico nosso.

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cumprem por si mesmas uma função informativa. Naturalmente, não é que a função informativa
resuma o conteúdo e o significado das emoções, porém certamente representa boa parte destes,
por isso quando falou do sentir com o olfato, do sentir com todos os sentidos, me pareceu que
estivesse aludindo de algum modo também à possibilidade de comunicação não verbal, isto é a
todas estas modalidades emocionais com as quais nos comunicamos com nós mesmos (porque
são símbolos intrapsíquicos que nós usamos com nós mesmos) mas também em certo sentido,
que comunicamos com os outros e que não devem necessariamente ser traduzido em palavras
mas que igualmente fornecem ao paciente uma reinterpretação de seu fantasma ou daquele que é
o objeto das suas percepções. Pelo que, agora vou perguntar ao senhor, se vai incluir também as
emoções entre aquelas formas de comunicação que se exilam da linguagem.

BION: Penso que aquilo que o paciente experimenta seja a coisa mais semelhante a um fato B
assim como geralmente eu o entendo B que ele não esteja nunca em grau de experimentar. A
mesma coisa vale para mim. Por exemplo, uma criança pequena parece estar Aciente@ B a
palavra melhor que posso usar B da própria dependência. De maneira não separável disso, parece
também ciente de que está Ainteiramente só@. Considero que ambas as sensações sejam
desagradáveis, e considero que sejam ambas fundamentais. Uma criança pequena parece estar
também ciente do fato de que existe aquilo que nós chamaríamos de uma personalidade presente
de quem ela poderia depender; analogamente a criança pode estar ciente do fato de que uma
outra pessoa não está presente.
Quanto aos pacientes que são descritos como Apsicóticos@ ou Apsicóticos borderline@ considero
que eles sejam extremamente conhecedores de coisas que a maior parte de nós aprendeu a
desconhecer.
Tomemos a mesma criança vinte, trinta, quarenta, cinqüenta anos depois. Como analista, você
cansou-se um pouco, e assim recorre às teorias, teorias que eu penso seja difícil diferenciar
daquelas que Freud chamava de Aparamnésias@ que são delegadas a preencher o espaço que
ficou vazio porque alguém esqueceu um ponto particular qualquer e portanto inventa algo para
preencher este espaço. Dessa maneira poderíamos inferir que a psicanálise inteira é um tipo de
bela paramnésia elaborada, tornada coerente consigo mesma, uma espécie de obra arquitetônica
em que cada pedacinho está no lugar apropriado, somente aqui e ali parece que existem algumas
coisas que são paradoxos que começam a emergir. Quando estamos cansados a nossa
conversação torna-se cosmética de modo considerável, mas soa exatamente como a psicanálise,
de fato torna-se uma gíria. Em resumo, é como a bem conhecida afirmação, que as pessoas
tentam fazer ruídos profundos do peito que soam como pensamentos profundos. Quando isso
acontece, o psicótico borderline vai reagir de maneira que irá demonstrar que ele sabe que o
analista que estava lá, está agora mentalmente ausente.
Não sei se é disso que o senhor estava falando, mas parece-me muito semelhante a esta
comunicação extraordinária. Não é física, pelo que sabemos, e todavia uma emoção é transmitida
de um corpo para o outro B ou, presumo que deveríamos dizer, de uma mente para a outra.

PART: Gostaria, se possível, retomar e enfocar melhor o problema que foi tocado no início, o
problema do trauma do nascimento e do discurso imediatamente sucessivo dos resíduos animais
que permanecem nos homens, porque me parece que no discurso do Dr. Bion houve uma espécie
de passagem daquele que é o trauma do nascimento propriamente dito, àquele que poderíamos
chamar de o conceito, digamos assim, de aniversário; uma coisa é nascer, outra coisa é lembrar

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do próprio aniversário, isto é, o momento em que alguém começou a sentir, a ver, a rir. Então eu
fui muito estimulada por este fato, se é possível ver o problema, para usar a sua linguagem, por
este vértice. A insistência do Dr. Bion sobre o fato que o analista precisa igualar extremamente a
si mesmo a própria linguagem, significa fundamentalmente B parece-me B que o analista deve ter
muita certeza de estar dizendo aquilo que realmente está sentindo. Então, o momento em que o
analista tem a sensação, mais ou menos, de estar realmente dizendo aquilo que está pensando e
sentindo, e portanto de tomar realmente consciência daquilo que se move nele mesmo, pode ser
comparado àquela passagem da sensação à palavra articulada de que o Sr. falou na parte
precedente do seminário? Se isto corresponde àquela particularidade do nascimento como
aniversário, isto é, não do nascimento no sentido de quando alguém vem ao mundo, mas do
nascimento no momento em que alguém se torna consciente das próprias percepções, daquilo que
sente, então a verdadeira pergunta é esta: é possível que este processo de auto-precisão e de auto-
tomada, digamos, da própria linguagem por parte do analista seja realmente o trauma do
nascimento do analista cada vez na análise, e que portanto o paciente esteja na posição daquele
que é espectador deste contínuo nascer do analista? Enfim, de que maneira existe a possibilidade
de conjugar o nascimento do analista com o nascimento do paciente? Que fenômenos há de
identificação, de aprendizagem, de comunicações, que vão além da palavra, etc., etc.?

BION: Precisaria de muito tempo até só para começar a responder ao grande número de
perguntas que a senhora me fez. Mas gostaria de chamar a atenção de vocês sobre uma passagem
de Guerra e Paz de Tolstoy, onde o Príncipe Andrei diz: AIsto é verdade(iro); aceita-o@; esta era
a sensação que ele tinha, e ele comunica muito claramente esta sua sensação naquelas palavras.
Não sei que validade possa ser atribuída a isso mas eu sei que na sala de análise existem
situações em que ambas as pessoas são iluminadas.
Traduzindo a mesma coisa numa linguagem levemente diferente: duas pessoas têm uma relação
sexual; elas dizem B podem até obter um documento que o comprove B que são casadas. Alguma
vez ambos têm uma experiência que os faz sentir: AEsta é verdadeiramente uma expressão de
amor@. Deste modo os dois apreendem de maneira inequívoca o que é o amor apaixonado, e
posta em confronto com aquela experiência, uma pessoa pode reavaliar todos os tipos de relação
sexual que já teve B mesmo com o mesmo parceiro B e que diferença há entre elas. Se talvez vier
a ser possível moldar esta capacidade de comunicação verbal, recentemente adquirida, de tal
maneira que possa se aproximar de uma descrição do amor apaixonado, este é um assunto
completamente diferente. Quando se leva em consideração a história cultural da raça humana,
quantos poetas, filósofos, santos, os senhores pensam que se tenham aproximado da descrição
daquela extraordinária experiência do amor apaixonado? De fato, as palavras, o vocabulário, são
tão degradadas, tantas pessoas aprenderam a falar de Aamor@ Aódio@ e assim por diante, que se
tornou um evento de administração ordinária para as pessoas dizer: Asim, eu sei; sim, eu sei; sim,
eu sei@. Na verdade pensam saber, mas não sabem absolutamente nada. É possível dizer:
ANaturalmente conheço ALes Coquelicots@ B já vi muitíssimas reproduções@. Ou também:
ASim, conheço o concerto para trompa de Mozart. B Já ouvi muitas gravações@. Mas nunca
tiveram a experiência da Acoisa verdadeira@.
Depois da última prova de Petrouchka, o regente disse: ANão, não está boa@. Tanto Fokine
quanto Stravinsky empalideceram diante da idéia que não estava boa B terminava, se vocês
lembram, com a morte de Petrouchka. Quando Fokine e Stravinsky atacaram o regente dizendo:
ACerto, e como deveria terminar?@ ele respondeu: ADeve aparecer o fantasma de Petrouchka@.

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Assim, mesmo tendo acreditado que aquela fosse a prova definitiva, repuseram-se ao trabalho e
modificaram o final, de modo que o fantasma de Petrouchka aparecia sobre um muro
gesticulando fantasticamente com os braços.
O que é aquele objeto que nos dá a entender ser o fantasma de uma boneca inanimada e que
pensaríamos que tivesse estado sempre morta, tendo simplesmente feito gestos como se fosse
animada, movida pelos fios de um titereiro? Para dizer de outra maneira: quando amanhã você vir
o seu paciente, poderá individualizar no material que é colocado à sua disposição, alguns sinais
que indiquem a existência do fantasma de um boneco? Se você conseguir, pode até ser que você
esteja em condições de insuflar um pouco de vida naquela pequena sobrevivência.

PART: Eu gostaria de perguntar uma coisa ao Dr. Bion, aqui eu senti dois odores neste momento
em todo o discurso: o primeiro odor era o das coisas que o Sr. disse, e pareceu-me um odor de
fatos; depois um odor sucessivo, que me parece odor de teorias. Gostaria de saber qual é a sua
impressão pessoal sobre isso, e gostaria de saber se realmente é inevitável que estas duas coisas
acabem sempre por se misturar entre si.

BION: Depende do que o Sr. entende dizer com o termo Ainevitavelmente@. Penso que a cisão
tenha uma história muito longa. Por exemplo, o diafragma, que separa a parte superior da
anatomia da parte inferior, foi visto muito inteligentemente como a sede do espírito ou da alma,
porque sobe e desce enquanto respiramos; é absolutamente óbvio que isto é o que faz com que as
pessoas pensem ou que se amedrontem. Vale para os fatos anatômicos assim como para as idéias.
É totalmente racional; baseia-se sobre uma boa observação, e torna-se uma teoria impenetrável
enquanto não haja alguém que a penetre. Segundo Demócrito de Abdera, a inútil massa cerebral
tem algo a ver com o pensar. Você mesmo pode ver que idéia estúpida é aquela; não faz nada.
Assim uma teoria que afirma que o cérebro tem algo a ver com o pensar é realmente fantástica, e
não é sustentada por nenhuma prova. Bem B não totalmente, porque algum gênio descobre que se
bloquearmos esta matéria cerebral, não obstante a sua cobertura óssea, com um machado de
guerra, por exemplo, isto faz cessar o fastidioso pensar. Poderia assim nascer a idéia que aquela
forma de operação violenta e drástica revele a fonte e a origem do pensamento.
Tornamo-nos tão inteligentes que ouvi dizer que nos recém-nascidos e nos embriões não existem
idéias porque as suas fibras não são mielinizadas B portanto provavelmente não podem pensar.
Mas eu vi uma criança muito pequena que tinha medo; eu vi um bebê posto no penico e que
imediatamente Afaz cocô@. É a sua bundinha que pensa? Ou não possui fibras mielinizadas e
portanto não pode pensar? Ou vamos ter que reconsiderar os nossos conhecimentos de fisiologia?
O mesmo vale para o inteiro corpo do pensamento psicanalítico. Estas teorias são muito úteis B a
diferença entre consciente e inconsciente. Recorrendo a uma metáfora poderíamos dizer que
quando segregamos uma idéia, ou quando produzimos uma teoria, parece que
contemporaneamente emitimos algum material calcário, nos tornamos calcificados, a idéia fica
calcificada, e então temos uma outra impressionante cesura da qual não conseguimos escapar.
Um bem, uma útil teoria do consciente e do inconsciente, transforma-se então num peso morto;
transforma-se numa cesura que não podemos penetrar.
O Dr. Matte Blanco falou bastante da possibilidade de pensamentos ou idéias que nunca foram
conscientes.
Eu certamente concordo do ponto de vista analítico, com base na minha experiência analítica,
que há certas idéias que parecem não ter sido jamais conscientes e que parecem até trair a própria

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existência na vida adulta. Por exemplo, eu tenho um paciente que fala muito livremente e no fim
de uma sessão eu sei bastante B se eu tivesse que atribuir muita importância a um testemunho
que se baseia no ouvir dizer B a respeito de todos, salvo a respeito do paciente. Isto me parece
que se torna um pouquinho mais compreensível se supusermos que este paciente tenha tentado
livrar-se de todo o pensamento, sentimento, até mesmo o pensamento primordial, indesejável
antes mesmo de tê-lo tido, de tal forma que ele está cercado, por assim dizer, de pensamentos que
receberam voz através de outras pessoas B segundo o paciente B mas nunca de seus próprios
pensamentos ou idéias, nunca; não os tem; é preciso que sejam todos evacuados. Perguntamo-nos
se é possível mobilizar a que poderia ser descrita como uma capacidade matemática, ou um
pensamento matemático para exprimir aquele estado de coisas de forma que seja comunicável
para outras pessoas. Embora tivesse usado toda a teoria analítica que parecia pertinente, não
consegui abrir nenhuma brecha neste fluxo de material em que aparecia tudo, salvo o paciente B
o único objeto a ter total inexpressão. Tinha dado um monte de interpretações sobre a projeção e
assim por diante; não fizeram nenhuma diferença. Existe algo na evacuação total que exige uma
forma de aproximação diversa.
Um paciente me diz que teve um sonho e que sonhou... qualquer coisa. Este é um relato
narrativo. Poderia ser descrito, por intermédio da matemática, como uma progressão linear de A
para B. O indivíduo nasceu, casa-se, morre. Hic iacet. Está aí toda a historia B acabado. Mas o
problema surge quando se quer chamar a atenção do paciente para algo que exige uma delineação
mais sutil do que uma progressão linear desde o nascimento até a morte.
Os pacientes confessam muito livremente alguns pecados B tantos pecados B e depois de um
pouco de tempo começa-se a pensar que existe uma inesgotável provisão de erros, crimes,
falências para a continuação da análise. Mas se a análise é transformada em algo que se
assemelha a uma versão elaborada da confissão característica da Igreja, não está bem. Assim,
mesmo nos limitando ao discurso articulado, é importante que estejamos em condições de decidir
quando é que uma análise se transformou numa espécie de versão moderna da confissão. Se
assim se tornou, então nos pode acontecer de não prestar atenção para aquilo que o paciente tem
de bom.
Experimentei este curioso estado de coisas no qual parece que a estrutura arquitetônica freudiana
esteja exigindo um reajuste, sobretudo na direção do conceder espaço para o crescimento.
Enquanto procuramos elaborar um sistema de pensamento, ou um sistema de análise, devemos
estar cientes do fato de que estamos também segregando um tipo de calcificação destinada a
fazer com que aqueles pensamentos venham a ser mais uma prisão do que uma força libertadora.
Melanie Klein ficava bastante aborrecida quando a rotulavam de Akleiniana@; considerava-se
uma analista comum que se limitava a seguir as teorias reconhecidas da psicanálise. Betty Joseph
lhe disse: AÉ tarde demais. Goste ou não, você é uma kleiniana@; não tinha possibilidades de
fuga. E então, debaixo da pressão das várias objeções contra a sua prole cerebral, ela foi se
tornando sempre mais dogmática, e eu penso, também sempre mais distante da possibilidade de
prestar atenção aos méritos de certas idéias que são dignas de ter a oportunidade de crescer e de
se desenvolverem.
Isto será importante para nós amanhã, quando virmos o nosso paciente. Penso que seja de ajuda
esquecer todas as nossas teorias e os nossos desejos, uma vez que são tão obstrutivos a ponto de
se tornarem uma impressionante cesura que não podemos superar. O problema é como deixar que
o germe de uma idéia, ou o germe de uma interpretação tenham uma possibilidade de
desenvolvimento. Se quero ilustrar tudo isso posso falar de elementos alfa e de elementos beta:

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sendo um elemento beta algo puramente físico; um elemento alfa algo mental B como a idéia de
que um bebê esteja em grau de pensar se sabe o que fazer quando lhe põem um penico debaixo
do traseiro. Tomemos o estágio de desenvolvimento sucessivo, quando se torna algo que se pode
quase reconhecer: eu gostaria de dizer: Aonde você foi ontem à noite, e o que você viu?@. Não
me interessa realmente o fato que você tenha ido para a cama e que tenha dormido. Gostaria
ainda de saber onde você foi e o que você viu. Debaixo de pressão você poderia talvez admitir:
APois bem, tive um sonho, mas não lembro dele@. Freud considerava muito importante a
interpretação dos sonhos B isso não deve nos surpreender quando consideramos quão
precocemente na história foram registrados certos sonhos, como aqueles que aparecem na Bíblia.
De qualquer forma, mesmo concordando com isso, eu penso que corre o risco de se transformar B
aliás já se transformou B numa estrutura da qual é muito difícil se evadir. Quando o paciente diz
ter Asonhado@ algo, nós pensamos B com ou sem razão B que ele esteve dormindo. Os locais em
que esteve e as coisas que viu, foram visitados e vistos em um determinado estado de ânimo.
Quando está completamente acordado e consciente, encontra-se numa situação mental diferente,
e a história que ele viu isto e aquilo é seguramente exposta a um processo de falsificação, porque
é contada quando ele está plenamente consciente. A experiência foi feita quando estava num
estado mental totalmente diferente B Aadormecido@ ou Ainconsciente@.
Para voltar à sessão de amanhã: o que vocês devem fazer é dar uma oportunidade ao germe de
um pensamento. Por certo não irá agradá-los; por certo irão desejar que esteja conforme alguma
teoria psicanalítica predileta, de maneira que se a contarem para outro psicanalista possa ser
considerada de acordo com a teoria psicanalítica, ou com as teorias do seu supervisor ou do seu
analista. Mas isso não funciona para aquilo que vocês dizem por sua conta. Portanto B e este é
realmente o ponto mais importante mas também o mais difícil B vocês devem ter a coragem de
pensar e de sentir qualquer coisa que pensem, não importa o que possa pensar a respeito a sua
sociedade ou a sua Sociedade B nem o que vocês pensem a respeito. Posso tentar classificar estes
pensamentos e estes sentimentos como imaginações especulativas, como idéias especulativas e
razões especulativas. Mas não penso que deveríamos por isso nos deixar induzir a supor que estes
pensamentos especulativos tenham o mesmo Astatus@ que os cientistas atribuem aos fatos. Pelo
que diz respeito aos fatos, gosto de pensar que eles equivalem à prova que conforta uma
particular crença, idéia ou teoria. As coisas de que estou falando não correspondem a nada mais
que uma probabilidade B algo sustentado por uma prova inadequada ou insuficiente. Até mesmo
uma pessoa com a mente aguda como J. M. Keynes escreveu sobre a Teoria da Probabilidade.
Mas duvido muito que aquele tipo de matemática funcione suficientemente bem para resolver o
problema da probabilidade; na precisão da matemática existe algo de válido, mas ao mesmo
tempo não devemos permitir que aquela precisão fique tão ossificada, tão calcificada a ponto de
não deixar espaço para o desenvolvimento.
Mais recentemente Brouwer e Heyting tentaram livrar a matemática da prisão do atual
pensamento matemático através da elaboração do Intuicionismo. Godel fez a mesma coisa em
relação à meta-matemática, o que comportou colocar em discussão a lei do médio excluído.
Gostaria de estar do lado de qualquer uma dessas coisas que foram excluídas, seja que se trate do
diafragma que separa a parte inferior da parte superior, ou qualquer outra coisa. Mais tarde
espero poder falar da parte excluída da psicanálise, ou daquilo que será excluído da sala de
análise amanhã de manhã, quando vocês e o analisando se encontrarem. A parte excluída tem um
grande papel e pode também ser que não se tenha ainda manifestado na teoria psicanalítica.

11
Capítulo Segundo

Roma, 9 de julho de 1977

PART: Antes do seminário de ontem tinha a curiosidade de perguntar ao Bion o seu pensamento
sobre a música. A minha curiosidade nasce do que pensei a partir de uma experiência analítica,
na qual me pareceu entender que uma paciente prefere a música à análise e que depois tentasse
encontrar, e tenha começado a encontrar, a música também na análise por alguns motivos: a
música afastava as experiências visuais e especialmente as terrificantes relativas ao espaço
fóbico. Ela conseguia dissolver as experiências terrificantes dos sons compondo-as em uma
melodia e utilizando somente alguns sons ou certas alturas limitadas dos sons. Decompondo a
música, os sons adquirem valores terrificantes que remetiam ao terror das imagens visuais, quase
corpóreas, em relevo, de um espaço claustrofóbico. Esta possibilidade de ver imagens
terrificantes eu a tinha porém atribuído à sua fantasia de um olho ciclópico que também é um
terceiro olho mental, de que falam os psicólogos, que parece ver em relevo.
De outra experiência analítica provinha-me a lembrança de Ulisses que se tinha anulado para não
ser visto e comido por Polifemo. Então me perguntava se Bion considerava possível pensar, como
certos psicólogos demonstraram, também numa percepção ciclópica que tenha a ver com a
música e com a análise.
Gostaria de perguntar a Bion se ele pensa que possa ter uma ligação com tudo isso o problema
dos músicos que tocam a música sem ler e músicos que devem ler para tocar.

BION: Se o seu paciente é um músico ou tem dotes musicais, então é provável que na sala de
análise você possa ouvir palavras e música. O problema do paciente não é simplesmente a sua
relação com o analista. Obviamente o analista é uma pessoa que o paciente encontra só em
algumas sessões por semana por um período de tempo limitado B não se supõe que deva existir
uma junção permanente. Então por que razão vem o paciente? Certo que não pode ser que venha
porque está em desacordo com o analista, nem porque o analista é do seu agrado, porque o
analista é pessoa de nenhuma importância. Pelo que nos diz respeito, o verdadeiro problema é o
desacordo do paciente com ele mesmo. Perde-se facilmente de vista a teoria psicanalítica que
sustenta a existência de conflitos mentais, mas ela é de fato muito importante.
De qualquer maneira, como tarefa temporária, o que você pode ver é alguma coisa da relação
entre essas duas pessoas B o analista e o analisando.
Voltando ao relato do que aconteceu B e isto faz com que uma discussão deste gênero seja de
secundária importância B o que aconteceria se vocês fossem bombardeados por palavras como
este paciente bombardeia o seu analista? Suponhamos que o analista tenha uma boa sensibilidade
a respeito do que vê e daquilo que lhe é dito pelo paciente B é assim que se presume que sejamos,
em teoria. Tomemos antes de mais nada as palavras: quais são B no que diz respeito ao analista B
as terminações nervosas que são solicitadas? Existe uma ampla gama de estímulos do analista: os
restos da sua educação clássica, o conhecimento da mitologia grega, o conhecimento ou a
experiência de alguma outra cultura. Agora está livre para demonstrar quem é, tirando para fora,
digamos, a mitologia grega, ou a teoria psicanalítica, ou a teoria psicológica. Assim, deste ponto
de vista, o analista é convidado a exprimir a própria opinião sobre quem ele seja.

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O que dizer do acompanhamento musical desta massa de informações e estímulos verbais? O
paciente está realmente fornecendo uma representação de uma obra, de palavras e de música. O
problema é, o que deve fazer o analista? Qualquer coisa que faça, o paciente terá algo para ir em
frente, algo que o paciente poderá mais tarde interpretar por sua conta.
Identificando-nos novamente com o analista: o que você deve fazer quando é bombardeado por
uma tão vasta variedade de mitologia, história, história clássica e música? Existe ainda um
aspecto ulterior, ou seja, que provavelmente o analisando sabe que o analista tem uma formação
médica e que portanto pode sempre solicitar ou não, como preferir, os conhecimentos que o
analista tem no campo médico. Por exemplo, este paciente peculiar poderia manifestar sintomas
somáticos de uma doença hematológica. O que deve fazer o analista quando tem a sensação de
que o paciente tenha necessidade de cuidados médicos, e ao mesmo tempo o analista quer ser um
analista? Proponho o problema porque será fácil que aqueles que estão num ambiente
suficientemente hostil, venham a ser imputados de mau exercício da profissão, de ter deixado de
interpretar que o problema absolutamente não era mental, mas que o paciente tinha esta, aquela,
ou então outra doença hematológica. Soube que um fato deste gênero aconteceu: o analista foi
acusado de ter deixado de diagnosticar que se tratava de um caso de câncer e de ter ido adiante B
segundo o paciente B continuando a interpretar erroneamente em termos psicanalíticos um estado
canceroso que por fim destruiu o paciente.
Eu teria algumas suspeitas em relação a tanto Abarulho@, feito por um paciente que me
bombardeasse com uma tamanha massa de fatos. O analista pode ser ensurdecido, cegado e posto
em uma posição tal, de não poder virtualmente usar os próprios sentidos porque são todos
maciçamente bombardeados.
Suponhamos que o paciente mostre sinais de uma doença orgânica mas que faça de conta que
sejam irrelevantes. Penso que num caso assim eu diria: AA respeito dos distúrbios físicos de que
o senhor estava falando, o senhor deverá naturalmente ir ao seu médico. Mas aqui precisamos
tomar em consideração algo mais@. De toda esta variedade de material que eu sou convidado a
escolher, gostaria de selecionar o que me parece ser relevante do ponto de vista psicanalítico. Isto
é simplicíssimo como teoria geral; mas na prática não é assim. Numa tal massa de informações o
ruído é tão grande que não se consegue ouvir aqueles ruídos que precisaríamos estar em
condições de ouvir. A impressão que tenho é que se eu fosse submetido a esta experiência a
minha atenção seria atraída pela repetição desta palavra Aterrível@ B parecia que estivesse
despontando continuamente. Surgiriam em mim fortes suspeitas de que estes seriam vestígios de
alguma coisa que eu poderia considerar como um medo sub-talâmico. Não uso esta frase como
expressão do meu conhecimento médico ou psicanalítico ou de outro gênero. Pelo que me diz
respeito é uma idéia que pertence ao que eu descrevi como Aimaginação especulativa@.
Agora isso está muito bem para mim: porém para mim não é suficiente transformar as minhas
impressões numa teoria psicanalítica ou numa interpretação psicanalítica. Gostaria portanto saber
mais a respeito, e para mim a condição mínima para analisar aquele paciente seria que me fosse
consentido permanecer em silêncio, porque não gostaria de acrescentar o meu ruído àquele que já
está fazendo o paciente. Se me fosse consentido maior tempo para permanecer em silêncio, então
poderia talvez estar em condições de ouvir alguma coisinha a mais.
É uma situação desencaminhadora em análise, porque aparentemente há ali uma só pessoa com o
analista. Achei muito útil a minha experiência nos grupos B um grupo é quase como uma pessoa,
um caráter ou uma personalidade, distribuída no espaço. Em um grupo gostaria de saber: AQuem
é essa pessoa que está dizendo: Aaterrorizado... aterrorizado... terrível@?@ Analogamente, se eu

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fosse um médico clínico geral iria querer ver todo o corpo, e então poderia talvez localizar um
inchaço, ou uma vermelhidão da pele e poderia perguntar para mim mesmo: ATrata-se de algum
tipo de infecção?@ Como digo, no grupo se poderia então localizar, por assim dizer, a origem, a
fonte da infecção.
Assumindo este tipo de perspectiva de grupo, restringe-se o campo de observação. Neste ponto
prestaria muito mais atenção a este Aterrível@, e voltaria minha atenção para a freqüência do
acontecimento, aparentemente de uma só palavra, mas eu esperaria, se me fosse dada a
possibilidade de permanecer em silêncio, conseguir descobrir uma certa analogia entre todos
estes Aterríveis@.
E depois, quando pensasse ter ido suficientemente adiante, a ponto de me sentir em condições de
formular a minha observação, o faria. Mas ignoraria completamente todo o resto.
De qualquer maneira, existe ainda este ponto que também a musica está incluída nisso. As duas
coisas juntas poderiam talvez tornar um pouco mais fácil ver ou identificar o foco da infecção, o
ponto que requer realmente ser interpretado. Isso é muito mais difícil do que possa parecer numa
discussão como esta B a experiência do exercício da psicanálise ou da medicina, ou de qualquer
coisa, é muito mais difícil do que a discussão sobre ela.

PART.: Contaram-me este fato: numa instituição psiquiátrica um professor distribuiu, por um
certo período de tempo, um pulôver vermelho perfeitamente igual para diversas mães, as quais
por todo aquele tempo segurou no colo a própria criança e viveram com ela. Depois de algum
tempo os pulôveres foram todos retirados e colocados juntos sobre um tapete, em seguida as
crianças foram postas todas juntas, perto dos pulôveres, que tinham todos a mesma cor, e muitas
dessas crianças conseguiram encontrar o pulôver da própria mãe, presumivelmente graças ao
cheiro. Por outro lado, o diretor do instituto onde eu trabalhei durante anos, gabava-se de
reconhecer o estado esquizofrênico de uma pessoa pelo cheiro particular que esta pessoa emitia
durante este estado mental. Eu nunca o havia sentido e duvidava de sua existência até o dia em
que tomei para análise um paciente esquizóide e perverso, o qual tem muita dificuldade para
exprimir certos sentimentos através das palavras, e aconteceu que em certas sessões ele emitisse
um cheiro muito peculiar, capaz de me lançar numa condição oniróide durante a qual emergiam
em minha mente imagens um tanto conturbadoras. Queria referir isto porque me pareceu que
aqui se falou muito de comunicação não verbal.

