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CAP.

I SOBRE A PSICOLOGIA INFANTIL E O DESENVOLVIMENTO

1. Psicologia Infantil: ainda não ser ou ter que deixar de ser


Desde os primeiros estudos sobre o desenvolvimento infantil – caracterizado
por processos, fases ou estágios incompletos, insuficientes, indiferentes ou imaturos,
ou pelas noções dos anos iniciais de vida, marcados por ausências de responsabilidade
ou de capacidade de entendimento claro – as crianças são consideradas como um
estado inicial psicológico, físico ou mental que deverá ser superado na perspectiva de
um bom crescimento. Assim, carente de boa reputação, a criança parece viver de um
modo inferior ao do adulto. Sendo incompleta ou em desequilíbrio, ela é reconhecida
tanto a partir do que se tornará quando crescer, como pelo que ela já é, mas tem que
deixar de ser. Isto é, teria de não mais ser quem ela é, como se o modo como existe
não pudesse mostrar claramente e ser percebido como o mais importante.
Os estudos em torno da infância, mesmo aqueles que foram elaborados antes
da psicologia científica, se dão com a referência prioritária de um modelo construído
de um adulto ideal. A criança teria que se modificar para se transformar em alguém –
pessoa, ser humano, adulto –, segundo o modelo já constituído. Em torno de tal ideal,
a criança é compreendida pelo que ainda não é ou terá que deixar de ser, ressaltando-
se o que nela ainda não se pode ver.
As teorias sobre a infância têm o objetivo comum de serem construídas na
tentativa de explicar as mais diversas condutas infantis, desde as mais explícitas até as
mais obscuras. Para isso, o ponto de partida são os conceitos, crenças ou ideais do
viver adulto, para os quais o desenvolvimento deve dirigir-se. Além desse início, as
descrições de fases ou estágios da vida infantil continuam tendo lugar preponderante
e parecem o mais seguro nas análises, sempre comparativas, das crianças.
Podemos ver que nas mais diversas e conhecidas teorias psicológicas do séc.
20, de Freud a Winnicott, a infância está associada a estágios iniciais – de emoções não
diferenciadas, de estruturas psíquicas instáveis, de ideias incoerentes ou de relações
simbióticas – que deverão ser transformados para que o homem, idealmente pensado,
possa se desenvolver.
Em resumo, diversas teorias na psicologia parecem compreender a criança a
partir do que ela não é e terá que deixar de ser, reafirmando um certo ideal de adulto
a ser alcançado pelo desenvolvimento. Ou seja, é a partir de elaborações de um estado
de amadurecimento, considerado superior e mais representativo da condição humana,
que a criança poderá ser compreendida. Com essa perspectiva, a psicologia infantil
estaria perseguindo a ideia de um padrão de ser humano mais verdadeiro, o que será
melhor explicitado no capítulo II. A partir dessa compreensão das noções e padrões
gerais e do princípio científico de uma verdade universal, distanciada do que se pode
observar diretamente na existência das crianças, o conceito de desenvolvimento
normal de crescimento e de conduta foi construído. Nesse âmbito, padrões de
comportamentos normais e anormais puderam também ser elaborados.
Assim, tanto nas teorias de desenvolvimento, como na psicologia em geral, os
princípios e parâmetros científicos das ciências naturais deterministas acabaram por
favorecer as comparações entre as diversas manifestações humanas e a
