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ARTIGO ARTICLE 795

Acidentes do trabalho em pescadores


artesanais da região do Médio Rio Araguaia,
Tocantins, Brasil

Work-related accidents in traditional


fishermen from the Medium Araguaia
River region, Tocantins, Brazil

Domingos Garrone Neto 1


Ricardo Carlos Cordeiro 2
Vidal Haddad Jr. 3

Abstract Introdução

1 Instituto de Biociências, This is a cross-sectional study of work-related Os acidentes do trabalho constituem um im-
Universidade Estadual
accidents among traditional fishermen in the portante problema de saúde pública no Brasil
Paulista, Botucatu, Brasil.
2 Faculdade de Ciências Medium Araguaia River region of Tocantins, visto sua elevada freqüência e gravidade. Por
Médicas, Universidade Brazil. From June to August 2002, fishermen acometerem principalmente pessoas jovens e
Estadual de Campinas,
from the Municipality of Araguacema were in- em idade reprodutiva, acarretam, além de so-
Campinas, Brasil.
3 Faculdade de Medicina terviewed about the organization of their work frimento para os trabalhadores acidentados e
de Botucatu, Universidade activities and work-related accidents during the seus familiares, graves conseqüências sociais e
Estadual Paulista,
previous six months. Of the 92 participating econômicas 1,2.
Botucatu, Brasil.
fishermen, 56 reported having suffered a work- Dados da Organização Internacional do Tra-
Correspondência related accident (annual incidence was 82.6%). balho (OIT) estimam que anualmente ocorram
D. Garrone Neto
Departamento de Zoologia,
Some 95.7% of those interviewed did not regu- cerca de 1,1 milhão de óbitos em todo o mundo
Instituto de Biociências, larly pay social security insurance as self-em- decorrentes de acidentes do trabalho ou doen-
Universidade Estadual ployed workers and were not aware of their so- ças ocupacionais, sendo as mortes provocadas
Paulista. C. P. 549,
Botucatu, SP
cial rights and duties. For fishermen reporting por quedas, colisões de veículos, choques elé-
18618-970, Brasil. accidents, this proportion was 98.2%. Approxi- tricos, neoplasias, entre outras, algumas das
garroneneto@yahoo.com mately 23.0% had another work activity, mainly causas imediatas conhecidas 3.
as construction workers (47.6%) or sport-fishing No Brasil, são imprecisos os dados sobre es-
guides (23.9%). Injuries inflicted by aquatic an- ses agravos. Sabe-se, entretanto, que os traba-
imals were the main form of accidents (about lhadores sem vínculo empregatício formal re-
86.0%). From these results, it is apparent that presentam mais da metade da força de traba-
accidents from aquatic animals are an impor- lho do país, o que amplifica a falta de informa-
tant health hazard, in some cases causing tem- ções sobre a ocorrência e as características dos
porary work incapacity. acidentes do trabalho em nosso meio 4,5.
Os acidentes do trabalho ocorridos entre os
Occupational Accidents; Workers; Aquatic Fau- trabalhadores com registro em carteira do traba-
na; Incidence lho regido pela Consolidação das Leis Trabalhis-
tas (CLT), exceto para algumas categorias profis-
sionais, são contabilizados pelo Ministério da Pre-
vidência e Assistência Social (MPAS), o qual pos-
sui um sistema de registro bastante deficiente 1,6.

