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As fronteiras entre o saber orgânico e forte e poderosa, que tem uma função.

Eu falarei
o saber sintético de uma força que chamarei de transjluência, que é
a força compositora da confluência.
Antônio Bispo dos Santos
Cabelo da branca é liso
Cabelo da branca balança
Tecendo Redes Antirracistas: Áfricas, Brasis, Portugal
Anderson Ribeiro Oliva, Marjorie Corrêa Marona
Cabelo da branca escova
e Renísia Cristina Garcia Filice (Eds.)
São Paulo: Autêntica, 2019.
Cabelo da branca emprancha
Cabelo da branca é bonito
Esta fala não é minha. Esta é uma fala ances- Mas não enrola e nem segura trança
tral. Uma fala que tem uma trajetória. Uma fala Cabeço da nêga escova
muito poderosa. Digo isso para afirmar que não Cabelo da nêga balança
tenho nenhuma preocupação em se essa fala nos Cabelo da nêga alisa
causará algum incômodo. Nos causar. Eu falo ge- Cabeço da nêga emprancha
ralmente o que quero ouvir. Para não correr o risco Por que essa nêga é façoila?
de não ser escutado. Pelo menos eu já ouvi, e já Porque seu cabelo entrança e enrola
está de bom tamanho. Portanto, é uma fala que fa- A branca sambando rebola
larei para nós, e também para mim, pois é uma fala A nêga sambando faz ginga

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A branca rezando é devota Isso tem uma base fundamental muito impor-
A nêga rezando faz mandinga tante: a diferença entre o pensamento colonialista e
A branca escrevendo explica o contracolonialista. E estou dizendo "contracolo-
A nêgafalando ensina nialista" e não "decolonialista". E por que digo
Eu vi essa branca no shopping isso? Se qualquer um de vocês chegar em um qui-
Eu vi essa nêga na feira lombo e falar de decolonialidade, nosso povo não
A branca me olhava charmosa entenderá. Mas se disser "contra-colonialismo",
A nêga me olhavafaceira nosso povo entende. Por que nosso povo entende o
Da branca eu sinto saudades contracolonialismo, mas não entende a decoloniali-
Da nêga eu sinto banzeira.
dade?
Nessa poesia, confluí com aquelas que lutam Eu fui um camarada que aprendeu muita coisa
pelo fortalecimento através de nossos cabelos. Eu desmanchando as coisas. Eu desmanchava uma
não disse que o cabelo da branca é feio. Porque esteira pelas bordas e refazia a esteira. Todas as
não precisamos disso. O nosso olhar está voltado coisas que nossos mais velhos não precisavam
para a beleza. Nós transfluímos, através da cultura, mais, eles mandavam que nós desmanchássemos e
a imposição colonialista. Assim como a água trans- refizéssemos. Porque é também desmanchando que
flui, por baixo da terra ou pelo ar, nós transfluímos a gente aprende a fazer. Meus mestres e minhas
pela cosmologia e pela cultura. mestras me ensinaram assim. Mas desmanchamos
uma

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coisa que já está pronta. O que não está pronto, não minha fala, Boaventura de Sousa Santos, com
desmanchamos: a gente impede de fazer. Nós com- quem já debati vária vezes, com pontos de vista
preendemos que só desmanchamos o que está diferentes. E não estou dialogando com a fala aca-
pronto. dêmica de Boaventura, mas com sua fala de traje-
Na nossa compreensão, a colonização não é tória, sobre a qual já discutimos. Boaventura San-
um fato histórico, é um processo histórico. Nós tos está certo em discutir a descolonização. Mas
não perdemos nessa história. Então, como é que está discutindo no lugar errado. Ele tem de discutir
vou desmanchar o que ainda não foi feito? Eu vou em Portugal. E dizer ao povo dele para deixar de
impedir que seja feito. E tem outra questão: mes- colonizar. Aqui, nós discutimos. Se ele não conse-
mo que estivesse feita, eu não desmancharia, pois gue convencer o povo dele a deixar de colonizar, e
aí não tenho nada a aprender. Desmanchar é uma nós formos descolonizar, estamos enrascados. Por-
pedagogia do aprendizado para os nossos mais ve- que aí são eles colonizando na frente e nós des-
lhos. Então, eu não tenho o papel de desmanchar o manchando atrás. Passaremos a vida desmanchan-
colonialismo. Quem deve desmanchar o colonialis- do e eles fazendo.
mo é quem tentou colonizar. Digamos que eles te- Então devemos contracolonizar: impedi-los de
nham se arrependido -coisa que não acredito -e, fazer. Além disso, quando desmanchamos, alguém
então, agora vão desmanchar. pode refazer, porque os pedaços e as bordas estão
Cito aqui um nome que está na trajetória de feitos. Temos de triturar o colonialismo, para não