homogeneização dos entes humanos em processos gerais que se constituíram como
verdades absolutas. No entanto, nem a origem nem o sentido de tais teorias e
processos, descritos como verdades necessárias para o crescimento e saúde ou para o
esclarecimento da realidade vivida em cada caso, podem ser encontrados na
observação existencial direta das crianças. Mesmo que se conheça, entre outras
proposições, as chamadas funções primárias ou secundárias, as tipificações prévias de
condutas, a superação de fases, as aquisições de determinados processos para um
equilíbrio superior, ou as aquisições regulares de potencialidades, não é possível a
priori compreender o sentido das experiências de cada criança em seu modo
particular.
O que antes podia intrigar quanto à psicologia da criança ser chamada de
“psicologia do desenvolvimento”, finalmente é esclarecido. As condições de
transformação e crescimento determinantes existir humano foram consideradas como
características específicas da vida infantil. Entretanto, a transitoriedade e as
transformações humanas do crescimento para se chegar a algum outro lugar de
amadurecimento devem ser entendidas como condição fundamental da existência em
qualquer época da vida. Boss considerou, na conferência de 5 de dezembro de 1971
para estudantes de Medicina2:
“Como na imaturidade da fruta, a existência do homem já é também o seu
“ainda não”. A ambas pertence continuamente o seu “ainda não” como a sua própria
possibilidade. Mas com o amadurecimento a fruta se completa; em comparação, o
homem geralmente morre incompleto ou esgotado. É óbvio que também pela
botânica nada se pode descobrir sobre a morte do homem como morte humana. O
homem existe e morre de uma forma toda própria, reservada somente a ele.”
Boss ressaltava nesta passagem o caráter necessário de incompletude de toda
existência. Esta é a condição de transformação que nunca se esgota em qualquer
momento do viver. O adulto não é mais completo que a criança. Assim também a
condição fundamental do morrer humano está tão próxima do adulto como da
criança. O que se pode dizer da infância, é que as possibilidades de transformação e de
mudanças se apresentam aí de modo marcadamente mais intenso. Assim,
transformar-se e mudar foram vistos, mais facilmente, como características específicas
da fase ou do estágio inicial de crescimento e as novas aquisições foram interpretadas
como características finais a serem adquiridas por meio da realização natural de um
impulso em direção ao desenvolvimento.
A partir das considerações acima, o ponto de partida para um novo modo de
entender a infância se apresenta como falar das crianças a partir do que elas já
mostram. Nessa perspectiva, ainda não ser pode ser entendido como condição
humana fundamental de ter que ser e não, especificamente, como aspecto infantil de
deixar de ser que qualifica todas as crianças. Tais aspectos dizem mais diretamente
sobre as crianças e o crescimento infantil quando são considerados, a partir deles
mesmos, como modos que se dão especial e mais intensamente no existir humano no
tempo da infância.
Assim, são a observação e a descrição das maneiras mais especificas como as
crianças vivem as transformações básicas existenciais que podem dizer mais
claramente sobre o viver no tempo da infância, ao contrário do que é mais comum, a
consideração a priori de processos, fases ou estágios com suas características gerais
determinantes do desenvolvimento.