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Apenas no ano de 1998, o MPAS registrou gosas de animais constituem algumas das ad-
401.254 acidentes do trabalho ocorridos entre versidades do cotidiano da atividade 10,12.
os trabalhadores cobertos pelo Seguro Acidente Recentemente, o Instituto Brasileiro do Meio
do Trabalho (SAT), excluindo dessas estatísti- Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
cas os trabalhadores autônomos e domésticos, (IBAMA), por intermédio do Relatório de Esta-
funcionários públicos estatutários, subemprega- tística da Pesca, revelou que com o esgotamen-
dos, muitos trabalhadores rurais, entre outros 7. to e diminuição de alguns estoques pesqueiros,
Considerando que a população coberta pe- muitos pescadores tentam compensar a situa-
lo SAT nos anos 90 correspondia a cerca de 30,0% ção indo cada vez mais longe, permanecendo
da população economicamente ativa e que mes- mais tempo nos locais de pesca e menospre-
mo entre os trabalhadores cobertos pelo SAT zando as condições adversas do meio 13.
existam níveis elevados de subnotificação, con- Apesar desses dados referirem-se principal-
clui-se que não haja informações suficientes mente à pesca profissional artesanal marinha,
para caracterizar a distribuição dos acidentes esse aumento da jornada de trabalho também
sofridos pelos trabalhadores brasileiros, sobre- tem sido observado na pesca profissional de
tudo daqueles que habitam os lugares onde as água doce, a qual tem passado por situações
assistências médica e previdenciária são pre- semelhantes devido à poluição e ao represa-
cárias, como as cidades ribeirinhas e vilarejos mento dos rios 9.
do interior do país 8. Nesses locais, grande par- O resultado dessas alterações no ambiente
te das pessoas trabalha por conta própria e sem de trabalho dos pescadores atua como um im-
carteira assinada, o que favorece a não notifi- portante fator de risco para a ocorrência de
cação de acidentes, impossibilitando sua esti- acidentes na categoria, fato que também vem
mativa e controle. sendo observado em outras profissões, como a
A pesca profissional artesanal em água do- dos trabalhadores do campo, por exemplo. Es-
ce ilustra bem essa situação. Reconhecida pela ses profissionais, pela crescente necessidade
Marinha desde o ano de 1940 e regulamentada de uma maior produção de alimento e devido
pelo Decreto de Lei 221 no ano de 1967, a profis- à desvalorização dos produtos comercializados
são emprega milhares de pessoas em todo Bra- nas propriedades, agravadas pelo aumento do
sil, as quais sobrevivem da captura e venda do custo da produção, têm aumentado seu tempo
produto pescado, muitas vezes em condições de atividade de trabalho, favorecendo, assim,
precárias de habitação e saneamento 9,10. uma elevação do número de acidentes 14.
De acordo com a legislação previdenciária, Na pesca profissional artesanal, a situação
os profissionais da pesca se dividem em quatro não é diferente. Devido a pressão econômica a
categorias: o empresário empregador, o em- que os pescadores profissionais artesanais
pregado, o pescador artesanal e o cooperado. estão sujeitos (devido principalmente aos bai-
O empregado precisa ter a Carteira de Trabalho xos rendimentos resultante da ação de atraves-
e Previdência Social (CTPS) assinada e sua con- sadores, os quais impõem baixos preços pelo
tribuição é feita pela empresa onde trabalha; o pescado), os pescadores têm estendido cada
empresário e o cooperado recolhem para a Pre- vez mais suas jornadas de trabalho, tanto no
vidência Social como contribuintes individuais. que diz respeito ao tempo de trabalho, quanto
O pescador artesanal, como segurado especial, à distancia percorrida para alcançar os car-
também precisa recolher, devendo comprovar dumes.
que exerce a pesca individualmente ou em re- Em nosso meio, estudos sobre acidentes do
gime de economia familiar e que está cadastra- trabalho baseiam-se principalmente em dados
do em colônia ou federação de pescadores 11. secundários, o que, pode limitar o conhecimen-
A condição de segurados especiais assegura to mais amplo desse tipo de agravo. O Sistema
aos pirangueiros ou pescadores de anzol, co- CAT, por referir-se apenas aos trabalhadores
mo são chamados os pescadores profissionais com direitos previdenciários e os atestados de
artesanais de água doce, o acesso ao SAT ofere- óbitos e prontuários, muitas vezes preenchidos
cido pelo Plano de Benefícios da Previdência de maneira indevida, não permitem a real men-
Social 11. Esse fato, ainda desconhecido por suração do problema 15. Ademais, a ausência
muitos pescadores, minimiza as inúmeras difi- de estudos sobre as condições de vida e saúde
culdades enfrentadas no dia-a-dia da atividade de pescadores profissionais artesanais de água
pesqueira, visto essa ser reconhecidamente uma doce no Brasil e a necessidade do entendimen-
das profissões mais perigosas existentes, ex- to dessas características para a elaboração de
pondo seus trabalhadores a uma série de situa- programas educativos e assistenciais, torna
ções de risco todos os dias. Possíveis naufrá- imprescindível a realização de pesquisas na
gios, temporais e encontro com espécies peri- área, sobretudo sob o ponto de vista da saúde