BION: A comunicação não verbal é muito difícil de interpretar, de transformar ou traduzir num
discurso articulado. Isso vale tanto para o analista quanto para o analisando. Plausivelmente o
analisando espera ter que falar uma linguagem articulada com o analista, e não tem palavras para
fazê-lo. Isto acontece numa variedade de maneiras diversas B aqui podemos discuti-lo novamente
não somente a respeito deste paciente em particular, mas também para colher uma certa
semelhança entre este gênero de comunicação e o paciente que responde com rios de lágrimas.
As lágrimas como os sorrisos, não têm significado. Assim o analisando está às voltas com o
problema de descobrir um método para comunicar aquilo que quer dizer. Recorrendo a uma
modalidade histórico-narrativa da situação B do nascimento à morte B o cheiro pode ser um
desses meios de comunicação de grande alcance. Portanto alguma fase do desenvolvimento do
paciente B ou para dizer melhor, algum aspecto do paciente no momento atual B revela ainda a
existência de um resíduo deste estado mental, ou do que eu sou forçado a chamar de Aestado
mental@. Onde está situado este cheiro? Anatomicamente e fisiologicamente podemos produzir

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qualquer tipo de teorias fundamentadas em nossos conhecimentos de embriologia e assim por
diante, mas por enquanto deixemos de lado tudo isso; de onde está surgindo este cheiro no
momento em que, aparentemente, estão presentes estas duas pessoas na sala? Digo
Aaparentemente duas pessoas@ por causa do domínio daquilo que se poderia definir como um
ponto de vista racional B existem só duas estruturas anatômicas na sala. Mas é difícil saber
quantas mentes ou personalidades estão presentes, e qual é a fonte daquele cheiro.
Sendo mais uma vez indulgente com a imaginação especulativa, diria que este paciente tem
realmente grande dificuldade para dizer que vem para ser alimentado mentalmente. Se por acaso
conseguisse re-mobilizar um equipamento extremamente primitivo, então talvez pudesse cheirar
o lugar em que espera encontrar algum nutrimento mental. Mas suponham que ao mesmo tempo
o paciente esteja temendo emitir um cheiro que o torne localizável, de maneira que alguma coisa
possa chegar como predador sobre ele. Neste caso eu começaria a ter a suspeita que talvez o
paciente tenha medo de ser devorado, e que às vezes tenha medo que o analista se dê conta que
ele mesmo é comido, utilizado para fornecer nutrição mental.
Então por que não falar assim? Por que não podemos dizer-lhe que deseja uma análise, que
deseja que as suas necessidades emocionais ou intelectuais sejam satisfeitas? A resposta óbvia
seria: APorque não pode@. A linguagem articulada, que pode ser compreendida por outro e que o
paciente pode entender, não está ao alcance do próprio paciente. Assim teme que não haja
nenhuma possibilidade de receber a ajuda que ele quer por parte do analista. Esta é uma situação
realmente muito comum. Acho sempre assombroso constatar quão poucos são os pacientes que
acreditam que se possa receber algum alívio. O mesmo vale para os analistas: têm a sensação de
não ter nenhuma prova de que o tipo de conversação que tem lugar na análise possa satisfazer
alguém ou alguma coisa. É necessário muito tempo para que se esclareça que de fato o
relacionamento psicanalítico está produzindo uma experiência de nutrição para ambas as partes.
O mesmo vale para o paciente que repete Aterrível, terrível@. Tudo isso é dito na vaga esperança
de que surja alguém ou alguma coisa capaz de compreender aquilo que ele está comunicando e
capaz de fornecer a correta nutrição mental. É uma questão muito duvidosa, se estes pacientes
terão condições de vir na análise por um período de tempo suficientemente longo para descobrir
se vale a pena fazê-lo.
O gênero de coisas que estive dizendo, são generalizações. Dia após dia, livre associação após
livre associação, temos que lidar com um pedacinho desta história fundamental. Em primeiro
lugar há este problema de como encontrar algo de que possamos nos nutrir sem sermos devorados
no decurso do processo; além disso, existe o problema de como fazer alguém saber que ele está
aterrorizado, sobretudo numa situação em que é possível que não haja ninguém. Em ambos os
casos os pacientes recorrem a um método de comunicação obscuro, primitivo e talvez
incompreensível. Então eles podem ter a sensação de que ABem, daqui não sai nada, mas não
importa. Não está indo pior do que antes@. Mas se o analista foi capaz de fornecer interpretações
suficientes para guiar o paciente até o pensamento de que pode existir alguém que entenda, então
o terror se desencadeia.
Para esclarecer mais este ponto, vou utilizar uma imagem pictórica: um grupo de cinco pessoas
tinha sobrevivido a um naufrágio. Os outros tinham morrido de fome ou tinham caído dos
destroços da jangada. Não tiveram nenhum medo, mas se aterrorizaram quando pensaram que um
navio pudesse estar se aproximando. A possibilidade de serem salvos, e a possibilidade ainda
maior de que a presença deles não fosse notada na superfície do oceano, os levou ao terror. Antes
o terror tinha afundado, por assim dizer, nas envolventes profundezas da depressão e do

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desespero. Assim o analista, no alarido do sofrimento, da falência da análise, da inutilidade deste
tipo de conversação, deve de qualquer modo ter condições de ouvir o som deste terror que indica
a posição de uma pessoa que começa a ter esperança de poder ser salva.
Tomemos em consideração este paciente que fareja não só a possibilidade de que o analista possa
nutri-lo mas também a possibilidade de que o analista possa devorá-lo. Vamos por a questão
utilizando termos mais racionais: o analista vai compreendê-lo? Ou o analista vai prendê-lo num
hospital psiquiátrico de onde não vai poder fugir? Que interpretação vocês lhe dão? Esta,
extremamente sofisticada, dizendo: AO senhor teme ser trancado num hospital psiquiátrico?@.
Nesse caso, o paciente poderia não entender por que o analista estaria dizendo isso, nem o que
fazer com o que ele disse. Esta questão pode ser decidida somente pelo analista ou pelo
analisando, ou também por ambos, porque é uma situação extremamente delicada. Eis porque eu
não gosto de me lançar em teorias que não têm nada a ver com o efetivo paciente e com a
experiência efetiva. Poderia dizer de novo que, mais o analista consegue colher a riqueza extrema
da situação que se verifica numa efetiva sessão em que o paciente vem, maior a oportunidade que
ele poderá ter de conseguir decidir: ANão, não quero dar esta interpretação, vou dar esta outra@.
Se lhe digo que teme ser encarcerado num hospital psiquiátrico, pode ser que este paciente, já tão
aterrorizado, se assuste tanto que não possa mais continuar a análise. Ou, se eu lhe digo que não
tem o sentido da olfação, a situação poderia mais uma vez, ser sem esperança. É necessário dar-
lhe uma interpretação que forneça ao paciente a possibilidade de saber que foi compreendido, e a
possibilidade de sentir que não vai ser encarcerado ou devorado.
Este é em parte um subproduto do fato que, graças ao discurso articulado, parece que nós
estabelecemos um contato, uma relação verbal. Portanto o paciente que tem destas experiências
aterradoras pode ter medo de que o terror seja comunicado ao analista, e que se ele, o paciente,
não foge, vai ser o analista a fugir. Voltando para a experiência de grupo, posso dizer que o
paciente tem medo de uma situação que pode evoluir para o ataque ou fuga, e que pode se
expressar em níveis sofisticados da mente do analista que diz: APois bem, penso que o senhor
esteja curado@ e termina a análise B em outras palavras, foge. Ou então se zanga e diz: AOh, não
seja tão tolo, não seja tão ridículo@.
Penso que seja necessário interpretar para o paciente a sua relação com ele mesmo. Ele não tem
simplesmente medo de ser comido pelo analista ou pelo hospital; tem medo de ser comido por
ele mesmo. Por exemplo, suponhamos que o paciente ache que a masturbação tem um efeito
calmante e que a angústia é um pouco aliviada pela estimulação dos genitais. Então surge o medo
de que o prazer da masturbação possa se apoderar dele, de ficar louco B um medo muito comum
com que nos deparamos quando as pessoas têm condições de exprimir as próprias sensações de
medo de enlouquecer, mas habitualmente não sabem o por quê. Habitualmente pode-se remontá-
lo a uma experiência agradável e gratificante.
Voltando ao ponto que tínhamos chegado ontem: a importância da capacidade do analista de
fornecer um espaço em que se possa evoluir. Qualquer que seja o corpo teórico que os atraiam,
deveriam sempre considerar se nele existe espaço para que vocês possam se expandir. Não
deveriam ter medo dessas imaginações especulativas e dessas razões especulativas que são
extremamente vulneráveis e que podem ser destruídas pela mais leve inclemência meteorológica,
por assim dizer. Se se encontram pensando ou imaginando que esta ou aquela história possa ser
pertinente, deveriam se permitir alimentar aquele pensamento na esperança de que ele possa
crescer até se tornar uma idéia comunicável.

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PART.: Gostaria de perguntar ao Dr. Bion se a postura metodológica proposta por ele como algo
continuamente em renovação, fermentando ou para melhor dizer em estado nascente, pode ser
relacionada ou ter certos elementos em comum com a tradição oriental, ou mais precisamente
com o tipo de ensinamento que os gurus ou dos Yogas dispensam aos seus discípulos, porque
tudo o que aconteceu até agora evocou-o em mim com maior força.

BION: Assim espero, porque desconfio bastante diante de um método de tratamento que surja de
improviso do chão ou que surja do céu. Não sei por quê, mas sou preconceituosamente inclinado
a reconhecer o meu débito de gratidão para com meus antepassados. Não acredito que me
importe muito por ser acusado de culto aos ancestrais B gostaria de estar em condições de
reconhecer algum gênero de gratidão para com os meus ancestrais.
Tomemos um antigo habitante desta cidade; ele diz: AVixere fortes ante Agamennora multi, sed
omnes illacrimabiles urgentur ignotique longa nocte, carent quia vate sacro@. AMuitos corações
corajosos viveram antes de Agamenon, mas todos viajaram para a longa noite não louvados e não
cantados por falta de um poeta sagrado@**3. É reconfortante ouvir que as nossas brilhantes
teorias psicanalíticas não constituem necessariamente uma barreira que, mesmo nos colocando
sem dúvida numa posição de superioridade em relação aos nossos ancestrais, não nos isola deles
para sempre. Não tenho nenhum motivo para me lamentar da satisfação causada por uma
sensação de sucesso por ter alcançado um insight analítico, mas é uma grande pena se este se
tornar ossificado e fibrosado, em uma espécie de diafragma impenetrável que nos separa para
sempre dos nossos ancestrais. Se Horácio pôde reconhecer a existência de poetas que viveram
muito tempo antes dele, não acredito que haja algum mal no fato de que nós reconheçamos a
existência de nossos predecessores mesmo se nunca ouvimos falar deles.

PART.: Queria dizer que tenho a agradável impressão, hoje, que enquanto o Dr. Bion ontem nos
propunha a busca de um objeto, hoje está nos dando coordenadas, posições da nossa situação e
então parece-me que, para voltar um instante para a situação das pessoas na jangada, pergunto-
me se seria uma coisa útil fazer chegar até elas a idéia de perspectivas reversíveis. Isto é, um
instrumento óptico, eu diria, que lhes pudesse fazer ver algo a mais, mais do que mostrar-lhes um
objeto. Agora eu poderia exemplificar a coisa talvez através de uma situação de grupo em que
havia uma situação, há talvez dez sessões, em que uma garota ofegava durante as duas horas
inteiras da sessão. Agora (devo dizer que não entendia nada daquela situação) mas partindo deste
fato pensei que seria necessário procurar uma outra maneira de considerar a situação ou, seja
como for, de antes tirar de mim a minha incapacidade de pensar, e parecia-me que,
sucessivamente, quando eu compreendi que isto tinha conexão com a covardia, pareceu-me
possível propor ao grupo que não considerassem a coisa pela dimensão médico-sacrificial, mas
do ponto de vista da impossibilidade de desenvolver-se em uma dimensão de passado e futuro.
Queria somente acrescentar que é uma tentativa de comunicar.

BION: A situação psicanalítica estimula algumas sensações muito primitivas, inclusive as


sensações de dependência e de isolamento; são ambas sensações desagradáveis. Portanto não há
que se maravilhar se um membro do par, e provavelmente os dois, estão cientes de que a jangada

3
** Horácio: Odi IV, IX

17
psicanalítica em que se agarram na sala de análise B naturalmente muito bem mascarada com
cadeiras confortáveis e todo tipo de comodidade moderna B não deixa de ser uma jangada
precária num mar tumultuoso. Além das várias teorias e interpretações que o analista exprime, é
necessário que nós saibamos que as duas pessoas estão efetivamente empenhadas numa aventura
perigosa. Existe sempre uma certa tendência de agarrarmo-nos em algum pedaço de destroço B
em alguma teoria ou idéia psicanalítica B como se fosse um salva-vidas que permite aos dois
sentirem que estão ainda vivos e à tona. Um pedaço de destroço bastante comum é representado
pela idéia de uma Acura@; nos agarramos febrilmente até mesmo ao último pedacinho de cura
disponível para nos mantermos à tona. O analista deveria ter condições de se abster de fazer isso,
porque, mesmo podendo ter um efeito terapêutico temporário, se for repetido continuamente
torna-se uma tóxico-dependência B os dois se tornam tóxico-dependentes das curas. E nesta
esfera particular de que nos ocupamos existe uma grande quantidade de curas que bóiam ao
redor. Assim é bom que o analista B enquanto se identifica com a pessoa responsável B resista à
demasia destas curas baratas que são susceptíveis de serem construídas em estruturas elaboradas
de maneira que mesmo antes de saber onde você está, a jangada construída com pedaços de
destroços, se transforma num sistema delirante que é um autêntico Titanic. Como todos sabemos,
o Titanic era inafundável, era a última descoberta B mas bateu contra um fato, e isto o fez
afundar.
Do ponto de vista matemático, as linhas, as circunferências e assim por diante foram
profundamente modificados pela sua transformação em vetores, em direções. Gostaria de propor
isso: com o propósito de discussão, consideremos que esta experiência seja um fato. Abrindo
novamente caminho através de imaginações especulativas, razões especulativas, podemos
reencontrar aquele sonho que ainda não fizemos, o sonho da próxima noite, o sonho que tem por
origem o fato desta reunião? Se pudéssemos fazê-lo, então estaríamos em condições de
reencontrar a série de pensamentos que poderiam nos ajudar a explicar por que motivo é que nos
encontramos todos nesta sala logo agora. Este é um daqueles Afatos@ que deveríamos classificar
como Aincríveis@. Se alguém tivesse escrito, ou pudesse escrever, a história de cada um dos
membros desta reunião, e tivesse dito que nós nos teríamos encontrado nesta sala peculiar, neste
peculiar hotel, nesta peculiar data e hora, qualquer um lendo a história diria: AQue coisa
ridícula!@. Não existe nenhuma história que seja tão incrível como a história verdadeira.

PART.: Depois da intervenção sobre a questão dos antepassados, e a citação de Virgílio, etc.
encontrei-me pensando no ponto 7 da citação de Freud, de ontem, em que parecia que frisasse a
continuidade entre a vida intra-uterina e a primeira infância, mais do que a cesura do nascimento,
que, pelo contrário, foi muito enfatizada.
Agora, quando o Dr. Bion fez a sua apresentação, ontem, quando referiu-se ao conceito de trauma
de nascimento de Otto Rank, eu tinha entendido que ele tivesse feito uma certa referência ao fato
de que nós somos Ademasiadamente impressionados pelo trauma do nascimento@. Este é um
ponto sobre o qual eu tinha por um momento discordado da tradutora que, ao invés disso, tinha
traduzido que nós estamos não suficientemente impressionados pelo trauma do nascimento.
Agora, eu gostaria, se o Sr. pudesse elaborar, porque não quero fazer muito ruído.

BION: Não me dei conta de ter dado ênfase ao fato de estarmos ou não estarmos impressionados
pela cesura do nascimento. Queria afirmar que a cesura do nascimento, o fato anatômico e
fisiológico, tem um efeito dominante sobre aquilo que pensamos a respeito do problema se

18
também a mente nasce no momento do nascimento fisiológico.
Quando vocês se encontram no estado mental de uma pessoa acordada, com todos os sentidos
disponíveis e em estado de consciência, que relação há entre o que vocês dizem ter sonhado e
aquilo que experimentam quando se encontram num estado mental diferente, vale dizer no estado
mental em que estão quando estão adormecidos? Às vezes me dizem que o paciente teve um
Asonho@, e que o teve porque tinha acontecido alguma coisa qualquer. Não estou tão certo que
Ade fato@ o paciente tenha sonhado; e nem estou tão seguro de que Aos fatos@ sejam como ele os
descreve. Existem várias maneiras de chamá-lo: sonho, delírio, alucinação e assim por diante. As
palavras tornaram-se tão degradadas a ponto de serem praticamente destituídas de significado, se
algum significado é atribuído a elas, aquele significado é praticamente inútil. Desta maneira não
é muito surpreendente que o paciente de quem ouvimos falar pense que exista muito a dizer em
favor da música. Alguma vez vai lhes acontecer de se perguntarem por que um paciente vai até
vocês e por que o paciente começa a dizer o que lhes diz. Como primeiro passo pode ser muito
útil ter um analista que, pode dizer o paciente pensa isso ou aquilo B é uma relação entre duas
pessoas. Mas na realidade uma relação que o analisando tem com o analisando. O embrião
altamente inteligente vê e experimenta qualquer coisa que veja ou experimente; também o
homem ou a mulher altamente inteligentes fornece um relatório muito convincente do que está
acontecendo. Surgiriam algumas dificuldades se por acaso pudéssemos apresentar esta pessoa
altamente inteligente e já nascida ao embrião altamente inteligente que poderia contar histórias
completamente diferentes, algumas narrações diferentes dos mesmos fatos. Pergunto-me que
diálogo se desenvolveria entre o Ainafundável@ Titanic e os seus passageiros, aqueles que ele fez
afundar, se pudessem se encontrar. Se eles se encontrassem antes do fato dramático poderiam
dizer: ATive um sonho terrível@. Alguém poderia replicar: Anão seja tolo B foi só um sonho@.
Deixo-os imaginar o que diriam depois.
Capítulo Terceiro

Roma, 10 de julho de 1977

PART.: Gostaria de perguntar ao Dr. Bion se ele poderia esclarecer o seu pensamento a respeito
da contratransferência, porque tenho a impressão de que seja esse o tipo particular de ruído da
mente do analista, que pode ser percebido durante a experiência psicanalítica. Pergunto se não
pode também conter elementos musicais e então me pergunto se deveríamos dispor as nossas
mentes como um fonógrafo de alta fidelidade que possa selecionar o sinal dos ruídos, mas ao
mesmo tempo permitir, como caixa de ressonância, a recepção da totalidade dos estímulos
sonoros, mesmo a custo de perder a nitidez da melodia.

BION: A idéia da transferência e da contratransferência foi extremamente produtiva, provocativa


e estimulante do crescimento. Mas, como toda idéia realmente boa, como tudo aquilo que
provoca ou estimula o crescimento, envelhece rapidamente. Quando os indivíduos se expõem
pela primeira vez à experiência psicanalítica, não compreendem o que seja essa experiência, nem
como se chama. E o analista não diz: "O senhor está experimentando a transferência em relação a
mim" C este é um termo técnico, útil para as pessoas que já tiveram a experiência de treinamento
psicanalítico. Entretanto, após um certo período de tempo, o iniciante começa a entender que o

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analista está atraindo a sua atenção para uma experiência efetiva que ele está tendo. Se ele está se
tornando analista, pode ser que chegue a um ponto no qual podemos dizer-lhe: "Isto é o que nós
entendemos por transferência C esta é uma manifestação da transferência. A sua sensação de que
eu seja seu pai ou sua mãe pode ser comparada com outras idéias que o senhor tem; o senhor
pode juntar a idéia que eu seja seu pai ou sua mãe, e a idéia que eu seja um estranho que o senhor
não conhece. Depois, o senhor pode decidir por conta própria quem ou o que o senhor pensa que
eu seja C isso é assunto seu. Desse modo, nasceu uma idéia nova. A idéia que o senhor tinha
antes C isto é, que eu fosse um consangüíneo, um pai ou uma mãe C é uma idéia passageira; é
uma idéia passageira no caminho da sua vida. Desse ponto de vista, o termo técnico de
"transferência" pode ser considerado um termo que tem uma certa semelhança com aquele de uso
corrente. É uma idéia que o senhor tem "durante o caminho" C a transfere para mim como
medida transitória, enquanto caminha para alcançar aquilo que o senhor pensa ou sente de fato.
Enquanto isso, a idéia nova que o senhor tem é uma idéia transitória e mais cedo ou mais tarde
será descartada. É um outro dos pontos de parada da sua viagem particular. Se o senhor puder
observar essas várias idéias que o senhor tem ao longo dessa experiência comigo, pode ser que o
senhor esteja em condições de traçar uma espécie de mapa que ilustre as etapas da sua viagem do
ponto A ao ponto Z. Onde o senhor se encontra agora, tão logo tenha visto esse ponto, ele já está
superado".
Conseqüentemente, diria que quase não vale a pena falar da idéia de transferência e de
contratransferência para este público. Isto estaria bem se nos ocupássemos de escrever a história
da psicanálise; nesse caso talvez poderia ser interessante dizer: "A transferência, segundo a
definição de Abraham é... A transferência segundo a definição de Melanie Klein é...".
Resumindo, permitam que eu lhes ofereça a "Enciclopédia da Psicanálise". Encontrarão escritas
todas as definições se quiserem conhecer a história. Mas se na realidade vocês estão fazendo uma
experiência psicanalítica, então é uma coisa diferente. Perguntaram para Nansen: "Como
conseguiu atingir o Polo?" Ele respondeu algo assim (desenha na lousa): "Este é o meu caminho".
É uma representação pictórica da maneira como Nansen descobriu o Polo Norte; eis como ele
chegou, este é o mapa. Ele o desenhou muito melhor do que eu C apesar de ter acabado de
saborear um ótimo almoço.
Na experiência analítica efetiva não há tempo para fazer isso; não há tempo para fazer esse tipo
de discussão. Assim que o paciente começa a compreender o que é a experiência analítica, ele
muda tão rapidamente, que aquilo que ele pensava ou sentia no início de uma frase já está
superado no momento em que ele chega ao fim da própria frase. Eis porque, quando estiverem
satisfeitos pelo fato de que o paciente está efetivamente evoluindo, é bom que tenham condições
de esquecer aquilo que sabem e de deixar de lado aquilo que querem que aconteça. É difícil
liberar a mente do peso da própria experiência; corremos o risco de atrapalhar o caminho do
paciente, aderindo a idéias já superadas e conseqüentemente corremos o risco de não estarmos
em condições de perceber o evolver do paciente em direção a alguma outra idéia.
Como eu disse ontem, creio que seja positivo sermos capazes de reconhecer a dívida que temos
para com nossos antepassados C nossos antepassados mentais. Que nós, como analistas,
conheçamos o significado do termo "transferência" e "contratransferência" assim como eram
utilizados por Freud, Abraham, Melanie Klein, ou por qualquer outro, é inteiramente oportuno
somente se aprendemos a esquecer tudo isso de maneira a estarmos abertos a captar o próximo
movimento feito pelo paciente C a próxima etapa, por assim dizer.

20
O paciente que tem antecedentes genéticos bem dotados C um pai e uma mãe muito inteligentes
C é produto daquilo que os biólogos definem como uma "relação sexual" entre aquele pai
particular e aquela mãe particular, e portanto se desenvolve de um germe que tem cromossomos
derivados de ambas as partes. Se o desenvolvimento se manifesta adequadamente em termos
físicos, pode então ser traduzido nos termos daquele gênero de hereditariedade. Mas se há algo de
parecido a uma mente, um espírito ou uma alma, pode ser que não siga as mesmas leis de
hereditariedade de Mendel. Como psicanalistas que acreditam na existência de uma mente,
devemos então considerar quais sejam as leis da hereditariedade da mente. Provisoriamente,
transitoriamente, caminhando em direção a algo de melhor, gostaria de propor algo como
"fenótipos" em contraposição a "genótipos". Supondo algo desse tipo, poderíamos ter condições
de descobrir as leis, a hereditariedade, as características adquiridas que segundo Mendel não são
transmitidas. Eu presumo que exista a imaginação especulativa, a razão especulativa, para o
desenvolvimento precoce daquelas características que são mentais e que, como já sugeri,
possuem uma forma de hereditariedade diferente dos genótipos.
Cada um de nós individualmente encontraria enormes dificuldades para descrever o próprio
percurso mental e a própria hereditariedade mental. Quem ou o que foram os seus pais? Não
quero que vocês me falem de seus pais genéticos; quem são os outros? Vocês poderiam dar uma
olhada no seu caráter ou na sua personalidade, essa estranha coisa de cuja existência eu estou
certo? Convenci-me com base na minha experiência C em parte como analista, mas também com
base na totalidade da vida C que há algo como um caráter ou uma mente. Creio não ser sempre
impressionado pelo aspecto físico de uma pessoa, mesmo que, graças ao predomínio da visão, é
provável que o elemento cosmético influa muitíssimo e portanto podemos ser imediatamente
tomados por uma sensação de simpatia ou de antipatia em relação a alguém. Não precisamos
nem mesmo ir além da profundidade da pele, no sentido literal e metafórico. "Não gosto daquela
pessoa C é um "branco" ou um "negro". Seria ridículo que um médico se recusasse a examinar
um paciente porque tem uma cor caquética, ou porque tem sinais de inflamação ou então
icterícia. Espera-se que, como médicos, não tenhamos preconceitos desse tipo em relação ao que
nos diz o corpo, porque presume-se que o exame que fazemos daquele corpo deva se aprofundar
e não permanecer em nível cutâneo. A situação não é muito diferente se se presume que nós nos
ocupamos da mente humana, ou do caráter ou da personalidade. Se somos sensíveis a essa
pressuposta "coisa", então é irrelevante o fato de não gostarmos daquela pessoa C ou aquele
caráter, ou aquela personalidade. Inclusive presume-se que saibamos algo a mais do caráter ou da
personalidade, quer gostemos ou não.
Como analistas temos que nos disciplinar para uma situação na qual, quaisquer que sejam os
fatos, não permitamos que eles nos façam fugir, ou então ao contrário C nos apaixonar.
Presume-se que permaneçamos sempre analistas.
Não somos obrigados a nos tornar pessoas desumanas que não podem nem amar nem odiar;
supõe-se que conservemos sempre a capacidade de ter sentimentos de amor e de ódio e todos os
outros sentimentos que andam pari passu com eles, mas ao mesmo tempo supõe-se que possamos
nos manter disciplinados. Poderíamos pegar uma ação de guerra como exemplo extremo do que
quero dizer: não se presume que um oficial tenha medo, mas isto não significa que ele não saiba
que a situação é perigosa. E também não deve deixar-se levar por uma vitória ao ponto de
pressupor que a guerra acabou. Este é um dos motivos pelos quais, na vez passada, lhes disse que
nós estamos circundados por destroços de curas espalhados por todo canto C os restos dos
destroços do desastre no qual alguém foi naufragado pelos tratamentos, naufragado pelos seus

21
desejos, desviado pelas suas esperanças e pelos seus medos C qualquer que seja a parte que se vê
na superfície, como um iceberg. Como diz o poeta: "Se as esperanças são dos que se iludem, é
possível que os medos sejam dos mentirosos"*4.
Temos um sistema de coordenadas que pode nos fornecer a idéia de onde nós estamos, de onde
está a dupla C o analista e o paciente? Podemos ter uma idéia da evolução de uma pessoa, em
termos narrativos, tomando dois pontos, A e B, e a direção que seria de A em direção a B. Estes
dois pontos, A e B, poderíamos defini-los "reais e distintos". De qualquer forma, suponhamos que
os dois pontos sejam móveis; eles poderiam então viajar ao longo da circunferência de um
círculo e tornarem-se, portanto, "reais ou coincidentes". E se tentamos desenhar os dois pontos
que são reais e coincidentes, podemos dizer que eles se encontram e traçam uma linha que é uma
tangente.
Consideremos essas duas pessoas C o analista e o analisando C elas se encontraram em um ponto.
Não sei que caminho espiritual tenha tomado o analista, o percurso feito pela sua mente entre o
ponto no qual se presume que tenha tido início a sua existência, e o ponto no qual tornou-se
"coincidente" com uma personalidade completamente diferente C coincidente e real.
Suponhamos que esses dois pontos continuem a sua viagem; o analista e o analisando continuam
a viver; não param na psicanálise; não param nesse ponto no qual são reais e coincidentes.
Ensinaram-me chamá-lo de "complexo conjugado"*5. Não tinha C e ainda não tenho C nenhuma
idéia específica de como traduzi-lo. Estou contente por descobrir que também a minha tradutora,
aqui, teve um momento de hesitação. De qualquer forma, eu uso essas duas palavras "complexo
conjugado" como pontos imaginários. Estou certo C e espero que haja um matemático que possa
me confirmar isso C que esses dois pontos imaginários ainda obedecem às leis dos reais. Desta
forma penso que deveríamos considerar, como se fosse real, que o analista e o analisando
continuam a existir mesmo quando a análise terminou, quando esses dois pontos, que são reais e
distintos, reais e coincidentes na sala de análise, continuam em um espaço do qual eu não sei
nada porque aquela mente, que não está mais em contato comigo, foi para não sei onde.