2. Um novo caminho: outro jeito de olhar

No livro Metablética, de 1955, o médico psiquiatra holandês J. H. Van den Berg


(1914-2012) apresenta um modo totalmente diferente de analisar a infância e
considerar a criança. Ele escreveu sobre o que denominou psicologia histórica,
afirmando que “nem sempre houve psicologia da criança” e que somente passou a ser
necessário falar sobre a infância quando o mundo das crianças e o dos adultos se
distanciaram. Ele afirmou: “Bem cedo e sem obstáculo, a criança tinha acesso ao
mundo do adulto, não havia abismo que necessitasse uma ponte científica para o
entendimento mútuo.”3
Pode-se considerar que o mesmo ocorreu com a adolescência que, somente
entre o final do século dezenove e início do século vinte, foi considerada como fase do
desenvolvimento humano. Até então, somente havia os ritos de passagem, que
conferiam a responsabilidade da vida adulta aos mais jovens.
Nas análises de Van den Berg são encontradas indicações para um outro modo
possível de estudar a infância. E suas considerações podem levar a outras indagações:
– Será que, quando falamos em Psicologia de Desenvolvimento, o ser humano e a
criança são melhor compreendidos?
– Será que os jovens, desde que foram chamados de adolescentes,
diferenciados dos adultos e das crianças, são mais compreendidos?
– O que significa dizer que, na atualidade, a infância está diminuindo com a
chegada precoce da adolescência e que esta está cada vez mais longa? O que esta
mudança significa para os adultos, para as crianças e para os adolescentes? Como dito
antes, o modo de pensar propriamente fenomenológico encontra referências pouco
comuns aos estudos da psicologia.
Assim, foi a filósofa Hannah Arendt (1906-1975), pensadora original das
questões humanas no mundo – da política, autoridade, liberdade, verdade e educação
– a influência decisiva para uma nova visão da infância. Em seu livro Entre o Passado e
o Futuro, ela apresenta um pensamento profundo e original a partir do qual pode-se
compreender apropriadamente as crianças, seu mundo e seu crescimento e também o
significado de educação e do cuidar dos que são por elas responsáveis. Especialmente
no capítulo cinco, “A crise na educação”, com o objetivo de examinar as mudanças da
educação nos Estados Unidos, no mundo moderno, H. A. leva o leitor a refletir
profundamente sobre as crianças, descritas inicialmente como “novos seres humanos”
e “recém-chegados”. Com a simplicidade impactante de suas afirmações, ela abre um
caminho que provoca uma reflexão mais essencialmente verdadeira sobre as crianças:
“A criança possui para o educador um duplo aspecto: é nova em um mundo que lhe é
estranho e se encontra em processo de formação; é um novo ser humano e é um ser
humano em formação. Esse duplo aspecto não é de maneira alguma evidente por si
mesmo e não se aplica às formas de vida animais; corresponde a um duplo
relacionamento, com o mundo, de um lado, e com a vida, de outro. A criança partilha
o estado de vir a ser com todas as coisas vivas; com respeito à vida e seu
desenvolvimento, a criança é um ser humano em processo de formação... Mas a
criança só é nova em relação a um mundo que existia antes dela, que continuará após
a sua morte e no qual transcorrerá sua vida.”4
Nessas afirmações, a especificidade da vida da criança e do que lhe é
fundamental, sem agregar o que é lhe é estranho, é demonstrada. O caráter original
de ser da criança é a novidade de um novo ser humano que nasce em um mundo que
já existe. Falar da criança é pensar na peculiar novidade de um recém-nascido em
relação a um mundo previamente existente. O nascimento de cada criança é, assim,
um acontecimento sempre novo de duplo significado: da novidade de um novo ser e,
ao mesmo tempo, da preservação de um mundo que já existia antes. Considerar a
especificidade da relação da novidade que constitui a criança ante o que já existe é a
proposta original de H. A. O que significa essa relação de novidade de cada criança
com o mundo? Inicialmente, a filósofa considera a relação entre pais e filhos:
“Os pais humanos não apenas trouxeram seus filhos à vida mediante a
concepção e o nascimento, mas simultaneamente os introduziram em um mundo. Eles
assumem na educação a responsabilidade, ao mesmo tempo pela vida e
desenvolvimento da criança e pela continuidade do mundo. A responsabilidade pelo
desenvolvimento da criança volta-se em certo sentido contra o mundo: a criança
requer cuidado e proteção especiais para que nada de destrutivo lhe aconteça da
parte do mundo. Porém, também o mundo precisa de proteção, para que não seja
derrubado e destruído pelo assédio do novo que irrompe sobre ele a cada nova
geração. Por precisar ser protegida do mundo, o lugar tradicional da criança é a
família, cujos membros adultos diariamente retornam do mundo exterior e se
recolhem à segurança da vida privada entre quatro paredes.”5
Cabe aos pais, portanto, a dupla responsabilidade trazida com a novidade de
cada recém-nascido: o cuidado pela nova vida e seu desenvolvimento próprio e o
cuidado com a continuidade do mundo. Neste cuidado de duplo significado se dá a
preservação de um mundo pessoal, próximo, familiar e de um mundo comum.
Inicialmente, este cuidado com cada criança se dá no âmbito mais restrito e familiar do
mundo; nele pode-se encontrar as referências e o sentido dos projetos familiares
anteriores que antecederam a ela mesma e que, então, podem se manter. Desse
modo, no âmbito da educação familiar, as crianças crescem e aprendem tanto sobre si
mesmas, como sobre o mundo comum que, com ela, tem a sua continuidade.
Além do âmbito na vida privada, normalmente a família na qual a criança no
início se encontra, ganha lugar o âmbito da vida pública, comumente representada
pela escola.
Com a consideração inicial do âmbito familiar e posterior da vida pública,
torna-se cada vez mais evidente que o entendimento de cada criança envolve o seu
mundo e que para falar sobre a infância é necessário partir do sentido e dos
significados próprios que se mostram sempre nas relações e não partir de
pensamentos pré-concebidos ou de pressupostos teóricos subjetivos. Para
compreender verdadeiramente o humano é necessário considerar o fundamento
existencial da relação essencial com o mundo, o que não pode ocorrer quando se
pensa a criança como um ente psicológico-subjetivo em si.
Nos capítulos seguintes, o que aqui foi denominado de mundo comum e
mundo da criança, serão melhor esclarecidos.