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ACIDENTES DO TRABALHO EM PESCADORES 797

ocupacional, a qual não dispõem de informa- Os dados foram coletados utilizando-se


ções dessa natureza. questionários semi-estruturados individuais,
O presente estudo relata acidentes de tra- onde foram levantadas as características sócio-
balho ocorridos entre pescadores profissionais demográficas e ocupacionais dos pescadores,
artesanais da região do Médio Rio Araguaia, além das informações sobre as pessoas que re-
Tocantins, Brasil, estimando sua incidência e lataram ter sofrido acidente nos últimos seis
estabelecendo sua relação com fatores sócio- meses, incluindo o período das entrevistas.
econômicos e ocupacionais. O questionário empregado no estudo foi
elaborado pelos autores e continha as seguin-
tes variáveis: sexo, cor, idade, escolaridade (em
Método anos de estudo), renda mensal estimada (em
Reais), tempo de profissão, duração da jornada
Um estudo de delineamento transversal foi rea- de trabalho (horas/dia), exercício de atividade
lizado de junho a agosto de 2002 no Município laboral paralela, situação previdenciária e des-
de Araguacema, que na língua tupi significa crição da atividade. Além disso, perguntava-se
“lugar de águas do Araguaia” (araguaia – rio se o pescador sofreu um ou mais acidentes du-
das araras; cema – passagem, travessia). Esse rante sua jornada de trabalho nos últimos seis
povoado está localizado no noroeste do Estado meses. Em casos afirmativos, obtinha-se a des-
de Tocantins, na região do Médio Rio Araguaia, crição pormenorizada do acidente (em caso de
a 49,6ºW de longitude e 8,9ºS de latitude. mais de um acidente sofrido no período, era
A escolha de Araguacema para a realização descrito o considerado mais grave pelo pesca-
do estudo baseou-se em sua localização geográ- dor), que incluía: causa imediata do acidente,
fica e nas características dos profissionais da pes- hora, dia, mês, local e condições em que o aci-
ca que atuam no local, além da oferta de apoio dente ocorreu, região anatômica atingida, si-
logístico para a execução do trabalho de campo, nais e sintomas decorrentes, tempo transcorri-
como alojamento e transportes terrestre e aquá- do entre o momento do acidente e a procura
tico. Situada às margens do rio Araguaia e em por atendimento médico, se houve ou não a rea-
uma região de transição entre dois grandes ecos- lização de tratamento popular e como o caso
sistemas, o Cerrado e a Amazônia, Araguacema evoluiu.
possui uma das colônias de pesca mais organiza- Para a classificação dos acidentes, utilizou-
das do Estado do Tocantins, além de possuir uma se a definição de acidentes do trabalho adota-
infinidade de cursos d’água ao seu redor, o que da pelo MPAS, que os considera como “aqueles
favorece a existência de uma diversidade elevada que ocorrem no trajeto casa-trabalho-casa (tra-
de organismos aquáticos e sugere intensa ativi- jeto) ou durante o exercício da atividade profis-
dade pesqueira no local durante o ano todo. sional (típico), provocando lesão corporal ou
Para a população de estudo, foram selecio- perturbação funcional que causem perda ou re-
nados os pescadores profissionais artesanais dução, temporária ou permanente, da capaci-
com registro na Associação dos Pescadores de dade para o trabalho” 7.
Araguacema – Colônia ASPESCA, cujo critério O trabalho de campo foi realizado por um
de inclusão baseou-se na Classificação Brasi- dos autores (D. G. N.), que permaneceu aloja-
leira de Ocupações de 2002 16, a qual os inclui do no Município de Araguacema para a reali-
na família 6.311 e os define como “aqueles que zação das entrevistas e do acompanhamento
capturam diversos tipos de pescado de água do- da rotina de trabalho dos pescadores, como as
ce, de acordo com regulamentação regional e fe- atividades de pesca, despesca e comércio. Nes-
deral, preservando matas ciliares e ambiente ses casos, em algumas vezes foi necessário per-
aquático; providenciam documentação de pes- manecer acampado com os pescadores para
ca, aprontam e conduzem embarcações, plane- melhor documentar as situações desejadas.
jam pesca e preparam material para sua efeti- As entrevistas foram realizadas por inter-
vação; realizam despesca; beneficiam e comer- médio de inquéritos domiciliares, bem como
cializam pescado”. de entrevistas com pescadores no porto da ci-
Essa ocupação é exercida por trabalhadores dade de Araguacema, ocasiões onde esses tra-
que trabalham por conta própria, em equipe balhadores eram informados sobre os objeti-
ou não, sem supervisão. A atividade é realizada vos do trabalho e convidados a participar da
a céu aberto, em horários irregulares, sujeitos à pesquisa após tomarem conhecimento e assi-
variação climática. O acesso ao trabalho é livre, narem o termo de consentimento livre e escla-
sem exigência de escolaridade ou formação pro- recido, em atendimento à Resolução 196/96 do
fissional. Quando é exigida experiência ante- Conselho Nacional de Saúde do Ministério da
rior, ela se caracteriza por menos de um ano 16. Saúde.

