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Extra I - Especificidades de Clínica

Infantil

Índice

CLÍNICA INFANTIL 1

Clínica Infantil II 76

Este material é parte das aulas do Curso de Formação em Psicanálise.


Proibida a distribuição onerosa ou gratuita por qualquer meio, para não alunos
do Curso. Os créditos às obras usadas como referências ou citação constam

nas Referências Bibliográficas.

Embora algumas questões estejam presentes em


crianças, adultos e idosos, neste Módulo separamos
os aspectos mais recorrentes da Prática
Psicanalítica voltada a públicos específicos.
CLÍNICA INFANTIL

Psicanálise Infantil I

​ ​Histórico

Até o século XVII, as crianças eram criadas pela amas de leite, e por volta dos
sete anos de idade, já eram consideradas adultas. Essa visão começa a mudar
a partir dos filósofos, médicos e educadores. Os psicólogos começaram a
estudar os processos mentais das crianças de uma forma diferenciada dos
adultos.

No final do século XVII, segundo Jonh Locke, a criança era vista como uma
tabula rasa, totalmente passiva ao ambiente, ia se construindo e se
desenvolvendo através.

Segundo a visão de Jacques Rousseau, a criança não é passiva ao ambiente,


esta já teria conceitos morais inatos, na busca de uma maior adaptação.
Através da curiosidade, a criança vai buscar o que quer em termos de modelos,
a função do adulto aqui, seria a de orientá-la. Estabelece a necessidade da
relação mãe x bebê, através da necessidade, por exemplo, da amamentação.
Preocupação com os índices de mortalidade infantil.

Darwin publicou um livro que influenciou a teoria de Freud no aspecto


evolucionista, a partir disso, os cientistas começaram a sistematizar seus
estudos.

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Freud (1905 - século XX) escreve os “Três Ensaios da Sexualidade Infantil”,
mesmo tendo seu trabalho voltado para adultos, dava importância as primeiras
fases da vida de seus pacientes. Dá subsídios para outras pessoas pensarem
o trabalho com crianças, embora não tenha desenvolvido uma técnica (caso
Hans). Deixou porém, grandes contribuições com seu pensamento entre elas
estão:

Vai falar do brincar, em seu texto: “Além do Princípio do Prazer”, quando fala
no jogo do forte da criança por meio da imitação. Mostra a importância do
brincar na elaboração dos conflitos, concebe a atividade lúdica como uma
forma de elaboração.

Outra postulação importante: a relação parental como base para a relação do


futuro adulto.

No jogo do forte da criança por meio da imitação, vai se colocar no papel ativo
ou se experenciar de forma passiva. Possibilidade de simbolização da relação
com a mãe, a fim de elaborar a separação desta.

Pulsão de vida e pulsão de morte, a criança na relação com a mãe


experimenta: pulsão de morte, na ausência da mãe e a pulsão de vida, na
medida em que esta propicia a sobrevivência, ambas caminham juntas.

• Complexo de Édipo – outro conceito de grande importância para a


psicoterapia infantil. A angústia do nascimento; primeira separação da mãe,
primeiro contato externo, mesmo que não se tenha acesso, essas marcas
ficam no sujeito.

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Depois de Freud, começou a se tentar uma técnica específica para se tratar
crianças.

• Hug Hellnuth (França) – trabalhava no hospital e recebeu uma criança


muda, que não tinha nenhuma justificativa orgânica. Começou a trabalhar
com desenhos e a interpretar psicanaliticamente, a partir de então, a
criança começou a falar.

• Madeleine Rampert (Suíça) – desenvolveu um trabalho com marionetes,


geralmente, usava figuras que se relacionavam com as crianças, ou seja,
que tinham participação na vida da criança: o pai, a mãe, as tias, os avós...

• Anna Freud – para ela o analista tem um papel de educador, a criança


precisava perceber a aprovação dos pais e reprovação do terapeuta dentro
de um caráter pedagógico. A criança, segundo ela não transfere, por estar
vivendo todas as experiências com os pais. Trabalha com sonhos e
desenhos, não valoriza o brincar, a brincadeira é apenas uma forma
estática.

• Melaine Klein (Escola Inglesa) – apresenta divergências em termos


teóricos. Toda a sua técnica é criada em cima do brincar, sendo esta a
única forma de expressão do conflito. Trabalha com agressividade.

• Freud – para Freud, o sujeito é resultado na defesa contra a pulsão,


enquanto para a Melaine Klein, o conflito é originado na agressividade da
criança, gerando a dissociação da parte boa e má, que leva ao conflito.

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Associa a agressividade à pulsão de morte (como algo agressivo,
destrutivo). Distorção da pulsão de morte de Freud.

• Donald Winnicott: Médico, Pediatra, Psicanalista – inúmeros escritos;


trabalha com objeto transicional, foi aluno e supervisionando de Melanie
Klein.

• Arminda Aberastury (Argentina): trabalhava com “Psicanálise da Criança”


– seguidora de Melanie Klein.

• Virgínia Axline: Ludoterapia; Terapia não diretiva – impulso para o


crescimento; brincar livremente. Infância: Processo evolutivo através da
socialização, Infância. Do nascimento até relativa independência. Término
da infância: Depende de cada criança, da família, dos aspectos físicos, do
ambiente social, cultural, econômico, etc. Infância: Processo evolutivo.

• Piaget – operações intelectuais;

• Spitz – relações Mãe x Filho

As adaptações que foram feitas para o atendimento de crianças começaram


pela técnica: desenhos, comunicação pré-verbal e com isso, precisava
modificar também o consultório, a fim de facilitar o trabalho com crianças.

Toda a estrutura montada no consultório deve ser capaz de fazer com que a
criança perceba o que ela vai fazer ali, sem que necessite ser dito, o terapeuta
deve se abster em dar limites neste sentido, para que a criança trabalhe.

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Por exemplo: forrar o divã para que a criança possa pular, usar móveis
pequenos, para que tenha acesso aos materiais e caso tenha tapetes, forrá-lo.

​ ​Pulsão

Freud tem muito a nos dizer quando o assunto é a formação dos sujeitos, por
isso mesmo não tendo direcionado sua teoria para o tratamento com crianças
pode-se entender o funcionamento geral do psiquismo humano. Uma das
contribuições importantes refere-se à distinção de instinto e pulsão (trieb –
termo alemão). Segundo ele, no animal podemos observar o instinto, uma vez
que este é a resposta a um estímulo determinado, baseado numa necessidade
fisiológica e que leva a um fim também determinado, onde encontra satisfação.
Refere-se a um comportamento animal fixado pela hereditariedade,
característico da espécie.

Exemplo: fome – buscar comida – satisfação.

A pulsão é a tradução, a representação do que aparece no corpo como


necessidade, só que neste lugar temos desejo. Não precisa de estímulo, uma
vez em que é uma pressão interna e constante. Podemos pensá-la como uma
carga energética em movimento, que advém do próprio organismo, sem
necessitar de um estímulo externo para que o desperte e da qual não podemos
fugir. Sendo assim, podemos conceber a pulsão como o limite entre o físico
(soma) e o psíquico (mente), a fronteira entre o que ele teria sido – animal,
instinto, necessidade e o que ele se torna – humano, pulsão, desejo,
realização.

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Em suma: a pulsão não precisa de estímulo, não tem resposta determinada e a
resposta não vai levar a um fim e sim, ao reinício.

Exemplo: A 1ª mamada, a criança vai buscar sempre este prazer perdido, não
se satisfaz nunca, apenas se realiza.

Enquanto que a pulsão tem origem somática e vai buscar a satisfação (busca
de um prazer), o instinto, seria a saciação de uma necessidade fisiológica.

Para Freud, o prazer está associado ao sexual (sentido amplo) e não ao


genital. A criança começa nesta busca de objetos para a satisfação da pulsão
muito cedo, o nome dado ao investimento nos objetos é denominado de
libidinal. É o que Freud vai chamar de fase perversa polimorfa, ou seja, a
criança inicialmente retira prazer do próprio corpo, enquanto nos adultos,
observa-se à prioridade as determinadas zonas do corpo, embora ainda
conserve algo desta fase, retirando prazer também de outras áreas. Podemos
afirmar que o corpo da criança é todo erótico, neste sentido.

​ ​Inauguração da Pulsão

O bebê humano é o único animal que necessita de um outro para sobreviver,


alguém que invista nele e lhe dê afeto. É o outro (mãe ou quem exerce está
função) que vai apontá-lo como ser humano, independente do tipo de afeto vai
dizer quem ele é.

Na verdade, todos somos tomados pela pulsão. Antes de o bebê existir, já está
ligado ao outro, ou seja, é objeto do outro, que vai “utilizá-lo” de acordo com
suas necessidades pulsionais. Porém, o bebê necessita do investimento de

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alguém para a satisfação das suas necessidades, vai sofrer então a ação do
outro, e é num órgão – a boca, que o outro vai passar a princípio o seu desejo;
dado leite, mais alguma coisa: no olhar, no afeto, etc. E este outro, por sua vez
vai passar a pulsão à diante, com isso, o sujeito sofre uma ruptura e por estar
submetido ao outro vai conhecer o desprazer.

Neste momento, inaugura-se a pulsão, instala-se a falta, marcada a princípio


no corpo e depois, no psiquismo.

• Essa pulsão de ter filhos como realização do desejo, já existe antes


mesmo da concepção. A criança só vem ao mundo porque falta algo no
outro, ou seja, aquilo que é desejado não é natural, natural é aquilo que nos
falta. Então, podemos pensar quando uma criança nos chega ao consultório
a que demanda dos pais ela está respondendo.

INFLUÊNCIAS PRÉ-NATAIS NO DESENVOLVIMENTO

1.1 Influências pré e perinatais no desenvolvimento

É de fundamental importância para o psicanalista ter noções de como ocorre o


processo de fecundação e crescimento da criança no útero materno porque
muitos problemas do comportamento, deformidades físicas e distúrbios de
personalidade têm origem nesta fase. Não faremos uma revisão completa
destes aspectos, pois inúmeros autores já a fizeram, quer de forma breve, quer
de forma exaustiva. Citaremos alguns deles apenas a título introdutório, pois a
própria crendice popular tem mostrado ao longo da história que os mistérios da
vida intra-uterina e as formas pelas quais o ambiente pode influenciar esses
processos despertam o interesse de todos.

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Antes do advento da embriologia, acreditava-se que qualquer evento
influenciando a mãe durante a gravidez afetaria o feto, como, por exemplo, se
uma futura mãe fosse assustada por um cão, a criança poderia desenvolver
uma fobia por este animal; se desejasse algum tipo de alimento e não o
obtivesse, a criança poderia ter aspecto deste alimento; que não se pode
recusar qualquer tipo de alimento oferecido por uma gestante, etc. Estas
crenças derivavam de uma suposta conexão neural entre o sistema nervoso da
mãe e o do filho e da transmissão direta de emoções, desejos, angústias, etc.,
o que obviamente não tem sentido devido às grandes diferenças de maturidade
do sistema nervoso central de um adulto (mãe) e daquele que ainda está se
formando no feto.

Atualmente, sabe-se que grande número de substâncias passam através da


placenta da mãe para o feto. Alterações na fisiologia da mãe produzem
mudanças no feto embora isto ocorra por um mecanismo muito mais complexo
do que fazem supor as crendices populares. Estudos neste sentido começaram
com a constatação de que deformidades nas crianças deviam-se a vírus (como
o da rubéola ou da sífilis); venenos, radiações, substâncias químicas (como
drogas ou antibióticos) e ausência ou excesso de vitaminas levavam à
cegueira, má-formação craniana, ausência de membros, debilidade mental,
desordens do sistema nervosos central e outras deformidades grosseiras.

Do ponto de vista emocional, Sontag (1941) sugeriu que substâncias químicas


que aparecem no sangue materno durante o stress emocional se transmitem
ao feto, gerando neste efeitos adversos. Por exemplo, constatou que os
movimentos fetais aumentam por várias horas e assim crianças nascidas de
mães com stress emocional prolongado poderiam apresentar alto nível de
atividade após o nascimento.

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Em outro capítulo ter-se-á uma visão mais atualizada e mais complexa das
influências dos estados emocionais da mãe durante a gestação.

Lembraremos no momento outros tipos de fator:

1) Idade da mãe. Algumas deformidades ocorrem com mais freqüência em


mães muito jovens (menos de 20 anos – aparelho reprodutor ainda em
formação) ou mais idosos (mais de 35 anos). Exemplo: Mongolismo.

2) Drogas. Quando ingeridas no estágio de formação podem provocar


deformações físicas e mentais diferentes, conforme a quantidade ingerida e
a etapa da gravidez. Como por exemplo, podemos citas as anfetaminas, os
sedativos, cocaína, etc. Na década de 60 muitas gestantes, em vários
países do mundo, ingeriram uma droga – Talidomida (sedativo) – no início
da gestação e seus bebês nasceram com vários tipos de deformação.

Atualmente, existem estudos mostrando que o próprio cigarro e as bebidas


alcoólicas não devem ser utilizados em excesso durante a gestação sob risco
de provocarem anormalidades, embora menores. As próprias drogas
anestésicas utilizadas durante o processo de parto estão sendo questionadas
no sentido de provocarem uma certa letargia, uma menor capacidade de
resposta aos estímulos.

3) Radiações. Raio X em excesso podem provocar deformações no cérebro.


Quanto às radiações atômicas, é bastante conhecido o fato de que, além da
destruição causada pelas bombas atômicas em Hiroshima durante a 2ª
Guerra Mundial, as crianças nascidas de mulheres que se encontravam
gestantes naquela ocasião apresentaram vários tipos de anomalia.

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4) Doenças infecciosas. Sífilis, rubéola e caxumba podem produzir abortos
(fetos de má-formação, eliminados espontaneamente pelo organismo) ou
anormalidades físicas (cegueira, surdez, deformidades nos membros) ou
mentais.

5) Fator Rh. Quando houver incompatibilidade entre os tipos sanguíneos da


mãe e do feto, podem ocorrer abortos, natimortos, morte logo após o
nascimento, ou mesmo paralisias parciais ou deficiências mentais.
Felizmente estes problemas já são bastante conhecidos na clínica médica,
facilitando medidas profiláticas. Existem, entretanto, outras
incompatibilidades sangüíneas (como o caso: mãe O e feto B) que podem
produzir substâncias tóxicas no organismo (no caso, altas taxas de
bilirrubina) e que estão ainda em fase inicial de estudos.

6) Dieta. Está atualmente comprovado que uma dieta pobre predispõe a


maiores complicações durante a gestação e o parto, prematuridades, maior
vulnerabilidade do bebê a certas doenças e mesmo atraso no
desenvolvimento físico e mental. Daí a prioridade que o governo brasileiro
vem dando ao atendimento materno, infantil. Embora ainda precário, esse
atendimento ou está desaconselhando as chamadas gestações de alto risco,
ou, quando ocorrem, procurando oferecer atendimento médico e
complementação alimentar.

Tão grave é este problema na nossa população carente que o próprio jornal O
Estado de São Paulo, numa série de reportagens publicadas no final do ano de
1980, mostra que uma alta porcentagem das crianças de determinadas regiões
da Grande São Paulo apresenta déficit tanto no crescimento físico quanto no
intelectual, havendo uma média de 2 anos de retardamento no seu

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desenvolvimento. Esta defasagem é atribuída à má qualidade de vida e
principalmente à alimentação inadequada e insuficiente da gestante, do bebê e
da criança pré-escolar. Como solução para minorar ou pelos menos impedir
que esta situação se agrave, sugere-se a orientação para um planejamento
familiar mais adequado, bem como uma melhoria nas condições de
alimentação e saúde no início da vida. Diga-se de passagem que, além das
deficiências nutritivas, estas crianças vivem num ambiente sem estimulação
adequada para o desenvolvimento intelectual. Pesquisas realizadas na
Inglaterra mostraram que crianças, filhas de pais carentes e de Q.I. rebaixado,
quando submetidas à estimulação adequada instituições nas quais passavam
parte do tempo, tiveram desenvolvimento superior àquelas de um grupo de
controle sem manipulação. Além do período que as crianças passavam na
instituição, o programa previa atendimento e orientação às mães no sentido de
autovalorização, melhoria em suas condições de trabalho e de relacionamento
com as crianças. Completando ainda a experiência, as moças adolescentes
desta comunidade eram treinadas no cuidado com bebês e crianças
pré-escolares no sentido profilático, isto é, para quando fossem mães.

Muitas instituições comunitárias e religiosas têm prestado algum tipo de


assistência a mães e famílias carentes em nosso meio, embora não contem,
geralmente, com os mesmos recursos que tinham estes pesquisadores
ingleses.

Por esta breve exposição de alguns dos muitos fatores que podem predispor a
diversos tipos de distúrbios durante a gestação, conclui-se pela importância da
orientação médica durante a gestação ou mesmo do aconselhamento genético
quando um dos membros do casal é portador de qualquer característica que
possa afetar negativamente o feto; ou ainda quando, embora pai e mãe sejam
sadios, possa existir algum tipo de incompatibilidade capaz de prejudicar o feto.
O conselheiro geneticista faz um estudo do casal e orienta no sentido da

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desejabilidade ou não da procriação. Embora recente, no Brasil este tipo de
atividade existe nos grandes centros urbanos, ligados geralmente a escolas
superiores de medicina e genética.

Além dos fatores já enumerados que prejudicam o feto de forma grosseira,


existem outros que, embora de maneira mais sutil, prejudicam o
desenvolvimento e o bem-estar psicológico (e social, em última análise) tanto
da mãe quanto do bebê. Quero me referir ao processo de parto tal qual vem
sendo comumente realizado em nossa sociedade.

Vejamos como ocorre. Durante a gravidez da mulher, ávida de atenções


especiais que a ajudem a ajustar-se ao novo papel de mãe, recebe assistência
obstétrica de forma mecânica e impessoal. É recebida por um médico
atarefado que a examina e receita vitaminas ou outros medicamentos
necessários. Suas emoções, medos, ansiedades, alegrias e expectativas não
são considerados.

O parto é realizado num ambiente hospitalar que, se traz benefícios à saúde


pela sua assepsia, pode produzir efeitos emocionais danosos, os quais
podemos denominar “esterilização emocional”. Analisemos a situação pari
passu. A mulher parturiente, sofrendo as dores das contrações e as angústias
de um momento desconhecido e crucial, é recebida fria e rotineiramente por
pessoas estranhas. É conduzida de uma sala para outra, sem participar de
qualquer decisão, tomada em nome de princípios obstétricos que não lhe são
transmitidos.

A indução do parto por drogas e o rompimento artificial das membranas feito


por conveniência (para acelerar o processo) produzem aumento das
contrações uterinas (e portanto das dores da mãe) e menor fluxo sanguíneo

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para o cérebro do bebê, o que pode causar anormalidades neurológicas,
cardíacas, disfunção cerebral mínima, etc., além da necessidade de se
administrar analgésicos e sedativos para aliviar as dores maternas. Estas
drogas concentram-se na circulação fetal e no sistema nervoso central, o que
pode levar a comportamento menos responsivo após o nascimento, menor
sucção, problemas de respiração e disfunção cerebral mínima. Este estado da
criança e a sonolência da mãe após o parto (decorrente das drogas) levam a
alterações nas respostas maternas e, dependendo do par mãe-criança do grau
e da duração, podem levar a conseqüências mais duradouras e imprevisíveis.

A posição da mulher deitada e amarrada torna o parto menos confortável,


impede a mãe de participar no sentido de procurar a posição mais confortável;
interfere e inibe o comportamento materno natural, o que pode também
influenciar no estabelecimento da interação com seu bebê.

O corte que se faz na mulher durante o parto causa desconforto durante a


amamentação, afeta o relacionamento sexual (e portanto conjugal) após o
parto, dificultando ao casal a elaboração da nova situação familiar.

Vejamos agora o que ocorre ao bebê. Os cuidados pós-parto são executados


de maneira mecânica, rapidamente, num ambiente tumultuado e de muita luz.
As luzes fortes sobre os olhos do bebê podem prejudicar o comportamento de
olhar mútuo que ocorre entre a mãe e a criança durante a amamentação.

O parto cesariano, realizado incontáveis vezes sem indicação obstétrica, com


anestesia geral, pode levar a sentimento de incerteza em relação ao bebê (será
mesmo seu filho?), sentimento de falha como mulher, além das dores e da
separação subseqüente.