3. Fenomenologia

A fenomenologia – criada por Edmund Husserl (1859-1938) no raiar do século


20 – é um método que se propõe a compreender as coisas e não elaborar juízos ou
conceitos sobre elas, conforme foi explicitado nas Investigações Lógicas. No caminho
fenomenológico, o ponto de partida é sempre o fenômeno que se mostra
diretamente, isto é, aproximar e se deixar tocar pelo que é percebido em toda a sua
riqueza e limitações. À primeira vista, ver o que se mostra diretamente é ver
simplesmente. Primeiramente, é necessário descrever o que aparece para, então,
esclarecer o que é entendido, sem alterar ou ultrapassar o sentido do que se mostrou.
Mas, isso não é ver o mais fácil. Ver simplesmente não se dá pelo enquadramento em
categorias que pressupõem uma organização prévia de dados já conhecidos, nem que
assegura conclusões aplicáveis a qualquer situação ou pessoa. Para compreender algo,
não devemos ultrapassar ou deixar para trás aquilo que olhamos.
Pode parecer que ver simplesmente se trata de coisa do senso comum, óbvia
ou fácil de se fazer. Mas não é bem assim. Como escreveu Clarice Lispector (1920-
1977) em A hora da estrela, “Que ninguém se engane: só se consegue a simplicidade
através de muito trabalho”.
A literatura oferece momentos especialmente ricos que ajudam ao
esclarecimento de olhar os acontecimentos simplesmente, como a fenomenologia
desde o início se propõe. Os fenômenos não se mostram igualmente para todos nem
ao alcance de todos. É necessário esclarecer que o simples não se confunde com o que
é óbvio. Assim, a simplicidade não se manifesta de modo óbvio. Os significados não
são obviamente simples. Pois perceber o que é simples pode não estar facilmente ao
alcance de todos e do senso comum que permanece no consensual. O que parece
óbvio e que salta igualmente aos olhos de todos é justamente uma construção, algo
comum. A simplicidade muitas vezes fica escondida por expectativas de compreensão
às vezes mais intelectualizadas, que submetem automaticamente o que aparece a
toda uma sorte de conceitos que, inadvertidamente, modificam o sentido original.
A descrição fenomenológica tampouco diz respeito à descrição dos dados
empíricos do mundo físico-natural, mas a tudo que pode ser percebido da totalidade
da existência. Ao investigar como as ciências humanas podiam ser desenvolvidas,
Husserl ressaltou as diferenças fundamentais entre o homem e as coisas naturais,
reafirmando a inadequação de comparar e reduzir a compreensão das experiências
humanas às do campo natural.
Heidegger, aluno preferido e seguidor da obra de Husserl, aos 20 anos tornou-
se assistente do mestre. Ele levou adiante o pensamento original da fenomenologia
husserliana, examinando a condição fundamental necessária de ser como pressuposto
para qualquer questionamento e conhecimento do homem. Entretanto, o pensamento
heideggeriano aprofundou as questões epistemológicas fenomenológicas iniciais,
considerando-as no campo de uma ontologia hermenêutica fundamental. Sua obra Ser
e Tempo6, de 1927, constitui uma rigorosa e importante análise das questões do Ser e
da Existência. Heidegger aponta que tudo que é dito sobre algo – da natureza, das
ciências, do que se constrói – sempre começa com “isto é”, uma referência inicial ao
próprio ser. Mas, dizer que “uma coisa é” não significa o mesmo que afirmar que “o
homem é’. A mesma afirmação é (do verbo ser) tem significados fundamentais
diferentes quando referida ao ser humano e às coisas. Há uma diferença ontológica,
fundamental, entre a existência humana e todas as coisas encontradas no mundo.
Heidegger se propõe a esclarecer esta diferença e descreve o ser dos homens como
ser-ai (Dasein), existir, existência. Em Ser e Tempo, o sentido de existir está
minuciosamente descrito como ser-no-mundo.O ser humano tem uma relação
especial com o mundo e é o único ente que se preocupa e pergunta o que significa ser
alguma coisa ou ser quem é. Nem as coisas, nem os animais se perguntam. Ser
homem, como ser-ai, se constitui desde sempre como uma abertura para o mundo.
Nesta relação original, ser humano como existência está sempre lançado. Assim, se
encontra permanentemente em estado de ser-lançado que nunca está pronto ou
acabado. Isto é, homem existe como poder-ser, como possibilidade de ser sempre de
algum modo tendo que cuidar de si numa específica relação com o mundo. De outra
maneira, tudo o que é, todas as coisas que aparecem no mundo estão prontas e
podem ser definidas. Aprofundando a hermenêutica fenomenológica existencial, os
fundamentos da temporalidade, historicidade, espacialidade, compreensão, afinação
(angustia, temor), cuidado, culpa e ser mortal são rigorosamente explicitados em Ser e
tempo.
Ainda é necessário ressaltar a explicitação empreendida por Heidegger, no
sétimo parágrafo desse livro, sobre o que quer dizer fenômeno no âmbito de sua
metodologia fenomenológica. Nesse âmbito, fenômeno não quer dizer um