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A tabulação dos dados obtidos por meio das te, apenas 1,8% estava com suas contribuições
questões fechadas foi realizada utilizando-se o e documentações em dia. Os demais pescado-
programa Microsoft Excel versão 2000, onde as res disseram não estar totalmente cientes so-
variáveis foram ordenadas e suas freqüências e bre seus direitos e obrigações previdenciárias.
distribuições, obtidas. Os tipos e as causas imediatas dos aciden-
A proporção de incidência dos acidentes foi tes do trabalho relatadas pela população estu-
calculada dividindo-se o número de pessoas dada, os períodos do dia no qual as injúrias
que referiram ter sofrido acidente, pelo núme- ocorreram, as atividades exercidas pelos pes-
ro total da população estudada durante o mes- cadores no momento dos acidentes, as regiões
mo período, sendo projetada a estimativa para anatômicas atingidas pelas lesões e o manejo
um ano. Não foram calculados intervalos de dos acidentes, são apresentados na Tabela 2.
confiança para a incidência porque se trabalhou As lesões por animais do ambiente aquáti-
com toda a população de pescadores, tratan- co foram as principais causas imediatas de aci-
do-se, portanto, de um estudo censitário e não dentes referidas, perfazendo um total de 86,0%
amostral. dos casos (Tabela 3). Outras causas imediatas
É oportuno ressaltar que, embora a maioria foram relatadas: cortes com facas ou tesouras
dos estudos transversais seja utilizada para es- (5,0%), lesões provocadas por anzóis (3,0%),
tudos de prevalência, o fato de os acidentes se- acidentes com redes ou tarrafas (2,0%), trau-
rem eventos circunscritos no tempo, possibili- mas por barco a remo (2,0%) e lesões por mo-
ta a identificação de casos incidentes 2,17. tor de barco (2,0%). Todos os acidentes foram
Os dados sobre as atividades que os entre- classificados como “típicos” por terem ocorri-
vistados exerciam no momento dos acidentes e do durante o exercício da atividade laboral.
os primeiros socorros realizados nessas oca- A distribuição dos períodos do dia onde as
siões foram agrupados em categorias para me- pessoas referiram ter sofrido acidente foi se-
lhor organização das respostas, enquanto os melhante. No período da manhã, 35,7% das
trechos das entrevistas registrados com o auxí- pessoas disseram ter se acidentado. Pescado-
lio de gravador foram transcritos e digitados, res que sofreram acidentes no período vesper-
mantendo o máximo de fidedignidade à lin- tino somaram 30,4%, enquanto aqueles que re-
guagem dos entrevistados. lataram ter sofrido algum tipo de lesão durante
a noite corresponderam a 32,1%.
A maioria dos pescadores estava retirando
Resultados peixes das redes ou anzóis quando se aciden-
tou (46,4%). O relato de acidentes por pescado-
Durante o período do estudo, 102 pescadores res que estavam armando ou recolhendo equi-
profissionais artesanais possuíam registro na pamentos de pesca aconteceu em 25,0% dos
Colônia ASPESCA. Devido aos benefícios ofe- casos. Acidentes em pescadores que manipula-
recidos aos associados (dos quais o principal é vam ou transportavam peixes mortos, opera-
o pagamento de salário aos pescadores que vam ou conduziam embarcações ou prepara-
permanecerem inativos durante o período de vam iscas, foram relatados em 12,5%, 14,3% e
reprodução dos peixes da região), todos os pes- 1,8% dos casos, respectivamente.
cadores profissionais de Araguacema são regis- As regiões anatômicas mais atingidas pelas
trados na associação. Desse total, 92 pescado- lesões, segundo os entrevistados, foram os mem-
res puderam ser localizados e convidados a par- bros superiores (48,2%), os membros inferiores
ticipar do estudo. Não houve recusas ou desis- (39,3%) e outros, como a cabeça, o pescoço e o
tências e as dez perdas observadas foram devi- tronco (12,5%).
do a não localização dos trabalhadores. Na Ta- Quanto à procura por atendimento médico,
bela 1 são apresentadas as características socio- apenas 12,5% dos pescadores procuraram al-
demográficas e ocupacionais dos pescadores guma Unidade de Saúde para tratar as lesões.
profissionais artesanais da Colônia ASPESCA. Nesse grupo, o tempo decorrido entre o mo-
Dos 92 pescadores profissionais artesanais mento do acidente e o início do tratamento das
que participaram do estudo, 56 relataram ter lesões variou de três horas a vinte dias (Md =
sofrido no mínimo um acidente do trabalho 4hs), sendo o Hospital Municipal de Araguace-
nos últimos seis meses, incluindo o período das ma o local onde o atendimento médico foi rea-
entrevistas. A proporção de incidência de aci- lizado.
dentes do trabalho obtida para a população es- Entre os 87,5% dos pescadores que não pro-
tudada foi de 85,9% ao ano. curaram atendimento médico após sofrerem
Sobre a situação previdenciária dos entre- acidente, 65,3% realizaram algum tipo de tra-
vistados que mencionaram ter sofrido aciden- tamento popular. Para os pescadores que rela-