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sobrar um pedaço que se aproveite. E como fazer não éramos chamados de negros antes de o coloni-
isso? alista chegar. Tinham várias nominações, autono-
Eu tive um tio, jucazeiro, um operador de nos- minações. E o que os colonialistas fizeram? Deno-
sas defesas, que me dizia: "Meu querido, em al- minaram: chamaram todo mundo de negro. E eles
guns momentos temos de transformar a arma do usam uma palavra vazia. Uma palavra sem vida,
inimigo em defesa, para não transformarmos a nos- que é para nos enfraquecer.
sa defesa em arma. Porque quem só sabe usar a Nossas palavras são vivas. Por exemplo,
arma, perde. Para ganhar, tem de saber a defesa". E quando os povos originários diziam "Pindorama",
ele trabalhava na defesa. E me ensinou isso. Ele eles queriam dizer "terra das palmeiras". Quando
me ensinou também: "Meu filho, quando vier uma os colonialistas os chamam de "índios", usam uma
pessoa só na sua direção, encara! Se tu sentir von- palavra vazia, uma palavra sem vida. Todas pala-
tade de correr, corre! Porque o outro tem coragem, vras dos povos originários têm vida, são vivas. Por
ele veio sozinho. Agora se tiver dois, tu surra um isso, os colonialistas colocam uma palavra vazia
/

que o outro corre. E mole, é covarde". Essas técni- como nome para tentar enfraquecer. Só que nós,
cas, aprendemos. Então transformar a arma do ini- que somos integrados com a vida, aproveitamos e
migo em defesa, é o debate que faremos agora. colocamos vida nessa palavra. E então chega um
O colonialista gosta de denominar. Uma das tempo que essa palavra nos serve, porque ela cria
/

armas do colonialista é dar nome. Em Africa, nós força, porque ela nos move, anda com a gente.

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Nossa ancestralidade entra nessa palavra e a movi- ayó ... ), se a carga começa a pender para um dos
menta a nosso favor. lados, tiramos um peso de um lado e colocamos no
Para colocar esse nome, os colonialistas de- outro, para equilibrar. Se o colonialista me colocou
senvolveram pensamentos. E nós também. E é dis- um nome, tenho de colocar um nome nele para
so que falarei agora: do pensamento sintético e do equilibrar. Senão desequilibra e a carga vira para o
pensamento orgânico. Estou colocando nomes. Se meu lado. E ninguém quer que a carga vire.
uma das armas dos colonialistas é nos colocar no- Esses saberes são diferentes, por quê? São
mes, coloquemos nomes neles também. E coloque- saberes de cosmologias diferentes. O euro-cristão-
mos nomes que os enfraqueçam. Se eles disserem: colonialista-monoteísta, por ser monoteísta, pensa
"Não gosto que me chamem assim", nós responde- de forma linear. Ele só tem um deus. Só olha na
"'
mos: "Otimo, mas também não me chame assim". direção daquele deus, em uma direção: é mono. E"'
Se o colonialista me chamar de negro, chamarei vertical, é linear, não tem curva. Ele pensa e age
ele de branco. Se ele me chamar de preto, chama- assim. O povo dito contracolonialista - aqui nos
rei ele de amarelado. Se ele não quiser ser chama- autonomeamos e os nomeamos também - tem vá-
do de amarelado, não me chame de preto. rios deuses e várias deusas. E eles ainda doaram o
Essa é uma filosofia que aprendi na roça. deus deles para nós: vivem insistindo para dar seu
Quando levamos a carga em um animal, com um deus para nós. Mas qual é o deus que eles querem
cesto de um lado e outro cesto do outro Gacá, dar? Um deus colonizado!