PART.: Estava me perguntando, nessa alquimia de existências humanas, de pensamentos que se


encontram, se o Dr. Bion poderia me precisar o papel da necessidade do ser humano de saber e
de conhecer, que seria o elemento K, creio. E uma segunda coisa: o papel, no paciente, da
necessidade de exprimir a alguém a vontade de conhecer.

BION: Eu penso que esses são os traços que restaram de características fundamentais que ainda
não foram destruídas nem pela incapacidade de tolerar a ignorância, nem pela incapacidade de
tolerar a resposta. Pelo que eu sei de mim, o perigo ao qual se submete aquele que me fizer uma
pergunta é o de receber uma outra avalanche de perguntas. Procuro resistir à tentação de dizer:
"Sim, eu sei; sei da transferência; sei da contratransferência". Em parte, sou ajudado pelo fato de
que eu não sei. O desenho no qual Nansen mostrou exatamente como chegou ao Polo Norte não
me diz C e jamais o saberei Co que é ser Nansen vagando pelas regiões desérticas do Ártico. Sei
apenas um pouco do efeito de ser eu mesmo que circulo pelos reinos da mente humana. Espera-

4
** If hopes are dupes, fears may be liars. A Se esperanças são enganos, medos podem ser mentiras @ (Trad. J.A.
Junqueira Mattos).
5**
Conjugate complex.

22
se que seja um âmbito relativamente limitado C talvez não tão perigoso como circular nos reinos
da onisciência e da onipotência. Há várias imagens pictóricas, imagens narrativas, fábulas, nas
quais se presume que a tentativa de comer o fruto proibido da árvore da sabedoria excitou os
perigosíssimos monstros da onisciência e da onipotência. Deixar-se dominar ou motivar-se pela
curiosidade, pelo nosso desejo de saber, parece ser uma ocupação perigosa, sobretudo se nos
encontramos com uma outra mente que tem características de onisciência e onipotência. Como
diz Milton: "...quem ousa desafiar o Onipotente, às armas". Como analistas nós talvez sempre
corramos o risco de fazer perguntas a qualquer pessoa ou a qualquer coisa que vista trajes de
autoridade. Não é somente a investigação psicanalítica a ser suspeita, mas também qualquer
atividade que fornece armas melhorando a mente e os instrumentos de que dispomos para
investigar o desconhecido.

PART.: Gostaria de retomar a imagem do Dr. Bion da dupla analista-analisando que se


encontram em um determinado momento, em um ponto real e coincidente e que sucessivamente
se divide e diríamos que cada um dos membros da dupla parte pela tangente. O Dr. Bion disse
que apesar disso, a dupla continua existindo, porém, não sabe de que forma e onde. Eu estava me
perguntando se existe uma transformação de uma relação que é, na relação analisando-analista,
relação de objeto e sucessivamente esse objeto, que parte pela tangente, torna-se um objeto
espacializado: torna-se uma área, um espaço. E isso tanto para o analisando quanto para o
analista. Isto é, eu queria perguntar ao Dr. Bion a correlação entre uma relação com um objeto
real e com um objeto espacializado.

BION: Duvido que algum de nós jamais o saberá, visto sermos tão efêmeros, vivemos por tão
pouco tempo. Sentimos que nós, este grupo, temos uma existência anterior a essa reunião. Podem
colocar qualquer número de anos se acharem que o calendário lhes fornece uma medida
adequada. Mas algumas órbitas da terra em torno do sol é um método absolutamente
insignificante de contar o tempo. Da mesma forma, a distância entre Roma e Los Angeles é muito
curta. Assim as medidas, sejam de espaço, sejam de tempo, não são adequadas. Essas duas
"coisas" C preciso tomar emprestado da linguagem dos objetos materiais C deixam a sala de
análise e vão para o espaço e tempo. É bastante difícil achar uma coordenada do espaço
geométrico; foram necessárias várias centenas de anos antes que fossem produzidas as
coordenadas cartesianas, e quando isto aconteceu foi por acaso. As coordenadas do tempo e do
espaço nas quais acabam indo parar esses dois caracteres ou almas ou personalidades C mais uma
vez não estou em condições de dar um nome preciso C são muito difíceis de serem determinadas.
Nem a nossa imaginação está livre se tentamos imaginar o que ocupava esse espaço aqui no lapso
de tempo relativamente insignificante dos dois mil anos passados, quem ou o que ocupava aquela
que nós chamamos de ARoma@. Mas a mesma coisa vale para aquele espaço que é ocupado por
"Roma" e por aquilo no que será transformado no espaço de dois mil anos C que, como eu dizia,
é um arco de tempo relativamente insignificante. Por aquilo que se refere ao espaço absoluto, os
astrônomos imaginam que o sistema solar terá completado o seu curso quando terá dado uma
volta em torno do centro galáctico. O cálculo que eu vi fazer, mais recentemente, é de que o
diâmetro seria de cerca de 108 milhões de anos luz C um tempo enorme.
Apesar disso, penso que poderíamos acrescentar uma mínima fração de conhecimento a esse
problema das coordenadas com o qual poderíamos traçar o percurso dessas duas pessoas quando
deixam a sala de análise.

23
Gostaria de dar um exemplo, que freqüentemente uso, do tipo de coisa que quero dizer. Hugh
Kenner estava falando com um camponês em Warwickshire e fez uma referência à beleza
daquelas flores que eram chamadas de "dente de leão". O jovem respondeu: "Sim, são chamados
de rapazes e moças de ouro, e depois, quando as pétalas caem, são chamados de limpador de
chaminés". Hugh Kenner conhecia muito bem uma canção extraída do "Cymbeline" que tem
esses dois versos: "Rapazes e moças de ouro, todos devem, como limpadores de chaminés, chegar
ao pó".
O jovem de Warwickshire, mesmo sem ter nenhuma instrução, estava utilizando uma linguagem
que, no tempo de Shakespeare, devia ser uma linguagem de uso corrente. Portanto é possível que
Shakespeare estivesse fazendo uma observação óbvia C como os limpadores de chaminés chegam
ao pó. Não sei o que Shakespeare pode ter pensado.
Capítulo Quarto

Roma, 13 de julho de 1977

BION: De certa maneira é uma vantagem para mim, saber que não conheço nada do italiano,
porque acredito que vocês podem ser desencaminhados pela vossa crença de que sabem o
italiano. Parece que os pacientes falam francês, ou inglês, ou italiano, mas o que nós queremos
ouvir não é nenhuma destas línguas. Acho difícil dizer qual linguagem precisamos escutar; o
máximo a que posso chegar é dizer que é a linguagem daquilo que Freud chamaria de Ao
inconsciente@.
Recentemente, eu vi estes conceitos expressos com extrema clareza pelo Dr. Matte Blanco que
aponta para este fato estranho de que Freud às vezes fala de Ao inconsciente@, e outras vezes fala
de alguma coisa como sendo Ainconsciente@. São duas coisas diversas. Além do que tive
oportunidade de me encontrar com algum material que parece que nunca foi o que Freud teria
definido como Aconsciente@. A Dra. Segal descreveu uma situação em que um paciente diz que é
óbvio que alguém que toca o violino está se masturbando**6. Eu tive um paciente que, comecei a
sentir, revolvia a sua mente ao contrário. Isto é, como roupas revolvidas ao avesso, aquilo que
deveria estar dentro está fora. Recorrendo à linguagem metafórica, poderia dizer que o paciente
se comportava como se o seu inconsciente estivesse fora. Assim, as interpretações que nós
poderíamos pensar como sendo formulações apropriadas de pensamentos e idéias inconscientes,
na realidade para o paciente são óbvias constatações; não tem ele dificuldades do tipo de pensar
que o analista possa estar dizendo coisas que são óbvias. Por outro lado, se recorrermos à maneira
costumeira de falar, ao pensamento vígil, ao pensamento consciente, o paciente diz: ANão sei o
que o senhor quer dizer@. Ele não tem nenhuma dificuldade para entender uma interpretação
psicanalítica que nós podemos considerar como Ainconsciente@, mas não está em grau de
compreender a linguagem que nós falamos quando estamos completamente acordados,
plenamente conscientes e conhecedores do que nós chamamos de Aos fatos@, a Arealidade@.
Achava isso difícil de compreender B e ainda agora o considero difícil. E descobri também que
me deixava zangado. Pensava ter mantido uma postura disciplinada e ter sido educadíssimo, em

6**
N. do T.: Segal, Notes of Symbol Formation, Int. J. of Psychoanal. 1957

24
vez disso, o paciente não teve absolutamente nenhuma dificuldade em perceber que eu estava
chateado. Também isso me chateava; não estava disposto a ser analisado pelo meu paciente. Mas
persisti, e o meu paciente também.
Depois de algum tempo chamei a atenção do paciente para o fato de que ele não me havia dito
por que tinha vindo até mim, nem o que ele queria que eu fizesse. A sua resposta foi: ANão fiz
outra coisa além de lhe dizer isso por todo este tempo. Quer me dizer agora que não sabe?@ Pois
bem, eu não sabia. Tive a impressão que deveria pensar muito sobre essa situação extraordinária.
Por que o paciente continuava a vir? Eu não sabia.
Um outro paciente se lamentava muitíssimo do comportamento de qualquer outra pessoa.
Pensando nisso em termos de projeção, tentei chamar a sua atenção sobre o fato de que todos
estavam errados, mas que não havia nada de errado nele. Ainda uma vez refletindo sobre a
questão, não conseguia compreender por que continuava a vir falar comigo. Se a situação era que
A, B, C, D, e assim por diante, eram todos hostis e tão difíceis, o que ele esperava que fizesse eu?
O que esperava que eu interpretasse? Não há nada que eu possa fazer de um universo em que
todos vão mal. Os habitantes deste mundo não vêm afinal todos até mim para serem analisados; a
única pessoa que vem não tem nada que não esteja bem.
Sondava a minha mente na esperança de encontrar alguma interpretação que parecesse se
aproximar desta situação. Pensava nas várias interpretações que Freud dá B especialmente
aquelas que têm a ver com o inconsciente, com a repressão das idéias conscientes, com o
preenchimento de uma lacuna, com espaço ocupado pela amnésia, pela paramnésia B mas não
consegui extrair nada de bom delas. Pensei na idéia de identificação projetiva segundo Melanie
Klein B uma Afantasia onipotente@ em que o paciente acredita poder evacuar os próprios
pensamentos que estão fora de controle mas que, apesar disso, continuam a persegui-lo. Dei
várias interpretações seguindo esta teoria. Não consegui ver que surtissem algum efeito. Assim, o
problema era, a psicanálise serve para alguma coisa? Por que dar estas interpretações B
freudianas, abrahamianas, kleinianas e assim por diante B nenhuma das quais capaz de surtir
algum efeito?
Parece-me que o essencial na análise é que deveríamos ser capazes de pensar estando numa
situação de extrema tensão. Estamos atados pelas ansiedades referentes à nossa capacidade de
fazer um tratamento psicanalítico, e ao mesmo tempo referentes à nossa aparente incapacidade
de fazer alguma coisa a respeito do fato de que, ou as teorias da psicanálise estão erradas, ou
então está errada a idéia que a interpretação certa vá curar o paciente, ou ainda que está errada
alguma outra coisa que não sabemos B ou mesmo todas essas coisas juntas.
Gostaria de continuar a discussão de uma maneira que possa se aplicar mais àquilo que queremos
saber ou que queremos pensar antes de ver o paciente que virá amanhã. De agora em diante
estarei satisfeito de procurar ir adiante em qualquer tema que queiram propor. Posso sintetizar a
questão dizendo: ADaqui, para onde vamos?@.

PART.: Aquilo que o Dr. Bion disse sobre a comunicação extraverbal me fez lembrar uma coisa
dita por Paul Valéry, que disse que a essência do discurso está inteiramente no canto e no som de
uma voz, que são, em vez disso, freqüentemente coisas desconsideradas, negligenciadas. Então
queria coligar esta questão ao problema da distância e do tempo no trabalho da análise, quando
pode-se estar demasiadamente próximos ou demasiadamente distantes em relação ao paciente, e
de quando se pode dizer alguma coisa ou demasiadamente cedo ou demasiadamente tarde. A
respeito do paciente, citado pelo Dr. Bion, que pergunta: AO que pensa o Sr. disso?@ tinha

25
vontade de lhe fazer uma pergunta, isto é, se ele poderia, a partir da própria experiência, nos dar
um exemplo de uma situação em que respondeu logo e de uma circunstância em que, ao invés,
foi levado a esperar.

BION: A pergunta colhe o âmago da questão, vale dizer, qual é o espaço ou o tempo de que
falamos e no qual nos encontramos? Que coordenadas podemos propor para localizar a fonte ou a
origem da dificuldade? Podemos observar a Acoisa em si@? Milton em AO Paraíso Perdido@ diz:
AMas tu, eterna luz, porção divina, / Com tanta mais razão me acode e vale: / Brilha em minha
alma, nela olhos acende / As faculdades todas lhe ilumina, / E de nuvens quaisquer a
desassombra, / A fim que eu livremente veja e narre / Cenas que à vista dos mortais se
escondem**7.@ Somos somente mortais, somente seres humanos, o que podemos fazer para que
as nossas mentes venham a ser iluminadas pela luz celestial, de modo que sejam iluminadas em
todo o seu poder, tornando-nos capazes de ver (primeiro ponto) as coisas invisíveis aos olhos dos
mortais e de falar a respeito delas (segundo ponto)? Hoje o nosso problema consiste em como
podemos fazer para ver, para observar B o que de qualquer maneira é considerado o primeiro
requisito de uma concepção científica B estas coisas que não são visíveis? O que podemos fazer
para ver o invisível, e depois expor o que vemos de tal modo que o paciente possa ver o que nós
queremos que ele veja? Há dois pontos: o primeiro é que tenhamos nós condições de ver; o
segundo, de encontrar uma modalidade de comunicação capaz de descrever o que vimos ao
paciente. Somos capazes de ser pelo menos um pouco científicos na maneira de observarmos os
fatos? Até certo ponto podemos fazê-lo. Pode acontecer que um paciente esteja ruborizado; em
outras palavras, na medida em que o corpo comunica e se tivermos uma experiência suficiente e
um treinamento suficiente como médicos, estamos em condições de observar a vermelhidão que
surgiu no rosto do paciente, que um nãoBmédico não teria condições de ver. Podemos ensinar aos
estudantes de medicina de que maneira devem observar. Dizemos: AVocê deve examinar o
paciente; deve olhá-lo, deve pedir-lhe para tirar a roupa de modo que você possa lhe apalpar o
corpo e deste modo compreender a linguagem falada pelo corpo B ou seja, diagnosticar suas
condições@. Parece-me que não seja em nada diferente do analista que procura interpretar a
mente. Do ponto de vista médico o chamamos Adiagnóstico@; do ponto de vista psicanalítico a
chamamos Ainterpretação@.

7
** ASo much the rather thou Celestial light / Shine inward and the mind through all her power / Irradiate, there
plant eyes, all mist from thence / Purge and disperse, that I may see and tell / Of things invisible to mortal sight@
J. Milton, O Paraíso Perdido, canto III -- tradução de António José Lima Leitão B W. M. Jackson In.. Editores B Rio
de janeiro B 1952. Uma outra versão:
"Brilha, pois, ainda mais interiormente, ó Luz Celestial,
E que a minha mente, através de todos os seus poderes,
Irradie, planta ali olhos; limpa e dispersa deles toda
A névoa, para que eu possa ver e revelar
Coisas invisíveis para o olhar mortal." (Trad. J.A. Junqueira Mattos)

Conceição Sotto Maior assim traduz:

"Brilha, pois, ainda mais interiormente, ó luz celestial! e que o meu espírito, através de todas as suas faculdades,
receba os teus raios luminosos; crava, ali, os teus olhos; limpa e dispersa dele toda a névoa, para que eu possa ver e
dizer coisas invisíveis para o olhar mortal."

26
Dizendo isto, fiz uma separação inteiramente artificial; falei do corpo e da mente como se fossem
duas coisas totalmente diversas. Não acredito nisso. Penso que o paciente que verão amanhã é
único, um todo, uma pessoa completa. E mesmo se dissermos B obedecendo às regras
gramaticais B que podemos observar o corpo e a mente, na realidade não existem coisas como
um Acorpo@ e uma Amente@; existe um Aele@ ou uma Aela@.
Para retomarmos este outro ponto da distância: qual é a distância entre Aaqui@ e Alá@? Qual é a
distância entre o estado mental que é reprimido, e o estado mental que fez com que se chegasse à
repressão? A mesma coisa, posta de maneira diferente: qual é a distância entre a pessoa,
acordada e consciente, que diz: Ative um sonho na noite passada@ e a pessoa que, num estado
mental diferente, viveu o sonho? Suponhamos que a pessoa que dorme não descanse, que se vire
e se revire porque sabe de uma dor. Isto pode acontecer porque está com apendicite, ou pode ser
que tenha alguns pensamentos ou algumas idéias penosas. Quando nos relata que teve um sonho
mau, onde localizam o desconforto? A origem do desconforto é física? ou é aquilo que
chamamos de Amental@?
Este é o problema de vocês amanhã e em todas as outras manhãs que hão de vir. A única pessoa
que sabe a resposta dessa pergunta é o seu paciente. Portanto ele é o único colaborador com o
qual podem realmente contar. Se o paciente estiver doente de leucemia, não sabe o suficiente
para compreender aquilo que o seu corpo está lhe dizendo; ele depende do médico, ou então do
psicanalista, ou de ambos. Um médico, se é versado em medicina, e se sabe como observar, pode
ver que existe uma infecção, algo que produz uma inflamação; isto é o que lhe diz o corpo do
paciente. O que devem observar os psicanalistas? De que maneira devem se inteirar destas dores?
E depois, de que maneira é preciso vê-las B a situação total, corpo e mente, uma única pessoa?
Na sala de análise o analista está completamente só; ele pode depender somente das capacidades
de observação que tem, e do paciente. Analogamente, o paciente não tem ninguém de quem
possa depender, salvo o analista. Portanto, esta situação prática, a prática psicanalítica, comporta
a relação entre duas pessoas B mas, um instante; é apenas entre duas pessoas? Anatomicamente,
fisicamente existem A e B. É real? Há somente duas pessoas? Se observamos e escutamos aquilo
que há na sala, o que olhamos? O paciente? As nossas associações livres? As nossas idéias sobre
o que é isso? Ou então, uma relação entre duas pessoas? Há pelo menos duas pessoas. É isto que
o Dr. Matte Blanco chama de Arelação simétrica@? Ou é alguma outra coisa? Parece-me que esta
seja uma tarefa sobre a qual somente nós que praticamos a psicanálise podemos tomar alguma
decisão. Não serve para nada olhar nos livros que falam de psicanálise B não há tempo. Isso deve
ser observado na vossa sessão de amanhã.
Talvez alguém aqui poderia dar uma ulterior formulação a este problema. Penso que seja uma
idéia errada, a de que exista algum psicanalista que conhece as respostas. Agora eu sei o
suficiente para saber que não sei. E a despeito de todas as pressões que me são feitas para que eu
saiba as respostas, eu não as sei. Mas estou certo que todos nós, é possível que venhamos a
aprender um pouquinho a mais e que seremos um pouquinho mais sábios amanhã à noite.

PART.: O problema da comunicação e da não comunicação, os aspectos dos limites da


comunicabilidade são centrados no paciente e não preferentemente na consideração da relação
analítica, de maneira a poder remediar sobre as possibilidades de desenvolvimento tão diferentes
de certos pares analíticos, que às vezes promovem potencialidades no analista e no paciente, onde
se tem realmente a impressão que algumas coisas são desenvolvidas, que são realmente muito
próximas da repressão primária, dos aspectos que nunca foram engrandecidos pelo contato com a

27
realidade e o quanto essa possibilidade impressione já a sessão de Aintake@, pela qual o analista
se sente às vezes obrigado a assumir um paciente que não tinha pensado de tomar em análise. E
talvez exatamente isso inter coincide com as análises que são produtivas para analista e paciente.

BION: Ninguém deveria se meter a ser psicanalista ou médico se não estiver pronto a pagar o
preço. Para dizê-lo em outros termos: ASe você não consegue suportar o calor, fique fora da
cozinha@. Uma vez que você decidiu ajudar os seus semelhantes e as suas semelhantes, está em
apuros. Não importa o quanto está você doente, cansado, debilitado física ou mentalmente, deve
manter a disciplina. Eu lhes dei o exemplo da minha zanga com o paciente. Não engana o
paciente; não é um bom modo de se comportar por parte do analista; ele deve continuar a se
comportar de maneira civilizada.
Para tomar uma situação mais extremada: o oficial na guerra, cujas tropas estão aterrorizadas e
querem fugir. O oficial não tem o privilégio de fugir também. O seu privilégio consiste em
permanecer onde se encontra, mesmo que lhe custe a vida. Pode ser que esta pareça ser uma
descrição exagerada da sua sessão de amanhã com o seu paciente. Eu não creio. Penso que não se
veja isso porque o consultório do analista é cômodo, ele tem boa alimentação, e assim por diante.
Mas ele pode ser tão sobrepujado pelo ruído B fazendo de novo uso da metáfora B que lhe é
difícil ouvir. O ruído provém do seu interior B hipóteses sobre as doenças mentais, hipóteses
sobre as teorias psicanalíticas, massas de hipóteses ao infinito. Todas fazem um ruído tamanho
que é difícil ouvir o que está dizendo o corpo ou a mente do paciente. Tentei exprimir este
problema de maneira bastante crua em termos de desnudar a nossa mente de memória e desejo,
de modo a reduzir ao mínimo o ruído feito pelo nosso aprendizado, pelo nosso training, pela
nossa experiência passada. Deste modo nos tornamos o máximo possível abertos de visão. Então
pode-se começar a ouvir ou a experimentar alguma coisa que, se fosse uma inflamação, faria com
que concentrassem a vista no local da inflamação, de forma a poder observar a mancha que dói.
Se o seu paciente permitir que o vejam com bastante freqüência, se lhes permitir que
permaneçam calados, se lhes permitir que sejam ignorantes, pode ser então que estejam em
condições de ver o que é essa mancha que dói B esteja ela na mente ou no corpo.
Ao dizer tudo isso estou falando de coisas que não foram ainda descobertas; ninguém pode ajudá-
los salvo vocês e o seu paciente, juntos, amanhã. Um médico deveria ter a coragem de dizer:
AQuero vê-lo amanhã, não sei qual é o problema, mas penso que é possível que se manifeste uma
apendicite, ou até mesmo nada em particular@. O analista pode observar o corpo, o aspecto do
paciente, e pode observar algo que parece ser um sintoma ou um sinal de que o paciente tem uma
mente. A capacidade de fazer um discurso articulado pode ser observada, pode ser
esquadrinhada, pode ser olhada de tal forma que possa fornecer sinais da localização da dor.
Suspeito que às vezes uma dor física B digamos, debaixo do diafragma B possa abrir caminho até
a mente de maneira que o sintoma, o sinal que não é assim tão óbvio no corpo, possa ser
observado na mente. Então pode ser que o analista tenha condições de dar uma interpretação que
um médico não pode dar porque não aprendeu a observar a mente.
Como eu disse, a profissão da psicanálise é perigosa. Mas o analista não pode gerir esta situação
perigosa fugindo dela. Todos nós sabemos isso; todos nós sabemos que levantar-se e fugir da sala
não vai bem. O que não é tão simples de se ver é que nós podemos nos tornar mentalmente
ausentes quando não gostamos do que o paciente está dizendo. Segundo a minha experiência, o
assim chamado paciente borderline sabe sempre quando é que o analista se tornou mentalmente

28
ausente. Às vezes o paciente dirá: AO senhor foi embora@, e é bastante fácil dar-lhe uma
interpretação como: AAh, sim, você sabe que estamos nos aproximando do fim de semana B não
vamos nos ver amanhã ou no dia seguinte@. É uma explicação racional B e em análise as
explicações racionais são tão comuns que não há nenhuma escassez delas. Podemos produzir
interpretações, vestirmo-nos de interpretações que escondam a nossa nudez. Não porém com os
psicóticos”, borderlines.
O problema é: têm intenção de interpretar a afirmação do paciente como uma reação sua à
interrupção do week-end ou ao término da análise? Ou têm intenção de interpretar: AO senhor
sente que eu não estou realmente prestando atenção@? Esta é a pena que paga o analista pelo fato
de ser um analista B ele é mantido continuamente sob observação. Se não estamos a par disso,
não sabemos por que nos cansamos tanto. Um paciente ávido pode se comportar de tal forma que
quando termina a sua hora nós estamos tão preocupados com aquilo que ele poderia fazer fora da
análise, que ocupamos o tempo do paciente sucessivo pensando no paciente precedente.
Penso que valha a pena sermos claro nisso: que tentaremos evitar que o paciente, digamos, se
atire pela janela enquanto se encontra em nosso consultório, naquela hora. Depois do que,
podemos dizer que não seremos responsáveis; alguém terá que acompanhar o paciente até o
nosso consultório, e alguém deverá vir buscá-lo B seja ele uma criança ou um adulto, psicótico ou
não psicótico. Se assim não for, os outros pacientes daquele dia serão ludibriados; a atenção que
o analista deveria dedicar à observação de todos os próprios pacientes é ocupada para pensar no
que fará este único paciente. Não podem trabalhar vinte e quatro horas por dia; só vocês podem
dizer quantas horas podem trabalhar; somente vocês podem se organizar de modo que naquelas
horas haja condições que lhes permitam trabalhar, porque a sua atenção não é distraída por
questões que os distanciam do trabalho em curso.
Deixem-me lembrá-los mais uma vez que este é o motivo pelo qual penso que seja importante
estar em condições de despir a mente tanto daquilo que se sabe do passado, quanto dos desejos
para o futuro. Parece-me que toda a psicanálise esteja tomada de um certo otimismo, estas idéias
de Acura@, está chegando um bom período. O que sabemos nós do que está por vir? O que
sabemos deste universo em que vivemos? É possível que o paciente precise ser mais forte e mais
disciplinado, para estar pronto para qualquer coisa que possa acontecer B não somente pronto
para o paraíso, para uma cura que é o paraíso na terra.
Uma idéia que podemos perseguir é a da verdade. Podem ter a impressão de que um pintor é um
bom pintor se o seu modo de pintar constitui uma tentativa de lhes mostrar o que é verdadeiro B
os impressionistas não pintavam com a finalidade de tornar as coisas mais difíceis de se ver.
Podem sentir a diferença entre uma composição musical que é uma imitação da verdade, e outra
que é uma formulação da verdade. Em análise devemos esquecer que a interpretação seja a
interpretação acertada, ou a interpretação kleiniana, ou a interpretação freudiana B é totalmente
irrelevante. A única coisa relevante é que seja uma interpretação verdadeira. Isto se esclarece
com força dramática quando lhes pedirem para ver um paciente que se encontra nos últimos
estágios de uma doença mortal. O médico pode esperar que o analista conte ao paciente histórias
que reassegurem. Um paciente às vezes poderá dizer: ANão sei o que o Sr. entende dizer@C não
lhe é possível acreditar que de alguma maneira o analista seja diferente de qualquer outro. Ele
pensa que é muito improvável que o analista diga exatamente o que entende dizer. Mas o analista
deve chegar a estar tão acostumado a dizer aquilo que entende dizer a ponto de agir sempre
assim B por mais desagradável que possa ser. Ele não pode pensar: AAh, sim, é a interpretação

29
certa, mas vou dizer algo mais simpático@. Ele deve se perguntar: ACom que linguagem devo
falar ao paciente de maneira que ele possa entender o que digo?@.
É possível que se tenha a impressão que em certos pacientes as idéias, os pensamentos e os
sentimentos são induzidos por um nível fundamental físico; por exemplo, induzidos pelas supra-
renais, ou pelas gônadas. O impulso, o pensamento ou o sentimento que provém de uma fonte
física pode incidir sobre a mente e sobre os pensamentos do paciente? Pode-se dizer alguma coisa
a esta mesma mente numa linguagem que possa abrir um caminho retroativamente até estes
níveis primitivos fundamentais?
Eu tinha um paciente que se submeteu a uma intervenção cirúrgica por uma doença cardíaca.
Não sei se a operação foi realmente efetuada, ou se lhe fizeram simplesmente uma incisão na
pele, não sei. Pelo que sei, pode ser que se tenha tratado de uma incisão psicológica. Mas sei que
a operação não teve sucesso. Procurei chamar a atenção do paciente para o fato de que devia
haver algum motivo pelo qual ele continuava vindo até mim, quando tinha sido operado do
coração B pelo menos assim havia me dito B e que ele devia saber que tudo o que eu havia
sempre feito era falar. Todavia, aquele paciente, que nunca tinha tido coragem de viajar,
começou a fazê-lo. Eu não o tinha operado do coração e não sei o que acontecia com as minhas
interpretações uma vez que as tinha dado. A impressão que tive, foi que o paciente havia ouvido
o que eu lhe dizia, mas não sei o que aconteceu no trajeto desde suas orelhas até sua mente. Estes
são problemas que pode ser que estejamos em condições de resolver se pessoas vêm até nós;
pode ser que gradualmente, amanhã, depois de amanhã, vocês tenham a impressão de que existe
alguma prova que começa a encontrar uma formulação do mesmo modo com que uma mancha
numa radiografia lhes mostra um padrão. Se souberem como deve parecer o gradeado torácico,
podem então ver aos raios X que há uma zona opaca; onde deveria emergir uma fotografia do
gradeado costal, há uma mancha indistinta. Assim, voltando B ou indo B ao paciente de amanhã,
sugiro esta perspectiva em que vocês estão vulneráveis a qualquer coisa que lhes possam dizer os
seus sentidos; comecem a se concentrar no que observam, e depois a se perguntar porque se
comportam assim. Isto depende do fato de ter a coragem de experimentar ou pensar qualquer
coisa que venham a experimentar ou pensar. Antes eu falei disso como de uma situação em que
existe todo tipo de pensamentos que voam ao redor B o paciente se desembaraça de todos os seus
pensamentos que depois, em minha imaginação visual, voam ao redor. Se conseguirem estar
completamente abertos, existe então a possibilidade que lhes aconteça de capturar alguns destes
pensamentos selvagens. E se permitirem que eles se alojem em suas mentes, por mais ridículos,
por mais estúpidos, por mais fantásticos que sejam, pode existir então uma possibilidade de dar
uma espiada neles. É questão de se ter a coragem de ter pensamentos do gênero B
independentemente do fato que se presuma ter ou não ter que tê-los B e de ficar com eles por um
período de tempo suficientemente longo para ter condições de formular o que são.