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ACIDENTES DO TRABALHO EM PESCADORES 799

Tabela 1

Características sócio-demográficas e ocupacionais dos pescadores profissionais artesanais da Colônia ASPESCA.


Araguacema, Tocantins, Brasil, 2002.

Variável População estudada Acidentados nos


últimos 6 meses
n % n %

Sexo
Masculino 86 93,5 51 91,1
Feminino 6 6,5 5 8,9

Cor
Branco 24 26,1 10 17,9
Preto 30 32,6 20 35,7
Pardo 38 41,3 26 46,4

Idade (anos)
< 31 8 8,7 2 3,6
31-50 68 73,9 44 78,5
> 50 16 17,4 10 17,9

Anos de estudo
Nenhum 20 21,7 14 25,0
1-2 7 7,6 6 10,8
3 ou mais 65 70,7 36 64,2

Renda mensal
< R$101,00 17 18,5 10 17,9
R$101,00 a R$200,00 53 57,6 29 51,8
> R$200,00 22 23,9 17 30,3

Tempo de profissão (anos)


< 10 22 24,0 12 21,4
10 ou mais 70 76,0 44 78,6

Jornada diária de trabalho (horas)


Até 12 38 41,3 24 42,9
Acima de 12 54 58,7 32 57,1

Atividade laboral paralela


Sim 21 22,9 11 19,6
Não 71 77,1 45 80,4

Contribui regularmente para a Previdência Social?


Sim 4 4,3 1 1,8
Não 88 95,7 55 98,2

Total 92 100,0 56 100,0

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Tabela 2 taram ter sofrido acidente e procurado atendi-