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A etiologia, a partir de estudos com animais e posteriormente da observação de
bebês humanos, constatou que os primeiros dias e semanas após o
nascimento constituem um período fundamental para o estabelecimento de
uma ligação afetiva sadia entre a mãe e o seu bebê. As primeiras horas e dias
se constituiriam no denominado período de reconhecimento, quando os dois
membros da díade estariam explorando um ao outro, conhecendo-se. Daí a
importância fundamental de um parto num ambiente de maior afetividade e de
um contato contínuo com o bebê nas primeiras horas. Caberia ao pessoal
hospitalar um auxílio no sentido de ajudar a cuidar do bebê, pois que, ainda
dentro dos princípios etnológicos, qualquer mãe, (humana ou animal - está apta
a cuidar de seu filho desde que possa dar livre vazão às suas emoções). É
como se as mulheres fossem programadas geneticamente para cuidar de seus
filhos e estes nascessem com aspecto e comportamentos capazes de eliciar
nelas o chamado comportamento materno. Assim, numa posição naturalista,
basta que mãe e filho sejam deixados juntos, num ambiente adequado para
que desenvolvam o attachment ou ligação afetiva. Inclusive, há quem ache
que, quando o pai ou outras pessoas da família assistem ao parto, além de
oferecerem segurança emocional para a mãe, estariam se ligando afetivamente
ao bebê.

Quanto ao bebê, constatou-se que crianças nascidas em casa e cuidadas,


desde o início, pelas próprias mães, estabelecem um biorritmo próprio em
poucos dias. Ao contrário, nas enfermarias demoram dez dias, além de
apresentarem maior dificuldade de alimentação e mais choro.

Conclui-se, portanto, que este período pós-parto é muito delicado tanto para a
mãe quanto para o bebê, podendo determinar a qualidade da ligação afetiva
que se irá estabelecer entre os membros da díade criança-mãe.

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O tratamento mecânico dispensado à mulher, que exige dela passividade,
ausência de informações e pouco contato com o bebê, pode gerar sentimentos
de culpa e frustrações que, quando prolongados, provocam depressão
pós-parto, cujos reflexos podem durar muitos anos. Ela pode sentir-se privada
de suas funções femininas, coagida e manipulada, embora do ponto de vista
obstétrico o parto tenha sido um sucesso.

Sugere-se então que a assistência dada à gestante, à parturiente e à nutriz


seja feita de maneira mais calorosa, mais humana, que inclua a participação do
mario e dos outros filhos (quando houver), no sentido de promover uma
interação familiar sadia.

DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL E SOCIAL NA PRIMEIRA INFÂNCIA

2.1 Desenvolvimento físico na infância

O conhecimento, em profundidade, do desenvolvimento físico na infância, não


é tão importante para o psicanalista. Este deverá, entretanto, ter noções
básicas do tamanho, peso, capacidades sensoriais e motoras de cada faixa
etária. Isto porque obviamente o comportamento será sempre decorrente das
capacidades desenvolvidas pelo organismo, principalmente nos primeiros anos
de vida, quando a criança não terá ainda pensamento conceitual, mas será
dotada de uma inteligência sensorial-motora. Assim, na infância inicial (0-18
meses) o próprio desenvolvimento intelectual estará diretamente ligado à
maturação do sistema nervoso central, à capacidade de receber e apreender
impressões sensoriais, de executar movimentos, etc.

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Nesse sentido, podemos afirmar que o desenvolvimento físico é altamente
dependente da maturação, embora possa ser influenciado positiva ou
negativamente por fatores ambientais.

Por maturação queremos nos referir às forças biológicas geneticamente


programadas que direcionam o crescimento em tamanho, a emergência e o
controle de movimentos, a integração das impressões sensoriais, a
possibilidade de sentar, andar, controlar os esfíncteres, segurar um lápis,
executar corretamente os movimentos da escrita, falar, andar de bicicleta, etc.,
e que aparecem na mesma seqüência para todos os indivíduos da espécie.

Houve durante muitos anos uma controvérsia na psicologia a respeito de


comportamentos inatos ou aprendidos, da atuação predominante da
hereditariedade ou do meio ambiente na determinação de comportamentos
emergentes na infância e mesmo na idade adulta. Esta discussão se mostrou
estéril, persistindo hoje um ponto de vista interacionista, ou seja, tanto
hereditariedade como meio direcionam o desenvolvimento. Vejamos um
exemplo. O desenvolvimento físico é fortemente dependente do código
genético. A criança ao nascer traz uma tendência para ser alta ou baixa, gorda
ou magra. Estas potencialidades serão atualizadas ou não em função do tipo
de alimentação oferecido à criança, da prática de exercícios físicos e de
esportes, da ocorrência ou não de certas doenças, etc. Mas, se o ambiente for
favorável, a criança com tendência para alta estatura irá desenvolvê-la.

Já no caso de outras capacidades, como por exemplo, a linguagem, o processo


é mais complicado. A linguagem depende também da maturação biológica,
pois não há processo de estimulação ambiental que faça um bebê de 6 meses
falar. Mas se uma criança tiver maturação biológica e não receber estimulação
ambiental (cognitiva, afetiva e social), poderá apresentar retardamento na

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aquisição da linguagem ou vários tipos de perturbação, como gagueiras,
dislalias, etc.

Assim sendo, é preciso ficar claro que o desenvolvimento físico e motor na


primeira infância é altamente dependente da maturação biológica, mas é
também suscetível à atuação ambiental. Lembramos também que exporemos
apenas alguns dados fundamentais a respeito destes aspectos do
desenvolvimento, pois uma descrição mais detalhada foge aos objetivos deste
trabalho e pode ser encontrada na bibliografia pertinente.

O bebê que tem sido, tradicionalmente, visto como sujeito passivo,


dependente, apresenta já ao nascer diversas características físicas e
comportamentais que direcionam a atividade de outras pessoas. A sua
aparência e fragilidade têm o poder de elicidar nos adultos comportamentos
que o protegem. Assim sendo, as posições mais recentes dentro da Psicologia
do Desenvolvimento têm considerado o bebê como sujeito ativo desde o
nascimento. A chegada de um bebê vai exigir uma adaptação em termos
emocionais e comportamentais de todos os elementos da família e esta
adaptação ocorrerá em função de características de personalidade dos adultos
ou de outras crianças da família, mas também daquelas já presentes no bebê.
Sabe-se que certas características como maior ou menor nível de atividade
(dimensão da personalidade denominada temperamento por alguns autores),
ritmo de sono, alimentação, etc., estão presentes logo após o nascimento
apresentando variações individuais.

Exemplificando, alguns bebês dormem muito e choram pouco (o que é


bastante freqüente nas meninas), enquanto outros dormem menos e choram
mais (principalmente os meninos).

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Obviamente será mais fácil para uma mãe, notadamente a primípara,
adaptar-se uma criança tranqüila. Aquele bebê que chora muito, solicita
excessivamente a presença da mãe, impedindo-a de dormir, realizar trabalhos
domésticos ou outras atividades; pode, em alguns casos, levar a mãe (e o pai)
à exaustão, resultando daí, um sentimento consciente ou inconsciente de
rejeição – e culpa (Bell,1974). Ora, já vimos que as primeiras semanas de vida
são fundamentais no estabelecimento da ligação afetiva mãe-criança. Se a
criança é particularmente difícil (como no caso de um excesso de choro e de
solicitação) este vinculo poderá ter aspectos negativos. É importante considerar
que a qualidade do vínculo mãe-criança não depende apenas de
características de personalidade da mãe, mas também daquelas trazidas pelo
bebê já ao nascer, e da interação destes fatos. Explicando melhor podemos
verificar que determinadas características de uma criança se tornam difíceis
para uma mulher, mas não o são para outra, como por exemplo o sexo da
criança. Parece comprovado que os bebês masculinos, embora mais
desejados pelos pais antes do nascimento, são geralmente mais ativos e mais
exigentes do que os bebês femininos (geralmente mais dóceis). Mas, nem
todas as mulheres experimentam dificuldades para cuidar de seus bebês
masculinos, e parece, inclusive, segundo dados experimentais (Moss, 1967),
que estes são mais beijados e acariciados por suas mães do que os bebês
femininos.

Esta questão da interação mãe-criança é sem dúvida bastante complexa e será


tratada mais detalhadamente nos demais capítulos. Queremos lembrar apenas
que no caso de crianças que apresentam deformidades físicas ou mentais já
nos primeiros meses de vida, o estabelecimento do vínculo mãe-criança
torna-se particularmente difícil para mãe. (Isto será facilmente entendido se
considerarmos todas as fantasias presentes durante a gestação e o parto).

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Concluindo, lembramos mais uma vez que todos as aspectos do
desenvolvimento são interligados e interdependentes e que a divisão por
aspectos (físico, emocional, social, intelectual) é meramente didática.

2.1.1. Equipamento Inicial

Existem grandes variações no tamanho e no peso dos bebês, bem como no


seu ritmo de crescimento. Pesam ao nascer, em média, entre 3 kg e 3500 kg, e
têm aproximadamente, 50 cm de altura, sendo os bebês masculinos
ligeiramente maiores e mais pesados do que os femininos. Os recém-nascidos
de mães carentes do ponto de vista nutritivo podem apresentar pesos mais
baixos.

O crescimento em altura e peso é rápido e intenso (desde que haja uma


alimentação adequada), podendo atingir ao final do 1º ano de vida 70 cm de
comprimento e 9 kg de peso. Ocorrem, nesta fase, grandes modificações nas
proporções do corpo (a cabeça do recém-nascido tem ¼ do tamanho total do
corpo, enquanto no adulto esta proporção é de1/10; suas pernas são curtas em
relação ao tamanho do tronco e por isso se desenvolvem mais rapidamente),
na estrutura neural e muscular.

Ao nascer, a criança é dotada praticamente de todos os sentidos e “está


biologicamente pronta para experimentar a maioria das sensações básicas de
sua espécie” (Mussen e col., 1977). Pode ver (embora obviamente não
identifique qualquer objeto, distingue luz e sombra, acompanha os movimentos
de uma luz, etc.), ouvir (é freqüente a utilização pelas mães de cantigas de
ninar ou mesmo de música para acalmar os bebês), cheirar, tem sensibilidade
à dor (onde ocorrem grandes diferenças individuais), ao tato e às mudanças de
posição. Quanto ao gosto, se não estiver presente no momento do nascimento,

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irá se desenvolver logo após (observamos reações de desagrado quando
administramos um medicamento de sabor desagradável a criança de poucos
dias).

Quanto ao comportamento, a criança será capaz de chorar em qualquer


situação de desconforto, tossir, espirrar, vomitar, sugar, virar para o lado
quando sua face for estimulada. Apresentará inúmeros comportamentos
reflexos que dão início da adequação do desenvolvimento de seu sistema
nervoso central. Alguns destes reflexos têm valor de sobrevivência (como é o
caso do reflexo de sucção) e irão permanecer no repertório comportamental do
bebê (transformando-se eventualmente em esquemas sensoriais motores).
Outros reflexos que podem ser citados: preensão – consiste em fechar a mão
quando nela colocamos qualquer objeto (o dedo, por exemplo); andar –
segurando o bebê na posição ereta ele dará alguns passos; nadar. Estes dois
últimos desaparecem enquanto comportamento reflexo respectivamente com 8
semanas e 6 meses de idade, voltando a aparecer mais tarde como
comportamento voluntário.

Outro reflexo interessante e que deve desaparecer em torno de 3 meses de


idade é o reflexo de Moro, que consiste numa resposta de abrir os braços,
esticar dedos e pernas em resposta a um som intenso ou a qualquer estímulo
repentino e forte. E o de Babinski, que consiste em curvatura do artelho maior
para cima e os menores se estendem abertos, quando a sola do pé é
estimulada.

2.1.2. Necessidades Básicas

Sono. Embora existam discussões teóricas a respeito da necessidade de sono


da criança, sabe-se que suas finalidades básicas consistem em regular o

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corpo, manter o equilíbrio na constituição química e preservar as energias do
organismo para as atividades subseqüentes.

No 1º mês de vida o bebê dorme aproximadamente 80% do tempo, em


sonecas curtas e irregulares; no final do 1º ano dormirá 50% do tempo, isto é, a
noite toda e uma ou duas sonecas curtas durante o dia. É óbvio que esta
evolução será lenta e gradual.

Quanto aos padrões de sono, as crianças apresentarão, desde a mais tenra


idade, diferenças individuais em função de seu nível de atividade, drogas
anestésicas administradas à mãe durante o parto e sexo (lembramos que os
bebês femininos usualmente dormem mais tempo que os bebês masculinos).

Eliminação. A eliminação das fezes e da urina será, no início da vida,


totalmente reflexa e involuntária. Nos primeiro dias evacuará após toda
mamada e ao redor da 8ª semana deverá evacuar 2 vezes ao dia.

O tipo de alimentação oferecido ao bebê irá influenciar sua eliminação e


também as reações da mãe. Quando o bebê recebe aleitamento natural terá
uma digestão mais completa com movimentos intestinais suaves e suas fezes
não apresentarão odor desagradável. Já no caso da alimentação artificial, as
fezes apresentam odor desagradável e todo o processo de troca de fraldas e
higiene da criança torna-se penoso para a mãe.

Um problema geralmente associado à eliminação é a presença de cólicas


intestinais. Spitz, após seus estudos de observação de bebês e suas mães,
sugeriu que aquelas crianças que apresentavam muitas cólicas eram filhas de
mães ansiosas, que sentiam dificuldades no desempenho de suas tarefas

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maternais. Outros estudos, entretanto, sugerem que a presença ou ausência
de cólicas se deve a uma disposição temperamental da criança, ou seja, a seu
nível de atividade. Assim sendo, uma criança que apresenta elevado grau de
cólicas no início da vida, possivelmente será hiperativa mais tarde. Neste
sentido a interpretação é inversa àquela dada por Spitz. Isto é, não seria a
ansiedade da mãe a responsável pelas cólicas do bebê. Mas sim o alto nível de
atividade deste (do qual as cólicas seriam uma manifestação) é que provoca a
ansiedade da mãe, exigindo maior contato no sentido de cuidados, e menos no
de interação social.

Fome e sede. Estas necessidades são fundamentais do ponto de vista


psicológico, porque implicam relacionamento social e emocional (que será
descrito no capítulo referente à fase oral). Manifestam-se através de choro e de
movimentos violentos de todo o corpo. Nas primeiras semanas, a criança
ingere pequena quantidade de alimento (que se restringe basicamente ao leite)
e, portanto, precisa ser alimentada a intervalos curtos (geralmente a cada 3
horas, ocorrendo variações individuais na freqüência e quantidade da
alimentação). Até a década de 40 aproximadamente, as mães costumavam
amamentar seus filhos sempre que chorassem e que este choro fosse
interpretado como fome. Após o advento e o desenvolvimento do behaviorismo,
os princípios de instalação e controle de comportamento foram divulgados para
os pediatras e o grande público (em revistas femininas, por exemplo) e as
mães passaram a ser orientadas no sentido de manter um horário rígido de
amamentação (por exemplo, a cada quatro horas).

Atualmente considera-se que, se o bebê tiver uma mãe que capta seus sinais e
responde adequadamente a eles, a mãe saberá quando seu filho precisa ser
alimentado. Este, por sua vez, em poucos dias desenvolverá naturalmente um
ritmo adequado de alimentação. Não há, portanto, necessidade de se
estabelecer rigidamente um horário de amamentação e tampouco de a mãe

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estar sempre à disposição de seu filho. Isto porque, quando a mãe sente que
deve estar sempre agindo em função do bebê, sem realizar qualquer outro tipo
de atividade, poderá sentir-se frustrada como pessoa e desenvolver uma
hostilidade consciente ou inconsciente em função da excessiva exigência do
bebê.

Em torno de 30 dias de idade, a criança se torna capaz de ingerir maior


quantidade de leite em cada refeição, passando a necessitá-lo
aproximadamente 5 ou 6 vezes por dia apenas. A partir desta época, os
pediatras costumam sugerir o início da administração de suco de frutas, e, em
torno de 4 meses, o início da alimentação sólida (sopas, papas de frutas, etc.).

Parece estar comprovado que, quando a criança é alimentada naturalmente,


não há necessidade de qualquer outro tipo de alimento até a idade aproximada
de 6 meses.

2.1.3. Desenvolvimento Psicomotor

O desenvolvimento motor é o resultado da maturação de certos tecidos


nervosos, aumento em tamanho e complexidade do sistema nervoso central,
crescimento dos ossos e músculos. São, portanto, comportamentos
não-aprendidos que surgem espontaneamente, desde que a criança tenha
condições adequadas para exercitar-se. Queremos com isto dizer que, apenas
em casos de extrema privação (ou de algum tipo de distúrbio ou doença), estes
comportamentos não se desenvolverão. Crianças criadas em caixotes ou
quartos escuros (por mais incrível que pareça, têm-se várias notícias a este
respeito) ou em creches de péssima qualidade, onde as crianças são mantidas
sempre em seus berços, sem qualquer estimulação, não desenvolverão o
comportamento de sentar, andar, etc., na época adequada.

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Coste (1978) relaciona entre as principais funções psicomotoras as seguintes:
desenvolvimento da estruturação do esquema corporal (mostrando a evolução
da apreensão da imagem do corpo no espelho e a exploração e
reconhecimento do próprio corpo): evolução da preensão e da coordenação
óculo-manual (evolução da fixação ocular; preensão e olhar); desenvolvimento
da função tônica e da postura em pé; reflexos arcaicos além da estruturação
espaço-temporal (tempo, espaço, distância e ritmo).

Seria importante realçar que esses aspectos de desenvolvimento físico não


ocorrem mecanicamente apenas. São vivenciados pela criança (e pela família)
e formam a base da noção do eu corporal. Sim, porque obviamente um
indivíduo, uma personalidade, existe a partir de um determinado corpo (embora
algumas abordagens ainda enfatizem, disfarçadamente o dualismo
mente-corpo) e o que acontece neste corpo é apreendido pelo sujeito (através
de algum mecanismo intelectual) e tem repercussões emocionais. Queremos
nos referir ao conhecimento que a criança vai tendo de seu próprio corpo, à
formação de sua imagem corporal e aos sentimentos que são despertados por
esta ou aquela característica. Como exemplo podemos lembrar a valorização
que a beleza física tem em nossa sociedade. Possivelmente uma pessoa
bonita terá um fato a mais no sentido de desenvolver uma auto-imagem
positiva do que uma pessoa desprovida desta beleza. Certas profissões
dependem fundamentalmente da qualidade da aparência. Outro exemplo que
poderíamos lembrar é o do adolescente cheio de espinhas, com excesso de
peso, etc., que terá dificuldades em se tornar popular em seu grupo de amigos.

Assim sendo, ao estudar o desenvolvimento de um bebê, devemos estar


atentos também aos aspectos intelectuais, emocionais e sociais.

Sabemos que uma das funções básicas do desenvolvimento na primeira


infância é o conhecimento do próprio corpo, e a colocação deste corpo entre os

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demais objetos e pessoas do ambiente circundante. À medida que o bebê se
auto-explora (olhando para suas mãos, executando vários tipos de
movimentos, etc.) estará formando um esquema de si próprio que podemos
designar como eu corporal. Esta noção de eu corporal irá incluir também os
afetos positivos e negativos que o bebê terá a respeito de si mesmo, e, como
este auto-conceito inicial irá depender fundamentalmente da reação das
pessoas do ambiente (principalmente a mãe), vemos que de fato a separação
do estudo do desenvolvimento humano em aspectos é meramente didática.

2.2. Organização Afetiva Inicial: Fase Oral e Amamentação

2.2.1. A Fase Oral

2.2.1.1. A Descoberta da Afetividade Oral

As descobertas da psicanálise seguiram um caminho inverso ao processo de


evolução. Partindo do estudo das neuroses, notadamente da histeria, Freud
descobre que há, em todo neurótico, perturbações da genialidade. Isto o levou
a concluir que há um padrão de sexualidade adulto ou, melhor dizendo, genital,
que constitui a base da organização afetiva normal. É deste padrão de
sexualidade, desta evolução da libido para uma genialidade plena que o
homem saudável se define como aquele que é capaz de “amar e trabalhar”.
Amar num sentido amplo tanto envolve os prazeres das atividades sexuais
quanto os da constituição familiar, procriação e preparo ou formação dos
descendentes que virão a sucedê-lo.

Trabalhar implica nos derivativos sublimados da sexualidade. De um lado,


produzir, seja bens ou cultura, é eternizar sua permanência no mundo, tal qual

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o faz na constituição da geração seguinte. Cada empresa que se desenvolve,
cada produto que é concluído, cada técnica desenvolvida, cada colheita obtida
simbolicamente correspondem a um produto seu, que permanece, que o serve,
que serve ao grupo e que serve à preservação da vida. De outro lado, o
trabalho representa a mobilização dos processos secundários do Ego, é dar
ferramental e suporte para que as sublimações se realizem. É permitir que a
sexualidade primitiva evolua não só para a sexualidade genital, mas face à
plasticidade da libido, evolua, para satisfazer-se em relações produtivas e
adequadas à sobrevivência do grupo humano.