PART.: Perguntava-me em que espaço nós devemos olhar; porque me pergunto se este não é um
espaço mental que lentamente pode-se também construir, e então eventualmente que valor tem
também um espaço para poder olhar para dentro dele?

BION: A geometria projetiva está implícita na geometria euclidiana, mas foi necessário muito
tempo antes que Descartes fosse capaz de formular as coordenadas cartesianas. Depois, libertada
da imagem visual de linhas, círculos, pontos, pôde ser formulada em termos não visuais. É
possível formular mentalmente coisas como as secções cônicas B e não somente as linhas, mas

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também a direção das linhas, os vetores.
O que podemos dizer destes pensamentos que surgem, por assim dizer, das supra-renais?
Poderíamos descobrir um tipo qualquer de sistema de coordenadas com o qual seja possível
observá-las ir na outra direção? Para tomar o meu exemplo pictórico de uma mão, que de um
lado é psicossomática e do outro é somato-psicótica: se podem dar uma interpretação da condição
psico-somática, poderiam dar uma interpretação de modo tal que seja somato-psicótica? Deste
modo estas coisas enigmáticas como a esquizofrenia, a psicose maníaco-depressiva e assim por
diante poderiam se tornar muito mais compreensíveis. Consideremos a psicose maníaco-
depressiva: um marido maníaco casa-se com uma mulher deprimida e eles dão portanto à luz uma
Afolie à deux@. Poderíamos pô-la na outra direção? Começar com a Afolie à deux@ e terminar
com duas pessoas? E continuariam casados?

PART.: Houve certa confusão, se é preciso traduzir Asoma-psychotic@ como Asoma-psíquico@


ou como Asoma-psicótico@.

BION: São maneiras diferentes de considerar a mesma coisa B é uma espécie de diafragma, uma
cesura, Aa impressionante cesura do nascimento@. Existe uma grande quantidade de
impressionantes cesuras do nascimento de idéias, e cada vez que alguém tem uma idéia nova B
por exemplo, psicanalítica B ele se torna imediatamente uma barreira, algo que é difícil de
penetrar. Em vez de ser libertadora, torna-se aprisionadora. Assim mesmo quando tentamos
formular uma idéia que seria libertadora, formulamos já uma outra cesura que corre o risco de se
tornar impenetrável.

ATanto mais tu ó celestial luz, / os teus raios em minha mente infundes / E dela iluminas toda
parte, olhos melhores / Tu nela abres e a livras e limpas / de toda baixa escuridão terrena, / para
que perceber eu possa e aos demais fazer relato / Das secretas coisas invisíveis aos olhos dos
mortais@
(primeira tradução minha)
Capítulo Quinto

Roma, 15 de julho de 1977

BION: Não conheço Anós@, e não creio que nós nos conheçamos, porque quem quer que nós
sejamos, nunca nos encontramos antes. Nenhum de nós é exatamente a mesma pessoa que foi,
mesmo há uma hora atrás. Assim vou começar tendo uma imaginação especulativa: ou seja,
quero indicar algo que não é um fato, é um fato imaginário. Vou começar pensando que quando
há vários indivíduos aqui, há também muitos pensamentos sem pensador; e que estes
pensamentos sem pensador estão, assim, no ar em algum lugar. Formulo a hipótese de que eles
estejam procurando por um pensador. Espero que alguém possa se sentir preparado para alojar
estes pensamentos ou na própria mente, ou na própria personalidade. Dou-me conta de que esta é

31
uma solicitação muito grande, porque estes pensamentos sem pensador, pensamentos
vagabundos, são também potencialmente pensamentos selvagens. E ninguém gosta de dar uma
casa a um pensamento selvagem para depois ouvir alguém dizer que aquele pensamento era seu.
Agrada a todos nós que os nossos pensamentos sejam domesticados, gostamos que sejam
pensamentos civilizados, bem domesticados, pensamentos racionais. Não obstante isso, espero
que possam ousar dar a estes pensamentos, por mais irracionais, algum tipo de abrigo temporário.
E que depois os vistam com palavras apropriadas, para que possam ser expressos publicamente e
se possa dar a eles a possibilidade de se mostrarem, mesmo se parece que não estejam bem
instrumentalizados. Eu mesmo espero que estas imaginações especulativas possam ter a
oportunidade de alcançar um certo grau de respeitabilidade de maneira que possam existir até
mesmo numa comunidade científica. Estas imaginações especulativas, analogamente às razões
especulativas, são criaturas muito fracas. Facilmente destrutíveis.
De vez em quando encontro um paciente que diz ser incapaz de imaginação. Em tais
circunstâncias, não me surpreende se aquela mesma pessoa se queixar de sofrer de insônia. As
pessoas desse gênero têm medo de baixar a guarda como acontece quando adormecemos. Mui
freqüentemente, quando em efeito são capazes de adormecer e são capazes de sonhar, dizem
então que tiveram um sonho, porque um sonho é relativamente respeitável, nos é permitido
sonhar. Não é considerado igualmente respeitável ter uma alucinação ou um delírio, se bem que
às vezes a sociedade, o grupo ou a cultura permite às pessoas ter sonhos de olhos abertos.
Costumeiramente faz-se uma tentativa de torná-los respeitáveis desculpando-os enquanto eles são
Auma poesia@ ou Aum quadro impressionista@ ou Auma composição de música moderna@. Mas
de novo isso depende do fato de se ter a coragem de ter um pensamento selvagem, tanto faz se
acordados ou dormindo. E depende do ter condições de despertar e de estar completamente
conscientes, de ter todas as próprias capacidades disponíveis e ser portanto capazes de
transformar o pensamento selvagem ou a imaginação selvagem de modo que se torne
relativamente respeitável, de maneira que se possa dizer: AÉ um campo de papoulas@.
Às vezes pessoas deste gênero são perdoadas, sobretudo se estiverem mortas. E depois podemos
dizer: AAh, apesar de tudo, era Giotto, ou Leonardo@. As pessoas assim podem vir a ser
perdoadas se traçaram uma linha ao redor do próprio pensamento selvagem e o chamaram de
ADeus@ ou AA Virgem Maria@ ou ASant=Ana@. Mas a maior parte de nós não ousa esperar
poder aduzir este tipo de desculpa para os próprios pensamentos selvagens, ou para as próprias
imagens selvagens, ou música selvagem, ou pinturas selvagens. Assim, quando lhes digo, como
estou para dizer agora: APenso que alguma outra pessoa deveria falar um pouco, por mais
selvagem que seja o seu pensamento, por quanto seja irracional, não-aceito, não-aceitável, não-
pensável para o grupo ou para a pessoa@, estou esperando que, na realidade, vocês sejam
corajosos. É difícil entender este ponto porque na aparência efetivamente as circunstâncias são
realmente bastante confortáveis; dizer aquilo que se pensa tem o ar de não ser perigoso. Tento
dizer a verdade aos meus pacientes e de ter a coragem de dizer aquilo que penso, mesmo se devo
modificá-lo levemente, porque quero que eles compreendam o que eu disse. Às vezes o paciente
dirá: ANão sei o que o senhor quer dizer@. Pode ser que isso aconteça porque não sou tão bom
para me exprimir num discurso articulado, mas freqüentemente é porque o paciente não está
acostumado a ouvir alguém que diz exatamente aquilo que pretende dizer. Assim, aqui se corre o
risco de sermos considerados responsáveis pelos próprios pensamentos selvagens. Isto quer dizer
que se corre o risco de que alguém diga: AAquele é um instigador@.

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Não obstante tudo isso, gostaria agora de conceder a vocês e a mim mesmo um momento de
repouso; e se caio no silêncio, é na esperança que vocês possam ouvir os vossos pensamentos, por
mais selvagens que possam ser estes pensamentos mesmo para vocês mesmos. Porque há sempre
uma pessoa que pode ouvir o que pensa, e aquela pessoa é você. (LONGO SILÊNCIO)
RUÍDOS.

BION: Podem ouvir o ruído por vossa conta. Parece-me que o grupo esteja sofrendo de insônia.

PART.: Gostaria de dizer algo. Aconteceu-me de ler um relatório sobre a vida nos dias de hoje
na Pérsia; o jornalista dizia que a maior parte das pessoas seguem um princípio que é o de pensar
que cada um é escravo daquilo que disse e é dono das palavras que não disse. Agora parece-me
que pode ser verdade também exatamente o contrário, isto é que uma pessoa é dona, proprietária
do que diz e pode no entanto ser escrava do que não diz, prisioneira daquilo que não diz. Agora
em uma situação como esta, creio que se alguém pensa alguma coisa, depois pode haver alguém
que não pensa ou pensa de maneira confusa; tem pelo menos um caminho próprio para seguir; ou
também a situação de quem pensa mas não exprime o que pensa. Então isto me faz pensar na
situação da gravidez em que o feto pode morrer se nasce demasiadamente cedo porque é
demasiado fraco e não é capaz de viver; assim um pensamento se é não-expresso, se é imaturo,
não sobrevive, não vai longe. E assim, se o feto permanece tempo demasiado no corpo da mãe,
morre dentro, como um pensamento, se é demasiadamente retido, morre na garganta.

BION: Parece-me, como disse outro dia, que esta idéia foi expressa por um habitante
precedente desta cidade. Horácio escreveu: AVixere fortes ante Agamennona multi: sed
omnes inlacrimabile urgentur ignotique longa nocte carent quia vate sacro@.**8
Pensem nas primeiras pessoas que começaram a se comunicar através de grunhidos e depois
tiveram a coragem de inventar uma linguagem articulada; foram obrigados a ser os próprios
poetas. É preciso ousar para poder ser um artista. Alguém precisa ter a coragem de escrever
grafites na parede de uma caverna. Não sei como eram chamados aqueles artistas. Não eram
chamados AHomero@ ou ALeonardo@, no entanto os seus sonhos terrificantes estão ali nas
paredes da caverna. As suas esculturas terrificantes estão visíveis nas cavernas de Elefanta.
As suas primeiras tentativas devem ter sido muito grosseiras. E as grafites de hoje em dia? As
pinturas que aparecem nos muros de Roma? Desenhos que aproveitam as irregularidades da
superfície**9 Nas cavernas de Lascaux eu vi o uso das irregularidades das paredes da caverna
para criar o efeito de perspectiva. Chegamos à criação desta escultura através da colaboração
entre a personalidade humana, um caráter humano, e as forças da natureza; existe uma
protuberância na terra em certo ponto e o artista a usa como parte de sua escultura.
Mas não nos preocupemos com o passado B não podemos fazer nada a respeito, mas podemos
fazer algo a respeito do presente. Diante de uma alternativa escolhe-se sempre o que fazer e o que
não fazer. Posso escolher fazer isso e posso escolher fazer aquilo, querendo dizer: AEscolho isso,
não aquilo@.

8
** N.do T. Horácio 4: 9
9
** N.doT. Bion referia-se à região de ATor di Nona@.

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Assim, aqui, agora, ousam exprimir a sua criação, torná-la pública ou pelo menos torná-la
pública para vocês mesmos, porque é inevitável ouvi-la. Alguém uma vez recolheu os pedaços de
papel que ficaram no fim de uma reunião de pessoas muito importantes, de homens políticos;
eram garatujas em pedaços de papel. Estou seguro que o que disseram os homens de Estado era
muito respeitável e que aquilo que estava em seus pedaços de papel não teria sido aceito por um
museu de arte moderna. Mas quero fazer notar que qualquer coisa que você faça, implica sempre
o que não faz B se decide permanecer calado, então decide também não dizer o que poderia ter
dito. Assim, inevitavelmente nos arrependemos de não ter falado e nos arrependemos também de
ter sido tão tolos a ponto de dizer o que estávamos pensando.

PART.: Gostaria de submeter ao Dr. Bion uma tentativa minha de utilizar a imaginação
especulativa. À medida que a membrana celular separa um interior de um exterior e seleciona a
distribuição das substâncias celulares em duas partes no espaço, é lícito afirmar que a membrana
fornece uma mensagem à distância e organiza o espaço de um modo mais complexo do que
poderia acontecer caso as moléculas estivessem presentes em uma ordem esparsa. Na medida em
que aumenta a complexidade da agregação funcional (um órgão, por exemplo) aumentam
também as interdependências e a complexidade das relações que devem ser mantidas entre o
interior do órgão e os outros setores do organismo; por exemplo, a cápsula supra-renal será
separada do espaço circunstante por uma bainha anatômica, mas esta bainha terá perdido a
qualidade de manter relações funcionais com o exterior como fazia a membrana com a célula. A
função de organizador, capaz de agir à distância, será assumida agora pelo sistema de secreções
supra-renais e pelos receptores específicos destas substâncias, que estão situados fora da supra-
renal (por exemplo dentro da hipófise). Criam-se, assim, novas membranas reguladoras das
trocas, que não estão mais localizadas em um único ponto do espaço e não agem por
contiguidade.
Poderíamos falar de sistemas de membranas, capazes de agir em distâncias maiores com
transportes menores de substâncias.
A pergunta seria: parece-lhe útil, levando em conta estes exemplos, conceber a evolução como
uma série de saltos funcionais que tendem a manter a homeostase de um sistema cuja
complexidade crescente cria heterogeneidade sempre maior entre as várias zonas do espaço, e
portanto necessita de sistemas de regulação capazes de cobrir distâncias cada vez maiores?
Parece-lhe que isso possa lançar alguma luz sobre o fato de que os sentidos são uma membrana
capaz de agir a maior distância entre dois sistemas pouco homogêneos como o corpo e o
ambiente exterior, pondo em relação substâncias originadas pelos sistemas que agem a curta
distância (alterações hormonais, emoções) com os receptores situados na distante mente da mãe?
É possível que aqui se insira o nascimento do pensamento como uma membrana até mesmo
capaz de se inserir numa ação à distância, entre substâncias individuais e sistemas de receptores
sociais?

BION: Não sei com que grau de precisão os fisiologistas descrevem a relação entre a célula e o
fluido extra-celular. Vi uma descrição em que se afirma que o fluido extra-celular é a substância
mais semelhante que se pode ter à água não poluída. Isto me facilita responder a uma parte do
que disse a pessoa que interveio antes. Posso imaginar de novo B mais uma vez uma imaginação
especulativa B posso imaginar que uma criatura, um embrião, potencialmente altamente dotado e
que vive num fluido aquoso, poderia não tolerar o que lhe transmitem os próprios sentidos

34
primordiais; por exemplo, poderia odiar o ruído do sangue que escorre através de seu corpo
embrionário.
Para simplificar, gostaria de falar de um caso exagerado, que nem por isso, pelo que sei, deixa de
ser verdadeiro. A mãe enquanto grávida foi submetida a uma experiência terrificante. Posso só
arriscar dizer quais as mudanças de pressão que tiveram lugar no líquido amniótico. E não sei de
que modo as cavidades ópticas e auditivas teriam percebido aquelas mudanças de pressão. Estou
sempre postulando a possibilidade que aquele embrião, que tem todas as potencialidades físicas e
mentais, possa ser precocemente, prematuramente, submetido a uma experiência que não pode
tolerar. Agora, a experiência efetiva que eu conheço é a de um meu paciente. o qual tinha
sintomas muito graves. Quando era um feto a termo, um homem entrou no quarto de dormir.
Assassinou o pai, a mãe, três filhos, e determinou o nascimento prematuro deste feto a termo. A
criança crescia e sabia... o que? Eu não sei. Mas todos concordavam ao dizer que a criança não
sabia nada, que não lhe foi dito, que nunca haviam lhe dito nada a respeito deste evento
terrificante.
Quando eu conheci o paciente, todos o desaprovavam, inclusive os pais adotivos. O paciente não
sonhava. Depois que se submeteu à experiência analítica comigo, o paciente piorou enormemente
B todos concordavam nisso. Agora tinha sonhos terrificantes; tornou-se delinqüente; odiava
qualquer homem ou mulher com quem tivesse algo a fazer; ameaçava assassinar alguém e se
matar. Naturalmente foi retirado da esfera de influência negativa do analista. Portanto não pude
fazer mais nada. Mas o paciente, quando alcançou a maioridade, voltou para mim. Não sabia o
que queria, mas sabia que queria a mim. Parece-me que esta seja uma situação não qual uma
pessoa, mesmo antes do nascimento, é submetida a um stress que não pode suportar. Mas tive
outras experiências, muito menos dramáticas, em análises com pessoas que tinham sido
diagnosticadas psiquiatricamente como esquizofrênicos e psicóticos borderline. Tenho em mente
três exemplos: parecia-me que a raiz do problema fosse a grandíssima inteligência de todas essa
três pessoas. Não consegui transmitir muito bem aos outros que, pelo menos na minha opinião,
estas eram pessoas muito inteligentes, mas em dois destes casos foi possível fazer presente para o
paciente que havia sinais de uma capacidade de observação assaz aguda. Tão aguda que não
podiam suportar as informações que os seus sentidos primordiais lhes forneciam.
Existe uma experiência fundamental que posso descrever deste modo: o paciente é conhecedor de
duas experiências muito desagradáveis: depender de alguma coisa que não é ele mesmo e estar
inteiramente só B as duas coisas no mesmo momento. Isto me parece alguma coisa que pode
acontecer até mesmo antes do nascimento, quando o paciente é, por assim dizer, conhecedor da
própria dependência de um fluido aquoso e também da própria incapacidade de tolerar o estar
inteiramente só.
Geralmente estamos em condições de continuar a usar o nosso sentido de olfação, trazendo
conosco o ambiente aquoso depois do nascimento, depois de nossa entrada em um fluído gasoso;
portanto a secreção aquosa das narinas nos permite utilizar ainda o sentido do olfato, mesmo se
estamos num ambiente gasoso. Às vezes há demasiado fluido aquoso: nos lamentamos então de
que não conseguimos respirar, de ter catarro, de tal forma que aquilo que é potencialmente uma
vantagem torna-se uma desvantagem. É a mesma coisa com a inteligência: o paciente não
consegue suportar a carga de inteligência que deve carregar ; faz o melhor que pode para se livrar
dela. Depois Ada cesura impressionante@ continua ainda muito inteligente, mas deve reaprender
tudo desde o início. Assim, aquela pessoa muito inteligente parece ser muito inteligente, e parece

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que sabe e que aprende muito facilmente todo o que lhe é ensinado. O único problema é que uma
pessoa pode ser muito inteligente mas não sábia.
Note-se que ao falar disso tudo, preciso fazer uma distinção entre Ainteligência@ e Asabedoria@.
Não gostaria mesmo de tentar definir a inteligência e a sabedoria, mas aqui, neste grupo, posso
contar com a sua ajuda para colher o que quero dizer, apesar da comunicação inadequada que
faço. Podem fazer uso da própria sabedoria para decidir por sua conta o quanto é sábio que vocês,
ou qualquer outro, se fiem à sabedoria de um grupo. Pode acontecer às vezes de encontrar-se em
uma cultura que é muito inteligente mas que não é sábia: podem pensar, estou certo disso, em um
número indefinido de grupos que conhecem e decidir até que ponto podem considerar tal
distinção como uma iluminação esclarecedora das suas impressões do grupo em que se
encontram; é exatamente nesta atividade que cada um acrescenta uma dimensão a si mesmo,
exercita e desenvolve a própria capacidade de discriminar. Podem contar com certa quantidade
de experiência B ou por ter ouvido dizer, ou por experiência direta vivida por vocês mesmos B
para avaliar a natureza ou as características da sociedade da qual somos membros.
Os habitantes deste espaço geográfico são mais sábios hoje de quanto teriam sido nos tempos de
Homero ou de Horácio ou Virgílio? Naturalmente, não podemos saber isso, porque não podemos
dizer como era Roma nos tempos daqueles poetas. Mas podem ter uma opinião a respeito do fato
que vocês sejam mais sábios agora do quanto eram no início desta reunião e, da sua resposta a
esta pergunta, vai depender se vocês vão continuar a se encontrar ou não. Isso depende de se ter a
coragem de discriminar. Como fazem para medir a distância entre estes dois pontos Aagora@ e Ao
início desta reunião@? Ou então a distância entre a Roma de Horácio e a Roma de hoje em dia?
Como se mede esta distância? Em quilômetros, em horas, em semanas, em dias, ou vai ser
necessário que alguém invente um sistema de coordenadas graças ao qual poderemos nos
localizar no tempo e no espaço mentais?
Parece que os que são capazes de um pensamento matemático fizeram alguma coisa com isso. A
geometria de Euclides não fornecia uma solução satisfatória para o problema das retas paralelas,
mas a geometria, como nós a conhecemos agora, estava implícita na geometria de Euclides.
Foram necessárias algumas centenas de anos para que viesse a ser explícita. Isso foi devido a um
crescimento de experiência por parte dos indianos com o seu sistema decimal. E Decartes, com
as suas coordenadas, tornou possível transcender os limites, as fronteiras, as restrições da
geometria euclidiana graças à geometria algébrica. Assim nós não somos mais dependentes dos
nossos olhos e nem mesmo dos que Milton chamava de os nossos Aolhos interiores@. Deste modo
podemos portanto supor a reta que conjuga dois pontos, ambos imaginários. É por isso que eu
lhes digo ousem fazer operar a sua imaginação especulativa, agrade ou não à sua cultura.
Ouvimos falar das glândulas supra-renais. Algo que, poderíamos dizer, não é absolutamente
pensamento, mas química, bioquímica. Mas quando e como se torna possível para o indivíduo
estar em condições de combater ou de fugir? Quando é que nos tornaremos capazes de fugir de
ou de combater pela liberdade de pensar? Entrevistei um bom número de indivíduos que não
conseguiam se capacitar de terem sido obrigados a se render e de terem sido feitos prisioneiros de
guerra. Tive um bom motivo para entristecer por causa de pessoas que, numa situação sem
esperança, preferiram sacrificar suas vidas que se render. AQuem combate e foge continua vivo
para combater outra vez@. Quanto tempo há para nos decidirmos? Aqui podemos discutir o
problema por 50 minutos, ou duas horas; mas na vida real não há tempo para discutir; é preciso
decidir instantaneamente se você se traduz numa ação aparente e clara ou se a preserva para um
outro dia. Eis porque quando se cria uma estrutura apropriada para o aprendizado devem existir

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amplas oportunidades para se tomar decisões. Resumindo, para dizê-lo em termos visíveis, é
preciso dar à criança o espaço necessário para que se desenvolva. Isto vale também para nós B
qualquer decisão que tomamos, ou qualquer afirmação que enunciamos, deveria deixar o espaço
para o crescimento e o desenvolvimento. Falando deste modo estou realmente produzindo um
sistema, uma arquitetura do meu próprio pensamento. Mas exatamente este fato comporta
também que seja segregada uma espécie de calcificação B tomo emprestado o termo da
fisiologia, quando se fala do endurecimento das artérias. Creio que devemos ser conhecedores do
fato, que alguma coisa parecida acontece também no que diz respeito aos nossos pensamentos.
Casamo-nos com um estado mental que é útil agora, pode também nos servir bem; mas não
queremos que venha a ser perturbado de novo. A vantagem de um grupo de pessoas é que é como
ver diversos aspectos da própria personalidade todos no mesmo momento. Podem individualizar
a calcificação neste grupo? Podem individualizá-la em vocês mesmos?

PART.: Gostaria de fazer uma pergunta ao Prof. Bion B gostaria de perguntar se é possível
estabelecer alguma relação entre os fatos que descreveu como inteligência e sabedoria e os
elementos que descreve como PS e D.

BION: Freqüentemente um indivíduo consegue se desembaraçar da própria preocupante


tendência de dar início a uma coisa qualquer B prefere a depressão ao estado maníaco. Às vezes,
quando o indivíduo, numa etapa qualquer da própria vida, desembaraçou-se da experiência
desagradável de passar constantemente da depressão para a alegria e da alegria para a depressão,
tornando-se permanentemente deprimido ou ficando num estado de permanente mania (para
dizê-lo de forma exagerada), este indivíduo tentará ajeitar-se encontrando um parceiro que será
deprimido por ele, ou encontrando um parceiro que será maníaco em seu lugar. Numa situação
do gênero, uma pessoa que não se permite ser demasiadamente aguda na observação, pode dizer:
AQue matrimônio feliz@. Se você se permite ser mais agudo, poderia dizer: ANão, não um
matrimônio feliz: uma loucura a dois@. Existem várias versões do que é basicamente a mesma
coisa. Depende do grau de sensibilidade que nos permitimos ter em relação àquilo que há pouco,
falando de Euclides, chamei de Afatos implícitos@. A geometria não muda B a geometria
projetiva algébrica está implícita na geometria de Euclides e em seguida se tornou explícita. O
mesmo que acontece com a cultura humana. Aqui, qual é a origem desta cultura? Até que ponto
ela era implícita, e em que era implícita? A civilização de Valeriano? A civilização de Adriano?
E qual é a civilização que daqui a não muito tempo vai ocupar este espaço? Digo Adaqui a pouco
tempo@ porque penso que a escala temporal com a qual temos o que fazer não seja a gama que
cobre uma vida humana: algumas centenas de anos não são nada. Qual é a cultura implícita neste
encontro? E quando se tornará explícita? E que aspecto terá quando isso acontecer?

PART.: Gostaria de tentar adiantar alguma resposta ou de pelo menos reformular algumas
perguntas. Enquanto isso vou dizer que não sei o que vou dizer daqui a pouco mas conto com o
apoio do grupo enquanto falo. Ouço que havia duas histórias, pelo menos como eu as via
contemporaneamente. Uma que falava a respeito mais diretamente a mim, que estava muito
preocupado numa situação de bloqueio, de embaraço, respeito e preocupação, e outra que dizia
respeito mais ao grupo, que entre outras coisas veiculava-me um sentido de rebelião maior em
relação à minha e que eu sentia talvez como uma parte de mim mesmo, sim, mas também muito
correlacionada com o ser psico-analistas, ou em vez disso, ser pessoas que se encontram. E

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depois tem outra vicissitude relativa ao fato que eu sentia, por um lado, não compartilhar o
discurso relativo ao pensar que o Dr. Bion estava propondo, e por outro lado, talvez sim.
Isto é, a sensação que tenho normalmente falando em um grupo é de não estar falando eu, mas
que no mesmo momento em que percebo que o grupo tem uma dimensão espacial, como a minha
mente está Aespacializada@, posso falar como um dos focos de um discurso multi-dimensional.
De outro lado estava reconhecendo que o que dizia o Dr. Bion do paciente de qual morreram,
aliás, a quem mataram o pai, a mãe, e que contemporaneamente estava na situação de estar só e
dependente, não só era a minha condição, mas talvez a de outras pessoas na medida em que não
estavam na situação de um grupo global. Queria exprimir somente outra coisa e depois não
abusar mais: ou seja, o fato que sentia que se tivesse proposto criar uma atmosfera, por exemplo,
uma atmosfera úmida, então, ou teria sentido me embriagar, querer beber junto com os outros...
ou senão, disseram-me também que um analista não pode beber.