mento médico, essa proporção foi de 71,4%.
Características dos acidentes do trabalho referidos pelos pescadores profissionais Na Tabela 4 são relacionados os tipos de trata-
artesanais da Colônia ASPESCA. Araguacema, Tocantins, Brasil, 2002. mentos populares utilizados para o trato das
lesões.
Variável n % Em 3,6% dos casos onde acidentes foram
referidos, as lesões evoluíram para cura com
Tipo de acidente
seqüelas. Em todas essas situações, a perda
Típico 56 100,0
parcial de movimento do membro atingido foi
Trajeto 0 0,0
o caso. Amputações não foram relatadas.
Com relação ao tempo de incapacidade pa-
Causa imediata do acidente
ra o trabalho em decorrência dos acidentes, a
Lesão por animal do ambiente aquático 48 86,0
maioria dos entrevistados disse não ter tido pro-
Corte com faca ou tesoura 3 5,0
blemas para desenvolver suas atividades labo-
Lesão por anzol 2 3,0
rais. No entanto, 8,9% relataram ter ficado im-
Acidente com rede ou tarrafa 1 2,0
possibilitados de trabalhar por mais de um mês.
Traumas por barco a remo 1 2,0
Em um desses casos, uma vítima de aciden-
Lesão por motor de barco 1 2,0
te por mandubé (Ageneiosus sp.) ficou cerca de
Período do dia um ano afastado do trabalho. Em nenhum ca-
Manhã 21 37,5 so o seguro acidente foi solicitado/recebido.
Tarde 17 30,4
Noite 18 32,1
Discussão
Atividade na hora do acidente
Retirando peixe do anzol ou rede 26 46,4 Inicialmente, cumpre salientar que a estimati-
Armando ou recolhendo material de pesca 14 25,0 va de proporção de incidência de acidentes do
Operando ou conduzindo embarcação 8 14,3 trabalho aqui apresentada, 85,9% ao ano, é al-
Manipulando ou transportando pescado 7 12,5 tíssima. Estudos sobre incidência de acidentes
Preparando isca 1 1,8 laborais entre trabalhadores urbanos costu-
mam apresentar estimativas em torno de 5,0%
Procura por atendimento médico ao ano, já corrigida a subnotificação do Siste-
Sim 7 12,5 ma CAT e incorporando as ocorrências no mer-
Não 49 87,5 cado informal da economia 1,2,15.
No Brasil, estudos envolvendo comunida-
Região anatômica atingida
des pesqueiras tendem a enfocar os aspectos
Membro superior 27 48,2
referentes ao cotidiano das atividades de pesca
Membro inferior 22 39,3
e as relações de gênero que se estabelecem nos
Outros (cabeça, pescoço e tronco) 7 12,5
domínios espaciais desse universo, sem, con-
Emprego de tratamento popular
tudo, abordar de maneira mais ampla as inte-
Sim 37 66,1
rações entre os pescadores, a atividade laboral
Não 19 33,9
e o meio. As injúrias sofridas pelos pescadores
durante ou a caminho do trabalho constituem
Total 56 100,0 um bom exemplo dessas interações, mas a ca-
rência de estudos na área dificulta sua discus-
são. Esse fato, provavelmente associado com as
dificuldades logísticas da coleta de dados, en-
contra suporte em estudos como os realizados
por Almeida & Rocha 18, Carvalho 19 e Haddad
Jr. 12,20, que pesquisaram acidentes por peixes
em diferentes segmentos da população, sobre-
tudo entre pescadores.
Deixar a terra firme e se aventurar em bus-
ca de sustento sem a certeza de que irá realizar
uma boa pescaria, passou a ser uma preocupa-
ção cada vez mais presente na vida dos pesca-
dores e essa parece ser uma condição que co-
meça a trazer prejuízos para a saúde desses tra-
balhadores. Em estudo realizado na região de

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ACIDENTES DO TRABALHO EM PESCADORES 801