Estes padrões eram perturbados nos neuróticos e, progressivamente, Freud


passa a observar que a sexualidade não partia do nada para brotar
espontaneamente no adulto. Freud descobre que na infância as fantasias
sexuais já se manifestavam. Era uma sexualidade fantasiada que se
organizava em torno do grupo familiar. A configuração do triângulo edípico
propiciava a organização de base para a sexualidade adulta. Os quadros
histéricos traziam como pano de fundo uma vivência inadequada deste período
de sexualidade infantil, posteriormente denominado de fase fálica. Assim, a
partir de um trabalho clínico, primeiro ficam identificados os padrões da
genitalidade adulta, e depois uma fase infantil, que é básica para sua
organização. Entre os dois se estabelece um período onde a sexualidade é
contida, ou melhor, reprimida, denominado período de latência.

Com a continuidade destes tratamentos e com a tentativa de compreender e


tratar quadros mais graves – ou seja, a neurose obsessiva, a paranóia, a
melancolia e a própria esquizofrenia - foram sendo descobertos traços de que
já havia uma organização afetivo-sexual infantil anterior à sexualidade centrada
nos genitais. Verifica-se que o conjunto de instintos voltados para o prazer, que
chamamos de libido, tinha em cada etapa evolutiva da vida uma correlação

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com as estruturas biológicas que formavam o centro do processo maturacional
no momento. Assim são descritos traços de organização psíquicos
correspondentes aos segundo e terceiro anos de vida, período típico do
domínio muscular voluntário, do andar, do falar, das primeiras produções
pessoais, que na fantasia infantil se acham profundamente associados com os
primeiros produtos que ela pode expulsar ou reter em seu corpo, ou seja, as
fezes e a urina. Associados aos fracassos nestas aquisições, a psicanálise
descobre a organização de núcleo patogênicos que mais tarde poderão
desencadear a neurose obsessiva e a paranóia.

Os traços afetivos da organização infantil mais precoce, referentes ao


desenvolvimento do primeiro ano de vida, foram os que apresentaram maior
dificuldade de serem discriminados e compreendidos. Em primeiro lugar, por
situarem-se no período mais primitivo da vida, sendo portanto mais difíceis de
serem rememorados. Em segundo lugar, porque este período corresponde a
um período pré-verbal da existência, havendo portanto a necessidade de uma
evolução na teoria dos símbolos para a sua compreensão. Em terceiro lugar,
porque nos é difícil, como adultos, senão por um grande esforço de
introspecção e imaginação, compreender o sentido das emoções infantis. E
finalmente porque, embora estes traços estejam presentes nos adultos, só com
o desenvolvimento das técnicas ludoterápicas, notadamente o trabalho de
Melanie Klein, com a psicoterapia de crianças pequenas, que se pode estar
mais próximo da organização afetiva inicial. A organização afetiva do primeiro
ano de vida, período denominado pela psicanálise de fase oral, terá sua
organização básica proposta por Freud. Karl Abrahan se deterá em seu exame,
discriminando melhor seus mecanismos e modalidades de relação. Melanie
Klein, notabilizada como analista de crianças, dará o grande modelo teórico de
compreensão deste período.

2.2.1.2. A Organização da Libido

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O reflexo de sucção é inato, sendo desencadeado pela colocação do mamilo
ou outro objeto na boca da criança. Um toque realizado com o dedo, no rosto
da criança, fará com que esta se volte para tentar sugar o objeto que a está
tocando. Os toques em outras regiões do corpo com freqüência provocarão o
mesmo reflexo. De uma maneira geral, podemos deduzir que, biologicamente,
o impulso destinado à alimentação é um fator central da organização infantil
inicial. E é exatamente ao nível dos reflexos alimentares que a busca de
adaptação ao mundo e a procura de prazer são profundamente
correlacionados.

Outros grupos reflexos coexistem neste momento. Dentro dos reflexos


posturais vemos que a criança já possui estrutura automatizada para andar.
Um recém-nascido, seguro pelas mãos e conduzido de pé para a frente,
apresentará a coordenação alternada e reflexo do movimento de pernas. Há
um núcleo reflexo, posteriormente dominado pela organização voluntária, sobre
o qual se estruturará o andar. O reflexo tônico-cervical-assimétrico do
recém-nascido, que o deixa na clássica posição de esgrimista, ou seja, tortinho,
com uma perna encolhida e uma mão diante do rosto, servirá de suporte para
as correlações mão-boca e conhecimento da mão, dados fundamentais para as
praxias iniciais.

Mas este grupo de reflexos não tem a conotação de prazer apresentado pelos
alimentares. O mesmo se pode dizer dos reflexos defensivos. Por exemplo,
diante de um ruído forte o bebê se encolhe rapidamente e em seguida atira as
pernas e braços para fora. Não é difícil ver a correlação com nossos processos
defensivos físicos onde, num primeiro momento, nos protegemos e, num
segundo, tentamos expulsar a fonte da agressão. Esta postura defensiva fica
ainda mais clara quando picamos a planta dos pés de um bebê com uma
agulha. Reflexivamente ele retira o pé. Mas, se este pé estiver seguro, ele
encolhe a outra perna e em seguida a estica na direção do pé magoado.

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Parece-nos claro que todos os grupos reflexos estão ligados ao progressivo
processo de construção do real, notavelmente estudado e descrito pelo grupo
de Piaget. Mas o vínculo do prazer, suporte para o desenvolvimento da
afetividade, é neste momento uma correlação oral. É em cima do prazer inicial,
da satisfação tida com a amamentação, que se aprenderá a amar e que se
aprenderá a desenvolver os vínculos de amor em seguida dissociados da
exigência biológica básica da alimentação. Freud organiza a descrição das
fases de evolução da libido em seu Três Ensaios para uma Teoria Sexual
(1903). Neles, o termo fase oral ainda não aparece, mas Freud já descreve
vários aspectos da afetividade oral, estruturados sobre a amamentação. Dá
como suporte as descrições efetuadas pelo pediatra Lindner, onde os vínculos
de prazer ligados à amamentação são excepcionalmente bem descritos. Quase
que apenas lhe falta uma síntese teórica para se antecipar a Freud. Mostra
Lindner como todo envolvimento, a expressão de prazer e êxtase durante o
processo de amamentação são similares às manifestações orgásticas do
adulto.

Vimos observando até agora que, tanto ao nível dos reflexos quanto ao nível
dos vínculos de prazer externamente percebidos, a organização oral é o
elemento central da motivação infantil inicial. Quando utilizamos o termo
motivação, temos claro que estamos criando a impressão de uma dicotomia no
ser humano, dicotomia que teria, diante das situações de vida, de um lado a
capacidade cognitiva de elaborar e resolver problemas e, de outro, o impulso
que dá a energia para que a situação de vida seja enfrentada. Não cremos
pessoalmente nesta dicotomia humana, mas ao nível dos atuais
conhecimentos da psicologia, Piaget (e seguidores) emerge como o teórico da
construção do real, portanto da evolução da cognição humana; e Freud e
seguidores são os responsáveis pela descrição evolutiva normal e patológica
da afetividade. Nesta dimensão afetiva, o vínculo oral é claramente percebido
como ponto central do vínculo humano de prazer.

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A evolução da libido é, portanto, o tema central do desenvolvimento para a
psicanálise. A fase oral é então definida como a etapa de desenvolvimento
onde a libido está organizada sob o primado da zona erógena oral, dando
como modalidade de relação a incorporação. Isto significa que o centro da
organização afetiva está determinado por processos introjetivos. Mamar e
sentir prazer é sentir que o leite é bom, que o seio é bom, que a mãe é boa e
que o mundo é bom. A sua sensação de que está bem é correlata à de ter
colocado dentro de si objetos do mundo externo que são bons. O seio e a mãe
podem ser sentidos como bons porque foram incorporados. A incorporação é a
modalidade primitiva da introjeção, portanto dependente de referenciais
concretos. Por isso, a maternagem é fundamental para que a criança se sinta
adequada, amando e sendo amada. O vínculo básico da maternagem é a
amamentação. Erik Erikson diz que neste momento a criança ama com a boca
e a mãe ama com o seio.

2.2.1.3. As Etapas Orais

Karl Abrahan, psicanalista do grupo freudiano, aprofunda-se nas idéias iniciais


de Freud sobre a fase oral e nela discrimina duas etapas básicas de
desenvolvimento da libido. A primeira é chamada de fase oral de sucção, e
corresponde a um período de relações afetivas pré-ambivalentes, que cobrem
basicamente o primeiro semestre de vida; ou, num correlato biológico, vai do
nascimento ao período inicial da dentição. O segundo semestre do primeiro
ano corresponderá à etapa oral sádico-canibal, iniciada a partir da dentição,
onde as fantasias agressivas serão correlacionadas com percepção do objeto
inteiro, ou seja, com o surgimento da ambivalência (a mesma mãe é boa e má),
e com a dentição, ou seja, a percepção do primeiro momento de agressão ou
destrutividade real da criança.

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A Etapa Oral de Sucção

A criança funciona basicamente incorporando o universo que a rodeia. Não o


discrimina coerentemente, e o mundo de suas vivências é o mundo interno das
fantasias. Não há vínculos com objetos externos inteiros. Eles são apreendidos
de forma parcial e organizados pela realidade interna. O que é apreendido é
sentido como parte integrante do eu. O mundo é buscado para ser incorporado,
reduzindo-se a algo “digerido”, indissociado dos sentimentos bons ou maus que
a relação desperta.

A relação incorporativa estabelecida é a base da introjeção. O seio, a mãe, as


relações boas que deles emanam passam a fazer parte do mundo interno da
criança. Ela sente que as coisas que recebe em seu interior são boas, e
sente-se boa. Como o que importa é a realidade interna, este sentimento de
amor ou de bom é utilizado para permear as primeiras percepções do mundo
externo, ou seja, os objetos percebidos são sentidos como bons. Simplificando,
o processo fica assim: incorporo e me sinto bom, projeto para ver o mundo
“externo”, porque este só é percebido através da minha realidade psíquica; e,
portanto, por me sentir bom posso ver a minha mãe boa; como eu a vejo
especularmente, ligo-me a ela. Este processo, que chamamos de identificação
projetiva, constitui a base da configuração dos vínculos de amor, da
configuração inicial da identidade e do reasseguramento dos sentimentos
positivos que permitirão a progressiva evolução da libido através das várias
fases.

Embora a genitalidade domine a organização afetiva adulta, podemos perceber


que vários traços orais são mantidos, permeando os relacionamentos afetivos
dos adultos. O beijo é ainda o símbolo central do engajamento amoroso.

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Expressamos nele o traço do vínculo afetivo original mais forte que foi
desenvolvido. O beijo não fecunda, não é elemento biológico necessário para a
perpetuação da espécie. É, sim, vínculo do engajamento amoroso, constitutivo
da organização afetiva familiar humana. Chamar a mulher amada de “docinho”
ou o homem de “pão” são verbalizações denotadoras dos traços orais que
permanecem na genitalidade. Isto é igualmente válido para a expressão “comer
alguém” como indicadora do relacionamento sexual. Homens mandam
bombons para as namoradas. Mulheres prendem os homens “pelo estômago”;
o traço oral persiste.

Ao nível masculino, o prazer obtido com o seio é mantido, expandindo-se para


o prazer de se relacionar com o corpo e os genitais femininos. A mulher se
estrutura como objeto desejado e fonte de prazer. Ao nível feminino, sentir que
as coisas que recebe em seu interior são boas prepara-a para a sua futura
genitalidade receptiva. Receber o homem em seu interior será sentido como
fonte de prazer e gratificação.

A gratificação oral inicial também pode ter sido sentida como insatisfatória ou
insuficiente. Isto criará permanentemente a expectativa de que receber o
mundo externo, ou se relacionar com ele, será fonte de angústia ou de
sofrimentos. Discutiremos algumas destas modalidades quando tratarmos da
amamentação. Interessa-nos agora, a mais grave delas: a esquizofrenia.
Temos examinado que o mundo externo só pode ser progressivamente
conhecido e amado a partir dos vínculos de maternagem. A criança pode
nascer tão frágil, tão sensível à angústia ou, como dizemos analiticamente,
com predominância do instinto de morte sobre a vida, que quaisquer oscilações
de maternagem repercutirão como processos destrutivos, fazendo-a regredir e
isolar-se em seu mundo interno de fantasias. Também a criança com uma
propensão normal ao desenvolvimento sadio pode sofrer uma maternagem tão

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desestruturadora e agressiva, que não seja capaz de vínculos significativos
com a mãe, e portanto, com os demais objetos do mundo externo.

Nesses casos ocorre um isolamento. Não ocorre o desenvolvimento de


vínculos, e a realidade externa passa a ser rejeitada. Todo prazer, ou melhor,
toda segurança, só pode existir dentro do mundo interno de fantasias. O
externo não forma um todo coerente, as discriminações são fragmentárias e
parciais. As apreensões parciais são modeladas e integradas em uma
realidade interna, de fantasias, que é sentida como a única realidade. Os
processos mentais são os do inconsciente. O Ego não se fortalece, o processo
secundário não se estabiliza. O desejo, o temor, as fantasias organizam-se
como a realidade do pensamento. A configuração da identidade não se pode
formar.

Este não é um fenômeno do “tudo ou nada”. Em maior ou menor grau, todas as


pessoas sofreram frustrações orais que as marcaram de maneira mais ou
menos profunda. Estatisticamente o pico da incidência dos surtos
esquizofrênicos está situado no período final da adolescência. Isto significa que
o indivíduo tem uma certa capacidade para resistir aos picos mais críticos das
angústias iniciais e para continuar seu processo de desenvolvimento, que pode
até aparentar-se normal para a percepção externa e leiga. Mas um ponto de
fixação foi criado, ou seja, grande parte da energia da libido foi imobilizada
neste momento. Os desejos não satisfeitos conservam-se sempre, como uma
energia presa que não pode ser elaborada. A repressão que se forma, para
não permitir a emergência dos desejos ou da destrutividade que é sentida junto
com eles, imobiliza outro tanto de energia. Com isto, ficam também presas a
este ponto as fantasias deste momento e as modalidades de relação com o
mundo que o caracterizam, e, mais particularmente, das defesas que foram
mobilizadas contra a angústia.

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Embora o desenvolvimento aparentemente prossiga, o indivíduo se torna frágil.
Parte da sua energia vital está imobilizada, e seu desenvolvimento prosseguirá
sendo estruturado pela energia restante. O Ego será mais frágil e não terá
tanta força para enfrentar as futuras crises. Assim, não é que a estrutura
narcisista da criança permaneça linearmente. Melanie Klein mostra inclusive
que o pensamento infantil é psicótico, mas neste momento isto representa uma
etapa adequada do desenvolvimento infantil. É exatamente o que Freud chama
de narcisismo secundário que irá configurar a doença. Freud utiliza um
correlato biológico para exemplificar o processo. A ameba é uma massa
fechada. Emite pseudopoder, para contactuar e incorporar os objetos externos,
que são trazidos para dentro dela. Mas enquanto a ameba vai
permanentemente fazendo suas incorporações por este contato, o psicótico
recolhe para dentro de si as apreensões externas, recolhe suas possibilidades
de novas ligações, e o mundo externo perde o sentido.

A Etapa Oral-canibal

Este segundo período oral é introduzido na obra de Freud por Karl Abrahan. Se
antes a criança apenas incorporava, e suas modalidades agressivas existiam
apenas no plano da fantasia, agora, com a vinda dos dentes, a agressividade
será concretizada. Os dentes surgem rasgando as gengivas, provocando dor,
febre e angústia. A oposição do primeiro dente com as gengivas fere.

O dedo é levado à boca e mordido, e sensação de morder e ser mordido traz a


percepção de que concretamente se pode destruir. Os alimentos são mordidos
e triturados para serem ingeridos. O seio da mãe se retrai com a mordida, e
concretiza-se a fantasia de que a agressividade destruiu o seio, a mãe, o objeto
de amor.

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O processo é em si adaptativo, como qualquer procedimento humano
característico. Não o fosse, e o padrão se teria extinto, ou a própria adaptação
da espécie estaria em perigo. É necessária certa dose de agressividade para
entrar no mundo, atacá-lo em suas oposições e moldá-lo às necessidades do
organismo. A agressividade faz parte do desenvolvimento do processo
secundário. Mira y Lopez utiliza em seu modelo de teoria da personalidade,
suporte teórico de seu Psicodiagnóstico Mio-Kinético (PMK), o termo
combatividade para definir a adequada elaboração da agressividade nas
relações com o mundo.

As fantasias destrutivas podem, porém, predominar. Isto ocorre sempre que a


angústia predomina sobre o amor, que a dor predomina sobre o prazer. A
relação com o mundo passa a ser sentida como uma relação onde tudo o que
se consegue é atacado e destruído. A amamentação perdida é o seio que foi
incorporado e destruído. A mãe pode ser perdida ou pela destruição ou por ser
protegida do contato destruidor. Nada satisfaz porque, se incorporado, foi
destruído e não serve mais. Muitos adultos vivem dentro desta modalidade.
Discutiremos os traços desta modalidade de incorporação com destruição
quando tratarmos do desmame. Agora nos prenderemos à organização da
dimensão mais grave desta modalidade, ou seja, a melancolia.

A melancolia está estruturada dentro da modalidade de incorporação com


destruição. A dimensão de destruir apresenta, ao nível da fantasia, uma
modalidade dupla. De um lado, o sentimento de que somos maus e
destruidores, ambivalente ao sentimento sempre existente de que somos bons.
Isto na prática aparecerá como um sentimento simultâneo de destruição e de
culpa porque, paralelo ao ódio, existe o amor pelo objeto destruído. Logo, o
objeto de relação será ambivalentemente estruturado como um objeto mau e
bom ao mesmo tempo. Como estamos dentro de uma modalidade oral,
portanto introjetiva, isto significa que, quando o objeto ambivalente é atacado,

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ou seja, na crise de ódio ou de destrutividade, o objeto é cindido e seu aspecto
mau é introjetado. Por exemplo, a mãe é externamente preservada e idealizada
como tendo apenas características boas, e a mãe má é introjetada.
Normalmente o que introjetamos é sentido como nosso, ou seja, a introjeção é
seguida pela identificação. Isto explica a estrutura autodestrutiva do
melancólico. Ataca permanentemente o objeto mau que foi introjetado e com o
qual se identifica. A estrutura superegóica é rígida e os ataques autopunitivos e
a autodepreciação acusatória constituem, portanto, uma compensação pela
destrutividade. O sentimento de compensação gera prazer, e, portanto, o
melancólico goza sua autodestruição. O modelo é similar às procissões
medievais de autoflagelamento, onde a dor é prazerosa, porque redime a
maldade e o pecado. A onipotência, como característica primitiva, estará
presente. Já que não pode ser o maior objeto de amor, será um monstro de
destrutividade.

O melancólico grave, em seus delírios, sente-se responsável por toda maldade


do mundo.

Abrahan mostra que para a emergência da melancolia são necessários vários


fatores, cada um dos quais podendo isoladamente pertencer a qualquer
estrutura patológica. São eles:

(1) Um fator constitucional. A maior ou menos força dos instintos de vida, ou


seja, uma predisposição inata para o desenvolvimento, poderá em maior ou
menor grau enfrentar ou sucumbir às frustrações durante o
desenvolvimento dos vínculos.

(2) Uma fixação da libido no nível oral. A organização oral exacerbada fixará
uma modalidade onde toda troca é oral. Encontramos estes traços nos

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prazeres anormais no ato de comer, nas manipulações da boca e maxilares
que acompanham as tarefas difíceis, ou seja, é necessário um prazer oral
diante de cada dificuldade.

(3) Uma grave lesão ao narcisismo infantil, provocada por sucessivos


desapontamentos amorosos. Aqui a fragilidade constitucional e a fixação
oral somam-se às frustrações reais ou fantasiadas. Um desmame
inadequado, a vinda de um irmão, os afastamentos da mãe, as internações.
A frustração exacerbará as modalidades defensivas orais.

(4) A ocorrência do primeiro desapontamento amoroso antes que os desejos


edipianos tenham sido superados. Dentro da evolução da libido, a criança
evolui para a configuração do triângulo edípico. Neste momento, as
frustrações provocarão uma regressão dos vínculos edípicos à modalidade
oral-canibalesca, ou seja, os processos de cisão, introjeção e identificação
recairão maciçamente sobre os objetos fundamentais de amor: a mãe e o
pai.

(5) A repetição do desapontamento primário na vida ulterior. É o que temos


indicado sempre como o fator desencadeante. O desapontamento
amoroso, o fracasso financeiro e os acidentes farão com que a regressão
seja estabelecida, permitindo a emergência do surto melancólico. Uma
angústia atual que não pode ser suportada, desencadeará a regressão.