BION: Para recorrer a um modelo fisiológico, poderia dizer que se no sistema circulatório se
forma um êmbolo, ele pode levar à morte da parte do corpo que para o próprio aporte de sangue
depende de um sistema arterial específico. Como alternativa forma-se uma circulação colateral.
Se por exemplo, este grupo impedisse o desenvolvimento do pensamento e do crescimento
mental, penso que então morreria. Enquanto analista, não tenho nenhuma dificuldade em
acreditar que em certas sociedades a análise não vai sobreviver, mas existem muitas outras
sociedades em que se poderá estabelecer uma circulação colateral. Posto em termos ainda mais
genéricos, não vejo nenhuma razão por que a raça humana deva sobreviver: a função da vida
poderia vir a ser empreendida por alguma forma completamente diferente de objeto animado,
como os vírus, as bactérias, ou ainda os bacilos. Sob certos aspectos as nossas características
simiescas herdadas podem ser muito mais ativas e virulentas das que nós consideramos as nossas
características humanas. Sob este aspecto, a nossa inteligência simiesca poderá ser tão capaz de
inventar truques até poder inventar uma bomba atômica B se não alguma coisa melhor. Com isso
resolver-se-ia o problema muito antes de ter a sabedoria de saber como utilizar a nossa
capacidade para fissão nuclear. Atualmente estamos tentando vetar a importação ou exportação
de submarinos nucleares, etc. Nenhum dos nossos homens políticos se preocuparia a respeito da
exportação de inteligência e muito menos se preocuparia a respeito da exportação da sabedoria.
Precisamos fazer uma pausa para pensar B parece que os nossos corpos necessitam de certa
quantidade de repouso. Assim proponho interromper e ir ao encontro de nossos sonhos
terrificantes, ou de nossas visões felizes, dependendo do gosto individual.
Capítulo Sexto

Roma, 16 de julho de 1977 B manhã

PART.: Ontem à noite o Dr. Bion nos pediu que exprimíssemos os nossos pensamentos
selvagens e, contemporaneamente, nos colocou de sobreaviso para não exprimi-los de maneira
demasiado respeitável. Depois o Dr. Bion esclareceu um interessante tema relativo à diferença

38
entre inteligência e sabedoria, especificamente em relação aos grupos. Gostaria de perguntar ao
Dr. Bion se apresentar os próprios pensamentos selvagens de maneira respeitável não é o
equivalente da inteligência em contraposição à sabedoria, e portanto, uma forma particularmente
mascarada de destrutividade.

BION: É muito mais difícil responder a esta questão quando se refere aos próprios pensamentos
do momento. Não há nenhuma maneira de se evitar o fato fundamental de que somos sempre
dependentes e sós. Quando uso estas palavras, estou usando uma forma relativamente bastante
desenvolvida do discurso articulado a respeito de algo que é basal e fundamental e que é preciso
experimentar pessoalmente. Até mesmo a criança muito pequena deve resolver aquele problema;
não gosta da sensação de dependência ou de solidão e isolamento B como não é do gosto de
nenhum de nós. Posso exercitar a minha imaginação especulativa e posso dizer que a criança
muito pequena sente que pode exprimir os próprios sentimentos de isolamento chorando, supõe-
se que é para receber assistência da coisa de quem é dependente B o seio, a mãe, os pais. Tanto a
criança quanto o genitor têm este mesmo problema. Por exemplo, a criança que se suspeita que
seja psicótica ou borderline, pode estar tão aterrorizada pelas próprias sensações, de forma a
exprimi-las com o pranto, em busca de ajuda, continuamente, incansavelmente. Mas os pais se
cansam; o seu problema é, se dão uma maternagem adequada àquela criança, ou fogem daquela
situação que não lhes permite dormir. Assim, quando, como acontece por exemplo aqui, um
indivíduo sabe que tem algo a dizer, tem o problema de dizê-lo ou não, porque tem medo de
descobrir ou que não há ninguém que o ouça, ou senão que alguém existe mas que este alguém
vai fugir. Assim, o temido isolamento é piorado, não aliviado.
Podemos utilizar para uma boa finalidade a situação presente, tentando decidir se falamos, se
exprimimos o que temos a dizer, ou não. Pode ser que tudo isso não nos importe muito aqui, mas
pode ser que amanhã o grupo ou a cultura não seja tão amigável; portanto é aqui que podem se
exercitar a exprimir qualquer coisa que sejam capazes de exprimir B a sua infelicidade, a sua
felicidade, as suas capacidades, mas aquilo que será expresso amanhã vai depender da
experiência de hoje, de maneira muito semelhante àquela na qual a capacidade do recém-nascido
de exprimir o que experimenta, depende da experiência que ele faz quando realiza as suas
primeiras tentativas.
Exercitando a sua imaginação especulativa, reflitam sobre isso: a criança dá início ao ato de
nascer tentando fugir de uma situação intolerável, o útero da mãe ou o líquido amniótico? Se
assim é, o recém-nascido poderia então se sentir responsável por ter dado início à expressão da
própria experiência, responsável por ter tornado evidente a própria existência. Na situação de
hoje, tão complexa, na qual há tanta evidência, é ainda possível perceber alguns sinais, sinais
muito ativos, de nossa angústia, de nosso medo de exprimir o que somos capazes de exprimir,
seja o que for? Podemos ter medo de exprimir os nossos pensamentos errantes, de qualquer lugar
que eles venham, porque temos medo do acolhimento que eles vão receber. Assim, o poeta, o
pintor, o músico implícitos em cada um de nós, não se exprimem pelo medo de serem destruídos
se forem expressos.
Certa vez perguntaram a Winnicott: APor que o objeto bom é destruído?@.
O objeto bom é somente um termo técnico psicanalítico B não me sinto particularmente atingido
nem pela questão nem pelo problema. Mas suponho que temos uma oportunidade de ver, não por
qual motivo o objeto bom está em perigo, mas que a destrutividade é estimulada pela presença de
alguma coisa que pode ser destruída. Em outras palavras, há um prazer primitivo que deve ser

39
obtido com o exercício da crueldade e o gozo pela destruição de algo que vale a pena destruir.
Enquanto somos capazes de ser pais, somos também vulneráveis às forças que gostariam de
destruir o que os pais criativos, ou potencialmente criativos, poderiam criar. Devemos nos
acostumar a ser membros deste grupo ou cultura especial, mas não podemos nos habituar se não
temos a coragem de existir nele.

PART.: A abertura do discurso de ontem do Dr. Bion me pareceu muito bonita como imagem;
poderíamos esperar ver os pensamentos selvagens passeando pela sala; mas depois eu me
perguntei: estes pensamentos são uma emanação do espírito santo, ou se não, o que é que está nos
dizendo o Dr. Bion? Esperei então que nos resolvesse o mistério do início do Evangelho de João,
que nos dissesse onde estava o verbum e que nos ajudasse a entender como ele havia se feito
carne; mas todo o resto do discurso não me ajudou nisso e, sobretudo, a longa e meticulosa
investigação sobre a trabalhosa aquisição da linguagem pelo homem, a partir do grunhido, me
desorientou. Pareceu-me contraditório aquele início: em suma, Deus, ou o que seja, grunhe ou
fala?

PART.: Pensei em dizer ao Dr. Bion que, a meu ver, o grupo exprimiu um pensamento selvagem
trazendo-nos este seu precedente Aquero@... Pensei também que o discurso que fazíamos nós era
a expressão de um sentimento que tinha a ver com a nostalgia e, contanto que o Dr. Bion tolere
esta insistência na linguagem, queria retomar o discurso sobre a música...
MUITOS RUÍDOS NA SALA

BION.: Não posso responder a esta pergunta, mas podem ver a resposta por sua conta: porque ou
tampo minhas orelhas de modo a não ouvir tanto barulho e não ouço as suas perguntas, ou posso
me levantar e sair da sala. Efetivamente, com a quantidade de experiências que tenho, sou
perfeitamente capaz de ser surdo ou cego a tudo aquilo que não quero ver sem fechar os olhos
nem tapar as orelhas. Sou também capaz de ser geograficamente móvel B de fato, daqui a poucos
dias partirei de Roma. Mas não me proponho a tentar tomar o lugar da sua inteligência, não me
proponho lhes dizer porque deixo a sala, ou porque estou surdo e cego para tudo o que me é dito,
porque a minha resposta seria prejudicada B à medida que de qualquer forma posso conhecê-la.
Vocês estão livres para utilizar a sua capacidade de discernimento e livres para pensar o que
quiserem da minha reação. Sei que vai ser decepcionante, porque, enfim, sei que sou somente
humano, e vou tentar portanto fazer aquilo que provavelmente qualquer outro ser humano faria.
Quando alguém é capaz de exprimir uma formulação apocalíptica, como asARevelações de São
João@**10 depende do fato de que haja alguém pronto para ouvir no momento em que o
indivíduo é capaz de transformar os próprios pensamentos e os próprios sentimentos em
expressão verbal. Milton diz: ASalve, Luz Santa... é-me permitido exprimir-me sem culpa?@, e
prossegue para falar do problema da ALuz Santa@. No final desse passo que é o início do terceiro
livro do Paraíso Perdido, Milton escreve:
A... livre dos modos alegres dos homens,
E, em vez do livro da bela sabedoria,

10
** N. do T. B O Apocalipse B Evangelho de São João.

40
Se me apresenta com um vazio universal
Das obras da natureza, por mim expugnadas e arrasadas
E a sabedoria é fechada completamente fora de uma entrada
Assim tanto mais tu, Luz Celestial,
Brilhas no interior e a mente através de todos os seus poderes
Irradias , ali implantas olhos, todas as névoas dali

Removes e dispersas, para que eu possa ver e falar


Das coisas invisíveis à visão mortal@.**11

(traduzindo ao pé da letra o que Bion disse - não é discrepante com o texto original)
(Vide nota de fim de texto)
Nas Revelações de São João está formulado este problema em termos de uma luz que é expressa
verbalmente, mas ele próprio a exprime verbalmente. Podemos ouvir essa expressão verbal?
Além disso, podemos prestar atenção ao significado que está além da expressão verbal ou tolerá-
lo?
No Bhagavad Gita, Krishna exprime dúvidas sobre a possibilidade de Arjuna conseguir tolerar a
visão caso tivesse que voltar a acordar. Em outras palavras, depende do significado que está por
detrás da revelação apocalíptica. Certas pessoas muito dotadas são capazes de ter a coragem de
exprimir aquilo que podem ouvir ou ver: ANo princípio era o Verbo@, AFaça-se a Luz@, ACriado
do infinito vazio e sem forma!@.
Um matemático poderia tentar exprimir o Ainfinito@, uma pessoa religiosa poderia tentar
exprimir a Divindade B não Deus, mas a ADivindade@, um cientista poderia tentar localizar a
fonte da luz B Newton tentou fazê-lo com o seu trabalho sobre a óptica; Leonardo podia fazer um
desenho e dizer: AIsto é o que eu vejo@; Giotto podia dizer: AIsto é o que eu posso ver@. Mas
nenhum deles pode nos fazer olhar para o que nos é mostrado ou escutar o que nos é dito.
Podemos ser igualmente cegos, surdos, insensíveis ao compositor, ao pintor, ao dramaturgo que
está dentro de nós mesmos, como o somos ao que está do lado de fora de nós. Aqui não somos
obrigados a prestar atenção em ninguém B nem em nós mesmos, nem em alguém que é Anão B
mim@. A vantagem de nos encontrarmos é que temos uma possibilidade de fazer uma escolha
nossa. Como diz Shakespeare: ASer ou não ser, eis a questão!@. Não diz qual é a resposta; diz:
AQue é mais nobre para o espírito: sofrer os dardos e setas da fortuna ultrajante, ou tomar armas
contra um mar de calamidades para pôr-lhes um fim, resistindo?@**12
11
** N. do T. B AJá não me encantam da manhã e da tarde / As suaves, pinturescas perspectivas / Da primavera e do
verão as flores, / Nem mansas greis, nem gordos armentios, / Nem o ar divino do semblante humano; / E, em vez de
tais belezas, me circunda / Nuvem cerrada, escuridão perene / Que as avenidas do saber me entupe, / Mostrando-me
somente, em tábua rasa, / Um vácuo universal, sem cor, sem formas, / Donde, para jamais me aparecerem, / Da
Natureza as cenas se apagaram: Adeus ó livros, da sapiência fontes! / Adeus, ó grande livro do Universo! / Mas tu,
eterna luz, poção divina, / Com tanta mais razão me acode e vale: / Brilha em minha alma, nela olhos acende / As
faculdades todas lhe ilumina, / E de nuvens quaisquer a desassombra, / A fim que eu livremente veja e narre / Cenas
que à vista dos mortais se escondem. B Paraíso Perdido B livro III - op. cit.
12
** ATo be, or not to be: that is the question. / Whether=tis nobler in the mind to suffer / The slings and arrows of
outrageous fortune, / Or to take arms against a sea of troubles, / And by opposing end them?...@ W. Shakespeare :
Hamlet, ato III, Tradução em : W. Shakespeare - Obra Completa B1969 B Companhia José Aguilar Editora B Rio de
Janeiro.

41
Esta é uma escolha que ninguém pode fazer para o indivíduo B além do próprio indivíduo.
Só o indivíduo pode decidir se ser ou não ser.

PART.: Falou-se de pensamentos sem pensador. Queria contar um fato que pessoalmente havia
me chocado muito e para o qual até agora não consigo dar uma resposta de ordem racional. Pode
ser que no fim as coisas sejam muito mais simples daquilo que talvez imagino eu. O fato é que na
quarta feira de manhã, por volta das onze, eu recebi uma notícia que para mim era muito triste e
dolorosa. No mesmo dia, um paciente começou a sessão dizendo que sentia que eu estava muito
entristecido. Até aqui devo dizer que não estava maravilhado; sucessivamente contou um sonho
tido na noite de terça para quarta feira e, do conjunto do sonho e das associações, resultava
claramente que se tratava de uma descrição perfeita do evento que me tinha entristecido tanto. Já
no decurso dos encontros que tive com o Dr. Bion durante a semana passada, havia-me
perguntado se um fato deste tipo poderia ser chamado de comunicação.

BION: Parece-me que depende muito das nossas classificações preexistentes. É por isso que na
prática efetiva da psicanálise, na vida real ao invés de nas teorias sobre o que é a vida ou o que é
a psicanálise, podemos confrontar os fatos. Ou há algo que não está bem na ciência, se não deixa
espaço para o crescimento e desenvolvimento da mente e do espírito humano, ou senão devemos
reconsiderar o que consideramos que são os Afatos@. O que é um psicanalista? Parece-me que
Freud aspirava por um padrão científico, segundo as próprias idéias do que era ciência naquela
época. Não creio que o seu sistema tenha realmente deixado espaço nem mesmo para a própria
evolução. Além de tudo a citação Ahá uma continuidade muito maior entre a vida intra-uterina e
a primeira infância do que a impressionante cesura do ato do nascimento nos teria feito crer@**13
é de 1936, quase no fim de sua vida.
Agora, o que acontece se alguém se permite ter uma experiência como a que nos foi verbalizada
agora a pouco aqui para nós? Parece-me que o analista que participa realmente da experiência
tenha a possibilidade de decidir se tenta comunicar B como está fazendo aqui B e se seremos
capazes de escutar e de compreender a comunicação. Deve-se comunicar a experiência, que
linguagem deve falar? Irá bem o discurso articulado? Ou precisaria ser um músico, um
compositor, ou deveria pintá-la? De qualquer forma requer coragem se quer ousar tornar pública
a própria experiência e comunicá-la a alguém diferente de si mesmo. Pode ser que seja
necessário um bocado de tempo, ou na vida do indivíduo B que afinal é bastante breve B ou na
vida do grupo. Este evento triste, esta experiência de tristeza , onde teve origem? Poder-se-ia
localizá-la em algum lugar geográfico? Ou poderia ter-se originado na mente do analista? Ou
poderia ter-se originado na relação entre duas pessoas? Gostaria de me refugiar na explicação
relativamente razoável, e dizer que tem origem na relação entre estas duas pessoas B podem ver
quanto seria racional, quanto estaria de acordo com as teorias sobre a transferência e sobre a
contratransferência e assim por diante. Mas suponhamos que não nos sintamos satisfeitos com
esta explicação. Talvez devêssemos estender as nossas idéias do que consideramos pertencer ao
campo da ciência, ou o nosso conhecimento do sistema nervoso central e a nossa capacidade de
receber informações através do nosso sistema nervoso central e periférico. Todos podemos estar

13
** Standard Edition Brasileira vol. XX p. 162 B no texto lê-se Acensura@, embora pelo texto do rodapé entende-se
que deveria estar escrito Acesura@.

42
cientes das informações que nos são trazidas pelos nossos Asentidos@Cna acepção neurológica B
através do estímulo das terminações nervosas. Mas pode ser que as perguntas que foram feitas
aqui signifiquem que devemos nos tornar cientes da possibilidade da existência de outros órgãos
receptores dos quais nós não estamos cientes.
Um médico, que acredite ter que lidar somente com o corpo, pode se basear fundamentalmente
no que lhe dizem os próprios sentidos; pode tomar precauções de maneira a ser sensível em
relação ao universo em que vive. Mas deve também ser capaz de tolerar aquela informação e
tentar compreender o que ela significa. A mesma coisa vale para a visão apocalíptica que nos
pode ser parcialmente comunicada pelos nossos maiores predecessores, como Leonardo, Giotto,
Newton, Milton. Mas acima de tudo, devemos olhar para o que nos mostram B e a maioria das
pessoas não o faz B e depois, enquanto estivermos olhando, devemos nos permitir reconhecer o
significado que está além. É fácil não levar em consideração São João porque era... bem, um
daqueles tipos Aestranhos@. É fácil não indagar além, sobre este paciente em especial, mas dizer
que ele é psicótico ou borderline. Mas o que você deve fazer quando são duas as pessoas que
estão envolvidas B você mesmo e este pressuposto borderline? Pode ouvir o que se dizem essas
duas pessoas e pode estar ciente de que não está satisfeito; que existe alguma coisa que você não
sabe.

PART.: Quando o Dr. Bion fala deste pensamento selvagem que de algum modo aguarda para
ser expresso por nós, tenho sempre a impressão de que esteja falando de uma experiência infantil,
como quando pela primeira vez uma criança numa idade precocíssima experimenta a emoção de
encontrar um pensamento próprio como uma entidade estranha a si mesma. Gostaria de conhecer
a sua opinião a respeito destas três diferentes situações: em primeiro lugar, quando cada um de
nós como indivíduo, singularmente, entra em contato com os próprios pensamentos, como se dá
este acasalamento com o próprio pensamento selvagem; em segundo lugar, e isso talvez seja
ainda mais interessante, como se dá o acasalamento com estes pensamentos selvagens na situação
analítica dual?
Parece-me que na relação a dois, haja realmente uma multidão de personagens, tanto de um lado
como do outro, e portanto me pergunto quem pensa, por que se pensa e como se encontram estes
pensamentos. Parece uma situação múltipla, com movimento intensíssimo de pensamentos
selvagens. O que acontece, em vez disso, na situação de grupo em que, pelo contrário, parece que
o indivíduo, quando se trata de encontrar os próprios pensamentos, está muito mais só e de certa
maneira muito mais fragmentado do que na situação dual? Na análise dual um indivíduo parece
ser muitas pessoas. Na situação de grupo parece se dar um tipo de fragmentação e de delegação
de alguma coisa de si para outra pessoa, para que o encontro com o pensamento selvagem possa
ser menos dramático. Para resumir: como o verbo se faz carne no indivíduo singular, na situação
dual e, de outra forma, na situação múltipla do grupo?

BION: Nos deparamos nesta situação em um estágio muito avançado. Somos tão instruídos que é
praticamente impossível nos aproximarmos da sabedoria. Podemos começar aprendendo o
alfabeto, a, b, c B é estúpido e aborrecedor. Mas se persistirmos, talvez aprendamos como juntá-
lo: g, a, t, o, e depois alguém poderia dizer Agato@ e estabelecer uma relação com um desenho
efetivo ou com um animal. Se este processo progride, podemos aprender a juntar as palavras e
descobrir que as frases têm um significado. Deste modo podemos alcançar um estágio no qual é
quase impossível ver as palavras através das letras do alfabeto; e por fim se chega a uma frase em

43
que não se pode individualizar o significado através das palavras. Em suma, podemos ser tão bem
instruídos que praticamente é quase impossível nos darmos conta de que a vida poderia ter um
significado. É preciso portanto descobrir algum processo através do qual possamos esquecer o
que aprendemos, para podermos ser sensíveis aos pensamentos ou aos sentimentos fundamentais
que talvez ainda tenham sobrevivido B pode ser que ainda haja algum vestígio de sabedoria na
raça humana. Não quero aderir de maneira especial nem a uma posição otimista, nem a uma
pessimista, podendo evitá-lo, mas é difícil permanecermos cegos para a possibilidade de que,
enfim, conhecemos tanto a ponto de sermos praticamente incapazes de sermos sábios. Podemos
olhar para uma escultura, podemos olhar para a palavra escrita, podemos ler o Apocalipse B
podem não significar nada, se somos tão espertos a ponto de não conseguir ver o significado
daquilo que nos é indicado expressamente. Não vejo nenhuma alternativa ao permitir-se
exercitar, ao invés de teorizar; de viver em vez de teorizar a respeito da vida. Victor Hugo sugere
que o mundo físico que conhecemos seja realmente a criação de algum Deus ou Espírito. Outra
dessas pessoas dotadas diz: AOs céus declaram a glória de Deus e a obra de suas mãos anuncia o
firmamento@ (Salmo 19,1). Também os astrônomos estão tentando ler, não os livros, mas os
próprios céus. Outros poderiam estar empenhados em examinar este mesmo universo ao
microscópio. Assim o grupo em seu todo tem uma visão ampla B podemos examinar este
universo em que estamos, com o microscópio, ou com um refletor de duzentas polegadas, ou
também com um rádio-telescópio. Todos nós juntos, talvez pudéssemos conseguir dar uma
pequena contribuição de forma muito semelhante a de alguém que contribuiu com o que ou quem
somos hoje.
Num certo momento antes do nascimento podemos sentir, bastante racionalmente, que somos
indivíduos no interior de outro indivíduo. Qual possa ser a comunicação entre o ambiente do
útero materno e a criança, depende de algum tipo de comunicação entre os dois. Física ou de
algum outro gênero. O embrião na fase dos três somitos, quando as cavidades ópticas e auditivas
começam a se formar, tem condições de receber algum tipo de impressão? Quando é que a mãe
se conscientiza de que tem um personagem ou uma pessoa dentro si? Num estágio bastante
avançado da gestação, penso que uma mãe esteja ciente das proezas atléticas deste objeto dentro
dela. É esta alguma coisa que ao crescer se tornará uma criatura violenta e atacará o corpo a
partir do exterior? Ou vai se tornar um bailarino?
Todas essas, parecem ser perguntas que podem ser estimuladas agora, depois deste encontro,
amanhã, e assim por diante, enquanto existirmos.
Podemos tentar ler os escritos, os monumentos que nos foram legados, mas existe também o
problema de ler o universo que se apresenta à nossa atenção agora, universo onde, como já disse,
poderíamos ser exatamente embriões em contato com um ambiente gasoso. Se você for capaz de
pintar, quanto antes você aprender a fazê-lo, melhor será. Se você for capaz de compor um
vocabulário musical e de fazer palavras musicais e de construir frases musicais, seria útil sabê-lo.
Ou então, se for um escritor, quanto antes você aprender um vocabulário e como utilizá-lo,
melhor. Não serve para nada aprender o meu vocabulário; ele poderia ser bastante útil como fase
de transição, como ponto de apoio momentâneo enquanto você percorre o próprio caminho no
sentido do descobrimento do seu próprio vocabulário e de como empregá-lo. É por isso que me
parece que a minha resposta a estas perguntas não tem importância nenhuma. É simplesmente
uma noção que depois vai agir como obstáculo para as suas próprias descobertas. Analogamente,
é bastante útil saber o que é esta cultura, mas deixa de sê-lo se a cultura ocupar o seu lugar. O
espaço que você ocupa não pode ser ocupado por outro sem que você se sacrifique.

44
PART.: Eu gostaria de me dirigir mais aos colegas que ao Dr. Bion. A minha impressão é que o
Dr. Bion nos propõe, não de aperfeiçoarmos o nosso aprendizado, mas talvez de participar de um
momento criativo assim como se poderia participar de uma criatividade de Rafael olhando para a
Mona Lisa (desculpem!)**14; a Mona Lisa não nos dará nunca a resposta para os problemas de
nossa existência pessoal e muito menos científica; e assim mesmo creio que refletindo sobre a
ambigüidade da Mona Lisa teremos a possibilidade de aceitar um pouco melhor, de modo mais
luminoso, a nossa dificuldade pessoal. É talvez ambíguo o setting em que nos colocamos neste
seminário porque provavelmente todos nós lemos Bion e apreendemos a atenção com que Bion
coloca os pontos de interrogação.
O equívoco está em mim quando venho para cá na esperança de que Bion possa dar uma resposta
às interrogações que ele mesmo apresentou em sua produção literária. Talvez a verdade é que
neste contato pessoal com Bion nós podemos somente verificar que o ato de aceitar dentro de nós
a interrogação é o único modo pelo qual é estimulado aquele processo muito doloroso que é a
nossa criatividade pessoal.

BION: Creio que seja o que os psicanalista tentam exprimir quando falam de uma Arelação
transferencial@; vale dizer que nós temos estas pre-concepções de que existe algum tipo de
autoridade, um pai ou uma mãe, que conhece a resposta. A finalidade da análise é esclarecer este
ponto, não para continuar a ouvir pelo resto da própria existência o quanto é importante àquela
pessoa, mas porque então o indivíduo pode se desfazer dela e portanto deixar espaço àquelas
idéias, quaisquer que sejam, que ele poderia querer exprimir por sua conta. Enquanto isso
acontece, pode parecer que o analista ocupe uma posição cada vez mais importante, mas deveria
ser uma questão só temporária, dedicada a chamar a atenção sobre o fato de que se supõe que o
analista saiba esta, aquela ou aquela outra coisa mais, exatamente como um pai ou uma mãe. A
importância da posição do analista deveria ser trazida à luz, de maneira que pudesse ser
descartada; a pressuposta autoridade torna-se redundante, a posição do analista não é mais útil.
Eis porque é importante, durante a fase de transição, se houver condições de fazê-lo, apreender
quem é o músico, o pintor, o poeta, que está tentando se libertar dentro de vocês. Estejamos
certos ou errados, nos comportamos como se pensássemos que existe algo semelhante a uma
mente ou um caráter ou um espírito. Há várias descrições inadequadas B alma, espírito, super-
alma, ego, superego, id B não são muito esclarecedoras. Mas quando, na sua vida cotidiana, ou no
consultório, vocês se deparam com um outro Aalgo@, como o paciente que parecia ter sonhado o
fato da tristeza, então como podem vestir aquela descoberta com palavras, e com quais palavras
vão vesti-la?

Adendo:
Original do Paraíso Perdido B Milton B Livro III

... Thus with the Year

14
** N. do T.: desculpa-se do engano de ter atribuído a Mona Lisa de Leonardo a Raffaello.

45
Seasons return, but not to me returns
Day, or the sweet approach of Summers Rose,
Or flocks, or herds, or human face divine;
But cloud in stead, and ever-during dark
Surrounds me, from the chearful waies of men
Cut of, and for the Book of knowledg fair
Presented with a Universal blanc

Of Natures works to mee expung=d and ras=d,


And wisdome at one entrance quite shut out.
So much the rather thou Celestial light

Shine inward, and the mind though all her powers


Irradiate, there plant eyes, all mist from thence
Purge and disperse, that I may see and tell
Of things invisible to mortal sight. (Em negrito a citação de Bion)

Conceição Sotto Maior - Edições de Ouro, dá a seguinte tradução para o trecho acima:

"Assim com o ano, voltam às estações, mas o dia não volta para mim, nem vejo a doce
aproximação da tarde ou da manhã, nem a visão de beleza da floração, nem a rosa de verão
nem os rebanhos, nem a face divina do homem! Nuvens e trevas eternas me cercam!
Privado dos alegres caminhos dos homens, o livro dos belos conhecimentos me apresenta
uma lacuna universal, onde as obras da natureza são para mim expungidas e riscadas, e
a sabedoria, uma das suas portas, me é completamente vedada." (em negrito a citação de
Bion)
Capítulo Sétimo

Roma, 16 de julho de 1977 BTarde

BION: Existe alguém que esteja sentindo a pressão de uma idéia que deseja ser expressa, ou que
gostaria de exprimir?

