The Role of Non-Governmental Organizations in International Cooperation in Public Health
Marco Aurélio Antas Torronteguy Resumo
Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo. Pesquisador no Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (CEPEDISA). O presente artigo pergunta pela possibilidade de Endereço: Av. Dr. Arnaldo, 715, CEP 01246-904, São Paulo, SP, as ONGs atuarem na cooperação internacional sa- Brasil. nitária e pelo modo como essa atuação é regulada. E-mail: marco.torronteguy@cepedisa.org.br. Primeiramente se apresenta a cooperação inter- Sueli Gandolfi Dallari nacional e sua relação com a saúde pública. Então Professora Titular da Faculdade de Saúde Pública da USP. são referidos dados sobre a cooperação bilateral Endereço: Av. Dr. Arnaldo, 715, CEP 01246-904, São Paulo, SP, Brasil. sanitária brasileira, nos quais se pode verificar o E-mail: sdallari@usp.br reconhecimento formal das ONGs como parceiras dos Estados. Isso permite refletir sobre o papel das 1 Parte deste artigo decorre de pesquisa de doutoramento do ONGs na cooperação e se percebe que, embora o autor, orientada pela autora, na Faculdade de Direito da USP, direito internacional legitime a atuação das ONGs, financiada pela FAPESP. ele regula essa atuação de modo incipiente. Isso sugere importantes aspectos a serem aperfeiçoados na relação jurídica que as ONGs travam com Estados no campo da saúde pública. Palavras-chave: Cooperação Internacional; Organi- zações não Governamentais (ONGs); Saúde Pública; Direito Sanitário.
314 Saúde Soc. São Paulo, v.21, n.2, p.314-322, 2012
Abstract Introdução This article discusses the possibility of the NGOs Em que medida o direito legitima a atuação das acting on international health cooperation and how organizações não governamentais (ONGs) em coo- this acting is regulated. Firstly, the international peração internacional? Como o direito regula a sua cooperation and its relation with public health is atuação? Em que pese a importância de um estudo presented. After that, data on Brazilian bilateral amplo sobre a participação em geral das ONGs nas health cooperation are brought in, in which it is mais diversas formas de cooperação internacional, possible to find the formal recognition of NGOs as esta seria uma tarefa hercúlea – para não dizer, partners of States. This allows the consideration of impossível. Portanto, nos limites deste trabalho, é the role of NGOs in health cooperation. Although possível perguntar como o direito legitima, em um the action of NGOs is legitimated by international dado contexto, a participação da sociedade civil or- law, their regulation is just beginning. This sug- ganizada que ocorre em um dado tipo de cooperação gests important issues to be improved in the legal internacional. Essas duas delimitações do estudo relation between NGOs and States in the field of dão os contornos do trabalho proposto. public health. A primeira delimitação diz respeito ao contexto Keywords: International Cooperation; Non Gov- em que, concretamente, foram levantados os dados ernmental Organizations (NGOs); Public Health; sobre a atuação das ONGs. Trata-se do universo de Health Law. atos bilaterais celebrados entre o Brasil e os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), desde a independência desses países até o ano de 2009. A segunda delimitação refere-se ao conteúdo da cooperação analisada. Neste particular, o traba- lho versa sobre a cooperação bilateral em matéria sanitária. Ou seja, procura-se compreender o papel das organizações não governamentais na coopera- ção internacional em saúde pública. Para tanto, pri- meiramente é necessário apresentar a cooperação internacional em saúde, para, em seguida, referir dados de cooperação bilateral. Estudo de documen- tos internacionais indica que o direito legitima a atuação das ONGs, mas não regula suficientemente esse agir. Então, propõe-se uma reflexão sobre a ne- cessidade de regulação da atuação das ONGs. Depois, a título de considerações finais, é apresentado um balanço do estudo realizado.