A angústia do melancólico não pode ser indefinidamente suportada. Os


processos onipotentes ligados à autodepreciação e autodestruição são
periodicamente revertidos para a modalidade onidepressão. A identificação
com o objeto destruído é negada e surgem apenas as dimensões de amor,

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felicidade e poder. Ao ciclo destas oscilações alternadas de melancolia e mania
damos o nome de psicose maníaco-depressiva.

2.2.2 Amamentação

As implicações da amamentação como vínculo central da maternagem já foi


discutida em vários níveis teórico-evolutivos. Tentaremos agora examinar
alguns aspectos práticos da atuação materna e suas conseqüências no
desenvolvimento infantil. Em primeiro lugar, é importante ter claro que estamos
tratando de uma modalidade oral, ou seja, as fantasias ligadas à amamentação
são o núcleo da maternagem, mas não a própria maternagem. Estas fantasias
são organizadoras do mundo interno da criança e correlacionam-se apenas
fragmentariamente com a realidade externa e objetiva. Se o desenvolvimento
fosse diretamente correlacionado ao processo externo objetivo, a criança seria
tão mais ajustada quanto maior fosse a quantidade de leite produzida e a
duração do aleitamento. Isto não é verdade. O relacionamento com a mãe é
primordialmente qualitativo. Não importa apenas dar o seio. O que importa é
como o seio é dado, como as solicitações paralelas da criança são atendidas,
ou seja, não se está apenas incorporando o leite da mãe, mas também sua
voz, seus embalos, suas carícias. O bebê discrimina mais a mãe pelo cheiro e
pela voz, do que pelo olhar, visto que o rosto humano só será discriminado no
4º mês.

As carícias da mãe não só proporcionam intensa sensação de prazer, como


vão progressivamente dando à criança a configuração de seu próprio corpo;
portanto, vão auxiliando a configuração do esquema corporal. O eu da criança
começa a configurar limites, ou seja, a ter existência própria pelo contorno que
lhe é dado pelo corpo materno.

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As crianças criadas em instituições, apesar de todos os cuidados alimentares,
higiênicos e médicos, andam tardiamente, falam tardiamente, possuem um
esquema corporal prejudicado, têm dificuldades de estabelecer ligações
significativas e como fonte de satisfação usam freqüentemente condutas
auto-eróticas, portanto regredidas. Por exemplo, os balanceios e as
ritualizações rítmicas de movimentos. O leite e o asseio não são em si
suficientes para o desenvolvimento sadio. Mamar deve ser acompanhado de
um ritual prazeroso de conhecimento de uma figura amada e permanente. O
mesmo é válido para os cuidados higiênicos e os jogos. Por isto fracassam
tanto os programas institucionais onde voluntárias esporádicas vão brincar com
as crianças.

Estamos frizando que, ao nível da figura materna, o ponto fundamental é a


presença de uma mulher que seja figura estável, que seja capaz de dar amor e
que seja, ao nível qualitativo, capaz de compreender e atender as solicitações
básicas feitas pela criança. Não utilizamos o termo mãe, mas sim figura
materna, porque este é o elemento fundamental para a criança. Não importa se
a mãe é verdadeira ou não ao nível biológico. Importa, sim, que seja uma figura
capaz de criar laços estáveis de amor e de confiança na relação estabelecida
com o bebê. Alguns padrões básicos de relacionamento, como os
estabelecidos com a mãe, com o pai e com o triângulo edípico, são estruturas
inatas da criança, que para serem desenvolvidas requerem basicamente a
existência de uma mulher e de um homem adequados e estáveis.

Da mesma forma, não é dado único partir-se de que o seio real seja
indispensável para o desenvolvimento psicológico sadio. A maternagem é um
processo global de envolvimento mãe-filho. Caso a mãe não possua leite, ou
mesmo em caso de filho adotivo, é o relacionamento amoroso e corporal como
totalidade que alimentará os processos introjetivos da criança. Portanto,
mesmo não havendo leite no seio, a mãe será adequada se puder amar e se

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puder repetir todo o ritual existente na amamentação real. Tomar o filho ao colo
nu é dar-lhe um contato pele a pele prazeroso e configurador. Falar com ele,
embalá-lo, acariciá-lo, tudo lhe dará não só a própria configuração, mas
também o ajudará a organizar e amar o objeto primordial de toda a sua
evolução afetiva: sua mãe.

Com freqüência, a ausência de aleitamento materno está correlacionada a


problemas emocionais no desenvolvimento. Julgamos que não é
especificamente a falta do leite do seio que provoca estes problemas, mas
exatamente por existirem, ao nível da mãe, distúrbios emocionais sérios, cujos
sintomas implicam na rejeição do filho, é que, por somatização, o leite
desaparece. Mesmo ao nível da sabedoria popular conhecemos a expressão
indicadora de que “o leite secou” em conseqüência de susto ou frustração
violenta. As angústias inconscientes poderão bloquear a formação do leite.
Sabemos também que na origem do aleitamento há influências hormonais
(pró-lactina) e de estimulação local. Por exemplo, em algumas tribos são as
mulheres idosas que amamentam todas as crianças. A constante estimulação
local mantém a fluxo de leite quase que indefinido. Também na Idade Média,
as damas de leite eram escolhidas entre moças solteiras e sem filhos. Como
amamentar não era uma função nobre, tão logo chegava a hora de nascer um
sangue azul, as donzelas punham os irmãos

menores (e os namorados) a prover estimulação local. O leite jorrava, ela e sua


família eram levadas para o castelo, resolvendo-se a sobrevivência da família.

Queremos com isto mostrar que o prazer que a mulher tem de dar o seio e a
estimulação resultante das amamentações regulares constituem a base da
manutenção do leite. Ora, as mulheres que evitam dar o seio, que retiram ao
primeiro intervalo da criança, que desnecessariamente ficam buscando
alimentação complementar que espace a amamentação, são mulheres que em
geral têm este desempenho como sintoma de uma rejeição inconsciente da

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criança. Estamos ressalvando, é lógico, os casos onde a miséria e o trabalho
materno impedem o processo. É portanto julgamento precipitado atribuir os
problemas psicológicos evolutivos à carência de aleitamento materno.
Pensamos que o que falhou não foi o leite, mas a mãe no sentido pleno da
palavra. Podemos voltar às instituições, onde o suporte da mamadeira é o
travesseiro, onde a enfermeira não se relaciona com uma criança, mas com
vinte ou trinta traseiros a serem lavados. A criança não evolui, não porque o
aleitamento seja artificial, mas sim porque inexiste a mulher permanente que
ama e que se engaja na relação com o filho.

Em seu processo de desenvolvimento, a criança apresenta uma seqüência


definida na evolução de seu mundo psicológico, ou seja, o momento de
interrupção da amamentação concretizará diferentes posturas no
relacionamento com o mundo. Posturas estas que, embora iniciadas nestes
momentos, tenderão a se expandir para todo desenvolvimento futuro, ou seja,
todas as modalidades de relações futuras poderão estar permeadas por este
processo. Teremos, então, quatro momentos diferenciais na interrupção da
amamentação:

a) interrupção correta;

b) interrupção precoce;

c) interrupção no surgimento da dentição;

d) amamentação anormalmente prolongada.

a) Interrupção Correta

É senso comum, tanto para a pediatria quanto para a psicologia, que a


amamentação deve perdurar até o sexto mês. O desmame deve começar por

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volta do terceiro mês, quando é iniciada a introdução de sucos e papinhas.
Progressivamente as refeições infantis o vão substituindo, até que ao final do
sexto mês o seio pode ser deixado.

O seio, primeiro objeto de amor e ponto de partida para o desenvolvimento das


relações objetais, não pode ser perdido, antes que outros objetos possam
amados e valorizados para servirem de suporte a esta perda fundamental. Por
volta do terceiro mês a criança já está estabelecendo relações com a mãe.
Para Melanie Klein, situa-se entre o terceiro e quarto mês a passagem da
posição esquizo-paranóide para a posição depressiva, ou seja, as apreensões
cindidas passam a ceder lugar à apreensão de objetos inteiros. O
relacionamento prazeroso, ainda que dependente do seio, já pode ser efetuado
com a mãe como um todo. O pai passa a ser percebido constituindo nova fonte
de relacionamento prazeroso. Os alimentos que são progressivamente
introduzidos também dão prazer. Os brinquedos começam a existir como fonte
de prazer, embora, neste momento, só existam quando dentro do campo
perceptual da criança. O objeto permanente, ou seja, a capacidade de manter
na memória os objetos que saem do campo visual só estará estabelecido aos
oito meses. Mas, mesmo assim, os brinquedos e os jogos corporais são fontes
de prazer.

Podemos perceber então que o seio só pode ser perdido quando existirem
outras fontes de satisfação e ligações afetivas que compensem a perda. O
desmame progressivo permitirá que os novos vínculos sejam progressivamente
estabelecidos, à medida que o vinculo inicial com o seio for sendo reduzido. A
criança sentirá a perda. O desmame é, provavelmente, a maior frustração de
nosso desenvolvimento afetivo. Se perdido, porém, o seio, restam mãe e pai
amorosos e adequados; se perdido o leite, ganha-se a possibilidade de todos
os outros alimentos; se perdido o prazer de sugar, ganha-se o de morder, o de
jogar; a frustração é assimilada porque os ganhos são maiores do que a perda.

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b) Interrupção Precoce

Quando a amamentação é interrompida antes que surjam outros vínculos de


prazer que permitam suportar a frustração, o sentimento que fica é um
sentimento de carência, uma sensação de que é preciso comer, é preciso
incorporar e de que o que é recebido não basta. Para preencher esta falta, é
preciso sempre buscar relações onde as pessoas ou objetos sejam um eterno
vertedouro de prazer e alimento. Quando este sentimento se acentua, e isto
poderá ocorrer tanto por uma fragilidade constitucional da criança, quanto
porque a maternagem como um todo não é sentida como satisfatória, teremos
o desenvolvimento de uma postura oral captadora.

O tipo oral captador permanece na eterna expectativa de poder apenas se


amamentar em todas as relações que estabelece. O caçador de dotes ou
genrocrata é um exemplo social típico. Não pode estabelecer vínculos
afetivo-genitais com as mulheres, ou melhor, sequer as pode perceber direito.
Só pode vê-las como fonte de riqueza, de segurança econômica e social, de
prazer culinário. O cáften é seu desdobramento psicopático. Também
funcionam assim as mulheres que avaliam seus homens pelos carros, jóias e
propriedades das quais poderá usufruir. Os glutões, os beberrões, os
toxicômanos participam também da postura de uma eterna tentativa de
satisfação oral. Cumpre salientar que como regra geral são todos sexualmente
frios. Não desenvolvem a modalidade genital.

c) Interrupção no Surgimento da Dentição

O surgimento da dentição marca o aparecimento da concretização da


agressividade e da destrutividade. Já discutimos anteriormente estes aspectos.
Ao nível da amamentação, é um risco, para a evolução psicológica da criança,

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que o desmame seja interrompido em conseqüência das mordidas. Ao nível do
pensamento infantil, o processo é sentido como se a criança, ao tentar se
relacionar com o objeto de prazer, o tenha destruído e perdido. A criança gosta
de mamar, e neste momento gosta também de morder. Ao morder a mãe retira
o seio. Sucedem-se mordidas e interrupções, até que o seio é definitivamente
retirado. Fica o sentimento de que o objeto de prazer foi usado e destruído.

A fixação desta modalidade de incorporação com destruição poderá produzir


tipos sociais eternamente insatisfeitos com suas conquistas. Uma vez
conquistado um objetivo, é como se este houvesse sido destruído e tivesse
deixado de existir como fonte de prazer.

Os eternos primeiranistas de faculdade são em nosso meio social um exemplo,


que é abandonada após o primeiro ano; sucedem-se entradas igualmente
insatisfatórias em dois ou três cursos diferentes até que por pressão da vida
acaba-se por permanecer em algum, mas sem tê-lo definido realmente como
sua fonte de prazer profissional. Aquilo que foi conquistado é imediatamente
desvalorizado.

As mulheres são deslumbrantes e idealizadas até a primeira noite. Efetuada a


conquista, elas não mais merecem valor e as energias são voltadas para outra
conquista. O carro dos sonhos vira poço de defeitos tão logo seja adquirido. É
preciso buscar outro modelo, porque só permanece bom e idealizado enquanto
não destruído pela posse.

Paralelamente, esta postura de devorar e destruir tudo que é amado e


conquistado pode conduzir ao isolamento. Há uma espécie de temor difuso
(porque a fantasia e a modalidade de relação são inconscientes) de se destruir

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os objetos amados. E os objetos de amor mais significativos não podem,
portanto, ser trazidos para a destruição. O amor verdadeiro não será declarado,
para que o parceiro e o amor sejam preservados.

d) Amamentação Anormalmente Prolongada

A amamentação só poderá se estender se a criança refrear seu impulso para


morder. Não há mamilo que resista ao corte dos primeiros dentes. Mas quais
as conseqüências de se bloquear o aparecimento da agressão? Em primeiro
lugar, a agressividade oral não surge gratuitamente. Todo processo de
competição na luta pela vida implica numa atuação agressiva. É preciso que o
boi seja abatido para que tenhamos a carne, temos que derrubar a floresta
para cultivar a terra. Quando lutamos por uma vaga num emprego ou numa
universidade, conquistá-la significa derrotar os que não a conseguiram. A
agressividade é o elemento fundamental da combatividade, ou seja, a
capacidade do ego de exercer o processo secundário, de efetuar conquistas
para que o desejo possa ser realizado implica a participação de um impulso
agressivo.

Sabemos também que o desenvolvimento humano possui períodos críticos,


como o processo de “estampagem” nos animais. Um curió que não tenha
ouvido regularmente o canto da espécie durante o período de início de seu
canto, jamais o aprenderá adequadamente. Passado o momento de uma
aquisição, ela não poderá ser adequadamente estabelecida em um período
posterior. E este é o momento de organização da agressividade real, é o
momento de morder para se alimentar. Vedando-se sua manifestação, corre-se
o risco de se extinguir o impulso para competir e combater, de se configurar
uma estrutura de relação onde, mesmo havendo competência, falta a
capacidade da conquista. Com freqüência, todos nós conhecemos tipos assim.
É bom profissional, mas não consegue emprego. É excepcional nos treinos

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esportivos, mas fracassa durante as competições. Sua vida será um eterno
desperdício de talento, porque jamais lutará pelo lugar que sente que merece.
Acomoda-se e passivamente mantém o que já possui. Lutar é sempre sentido
como um risco de perder o que já tem.

2.2.3. Conclusão

Vimos que a amamentação é um elemento central da maternagem. Que


organiza a evolução afetiva normal, mas que pode ser perturbada pela
inadequação afetiva da mãe, pela maior fragilidade constitucional da criança e
por fatores acidentais. Como núcleo da maternagem, as distorções na
amamentação são sintomas de que há problemas emocionais ao nível da
criança ou da mãe. O processo de desmame deve ser progressivo e situado
entre a percepção da mãe (e outros objetos de amor) e o início da dentição.
Distorções no processo podem concretizar fantasias infantis de carência ou de
destrutividade, provocando modelos de relação distorcidos, que poderão
perdurar por toda a vida.

2.3 Interação Mãe-filho: Modelo Bidirecional de Efeitos

Clara Regina Rappaport

A hiperatividade, segundo Laufer e colaboradores, pode ser caracterizada por


choro excessivo, marcantes distúrbios digestivos (freqüentemente referidos
como cólicas) e de sono (dificuldade em adormecer, períodos curtos de sono),
comportamento queixoso. Para a criança nestas condições, uma quantidade
normal de cuidados maternos pode ser inadequada. Ou, como dizem esses
autores, parece paradoxal que “uma mãe aparentemente normal e adequada,

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que criou, anteriormente, filhos saudáveis e alegres, agora, inexplicavelmente,
a despeito de seus esforços, tenham uma criança tensa, cronicamente triste e
exigente”. (p. 465).

Segundo esses mesmos autores, “algumas mães têm um sentimento


inconsciente, às vezes consciente, sobre sua adequação como mulheres,
esposas e mães. Uma criança com esse tipo de comportamento (isto é, a
hiperatividade) parece oferecer a elas a prova concreta de sua inadequação.
Isso gera na mãe intensas tensões e maiores esforços para moldar a criança a
padrões mais aceitáveis”. (p. 465-466).

Para essas crianças, a mãe é usualmente malsucedida e a hostilidade


inconsciente em relação à criança tende a se desenvolver, e esta, por sua vez,
responde de maneira a causar distúrbios emocionais secundários.

Elas constituem um tipo de criança que não inclui em nenhum esquema


familial. O padrão peculiar de respostas dessas crianças é explosivo e
impulsivo, além do fato de ser particularmente intolerável a muitos pais, que
acham difícil aceitar em seus filhos comportamentos impulsivos.

2.3.1. Evidências Empíricas dos Efeitos da Interação Mãe-filho

Há algum tempo os psicólogos se preocupam com a interação mãe-filho (I-M-F)


nos primeiros meses e anos de vida como determinante fundamental de certas
características de personalidade, mais ou menos permanentes, que se
manifestam no processo de desenvolvimento da criança.

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Tão grande seria a influência destas primeiras experiências, que a ausência
materna motivada por morte, abandono, guerra, hospitalização (da própria mãe
ou da criança) levaria, sem dúvida, a distúrbios graves no processo de
desenvolvimento da personalidade, conforme mostram os estudos detalhados
de Freud e Burlingham (1949), feitos com crianças separadas dos pais e
colocadas nos abrigos antiaéreos em Londres, durante a 2ª Guerra Mundial.

Os distúrbios ocorriam em todos os aspectos da vida da criança em que o


componente afetivo é o “motor do desenvolvimento”. Entre esses aspectos,
Anna Freud cita a aprendizagem da linguagem e da noção de propriedade nos
primeiros dois anos de vida.

Spitz (1945) chama a atenção para os atrasos de desenvolvimento que


ocorrem em crianças institucionalizadas, atrasos estes que o autor atribui à
ausência de contado, ausência de afetividade, ausência, enfim, da figura
materna.

Baseado em pesquisas com crianças adotadas após um período prolongado de


institucionalização (em torno de 30 meses) na infância inicial, Goldfarb (1945)
afirma

que este período, no qual as crianças recebem menos afeto e menos


estimulação do que as crianças criadas no lar, é profundamente pernicioso
para seu desenvolvimento psicológico.

Existe, ainda segundo Goldfarb, evidência da persistência deste efeito nocivo,


mesmo após a colocação destas crianças em lares adotivos selecionados, com

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supervisão de pessoal especializado e em alguns casos até com tratamento
psiquiátrico.

A experiência inicial com alto grau de privação (afetiva, social e de estimulação


intelectual) na criança institucionalizada resulta, aparentemente, numa fixação
quase constitucional nos níveis mais primitivos de comportamento conceitual e
emocional; ausência de desenvolvimento na organização emocional,
relacionamento social e na habilidade intelectual. Ocorre ainda uma
passividade generalizada na personalidade, tão forte que impede a criança de
se beneficiar com novos tipos de estímulos fornecidos pelo ambiente, incluindo
os de relacionamento humano, e assim as reações emocionais e intelectuais
iniciais se mantêm durante toda a infância e mesmo na adolescência.

Estudos deste tipo despertaram nos psicólogos, das mais diversas formações
teóricas, o interesse e a necessidade de pesquisar, de observar e identificar
quais os fatores presentes neste relacionamento mãe-filho, que determinam o
subseqüente desenvolvimento de características de personalidade, ou, mais
especificamente, do repertório de comportamento da criança.

Deu-se uma grande ênfase à influência que a personalidade da mãe exerce na


da criança, uma vez que esta é ainda pouco estruturada.

Podemos citar nesta linha, que Cadwell e Hersher (1964) chamam de modelo
teórico monádico (isto é, unidirecional) de I-M-F, o estudo longitudinal
conduzido no Fells Institute (Badwin, Kalhorn e Breeze, 1945), que enfatiza a
influência dos pais, seu nível sócio-cultural, local de residência (cidade,
campo), idade, práticas de crianças adotadas, como determinantes de algumas
características de personalidade da criança.

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Na literatura especializada, Freud (1962) é considerado o introdutor do tema na
Psicologia, pois teria mostrado como os padrões de conduta dos pais
concorrem para a formação de ansiedades e neuroses. Mais recentemente,
outros representantes da linha psicanalítica podem ser citados. De um lado
Erikson (1972) ressaltou a importância do tipo de atmosfera emocional criada
pelos pais, no lar, desde a mais tenra idade, como fundamental para o
desenvolvimento de uma personalidade saudável, bem estruturada. De outro,
Melanie Klein (1973) salientou o tipo de relacionamento criança-seio que, no
decorrer do primeiro ano de vida, lentamente se transforma na relação mais
complexa, criança-mãe, como a base para um desenvolvimento saudável ou
patológico da personalidade.