PART.: Eu gostaria de fazer uma pergunta: nestes dias, sobre um fundo de meditação informal,
reativado em mim pelas palavras do Dr. Bion nos encontros da semana passada, reproduzi para
mim mesmo por diversas vezes o questionamento de um conceito de tempo. A presentificação
que me parecia ser uma peculiaridade grupal, em vez disso, me foi proposta também em um
setting dual, não só como artifício técnico, mas como modalidade única de relação, ou melhor, de
existência. Então, o que é o tempo para o Dr. Bion? É uma qualidade do espaço? É o ato de ligar
ou é o vínculo consciente entre dois ou mais espaços? É a maneira de perceber com vida o nosso
espaço mental, repleto de objetos vivos?... Como podemos evitar que o conceito de relatividade

46
correspondente à abolição das definições coincida com imobilidade?

BION: Seria interessante saber o que estimulou ou causou o surgimento deste assunto específico
no consultório analítico. Posto que teve início aqui, pode ser possível termos uma idéia a respeito
da fonte que deu origem a este problema. Podemos ouvir exatamente a pessoa que fez esta
pergunta, assim sendo, podemos localizar entre todos nós indivíduos, o específico ponto
geográfico de onde esta idéia de Atempo@ emergiu. Podemos também sentir que gostaríamos de
ser capazes de individualizar o espaço do qual ela teve origem B pareceria ter sido em um ponto
específico que poderíamos descrever, ou dando-lhe o nome da pessoa que fez a pergunta, ou
observando em que lugar da sala pareceu-nos que ela emergiu. Até agora, encontra-se no campo
das capacidades de nossos sentidos, podemos usar os olhos e podemos usar o sentido da audição;
e podemos usar tanto a capacidade biauricular quanto a binocular para ver o ponto de
intersecção. Suponham, ou em outras palavras, imaginem, usem a sua imaginação especulativa
para imaginar que este grupo tem um caráter. Prosseguindo a partir deste ponto e fazendo uma
hipótese posterior e uma especulação ulterior, o fato de que seja expresso este tipo de idéia ou de
pensamento poderia talvez ser considerado como uma prova da existência da mente ou do caráter
do grupo? Poderíamos compará-lo a outro conjunto de pessoas? Dariam elas também provas de
estarem interessadas nesta questão do tempo e do espaço? Parece-me que sim, porque, se vejo o
jornal de hoje, vejo que está escrita a data; está se afirmando que, segundo o parecer de alguém B
e esta opinião geralmente não é contestada B nós ocupamos um ponto específico no tempo. Se
olharmos o jornal poderemos também ter a prova do fato de que alguém considera que este seja
um ponto específico do espaço geográfico. Se examinarmos os monumentos de pedra, obteremos
também o que parece ser a prova do fato de que existiram grupos que pensaram desta mesma
maneira em um tempo diferente do presente. Assim, parece que existe a prova - pelo menos para
mim B da existência de uma mente humana. Pergunto-me se um cientista estaria convencido de
que esta seria uma prova da existência de uma mente humana; eu poderia lhe perguntar que
provas acrescentaria para supor a existência de algo semelhante ao comportamento grupal ou
civilizado, mas isso depende do que é que consideramos que seja uma Aprova@. Conhecemos
bem pessoas que acreditam que os analistas estão completamente fora do caminho na formulação
das suas várias teorias, hipóteses, mas gostaria de saber qual é o critério do cientista físico, e de
que maneira considera aquilo que ele acredita ser a prova dos fatos, que de algum modo deveria
ser diferente daquilo que eu, de minha parte na falta de algo melhor, considero que sejam os
fatos.
Se observarmos um grupo de crianças veremos sinais do tipo de coisas que eu teria podido pensar
quando tinha a idade delas. Posso supor que tenha havido um tempo em que eu mesmo notava
que as coisas que se apresentavam à minha percepção sensorial não estavam ao meu alcance e
precisava portanto recorrer a alguma forma de locomoção para alcançá-las. Isso daria origem a
uma sensação que, em seguida, poderia crescer até se tornar uma idéia de que existia algo como o
tempo e o espaço que me separavam do objeto que podia ver, do objeto que se apresentava aos
meus sentidos. Poderia esperar recordar de quase qualquer estado mental do qual estive
consciente em algum momento e poderia usar um semelhante conhecimento ou experiência
quando devo reavaliar aquela prova de tempo e espaço. Que validade a mais estaria justificada a
atribuir à evidência para a qual dependo deste relógio de pulso B uma máquina moderna B ou
quanto valor a mais deveria atribuir a uma coisa que posso ver com a ajuda de um microscópio,
ou de um rádio-telescópio, ou de uma coisa qualquer que esteja entre um e outro? - e de que

47
maneira é preciso avaliar a minha idéia presente a respeito do tempo e do espaço em relação à
idéia de tempo e espaço que eu teria se fosse um recém-nascido esfomeado que está tentando
alcançar alguma coisa que acredita ser um doce desejável e do qual está separado? AO silêncio
destes espaços infinitos me aterroriza@. Se fosse eu uma criança pequena, não poderia dizer isso,
mas poderia senti-lo; poderia sentir que seria terrível ser obrigado a encontrar o tempo e a
habilidade atlética para ir daqui até ali. Enquanto isso, estaria esfomeado pela satisfação sensual
que queria tanto alcançar.
Se temos uma mente e se temos necessidade de satisfazer a nossa curiosidade, devemos encontrar
um meio ou uma escala de mensuração. Pergunto-me se isso teria algo a ver com a realidade, ou
se não teria muito mais a ver com a natureza pouco eficaz de nós mesmos. Por exemplo, li que a
distância da nebulosa da qual nosso sol faz parte, medida através do centro galáctico é estimada
por volta de 108 milhões de anos luz; o espaço que nós ocupamos no momento atual, no espaço
absoluto, iremos ocupá-lo novamente daqui a 108 milhões de anos luz. Não sei se alguém se sente
mais sábio, eu não. Mas isso tem o ar de dar uma tal contribuição de conhecimento e de ser muito
sábio. Pelo que me diz respeito, não significa praticamente nada, apenas que alguém se sente
melhor.
No final das contas recorremos a algo mais simples; dizemos que vamos nos encontrar às 16h de
hoje à tarde, ou às 21:15 desta noite. Isto é suficiente para a nossa capacidade infantil de nos
arrastarmos mentalmente, de gatinhas.

PART.: Entre onipotência e impotência, entre dependência e solidão, existem pensamentos sobre
o poder que não sei pensar.

BION: Isto traz de volta o problema para uma área onde me parece que podemos trabalhar de
maneira eficaz; ou seja, se descobrimos que não sabemos como pensar B mesmo se
aparentemente temos um aparelho que poderia tornar isso possível B então pelo menos podemos
tentar aprender a utilizar aquela capacidade de pensar, posto que a temos. Isto faz pressupor que
temos uma capacidade para o pensamento, que temos um cérebro ou um sistema nervoso central
ou um sistema simpático que de algum modo nos torna possível pensar, se a suposição fosse
correta seria necessário aprender como utilizar esta capacidade que foi novamente descoberta.
Atualmente acredito que a grandíssima maioria de nós se limita a dar por certo que naturalmente
podemos pensar. E o que eu considero que sejam pensamentos, outras pessoas poderiam
considerá-los um non-sense B o que é uma solução do problema. Mas quando descobrimos que
de fato não sabemos como pensar, mesmo se aparentemente somos capazes de usar o nosso
sistema nervoso central e os sentidos que ele nos coloca à disposição, a questão é, sabemos o
significado do que nos dizem os nossos sentidos? Pressupomos compreender o significado que os
nossos sentidos nos transmitem; parece que nos encontramos aqui juntos, através do uso dos
nossos sentidos, ou seja, estando cientes da informação que estes nos trazem, além de
compreender o significado de tal informação. Não é uma descoberta particularmente profunda
mas pode ser que as nossas ambições sejam estimuladas para fazer algo a mais. Há algo a se dizer
a favor da idéia que, se pudermos cooperar, se conseguirmos alcançar um ponto tal que nos faça
entrar na sala no mesmo momento, então talvez poderíamos colaborar o suficiente para obter
algo a mais. Poderíamos discutir esta questão à qual alguém deu início fazendo uma pergunta a
respeito do tempo e do espaço. Depois, se pudéssemos colaborar, através de nossos
conhecimentos comungados, poderíamos talvez avançar um pouco na selva de nossa ignorância.

48
PART.: Eu teria uma pergunta: na obra de Freud um dos maiores pilares é constituído pelo
princípio da realidade, e mesmo no trabalho analítico este é um dos parâmetros fundamentais
para julgá-lo. Parece-me também que a maior parte de nós, quando se refere a uma realidade para
medi-la, para avaliá-la, para julgá-la, geralmente faz referência a toda uma série de parâmetros
espaço-temporais. E parece-me que no pensamento e na obra de Bion um dos eixos fundamentais
seja a referência à verdade; pergunto-me que uso se pode fazer destes parâmetros espaço-
temporais. Não estou dizendo que em Freud não haja nenhuma referência ao problema da
verdade; por exemplo, Freud faz uma referência específica a ele quando fala, próximo do final do
caso Schreiber, e se pergunta se há mais verdade no modo científico de expressão ou no modo
pelo qual Schreiber se exprime. Pessoalmente me pergunto se existem parâmetros ou
coordenadas que possam nos ajudar a sentir que estamos lidando com a verdade. Além dos
efeitos, por exemplo, estar melhor ou estar pior...

BION: Creio que deveríamos resistir à tentação, à sedução de acreditar na nossa onipotência ou
na nossa onisciência. Existem provas abundantes para nos fazer entender que não somos
onipotentes e que não somos oniscientes B não temos sequer sucesso quando tentamos fazer as
coisas mais simples. A nossa reação diante da descoberta tão constantemente repetida, que não
somos onipotentes nem oniscientes, é quase sempre a de derrapar na direção oposta; a fé na nossa
onipotência e na nossa onisciência é construída diretamente sobre as fundações da nossa
consciência de que somos ignorantes e incompetentes.
Permitam que eu diga a mesma coisa de um modo que poderia parecer diverso: os nossos
sentimentos de impotência, de ignorância e de incapacidade se nos apresentam com tanta força
porque baseiam suas fundações sobre a nossa onipotência e onisciência. Quanto mais pensamos
ser onipotentes e oniscientes, mais é certo que nos será demonstrado com muita força que não
somos nada do gênero; portanto oscilamos entre um estado e outro, fazemos constantemente esta
viagem entre A e B.
Penso que num certo sentido isso poderia indicar a direção ao se estabelecer um valor absoluto
qualquer, do mesmo modo em que o fazem os matemáticos. Mas isso se parece mais com o ter
que inventar ou criar os utensílios com os quais pensar. Enquanto estamos tentando analisar a
mente de alguém que não é nós mesmos, ou também a relação entre as duas mentes, é preciso
também inventar ou criar os próprios instrumentos que esperamos utilizar. Aqui podemos nos
olhar e nos escutar enquanto tentamos aprender como pensar. Aquele espaço peculiar e aquele
silêncio peculiar são tão penetrantes que estamos amedrontados com eles. Repetindo a citação de
Pascal, ALe silence éternel de ces espaces infinis m=effraie@; temos medo da qualidade
penetrante do silêncio. Não é somente uma questão de ter medo daquilo que dizemos e que
pensamos e que tornamos audível; é também medo daquilo que não dizemos. Os músicos têm
uma maneira de simbolizá-lo ativamente através do que chamam de Apausas@; podem registrar a
Apausa@ como parte integrante da música. Se a orquestra está realmente em contato com a
realidade à qual pode dar expressão, então por vezes a cooperação entre os vários instrumentos e
o regente da orquestra terá uma qualidade totalmente distinta da que tem em outras ocasiões em
que executam o mesmo trecho de música. Podem dizer que a orquestra apresentou uma ótima
execução, digamos, da quarta sinfonia de Brahms . Que trecho de música estamos exprimindo
aqui? AA Obra Completa de Freud@? AA História da Filosofia@? AA História da Religião@?

49
Falamos a respeito de ser Apsiquiatras@ ou Apsicanalistas@. Somos? Ou vamos nos tornar algum
dia?
Wordsworth diz A... hearing often-times the still, sad music of humanity@**15 Presume-se que
estamos em contato com os nossos companheiros da raça humana. Quando amanhã vocês derem
uma interpretação, vão estar seguros de que ela será semelhante à expressão da música da
humanidade ou pelo menos à música daquele fragmento de humanidade que se meteu no seu
consultório?
Notar ali que introduzi um elemento, de ritmo, de timing. Provavelmente a maior parte de nós
tem essa experiência de sentir que de vez em quando Aaconteceu uma boa sessão@ , quando
estivemos realmente juntos com um dos nossos pacientes. Estávamos agindo conforme um ritmo,
mesmo se não poderíamos descrevê-lo nem registrá-lo.

PART.: Proporia o seguinte: se interrogamos a etimologia, pensar quer dizer pôr-se a prova com
um peso, pondus-peso; de resto, ponderar, avaliar, são sinônimos que assinalam a mesma
questão. Cogitar, por outro lado, é o interativo de cogere, que quer dizer constringir. Pergunto-me
então se existe a possibilidade de introduzir um conceito de massa e de gravidade na teoria do
pensamento. Pensar seria então a coação a suportar, erguer pesos. Parece então que também para
o pensamento é possível fantasiar um tipo de gravidade que curvaria o seu espaço. A pergunta é:
pode-se afirmar, me dêem um ponto, me dêem um sinal de apoio e eu erguerei um pensamento?
E mais, o grupo é geralmente um instrumento mais capaz ou menos capaz de funcionar como
alavanca para erguer os pensamentos?

BION: O uso metafórico a que o Sr. faz referência demonstra que num certo momento os seres
humanos foram cientes deste Apeso@. Reaparece agora porque este uso não foi bastante
satisfatório; a questão, portanto, é se o grupo poderia afinar a capacidade de pensamento que foi
alcançada até agora. AMane, tecel, fares@ um mina, alguns mina, meio mina**16 - aquela foi uma
ocasião em que se recorreu claramente a uma linguagem que normalmente usamos para
descrever quantidades ou peso.**17 O problema hoje é se somos capazes de sermos
suficientemente sensíveis, ou no consultório analítico ou em nossa casa , de sermos capazes de
ouvir novamente a referência a estes pesos e medidas? Se assim formos, talvez possamos então
acrescentar uma dimensão à nossa capacidade de pensar. Pode ser que não iremos fazer muitos
progressos, mas que o fato em si do pensar reforce os nossos músculos mentais. Este grupo
estaria em condições de pensar, de falar e de discutir de tal maneira que a nossa capacidade
mental no final de uma hora, de um dia, de uma semana pudesse suportar uma carga maior da
que podia no começo?

PART.: Gostaria de acrescentar uma reflexão ao que foi dito antes pelo colega: refere-se ao fato
se é possível ter um ponto sobre o qual apoiar o pensamento. Existem duas coisas: primeiro, se

15
** N. do T. : A... escutando freqüentes vezes a silenciosa, triste música da humanidade@. Ou,A...escutando muitas
vezes a serena, soturna música da humanidade@. (Trad. J. a. Junqueira Mattos)
16
** N. do T. Mina - antiga medida de capacidade para os sólidos B peso e moeda grega.
17
** Daniel 5:25

50
este ponto não seria possível pensá-lo em relação àquela que é a referência ética do grupo além
da estética. A segunda observação, completamente separada da primeira, era o pensamento de
Leonardo da Vinci a respeito do peso, que eu não lembro completamente mas que vou citar em
parte, e soa Amove-se o amante em direção à coisa amada como o senso e a sensível...@, não
lembro de toda a citação, mas num certo ponto diz: A... se a coisa amada for vil, o amante se fará
vil, se a coisa amada for boa, obter-se-á satisfação e prazer@ e depois tem uma referência ao
peso, AAssim o amante repousa e a coisa ali pousa@= que eu gostaria de pôr em referência
exatamente ao apoiar-se. Peço desculpa porque não li recentemente esta citação. Pensava se o
apoiar, a possibilidade de apoiar-se não fosse reativa, em uma situação de grupo, ao que podemos
imaginar como a referência ética, isto é, a possibilidade de respeitar o pensamento alheio. O
exemplo que me veio em mente esta manhã era o trabalho de Freud sobre Leonardo da Vinci,
onde ele propõe uma série de hipóteses sobre Leonardo da Vinci, respeitando o seu pensamento
no plano estético, sem violá-lo. Gostaria de saber o parecer do Dr. Bion.

BION: Leonardo foi uma dessas pessoas que parece que tiveram uma grandíssima mente, uma
grandíssima personalidade; com efeito, a herança que ele nos deixou tem até hoje um efeito
muito potente sobre pessoas que estão vivendo muito tempo após a sua morte. Orácio foi outro
habitante que se supõe que viveu mais ou menos nesta área geográfica. A sua AOde a Pyrra@ deu
muita dor de cabeça para bastante gente: nela ele descreve as conseqüências dolorosas por ele se
ter enamorado pelos cabelos dourados de Pyrra. Ao navegar naquele mar peculiar parece que
incorreu num naufrágio, e pendurou suas roupas ensopadas de água como um monumento
comemorativo da experiência. Acho muito comovente ver representadas nas paredes de uma
tumba etrusca as roupas que presumivelmente o habitante vestia. Essa é uma representação
pictórica de algo que parece ser um estado metal consideravelmente parecido: parece exprimir
uma dificuldade semelhante ao que diz respeito à paixão do amor. Claramente, parece haver algo
que leva dois seres humanos diferentes a se unirem; desconsiderando qual será o resultado deste
encontrar-se, seja ele um naufrágio ou a continuação da viagem juntos, parece ser uma
experiência muito estimulante. Assim, aqueles que estão dispostos a lançar ao mar o próprio
barquinho nos mares tempestuosos do amor arriscam-se a se expor a uma experiência dolorosa e
assustadora de naufrágio. O nosso problema aqui não comporta somente estar em condições de
pensar intelectualmente, mas também estar em condições de sentir emocionalmente. Permitam-
me voltar a propor a pergunta: para quais pensamentos selvagens e para quais sentimentos
selvagens estão preparados para correr o risco de hospedar?

PART.: Há aproximadamente quarenta e cinco minutos eu estou segurando um pensamento


selvagem B sinto a necessidade de contar um filme que me veio à mente quando o Dr. Bion
estava falando da onisciência, da onipotência e de deixar espaço. O filme chama-se AFase três B
Destruição Terra B A é um filme de ficção científica. A história fala de dois cientistas, um
etnologista**18 e um médico que têm a tarefa de ir controlar uma invasão de formigas numa
região da América. Quando chegaram nesse lugar encontraram alguns totens, monumentos
construídos pelas formigas. Ali perto construíram uma tenda circular. O etnólogo destrói estes
monumentos com bombas. Isso provoca o desencadeamento das formigas. Os homens lançam um

18**
N. do T. - teria o autor da pergunta pretendido dizer entomologista?

51
ácido amarelo para destruir as formigas. As formigas que sobrevivem transportam este material
amarelo pouco por vez... depois estas formigas amarelas colocam-se todas ao redor da tenda e
constroem pirâmides, ou uma espécie de pirâmides, paralelepípedos, feitos de tal forma que a luz
do sol seja refletida sobre a tenda. Neste ponto da história acontece uma passagem muito
importante, uma mulher que sobreviveu aos ácidos amarelos entra na tenda junto com os
cientistas. O etnólogo que estudava in vitro as formigas é mordido por elas, a mulher, numa crise
histérica , quebra as provetas. O etnólogo quer acima de tudo destruir as formigas, por isso sai da
tenda para destruir aqueles paralelepípedos que enviam calor para o interior da tenda e elevam a
temperatura. O cibernético em vez disso consegue ter uma relação humana com a mulher e, para
estabelecer contato, lança um quadrado para as formigas B isto é, tenta uma linguagem através
deste quadrado. As formigas respondem com um círculo, e dentro do círculo outro menor. A
mulher neste ponto sente a necessidade, ou também o desejo de se sacrificar B isto é, pensa que
as formigas queiram a ela. Então ela sai. O etnólogo por sua conta, completamente enlouquecido
pela mordida, foge para fora da tenda. É morto pelas formigas. O cibernético está perturbado e
procura a rainha: entra numa cavidade cônica da terra, pensando em encontrar a rainha ali. Em
vez da rainha, aparece uma mão e depois a mulher. Neste ponto o filme faz uma pausa, isto é, um
corte de montagem.
Acaba com um homem e uma mulher que caminham pelas colinas, transformados pelas formigas
B e a seqüência eu não sei, talvez vão fazer outro filme.

BION: O que me impressiona a propósito é que não consigo imaginar de que maneira as
glândulas supra-renais poderiam alcançar uma forma de expressão, mesmo se posso entender que
alguns vestígios de sua atividade poderiam emergir na mente humana no decurso de um lapso de
tempo relativamente breve, algumas centenas de anos. E então, finalmente, as pobres substâncias
glandulares inarticuladas poderiam encontrar expressão, ajudadas pelos maquinários do filme,
pelos projetores de filmes e pelas propagandas de massa. Obtemos assim uma moderna
representação da fuga e do combate, que junto com a sabedoria combinada da raça humana, pode
produzir um método moderno de dispersão da mensagem que presumivelmente as glândulas
supra-renais sozinhas não teriam nunca podido exprimir. Também desta maneira seria possível
talvez acrescentar uma pequena parte ao conjunto voltando à atenção para a imaginação
especulativa e para a razão especulativa, elaborando uma continuação do conflito entre as
capacidades de fuga, de luta e de dependência. Até agora o animal humano foi suficientemente
capaz na destruição dos próprios rivais. De vez em quando, porém, não tem tanto sucesso: em
1918 houve uma epidemia de gripe, ou Aa Espanhola@, ou Apirexia de origem desconhecida@ --
P.O.D. -- . No breve decurso de poucas semanas estes objetos minúsculos B os vírus -- mataram
mais seres humanos dos que tinha conseguido matar a guerra. Assim a nossa capacidade suicida,
de autodestruição, quase não tem necessidade de ser aumentada; existem muitas forças que
esperam cumprir este trabalho e pôr um fim nas capacidades criativa que temos. Talvez alguém
gostaria de escrever o roteiro de um filme sobre a guerra entre as supra-renais e as gônadas.
Talvez acabemos nos tornando todos impotentes ou estéreis, ou poderemos talvez tornar o mundo
inabitável porque seremos demasiados. Vou esperar B apesar de que talvez eu não vá viver por
tempo suficiente B para ouvir a continuação deste filme. Mas talvez não será só um filme; talvez,
neste mesmo instante deveríamos nos preparar mentalmente e mobilizando toda a nossa
capacidade para enfrentar perigos futuros que, comparados com eles, os nossos perigos atuais e
os passados não passam de um aperitivo. É preciso nutrir a capacidade de pensar, de maneira que

52
se torne muito mais capaz e muito mais robusta do que é atualmente. Até mesmo aqui a nossa
capacidade de refletir é influenciada com demasiada facilidade pela visão de um helicóptero que
sobrevoa o edifício, por um cachorro que late ou pelo tráfego da rua. Uma habilidade de pensar e
debater tão vulnerável, simplesmente não é suficientemente boa. Nos auguramos, como
subproduto da discussão, um método de pensamento mais robusto e mais apurado. Neste ponto, o
tempo de que ouvimos falar antes neste nosso encontro, nos impõe de novo que nos dispersemos.
Capítulo Oitavo

Roma, 16 de julho de 1977 B noite

BION: Freud foi atingido por certas cesuras, com efeito estas cesuras são múltiplas. Parece que
tanto o nascimento quanto a morte geram uma turbulência mental; é possível que nós mesmos
percebamos a conturbação quando nascemos e passamos de um fluido aquoso para um fluido
gasoso, do fluido amniótico para o ar. Mas é o nascimento de outro que cria perturbação nas
pessoas que já existem: o pai e a mãe, habitualmente. Também a morte cria conturbação naqueles
que sobrevivem. Mas isso não quer dizer que o nascimento e a morte tenham importância no que
diz respeito ao indivíduo. Pode-se facilmente imaginar que se não conseguíssemos nascer
adequadamente, isso criaria uma certa conturbação; o mesmo ocorreria se não conseguíssemos
sermos mortos adequadamente ou morrer adequadamente.
Quando estudava medicina aprendi a conhecer bem o dito ANão esforçar-se para manter a vida a
qualquer custo@, o que quer dizer ANão dar saltos mortais para manter alguém vivo a todo o
custo@. Graças aos cientistas, hoje é possível manter operantes certas funções corpóreas B
beneficiando não sei quem. Recentemente houve um caso bem conhecido em que os pais
desejavam muito que lhes permitissem desligar essa aparelhagem e que a paciente B sua filha B
pudesse morrer. Os seus desejos não foram minimamente considerados. Os anti-vivisseccionistas
costumavam protestar contra os preparados neuro-musculares que eram utilizados para o ensino
da fisiologia aos estudantes. O caso de que estou falando era um daqueles em que um ser humano
foi utilizado como um preparado neuro-muscular. Cui bono? Para quem é útil?
Para voltar a estes períodos que parecem causar uma potente impressão nos seres vivos: nascem
crianças, e tem pessoas que morrem. Uma vez que se está vivo, pode-se morrer a qualquer
momento. Portanto, quantos funerais teremos que celebrar? Quantos mortos iremos exaltar em
conturbações ritualísticas? Cada um de nós que existe no início de uma reunião como esta,
cessou de existir quase em cada segundo do tempo que passa daquele momento em diante;
mudamos e nos tornamos pessoas diferentes. Aquilo que éramos antes de então não é importante;
torna-se rapidamente passado, em relação ao qual não podemos fazer nada.
Como dizia, períodos ou episódios como o nascimento, a adolescência, a latência, o casamento, a
morte, parece que liberam alguma turbulência emocional, por isso é atribuída muitíssima
importância a essas cesuras toda vez que elas se impõem à nossa atenção. A turbulência
emocional que é iniciada tem algumas conseqüências porque todos os tipos de elementos, nos
quais habitualmente não prestamos muita atenção e dos quais não somos conscientes, são
remexidos e trazidos à superfície. Muito freqüentemente se tornam tão evidentes que damos um

53
nome a eles B eu tentei resumi-los em um discurso chamado Abreak-down, break-up, break-
through@.**19 Poderia quase dizer Aescolha a sua preposição@. Mas como analistas deveríamos
utilizar estas palavras com exatidão se temos intenção de falar de queda (break-down) ou de
erupção (break-up), que esteja pelo menos mentalmente claro qual é o sistema de coordenadas
com que estamos medindo a direção da ruptura. É preciso que formem o seu vocabulário pessoal
e que esteja absolutamente claro o que vocês entendem dizer quando utilizam uma determinada
palavra, de maneira que possam usá-la sempre coerentemente. Somos submetidos a uma pressão
quando pessoas que não estão acostumadas a falar com esmero dizem: AFulano tem um break-
down@. Penso que não deveríamos nos deixar seduzir e acreditar que a pessoa em questão esteja
tendo um break-down; uma ruptura, (break), sim, mas é preciso que nos concedamos a
oportunidade de chegar a uma conclusão nossa pessoal a respeito da direção em que a ruptura
está ocorrendo. No plano social não é preciso discutir a questão; podemos concordar em nos
associarmos ao uso cotidiano da linguagem. Mas não devemos permitir que isso torne menos
exata a linguagem que cada um de nós usa. Naturalmente, em um grupo como este, talvez é
possível que se consiga elaborar uma linguagem comum que possa ser compreendida por todos
nós, mas essencial é que a nossa linguagem privada, deva ser sempre mantida em ótimas
condições de funcionamento.

PART.: O ensaio sobre o verdadeiro e o falso inicia-se com uma metáfora tirada de uma fábula
de Andersen; intitula-se AO rouxinol e o imperador da China@. A fábula conta mais ou menos
assim: AÀs margens dos jardins do imperador da China estendia-se uma floresta que chegava até
o mar. Os marinheiros contavam que numa árvore da floresta um rouxinol cantava. O imperador
queria este rouxinol a qualquer preço e ameaçava de morte e destruição os ineptos cortesãos se
não lhe o trouxessem. Finalmente uma modesta empregada soube ajudar os caçadores; o
imperador teve o rouxinol que o tornou feliz, e este sentia-se compensado pela emoção do
imperador. Com seu nome foram batizados sete filhos de sete samurais. Mas o imperador do
Japão, invejoso, mandou um dia de presente para o imperador da China, um rouxinol mecânico.
O seu canto parecia mais belo do que o do rouxinol verdadeiro. Um professor de música escreveu
sobre o canto deste rouxinol mecânico sete livros de teoria. O rouxinol verdadeiro foi embora
ofendido. Infelizmente, o rouxinol mecânico quebrou, e o imperador, pela dor de não ouvir mais
a música, estava para morrer. Os cortesãos choravam por ele como se já estivesse morto, mas de
noite o rouxinol verdadeiro, lembrando da antiga comoção do imperador, veio visitá-lo. Os
cortesãos, entrando no quarto do imperador, maravilharam-se por não vê-lo morto. Ele estava de
pé e os saudava alegremente dizendo-lhes Abom dia@. Não digo aquilo que diz o ensaio, mas sim
a minha conclusão depois do seminário de hoje. Depois destes seminários, pareceu-me
compreender que a verdade poderia ser deslocada do rouxinol e encontrada no sofrimento do
imperador. Ou talvez, dos dois imperadores. Mas gostaria de perguntar ao Dr. Bion se é possível
individuar um outro vértice desta fábula, para fazer um discurso sobre a verdade que possa
recuperar o problema, eu tinha pensado na vida.