Cooperação Internacional e Saúde
Pública De maneira geral, a cooperação é um modo de relação pacífica entre Estados, em oposição à possibilidade de conflito. Muitas podem ser as formas de coopera- ção (Torronteguy, 2009). Quanto à participação dos Estados, a cooperação pode ser bilateral, quando envolver apenas dois Estados; pode ser multilate- ral, quando envolver vários Estados; ou pode ser
Saúde Soc. São Paulo, v.21, n.2, p.314-322, 2012 315
triangular, situação especial na qual há um doador, de contenção do comunismo e à divisão da Europa. um recebedor e um terceiro que executa as ações de Ocorreram pesados investimentos para a reconstru- cooperação no país recebedor. A fonte de financia- ção da Europa, arrasada pela II Guerra, especialmen- mento implica a distinção entre cooperação pública, te para a recuperação das indústrias europeias. Já no quando os recursos são governamentais; privada, início do período da bipolaridade, o presidente norte- quando os recursos são não-governamentais; ou americano Truman, em discurso de 1949, cunhou os mista, quando há recursos de ambas as fontes. A termos desenvolvimento e subdesenvolvimento. natureza da cooperação pode distingui-la entre coo- A dinâmica Norte/Sul, por sua vez, foi consequ- peração política, na qual, por exemplo, se fortalecem ência da descolonização da África e da Ásia, quando as instituições democráticas, ou há intercâmbio surgiram novos Estados, ou seja, novos atores das de experiências eleitorais; cooperação econômica, relações internacionais e sujeitos do direito inter- que visa a aumentar a renda do país recebedor ou nacional. A antiga relação metrópole-colônia cedeu a oportunizar ganhos a ambos os envolvidos; ou lugar a relações de dependência que impulsionam cooperação técnica que envolve capacitação, troca cooperação interessada na conservação de antigos ou transferência de conhecimento ou tecnologia. laços de influência e poder. Neste período houve um Note-se que a cooperação econômica pode ser fi- esforço dos países em desenvolvimento em buscar nanceira ou não-financeira, conforme haja ou não seus próprios interesses, ou seja, em escapar da ar- empréstimos de um país a outro. Note-se, também, madilha da bipolaridade. Neste contexto ocorreram que pode haver cooperação mista, com diferentes a Conferência de Bandung de 1955, o Movimento dos elementos de ordem política, econômica e técnica. Não-Alinhados e a Conferência das Nações Unidas No que se refere à temática da cooperação, ou seja, para o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD) ao seu objeto, pode se tratar de cooperação geral, de 1964, na qual se forjou o Grupo dos 77, o qual se sem um escopo delimitado (normalmente o início opunha às concepções liberais dos países do Norte dos laços de cooperação), mas também pode tratar-se (Cordellier, 2002). de cooperação setorial (por exemplo, em matéria de Em um terceiro momento, a globalização marcou saúde pública) ou inter-setorial (envolvendo mais de o fim da bipolaridade. Paralelamente ao aumento da um setor da administração e das políticas públicas, dependência econômica, consagram-se novos atores por exemplo: ambiental e sanitária). Finalmente, das relações internacionais (empresas transnacio- quanto à forma, a cooperação pode ser informal, nais, ONGs de alcance transacional, indivíduos). quando não houver documento ou acordo que a Neste momento o PNUD desenvolve o conceito de de- constitua ou regule, mas também pode ser, e nor- senvolvimento integral (escapando a uma percepção malmente é, formal. A formalização da cooperação de desenvolvimento limitada à medição da renda) e dá-se por meio de acordos de cooperação celebrados concebe o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). entre os Estados ou entre Estados e organizações. Fortalecem-se as condicionalidades na cooperação Um tipo especial de formalização da cooperação internacional: trata-se da exigência de contraparti- internacional é a sua institucionalização, ou seja, a das (que podem envolver ações econômicas, respeito sua constituição e regulamentação por organismos a um standard de direitos humanos, entre outros). O internacionais multilaterais. No que se refere à co- foco da cooperação se volta para a produção de bens operação no domínio da saúde pública, trata-se de públicos globais, como a paz e a democracia. um desdobramento do que se chama de