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PERSPECTIVAS PERSPECTIVES 1

A tragédia da mineração e do desenvolvimento


no Brasil: desafios para a saúde coletiva

The tragedy of mining and development in Brazil:


public health challenges

La tragedia de la minería y el desarrollo en Brasil:


desafíos para la salud colectiva

Marcelo Firpo de Souza Porto 1

1Escola Nacional de Saúde O dia 5 de novembro de 2015 ficará marcado co- do rio Doce, já que ela voltou a ser fornecida para
Pública Sergio Arouca,
Fundação Oswaldo Cruz, Rio
mo uma das maiores tragédias socioambientais consumo humano. Na bacia do rio, 11 toneladas
de Janeiro, Brasil. do país. Outros desastres também ocorreram. de peixes mortos foram recolhidas e talvez cinco
Em 1984, um incêndio na Vila Socó, Cubatão, Es- espécies tenham sido extintas, com décadas sen-
Correspondência
M. F. S. Porto
tado de São Paulo, matou oficialmente 98 pesso- do estimadas para a recuperação da área. Além
Centro de Estudos da Saúde as após o vazamento num gasoduto da Petrobrás. das populações urbanas, dentre os mais atingi-
do Trabalhador e Ecologia Porém, estima-se que mais de 500 perderam suas dos encontram-se pescadores, ribeirinhos, o po-
Humana, Escola Nacional de
Saúde Pública Sergio Arouca, vidas. Restos de corpos carbonizados, sem docu- vo indígena Krenak, agricultores e assentados da
Fundação Oswaldo Cruz. mento nem memória ou reconhecimento. reforma agrária 1. Pesquisa da Empresa Brasileira
Rua Leopoldo Bulhões 1480,
Na tragédia de Mariana, Minas Gerais, mais de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) 2 revelou
sala 302, Rio de Janeiro, RJ
21041-210, Brasil. de 70 milhões de metros cúbicos de lama de re- que a área de 1.430 hectares atingida pela lama
marcelo.firpo@ensp.fiocruz.br jeitos da mineração de ferro vazaram após o rom- nos municípios de Mariana, Barra Longa e Rio
pimento da barragem de Fundão pertencente à Doce não apresenta mais condições para o de-
Samarco, uma joint-venture da brasileira Vale e senvolvimento de atividades agropecuárias, pois
da anglo-australiana BHP Billiton. No caminho a camada superior depositada impede a fertilida-
da lama mortal, 17 corpos foram encontrados, de do solo e demorará anos de investimento para
pelo menos 2 permanecem desaparecidos, com sua recuperação.
mais de 1.200 pessoas desabrigadas. A grande A mineração de ferro não produz só bilhões
maioria dos mortos é de trabalhadores terceiri- de dólares e “progresso”: ela está repleta de peri-
zados (12). Dos cinco outros mortos soterrados, gos, mortes e destruição socioambiental. Traba-
duas são crianças (5 e 7 anos) e três entre 60 e lhadores morrem e adoecem; grandes áreas são
73 anos, revelando a vulnerabilidade de crianças desmatadas; caminhões e trens circulam atro-
e idosos. pelando pessoas e animais; as usinas de benefi-
Além de destruir vilarejos como Bento Ro- ciamento geram poluição atmosférica; aquíferos
drigues e Paracatu de Baixo, a lama percorreu formados em regiões ferríferas são contamina-
663km ao longo dos rios Gualaxo do Norte, Car- dos e destruídos; em tempos de crise hídrica a
mo e Doce, chegando à foz deste e afetando seu água consumida é enorme, inclusive pelos mine-
ecossistema marinho em área de reprodução de rodutos; a quantidade de rejeitos é gigantesca e
espécies marinhas. Foram atingidos 35 municí- acumulada em barragens; e o rompimento delas
pios em Minas Gerais e quatro no Espírito Santo, com lamas com diferentes graus de toxicidade
com cerca de 1,2 milhão de pessoas afetadas pela podem se transformar em grandes tragédias. Em
falta d’água que temem a contaminação da água Minas Gerais, os acidentes graves com barragens

http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00211015 Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 32(2):e00211015, fev, 2016