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O euro-cristão primeiro colonizou Jesus Cris- diferença: a gente pensa de outro jeito. E é exata-
to. Jesus não nasceu na Europa e não tinha a cor, mente por isso que nós não perdemos.
nem o cabelo que os europeus queriam, mas eles A cosmologia do colonialista é euro-cristã-
colocaram a capital do cristianismo na Europa. monoteísta e a nossa é afro-pindorâmica-pagã-po-
Então, eles colonizaram Jesus, para tentar que ele liteísta. Para exemplificar isso, quero lembrar de
nos colonizasse. Eles colocam um negro soldado um debate que participei no Museu Nacional, com
para que esse negro soldado surre os outros negros. Eduardo Viveiros de Castro e Rita Segato, pessoas
/

Essa é a prática. Eu não preciso ir à Africa ou à que nunca li. O tema era "Descolonização do pre-
/

India para saber como eles se comportam lá. sente e contracolonização permanente: um mundo
Olhando como eles se comportam aqui, sei como (in)desejado que virá" (logo vemos que foram os
eles se comportam em qualquer lugar, porque o pretos que deram esse tema ...). O que eu fiz? Cha-
pensamento deles é único, então agem do mesmo mei todo mundo para discutir o contracolonialismo
jeito. - e eles não vêm porque não dão conta, porque
O povo politeísta, por ter vários deuses e vári- trazem a palavra embalada no papel, porque é as-
as deusas -e, portanto, olha rodando -,é um povo sim que se faz na academia, em uma fala linear.
que fala rodando, pensa rodando. Meu cabelo tam- Isso não quer dizer que o que eu faço é melhor
bém é rodando. A capoeira é rodando, no terreiro a do que o acadêmico: é preciso ter os dois jeitos,
gira é rodando, no reggae também rodamos. Tudo pois nós não somos mono. Quando as pessoas me
nosso é rodando. O tambor é redondo. E aí está a

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perguntam o que acho dos pretos que estão na aca- universidades em todas as regiões do país. E isso
demia, digo que, por não sermos mono, temos que porque essa fala não é minha, é nossa! Nesse mo-
ter uma parte dentro da academia e outra parte lá mento, eu sou apenas uma pessoa que se move por
fora. Uma parte dentro, preparando o terreno para essa fala. Essa fala é da nossa ancestralidade, da
explodir e outra parte lá fora para implodir o colo- nossa geração avó. Eu não preciso de Karl Marx e
nialismo. de outros acadêmicos: preciso de minha geração
Nessa mesa, eu disse que as universidades são avó, aquela que veio antes de mim e que me move.
as chocadeiras dos ovos do colonialismo, e a fun- Essa lógica é organizada em começo, meio e co-
ção das pretas e pretos que estão lá dentro é fazer meço. Minha geração avó é começo, minha gera-
esses ovos gorarem. Já a função de quem está fora ção filha é meio e minha geração neta é começo,
é trazer novos ovos fecundados e mudar quem nas- de novo.
cerá dentro da academia. E que da academia saiam Esse é o saber orgânico, aquele que diz respei-
doutores em humanidades, em vida e não em sinte- to a ser. O outro, o saber sintético, é aquele que
ticidade. envolve ter. Por isso, para nós não se sustenta de
Os jovens que entraram nas universidades pe- que a academia produz ciência e nós produzimos
las cotas, estão encontrando comigo no Encontro saber popular. Essa nomeação é por demais coloni-
de Saberes. Isso transfluiu por dentro da estrutura. alista, feita para nos esvaziar. Que popular é esse?
Meu livro é um dos mais citados por cotistas nas Popular de quem? Produzimos saber quilombola,
saber