cooperação Se a globalização tornou o mundo complexo, para o desenvolvimento. rompendo com a dualidade bipolar da Guerra Fria, A cooperação para o desenvolvimento tem se os atentados às torres gêmeas potencializaram a construído a partir de três dinâmicas internacio- complexidade (novas formas de terrorismo, frag- nais: Leste-Oeste, Norte/Sul e globalização (Ayllón, mentação do poder e dos riscos) e, paradoxalmente, 2007; Vernières, 1998). A primeira dizia respeito à propiciaram nova dualidade (aliados da “guerra Guerra fria, às iniciativas engendradas pelo Plano contra o terror” versus “eixo do mal”). A cooperação Marshall, de 1948-1952, à política de alinhamento, internacional não ficou imune às repercussões deste
316 Saúde Soc. São Paulo, v.21, n.2, p.314-322, 2012
fatídico episódio. O 11 de setembro teve influências Para aprofundar o estudo sobre a cooperação sa- consideráveis sobre a cooperação internacional. nitária especificamente, delimita-se o universo de Com efeito, desde 2001, maior volume de recursos análise na cooperação que o Brasil, bilateralmente, passou a ser destinado para a cooperação com os desenvolve com cada um dos PALOP. países envolvidos com a guerra contra o terror e com os Estados frágeis, supostamente em risco de abrigar redes terroristas internacionais. Neste Legitimação das ONGs: o caso da mesmo período tem-se verificado uma desaceleração cooperação Brasil-PALOP no aumento do volume de cooperação com a África Na presente seção são referidos dados de pesquisa subsaariana (Sanahuja, 2007). em que foram analisados os atos bilaterais celebra- Por outro lado, desde o ano 2000, a cooperação dos entre Brasil-Angola, Brasil-Cabo Verde, Brasil- tem sido impulsionada pelos Objetivos de Desen- Guiné-Bissau, Brasil-Moçambique e Brasil-São Tomé volvimento do Milênio (ODM). Consagrados pela e Príncipe (Torronteguy, 2010). Por um lado, cada Declaração do Milênio, adotada pela Assembleia uma dessas relações bilaterais possui suas carac- Geral das Nações Unidas sob a forma de resolução terísticas, sua densidade jurídica, suas temáticas (ONU, 2010), em setembro do ano 2000, os ODM são principais, o que em boa medida se deve às condições um conjunto de oito proposições principais acompa- do próprio país. Por outro lado, o conjunto desses nhadas de metas mais específicas e indicadores de cinco casos possui certa unidade, não apenas porque avaliação. Os oito objetivos centrais são os seguin- os cinco países são africanos, de língua portuguesa tes: erradicar a fome e a pobreza extrema; promover e descolonização tardia, mas também porque suas educação primária universal; promover igualdade demandas em matéria de direitos sociais e, especial- de gênero; reduzir a mortalidade infantil; promover mente, saúde pública, são próximas. a saúde materna; combater o HIV/AIDS, a malária O universo investigado na referida pesquisa e outras doenças; assegurar a sustentabilidade foi a totalidade dos atos bilaterais assinados pelo ambiental; e desenvolver um esforço global pelo Brasil com cada um dos mencionados países. Isso desenvolvimento2. Em suma, a Declaração permite compôs um acervo abrangente, pois inicialmente a articulação entre a cooperação internacional e os nenhum filtro foi aplicado para o estudo dos atos direitos humanos, com expressa inclusão da saúde. de cooperação em saúde. Foram analisados todos Ademais, a nova agenda da cooperação internacional os atos bilaterais, compondo um conjunto de cento tem prestigiado os chamados bens públicos globais, e setenta e seis atos, dos quais nove não estão vi- assim como os bens públicos regionais (Sanahuja, gendo. Da totalidade de atos bilaterais analisados, 2007). Podem-se listar: a paz e a segurança interna- verificou-se que noventa e três tratam, direta ou cionais, o combate ao crime organizado internacio- indiretamente, de temas da cooperação sanitária – nal, a preservação do meio ambiente, o combate ao destes noventa e três, exatamente um terço, trinta e aquecimento global e, precisamente no que concerne um, tratam diretamente da cooperação sanitária3. Os à saúde, o controle de enfermidades infecciosas ou dados foram coletados do sítio eletrônico da Divisão pandemias de escala global – tais como a SARS, a de Atos Internacionais do Ministério das Relações gripe H1N1, o HIV/AIDS, a tuberculose e a malária. Exteriores do Brasil (DAI/MRE)4. Os atos bilaterais5