BION: Uma das peculiaridades de certas formas de comunicação é que são hieroglíficas,

19
** N.d.T. Os três termos são compostos pelo verbo Abreak@(quebrar) e três preposições que, sozinhas indicam
embaixo, encima, através de.

54
pictóricas B o chinês, por exemplo. A ressalva para este método de comunicação é que ele é
habitualmente um tanto obscuro e ambíguo. Aliás, segundo Fenolosa, o número de sinais que são
utilizados na escrita hieroglífica chinesa pode ter sua quantidade enormemente reduzida; dizem
que somente cerca de 4.000 sinais são realmente necessários; os remanescentes, que chegam a
pelo menos uns 10.000 aproximadamente, são um excesso. Tomemos esta fábula específica:
muito tempo deve ter sido necessário para transformá-la até poder traduzi-la nas atuais
linguagens articuladas européias; foi necessário transformar o hieroglífico em uma versão verbal
de uma imagem pictórica. Para os nossos interesses, no nosso vocabulário, sustento que seja
necessário reduzir os caracteres ao mínimo; o mesmo vale pelo que concerne as imagens
pictóricas que precisamos utilizar. Que conjunto de imagens verbais e palavras articuladas
pertencentes a uma língua articulada devemos manter como reservatório do qual se valer? E
como se deve integrar aquele vocabulário para exprimir algo que queremos que seja
compreendido por alguém que não nós mesmos? Neste grupo haveria uma grande vantagem se
tivéssemos uma linguagem comum. Podem perceber como incomoda quando alguém como eu
entra no grupo e não é capaz de falar uma língua**20 que todos vocês entendem; é um incômodo
para vocês e é um incômodo para mim.

PART.: Gostaria de dizer algo; isto é, gostaria de tentar exprimir isso: o que entendi é que é
preciso tentar ouvir. E também ver com os sentidos e... vou me deter aqui. Embora eu sinta que
isso causa cansaço e perigo.

PART.: ... senti de início que não era muito importante decidir se exprimir ou não o meu
pensamento porquanto me senti estimulada sobretudo em recuperar a escuta interna; baixando
eventualmente a guarda. Mas quando decidi exprimir o meu pensamento, senti-me angustiada
pela dependência e pela solidão que poderia surgir se houver alguém que depois de me escutar,
for embora. Mas a ansiedade da solidão e da dependência poderia se tornar mais intolerável se
fosse embora também o meu ouvinte interno.

BION: Não estou certo de ter compreendido qual é o problema a seu ver. Tem motivos para
supor que ele iria embora?

PART.: Poderia ir embora junto com o ouvinte interno.

BION: Mas, se a senhora sabe disso, qual é a dificuldade?

PART.: Pode aumentar a dificuldade de exprimir a ansiedade, de exprimir os próprios


pensamentos, e a tendência de ouvi-los somente desde dentro.

BION: A sensação de ser dependente e só é fundamental; ela parece ser anterior a qualquer
habilidade de empregar alguma outra forma de discurso entre duas pessoas. A primeira pessoa
com quem devemos estar em condições de comunicar, a pessoa mais importante neste contexto
somos nós mesmos.

20**
N. do T. ALanguage@ em inglês abrange os significados de Alinguagem@ e Alíngua falada@, idioma.

55
Há certo tempo tentava ordenar as situações deste tipo escrevendo algumas anotações ou fazendo
referência a algumas anotações. Agora não me preocupo mais com isso. Não sei o que irei dizer
em resposta à situação emocional em que me encontro aqui. A experiência me ensina a estar
certo do fato de que não vou ficar satisfeito com o que digo, mas me ensina também que deverei
suportar o fato de ser eu mesmo, e que, quer eu goste, quer não, devo tolerar a minha maneira
pessoal de falar e de pensar. Aqui eu dependo do fato de que aquilo que eu digo deve ser
traduzido em uma língua mais compreensível. Mas isso acontece sempre, de qualquer maneira;
quando quero comunicar o que penso a alguém que não sou eu, devo então usar uma linguagem
que seja compreendida, o mais possível, pela pessoa à qual estou falando. Devo suportar
pacientemente o fato de que é possível que eu não me lembre daquilo que eu disse na sessão
anterior, ou na semana anterior, ou no ano passado. No fim das contas, estou convencido de que
aquilo que eu digo e penso tenha uma certa coerência. Não sei o que seja a coerência, mas
preciso me reconciliar com ela.

PART.: Qual é o lugar B topos B onde se encontram o indivíduo e ele mesmo? O indivíduo e o
outro, o indivíduo e o grupo? É talvez o lugar onde se encontram o pensamento e a ação, espírito
e matéria?

BION: Não me sinto especificamente iluminado pelas várias descrições da mente ou da


personalidade B Ego, Id, Superego e assim por diante. Um jesuíta que conheço um pouco falou
de Aarbitrium@, nome ele dá a uma função que age como um juiz implacável. Não estou muito
convencido deste nomear especificamente o fato de parecer que eu discrimine ou escolha para
dizer uma coisa e não dizer outra. Parece-me que existam ótimos motivos para tratar as nossas
comunicações verbais como uma ação semelhante a uma ação atlética. Não vejo nenhuma
evidência para lhe dar um nome. Em outras palavras, também não estou de acordo com as
pessoas que liquidam com desprezo toda a psicanálise e toda a filosofia, etc., como
Apalavreado@.
Tácito descreveu o costume das tribos germânicas de utilizar um método pelo qual um bardo se
exprimia e, dependendo da reação do grupo àquela comunicação estética, o chefe decidia quais
impulsos deviam ser transformados em atividade física, como por exemplo fazer guerra. Existem
também algumas lendas que se referem aos cantos entoados pelas sereias. Talvez cada um de nós
tenha a possibilidade de dar uma contribuição ao problema do AO que é?@ ou AQuem é?@ que,
na república das nossas personalidades, decide qual pensamento ou ação deva ser traduzido numa
posterior ação. Walter Landor exprime-se assim:
ANão há campos de amaranto**21 deste lado da tumba.
Não há voz alguma, por mais musical, que logo não emudeça
Não há nome, por quanto possa ser repetido com qualquer ênfase de amor passional
cujo eco por fim não enfraqueça.@**22

21
** N. do T.: o amaranto, um tipo de Asempre-viva@, é uma flor que simboliza a imortalidade.
22
** AThere are no fields of amaranth on this side of the grave./ There are no voices that are not soon mute, however
tuneful./ There is no name with whatever emphasis of passionate love repeated/ Of which the echo is not faint at last@.

"Não existem campos de amaranto deste lado da sepultura;

56
Cada um de nós parece ser capaz de relembrar várias experiências do curso da própria vida.
Parece existir algo em condições de determinar o que, de toda aquela massa memorizada, vale a
pena ser chamado novamente à mente. Mas resta ainda o problema de decidir o que vamos fazer
com isso. Pode ser que nós sejamos capazes de chegar a algum tipo de conclusão temporária
sobre como devemos decidir. É complexo: um grande número de pensamentos, idéias,
sentimentos são desenterrados e quase instantaneamente os colocamos em ordem de preferência.
Existe algo de muito intelectualizador em tudo isso e não estou especificamente convencido de
que se trate de uma representação acertada dos fatos.

PART.: Em todos estes seminários foi tocado o tema da morte, e eu creio que, a fim de que
aquilo que dissemos seja coerente e operativo, é preciso poder encontrar o Buda, mas depois é
preciso poder também matá-lo. Queria perguntar ao Dr. Bion se acha que este discurso que
estamos fazendo neste momento possa ser cotejado com as reflexões feitas por Freud naquele seu
trabalho no qual fala com o poeta com quem se encontrava; juntos vêm um campo de flores e
refletem sobre o fato de que estas flores morrerão e que assim mesmo vale a pena viver e
trabalhar, apesar disso.

PART.: Eu também gostaria de perguntar algo, isto é, se aquilo que se dizia sobre a escuta e
sobre a construção de um vocabulário próprio, diz respeito ao fato de fazer com que depois as
coisas que nós dizemos analisando, as dizemos primeiramente para nós mesmos e que (se) isso
pode produzir um crescimento.

BION: Não tenho conhecimento suficiente dos Upanishad para conhecer bem as primeiras
formulações referentes à mente e ao espírito humano. Existem certamente obras que procuram
estabelecer algum tipo de contato com as modalidades de pensamento ocidentais. O Bhagavad
Gita é uma delas; há uma versão francesa muito distorcida, produzida por Fitzgerald, de Omar
Khayyam; e existe a versão francesa da Ilíada que é considerada a melhor existente. Há uma
curiosa semelhança entre as várias raças e épocas: por exemplo o profeta que se presume seja
capaz de dar voz às opiniões de Deus, Moisés, Jesus, Maomé, de todos eles se diz que tenham
dado expressão à vontade e aos pontos de vista de Deus. Os muçulmanos parecem sustentar que
os hebreus perderam o caminho, e que se desviaram de maneira notável quando Moisés descendo
do Sinai os encontrou adorando o bezerro de ouro. Também os cristãos, segundo os
muçulmanos, cometeram o erro de passar para uma religião politeísta, não tendo sido fiéis a uma
religião monoteísta. Mesmo se os deuses menores são vestidos, por assim dizer, pelas
características da santidade, isto é de qualquer maneira uma volta ao politeísmo, um
distanciamento do monoteísmo B a parte vital e essencial da postura religiosa.
Conseqüentemente, os muçulmanos sustentam que tanto a religião hebraica quanto a cristã se
afastaram da verdadeira religião. O que dizer da congregação dos santos psicanalíticos?
Individualizaram algum sinal de estratificação na esfera mental? Kleinianismo? Freudianismo? E
em que direções diriam que estes estratos são discerníveis? É possível individualizar algum sinal

Não existem vozes que não se emudeçam por mais harmoniosas que sejam; Não existe nome, por mais ênfase com que
o amor apaixonado repita, cujo eco, por fim, não se esmaeça...
(Trad. J.A. Junqueira Mattos)

57
daquilo que eu chamo de estratificação neste nosso debate. Geologicamente, naturalmente,
podem-se ver estes estratos, às vezes são verticais como pilares; outras vezes são horizontais.
Podemos imaginar que em um período de turbulência os estratos se dobrem em todas as direções;
as várias religiões e os santos padroeiros são fragmentários e só podem ser descritos como se
encontrando em um estado de turbulência, de constante .movimento. Depois isso dá lugar a um
período de relativa inércia e aparente segurança. Mas os estratos ainda permanecem e ainda
podem ser individualizados, esta multidão de deuses com os seus seguidores.
Com freqüência um indivíduo é submetido a pressões de modo a lhe fazer supor que é uma
dessas pessoas realmente importantes. É muito desencaminhador, existem modas nessas posturas
religiosas. O deus que é expresso e exaltado, desaparece muito rapidamente. Lembrem da poesia:
AO meu nome é Ozymandias, rei dos reis
Admirai as minhas obras, oh Poderosos, e desesperai-vos!
Não sobra nada perto. Ao redor da deterioração (do inglês)
daqueles destroços colossais, ilimitada e esquálida
As areias desoladas e planas se estendem ao longe@**23

Penso que não devemos ficar demasiadamente deprimidos se conseguirmos ver surgirem estas
estratificações; ou senão, para deslocar a metáfora da geologia para a religião, estas variedades de
politeísmo. Podemos considerá-las como fases temporárias, transitórias, de nossa viagem.

PART.: Gostaria de perguntar ao Dr. Bion o que pensa da organização diária da própria mente, e
se esta pode favorecer o diálogo com o próprio interlocutor interno.

BION: Penso que seja perigoso presumir que de alguma maneira estamos isentos do movimento
geral de uma comunidade. O próprio Freud descreveu uma situação em que existe o risco de que
uma simples mudança de observador seja confundida com uma nova descoberta na psicanálise,
ou com uma nova forma de psicanálise. Antes eu acenei para este ponto em relação à geometria
moderna que é implícita na geometria euclidiana; num certo momento tornou-se explícita, parece
que quase por acaso, como se, por exemplo, as coordenadas cartesianas fossem um subproduto da
linha principal do pensamento de Descartes, embora muito importantes.

PART.: Queria dizer isso: que esta noite estou pensando continuamente numa poesia... Esta
poesia descreve o ato de encontrar o nome de uma anotação. O poeta parece contente, muito feliz
de ter esta capacidade. No fim da poesia ele imagina ver um esplêndido anel no fundo de um lago
de águas particularmente límpidas. Percebe-se também absolutamente incapaz de encontrar um

23
** Shelley: Ozymandias. B AMy name is Ozymandias, king of kings/ Looks on my works, ye Mighty, and despair!/
Nothing beside remains. Round the decay/ of that colossal wreck, boundless and bare/ The lone and level sands stretch
far away.@
"Eu me chamo Ozymandias, rei dos reis,
Olhai as minhas obras, ó poderosos, e desesperai-vos!
Nada em torno persiste.
Ao redor, apenas a decadência de colossais naufrágios, ilimitados e vazios. Só as solitárias e planas areias se espraiam
no horizonte extenso." (Trad. J. A. Junqueira Mattos)

58
nome para aquele objeto. Mas parece que sua alegria aumenta diante deste fato... Gostaria
portanto de perguntar ao Dr. Bion se pensa que esta dificuldade de encontrar um nome, como
também a específica dificuldade de tornar por vezes explícito o que é implícito, não podem ser
somadas à série de cesuras de que se falou...

BION: Poderia ser uma cesura que atingia a ele, e talvez poderia ser capaz de comunicar
verbalmente esta experiência ao Sr. e a outros, graças à sua capacidade de ser um poeta. Penso
que somos todos susceptíveis, segundo nossa natureza individual, de sermos impressionados por
alguma cesura específica que pode até não significar muito para outras pessoas. Uma dessas
coisas impressionantes é o que se poderia chamar de Acura@. Existe uma tendência que faz com
que o grupo persiga a sombra de uma cesura: perseguimos uma relíquia ou idéia específica como
se existissem realmente. Na psicanálise existe a idéia implícita de que se seguirmos esta
disciplina alcançaremos a cura. Vejo uma certa dificuldade: há uma capacidade específica com a
qual eu creio ter-me encontrado mais e mais vezes; tanto é verdade que eu sustentaria que alguém
que não consiga fazer troça do próprio analista seria realmente deficiente. O paciente que não
conseguir zombar de mim deve realmente ter algo nele que vai muito mal. É difícil tolerar isso:
considerem como se sentiriam em relação a uma pessoa que conseguisse zombar de vocês. Não
obstante, qualquer um que aspire ajudar os próprios semelhantes que sofrem, deve ser também
suficientemente forte para sobreviver quando for agarrado pelos fundilhos.
Na Inglaterra, quando me aconteceu de ser internado num hospital, vi os complicados testes de
laboratório, e as forças auxiliares de setores e enfermeiras utilizados na cura dos diabéticos. Estas
pessoas estavam se beneficiando dos recursos do Welfare State. Em parte, estes benefícios
deviam consistir em poder receber as visitas de seus amigos e parentes. Assim, por um lado,
tinham uma dieta que correspondia às descobertas da ciência médica no campo da dietética; de
outro lado, os seus parentes e os seus amigos, porque se condoíam com estes desgraçados cuja
liberdade pessoal era limitada por cruéis médicos e enfermeiros hospitalares, assumiam a tarefa
de prover para que fossem abundantemente abastecidos do tipo de alimento de que eles
realmente gostavam. Não permaneci no hospital por tempo suficiente para ver qual poderia ser o
resultado deste problema , mas quando propomos o que é B segundo nossa opinião B a nutrição
mental correta, devemos também estar cientes do fato de que existem várias outras pessoas
prontas para fornecer o que elas acreditam ser a nutrição correta. Provavelmente não será
necessário muito tempo antes que se deparem com um texto de nível profissional que descreva a
necessidade de reassegurar e confortar os pacientes que estão na fase terminal de uma doença,
contando para eles alguma coisa reasseguradora que sirva como antídoto para a sua crença de que
estão morrendo. Pergunto-me que sorte teria o apelo para a verdade contra forças daquela
natureza.
Capítulo Nono

Roma, 17 de julho de 1977

BION: Todos nós temos algo a ver com a saúde mental, encontrando-nos em uma posição de

59
responsabilidade. Não estou considerando como parte de nossa discussão imediata o que
sentimos enquanto indivíduos; como pessoas que em relação aos pacientes ocupam uma posição
de responsabilidade; o que sentimos, mentalmente ou fisicamente, não tem nenhuma
importância. Importa a nós, individualmente, mas a mais ninguém. Não importa o quanto
estejamos cansados, o quanto estejamos doentes física ou mentalmente, todas essas são
vicissitudes totalmente indiferentes. São somente fatos, como qualquer outro fato a respeito do
qual nós não podemos fazer nada e a respeito do qual nenhuma outra pessoa irá fazer nada. A sua
saúde mental ou física é um fato como o clima ou o local geográfico em que se encontram
trabalhando, coisas que por outro lado não têm nenhuma importância. Quaisquer sejam esses
fatos, nós, enquanto pessoas responsáveis, devemos exercitar a nossa profissão; devemos ser
capazes de pensar claramente, não importa o que esteja acontecendo.
O nosso problema é como sermos sensíveis aos sofrimentos das pessoas que vêm até nós em
busca de ajuda, e no entanto não sermos impactados por tais sofrimentos a ponto de isso interferir
com o nosso pensar claramente a respeito do trabalho que estamos executando. Em certas
situações podemos estar cientes de maneira inquestionável do perigo que estamos correndo,
sobretudo quando nos encontramos sob a ameaça de uma violência física. É sempre muito
importante que continuemos a pensar com clareza mesmo quando fica claro que a nossa vida está
em perigo. Mas na maior parte das vezes este tipo de perigo não é nada óbvio; as circunstâncias
em que nos encontramos podem parecer confortáveis e portanto reasseguradoras.
Na guerra, a maior parte das pessoas que estão nas forças combatentes sabem que o fato de
existirem serviços médicos é realmente irrelevante. Poderia ser muito sedutor; poderia parecer
que este fato exerça tal pressão que as tropas poderiam desejar ser acudida em vez de ter que
combater o inimigo. Também ao apresentar este quadro, estou atraindo a atenção sobre algo que
é relativamente simples. É difícil dar-se conta do fato de que os psicanalistas e aqueles que estão
empenhados em ajudar quem sofre mentalmente, encontrem situações em que têm que enfrentar
muitos perigos. Na esfera mental existe um ponto que se pode tornar patente: nos encontramos
sós numa sala com um paciente especialmente violento; não há muito que possamos fazer,
porque a maior parte de nós não tem força muscular, física, para poder levar a melhor sobre um
paciente deste tipo. É possível estarmos prontos para usar aquele pouco de capacidade física que
se tem. Por exemplo, se a sala de análise se encontra em um andar alto, então é óbvio que o
paciente poderia recorrer ao atirar a si mesmo, ou o analista, naturalmente, pela janela. Portanto,
durante o tempo em que vêem o paciente, coloquem-se entre ele e a janela. De fato seria
preferível que a sala de análise não estivesse numa posição tal, em que fosse fácil para o paciente
suicidar-se ou assassinar alguém utilizando-se da distância entre a posição da sala e a terra
subjacente.
Achei que este era um fato bastante alarmante, embora estimulante, quando fui diretor da London
Clinic of Psychoanalysis onde não havia elevadores e todos os pacientes deviam trepar em cima
da casa para serem visitados com intuitos analíticos. Não lembro agora quantos degraus os
pacientes deviam subir para alcançar os consultórios de análise e portanto quantos degraus
estavam à disposição para atirarem-se para baixo com conseqüências desastrosas. Assim, demos
vários passos paliativos que se supunha poderiam funcionar como antídoto na situação em que
nos encontrávamos. Não sei quem se sentia melhor como resultado destes passos, mas me vem à
mente a afirmação feita por um famoso comandante em chefe britânico, Wellington, depois de
ter passado em revista as próprias tropas: ANão sei que efeito as minhas tropas vão causar no
inimigo, mas certamente aterrorizam a mim@.

60
O colaborador melhor e mais altamente qualificado que temos na análise é o paciente; o
resultado do encontro depende da colaboração entre analista e paciente. Isso pode meter muito
medo se nos permitirmos também estar ciente do fato de que estamos inteiramente sós com o
paciente e que dependemos dele. Pode ser que o paciente tenha boas capacidades atléticas e um
estado maníaco pode fornecer muita força para tais capacidades. De tal forma que, um paciente
que esteja tentando impedi-los de serem de alguma ajuda, ou criativa ou destrutiva, coloca-lhes
um problema considerável. Como se faz para continuar a pensar claramente enquanto alguém
está tentando assassiná-lo?
Essa é uma situação relativamente simples, porque existem provas fornecidas pelos seus sentidos
e pela fonte de onde o perigo se origina. A posição é mais difícil quando têm que lidar com o que
sustentamos ser uma mente, ou um espírito, ou uma alma, ou qualquer que seja o termo na moda
para indicá-lo. Estou certo de que cada um de nós experimentou na própria pele uma grande
quantidade de aculturação, portanto provavelmente temos familiaridade com palavras como
Aespírito@, Aalma@, AEgo@, ABuda@, ABrahma@, e assim por diante. Paradoxalmente a palavra
com a qual poderíamos não ter tanta familiaridade é o nome que nos pareceria ser o mais
apropriado para a Acoisa@ com que temos que lidar quando estamos totalmente sós com alguém
que vem até nós em busca de ajuda. Se o paciente tenta atirá-los pela janela, pode ser difícil se
darem conta de que o paciente vai até vocês porque deseja ser ajudado. Esta mesma força que se
pode manifestar em uma luta física com vocês é aquela com a qual ele é obrigado a viver. Pode
ser então que o paciente tenha medo de que vocês não consigam resistir fisicamente a ele e que
esteja aterrorizado pela possibilidade de que ele mesmo não consiga resistir àquela força
terrificante ou geri-la.
Na prática psicanalítica, em contraste com a teoria, o problema é: são capazes de ver aqueles
fatos que se apresentam? Alguns são mais fáceis que outros; um médico pode treinar a própria
capacidade de observação de modo a poder ver que o rosto do paciente não tem uma bonita cor
como deveria ter na situação de exercício ou na saúde perfeita; pode ser que o médico esteja em
condição de distinguir a vermelhidão de uma saúde explosiva de algo que ele, se realmente
entender a linguagem do corpo, poderá dizer que é um sinal de infecção. É possível que o
paciente seja hostil àquele que o ajuda mentalmente, seja ele analista ou qualquer que seja a sua
posição. Qual é a fonte da hostilidade? Brota do interior do indivíduo ou é uma infecção que
deriva da cultura a que ele pertence?
Vivi por tempo suficientemente longo para ter tido a experiência de conhecer uma situação em
que a psicanálise era a grande moda entre a intelighentzia. Estou certo de que todos nós podemos
nos lembrar de momentos em que foram moda algumas posturas ou algumas crenças peculiares.
Lembro quando estava na moda ler a ASaga dos Forsythes@; depois o livro foi esquecido; depois
houve o revival, graças ao domínio da televisão e à importância de ver com os olhos. Assim a
história se renovou B aparentemente. De qualquer forma B e esse é o ponto difícil de se escrever
B o que realmente importa é a real Saga dos Forsythes, a história fundamental, os fatos, a
realidade. O único nome que lhe posso dar é: Aa verdade@. A qual não é influenciada pela moda
nem por qualquer outra coisa que nos aconteça de pensar a respeito.
Passando para algo mais científico como a matemática: a geometria visual de Euclides, que
consistia de retas, pontos, círculos, mostrou-se gradualmente, no decurso de aproximadamente
um século, inadequada para os seres humanos que a utilizavam. Mas sustento que existia uma
geometria real que estava também, por assim dizer, tentando se expressar. Colocando a questão
de forma um pouco diferente: a geometria real estava implícita na geometria euclidiana. A

61
verdade, aquela verdade implícita, era uma espécie de ABela Adormecida@ que esperava que
alguém a salvasse, que esperava que alguém ou alguma coisa penetrasse através das barreiras de
espinhos e de mato para despertar a verdadeira geometria. Em outras palavras, a geometria
euclidiana e todos os seus seguidores haviam erguido uma barreira contra o emergir da verdade,
até que por fim o predomínio dos olhos e as imagens de linhas e círculos foram subvertidos pela
descoberta das coordenadas cartesianas e pela aplicação do pensamento algébrico na geometria.
A verdade não havia mudado; a verdade que estava implícita na geometria euclidiana tornou-se
explícita.
Este é somente um outro exemplo daquilo que eu dizia antes: uma atividade como a psicanálise
está na moda, e a moda muda. Portanto, se existe alguma verdade na psicanálise ou na
psiquiatria, então seria útil que algum de nós pudesse fazer alguma coisa para tornar explícita
aquela verdade. Mas isso significa abrir uma estrada através de um enorme crescimento de
sarças, de espinhos, de racionalizações. O que não podemos nos permitir perder de vista é a meta
principal B a verdade. A nossa capacidade mental deve ser alimentada, mas não há ninguém que
possa escolher por nós; devemos ser capazes de respeitar a verdade, quer seja ela expressa pelos
nossos pacientes, pelos nossos colegas, pelos nossos músicos, pintores ou autoridades religiosas.
Assim, qualquer um que tenha respeito pela verdade merece nosso apoio, e nós devemos merecê-
lo. Se precisarmos ajudar o nosso paciente maníaco-depressivo, esquizofrênico, ou neurótico que
seja, é preciso que nós mesmos sejamos dignos de respeito. Podemos em parte nos ocupar com
isso indo aos analistas e a outros que poderiam nos ajudar a descobrir quem somos realmente.
Mas na posição em que nos encontramos B uma posição que poder-se-ia dizer que herdamos B
nós somos a autoridade, nós somos os pais, e não há ninguém que nós possamos procurar salvo
nós mesmos. Para modificar esta afirmação: enquanto nos esforçamos para ajudar um paciente,
como vantagem marginal e incidental aprendemos também alguma coisa a nosso próprio
respeito.
Recorrendo novamente ao modelo simples de uma guerra física real: se por acaso sobrevivemos,
podemos aprender alguma coisa a respeito de nós mesmos. Um livro escrito durante a primeira
guerra descrevia uma situação de guerra perpétua e incessante B a guerra da mente. O escritor
citava a afirmação, formulada muito antes do nascimento da psicanálise, que: ADaquela guerra
não existe nenhum alívio@. Aqui podemos fazer algumas interrupções na discussão, fazer
algumas pausas, mas isso não quer dizer que aquela guerra se detenha: não se detém. A doença B
a doença mental, a doença física B não tira férias. Eis porque precisamos ser fortes, tão cheios de
saúde. Quaisquer que sejam as nossas dificuldades, devemos nos lembrar de que estamos
ocupados não com os nossos problemas, mas com o trabalho que estamos fazendo B o trabalho
que não se detém nunca, estejamos nós presentes para fazê-lo ou não. Havia um guerreiro
famoso, que se chamava Crylon, a quem Henrique IV disse: AVá se enforcar, corajoso Crylon;
combatemos em Arco e você não estava@.

PART.: Sempre pensei que aquilo que nós pensamos a respeito de outras pessoas tem sempre
algum efeito sobre elas, mesmo que nós não desvendamos os nossos sentimentos.