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indígena, saber do povo de terreiro. Esses saberes
têm nomes. Popular é uma palavra vazia. ***
Observando essa situação, podemos dizer que
Eu falei de uma coisa chamada trans.fluência.
a sociedade é construída através de um saber sinté-
Os povos são trazidos da África para cá e confluem
tico, fragmentado, segmentado e doente. Os colo-
com os povos indígenas pela cosmologia. E mes-
nialistas têm uma doença chamada cosmofobia,
mo sem falarmos a língua deles, mesmo sem nunca
que é o medo do cosmos. Eles têm medo do deus
termos nos vistos antes, pelos modos de fazer e
deles. Por isso há tanta depressão nas universida-
jeitos de se comportar, nós nos entendemos. E nun-
des. Um sofrimento grande. Há gente deixando a
ca houve uma guerra entre os povos africanos e os
universidade, em um sofrimento grande. Há gente
povos indígenas, provocada por eles mesmos. Os
se suicidando, porque esse lugar é adoecido como
conflitos que aconteceram foram todos criados pe-
a sociedade.
los colonialistas. Nós africanos e indígenas con-
Já nós, estamos enfeitiçando esse lugar. O
fluímos pela cosmologia e, por isso, nos entende-
deus deles é do milagre. Os nossos, do feitiço. Eles
mos.
deram o deus deles para nós. Nós "aceitamos". E
Os colonialistas não esperavam por isso. Os
ajeitamos agora. Temos os nossos e o deles. E as-
euro-cristãos não esperavam que fizéssemos uma
sim, ou ajeitamos as coisas pelo milagre ou pelo
aliança com os indígenas - coisa que os próprios
feitiço. E assim vamos rodando!

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colonialistas não fizeram. Eles não fizeram por ter um tratar, para não tocar na terra. Ele só podia to-
essa doença que chamamos de cosmofobia. E onde car na terra depois de remover a superfície. Então
essa doença nasce? Na Bíblia, em Gênesis, quando criou-se a cosmofobia, que é o medo de deus. E
Deus diz para Adão: "A Terra será maldita por tua criou-se a sintetização, pois não se podia mais co-
causa, porque tu me desobedeceste ... Tu haverás de mer das plantas do modo como elas eram. Tudo
comer com a fadiga do suor de teu rosto ... Todas as deveria ser sintetizado. Criou-se também o terro-
tuas gerações serão submetidas à maldição perpé- rismo, porque ficaram os povos com medo uns dos
tua". Isso é um deus falando com o seu filho! outros. Tudo isso gerou um pensamento cruel e
E o que Ele fez aqui? Primeiro criou o traba- covarde. O colonialista não mata porque tem cora-
lho, quando disse: "A terra te oferece espinhos e gem: ele mata porque é medroso. Tem medo do
ervas daninhas ... Tu não podes comer aquilo que a outro, porque ele é só um. Ele só tem um deus. E
terra te oferece". Adão foi proibido de comer as nós somos muitos. E isso dá medo.
coisas vivas, proibido de comer a vida e obrigado a Digo isso para mostrar que há uma fundamen-
comer a morte. Ele teve que matar as plantas e tação cosmológica nessa história. Não tenho medo
plantar outras para poder comer. Depois Adão cri- de que sejamos enfeitiçados pela universidade. Ve-
ou a desterritorialização, pois Deus disse que a ter- jam: estamos vendo os colonialistas se reorgani-
ra era maldita, de modo que ele nem podia mais zando. O sindicato é uma fronteira entre o patrão e
pisar naquela terra; por isso os humanos usaram o empregado; o partido é uma fronteira entre o ci