2 Ver: <www.developmentgoals.org>. Último acesso em: 8 jun. 2010.
3 Essa pesquisa distinguiu entre o conjunto de atos bilaterais de cooperação sanitária stricto sensu, ou seja, cujas ações temáticas estão no âmbito da saúde pública, e o conjunto lato sensu, no qual estão contidos os atos do conjunto stricto sensu mais os atos bilaterais indiretamente sanitários (atos sobre a cooperação em geral e atos cujos temas de ação estão no âmbito de fatores condicionantes da saúde). 4 Ver: <http://www2.mre.gov.br/dai/home.htm>. Último acesso em: 8 jun. 2010. 5 Fugiria à delimitação temática deste trabalho discutir a natureza jurídica desses atos bilaterais. Para os fins da pesquisa, foi adotada a classificação do Ministério de Relações Exteriores do Brasil. Não obstante isso, para um estudo dos tratados na ordem jurídica brasileira, ver: Medeiros, 1995; Dallari, 2003.
Saúde Soc. São Paulo, v.21, n.2, p.314-322, 2012 317
analisados são de cinco tipos: acordos de coopera- atos bilaterais Brasil-PALOP de cooperação sanitária ção, ajustes complementares, programas de trabalho stricto sensu estabelecem que ações de cooperação ou programas executivos, protocolos de intenções e sanitária poderão ser financiadas ou executadas por memorandos de entendimento. Estes instrumentos organizações não governamentais. jurídicos incluem tipos de acordos em forma simpli- Este achado permite afirmar, sob o ponto de vis- ficada – prática diplomático-jurídica dos governos ta legal, que as ONGs são atores legitimados pelos brasileiros desde a constituição de 1946 (Medeiros, Estados para atuar na cooperação internacional 1995, p. 436). Eles são exemplos da farta nomenclatu- estabelecida por estes mesmos Estados. Isso indica ra dos tratados internacionais, ainda que por vezes oportunidades para a participação da sociedade exemplifiquem tratados bilaterais de importância civil organizada nos processos de cooperação inte- reduzida (Rezek, 2005, p. 16). restatal. Por outro lado, falta compreender em que Essa pesquisa documental indicou recente medida esse reconhecimento formal se traduz em formalização do reconhecimento de organizações regulação. não-governamentais como atores da cooperação bila- teral. Verificou-se que quase 60% dos atos bilaterais A Necessidade de Regulação da sobre cooperação sanitária Brasil-PALOP contém cláusula que permite triangulação para obtenção de Atuação das ONGs recursos junto a outros atores internacionais. São Um estudo que apenas indica que atos bilaterais de nove com Angola, quatorze com Cabo Verde, quatro cooperação formalmente reconhecem a possibilida- com Guiné-Bissau, dezessete com Moçambique e de de atuação das ONGs é importante, porque traz onze com São Tomé e Príncipe, totalizando cinquen- um achado sobre uma tendência contemporânea ta e cinco atos bilaterais. Destes, cinquenta reconhe- da cooperação sanitária. Não obstante isso, é um cem a possibilidade de que atividades da cooperação estudo ainda insuficiente no que diz respeito espe- sejam realizadas com recursos oriundos não apenas cificamente ao tema das organizações não governa- de terceiros Estados ou organizações internacionais, mentais, pois embora aponte a sua participação, não mas também de ONGs, agências internacionais de reflete sobre como ela é organizada pelo direito. E cooperação e fundos internacionais. Portanto, mais aqui está a contribuição que o presente artigo pre- de 50% dos atos bilaterais sobre cooperação sanitá- tende dar, que é ir além para refletir sobre o papel ria Brasil-PALOP contém cláusula que permite trian- que está sendo formalmente reconhecido