Psicólogos da linha da aprendizagem social, por exemplo, Mussen, Conger e


Kagan (1974), também atribuem importância ao tipo de atmosfera oferecida
pelos pais como determinante, nos filhos, de uma personalidade adaptada à
sociedade, ou, por outro lado, não adaptada, com a presença de ansiedades,
dificuldades de relacionamento, etc.

As afirmações de Mussen, Conger e Kagan baseiam-se em trabalhos


anteriores, principalmente no modelo circunplexo de comportamento materno
proposto por Schaefer em 1959. Este autor, considerando que a experiência
global da criança é o fator realmente importante no desenvolvimento da
personalidade, realizou duas pesquisas no sentido de classificar o
comportamento das mães em relação a seus filhos do ponto de vista emocional
e social.

Na primeira pesquisa registrou, através do método de observação direta, o


comportamento de 56 mães em interação com seus filhos de 1 mês a 3 anos

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de idade e, na segunda, realizou entrevistas domiciliares com 34 mães de
crianças cujas idades variavam de 9 a 14 anos.

Os resultados da primeira pesquisa, que foram confirmados pela segunda,


levaram Schaefer a propor duas dimensões bipolares de comportamento
materno, quais sejam: autonomia x controle e amor x hostilidade.

A primeira dimensão seria representada por autonomia num dos extremos e


ansiedade materna, intromissão preocupação com a saúde, exigência para
realização, excessivo contato, promoção de dependência e envolvimento
emocional, no outro. O extremo positivo da segunda dimensão seria avaliação
positiva da criança, igualitarismo e expressão de afeto; e o negativo seria
ignorar, punir, usar de rigidez e do medo para controlar a irritabilidade.

Mussen, Conger e Kagan mantêm a designação de autonomia x controle para


primeira dimensão, mas preferem usar aceitação x rejeição para a segunda,
caracterizando os pais que aceitam a criança como aqueles que, criando uma
atmosfera democrática, de respeito à personalidade da criança, e em que
predominam práticas disciplinares de explicação e reforço, tendem a promover
o desenvolvimento de uma criança segura, com bom ajustamento, etc. Já os
pais situados no outro extremo da escala, os rejeitadores, ou seja, hostis em
relação à criança, que fazem grande uso de punição física, tendem a promover
o desenvolvimento de uma criança ansiosa, insegura e com dificuldade da
adaptação social.

Nesta mesma linha de investigação de comportamentos molares, embora


reconhecendo que “as crianças vêm ao mundo com fortes predisposições
genéticas” e que “as crianças interagem com seus pais e não são
simplesmente as vítimas inocentes dos adultos”, Munsinger, já em 1971,

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mostrou como diferentes práticas disciplinares adotadas pelos pais levam a
diferentes tipos de personalidade emergente nas crianças.

Baseado também no trabalho de Schaefer, considera como dimensões


fundamentais destas práticas as dicotomias:

Amor (mãe afetiva, aprovadora, compreensiva, que aceita a criança, usa


exemplos e explicações na disciplina, dá respostas positivas aos
comportamentos de dependência) x hostilidade (mãe rejeitadora, fria,
desaprovadora, autocentralizada, usa punição física e reforço negativo) e
controle (muitas restrições, rigidez) x autonomia (promoção de independência).

Segundo esse autor, várias combinações dessas categorias resultam em


traços específicos de personalidade na criança. Assim, quando os pais usam
amor e controle “produzem” uma criança submissa, dependente, polida,
obediente, que é vista e não ouvida e que tem pouca criatividade. Quando
usam hostilidade e controle levam ao desenvolvimento de um comportamento
neurótico, dificuldade de adaptação social, auto-agressão, baixo nível de
heteroagressividade, pobre autoconceito e sentimentos de culpa.

Os do grupo autonomia-amor tendem a produzir “a criança ideal”: boa


adaptação social, criativa, agressividade adequada, independente, simpática.

Já uma atitude de hostilidade-autonomia desenvolve comportamento


delinqüente: alta agressividade, pouco respeito pela autoridade, ausência de
controles internos, ausência de culpa.

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Na área do desenvolvimento cognitivo, Tulkin e Kagan (1972) consideram que,
embora os psicólogos estejam levando a sério a idéia de que as experiências
da infância podem influenciar o desenvolvimento, as relações funcionais
especificas entre as experiências iniciais e os estilos cognitivos permanecem
desconhecidas.

Examinando as experiências específicas de crianças pertencentes a diferentes


classes sociais, verificaram que mães de classe média se envolvem mais sem
interações verbais com seus filhos e provêm maior variedade de estimulação.
Verificaram ainda que as diferenças de comportamento materno encontradas
situam-se mais na área de interações verbais e estimulação cognitiva, havendo
diferenças mínimas nos aspectos afetivos da interação.

Também Campbell (1973) refere-se a vários estudos recentes que focalizaram


as relações entre tipos de interação pais-criança e características cognitivas
particulares da criança. De forma geral, os resultados indicam que intromissão
dos pais impede o desenvolvimento da habilidade espacial (Bing, 1963), do
controle da atenção (Bee, 1967) e de um estilo cognitivo independente do
campo (Dyk e Witkin, 1965).

Quando estudou I-M-F numa situação de resolução de problema, Bing


descobriu que mães de crianças com alto nível de capacidade verbal eram
mais diretivas do que mães de crianças cujo nível da habilidade espacial era
mais elevado.

Usando procedimento similar, Bee verificou que pais de crianças dispersivas


ofereciam mais direção e estruturação do que pais de crianças não dispersivas.

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Dik e Winkin verificaram que crianças menos diferenciadas em vários aspectos
do funcionamento cognitivo, quais sejam controle de impulso e capacidade
para experiências articuladas, são filhos de mães menos diferenciadas nestes
mesmos aspectos.

Em suma, esse modelo monádico, que Bell chama de unidirecional, dá ênfase


à maneira como os adultos agem sobre a criança, não considerando a
possibilidade de que a influência seja recíproca. Nesse trabalho, Bell critica as
teorias que enfatizam apenas o papel dos pais no processo de socialização da
criança, pois este tipo de abordagem unidirecional de efeitos corre o risco de
não reconhecer diferenças no comportamento dos pais devidas a
características congênitas da criança (diferenças de comportamento entre
grupos de pais foram atribuídas aos efeitos exercidos sobre eles por uma
limitação na habilidade de lidar com o ambiente associada com desordens
congênitas da criança afetada).

O processo de interação pais-criança é complexo e depende de inúmeras


variáveis. A esse propósito nos parece pertinente lembrar que, já em 1959,
Peterson e colaboradores chamaram a atenção para o fato de que o
comportamento infantil é condicionado pela interação de múltiplos fatores e
para a dificuldade conseqüente de defini-los, mensurá-los e estabelecer o grau
de influência de um ou outro.

Se por um lado, o comportamento infantil pode ser atribuído a múltiplas causas,


o mesmo pode ser dito do comportamento dos pais. Estes, sujeitos a vivências
e tensões oriundas de várias fontes, irão atuar sobre seus filhos, em função
das características diferenciais de cada um deles e das circunstâncias
especiais que estejam vivenciando.

• Caso Hans

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A partir deste texto, ficou claro para os psicanalistas, a compreensão da
linguagem pré-verbal (fantasias, jogos, brincadeiras), como eles fariam este
trabalho.

Hans tinha cinco anos, quando começou a apresentar a zoofobia, no caso, o


medo dos cavalos, este é o sintoma da Hans. Só que o método de Freud foi
modificado, pois o pai de Hans era paciente dele. Na verdade, funcionava mais
como uma supervisão, uma vez que Freud só entrou em contato com o menino
apenas uma vez. Depois desta entrevista, Hans apresentou melhoras. Tem um
momento em que ele começa a produzir mais por saber que seu pai levaria os
conteúdos para Freud.

• Histórico:

Até a referida idade, Hans era uma criança alegre, não tinha passado por
nenhuma vivência traumática que pudesse ter gerado o sintoma. Quando tinha
cerca de 3/5 anos quando começa a fazer perguntas, sobre a “coisinha de
fazer pipi”, pergunta à mãe se as mulheres também tinham e ela lhe responde
que sim. Ou seja, ela não fala da diferença sexual e reprime a atividade
masturbatória (ameaça cortar o pipi dele ou atar as mãos).

Logo depois, a mãe do Hans engravida e ao perguntá-la sobre a barriga, ela


lhe conta a história da cegonha.

Antes de se instalar o sintoma, ocorre alterações de humor, crises depressivas,


oscilação emocional, ansiedade, insônia. Estes são sinais da instalação de um
sintoma, tanto que depois, seus familiares começam a ficar alertados.

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O Hans apresenta os sintomas na rua, achando que não veria a mãe em casa.
E depois, mesmo saindo com a mãe, tem uma nova crise. Um dia, após ter
saído com o pai, vê um cavalo caindo no chão e esperneando. A partir daí,
começa a fobia dele. Já não quer sair de casa, pois tem medo de cavalos.

Em outra situação, num campo, ele estava com uma amiguinha, o pai diz para
ela para não colocar a mão na boca do cavalo, pois este pode morder.
Paralelamente a isso, o Hans adoece, tem uma gripe forte (somatiza) e tira as
amídalas.

Freud não trabalha esta questão da cirurgia. No entanto, esta para Hans, cortar
as amídalas, seria uma ameaça de castração. Poderia então, na cabeça dele,
cortar também o seu pipi. Foi para ele, uma vivencia de castração.

Muitas coisas que hoje se perguntaria ao pai do Hans, não foi investigado,
naquela época, por Freud e que teria ajudado na compreensão do caso.
Aberastury vai falar disso.

Quando Hans chegou a Freud, ele estava na fase fálica, não foi investigadas a
fase oral nem a gravidez da mãe, somente a fase anal, pela queixa que o pai
do Hans trazia de constipação do filho, devido a um controle severo da mãe.
Percebe-se que ele resistia bastante a submeter-se ao controle esfincteriano.

• Interpretação de Freud – sobre o cavalo:

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Hans desenha o cavalo com uma sombra preta e óculos, sendo que o pai de
Hans tinha bigodes e usava óculos. De certo modo, o cavalo para ele
representava a figura do pai (triângulo edípico, que o afastaria da relação inicial
com a mãe). O medo de o cavalo morder está associado à prática da
masturbação, a ameaça de castração. Por outro lado, Hans estava muito ligado
a mãe e a sua fobia progrediu tanto, que já não dormia no quarto, com medo
do cavalo entrar lá.

Freud conclui que o medo do objeto fóbico, a saber, o cavalo, é um


deslocamento do medo do pai, na fantasia de ser castrado por este. No
deslocamento, nomeia-se um objeto em prol daquele objeto que não pode ser
denominado como fóbico (pai).

• A cirurgia da amídala

Está referida à castração e ele, em sua fantasia, desloca a sua visão do


médico, a imagem de um cavalo branco. Quando ele se masturbava; a mãe lhe
dizia que ia castrá-lo ou atar-lhe as mãos e o pai da amiguinha, por sua vez diz
que o cavalo morde as mãos. Então, o morder do cavalo está associado à
masturbação.

• Identificação ao Pai

É mostrada através da sua identificação ao cavalo, quando diz que este


esperneava, pois costumava reagir deste modo quando não queria ir ao
peniquinho. Ou quando desenhava o cavalo com uma mancha, que fazia
lembrar um bigode. Neste desenho, Freud chama Hans e dá uma
interpretação: da fobia do cavalo ser derivado do seu amor pela mãe. Bem

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como do seu medo e amor por seu pai. Hans a partir daí, vai fazer uma
elaboração destes temas. A criança apesar de não conseguir verbalizar,
entende o que se diz para ela.

• Gravidez da mãe

Freud percebe que as crianças são capazes de perceber a gravidez da mãe, o


próprio Hans começou a apresentar os sintomas, no começo da gravidez dela.
Isso foi uma surpresa para ele. Uma vez que todas as brincadeiras dele têm a
ver com carregar e descarregar (gravidez).

Na brincadeira, Hans também comunica aos pais, além de elaborar, a gravidez


da mãe. Mostra que ele já está vivendo a situação, mesmo que os pais tenham
tentado esconder.

Quando a mãe entra em trabalho de parto, os ruídos da mãe são percebidos


como uma tosse, porém quando ele entra no quarto, vê uma bacia com sangue
e a mãe deitada na cama. Essas mensagens contraditórias contribuem para o
nascimento da neurose. A sua concepção da cegonha não condizia com o que
ele via.

Hans diz que o pipi da sua mãe tinha sangrado e que o dele não. Depois
percebe que sua irmã também não tem, ou seja, reforça a hipótese da mãe que
todos possuem um pênis, e que sua irmã foi castrada (ameaça). Nesta época,
Freud nem havia pensado na questão da transferência.

• Anna Freud

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Nasceu em 1895, no ano em que nasceu a Psicanálise. Bleuer, seu amigo e
médico, concluiu como Freud, que as pessoas falavam, trazendo as
lembranças que originavam o sintoma. Inicialmente, utilizavam a hipnose, com
essa função.

Freud, segundo Bleuer, ficou um pouco decepcionado, de ter nascido uma


menina. Esta por sua vez, tinha interesse intelectual, que era considerado pela
época como uma característica masculina.

Anna Freud foi uma mulher com características diferentes das mulheres de sua
época, desenvolveu um afeto maior com o pai, cuidou dele até sua morte.

Fez análise com Freud, pois a sociedade vienense só permitia analistas que
fizesse análise com pessoas da sociedade. Começou atendendo adultos,
Dorothy tinha quatro filhos, que ela também atende e depois, amigos destas
crianças.

Traça um paralelo com os adultos e as crianças em terapia. Sua primeira


colocação foi a de que, para trabalhar com crianças é necessária uma
preparação, que ela chama de:

• 1º Passo: Treinamento ou Esquentamento.

Quando a criança desenvolve um sintoma, ela não tem essa compreensão do


que está acontecendo, de que o sintoma está atrelado ao momento atual. Ou
seja, as pessoas a sua volta começam a perceber a diferença no humor, por

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exemplo, perturbar a aula toda, não ficar parada, etc. Ela pode até achar
engraçado, pois não tem consciência do que está acontecendo, como vê os
adultos.

O primeiro passo seria mostrar a criança por que ela está em tratamento, ou
seja, conscientizá-la de que se os pais procuraram um tratamento, é por algum
motivo. O tratamento deve levá-la a um insight a respeito da própria doença.

Anna possui uma postura bastante pedagógica, o que se faz é bem


semelhante, mas não no sentido de uma preparação. O tratamento leva as
crianças a compreenderem que, se elas vão ali é para tratarem suas próprias
questões.

• 2º Passo: Aliança.

A aliança se faz no sentido de que o analista e a criança vão tentar resolver o


problema, que ela saiba qual é o papel do analista e o que eles vão fazer.

O primeiro momento do insight é que a criança vai poder decidir ou não pelo
tratamento, através do conhecimento maior do que se trata a terapia. Por isso,
a criança deve explorar o ambiente, que deve ser propício. A partir disso,
faz-se uma aliança com ela, deixando claro, de que nem sempre vão acontecer
coisas agradáveis ali, mas que são necessárias para que ela se cure.

• 3º passo: Falar da importância da cura.

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Mostrar para a criança que ela pode ter uma expectativa positiva do
tratamento.

Existem sintomas que não incomodam tanto a criança e mais os pais, como por
exemplo, tirar notas baixas, ser agitada na escola, etc. Ela também pode ter um
ganho com esses sintomas, pois percebe que incomoda aos outros,
principalmente os pais, chama atenção deles para si. E outros sintomas que
realmente os incomoda, como terror noturno, fobias, encoprese noturna,
principalmente se for uma criança maior, por volta dos seus sete anos de
idade.

Quando não tem um sofrimento da criança, Anna Freud, considera importante


que a criança perceba o sofrimento que ela está impondo aos outros, as
conseqüências do seu sintoma. Bem como, a conseqüência do tratamento, o
que se busca com ele.

• Papel do Analista

Segundo a autora, o papel do analista seria o de induzir a criança uma


confiança, espontaneidade. Isso implica, muitas vezes, em fazer alianças
mesmo contra os pais, como em alguns casos. O analista ficaria com o controle
da situação e atuaria como o superego da criança. Vai falar que, quanto melhor
a relação com os pais pior a ligação com o analista e vice-versa.

No final, vai trabalhar os pais concomitantemente.

Em outras palavras, o superego da criança está em formação e se dá na


relação com os pais. Quando estes possuem valores desestruturados ou

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repressores, agressivos, o mecanismo seria o de fazer uma aliança com a
criança contra os pais. Por exemplo, se os pais não deixam a criança se sujar,
a analista vai induzi-la a fazê-lo. O que resultaria num afastamento dos pais e,
conseqüentemente, o analista passaria a ter maior influência sobre a criança.

Essa aliança é fator complicador ao tratamento, pois os pais acabam tirando a


criança do tratamento. Na realidade, a aliança visa fazer o vínculo maior com a
criança e diminuir a influência dos pais da mesma. A função do analista seria a
de influenciar a reestruturação da criança.

Para Anna Freud, ceder aos caprichos da criança é considerado útil para o
tratamento. Fala em analista útil, ou seja, que faz coisas que a criança
demanda, tornando-se útil para ela, por ceder aos seus caprichos. Uma vez
que o vínculo está estabelecido, é que o analista vai colocando, aos poucos os
limites, pedir para que ela faça suas próprias coisas. Aqui começa o que vai
denominar de processo analítico.

Resumindo, a função do analista seria a de fazer com que a criança se


entregue, que não resista ao tratamento, que traga sonhos, etc. Em fim, que
ela invista o máximo no tratamento.

• Associação Livre/Transferência.

Considera que a criança não tem como associar livremente, mas que ela possa
ser dirigida a isso. Não acredita no vínculo transferencial, uma vez que para
ela, a criança ainda está muito ligada nas suas primeiras relações de amor, que
são seus pais, ou quem cuida dela.

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Apesar disto, Anna Freud acha que o analista deve possuir métodos para que a
criança fale e com que possa se estabelecer uma relação, ainda que não de
transferência.

• ​Métodos

• 1º método: Interpretação dos Sonhos.

Este seria, segundo ela o principal método para se trabalhar, o analista deve
mostrar interesse na interpretação dos sonhos, mostrar a sua importância. Os
sonhos infantis são mais fáceis de serem interpretados do que o dos adultos,
pois possuem menos censura. E a criança acha divertido falar dos sonhos e
daquilo que está pensando ou vivendo. Muitas vezes, nem precisa ter uma
estrutura intelectual muito desenvolvida para que a criança possa fazer este
trabalho.

• 2º método: Devaneios ou sonhos diurnos.

Os adultos têm mais vergonha em falar das fantasias, devaneios (imaginam


que tem o controle sob ela e tem vergonha por isso). A criança não tem
vergonha da sua fantasia, não tem tanta censura.

• Fala de três tipos de devaneios:

1. Baseados em acontecimentos recentes.

2. Devaneios em série.

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3. Mudanças de situações e personalidades, mas conservam o tema, por
exemplo, bom/mal, mocinho/bandido...

• 3ª método: Desenho

Este é fundamental para a sua comunicação para fazer a criança falar. Anna
Freud não interpreta o desenho, antes a sua preocupação é com o tema
trazido, o que a criança diz a respeito do desenho, o que ela está
comunicando.

Os desenhos nem sempre vão estar presentes na terapia, já os sonhos sim,


portanto, estes só podem ser interpretados esporadicamente.

• A análise e a Educação

Essa é a principal diferença entre a análise da criança e do adulto, pois a


análise da criança vai ter uma abordagem pedagógica, sendo que o analista vai
ocupar o lugar de educador na análise. Os motivos pelos quais, Anna Freud
defende esse tipo de abordagem seriam:

Imaturidade do Ego.

Superego em estruturação.

O adulto em análise consegue dar uma direção aos impulsos conflitivos do Id,
do Ego e do Superego. Já a criança não está ainda estruturada, a neurose
infantil é uma ocorrência interna, mais existe uma influência externa muito
grande para que ela se instale. As mesmas pessoas que cuidam dela são as

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que a influenciam a ponto de fazer com que a doença se instale, ela ainda está
internalizando os modelos dos pais. Enquanto no adulto, já passou por este
processo, sendo que a neurose é basicamente interna.

A neurose na criança se dá muito em criança função do meio externo, uma


resposta à demanda dos pais e é lugar de objeto amado que o analista vai
tentar reverter esse processo.