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dadão e o Estado; a igreja é uma fronteira entre o da. Ele deixou de ser operário para ser sindicalista,
fiel e Deus. São três estruturas colonialistas muito mas não virou patrão. Ele ficou em um lugar de
parecidas. Qual é o enfeitiçamento? . "
nmguem.
Vejamos uma pessoa enfeitiçada: Lula. Ele O sindicato é um lugar que vende direitos,
nasce no semiárido brasileiro, sofre uma pressão mas não entrega. Vende um direito que quem deve
ambiental e não suporta. Ele não saiu de lá para entregar é o patrão. Se o patrão não entrega, o ope-
não morrer de fome. Outras pessoas enfrentaram a rário não recebe (mas o sindicalista recebe, porque
pressão ambiental e ainda vivem lá e construíram ele é remunerado para essa tarefa). Lula nunca saiu
maravilhas. Chegando em São Paulo, ele sofre ou- do sindicato: foi enfeitiçado. Ele deveria ter volta-
tra pressão: o preconceito por ser nordestino e a do ao tomo.
pressão por se tomar alguém de pensamento do Eu também fui sindicalista. Fui diretor da Fe-
Sudeste, que é um pensamento trabalhista. Assim deração dos Trabalhadores na Agricultura do Esta-
ele vira um operário e deixa de pensar como um do do Piauí (Fetag-PI), mas nunca saí da roça.
nordestino, passando a pensar como um operário. Nunca me enfeiticei, tanto que renunciei de lá
Depois vai para o sindicado, e assim entra na fron- quando notei que os quilombolas não tinham espa-
teira. E essa é uma fronteira que tem uma guarita ço ali. O que eu fiz? Transfluí, atravessei afrontei-
de um lado e uma guarita de outro. Lula passou ra por transfluência, não fui cooptado pela frontei-
pela primeira guarita, mas não passou pela segun ra. Rompi, atravessei.

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Podemos dizer que o programa Encontro de sabe, manda que ela pergunte no quilombo. E se o
Saberes que há na Universidade de Brasília e em doutor não sabe sobre isso, ele é desorientado. E é
outras universidades do Brasil é o enfeitiçamento o desorientado que orientará o estudante, que tam-
da estrutura. Enquanto estudantes negros entram bém não sabe. Quando esse estudante chega lá na
pelas cotas, nós entramos pelo Encontro trazendo comunidade ele se toma pesquisador. E eu, que
,
nosso saber. O que a academia faz? Como uma vou ensinar, viro o objeto de estudo. E muita doi-
pessoa daqui vira doutora? Veja essa cena, uma deira.
cena "muito bonita": uma pessoa, mesmo das nos- Boaventura de Sousa Santos chama esse pro-
sas, não sabe se o quilombo é socialista, comunis- cesso de extrativismo do saber. Eu já o alertei para
ta, comunitarista, liberalista ou revolucionário. E o fato de que nós somos extrativistas e não corto a
ela quer saber. Na graduação ela não consegue sa- árvore da qual eu tiro o fruto. Assim, para nós qui-
ber, pois não se ensina isso. Ela só pode saber isso lombolas, o extrativismo não é uma atividade pre-
na pós-graduação. E na pós-graduação é onde ela datória como ele pensa. Ele opôs o extrativismo do
adquire sua identidade acadêmica. saber à ecologia do saber. E eu mostrei a ele que o
Ela procura, então, o doutor da sociologia, da modo de ver que ele tinha era sintético e o meu,
história ou da antropologia e diz que quer ser ori- "' .
organ1co.
entada para descobrir qual modelo social há no E o que nós fizemos? Sentamos com os indí-
quilombo. O professor doutor, que também não genas de Boa Vista, pois há mais de setecentos in

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dígenas na Universidade Federal de Roraima tou se eu não tenho medo de me tomar vaidoso.
(UFRR) -,com os indígenas da Universidade Fe- Não! Porque essa fala não é minha. Essa fala é an-
deral Fluminense (UFF), com os indígenas das uni- cestral. Eu não tenho sequer o direito de me sentir
versidades de Pernambuco. E os indígenas, o povo dono, sozinho, dessa fala. Essa fala me move. A
de terreiro e nós, da Coordenação Nacional de Ar- minha vaidade é comunitária. E"' da minha geração
ticulação das Comunidades Negras Rurais Quilom- avó. A minha vaidade é ver vocês, pretos e pretas,
bolas (CONAQ), já estamos transfluindo. Decidi- aqui dentro da universidade.
mos que, a partir de 20 18, ou teremos cotas em Eu não conseguia falar a palavra "transfluên-
todos os programas de pós-graduação, ou as uni- cia". A transfluência é a nossa capacidade de rom-
versidades implantam o programa Encontro de Sa- per com instituições colonialistas, e foi isso que
beres ou as universidades não pesquisarão mais em nós fizemos. Nosso povo entrou no sindicato e
nossas comunidades. saiu. Nós quisemos ser sindicalizados, a Confede-
Sobre o problema da vaidade, um estudante de ração Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
doutorado do Museu Nacional da UFRJ, Rafael (CONTAG) não quis. E depois voltamos a ser qui-
Moreira, me perguntou sobre como eu lido com a lombolas. Nós fomos lá e voltamos. A mesma coi-
minha vaidade já que estou indo em diversas uni- sa com o partido. Não estou dizendo que o partido
versidades importantes falar sobre nossas coisas e seja desnecessário: estou dizendo que o partido é
que meu livro tem sido bem recebido. Ele pergun um lugar para ir, e não para ficar. Nós podemos