para as gulação com ONGs. Com exceção de um acordo com ONGs no campo da cooperação em saúde. Moçambique de 1989, o qual já previa a possibilidade A literatura especializada distingue entre sujei- de parceria com organismos não governamentais, tos do direito internacional e atores das relações os outros quarenta e nove instrumentos bilaterais internacionais, incluindo as ONGs apenas neste são dos anos 2000. Portanto, verifica-se que existe segundo grupo. No que se refere ao direito interna- uma tendência de formalmente reconhecer o papel cional público, ainda é controversa a percepção dos das organizações não governamentais como atores indivíduos (Torronteguy, 2007) e organizações não da cooperação internacional. governamentais como sujeitos de direito, havendo Dos cinquenta atos bilaterais que contemplam muita resistência em tal reconhecimento, exceto cláusula de financiamento por terceiros incluindo quando se trata de reconhecê-los como sujeitos ONGs, trinta e um são acordos que indiretamente se fragmentários, com atuação muito limitada. Menos referem à saúde e dezenove são acordos de coope- controverso é o reconhecimento das ONGs como ato- ração sanitária stricto sensu. Então, considerando res das relações internacionais, sujeitos políticos da que o conjunto da cooperação sanitária em sentido cena internacional (Seitenfus, 2004), mas não pro- estrito – atos bilaterais que expressamente se re- priamente sujeitos de direitos e obrigações ao lado ferem a temas de saúde pública – totaliza trinta e de Estados e organizações intergovernamentais. um atos bilaterais, do total de noventa e três atos O reconhecimento do papel de entes não estatais, bilaterais, tem-se outro dado relevante: 61,3% dos como indivíduos e ONGs, tem ocorrido no compasso
318 Saúde Soc. São Paulo, v.21, n.2, p.314-322, 2012
da paulatina afirmação internacional dos direitos exemplo, no testemunho de um dirigente de organi- humanos. Por um lado, desenvolvem-se foros inter- zação não governamental francesa: nacionais jurisdicionais cujo acesso é franqueado Com essa antiga maneira de pensar, existente em a pessoas e ONGs que litigam contra Estados em muitas instituições e também em muitas ONGs do defesa de direitos humanos. Por outro lado, foros meu país, a França, é que se continuam concebendo internacionais de negociação, especialmente no os projetos para outrem, imaginando os desejos e âmbito das Nações Unidas, têm aberto espaço para as necessidades da sua população, impondo certas a participação de ONGs como observadores com formas de desenvolvimento, certos modelos técni- direito a voz, mas sem direito a voto. cos ou de organização nem sempre adaptados às realidades de diferentes países. Seitenfus cunhou a sigla ONGAT, para designar as organizações não governamentais de alcance Com isso, a crítica que muito se faz às organiza- transnacional (Seitenfus, 2005). Tratam-se de asso- ções internacionais, ao Banco Mundial, a certas ciações de direito privado criadas de acordo com o cooperações bilaterais, poderia ser feita também direito interno, mas que atuam em nome do interesse às próprias ONGs da cooperação internacional público para além das fronteiras do Estado onde (Fardeau, 2003, p. 66). foram formalmente constituídas. Por um lado, as Junte-se a isso o fato de que a atuação das ONGs ONGAT demonstram eficiência ao agir com presteza nem sempre considera as realidades, necessidades e diante de emergências internacionais, suprindo, culturas das comunidades locais. Esse é um aspecto muitas vezes, a ineficiência estatal. Por outro, são decisivo quando se trata