O analista para Anna Freud tem que se colocar no lugar do Ego ideal dos pais
e ainda, ter uma autoridade maior que a deles. Diz que esta postura do analista
pode gerar problemas, mas se eles aprenderem algo com a doença da criança,
vão permitir o trabalho. Senão, pode haver uma rivalidade entre os pais e o
analista. Por este motivo, é muito importante que o analista crie um vínculo de
confiança também com os pais.

• ​Vantagens de se trabalhar com crianças

1. Em relação ao ambiente: no caso do adulto, não se tem um acesso ao


ambiente, só se for no caso de psicose. No trabalho com crianças, o
psicanalista pode ir a escola, chamar o pai, a mãe, a babá... Pode falar com
o professor, se achar necessário. Esses acessos não são proibidos e ainda
há a possibilidade de dar orientações aos pais, etc.

2. É um processo mais rápido: como a criança tem poucos anos de vida,


precisará fazer um percurso menor do que o adulto, este tem mais o que
reconstruir da sua história. A criança, de um modo geral, está mais
propensa a investir, transformar, enquanto que o adulto está mais arraigado
aos seus mecanismos de defesas.

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3. Atenuação do Superego: é mais fácil no trabalho com crianças, de
desmontar as repressões, por não estar completamente estruturado, no
adulto é mais difícil. Ao se trabalhar a criança, as suas relações também
tendem a mudar. A criança aqui é vista como um agente transformador.

• Melanie Klein

Interessou-se por psicanálise na época da 1ª Guerra, principalmente em


psicanálise com crianças. Foi para Berlim e desenvolveu sua teoria com Anna
Freud. Sua teoria apresentou uma série de divergências com a psicanálise e
houve até uma tentativa de expulsá-la da Sociedade Britânica de Psicanálise.

Freud impediu o conflito entre ela e sua filha, Anna, evitando o rastreamento da
psicanálise. No entanto, não houve uma aproximação direta de Melanie Klein
com Freud. Conseguiu divulgar bastante a sua teoria, que deu a origem a
chamada Escola Inglesa (Psicologia do Ego).

O importante da teoria kleiniana é baseado, principalmente nestas


divergências, são elas: Divergência: Angústia Principal. Essa angústia seria o
motor para o desenvolvimento psicológico da criança. Gerada por pulsões
agressivas e sádicas que a criança traz desde o momento que nasce. Estas
pulsões seriam regidas pelas pulsões de morte, enquanto que, as pulsões
libidinais seriam regidas pelas pulsões de vida.

Como a criança tem estas pulsões como motor, faz uma relação com a mãe,
parcial, a princípio. Vai se relacionar com a mãe através do seio, não biológico,
mas fantasmático, criado, percebido pelas fantasias. Fala de pessoas

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corporais, sendo este corpo, porém, sempre fantasmático, ou seja, criado nas
fantasia projetas neste.

A criança tende a projetar as pulsões agressivas no seio da mãe,


independentemente do que foi oferecido a ela (aqui difere de Winnicott).
Defende-se, projetando as suas pulsões agressivas, embora na verdade, a
ameaça é do seu próprio mundo interno. Logo, esse seio vai se tornar
ameaçador para ela, precisando se defender dessa ameaça, vai produzir
mecanismos de defesa, são eles:

1. Splilling – divisão - dissociação: transforma o seio em dois, dissocia em seio


bom e seio mau. Este é constituído a partir das pulsões agressivas e as
pulsões libidinais. O que é passado de positivo pelo seio bom é introjetado
como experiências boas, como amor, conforto, etc.

2. Conceito de conflito: para Freud é o impasse entre o desejo inconsciente e a


defesa, enquanto para Melanie Klein, seria a relação de amor e ódio, para
com os objetos internos. A luta para ela é dos objetos internos e não
externos como defende Freud.

3. Fases do Desenvolvimento: Freud coloca como uma questão evolutiva,


biológica. Melanie Klein afasta totalmente essa idéia, para ela essas fases
se sobrepõe, não coloca as pulsões como prioritárias nas fases orais, anais,
fálica e latência, como defende Freud. Antes substitui as fases do
desenvolvimento pelo que vai chamar de posições, são elas:

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1. Posição Esquiso-paranóide: É a posição das crianças ao nascer até os 3
meses de idade. Nesta fase, as crianças fazem uma dissociação, divisão
do objeto em dois: seio bom e seio mau, por exemplo, nas brincadeiras,
na clínica, dissocia o mocinho do bandido, o bem do mau. Esse
mecanismo vai estar sempre em ação e é necessário nesta fase, mas não
poderá ficar na dissociação para o resto da vida, pois tal processo,
caracterizaria a patologia. Ocorre o mecanismo da projeção e da
introjeção, onde vai projetar os impulsos agressivos e introjetar os objetos
maus, causando angústia.

2. Posição Depressiva (a partir dos 3 meses): Quando o desenvolvimento


da criança vai avançando, ela passa a ter a capacidade de integrar esses
objetos parciais para percebê-los como objetos totais. Quando entra na
posição dispersiva, começa a perceber a mãe como objeto bom e mau.
Vai ter nesta posição, a angústia dispersiva, por que vai sentir a ausência
do objeto, que não é só dela e que em determinados momentos vai se
afastar.

A perda do objeto é sentida como ameaça e culpa, a angústia dispersiva se dá


pela projeção da agressividade, a criança se sente culpada, por achar que
pode destruir esse objeto de amor, a levando então, ao sentimento de angústia.
Com mais ou menos 3 meses, a criança começa a se separar da mãe, passa a
controlar seus impulsos agressivos (fantasias de destruição). E com isso vai
formar o Superego, este para a autora vem antes do complexo de Édipo,
diferentemente, de Freud.

• Superego – para Melanie Klein, é um movimento interno, que parte do


psiquismo do indivíduo e não algo que vem da cultura, da lei, como defende
Freud. Essa culpa vai gerar o superego sádico ou aterrorizante, bem como

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o superego benevolente. Esse superego precoce surge no primeiro ano de
vida, enquanto que para Freud se forma no período fálico.

Dois aspectos do Superego:

• Superego sádico – quando o bebê projeta os impulsos agressivos e a


culpa, que faz com que a criança os controle. Vai implicar em um superego,
só que a criança também tem objetos bons que ela introjeta, o que equivale
ao superego benevolente.

• Superego benevolente – quando introjeta objetos bons, pulsões libidinais,


sentimentos de amor.

Quanto maior a culpa, maior a agressividade, mais sádico o superego.

Outro aspecto importante na posição depressiva é o luto. A criança começa a


lidar com a perda do objeto, que era sentida a princípio, como uma ameaça. No
luto vai elaborar a perda, buscando substitutos, já a melancolia, a perda é total,
a perda do objeto é a perda do eu.

A criança vive inicialmente o luto, tentando elaborar a ausência do objeto,


esperando sem tanta angústia que o objeto volte, neste momento, ela já pode
elaborar o luto de alguma forma.

Na posição depressiva, a criança usa uma defesa maníaca para não sofrer a
perda, ela se sente impotente e despreza o objeto para não senti-la.

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​ ​Complexo de Édipo Precoce

Acontece também na posição depressiva, porém a formação do superego vem


antes. O bebê já percebe a diferença sexual, através da fantasia, através da
relação dos pais, das sensações clitoriais da menina e no pênis do menino.
Para ela é como se os dois fossem um só, uma figura combinada – mãe com
pênis do pai. Como se no interior da mãe tivesse o corpo do pai.

A criança tem um desejo inconsciente de penetrar no corpo da mãe e se


encontra ainda em adultos que tem a fantasia de querer penetrar tudo na vida
dos outros. Essas fantasias criam um ciúme destrutivo, faz com que tente uma
separação desse corpo combinado.

A menina vai ter acesso ao pênis do pai e o menino também. Faz uma
identificação com o corpo materno que contém o corpo do pai. O ciúme gera
culpa, que a leva a controlar os impulsos destrutivos, a fim de preservar os
objetos amados. Esta é a resolução do Complexo de Édipo para Melanie Klein.

Outro aspecto que se observa é a reparação, que a criança vai tentar destruir e
depois reparar. Ela tentar reparar por que já tem o ego estruturado e para
manter os objetos de amor.

Crítica: um pai que não seja presente, a criança não vai combinar as figuras e o
ciúme vai ser mais fraco. Para que ela fantasie, alguma coisa tem que
acontecer de fato, não somente de origem interna, mas também no meio.

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​ ​Teoria da Inveja

Melanie Klein vai falar da inveja primária ou inata ou endógena, na idealização


do objeto. Os impulsos agressivos são projetados no objeto amado, essa
reação agressiva ao objeto provedor é explicada pela teoria da inveja uma vez
que é algo fora do controle, é inato e interno.

Quando a criança está fazendo a dissociação, ela idealiza, esta por sua vez se
acentua e a faz projetar os impulsos agressivos pela idealização do bom. Vai
acentuar a inveja que deforma o objeto, introjetando mais o objeto mal. A
criança, com isso, vai se sentir ameaçada e vai necessitar de um controle muito
grande, vai se tornar um adulto que destrói tudo o que vê de bom. O que na
verdade pode comprometer é o não reconhecimento dos aspectos negativos
dentro de si.

A inveja, segundo Melanie Klein, vai aparecer associada com o ciúme e da


voracidade em relação ao que o outro quer dar.

Ciúme: Implica numa tríade. Um objeto que alguém acha que o outro vai tirá-lo.
Algumas vezes, a pessoa diz que está sentindo ciúmes, porém o sentimento de
base é a inveja.

Exemplo: relação amorosa, o namorado diz que foi ela que quis provocar
ciúmes, que ela que fez acontecer, etc.

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Voracidade: tem a ver com a inveja, vai tentar encobri-la. Quando um quer
esvaziar o outro dos seus aspectos bons, pois na sua fantasia, esse outro vai
deixar de ter esses aspectos bons que ele não tem.

​ A inveja pode provocar:

A permanência da dissociação por muito tempo, por exemplo, o adulto que


inveja o outro, o vorácico: que suga o outro pela inveja que tem, o que dá tudo,
impedindo o crescimento do outro;

Fuga da mãe para outras pessoas;

Desvalorização do objeto;

O objeto externo criado pelo bebê é introjetado.

Procurar despertar inveja em outras pessoas. Daí, não precisa se deparar com
a própria inveja. Sufocar sentimentos de inveja junto com o sentimento de amor
– indiferença (formar vínculo através da indiferença). É melhor não gostar tanto
do outro para não correr o risco de sofrer, ser destruído na relação. Acting Out
– atuação. Está na ação o tempo todo sem se dar conta, quando vê, já fez.

QUESTIONÁRIO PARA FIXAÇÃO DA MATÉRIA

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1. Como psicanalista, quais são as técnicas aconselháveis no trato com
crianças? Explique cada uma.

2. Após estudar a linha de trabalho de cada terapeuta citado na apostila, faça


a diferença/ou pontos principais no trabalho desenvolvido por cada um em
forma de resenha. (Gentileza não fazer copia da apostila, use-a como
referencial).

3. “Depois de algum tempo, você aprende a diferença entre dar a mão e


acorrentar uma alma. E você aprende que amar não significa apoiar-se, e
que companhia nem sempre significa segurança. E começa a aprender que
beijos não são contratos e que presentes não são promessas. E começa a
aceitar suas derrotas com a cabeça erguida e os olhos adiante, com a graça
de um adulto e não com a tristeza de uma criança. E aprende a construir
todas as suas estradas no hoje, porque o terreno do amanha é incerto
demais para os planos; e o futuro tem costume de cair em meio ao vão.

Depois de algum tempo você aprende que o sol queima se ficar exposto a
ele por muito tempo. E aprende que não importa o quanto você se importe,
algumas pessoas simplesmente não se importam. E aceita que não importa
quão boa seja uma pessoa, ela vai feri-lo de vez em quando e você precisa
perdoá-la por isso. Aprende que falar pode aliviar dores emocionais.
Descobre que se levam anos para construir confiança e apenas segundos
para destruí-la, e que você pode fazer coisas em um instante, das quais se
arrependerá pelo resto da vida.

Aprende que as verdadeiras amizades continuam a crescer mesmo a longas


distâncias. E o que importa não é o que você tem na vida, mas quem você
tem na vida. E que bons amigos são a família que os permitiram escolher.

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EXTRA 1 - ESPECIFICIDADES DE CLÍNICA INFANTIL - ​pág. 73


Aprende que não temos de mudar de amigos, se compreendermos que os
amigos mudam. Percebe que o seu melhor amigo e você podem fazem
qualquer coisa, ou nada, e terem bons momentos juntos. Descobre que as
pessoas com quem você mais se importa na vida são tomadas de você
muito depressa. Por isso sempre devemos deixar as pessoas que amamos
com palavras amorosas, pode ser a última vez que as vejamos.

Aprende que as circunstâncias e os ambientes têm influência sobre nós,


mas nós somos responsáveis por nós mesmos. Começa a aprender que não
se deve comparar com os outros, mas com o melhor que podemos ser.
Descobre que se leva muito tempo para se tornar a pessoa que se quer ser,
e que o tempo é curto. Aprende que não importa aonde já chegou, mas onde
está indo, mas se você não sabe onde está indo, qualquer lugar serve.
Aprende que ou você controla os seus atos ou eles o controlarão; e que ser
flexível não significa ser fraco ou não ter personalidade, pois não importa
quão delicada e frágil seja uma situação, sempre existe dois lados. Aprende
que heróis são pessoas que fizeram o que era necessário fazer, enfrentando
as conseqüências. Aprende que paciência requer muita prática. Descobre
que algumas vezes a pessoa que você espera que o chute, quando você vai
cair, é uma das poucas que a ajuda a levantar. Aprende que maturidade tem
mais haver com os tipos de experiências que se teve e o que você aprendeu
com elas, que com quantos aniversários você já celebrou. Aprende que há
mais de seus pais em você do que você supunha. Aprende que nunca se
deve dizer a uma criança que seus sonhos são bobagens, poucas coisas
são tão humilhantes que seria uma tragédia se ela acreditasse nisso.
Aprende que quando está com raiva você tem o direito de estar com raiva,
mas isso não lhe dá o direito de ser cruel. Descobre que só porque alguém
não o ama do jeito que você quer que ame, isso não significa que esse
alguém não o ame com tudo o que pode, pois existe pessoas que nos
amam, mas, simplesmente não sabem como demonstrar ou viver isso.
Aprende que nem sempre é suficiente ser perdoado por alguém, algumas

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EXTRA 1 - ESPECIFICIDADES DE CLÍNICA INFANTIL - ​pág. 74


vezes você tem que aprender a perdoar a si mesmo. aprende que não
importa em quantos pedaços o seu coração foi partido, o mundo não pára
para que você o conserte. Aprende que o tempo não é algo que possa voltar
atrás. Portanto, plante seu jardim e decore sua alma, em vez de esperar que
alguém lhe traga flores.

E você aprende que realmente pode suportar, que realmente é forte, e que
pode ir muito mais longe, depois de pensar que não se pode mais. E que
realmente a vida tem valor e que você tem valor diante da vida.”

Shak
espe
are

A partir do texto acima, faça uma análise psicanalítica em forma de resenha


(mínimo de duas laudas). (exercício opcional)

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Clínica Infantil II

“O amor infantil segue o princípio: eu amo porque sou amado. O amor maduro
segue o princípio: sou amado porque amo”.

(Erich Fromm)

A CHEGADA DA FAMÍLIA E SUA FAMÍLIA

1. Solicitação de avaliação

O primeiro aspecto na solicitação de avaliação é observar como a criança


chegou até o psicanalista, ou seja, foi levado por quem e para que. Contudo,
cabe ao psicanalista antes, avaliar a demanda, a situação, para concluir pela
necessidade ou não de tratamento.

Outro aspecto refere-se a dependência, isto é, a criança é falada por um outro,


ou seja, a criança não nos chega por conta própria, o que caracteriza uma
dependência.

Essa demanda que a família traz (pode ser uma recomendação dos pais,
pediatra, da escola etc...), o que não significa que seja a mesma demanda
observada pelo terapeuta no decorrer da entrevista. É importante saber de
onde vem a demanda. De onde ela surge.

Todavia, o fato da criança não ter autonomia na procura do psicanalista, isso


não significa que ela não tenha possibilidade de avaliar uma situação. Tanto
que a criança faz um sintoma, por exemplo, não aprender na escola. Esta é
uma linguagem, um recurso que a criança utiliza para falar de algo que não
está bem, embora o sintoma seja um pedido de ajuda da criança, não garante
que o paciente seja a mesma, pode ser os pais que estão precisando de ajuda.

2. Da responsabilidade

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EXTRA 1 - ESPECIFICIDADES DE CLÍNICA INFANTIL - ​pág. 76


Existem dois aspectos aqui. Primeiro seria da relação terapêutica, onde o
psicanalista vai ouvir o discurso da mãe a respeito do filho, ou seja, como essa
criança é falada pela mãe.

Outro aspecto diz respeito à questão legal: os pais são os responsáveis pelos
atos da criança legalmente, e sendo assim, tem o direito de saber o que
acontece no tratamento.

É preciso que o analista discrimine o direito dos pais: saber o que se passa no
tratamento e ao mesmo tempo o sigilo do paciente. O analista deve falar sobre
sua proposta de trabalho sem que seja necessário o sigilo.

3. Entrevistas

As entrevistas são um dos recursos para se fazer uma avaliação, porém é um


instrumento por excelência, fundamental para o psicanalista, uma vez que
possibilita um contrato dinâmico com o sujeito e implica numa relação a dois,
uma que pede ajuda e outra que se propõe a ajudar.

​ Diferença entre anamnese x entrevista:

Anamnese (memória) – o roteiro é mais fechado, visando à coleta de dados


voltada para a história do sujeito. Vai buscar a sua memória.

Não necessariamente, precisa acontecer numa situação de entrevista, pode


ocorrer por meio de um questionário, pode ser rígido ou flexível em termos da
entrevista.

​ Entrevistas – as duas fases do encontro: entrevista x transferência

Delimitar o tempo das primeiras entrevistas, para o tratamento propriamente


dito. Qualquer abordagem vai delimitar essa passagem, que sempre existirá.
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EXTRA 1 - ESPECIFICIDADES DE CLÍNICA INFANTIL - ​pág. 77


Em termos clínicos tem a ver com critérios utilizados, não há delimitação de
tempo para que esta passagem ocorra.

Em termos de psicanálise podemos dizer que haverá uma escuta que vai ser
atribuída ao analista, o sofrimento que tem a ver com o próprio sujeito, com a
sua implicação nele. A partir daí, vai buscar na figura do analista a resposta
para as suas questões, é a atribuição sujeito suposto saber (transferência) e
sendo assim, se permitir falar disso.

A transferência marca o processo final das primeiras entrevistas, para o


tratamento propriamente dito, quando o terapeuta começa a fazer parte do
sintoma do sujeito.

No que diz respeito à direção do tratamento é o analista quem vai dirigi-lo


sempre, independente do terapeuta, respeitar o tempo e a subjetividade do
sujeito. A direção implica na questão da escuta do terapeuta que vai fazer com
que o sujeito questione quanto a sua implicação.

​ Diferença entre intervenção e interpretação

A intervenção só pode ocorrer com a transferência, quando o sujeito autoriza


que o terapeuta fale dele, caso contrário, vai ser ouvida como algo que não tem
a ver com ele.

A interpretação é o processo oposto da elaboração onírica (processo onde a


produção do sonho se dá via ciframento), vai decifrar aquilo que foi cifrado no
sonho, ou seja, tornar o inconsciente consciente. É uma intervenção que
possibilita a abertura do inconsciente.

Aberastury destaca alguns itens da entrevista:

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1.​ ​Motivo da consulta

2.​ ​História

3.​ ​Relação familiar

4.​ ​Um dia na vida da criança

5.​ ​Sessão livre

6.​ ​Quem é o cliente

7.​ ​Devolução

1. Motivo da consulta: motivo manifesto x motivo latente.

O motivo manifesto consciente encobre um outro motivo que seria o latente.


Embora possam parecer coisas distintas não são, são apenas dois lados da
mesma moeda.

O conteúdo latente abarca conteúdo para que possam surgir na consciência,


vem disfarçado, fala-se da mesma coisa só que de outra forma. Esses
conteúdos são substitutos daquilo que ficou reprimido, sendo assim, a outra
face do mesmo conflito. Por exemplo, dificuldades na aprendizagem: é uma
maneira que a criança tem para falar dos seus conflitos edipianos, pois estando
presa aos mesmos objetos (pai e mãe) não pode investir em outra coisa. Essa
é uma forma de como esse conteúdo está se manifestando.