Belém, Pará, Bezerra 21 demonstrou que os pes- Tabela 3


cadores apresentam mais problemas psiquiá-
tricos e de consumo de álcool e tabaco que ou- Relação dos animais do ambiente aquático envolvidos nos acidentes do trabalho
tros moradores do mesmo local. Segundo o au- relatados pelos pescadores profissionais artesanais da Colônia ASPESCA.
tor, a maior parte desses problemas está, entre Araguacema, Tocantins, Brasil, 2002.
outros fatores, relacionada com a baixa remu-
neração e com as condições de trabalho ofere- Espécie n %
cidas pela atividade.
Piranha (Pygocentrus nattereri) 13 27,0
Entre os pescadores do Município de Ara-
Mandi (Pimelodus sp.) 7 14,6
guacema, apesar do consumo de álcool e taba-
Arraia de fogo (Potamotrygon sp.) 7 14,6
co não ter sido sistematicamente investigado,
Surubim (Pseudoplatystoma sp.) 4 8,3
foi possível observar uma grande quantidade
Tucunaré (Cichla sp.) 4 8,3
de pescadores que possuíam o hábito de beber
Bicuda (Boulengerella sp.) 3 6,2
e fumar. A dura jornada de trabalho, que inclui
Pacu (Myleus sp.) 2 4,2
a exposição a fatores ambientais, como a tem-
Poraquê (Electrophorus electricus) 2 4,2
peratura e o terrível contato com insetos he-
Cachorra (Cynodontidae) 1 2,1
matófagos, entre outros, torna a aguardente,
Candiru (Trychomycteridae) 1 2,1
denominada de “cachaça” pelos pescadores,
Armau (Pterodoras sp.) 1 2,1
um equipamento quase que obrigatório nas
Boca Larga (Ageneiosus) 1 2,1
pescarias, pois além de “esquentar” e “espantar
Gaivota 1 2,1
os mosquitos”, é muito utilizada para a limpeza
Jacaré Açu (Melanosuchus niger) 1 2,1
de ferimentos sofridos durante o exercício da
Total 48 100,0
atividade pesqueira. Esses ferimentos ou “ofen-
sas”, objeto de estudo da presente investigação,
demonstraram ser acontecimentos freqüentes
e às vezes graves, embora os pescadores pare-
çam minimizá-los pelo receio em assumir um
estado de fragilidade que um evento como esse Tabela 4
pode impor.
Por fim, como relatado por Haddad Jr. 20, Materiais utilizados nos tratamentos populares empregados pelos pescadores
deve ser passada a noção de que a maioria dos profissionais artesanais da Colônia ASPESCA. Araguacema, Tocantins, Brasil, 2002*.
animais do ambiente aquático citada neste tra-
balho não é agressiva, utilizando seus ferrões, Material utilizado n %
dentes ou espículas apenas como meio de de-
Aguardente 12 32,4
fesa.
Partes de peixes 8 21,6
Urina 5 13,5
Gelo 4 10,8
Álcool de cozinha 3 8,1
Plantas 2 5,5
Outros (pó de café, café quente, gasolina) 3 8,1
Total 37 100,0

* Em 40,5% dos tratamentos populares houve a utilização conjunta de pedaços


de pano ou camisetas para conter sangramentos.

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802 Garrone Neto D et al.