de cooperação sanitária. duramente criticadas porque muitas vezes não há Afinal, sabe-se que o conteúdo do direito sanitário transparência sobre a origem dos seus recursos, ou se define localmente (Dallari, 2008). As dificuldades sobre a maneira de sua utilização. em sua maioria dizem respeito à transparência e a facilidade para criar uma ONGAT e a falta de à participação das comunidades, mas também é transparência de sua administração – sobretudo o importante referir que as regras sobre a atuação fato de drenar recursos públicos nacionais ou das dessas organizações são fragmentadas, diferentes organizações internacionais – deve servir de alerta conforme o Estado em que foram formalmente sobre seus verdadeiros alcance e propósitos. Não constituídas, conforme os Estados em que atuam e basta o propósito declarado, que muitas vezes se conforme as regras de outros parceiros não estatais esfumaça na demagógica retórica, de buscar a qua- com os quais se relacionem. Além disso, as ONGs lificação da democracia, fazendo com que ela se alce muitas vezes estabelecem suas próprias regras de da representativa para a participativa, para que as atuação e os Estados – principalmente os países em ONGAT recebam um salvo-conduto irrestrito para desenvolvimento – precisam lidar simultaneamente suas atividades (Seitenfus, 2005, p. 350-351) com diferentes procedimentos e regras de várias ONGs. Seitenfus observa, sobre as organizações não Além disso, a cooperação promovida pelas ONGs, governamentais de alcance internacional (ONGAT), especialmente quando se trata de organizações de que “fazendo concorrência aos tradicionais atribu- países desenvolvidos que atuem em países em de- tos do Estado, elas questionam o modelo clássico senvolvimento, por vezes é criticada por implicar de representação” (Seitenfus, 2004, p. 141). Se, por verticalidade (ABONG, 2003). Com efeito, uma das um lado, suas ações se baseiam em um princípio de críticas que a cooperação Norte-Sul recebe é justa- mente a imposição de o quê deve ser feito e como, solidariedade sem fronteiras, por outro lado esses sem participação das comunidades que recebem a organismos muitas vezes não têm transparência ajuda internacional. Esse é um problema não apenas ao agir. da cooperação realizada por governos, mas também Os países do Sul apresentam-se, na maioria dos daquela empreendida por organizações internacio- casos, como objetos da solidariedade das ONGAT nais intergovernamentais e também por ONGs. Essa internacionais, e não como sujeitos do processo. crítica é feita pelas próprias ONGs cooperantes, por Trata-se, por conseguinte, de uma manifestação
Saúde Soc. São Paulo, v.21, n.2, p.314-322, 2012 319
de relação de poder internacional (Seitenfus, 2005, padrões de conduta e regras de transparência para p. 339). que as ONGs efetivamente contribuam para que Levantar o problema da regulamentação da atu- sejam atingidos os fins da cooperação para o de- ação das ONGs no plano internacional não é mero senvolvimento – no caso da cooperação sanitária, o diletantismo acadêmico. Bem ao contrário, é tema acesso a bens e serviços de saúde. de grande importância, tendo em vista o crescente O que se percebe é que o direito internacional tem papel jurídico-político das ONGs no âmbito interno. legitimado o papel das ONGs tanto do ponto de vista Compreender essa função de agente social nacional do direito relacional (atos bilaterais) como do direito é importante para perceber a necessidade de que se institucional (organizações internacionais estatais). desenvolva a regulação internacional das ONGs. Essa