acontecimento espetacular ou, objetiva e simplesmente, um acontecimento, fato ou
objeto. Objetividade corresponde ao entendimento metafísico e não ao pensamento
fenomenológico. Nesse caminho, ao qual pertencem os significados e o sentido dos
acontecimentos, fenômeno quer dizer o que vem a se mostrar do que acontece, o que
pode ser desvelado.
A partir do rigor das análises desenvolvidas em Ser e Tempo, a fenomenologia
se constituiu como método para compreender a existência em sua totalidade, junto ao
mundo e no convívio com os outros. Como decorrência dessas observações, a
Daseinsanalyse na clínica médica e psicológica pode ser entendida como um caminho
fenomenológico de atuação que considera os fundamentos da existência como ser-ai,
como poder-ser e ser-no-mundo em cada caso. Assim, o método fenomenológico se
constitui como caminho possível para o entendimento existencial que permite o
reconhecimento dos aspectos humanos mais originais que nos constituem – adultos,
bebês e crianças – sadios ou doentes, como ser desde sempre no mundo, em relação e
numa totalidade.
Boss constantemente reafirmava a importância do pensamento heideggeriano
para o saber e a prática da psiquiatria e psicologia. Em uma conferência para médicos
e psicólogos, ele disse:
“O que é anterior é o entendimento da existência humana em sua totalidade.
Depois é que podemos entender o doente e a doença como privação de uma condição
humana de saúde”.
Ele ainda lembrava que a fenomenologia existencial, diferente das demais
abordagens, não é uma proposição explicativa-causal da realidade, não se propõe a
explicar porque algo acontece de uma determinada forma e não de outra, nem se
pretende como uma teoria explicativa. Ela é um método, palavra que tem sua origem
no grego: um caminho (odós) em direção (meta). Com a fenomenologia não se
aprende sobre o que pensar; mas o importante é aprender o modo como se pensa e se
olha para aquilo que aparece.
Ainda recorrendo à literatura, Alberto Caeiro, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa (1888-1935), em O guardador de rebanhos, diz:
“O que nós vemos das cousas são as cousas
Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?
Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?”
Alberto Caeiro aqui dizia que o importante é perceber que vemos o que vemos
e não outra coisa que não vemos, ou seja, é preciso saber ver.
O importante é saber ver o que aparece, que é sempre em cada caso, em cada
situação; e não algo geral ou um protótipo do que somente depois pode ser
transformado. Assim, por exemplo, primeiramente não vemos nem podemos falar de
causa, nem de efeito. Uma causa ou uma relação causal não pode ser observada no
acontecimento mesmo, pois somente é constituída numa correlação estabelecida
posteriormente entre duas coisas que já aconteceram. Podemos muito bem conhecer
algo sem nenhuma relação causal. Para que as emoções, reações ou escolhas humanas
possam ser percebidas de um certo modo não é necessário determinar causas. A
suposição de que é necessário antes conhecer a determinação causal para
compreender o fato não é original, mas é uma conclusão a partir do que já era
conhecido antes, como dois acontecimentos sucessivos. Isto é, um fato causador
somente pode ser pressuposto como tal, depois que algo se realizou. Isso pode
parecer contraditório com a noção costumeira da anterioridade causal.
Na observação direta da existência humana muitos aspectos podem ser
aproximados, mas muitos outros podem ficar para trás. Isso acontece também em
relação à vida diária das crianças. Às vezes, com certa estranheza chegamos a
perguntar “Como essa criança pôde fazer o que fez”?
O horizonte que orientou as reflexões contidas neste livro se traduz no esforço
por considerar e descrever diretamente o mundo da criança e encontrar os sentidos
mais próximos das experiências infantis. Como pensar e falar das crianças – e não de
crianças – sem ultrapassar os sentidos de sua própria existência infantil e sem adentrar
as preocupações estrangeiras adultas?
O método fenomenológico não carrega a “suposição” de uma criança
subjetiva, ou objetiva, idealizada ou determinada por processos psíquicos ou de
aprendizado incessante. Mas, com a fenomenologia, a criança pode ser compreendida
a partir dela mesma, em sua totalidade existencial, no seu próprio mundo e na
referência de seu convívio.
Nessa perspectiva, é necessário que esteja presente o esforço por não deixar
para trás o que se mostra diretamente de modo mais simples – a novidade do novo
que cada criança é –, sem seguir orientações que são meramente do mundo
intelectual adulto. Este é o maior desafio para a compreensão das experiências
infantis: manter a proximidade com o mundo infantil.

Maria Beatriz Cytrynowicz. Criança e infância - Fundamentos existenciais - Clínica e orientações


. Chiado Editora. Edição do Kindle.

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