Resumo Referências

Este é um estudo transversal, com componente retros- 1. Binder MCP, Cordeiro R. Sub-registro de aciden-
pectivo, investigando a ocorrência de acidentes do tra- tes do trabalho em localidade do Estado de São
balho entre pescadores profissionais artesanais da re- Paulo, 1997. Rev Saúde Pública 2003; 37:409-16.
gião do médio Rio Araguaia, Tocantins, Brasil. Entre 2. Santana VS, Loomis D. Informal jobs and non-fa-
junho e agosto de 2002, foram entrevistados pescado- tal occupational injuries. Ann Occup Hyg 2004;
res do Município de Araguacema, com respeito à orga- 48:147-57.
nização de suas atividades de trabalho e à ocorrência 3. Organização Internacional do Trabalho. Anuário
de acidentes do trabalho nos últimos seis meses. Dos de estatísticas do trabalho. Brasília: Organização
92 pescadores que participaram do estudo, 56 relata- Internacional do Trabalho; 2000.
ram ter sofrido acidente. A proporção de incidência de 4. Almeida IM, Binder MCP, Wludarski SL. Estudo da
acidentes obtida foi de 82,6% ao ano. Cerca de 95,7% evolução dos acidentes do trabalho registrados
dos entrevistados referiram não contribuir regular- pela Previdência Social no período de 1995 a
mente para a Previdência Social e não estarem cientes 1999, em Botucatu, São Paulo. Cad Saúde Pública
sobre seus direitos e deveres previdenciários. Entre os 2001; 17:915-24.
pescadores que referiram acidentes, essa proporção foi 5. Wünsch Filho V. Reestruturação produtiva e aci-
de 98,2%. Aproximadamente 23,0% dos pescadores es- dentes de trabalho no Brasil: estrutura e tendên-
tudados relataram possuir outra atividade laboral pa- cia. Cad Saúde Pública 1999; 19:41-51.
ralela, principalmente como pedreiro (47,6%) e guia 6. Alves S, Luchesi G. Acidentes do trabalho e do-
de pesca (23,9%). As injúrias por animais do ambiente enças profissionais no Brasil: a precariedade das
aquático foram a principal causa de acidente relatada informações. Inf Epidemiol SUS 1992; 1:5-19.
pelos pescadores, perfazendo cerca de 86,0% dos casos. 7. Ministério da Previdência e Assistência Social.
Percebe-se, diante dos resultados, que os acidentes por Anuário estatístico de acidentes do trabalho 2001.
animais do ambiente aquático são um importante http://www.mpas.gov.br/12_08_01_01_01.asp
agravo à saúde, provocando, em alguns casos, incapa- (acessado em 13/Mar/2002).
cidade temporária para o trabalho. 8. Possas C. Avaliação da situação atual do sistema
de informação sobre doenças e acidentes do tra-
Acidentes de Trabalho; Trabalhadores; Fauna Aquáti- balho no âmbito da Previdência Social brasileira
ca; Incidência e propostas para sua reformulação. Rev Bras Saú-
de Ocup 1987; 15:43-67.
9. Johansen B. Pesca profissional: contribuições,
reivindicações e perspectivas. http://www.sfran-
Colaboradores cisco.bio.br/noticias/debate.htm (acessado em
03/Nov/2002).
D. Garrone Neto redigiu o artigo. R. C. Cordeiro e V. 10. Kater G. Pescador – herói do mar. Cadernos do
Haddad Jr. colaboraram na elaboração do manuscrito Terceiro Mundo 2001; 227:35-42.
todo. 11. Ministério da Previdência e Assistência Social.
Literatura leva pescador a descobrir Previdência.
http://www.previdenciasocial.gov.br/agrev/Most
raNoticia.asp?Id=11897&ATVD=1&xBotao=1
Agradecimentos (acessado em 10/Jul/2003).
12. Haddad Jr. V. Avaliação epidemiológica, clínica e
terapêutica de acidentes provocados por animais
Os autores são gratos ao Frei Donizete Pereira de Cas-
peçonhentos marinhos na região Sudeste do Bra-
tro e a Irmã Oneida das Graças Resende pelo apoio
sil [Tese de Doutorado]. São Paulo: Universidade
logístico dado durante o período da coleta de dados;
Federal de São Paulo; 2000.
a presidência da Associação dos Pescadores de Ara-
13. Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Re-
guacema – Colônia ASPESCA e a seus respectivos
cursos Naturais Renováveis. Estatística da pesca
membros, pela receptividade e colaboração no estu-
2000. Brasil – grandes regiões e unidades da fede-
do; aos funcionários do Hospital Municipal de Ara-
ração. Brasília: Instituto Brasileiro do Meio Ambi-
guacema, pelas informações sobre as ocorrências
ente e dos Recursos Naturais Renováveis; 2000.
com pescadores atendidos na unidade; ao Dr. Fran-
14. Fehlberg MF, Santos IS, Tomasi E. Acidentes de
cisco Oscar de Siqueira França e a Dra. Maria José
trabalho na zona rural de Pelotas, Rio Grande do
Alencar Vilela, pelas valiosas sugestões; a Coorde-
Sul: um estudo transversal de base populacional.
nação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Supe-
Cad Saúde Pública 2001; 17:1375-81.
rior (CAPES), por financiar parte da pesquisa.
15. Cordeiro R, Sakate M, Clemente APG, Diniz CS,
Donalisio MR. Subnotificação de acidentes do
trabalho em localidade do sudeste do Brasil. Rev
Saúde Pública; no prelo.
16. Ministério do Trabalho e Emprego. Classificação
brasileira de ocupações (CBO2002). http://www.
mtecbo.gov.br (acessado em 21/Mai/2002).
17. Santana VS, Cordeiro R. Detecção de agravos à
saúde relacionados com o trabalho em estudos
epidemiológicos. In: Mendes R, organizador. Pa-

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ACIDENTES DO TRABALHO EM PESCADORES 803

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19. Carvalho MSI. Pescadores e ofensas. Percepções
e práticas relativas aos acidentes por peixes ve-
nenosos na comunidade de pescadores de Siribi-
nha, Bahia [Dissertação de Mestrado]. Salvador:
Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal
da Bahia; 1999.
20. Haddad Jr. V. Atlas de animais aquáticos perigo-
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mento de acidentes. São Paulo: Roca; 2000.
21. Bezerra B. Distúrbios psiquiátricos em pescado-
res da Amazônia. Jornal da Paulista 2002; 168:1-2.

Recebido em 06/Ago/2004
Versão final reapresentada em 07/Dez/2004
Aprovado em 10/Dez/2004

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 21(3):795-803, mai-jun, 2005

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