dialética entre direito internacional relacional A literatura especializada do direito sanitário e direito internacional institucional (Dupuy, 1993) é reconhece que as organizações não governamentais interessante para compreender as diferenças e se- são parte do rol de atores sociais que devem parti- melhanças entre o direito vestefaliano interestatal e cipar da formulação de políticas públicas de saúde o contemporâneo fenômeno das organizações inter- localmente (Hunt, Khosla, 2008, p. 108). Veja-se, nacionais. No que concerne ao direito internacional por exemplo, a contribuição que a sociedade civil institucional, nos foros nos quais as ONGs estão organizada tem dado, desde o início, ao programa legitimadas a atuar começa a se desenvolver alguma brasileiro de combate ao HIV/AIDS, para enfrentar regulação deste agir não-estatal, mas que ainda é o estigma social e para promover o acesso a trata- precária, como no caso da Organização Mundial do mento, notadamente a medicamentos (Góis, 2003). Comércio (Sanchez, 2006). Outro exemplo pode ser O crescente desenvolvimento das ONGs não ocorre o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas apenas no Brasil. No contexto argentino, há impor- (Nader, 2007). No que se refere ao direito interna- tante estudo crítico sobre a atuação das ONGs que cional relacional essa regulamentação é ainda mais pergunta até que ponto elas podem ser consideradas incipiente, como visto com relação à cooperação mais eficientes que os Estados (Forni et al., 2006). Brasil-PALOP, cujos atos bilaterais reconhecem a De maneira geral, as ONGs se apresentam como possibilidade de atuação de ONGs, mas não dispõem interlocutoras da sociedade em face do Estado e, sobre o controle deste agir ou sobre a sua necessária mutatis mutandis, como executoras do papel do publicidade e transparência. Estado em face da sociedade. Ocorre que o agir das ONGs deve ser observado, porque ao crescerem em Considerações Finais importância social elas podem, equivocadamente, substituir a voz da própria comunidade para a As ONGs, embora não sejam consideradas sujeitos qual elas se apresentaram como instrumento. Isso do direito internacional público pela literatura espe- implica o risco de inverter a situação original: a cializada em direito internacional, podem ser reco- sociedade se tornar um instrumento nas mãos das nhecidas como atores das relações internacionais. ONGs. Trata-se do problema da ONG que sucumbe Os atos bilaterais e documentos de organizações à perspectiva de mercado, promovendo um enfren- internacionais estatais legitimam a participação tamento apenas superficial dos problemas sociais, das ONGs na cooperação internacional como poten- de maneira a ser uma organização conservadora, e ciais parceiras. No entanto, não foi encontrada uma não transformadora da realidade. Para que isso não regulação minuciosa ou geral para a atuação das aconteça, as ONGs não devem deixar de promover ONGs, a qual, tudo indica, ainda é discricionária e a mobilização social (Farias et al., 2006). Por tudo pouco regulada. Isso sugere importantes aspectos isso, deve-se olhar criticamente para a possibilidade a serem aperfeiçoados na relação jurídica que as de atuação das ONGs em triangulação com Estados ONGs travam com Estados. Embora no âmbito das em programas de cooperação internacional. Não se organizações internacionais comece a haver uma re- trata de evitar essa participação, que pode ser muito gulação da atuação das ONGs, no campo das relações positiva, mas trata-se de pensar como estabelecer bilaterais essa ainda é uma tarefa a ser feita.