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,
passar por lá. E um lugar para negociarmos. Nego- transfluência é a força que compõe a confluência.
ciamos e voltamos às nossas comunidades. O Esta- Ela me disse que seu maior desejo era se aprofun-
do colonialista não é o nosso lugar. Essa sociedade dar mais na cultura afro, e eu disse a ela que o meu
não é o nosso lugar. Nosso lugar é a comunidade. era me aprofundar mais na cultura indígena. Então
Comunidade é feita de pessoas e essa sociedade é ela disse: "Como vamos fazer isso?". Lembrei que
feita de posses. Quem não tem nada nessa socieda- estava chovendo e disse: "Pelas transfluências!
de é mendigo. Mendigo não tem nem respeito. Como um rio de água doce no Brasil conflui com
Nosso lugar é o terreiro, é o quilombo, é a aldeia: um rio de água doce no continente africano? Pela
nosso lugar é o nosso território. Primeiro eu sou chuva! A água doce evapora aqui e, para evitar se
quilombola. Não sou brasileiro. Sou quilombola no tomar salgada no mar, caminha pelas nuvens e cai
,
Brasil. Eu pertenço a um território. na Africa. Isso é a composição da confluência".
Como nós confluímos dentro do Estado de
*** direito? Enquanto o indígena era selvagem e o qui-
lombola era criminoso - ou seja, quando não éra-
Falando ainda da força da transfluência, estive
mos sujeitos de direito-, tivemos muita dificulda-
recentemente em Niterói conversando com uma
de de nos aliar com os indígenas de uma forma
indígena que vive na floresta. Chovia muito e essa
mais poderosa. Mas na Constituição, nós e os indí-
moça chorava. Eu ainda não conseguia dizer que a
genas confluímos como sujeitos de direito. Pelas

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nossas culturas, nós transfl uímos a Constituição e Nós quilombolas não somos um. Cada qui-
fizemos alianças em nossos territórios. Nós, indí- lombo é um. Podemos até contribuir com os qui-
,
genas e quilombolas, enfeitiçamos o Estado de di- lombos dos outros, mas cada quilombo é um. E por
reito e nos encontramos. isso que os colonialistas nunca nos venceram. Eles
Há um perigo neste momento: as várias identi- precisariam de uma arma para cada quilombo, uma
dades, identidades econômicas, identidades traba- metodologia para cada quilombo, uma estratégia
lhistas, se sobressaem no discurso. Quase não se para cada quilombo. E eles não deram conta de
fala mais no Movimento dos Trabalhadores Rurais pensar em tudo isso. Nós temos a nosso favor um
Sem Terra (MST), nem em reforma agrária. E isso saber ancestral que nos ensina. Os colonialistas
é proposital. Entretanto, o MST caiu no feitiço. Em não. Eles têm um pensamento quadrado.
qual feitiço? O MST começou a discursar que a Outro dia um homem me perguntou, em uma
reforma agrária é de todos. Como o Partido dos fala que fiz em Belo Horizonte, o que eu achava
Trabalhadores (PT) achou que era o partido de to- sobre a alimentação dos terreiros no que diz respei-
dos. Como a Central Unica "' dos Trabalhadores to ao sacrifício dos animais. Quando fui responder,
(CUT) achou que era de todos. Quando dizemos disse a ele uma coisa que eu nunca tinha feito, mas
que somos de todos, estamos sendo mono, pois que poderia fazer. Eu disse a ele: "Estou em Minas
transformamos o todo em um. Foi quando isso Gerais. Aqui vocês adoram um chouriço. E terça-
aconteceu que o MST se complicou. feira irei no terreiro de Pai Ricardo e beberei san