BION: Aquela consciência poderia ser considerada como parte das provas a favor da existência
da mente humana. Habitualmente é bastante fácil perceber que podemos ser influenciados por
um contato físico com alguma coisa ou alguém que não é nós mesmos. Pode acontecer que uma
criança bata a cabeça numa mesa, numa cadeira, ou que se machuque caindo; então ela quer

62
bater na mesa, ou na cadeira, ou no piso porque o objeto foi mau e lhe fez algum mal. Este ponto
não é tão fácil de se colher B aliás não é absolutamente fácil B quando temos que lidar com
alguns estados mentais, quando estamos conscientes de ter estabelecido um Acontato@ com
alguém que não é nós mesmos. Não parece que aquele Acaráter@ seja observável através do que
até agora consideramos com nossos sentidos físicos B o nosso sentido da visão, da olfação e
assim por diante. Não obstante isso, até mesmo uma criança pequena parece estar em grau de
dizer quando está inteiramente só e mesmo quando o objeto de quem depende está presente. Sob
este aspecto, a descoberta e a consciência da dependência, e a descoberta e a consciência de
estar absolutamente só, são fundamentais. Esses sentimentos, pensamentos e idéias
fundamentais podem sempre ser suscitados mesmo muitos anos mais tarde. Naturalmente é óbvio
que dependemos de alguma coisa que não somos nós, e que ao mesmo tempo estamos sós com a
coisa de que dependemos. Mas, enquanto analistas, dependemos de, e estamos inteiramente sós,
daquilo que nós chamamos Auma mente@. Esta é uma das razões por que me parece importante
que não nos façamos subverter pela última moda ou crença ou não-crença, mas que nos
conservemos sempre capazes de exercitar aquela capacidade de julgar que temos em relação a
fatos não sensoriais.
Em um período de turbulência, em uma época em que os líderes do país estavam pondo em ação
uma revolução contra a ordem existente, Milton escreveu: AAinda mais, Luz celestial, volta tua
luz ao interior, irradia a mente de todos os seus poderes@.**24
Enquanto analistas devemos entrar em contato com alguém que vem até nós em busca de ajuda.
Somos falíveis, vulneráveis, assim como um oficial ou um suboficial ou outro qualquer da tropa.
Enquanto pessoa que tem responsabilidade, não temos o privilégio de podermos adoecer ou de
sair correndo, ou de nos deixarmos dominar pelas emoções livremente expressas. Somos tão
covardes quanto outro qualquer da tropa; somos tão falíveis quanto qualquer outra pessoa que
estamos tentando ajudar... De uma maneira ou de outra nos encontramos herdando uma posição
de autoridade; poderia ser muito difícil dizer como chegamos a isso. Mesmo referindo-se à
historia de sua vida, vai ser sempre muito difícil dizer como é que se encontram na posição de
uma das autoridades, uma das pessoas que ajudam. Victor Hugo descreveu a experiência que um
exército e os seus inimigos compartilham como experiência de terror. Nós cultivamos a ilusão de
que o inimigo seja muito potente, muito corajoso, bem treinado, bem equipado: provavelmente o
inimigo compartilha as mesmas emoções a respeito do nosso exército. Mas se um poeta pode por
de lado essas divisas B mentais e físicas B então passa a ser possível para ele ver que a
experiência que é compartilhada por ambos os exércitos é uma experiência de terror.
Esta situação complicada tornou-se visível no Natal de 1914, quando as tropas oponentes do
exército britânico e do alemão se confraternizaram e jogaram futebol juntas na terra de ninguém,
no dia que se supõe seja o do aniversário do nascimento de Cristo. Imitando Wellington: não sei
que efeito isto possa ter tido sobre o inimigo, mas posso dizer que aterrorizava os chefes do
estado maior.
Mais nos distanciamos da linha de combate B a prática da psicanálise, a saúde mental, a
psiquiatria B mais nos tornamos conscientes da ferocidade dos comandantes do estado maior, da
ferocidade dos teóricos. Se pudessem fazer como querem, o derramamento de sangue seria
terrível.

24
** ASo much the rather thou, celestial Light, shine inward, and the mind through all powers irradiate@.

63
Parece-me que a pessoa que me fez esta pergunta estivesse falando disso. Sinto ter dado uma
resposta tão longa; a coisa em si é muito mais breve; a verdadeira experiência de ter um efeito
sobre o paciente e de sofrer o efeito do paciente é quase instantânea.

PART.: Eu gostaria de acolher o convite anterior do Dr. Bion, de nos referirmos a dificuldades
que podemos ter encontrado em nosso trabalho. Gostaria de lhes falar de um paciente que depois
de dois anos de análise adoeceu de uma doença grave que pelo diagnóstico revelou-se mortal:
trata-se de uma leucemia aguda. O paciente foi informado só parcialmente ; tem este sonho:
encontra-se numa cama que é tanto a do analista quanto a das transfusões, está para cair mas
depois encontra-se como sobre um eixo e gira horizontalmente sobre este eixo. Nesta situação
não se pode dizer que o sonho simbolize o tempo, o conceito de relógio, mas deve-se dizer que o
próprio paciente é o tempo, é ele o tempo do relógio. Se o paciente é o tempo e não o símbolo do
tempo, eu gostaria de perguntar ao Dr. Bion o que deve ser ou pode ser o psicanalista?

BION: Podemos nos aproximar deste problema inicialmente desde um ponto de vista geral,
exprimindo um princípio geral. Adaptamo-nos a uma certa disciplina que adquirimos ou que nos
foi ensinada. De qualquer maneira, enquanto médicos praticantes ou analistas, restrinjam o
campo e concentrem a atenção sobre uma área mais restrita. Para falar em termos mais
filosóficos, o princípio geral é transformado em uma instância específica.
Se me perguntassem o que é o meu trabalho, não estaria em condições de lhes responder, mas
poderia dizer-lhes o que eu penso que seja. Cabe a vocês decidir B são os únicos que podem
fazê-lo B o que pensam que seja o seu trabalho. Restringindo um pouco mais, para dar uma
olhada naquela pessoa específica de quem somente ouvi falar, porque ouvi o que disse a última
pessoa que interveio. Esta morte do paciente não me interessa mais do que o seu nascimento.
Aquele pequeno trecho entre o nascimento e a morte B aquele sim, me interessa. Pode acontecer
que seja realmente um espaço muito pequeno, porque existe a mortalidade infantil, a morte no
nascimento B ou também a morte na morte. Portanto não acredito que haja muito nesse
pequenino espaço entre o momento em que se nasce e o término da vida B como digo, ela pode
terminar praticamente no início, ou até mesmo antes que a pessoa se torne Aconsciente@, como
nós dizemos.
Diz-se que este paciente específico está morrendo. Mais uma vez isto não me impressiona; nós
todos estamos morrendo, desde que, com efeito, estamos vivendo. Mas interessa-me se a vida e o
espaço que nos restam são tais que valha a pena vivê-los ou não. Não sabemos de que vamos
morrer B estou certo de que mais cedo ou mais tarde alguém nos fará o favor de diagnosticá-lo.
Neste caso diz-se que se trata de leucemia linfóide. Poderia ser algo diferente; poderia se tratar da
morte da mente da pessoa. Encontrei pessoas cujos corpos ainda sobrevivem, mas pelo que diz
respeito às suas mentes, ou espíritos, ou almas, estão mortas. Para voltar a este ponto de vista
específico, muito pequeno, no qual não devemos nos preocupar demasiadamente com todos esses
princípios gerais, então é preciso focalizar a atenção sobre o problema: existe alguma fagulha ali,
sobre a qual se poderia soprar até que se torne chama, de maneira que a pessoa possa viver aquela
vida que ainda tem, possa utilizar aquele capital que tem no banco? Quanto capital vital tem esta
pessoa? E poderia ser ajudada a usar aquele capital a bom termo?
Porquanto digam que este paciente tem leucemia, uma doença mortal, a partir do momento que
não sou capaz de predizer o futuro, não sei de que ele vai morrer; sei que não vai morrer de
morte, porque a morte não é uma doença. É simplesmente uma dessas impressionantes cesuras.

64
Este paciente vive em uma determinada cultura B parece-me ter compreendido que não lhe foi
dito que está com leucemia linfóide, e de qualquer forma duvido que isso teria um sentido para
ele se não é médico. Mas não tenho motivos para duvidar de que seja capaz de interpretar
determinados fatos físicos. Qual é a sua interpretação do tipo de comportamento a que está sendo
submetido pela sua cultura? Quem ele pensa que é o seu analista? É alguém que o ajuda a viver
ou a morrer? Pode-se contar com o fato de que a maior parte de nós B para ampliar de novo o
panorama B é indulgente com um bom número de atividades que é mais provável que nos matem
do que nos façam viver; em nosso sistema digestivo introduzimos coisas que são venenosas. Não
há nada de errado com o álcool, mas podemos utilizá-lo com a intenção de envenenar o nosso
sistema físico; não há nada de errado no fato de introduzirmos ar em nossos pulmões, mas
efetivamente podemos respirar ar poluído ou miasmas, e inalar fumaça. Na Inglaterra há um
pequeno aviso obrigatório impresso em todos os maços de cigarros e em todas as propagandas de
tabaco: AFumar é prejudicial à saúde@. Aquela afirmação, aquele aviso, passou a fazer parte do
ritual de fumar; fazem parte do belíssimo quadro, do quadro sedutor dos prazeres e das delícias
do fumo. Torna-se respeitável e até científico com o dizer Abaixo teor de alcatrão@; eu nunca
fumei alcatrão em toda a minha vida B não me interessa comprar alcatrão, assim posso ver
quanto estou repleto de virtudes porque não fumo alcatrão, agora posso continuar a fumar o
tabaco B a menos que, naturalmente, os fabricantes não venham a considerar mais lucrativo
vender-me um Abaixo teor de alcatrão@. Posso ver que poderia custar menos economicamente
fazer um grande cigarro com um belo pedaço de algodão hidrófilo dentro, em vez de com folhas
de tabaco que custam mais. Restrinjamos novamente o quadro para nos aproximarmos da questão
que nos interessa B uma mente. Enquanto o corpo deste paciente depende de vários tipos de
nutrientes somáticos, o que lhe devemos dar como nutriente mental? A essa altura o analista sabe
muito a respeito do paciente, assim poderia contar ao paciente todo tipo de coisas a respeito da
leucemia linfóide. Para ampliar o quadro poderia dizer: Aa meu ver deveria dizer-lhe a verdade@.
Restrinjamo-lo novamente: o que é a verdade? O que sabe o analista e o que poderia
compreender o paciente se o analista tentasse comunicar-se com ele?
Sinto levar tanto tempo para discutir pontos tão simples. Não chegamos ainda ao ponto, ou seja,
ao que deve dizer o analista que este paciente possa compreender. É possível que o paciente
possa sentir que esta específica pessoa delegada a ajudá-lo está mais interessada no fato de que
ele viva uma vida que valha a pena ser vivida, ao invés dos vários rituais e procedimentos que
são apropriados para o morrer. Neste caso o paciente poderia sentir que este objeto com o qual
está em contato B mesmo não sendo um contato físico B é possível que seja amigável e de ajuda.
Pode ser que isso seja psicanálise ou que não o seja B não me preocupo com isso porque neste
ponto não me interessa a teoria, mas a prática, a vida. Esteja o paciente no início da vida, no
nascimento, esteja na outra extremidade do espectro, na morte, ele pode sentir a presença de um
objeto amigável ou promotor de saúde.
Penso que seja muito difícil decidir evitar a verdade e começar a contar algum tipo de mentira
agradável. É um trabalho pesado, não me parece que valha a pena fazê-lo, e tem como resultado
que a própria mente, caráter, personalidade acabam sendo poluídos. A nossa capacidade de dizer
a verdade morre através das mentiras que dizemos aos outros.
Tentemos concentrar sobre este problema a sabedoria combinada de todos nós. Se vocês se
encontrassem nesta posição, o que diriam ao paciente? Aparentemente ele teve Aum sonho@. Isso
significa que ele se encontrava em um estado mental diferente daquele em que se encontra
quando está consciente e está levando adiante uma conversa com vocês. O sonho que lhes conta,

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com efeito, é o que ele, no estado mental em que se encontra quando consciente, pensa que
aconteceu enquanto dormia. Que coisa nos deveria impressionar mais nessa conversa? O fato de
que ele está acordado e consciente? Ou que está também no estado mental que é... uma
Adesagradável conseqüência@ daquele em que se encontra quando dorme?
Na citação que eu fiz antes do AParaíso Perdido@ de Milton, ele diz: Aimplantar ali olhos, dali
dispersar e clarear toda a névoa@**25. O analista é capaz de esquecer tudo o que ouviu dizer ou
aprendeu a respeito de leucemia linfóide? Estes Afatos@ produzem uma névoa, obscurecem a
verdade que poderia ajudar essa pessoa a viver as horas, a semanas, os meses, talvez anos, que
lhe restam, de tal maneira que valha a pena vivê-los.
Poderia ser possível chamar a atenção do paciente para o fato de que ele teme que quando não
está em guarda B como acontece quando está dormindo B o analista possa então submetê-lo ao
mesmo tipo de tratamento a que o submeteram todos os outros médicos. De tal maneira que
aquela que de fato é só uma conversa psicanalítica pareceria ser algo que estava sugando a
substância vital do paciente. Pode ser que o seu sangue tenha muitas deficiências B células
brancas que não operam de maneira benéfica B mas este é o único sangue que ele tem.
Traduzindo tudo isso em termo mentais: o paciente sabe bem quais são os defeitos de seu caráter.
Mas não quer perder aquele tanto de alma que tem. Poder-se-ia tentar dizer: AO senhor tem medo
de que eu esteja tentando curá-lo, mas que em vez disso a minha cura acabe por matá-lo, tirando
qualquer coisa boa que o senhor tenha@. Não quero atribuir importância alguma a esta
interpretação específica porque efetivamente é destituída de valor B não estou analisando o
paciente e portanto não sei. Não existe pior ultraje, que eu saiba, do que aquele que vocês
consentem quando permitem a alguém, que não a vocês mesmos, de penetrar na privacidade de
sua mente. Por isso o paciente pode ter medo do analista, e medo de si mesmo porque fala com
um analista. O analista será certamente submetido a pressões; é susceptível de ser atacado.
APorque incomodar um moribundo com todas essas coisas que poderiam ser apropriadas se o
paciente continuasse a viver?@. E é difícil defender a própria posição, o que significaria ter que
dizer algo como: ASim, mas este paciente ainda tem alguns minutos, algumas semanas, algumas
horas, alguns dias para viver, e é este o motivo pelo qual saber aquilo que estou lhe dizendo
poderia ajudá-lo@. Gozemos de ótima saúde ou estejamos afetados por uma doença mortal, não
deixa de ser possível que valha sempre a pena saber como usar a nossa mente.

PART.: E os sobreviventes? O que tem a dizer a respeito dos sobreviventes?

BION: Os sobreviventes, naturalmente estão em condições de continuar a pensar e de


experimentar sentimentos. O fato da morte é tão impressionante que suscita quase sempre
tumulto; pensamentos e sentimentos que esquecemos, tornam-se conscientes. Deste modo
fazemos uma experiência que é mais poderosa que qualquer experiência psicanalítica porque é a
vida real. Em um grupo organizado, socializado, a morte de uma pessoa importante B ou mesmo
a morte de um símbolo de uma pessoa importante, de alguém que poderia representar para vocês
ou lembrar-lhes um pai ou uma mãe de uma nação B é enfrentada através de rituais elaborados.
Às vezes tais rituais comportam a participação das forças armadas que executam uma lenta
marcha atrás do cadáver até o local da sepultura, com o acompanhamento de músicas como a

25
** A... there plant eyes, all mist from thence purge and disperse@.

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Marcha Fúnebre de ASaul@ ou AAs Flores da Floresta foram todas arrancadas@. Assim que se
desfazem do corpo, as tropas, que representam a nação, vão-se embora ao som de uma marcha
veloz. A marcha lenta é a depressão, o luto até o momento do sepultamento, e depois B marcha
veloz! Penso que tudo isso seja uma profunda reação grupal; é um recordar que quando os mortos
estão mortos, é o fim da história; é hora de continuar a viver.
Penso que poderíamos também considerar a recíproca desta B deveríamos opor alguma
interferência em relação a alguém que queira morrer? O fato de que nós pretendemos ser pessoas
que prestam ajuda, nos dá o direito de interferir com alguém que não quer ser ajudado? Aqui
encontramos uma dificuldade: devemos considerar qual é a prova que temos para sermos
induzidos a supor que o indivíduo não deseja que alguém interfira nas suas vicissitudes, ou que
não quer prestar atenção às advertências, opiniões ou conselhos que poderiam levá-lo à
longevidade. Tem muitíssima importância naturalmente, a pessoa que não deseja viver poluiria a
atmosfera para os sobreviventes.
Quem ou quais são as forças que são capazes de levar para a morte mental? Seria útil saber o que
é uma boa nutrição mental, o que implicaria também saber o que é uma má nutrição. A vantagem
de uma situação grupal está no fato de que se pode tomar para exame o grupo inteiro e
eventualmente nele individualizar as fontes de infecção. O grupo em seu todo poderia lembrar-
lhes a sua personalidade nos diversos estágios de desenvolvimento. Em vez de vê-la, por assim
dizer, de foram narrativa, do A ao Z, poderiam ver todas as letras do alfabeto esparsas sobre um
plano. É um modo visual de se desfazer do componente temporal B troca-se um componente
temporal pela ênfase visual do componente espacial. E aqui e ali podem ver por sua conta o tipo
de comportamento, de atividade, comprometida em destruir a capacidade do grupo de apreender
ou de desenvolver as próprias habilidades. Quando sentem a necessidade de silêncio, e talvez a
possibilidade de ouvir as suas próprias idéias ou pensamentos, o silêncio pode ser destruído. O
ruído torna-se tamanho que não conseguem ouvir-se pensar.
Este é um dos problemas, se sua tarefa tem a ver com instrução, com o tentar tornar disponível
para as pessoas que não sabem, aquela experiência ou conhecimento que vocês têm. Os pais em
relação aos filhos se encontram na mesma posição B gostariam de fazer algo por eles. E isto vale
também para a família humana, não só para as relações de parentesco.

PART.: Prestei atenção algumas vezes àquilo que poderia ser definido como um estado de leve
despersonalização crônica, isto é um estado em que as capacidades mentais parecem estar
diminuídas tanto no estado de vigília quanto no estado de sono, pelo que está diminuída a
possibilidade de experimentar fatos ou emoções ou mesmo dados sensoriais. Parece-me que uma
situação deste tipo tenha componentes que derivam do grupo e do indivíduo. Gostaria de
perguntar ao Dr. Bion como se poderiam definir ou encontrar coordenadas para encontrar a fonte
de um semelhante estado mental, e por que, pelo menos por aquilo que pude experimentar, sair
de uma tal situação, mesmo se o crescimento é reconhecidamente útil e favorável, resulta
doloroso, perigoso e cansativo.

BION: Como de costume, é mais fácil falar disso em sua forma mais exagerada: um paciente
que parece nunca mencionar a si mesmo B estou pensando em um paciente específico B mas que
joga constantemente para fora um fluxo de informações sobre as características de um grande
número de pessoas, de todos os membros da sociedade de quem atualmente é membro. Um
estado deste gênero poderia ser uma etapa mais avançada da que Melanie Klein descreveu como

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sendo uma fantasia onipotente da infância, a fantasia de se desfazer do caráter ou da
personalidade. A pessoa adulta vê em todo lugar coisas que vão mal: isso não me parece muito
diferente dessa teoria da evacuação de todas as características que são temidas e das quais não se
gosta, e depois sentir-se perseguidos por elas desde o exterior. Toda interpretação psicanalítica,
toda pessoa e coisa passam a ser percebidas como uma perseguição porque lembram ao paciente
de si mesmo e do seu medo destes Asi mesmos@ que voltam a se juntar em sua personalidade.
Voltemos a este caso crônico. Poderíamos recorrer novamente à situação de grupo e dizer que em
nosso conjunto representamos um caso crônico? Não somos apenas alguns indivíduos aos quais
atribuímos uma certa importância por causa da visão individual de nós mesmos enquanto
indivíduos, mas somos também pedacinhos individuais de um padrão total. Aquilo que desejo
conhecer mais detalhadamente é o que se entende com esta palavra Acrônico@ ou ACrono@?
Qual é o seu significado? É realmente uma referência a ACrono@, Atempo@?

PART.: Penso poder indicar algo mais específico, no sentido de que, por crônico, me parece que
se entende, quando não fornece uma oposição claramente definível entre duas situações. E por
outro lado, parece-me que crônico tenha uma segunda característica, ou seja, a de não ser
facilmente distinguível, no sentido de que não se impõe com evidência como um fato.

BION: Pode ser que esta seja o tipo de coisa que os psicanalistas estão procurando descrever
quando falam de um Aperíodo de latência@? Acho mais fácil acreditar que aquilo que nos foi
descrito há pouco seja um estado de latência em vez de um período de latência. Deste modo o
paciente pode, em qualquer momento apresentar-se como uma paisagem sem elementos
específicos dignos de nota. Existe alguma coisa que desponta acima do nível da uniformidade?
Uma coisa, naturalmente, me vem logo à mente, ou seja, a qualidade de nulidade que se nos
apresenta. Vou procurar colocá-lo em termos visuais relembrando-lhes o fim do quinto livro da
Eneida de Virgílio: Virgílio descreve Palinuro, que era o timoneiro do navio que devia fornecer a
rota para a frota. Somnus apresenta-se para Palimuro e lhe apresenta a sedutora opinião de que
tudo está indo bem. O mar está calmo, não existem nuvens, não há perigo algum em nenhuma
parte. Palinuro, de qualquer forma, diz não ser tão ingênuo a ponto de se deixar enganar pelo
semblante calmo que o mar Mediterrâneo demonstra. Ele se amarra ao timão e à balaustrada da
popa, mas o deus o atira ao mar com tal força que ele se afoga levando consigo parte da popa do
navio. Agora olhem para a superfície calma e uniforme apresentada por este paciente B não há
elementos de relevo. O que aconteceu com a tempestade?
O que se deve dizer a este paciente? Deve existir alguma coisa que faz com que a musculatura
deste paciente específico reaja e o leve até o campo visual do analista. Portanto poderíamos lhe
fazer notar que não parece haver motivo algum para que ele venha falar com um analista. A única
coisa que não enquadra nesta história é a presença do paciente. Assim, poder-se-ia tentar atrair a
atenção sobre o fato de que existe um mistério diante de ambos, e este é o mistério de um fato.
Se chamarem a atenção do paciente sobre este fato, pode ser então que ele esteja em condições
de dar uma contribuição ulterior; pode ser que o paciente não saiba muito sobre si mesmo, mas o
que ele sabe é muito mais do quanto é provável que outro alguém saiba algum dia. O paciente
sabe B nenhuma outra pessoa pode sabê-lo B como alguém se sente sendo ele, e tendo os seus
pensamentos e os seus sentimentos. Assim, se podem chamar a atenção sobre este mistério, que
ele está na sala, pode ser então que o paciente tenha condições de sacar algo para fora de seu

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vasto tesouro de conhecimentos B e é vasto, mesmo em se tratando de uma criança B para lançar
ulterior luz. E talvez, então, possa ser possível ao analista dar uma outra interpretação.
Tomemos a pessoa de quem ouvimos falar antes: se ele está em condição de interpretar todos
estes fatos estranhos a respeito da seção de um hospital, uma cama, algumas agulhas
hipodérmicas e assim por diante, o que pensa que possam significar? Qual pensa ele que seria a
interpretação de toda aquela aparelhagem? Por que falar com o analista? Poder-se-ia dizer que a
pergunta é a mesma em ambos os casos: por que falar com o analista? Naturalmente poderia ser
porque o paciente está absolutamente certo de que o analista não sabe nada a respeito dele e não
vai dizer nada de assustador ou conturbador. Mas é muito improvável porque, num certo ponto de
nossa vida, à maior parte de todos nós foram contadas fábulas de algum gênero, com a intenção
específica de nos aterrorizar. Brincamos até mesmo de soldados em guerra. Mas qual é o jogo
que queremos jogar com o analista agora? Por que estas duas pessoas falam com o analista? Faz
parte do quê? Do que trata esta relação de conversação? Naturalmente, digo Arelação de
conversação@ tomando emprestado um termo da experiência sexual porque penso que na
capacidade de conversação existe alguma coisa que não é de todo dessemelhante da capacidade
de se ter uma relação física. A conversa psicanalítica é uma espécie de jogo infantil, exatamente
como um jogo infantil é uma espécie de realidade implícita; refere-se a algo do qual nada
sabemos, ou seja, ao futuro. Este encontro de grupo refere-se a algo do qual nada sabemos, isto é,
o futuro. Em ambas as conversas existem vestígios? Existe algo que lhes lembra os destroços, os
vestígios de uma conversa precedente? Não existem vestígios, pedaços reconhecíveis de
destroços que lhes lembrem o amor ou o ódio? Aqui podemos assumir que deve haver algum
motivo para que nos queiramos encontrar. Isso não quer dizer que os nossos sentimentos de
antipatia ou de ódio tenham desaparecido, mais do que a superfície calma do Mediterrâneo
signifique que as tempestades desapareceram para sempre. Assim, mesmo enquanto examinamos
o predomínio da relação amigável que faz com que nos reunamos aqui, o que é dos vestígios do
resto da nossa personalidade? Se queremos interromper a reunião ou destruir os móveis, o que
aconteceu com esses impulsos? Poderiam ser vagas reminiscências da mesma civilização? Existe
uma sutil película de civilização que cobre toda a nossa comunidade humana. Os Estados Unidos,
o Reino Unido, e agora as Nações Unidas B quanto somos unidos...

PART.: É provável que o grupo seja um lugar, Logus**26, topos, lugar privilegiado onde se
encontram o espaço e o tempo, o feminino e o masculino, o ódio e o amor, o verdadeiro e o falso;
então, este encontro é violento, difícil de suportar, difícil de transformar.
Por isso, é preciso ser sustentados e orientados por um modo e por um modelo de pensamento
que seja problemático e unificador ao mesmo tempo. Meu sentimento é que Bion nos forneceu e
esteja nos fornecendo esta modalidade de pensamento, e ele próprio constitua uma força pois
presentifica a força do pensamento, a sua função, o seu uso e a sua comunicação. Estes centros de
pesquisa de grupo, o primeiro centro de pesquisa do grupo do Pollaiolo, depois os outros,
depositam sua atenção em uma área que é definida pela relação entre o grupo e a função
analítica.
A prospecção bioniana, convém lembrar, é gerada por uma experiência analítica extremamente
intensificada ou amplificada. O meu sentimento, talvez devesse dizer o nosso sentimento, é de
profunda gratidão por Bion, pois ele nos fez participar da profundidade de seu pensamento.
26
** No original em italiano está logus, no entanto, penso que ele queria dizer locus, que estaria de acordo com a
etimologia latina.

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BION: Agradeço-lhe muitíssimo por essa expressão de gratidão. Espero não parecer pouco cortês
se digo que posso comparar a sua descrição das minhas contribuições com um fato do qual sou
consciente e não aprecio muito B a imagem mais próxima que eu posso dar dele é essa: como
uma folha que cai de uma árvore B nunca se sabe sobre qual lado irá pousar. E quando olho para
trás, para o que sei da minha vida, realmente não teria nunca sido capaz de adivinhar que teria
estado aqui hoje, e em tal posição.
Há uma passagem de uma poesia de Yeats, ASolomon and the Witch@, em que fala da AEscolha
e do Acaso@**27:
AE quando aquele assassínio terminar, / talvez o leito nupcial traga o desespero, / porque cada um
traz uma imagem imaginada, / e ali encontra uma imagem real@.
Aas viagens terminam nos encontros dos enamorados, como sabe todo filho de homem
sábio@.**28

Eu não penso que terminem nos encontros dos enamorados, começam naquele ponto. Existe
algum vestígio, pensem, neste leito hospitalar e no divã do analista, algum resto da relação
amorosa ou positiva entre essa pessoa que se chama um analista, e aquela outra pessoa que se
chama de outra maneira qualquer? O que é provável que esse grupo vá parir? Qual pensamento
ou idéia ou ação? E qual relação é provável que irá se estabelecer entre ele e algum outro grupo?
Amor ou Ódio? Ataque ou Fuga? Dependência ou Liberdade?

Segunda capa: O texto completo dos seminários mantidos por Bion em Roma em 1977 não foi
nunca publicado como livro, nem mesmo em inglês.
Os seminários apresentados desenvolveram-se em duas séries, a primeira, que consiste de
quatro palestras, sob os auspícios da Sociedade Psicanalítica Italiana, a segunda, de cinco
palestras, foi organizada pelo Grupo de Pesquisas da Via Pollaiolo. O texto em inglês, que
consiste somente nas intervenções de Bion, foi cuidado pela Senhora Francesca Bion.

27
** AAnd when at last that murder=s over / Maybe the bride-bed brings despair / For each an imagined image brings /
And finds a real image there@

"Quando finalmente este assassínio terminar,


Talvez o leito nupcial traga desespero,
Porque, para cada imagem imaginada, ali encontra uma imagem real"
(Trad. J. A. Junqueira Mattos)
28
** AJourneys end in lovers= meeting. Every wise man=s son doth know@. Yeats. Shakespeare, Décima Segunda
noite.
AJornadas terminam em encontro de amantes. Todo filho de homem sábio sabe@
(Trad. J. A. Junqueira Mattos)

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Parthenope Bion Talamo

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