320 Saúde Soc. São Paulo, v.21, n.2, p.314-322, 2012
Enfim, o objetivo do presente artigo foi refletir GÓIS, J. B. H. A mudança no discurso educacional sobre o papel que está sendo formalmente reconheci- das ongs/aids no Brasil: concepções e do para as ONGs no campo da cooperação em saúde desdobramentos práticos (1985-1998). Interface – pública. A contribuição deste estudo é indicar uma Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, v. 7, n. premente necessidade: as relações bilaterais de coo- 13, p. 27-44, 2003. peração, que já reconhecem o papel das ONGs como HUNT, P.; KHOSLA, R. Acesso a medicamentos parceiras dos Estados, precisam agora estabelecer a como um direito humano. Sur – Revista regulação desse agir, notadamente no que concerne Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, v. a critérios para transparência e participação da 5, n. 8, p. 101-21, jun. 2008. comunidade. MEDEIROS, A. P. C. de. O poder de celebrar tratados. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, Referências 1995. ABONG. Outro diálogo é possível na cooperação NADER, L. O papel das ONGs no Conselho Norte-Sul. São Paulo: Peirópolis, 2003. de Direitos Humanos da ONU. Sur – Revista AYLLÓN, B. La cooperación internacional para Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, v. el desarrollo: fundamentos y justificaciones 4, n. 7, p. 6-25, 2007. en la perspectiva de la teoría de las relaciones ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - ONU. internacionales. Carta Internacional, São Paulo, v. United Nations Millenium Declaration. Disponível 2, n. 2, p. 32-47, out. 2007. em: <http://www.un.org/millennium/>. Acesso em: CORDELLIER, S. (Coord.). Le dictionnaire 8 jun. 2010. historique et géopolitique du 20e siècle. 2. ed. REZEK, F. Direito internacional público: curso Paris: La Découverte, 2002. elementar. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. DALLARI, P. B. de A. Constituição e tratados SANAHUJA, J. A. ¿Más y mejor ayuda?: la internacionais. São Paulo: Saraiva, 2003. Declaración de París y las tendencias en la DALLARI, S. G. O conteúdo do direito à saúde. In: cooperación al desarrollo. In: MESA, M. Paz y SOUSA JÚNIOR, J. G. de; et al. (Orgs.). O direito conflictos en el siglo XXI: tendencias globales. achado na rua: introdução crítica ao direito à Anuario 2007-2008. Madrid, Barcelona: CEIPAZ, saúde. Brasília: Cead/UNB, 2008. p. 91-101. Icaria, 2007. p. 71-101. DUPUY, R.-J. O direito internacional. Coimbra: SANCHEZ, M. R. Breves considerações sobre os Almedina, 1993. mecanismos de participação para ONGs na OMC. Sur – Revista Internacional de Direitos Humanos, FARDEAU, J. M. Cooperação entre associações São Paulo, v. 3, n. 4, p. 102-25, 2006. da França e do Brasil. In: ABONG. Outro diálogo é possível na cooperação Norte-Sul. São Paulo: SEITENFUS, R. Manual das organizações Peirópolis, 2003. p. 65-71. internacionais. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. FARIAS, M. S. Q. de; DIMENSTEIN, M. Configurações do ativismo anti-aids na SEITENFUS, R. Relações internacionais. Barueri: contemporaneidade. Psicologia em Estudo, Manole, 2004. Maringá, v. 11, n. 1, p. 165-74, 2006. TORRONTEGUY, M. A. A. Cooperação FORNI, P.; LEITE, L. V. El desarrollo y legitimación internacional. Captura Críptica: Direito, Política, de las organizaciones del tercer sector en la Atualidade, Florianópolis, n. 2, v. 1, p. 633-45, jul.- Argentina: hacia la definición de un isomorfismo dez. 2009. periférico. Sociologias, Porto Alegre, n. 16, p. 216- 49, 2006.
Saúde Soc. São Paulo, v.21, n.2, p.314-322, 2012 321
TORRONTEGUY, M. A. A. O direito humano à saúde no direito internacional: efetivação por meio da cooperação sanitária. 2010. Tese (Doutorado em Direito) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo. TORRONTEGUY, M. A. A. O problema da pessoa humana como sujeito do direito internacional. In: MENEZES, W. (Coord.). Estudos de direito internacional: anais do 5º Congresso Brasileiro de Direito Internacional. Vol. XI. Curitiba: Juruá, 2007, p. 66-73. VERNIÈRES, M. Norte y sur: renovar la cooperación. Bilbao: Mensajero, 1998.
Definições de Política Pública na Ótica da Carta Política do Estado Brasileiro: Áreas de Preservação Permanente e Estudo Ilustrativo das Políticas Públicas no Município de Suzano – Estado de São Paulo
Capítulo de Livro - Conpedi - A Cooperação Jurídica Internacional em Matéria Penal e A Efetividade Da Tutela Penal Nos Sistemas Econômicos - Com Autoria
Manual da boa-fé objetiva nos planos de saúde: análise dos deveres de conduta, conceitos parcelares e direito fundamental à saúde na formação dos contratos de plano de saúde