Cabe ao terapeuta buscar o conflito do sujeito e não aquilo que é superficial.


Vai precisar decifrar o código que o sujeito arrumou de falar da sua história.

“Quanto maior o esquecimento, maior a gravidade do


conflito”. (Arminda Aberastury)

2. História:

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Refere-se aos aspectos da criança: desejo, amamentação, locomoção, sonho,
linguagem, controle dos esfíncteres, etc.

A criança já chega ao mundo com o desejo dessa família, ela vem determinada
quanto ao lugar que vai ocupar, lugar esse que será apontado por um outro
que irá marcá-la mais profundamente ou não.

As situações da vida da criança irão marcá-la, mas não são deterministas, pois
irá depender de como o sujeito vai lidar com essa marca.

É importante ao psicanalista saber a função dessas perguntas, por exemplo: do


sono para o psiquismo do sujeito, da escola para o investimento de outros
objetos que não sejam somente os pais, se conseguiu abandonar os primeiros
objetos incestuosos, para poder aprender. É uma questão ligada ao Complexo
de Édipo.

Quanto às enfermidades, vai nos apontar para a questão da castração (limites),


no sentido de perceber como a criança vai lidar com a imperfeição (no sentido
de não estar completo, formado) do próprio corpo. Semelhantemente, o cortar
do cabelo, cair de um dente. Essas questões nos falam da castração, do
quanto isso é doloroso para a criança.

O processo da análise é também, por que não tem por objetivo curar o sujeito
da sua angústia, mas que ele possa produzir algo novo, o que implica numa
certa desestabilização ecóica, abrir mão das identificações.

3. Relação Familiar

Se a criança se dirige mais ao pai ou a mãe, o lugar que ela ocupa dentro
desta família.

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EXTRA 1 - ESPECIFICIDADES DE CLÍNICA INFANTIL - ​pág. 80


4. Um dia na vida da criança:

É interessante que se pergunte sobre o dia da criança: quem arruma a criança,


quem fica com ela e o por quê, quem a alimenta, leva a festas, leva para a
escola, etc. Pode-se perguntar ainda, como são os finais de semana da
criança, o que faz, o tempo que fica junto, quais as atividades e a rotina.

5. Sessão Livre:

Entrevista com criança tem esse nome por que não utiliza só o discurso, mas
também atividades como: brinquedos, jogos, desenhos, que também são
formas de expressão.

6. Decisão: Quem é o cliente?

Vai decidir quem é o cliente, se é realmente necessário o processo terapêutico,


já que é algo doloroso. É uma decisão que parte do terapeuta, no sentido de
ouvir e de poder acolher essa demanda e manejá-la.

7. Entrevista de Devolução:

Vai informar algo daquilo que se avaliou do caso. É importante que se utilize
uma linguagem clara, de preferência com as próprias palavras dos pais.

Pode-se marcar uma entrevista de devolução ou ir devolvendo aos poucos. No


caso da mãe ou o pai serem os sujeitos da análise, pode ir marcando aos
poucos, para quem é o tratamento.

“Totem e Tabu”

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No texto de Freud, encontramos alguns subsídios para nossa reflexão.

Freud vai falar do animal “totem” (um animal qualquer), que representa a tribo e
é adorado por estes, no entanto, em um dia determinado pela tribo é permitido
matar o totem coletivamente. Eles se vestem com roupas parecidas ao animal
e fazem os sons dele e, a partir disso inicia-se uma festa, onde todo o excesso
é permitido e incentivado. Segue-se então à morte do animal e toda a tribo
realiza o ritual de comê-lo.

Freud afirma que comer o totem representa a santificação e reforço da


identidade do grupo com o totem. Ao comê-lo, a tribo absorveria a vida do
animal sagrado, realizando com isso, uma identificação com o totem.

Segundo ele, o animal totem constitui a figura do pai. Demonstra sentimentos


ambivalentes de amor e ódio e aponta para o processo de identificação no ato
de comê-lo, que corresponderia ao processo de introjeção deste pai/totem.

Analisa o caso de uma tribo citada por Darwin, onde a proibição do próprio pai
é mais forte ainda com a morte dele, pois somente ele poderia ter todas as
mulheres da tribo. Com a morte dele, os filhos passam a se identificar com o
pai, com a proibição e assim, vão buscar as mulheres de outras tribos. Ou seja,
o que antes era motivo de inveja, agora é internalizado. Freud vai chamar este
fato de obediência póstuma. O pai representa a proteção e a dominação.

Fala em dois tabus do tectonismo: Tabu do incesto e do desejo de matar o pai.

Afirma que a “exigência sexual não une os homens, pelo contrário, os dividem”.
E que a repetição do ritual deve-se à expiação da culpa.

Freud acredita que o elemento paterno (lei) tem um papel muito relevante na
forma como nos relacionamos com as pessoas, com o mundo, com a religião.

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Se uma criança está com problemas é necessário perceber como está
acontecendo a internalização do pai, suas identificações, etc.

Desordens Escolares

Uma alta percentagem de consulta é motivada, ao que parece, por “distúrbios


escolares”.

Se existem dificuldades escolares de origem puramente pedagógicas –


também não deixa de ser verdade que esse sintoma encobre quase sempre
outra coisa. É não entendendo ao pé da letra o pedido dos pais que o
psicanalista permitirá que a porta se entreabra para o campo da neurose
famíliar, dissimulada, fixada no sintoma de que a criança se torna o apoio.

O interrogatório dos pais, a entrevista com a criança, visa essencialmente, uma


primeira etapa, a um exame do diagnóstico elaborado e trazido pela família.

A cada vez imposta a mim mesma questão: que há, pois de não comunicável
em palavras, que se imobiliza, se fixa num sintoma? Essa investigação que
proponho uma reflexão.

Caso 1

A Srª Bernardin vem consultar a respeito de seu filho de 11 anos incapaz de


acompanhar uma turma de 3ª série. O menino tem dificuldades especialmente
em cálculos. “Dizer”, acrescenta a mãe, “que tenho um irmão engenheiro e um
filho assim”.

Órfã de pai aos 14 anos, a Srª Bernardin sentiu-se na sua própria infância em
posição de inferioridade em relação aos colegas. De saúde frágil, chegara à
conclusão, junto com sua mãe, de que os estudos seriam prejudiciais a ela.
Ficariam reservados ao irmão. Muito nova atribuíram-lhe o lugar de “jovem

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EXTRA 1 - ESPECIFICIDADES DE CLÍNICA INFANTIL - ​pág. 83


dona-de-casa”. “Desde a idade de 14 anos eu era dona-de-casa, enquanto
mamãe trabalhava e meu irmão estudando”.

Casa-se tarde e permanece no lar materno, sem outra ocupação que não seja
cuidar de seu filho. Sua mãe, depois de abandonar toda a sua atividade
profissional, resolve dirigir sozinha o lar.

Quem é o pai de Françoise? “O modelo da virtude”, diz-me a mãe; “ele teria


dado um padre bom e tímido”.

O único elemento viril, aparecendo em pano de fundo, é precisamente essa


avó, a quem a mãe só vai aludir por ocasião de lapsos, de esquecimentos.

“Fui criada num ótimo ambiente nocivo” – “acrescentei essa palavra porque soa
bem com ambiente”, adita, “Isso não tem sentido porque era tudo perfeito”.

De fato, a sombra da avó paira sobre o casal que se encontra despojado de


toda autonomia própria. A criança dá uma arrancada difícil. Relações ansiosas
mãe-filha criam conflito em torno da alimentação – conflito ainda mais agudo
porquanto a mãe se sente observada e criticada por sua própria mãe,
convencida “de que ela não sabe tratar disso”.

Desde o aparecimento da linguagem, a criança apresenta dificuldade no campo


da comunicação. Desenvolve uma linguagem própria. (Bodô = aspirador), que
só a mãe entende. Nunca se afasta dessa última. “Receamos que lhe aconteça
alguma coisa”, dizem-me.

Por outro lado, anoto: interdição de qualquer atividade motora e educação


rígida no que se refere ao asseio. (A criança fica horas sentadas no pinico,
esperando “que tudo aconteça na hora que tem que acontecer”).

É nesse clima de dependência materno, de não-autonomia perfeita, que a


criança vai fazer, com insucesso, a primeira tentativa escolar. Com insucesso a
princípio, pois não tem idade nem amadurecimento para uma aquisição

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EXTRA 1 - ESPECIFICIDADES DE CLÍNICA INFANTIL - ​pág. 84


escolar. (A escolaridade aos quatro anos, ela vivia no sonho materno, antes
que por si mesmo).

O que dá o exame escolar? – A leitura é uma série de contra-senso. Os


elementos disléxicos são aparentes, enquanto a ortografia adquirida, mais
tardiamente, é relativamente correta.

Em cálculo, o raciocínio é sempre absurdo, e o pânico de não saber é total.

O nível intelectual é normal, mas, no discurso da criança, não há lugar para o


EU. Trata-se sempre de nós. Esse nós é “mamãe e eu”.

“É melhor”, acrescenta a criança, “não ter sonhos do que ter sonhos ruins”.

Tudo que é agressivo é condenável. François prefere pôr-se entre parênteses a


desagradar à mãe.

A única profissão vislumbrada é de engenheiro civil (ou seja, uma espécie de


alienação do seu desejo no sonho materno).

O ideal paterno proposto pela mãe ao menino é o tio materno.

A imagem do pai aparece afastada, não conta.

Só são levadas em conta com verdadeiros temas de preocupação para a


criança as doenças da mãe: “mamãe sente câimbra nos pés, nos braços, nas
mãos, fica resfriada, pobre mamãezinha e eu ainda venho preocupá-la”.

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EXTRA 1 - ESPECIFICIDADES DE CLÍNICA INFANTIL - ​pág. 85


Que fazer? – impõe-se, sem dúvida, uma orientação escolar. Mas é ela de fato
tão urgente (Pode-se lamentar que a criança não tenha sido examinada antes,
pois alguns erros e fracassos talvez tivessem sido evitados).

De que se trata realmente?

- De uma insatisfação da mãe enquanto filha. “Não passo de uma pobre


mulherzinha”. Essas palavras são a criança que as pronuncia em eco (“pobre
mamãezinha”) como pára acentuar a sua própria indignidade.

Essa mãe depressiva que ele nunca pode chegar a satisfazer, o menino
esforça-se ao menos em ocupá-la com seus fracassos e sua conduta fólica,
conduta essa que aparece aqui, mas como a expressão do desejo materno, do
que como a doença própria da criança.

E pai? – Homem resignado, ele me confessa: “eu me censuro por ter entregado
meu filho as mulheres, mas não podia ficar permanentemente lutando – a vida
teria sido um inferno”.

Criança – joguete, entregue as mulheres da casa “para que houvesse paz”,


assim se mostra François.

Enquanto a sua escolaridade é a expressão do devaneio materno e de uma


competição entre duas mulheres, a criança não pode, a exemplo do pai, deixar
de sentir-se envolvida por qualquer coisa – é a sua maneira de proteger-se de
conflitos neuróticos sérios.

É proposta uma tentativa de psicanálise. A mãe já recua. “Temo que tudo isso
venha mudar os nossos hábitos”.

- E o senhor, que pensa sobre isso?

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EXTRA 1 - ESPECIFICIDADES DE CLÍNICA INFANTIL - ​pág. 86


“Eu já lhe disse, renunciei há muito tempo. Quero paz, minha mulher é livre”.

Livre para fazer o que quiser de uma criança, quase não reconhecida pelo pai.

Que pode fazer o analista, a não ser esperar? Se forçarmos aqui uma
psicanálise, que toca em problemas tão essenciais ao nível do casal, corremos
o risco de cair em dificuldades de outra ordem.

No imediato, resta ao menos a possibilidade de expor verbalmente à criança


(diante dos pais) a sua situação e a significação dos seus fracassos escolares.

Um raio de esperança no menino que se julgava um completo idiota. Mas uma


ansiedade na mãe, apenas dissimulada: “Era para que me indicassem uma
escola que eu vinha. Sinto que tudo isso vai me fazer ficar doente de novo”.

- Mas não, mamãezinha, eu vou ficar comportado, você vai ver.

Saída do casal e do menino.

Por que, com efeito, mudar o que quer que seja, quando tudo parece estar no
seu lugar?

É a pergunta que se impõe, eu gostaria de afastá-la, de exortar esse casal...


Um dia talvez eles voltem e estejam maduros para ouvir as palavras do
analista.

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EXTRA 1 - ESPECIFICIDADES DE CLÍNICA INFANTIL - ​pág. 87


A quê? – a adotar uma conduta correspondente à minha ética?

Só posso ficar calado e esperar.

Caso 2

Victor , de 14 anos, é o mais novo de três filhos. Sempre teve dificuldades


escolares, mas elas se acentuaram no secundário.

“O mais velho”, diz-me a mãe, “saiu ao pai”, “é brilhante”.

“O último puxou à mãe”, dizem os amigos, “- e infelizmente eu comecei uma


série de coisas, mas nada terminei”.

A filha é sem problemas e autônoma. Victor é difícil, julga-se rejeitado pelo pai.

“De fato, meu marido identifica-se com o mais velho e sente-se estranho ao
outro – ou melhor, o mais novo, o mais novo só lhe lembra os seus complexos,
o mais velho deleita-o com seus êxitos”.

Victor, apesar de possuir um QI superior à média, fracassa nas provas


escolares. Pretende ser brilhante, mas tem dificuldades. Rejeita todo e
qualquer esforço, não suporta cansar-se diante de um exército. Do seu ódio ao
irmão mais velho, conserva sem si a imagem de aluno brilhante. Esforça-se
inconscientemente por imitar esse irmão mais velho a quem rejeita e despreza.
Desejaria poder interessar ao pai... Mais o trabalho, na medida em que não
passa de um meio de sedução, corre o risco de permanecer sem sentido.

Victor imagina que o mundo lhe é hostil, está revoltado contra os adultos. O
fracasso escolar é sentido como uma injustiça.

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EXTRA 1 - ESPECIFICIDADES DE CLÍNICA INFANTIL - ​pág. 88


Mas será que vale a pena centralizar tudo no fracasso escolar? – não existe
porventura mais outra coisa que aflore.

Graças à sua situação a dois com a mãe, o menino sempre se ajeitou para não
ter que passar pela Lei do Pai. Essa lei, ele recusa tanto na competição escolar
como nas suas relações humanas. Recusa-se a ser dominado, não tolera que
seus atos sejam discutidos. Proclama ser forte, sem ter de passar pela prova
da fraqueza e do não-saber.

Não suportar a dúvida, e busca uma forma de atenuá-la.

Um curso de recuperação? – Sem dúvida, mas a criança só faz isso desde a 5ª


série.

De fato, enquanto não se apura a significação do bloqueio escolar, toda


reeducação corre o risco de favorecer as defesas da criança, de acentuar
assim curiosamente as dificuldades ligadas à recusa do sujeito em aceitar as
provas e o confronto com os irmãos mais velhos.

Toda idéia de psicanálise é, no entanto, recusada por Victor. “É um ataque à


minha personalidade”.

Realmente, ele teme que uma psicanálise provoque a perda dos seus
privilégios, deixando-o assim desarmado diante da adversidade. Agora,
praticamente não há fracasso, o indivíduo “se entrega” a fim de evitar qualquer
desconforto.

Ele procura esgotar todas as receitas educativas, usar de todos os


subterfúgios, em vez de se envolver no teste de verdade que constituiria para
ele uma psicanálise.

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EXTRA 1 - ESPECIFICIDADES DE CLÍNICA INFANTIL - ​pág. 89


Caso 3

A mãe levou ao nosso consultório o seu filho Nicolas, de 15 anos, que tem um
estrondoso declínio escolar. “Quando estou deprimida, eu o ajudo em seus
deveres, mas ele não quer saber do meu auxílio. O drama é que ele conta com
o apoio do pai e sempre me vence quando este se acha presente. Ora, para
sua informação, o pai de Nicolas é uma criatura mole, distraída, cansada e
inútil”.

De fato, o declínio escolar do rapaz é o reflexo de um episodio depressivo sério


em ambos os pais. A incontinência reapareceu. O sujeito está atormentado
pelo pânico nesse ambiente fechado em que os adultos pensam apenas em se
deixar morrer.

Passou anos encobrindo inutilmente sua mãe de satisfações. Atualmente, “tudo


estala dentro dela”, e a censura que ela formula é a seguinte: “Eu não queria
ter filho, receava que isso provocasse a morte da minha irmã”.

Quinze anos depois, a sua irmã efetivamente morre, e a mãe não consegue
recuperar-se deste luto (expresso inconsciente no plano fantasmático de
desejos infantis de homicídio).

“Minha irmã era adotada, mas quanto a mim, tinha sido menos aquinhoada em
tudo, e ela era bem sucedida. Ela se apoderava em todos os meus assuntos de
conversa. Eu era muito menos brilhante”.

A morte da irmã põe a mãe em tal estado de culpa que ela já não se reconhece
o direito de viver. “Em casa, é comum um cemitério, somos todos
mortos-vivos”.

De fato, Nicolas não abandonou a mãe até o luto da tia e, no que diz respeito à
depressão materna, não podia mais suportá-la.

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EXTRA 1 - ESPECIFICIDADES DE CLÍNICA INFANTIL - ​pág. 90


Não podendo rejeitar a mãe, é o trabalho, elo de união entre eles que ele
rejeita.

O excelente entendimento com o pai (doente grave) não basta, contudo, para
fazer com que o rapaz confie nele.

O exame intelectual dá um nível muito superior à média, embora apareça no


discurso do sujeito uma espécie de “estupidez neurótica”.

Apanhado no mundo materno, Nicolas vive, como eco da mãe, o luto dela.
Todo apoio masculino parece faltar-lhe, ele como que parou de viver. Culpado
pelos seus fracassos, ele nada pode fazer por contra própria. Examina uma
possibilidade de internato, mas logo acrescenta: “O pretexto para isso deve ser:
a tristeza no lar. Em que se transformariam os pais se eu não estivesse mais
lá?”.

Enquanto Nicolas é para seus pais, um objeto de preocupação, eles têm, com
efeito um motivo para apegar-se à vida. “Meu marido está sempre me dizendo:
acabou-se, vou morrer. Eu mesma sou um fracasso, agarro-me ao filho”.

O declínio escolar não passa aqui de uma campainha de alarme, escondendo


um risco de depressão num adolescente angustiado pela atmosfera de morte
que paira sobre os vivos.

Somente uma separação do meio patogênico, apoiado por uma psicanálise


pode tirá-lo daí. No caso em tela, a coisa é possível porque os pais são
bastante conscientes do drama para se tratarem e deixar que seu filho seja
tratado.

Caso 4

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EXTRA 1 - ESPECIFICIDADES DE CLÍNICA INFANTIL - ​pág. 91


Michael tem 19 anos e não consegue ser aprovado no último ano do segundo
grau, apesar de possuir um nível intelectual superior à média de ter tido uma
escolaridade sem problemas.

Pai e filho entendem-se muito mal. O pai desejou que o filho fosse bem
sucedido num campo em que ele próprio havia fracasso (Engenharia,
Medicina). E é no momento em que a opção nos estudos corre o risco de
tornar-se decisiva que o sujeito, curiosamente, “estaciona”.

“Só trabalhei por obrigação. Não sei o que é ter vontade de trabalhar”.

Sofre por ter decepcionado o pai. “Não posso fazer de outra forma”. De fato,
Michael sente-se muito desvalorizado, só pode relacionar-se com jovens
“fracassados”, procura consolo na dança, no prazer e nas meninas fáceis.

Esse rapaz, muito dotado, não pode de fato superar o pai. Foi incluído em
demasia nos devaneios deste para ter o prazer de realizar o que quer que seja
em seu próprio nome.

Depressivo, tem a impressão de haver perdido antecipadamente a partida. Ele


nada deseja, e é precisamente esse o seu drama. O mundo parece-lhe
absurdo, “tudo é desprovido de sentido”.

Aqui, trata-se menos de orientação escolar que da necessidade de uma ajuda


psicanalítica. A entrevista com o pai permitiu que este reconhecesse o valor do
filho. Começa a surgir uma esperança de dialogo em lugar do inútil devaneio.

Esse jovem não tardará a encontrar o seu caminho; houve necessidade de


que, um dia ele fosse autorizado e se sentisse reconhecido como um indivíduo
válido por esse homem a quem julgava detestar, e que, na qualidade de pai,
encarava valores que ele não podia renegar a si próprio.

Caso 5

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Bernadette, seis anos de idade, filha única de mãe solteira, nega-se a ir à
escola. “A professora é má”, repete a criança entre dois soluços.

Criada pelos avós, Bernadette tem reações fóbicas quando fica sozinha com a
mãe. Habituada à vida no campo, sente-se perdida em Paris.