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gue e cachaça com Exu. O animal que vai ofertar o em uma roça cercada, que tem escritura, que tem
sangue para bebermos morreu, mas o animal do "dono", para tomar conta daquilo ali? Na visão
chouriço também morreu. Portanto, a diferença deles é invasão mesmo. Um povo que segue o "Dai
não está em sacrificar o animal, mas no paladar. A a César o que é de César"? Não vai... E eu dizia:
gente gosta de sangue com cachaça como vocês "Vamos conversar... Vocês sabiam que Barrabás se
gostam de chouriço!". Isso é o que eu chamo de encontrou com Jesus uma vez antes de morrer?
pedagogia do impacto, que aprendi com Mãe Joa- Pois encontrou. Jesus era da oralidade. O que não
na. E aprendi contracolonizando Cristo. está na bíblia, Jesus falou mas não se escreveu.
Como Mãe Joana contracolonizou Cristo? Esqueceram de escrever, mas eu escutei sobre essa
Contando algumas histórias de Cristo a nosso fa- conversa entre Jesus e Barrabás. Barrabás
vor. E como eu contracolonizei Cristo para fazer perguntou:
reforma agrária? Contando algumas histórias de
-Jesus, meu irmão, o que tu queres?
Cristo a nosso favor. Vejam a história: quando eu
ia para uma assembleia de trabalhadoras e traba- - Eu quero a vida. A vida em abundância
para todo mundo.
lhadores rurais cristãos, eu chamava Cristo e dizia:
"Cristo, me ajuda a explicar para esse povo, por- -Engraçado, eu quero a mesma coisa. E por
que você não está conseguindo atingir esse
que sozinho não dou conta".
nível de vida em abundância para todo
Como é que uma comunidade cristã entrará

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mundo? Então tu chamas o povo e diz que fez uma
- Por conta dos poderosos. aliança com Barrabás; então vocês acom-
- Eu também. Os poderosos que me impe- panham Barrabás. Eu armo o povo todo e
dem. Os poderosos que te impedem usam nós derrotamos os inimigos. Tu tens o dom
que armas? da divindade e perdoas todo mundo, e have-
rá vida em abundância para todo mundo.
- Eles usam armas letais.
-Mas isso não pode, Barrabás. Meu Pai não
-E tu, Jesus, usas que armas?
concorda.
-Eu uso a palavra.
- Então morreremos os dois. Porque tu, com
- Ah, aí está a diferença entre nós. Eu tam- a palavra, só falas com os pobres. Os ricos
bém uso armas letais. Se os poderosos usam nem vão para a tua reunião. Tu ficas man-
armas letais, também uso armas letais. Se dando os pobres dividirem, se eles não têm
alguém usa armas letais e tu usas a pala- nada para dividir. Assim não se conserta o
vra, tu perderás. A não ser que nós façamos mundo. E eu morrerei também. Porque es-
uma aliança. tou sozinho com as armas. E os poderosos
-Qual aliança? são muitos.
-Jesus, tu tens o dom da palavra. Tu falas e
o povo escuta. Eu falo e o povo corre. Mas E, para contracolonizar Cristo, eu perguntava
eu tenho o dom das armas e tu não o tens. aos trabalhadores: "Pessoal, quando Jesus estava

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sendo julgado, quem estava ao lado dele?". O pes- manda. O certificado coisifica vocês. O certificado
soal respondia: "Barrabás". E quando perguntado é como um código de barras: só serve para dar o
se deviam matar Cristo ou Barrabás, o que foi res- preço, não serve para determinar o que vocês sa-
pondido? "Mata Cristo." bem. E, com a formação de doutoras e doutores
Não é porque o povo não gostava de Cristo. O nossos, há o risco. Há vários doutores em história,
povo entendeu a mensagem de Barrabás. O que o sociologia, antropologia, geografia, mas trabalha-
povo pensou? Nós dizemos que matem Cristo e rão onde? Não haverá emprego. E aí é importante
seguimos Barrabás, então voltamos e soltamos que se juntem a nós, fazendo apenas o necessário,
Cristo. Só que não deu tempo. Os poderosos mata- tendo preguiça. Na sabedoria, saquear o Estado.
ram os dois, porque Jesus não compreendeu a es- Nós não pedimos dinheiro ao Estado -nós pega-
tratégia. Resultado: eu nunca perdi uma ocupação mos carona. A corrupção só é ruim porque apenas
de terras. algumas pessoas o fazem. Se todo mundo fizesse, o
Paulo não gostava de Jesus. Quando ele viu problema estaria resolvido.
que Jesus era importante, colonizou Jesus. E vocês Muitas pessoas se preocupam com a religiosi-
estudantes cotistas negras e negros correm esse dade. Um dia, durante uma atividade do Encontro
risco também. Eles vão querer que vocês se sintam de Saberes na UnB, fomos ao quilombo de Mes-
importantes porque têm um certificado e vão que- quita. As pessoas ficaram preocupadas porque não
rer que vocês só façam aquilo que o certificado viram lá um terreiro, mas sim uma igreja. E aí é

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importante ir na hora da celebração para ver como tas outras pessoas. E como os colonialistas podem
as pessoas se comportam. E"' na celebração que se ganhar de nós desse jeito? O nosso saber é vivo.
vê se o povo está dominado ou não. Hoje, o maior medo da academia, apesar de
Por outro lado, as escolas do Estado não con- nos pesquisar, são os povos e as comunidades tra-
seguirão anular nossa sabedoria. Em nossas comu- dicionais. Ela só nos cita, só fala em indígenas e
nidades, a sabedoria não é passada de uma vez quilombolas e, recentemente, começou a falar em
para uma geração inteira. Meu tio Norberto Máxi- povos e comunidades tradicionais. Isso é perigoso.
mo, um de meus grandes mestres morreu em meu Temos de estar juntos, e não pode chamar todo
colo, passou-se em meu colo. Ele me convidou mundo de povos e comunidades tradicionais". Es-
para dentro do quarto, mandou fechar a porta dis- ses povos têm nomes. Se a academia e o governo
se: "Olhe, meu filho, eu não tive filhos meus, mas não conseguem dizer sequer o nome de cada um,
criei muitos filhos. Comi e dei de comer". E come- como daria conta de nos atender? Somos indíge-
çou a chorar. Perguntei a ele por que chorava, e ele nas, quilombolas, pescadores, ciganos, ribeirinhos,
respondeu: "Estou chorando porque lhe ensinei catadores de coco, catadores de capim ... Temos de
tudo o que sabia, mas eu não sabia tudo o que que- dizer cada um dos nomes. Quanto mais nomes,
ria lhe ensinar. Passe tudo o que lhe ensinei para os mais armas os colonizadores precisarão, mais es-
outros. Não deixe esse saber morrer". Ele disse tratégias precisarão. Por isso, temos de evitar ser
isso para mim, mas também deve ter dito para mui egoístas, nos sentirmos melhores por sermos no

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meados. O dia mais feliz da minha vida será aquele mas não queimam os significados.
que eu tiver a certeza que todos os meus amigos e Eles queimam os corpos,
minhas amigas são melhores do que eu, em tudo. É mas não queimam a ancestralidade.
o dia em que serei mais bem cuidado. Salve!
Gostaria, ainda, de encerrar com uma poesia,
pois a poesia é importante:

Queimaram Palmares,
surgiu Canudos.
Queimaram Canudos,
surgiu Caldeirões.
Queimaram Caldeirões,
surgiu Pau de Colher.
Queimaram e continuam queimando,
Surgiram, e continuarão surgindo tantas outas comu-
nidades que os vão cansar, se ainda queimarem ...

Eles queimam a escrita,


mas não queimam a oralidade.
Eles queimam os símbolos,

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