De inteligência muito superior à média (QI 124), adiantada nos estudos, a


criança apresenta, porém, tendência a desenvolver mecanismos disléxicos; as
inversões de sons são inúmeros.

Os tiques da boca aparecem durante a entrevista. As histórias contadas pela


menina giram em torno da imagem, de um casal feliz. A falta de pai coloca a
menina em perigo de ser devorada. Toda aprendizagem é recuada, “pois,
quando a gente sabe tudo, o que existe no fim é a morte”.

A professora má, no caso de Bernadette, parece substituir a mãe, sentida como


má e perigosa na falta de uma imagem paterna protetora. (Até os seis anos, a
criança foi criada na casa de dois avós equilibrados).

A criança sente-se pouco à vontade na situação a dois que lhe propõem e, na


falta de garantia, recusa-se a assumir riscos (riscos escolares, no caso), toma
providencias para não ter de passa pela Lei.

A intervenção do psicanalista permitiu que a mãe tomasse conhecimento do


perigo que a espreita se ela apanha a criança no mundo fantasmático que é o
dela e permitiu que a criança tomasse consciência da sua agressividade
(disfarçada em crise fóbica).

A recuperação escolar verificou-se depois de um mês de tratamento (mas nem


por isso a cura psicanalítica se interrompeu).

É de fato importante tirar definitivamente a criança do seu mundo fóbico para a


permitir-lhe uma evolução autônoma.

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O fator escolar, embora tivesse sido a causa da consulta, desapareceu muito
depressa diante dos distúrbios que a princípio encobrira. Podemos até dizer
que a criança teve a inusitada sorte de ter sido analisada a tempo de poder,
graças à psicanálise, superar a dislexia reativa que estava em via de formar-se.

Quanto ao saber da morte, a criança o formulou no inicio do tratamento.


Cumpre ainda que ela possa enfrentá-lo e renunciar, ao mesmo tempo, à perda
de uma imagem paterna estruturante. (O que pôs essa criança em perigo foi ter
uma mãe não “marcada” pela Lei do Pai. Na imaginação Bernadette, o que os
seus sonhos de canibal traduziam perigosamente era o risco de fazer qualquer
coisa...)

Caso 6

Martine, criança inteligente, tem, um declínio escolar brusco ao cursar a 7ª


série. A mais velha de duas meninas (a caçula, brilhante, satisfaz as ambições
do pai), Martine só pensa em esportes. De fato, inconscientemente, ela parece
tomar o partido da mãe contra seu marido: “Meu marido é um chato”; “que idéia
ter casado com um cara assim” diz a menina.

Filha da mãe, Martine alia-se a ela contra o pai, descrito como “carrasco”.
Somente no fim da consulta é que a mãe, em pranto, fala-me de sua filha, “que
faz tudo para irritar o pai”.

Intelectualmente dotada, a criança, durante a entrevista, repete o discurso da


mãe. “Meu pai é um enjoado, está sempre gritando, nada lhe interessa a não
ser o trabalho – é claro, só a minha irmã lhe interessa”.

O seu ciúme em relação à irmã mais velha é mal disfarçado; a exemplo da


mãe, Martine apresenta-se como uma vítima insensível às censuras e às
punições.

A recusa a trabalhar acompanha aqui uma situação edipiana rejeitada (não


sem conflitos, pois é a propósito das dificuldades com o pai que a menina

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evoca os seus medos noturnos, as suas reações fóbicas, ou seja, toda uma
situação perturbadora nascida da cumplicidade mãe-filha).

A psicanálise, aceita pela mãe e pela criança, reintroduz o pai na vida de


Martine. – E temos exatamente aí o que há de mais importante, no início.

O declínio escolar, também aqui, não passa do indício de uma aflição de


adolescente insatisfeita por não poder estabelecer um relacionamento correto
com seu pai. Ela queria ser reconhecida, e não poupava meio.

Caso 7

A mãe quer levar sua filha Sabine (11 anos), ameaçada de ser expulsa da
escola. O pai opõe-se a qualquer exame.

Aceito a receber a mãe, mas não a criança.

Quais os resultados dessa entrevista?

A menina tem tiques que se repetem de 30 em 30 segundos; eles apareceram


há três meses, depois de ter sido internada numa pensão familiar para
crianças, contra a vontade do pai.

De fato, esses tiques existem desde os seis anos de idade (data em que o pai
abandona o domicílio conjugal em protesto contra uma operação feita em outro
filho sem o consultarem).

A volta ao lar paterno coincide curiosamente com uma recrudescência dos


distúrbios de Sabine (recusa escolar e crises fóbicas graves), que acarreta uma
nova hospitalização “para observação de distúrbios nervosos”, sem o
consentimento paterno.

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Ao regressar, Sabine traz, além dos seus tiques, também os dos outros...

Diante desse quadro, escrevo ao pai para pedir-lhe autorização antes de


proceder a um exame. Eis a resposta:

“Agradeço sua carta e aprecio a posição franca que a senhora adotou nesse
caso particular.”

Cumpre-me informá-la de que certas divergências de pontos de vista com


minha mulher, quanto ao que foi feito e ao que resta fazer para o
desenvolvimento moral dessa criança, fazem com que eu me veja obrigado a
recusar a sua oferta de colaboração.

Cuido que cabe aos pais, e somente a eles, fazer com que o filho tenha um
comportamento normal para a sua idade”.

O casal era unido até o nascimento dos filhos. A vinda deles ao mundo
assinalou o início do desentendimento (por ser impossível para a mãe suportar
uma situação a três, isto é, uma situação em que o pai continua a existir na
mãe apesar da presença dos filhos). Ao subtrair os filhos à autoridade do
marido, servindo-se de todas as cumplicidades, a Srª x fez a infelicidade dos
seus.

A minha carta, por ter-me recusado a entrar no jogo da mãe, foi, em si mesma,
uma intervenção terapêutica.

O pai tomou uma decisão contra uma possibilidade de tratamento


psicanalítico? – Isso pouco importa no momento. Com a sua recusa, ele

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torna-se presente à mãe e à filha, decide fazer uma viagem com esta última, o
que já é em si uma coisa importante.

Mais tarde, talvez ele venha a concordar com um tratamento psicanalítico, se


perceber que tal tratamento não vai de encontro à sua autoridade.

Se eu tivesse começado uma psicanálise, teria me tornado cúmplice da mãe.


Ao levar em conta a palavra do pai, deixei a cada membro da família a
possibilidade de reencontrar o seu lugar.

Ainda que a escolaridade deficiente somente servia para mascarar desordens


neurótica de gravidade bem maior.

Que é que nos impressiona, nesses casos de desordem escolar?

- É que a acuidade do sintoma invocado esconde dificuldades de outra ordem.


Os pais levam ao psicanalista um diagnóstico já estabelecido. O desconcerto
dos pais começa no momento em que esse “diagnóstico” é questionado.
Descobrem então que o sintoma escolar servia para mascarar todos os
mal-entendidos, as mentiras e as recusas de verdade.

Vimos a importância do papel do pai na gênese das dificuldades escolares. Ou


então a imagem paterna aparece numa situação conflituosa: desencorajado
com a idéia de não poder satisfazer o pai, o filho renuncia então a todo desejo
próprio, enveredando assim por um caminho de abandono e depressão.

O que está em jogo não é o sintoma escolar, mas a impossibilidade para a


criança desenvolver-se tendo desejos próprios, não alienados nos fantasmas
paternais. Essa alienação no desejo do outro, manifesta-se através de toda
uma série de distúrbios, que vão desde reações fóbicas até distúrbios
psicóticos.

De fato, quando a mãe recorre ao psicanalista para um sintoma preciso,


munido de um diagnóstico seguro, é geralmente porque ela deseja que nada se

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altere na ordem estabelecida. A aventura começa quando o analista questiona
a resposta parental. Os pais têm dificuldade em perdoar-lhe por não continuar
cúmplice da mentira que eles elaboram. Eis por que tantas vezes dele exigem
endereços, orientações apressadas, em vez da tentativa de uma psicanálise.

Caso 8 – Um disléxico reeducado

Simon foi examinado aos dez anos de idade, em virtude de dificuldades


escolares. (Canhoto contrariado, é prejudicado por uma forte dislexia, e não se
sai bem nos estudos, em que pese a um QI elevado).

Uma reeducação da ortografia e uma reeducação psicomotora foram tentadas,


às quais se acrescentaram sessões de psicodrama.

A criança guarda disso a lembrança de “lições de ortografia, de ginástica, e de


um jogo com um doutor”. “Eu já não tinha mais tempo para fazer nada, só me
restava correr da escola para as lições”.

- Por que fazer essas lições?

“Quanto à ortografia, está melhor agora, mas não fui admitida na 5ª série
quando tinha idade para isso”. Atualmente com 14 anos, Simon está no 5º ano
de recuperação e de fato deve renunciar a estudos secundários normais.

O que surpreende num afetivo atento é a estrutura obsessiva em que o sujeito


parece fixar-se. Tudo o que ele enuncia é sistematicamente anulado no
momento seguinte. A criança é sem desejos, parece blindada contra todo e
qualquer sofrimento e questionada.

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Muito fixada aos pais, não tem nenhuma vida pessoal além da que eles
organizam para ela. Nenhuma emoção é traduzível em palavras, tudo é
isolado. Uma não ligação constante aparece entre o que ela diz e o que faz.

Toda a gama das provas intelectuais enfatiza o fator “superdotado”... Mas “isso
não redundou em nada”.

A questão que temos o direito de formular é saber se a indicação de


reeducações maciças não se deu cedo demais, reforçando assim mecanismos
de tarefa de tipo obsessivo.

Atualmente, a estrutura obsessiva é tão rígida que praticamente não vemos o


que uma psicanálise não desejada pela criança poderia proporcionar.

REFERÊNCIAS

EXERCÍCIOS CLÍNICA INFANTIL II

ESTUDO DE CASO

CASO I – João é uma criança de 7 anos de idade, que cursa a primeira série
do ensino fundamental. A professora conversando com a mãe sugeriu-lhe que
procurasse um terapeuta para acompanhar o filho, por achar que o mesmo
estava precisando. Assim que chegou na sala, João olhou todo o material e
depois escolheu a massinha para brincar. Falou que não sabia o que fazer,
mas logo começou a montar um boneco muito criativo e de cores variadas
(misturando cores quentes e frias e em alguns momentos com um requinte
mais escuro, acinzentado). Com isso mostrou ter noção do esquema corporal.
Eu perguntei o nome do boneco, ele primeiro disse: “não sei” e depois falou
que o nome era Pedro. Depois de terminar o boneco, ele disse “pronto” e ficou
parado, sugeri que brincasse com o boneco, ele brincou um pouco e disse:
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“pronto”. Falei que poderia pegar outro brinquedo, ele escolheu o monta tudo,
construiu uma pista de corrida e brincou com o carrinho e o boneco de
massinha, depois parou. Perguntei a João onde o boneco estava indo e ele
respondeu que era sua fazenda. Como ele ficou parado, sugeri que montasse
uma fazenda para o boneco. João pára e pinta com cola colorida. Fez um
boneco e escreveu um nome para ele, que era Rayan.

Quando faltavam dez minutos para acabar a sessão, eu o avisei e ele pediu
para brincar de carrinho. Fez barulho e disse que estava passeando em São
Paulo. Perguntei o que tinham na cidade e ele disse que tinha mar, casas e
lojas. João se sentiu inibido com a minha presença, não pediu ajuda. Ele não
relatava as brincadeiras, sempre falava não sei, ficava parado, falava pronto e
separava uma sugestão ou incentivo. É muito paciente, fazia tudo com muita
calma, capricho e criatividade.

1. SEGUNDO O RELATO, JOÃO SENTIA-SE INIBIDO COM A


PRESENÇA DA

PSICANALISTA. PLANEJE UMA SESSÃO COM O OBJETIVO DE


APRIMORAR O

VÍNCULO PSICANALISTA-PACIENTE.

2. A PRINCÍPIO QUAL É A SUA IMPRESSÃO EM RELAÇÃO A JOÃO,


VALE

RESSALTAR QUE A MÃE NÃO DETALHOU MUITO SOBRE COMO CRIA O

FILHO E COMO É A RELAÇÃO DELE COM A FAMÍLIA. SÓ QUE O FILHO


VIVE

MAIS ISOLADO DOS COLEGAS, NÃO É MUITO SOCIÁVEL.

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EXTRA 1 - ESPECIFICIDADES DE CLÍNICA INFANTIL - ​pág. 100


CASO II – Fui convidada pela Supervisão de uma determinada Escola para
fazer o diagnóstico de uma menina de seis anos de idade chamada Laura e
que freqüenta o pré-escolar. Apresentei-me a ela e disse que estava ali só para
bater um papo e que no horário certo eu lhe avisaria e ela retornaria para a
Escola acompanhada da Supervisora que a esperava na sala ao lado. Já na
sala, disse que poderia usar esses materiais para brincar como quisesse. Laura
olhou rápido toda a sala e foi imediatamente brincar com uma boneca que
chamou de Bárbie. Penteou seus cabelos e maquiou-a.

A todo tempo me contava o que estava fazendo. Depois, pegou outra boneca e
disse que ela ia cozinhar. Foi em busca de um fogão. Encontra-o, narrava
como se fosse a boneca que cozinhava. Parou logo e perguntou-me se podia
brincar com o jogo monta tudo. Disse a ela que podia brincar e fazer o que
quisesse. Como o jogo estava dentro

de uma caixa, perguntou-me se poderiam jogar as peças no chão e se


precisaria juntá-las quando terminasse.

Respondi que ela poderia colocar as peças no chão e que quando terminasse
de brincar poderia guardá-las ou não. Ficaria do jeito que ela quisesse.
Mediante tal resposta, Laura chegou perto de mim e deu-me um beijo no rosto.
Voltou para brincar dizendo que ia montar uma estrada e uma estação.
Enquanto montava. Ficava o tempo todo conversando com o brinquedo ou
comigo. Quando resolveu montar uma casa na estação, pediu que eu a
ajudasse. Sentei-me no chão e comecei a ajudá-la. Laura é que me dizia o que
e como fazer, quando não era exatamente o que ela queria, voltava a me
ensinar como se eu não fosse capaz de fazer sozinha. Quando terminou de
montar a casa, colocou-a perto da estrada, pegaram um trenzinho, um
aviãozinho, três bonecos e começou a narrar uma história. Fazia sons e
movimentava-se de acordo com o que faltava. Permaneceu brincando por um
bom tempo. Quando faltava dez minutos para acabar o tempo, avisei-a. Laura
perguntou-me se poderia voltar outro dia, pois estava muito bom brincar ali. Em
seguida levantou-se e voltou a brincar com a boneca que já havia pegado
primeiramente. Aos cinqüenta minutos, disse a ela que teríamos que parar de
brincar, pois o tempo havia terminado. Laura em momento algum demonstrou
timidez ou falta de interesse em brincar. Não se interessou pelos materiais que
lembravam ou propunham atividades escolares, muitos menos em usar sucatas
para confeccionar alguma coisa. No que pude observar, ela é uma criança
muito esperta e capaz de retratar seus detalhes, momentos e ações de sua
vida cotidiana com prazer e alegria. Laura é muito comunicativa, em nenhum
momento deixou de conversar, expunha com clareza suas idéias e vontades, o
que favorecia nosso diálogo.

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Pelo fato de ter conhecimento das fases do desenvolvimento cognitivo da
criança, segundo Piaget, pode-se afirmar que a criança se encontra no
segundo estágio, tido como pré-operacional, apresenta um bom nível de
desenvolvimento sócio-afetivo, psicomotor, lingüístico e cognitivo. Percebe-se
que a escola tem trabalhado esta criança em todos os aspectos; físico,
intelectual e social. Pelo que se pôde investigar a experiência histórica da
mesma também contribui muito positivamente no seu desenvolvimento. Os
momentos de observação foram ricos, pois as situações oportunizaram a
criança a viver momentos de conflitos, tanto sozinha, quanto em grupo, diante
dos desafios que o jogo apresentava, a colocar em prática suas regras, seus
conhecimentos e seus valores ao estar junto com os outros, se fazendo
entender pelo outro coordenando o seu pondo de vista com o do outro. Diante
de tais comportamentos, a todo instante a criança demonstrou ter um grande
controle emocionou, além de demonstrar estima pelos coleginhas e o desejo de
fortalecer as relações de afeto que os unem. Isso significa que existe um
respeito mútuo entre as crianças com base nas leis do desenvolvimento da
reciprocidade.

Tomando por base a teoria de Freud, que também é notável na educação,


pode-se dizer que a criança observada se encontra na fase Fálica e que as
fases anteriores a esta foram bem desenvolvidas. Isso significa que os
educadores (família e professores) que tiveram um contato maior com esta
criança estavam preparados para dar-lhe uma boa educação e ajudá-la a
passar pelas fases sem traumas, restrições e punições. “Freud e seus adeptos
afirmam que os aspectos extremamente significativos de nosso
desenvolvimento pessoal e emocional são determinados durante os primeiros
sete anos de nossa vida”. Pelo comportamento apresentado, a criança em
evidência não manifestou em nenhum momento que foi submetida a práticas
inadequadas de educação que possam resultar em prejuízo para o seu
ajustamento como adulto.

1. DE ACORDO COM O CASO LAURA, A PACIENTE LOGO QUE


ENTROU NO

CONSULTÓRIO, ESCOLHEU UMA BONECA PARA BRINCAR.


SEGUNDO

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ESTUDOS SOBRE ​ATIVIDADES LÚDICAS​, A BONECA É CONSIDERADA
UM

OBJETO ESTÁTICO. COMENTE ESTA ATITUDE.

2. E
​ NQUANTO BRINCAVA, LAURA RELATAVA O QUE ESTAVA FAZENDO.

COMO

VOCÊ APROVEITARIA ESTE MOMENTO PARA DESENVOLVER A


LINGUAGEM

ORAL E CONHECER MELHOR O HISTÓRICO FAMILIAR DA PACIENTE?

CASO III – O paciente Pedro Paulo tem a linguagem bastante desenvolvida


para a sua idade, porém manifestou somente quando solicitado. Possui boa
motricidade. É capaz de desenhar, escrever o próprio nome. Escreve outras
palavras, utilizando apenas algumas letras da palavra (pré-silábico). Explora
objetos e situações novas. É uma criança apática, dominada, sem decisões
próprias, demonstra muita insegurança principalmente quando está
manuseando objetos escolares.

Vê na família, principalmente a mãe, aquela que sabe tudo, que comanda tudo.
Coloca-a em papel de destaque e em tamanho maior que os outros elementos.

Segundo Freud, se encontra na fase fálica, com exagerado apego à mãe. É


uma criança capaz de ouvir e reproduzir o que ouviu.

Demonstrou organização e lógica de pensamento e de acordo com as reações


diante dos objetos escolares. O paciente sente aversão à escola, fato este que
pode ser conseqüência do pouco desenvolvimento em relação à escrita e
leitura e ele se sente inferior perante o seu grupo. Não vê na escoa, ainda um
espaço de crescimento, formação, alegria e bem estar.

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EXTRA 1 - ESPECIFICIDADES DE CLÍNICA INFANTIL - ​pág. 103


É preciso trabalhar resgatando sua auto-estima, oferecendo-lhe e
possibilitando-lhe mostrar seu potencial, para que desenvolva suas habilidades,
numa troca de confiança para que se liberte de seus anseios, com
autoconfiança, material mais atrativo, jogos e brincadeiras.

Abandonado pela mãe e criado pela avó paterna, sua história de vida é
marcada por desunião, separação, carências materiais e afetivos. O paciente
demonstrou inquietação, não concentrando nas brincadeiras, nervosismo,
desorganização de pensamento. É observador, mas não demonstrou
curiosidade. Demonstrou aversão às fotografias e gravuras envolvendo
situações de família e escola, prendendo-se mais a atenção a uma fotografia
contendo uma criança só.

Não demonstrou paciência nos jogos que exigiam tal habilidade e demonstrou
também se sentir isolado e inseguro. Considerando os estágios de
desenvolvimento segundo Piaget, encontra-se no estágio das “Operações
Concretas”, uma vez que agrupa, com muita dificuldade, cor, forma, tamanho,
etc. E compreende também com dificuldade, termos de relação.

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Com base nos casos apresentados, faça um exercício para fixação da
matéria. Exemplo:

1. COMO SERIA A INTERVENÇÃO PSICANALÍTICA NESTE CASO?

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Este material é parte das aulas do Curso de Formação em Psicanálise.
Proibida a distribuição onerosa ou gratuita por qualquer meio, para não alunos
do Curso. Os créditos às obras usadas como referências ou citação constam
nas Referências Bibliográficas.

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