2 Porto MFS

vêm se repetindo com frequência: 2001, 2003, concentrações, o que amplia a quantidade de
2007, 2008, 2014, com mortes e destruição am- rejeitos a serem armazenados. As melhores solu-
biental. Mariana foi uma tragédia anunciada. ções socioambientais deveriam reduzir a quan-
Como essa tragédia pode ser compreendida tidade de rejeitos, como a separação eletromag-
pela saúde coletiva e quais desafios ela implica? nética ou a empilhagem a seco, restringindo ou
A primeira e, na nossa concepção, mais im- mesmo eliminando a existência das barragens.
portante é compreender o desastre com base na Mas por que elas continuam a ser adotadas em
determinação social da saúde com um enfoque países como o Brasil?
socioambiental crítico que relacione as iniquida- Em primeiro lugar, porque a vida e o meio
des em saúde com os processos de desenvolvi- ambiente valem pouco, caracterizando o que
mento econômico, suas contradições, conflitos e economistas chamam de externalidades nega-
injustiças ambientais 3. Em outras palavras, pen- tivas. O risco ou existência de desastres, mortes
sar as iniquidades em saúde em conexão com as e destruição ambiental não são incorporados no
desigualdades sociais, espaciais e ambientais no preço do minério. As poucas multas de órgãos
contexto do atual capitalismo globalizado. ambientais que a Samarco pagou após descum-
Essa perspectiva permite o diálogo da saúde primentos e acidentes foram irrisórias. A segun-
coletiva com outros campos relevantes frente à da razão é a crise pós-boom: com a queda dos
atual crise socioambiental, como a ecologia polí- preços do ferro no mercado internacional puxa-
tica e a economia ecológica, numa aproximação da fortemente pela China, as empresas de mi-
entre abordagens transdisciplinares, estrutura- neração reduzem investimentos em inovações
listas e construtivistas que colocam a promoção tecnológicas, custos operacionais e trabalhistas,
da saúde em articulação com lutas emancipa- fato que explica o crescimento da terceirização
tórias por direitos humanos, sociais e territo- e corte de trabalhadores em empresas como a
riais, bem como por outras economias e socie- Vale e a Samarco. Paradoxalmente, em tempos de
dades mais solidárias, justas e ambientalmente crise aceleram-se projetos de aumento da pro-
mais sustentáveis. dução para manter níveis de lucro e pagamen-
Como afirma a nota da Associação Brasilei- to aos acionistas. Há uma forte correlação entre
ra de Saúde Coletiva (ABRASCO) 4, o Brasil é o aumento de acidentes e períodos pós-boom em
segundo maior exportador de minério de ferro, empresas mineradoras 1.
sendo a Vale a maior empresa mundial neste Diversos artigos e relatórios após o desastre
ramo, além de grande financiadora de partidos revelam que problemas ocorreram desde a ges-
e políticos que, após eleitos, atuam parcial e ir- tão, licenciamento, fiscalização, monitoramen-
responsavelmente como legisladores e gestores. to, até a vigilância e o sistema de emergência,
Isso fortalece a crescente autorregulação das incluindo uma espécie de “apagão” do Sistema
empresas e o enfraquecimento do Estado na re- Único de Saúde (SUS) local, estadual e federal.
gulação e fiscalização. O caso do licenciamento As principais ações pós-desastre tiveram a Sa-
ambiental da barragem rompida da Samarco é marco na coordenação, inclusive em questões de
tragicamente exemplar e demonstra a enorme serviço social e saúde mental das mais de 600
assimetria entre a velocidade dos investimentos pessoas que perderam suas casas e foram morar
e a incapacidade/cumplicidade do Estado. em pousadas e hotéis.
A ampliação da produção de minério de fer- O desastre, portanto, é sistêmico, tecnológi-
ro, ferro gusa e aço bruto, assim como os pro- co e social. Reflete uma das armadilhas de nos-
dutos de exportação do agronegócio, marcam a so modelo de desenvolvimento pautado na ex-
reprimarização da economia neoextrativista bra- portação de commodities no qual são peças do
sileira das últimas duas a três décadas. O mer- mesmo tabuleiro a megamineração, o poderio
cado de commodities possui baixo valor agrega- das corporações, a cumplicidade e fragilidade do
do, explora de forma degradante trabalhadores Estado, o modelo “faroeste” de gestão ambiental,
e natureza e é extremamente volátil: o preço da e as dificuldades dos trabalhadores e comunida-
tonelada de minério de ferro variou de 12 dólares des de se organizarem e participarem na defesa
em 2000 para 50 em 2008, 177 em 2011 e, a partir de seus direitos.
de 2012, caiu até retornar aos 50 dólares em ou- Para reverter o atual padrão, tem-se de en-
tubro de 2015. frentar o lamaçal que vulnerabiliza as instituições
A megamineração é pautada pela concen- que regulam, fiscalizam e deixam de impor mais
tração do capital financeiro entre grandes cor- precaução e prevenção aos empreendimentos. A
porações transnacionais, inclusive a Vale. Ela é aplicação do princípio da precaução na defesa
viabilizada pela enorme quantidade de áreas mi- da vida deveria forçar o abandono de tecnologias
neradas, com tecnologias que permitem a pro- não seguras. É necessário fortalecer os sistemas
dução do minério de ferro mesmo em menores de emergência e preparação de desastres junto

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 32(2):e00211015, fev, 2016


A TRAGÉDIA DA MINERAÇÃO E DO DESENVOLVIMENTO NO BRASIL 3

aos órgãos de defesa civil e o SUS, além da vigi- que mantenham viva a memória do desastre, a
lância ambiental da água para consumo humano. sede por justiça, a busca consequente por co-
Além disso, os responsáveis das empresas causa- nhecimento, a comunicação de informações
doras e dos órgãos públicos omissos deveriam confiáveis e o apoio às instituições públicas com-
ser penalizados financeira, civil e criminalmen- promissadas e responsáveis. Quais territórios e
te. Todavia essas transformações não são fáceis. populações foram atingidos? Quais os níveis de
Mesmo com toda a comoção nacional, poucas contaminação e os efeitos à saúde presentes e
semanas após a tragédia foi aprovado, de forma esperados na população exposta, em especial no
escandalosa, por ampla maioria na Assembleia solo e na qualidade da água para consumo hu-
Legislativa de Minas Gerais, o Projeto de Lei no mano? Como os ecossistemas e a biodiversidade
2.946/15, enviado pelo governador Pimentel que foram afetados? Como apoiar a revitalização da
flexibiliza o licenciamento ambiental. bacia do rio Doce e a reconstrução dos territó-
Não há muita saída: a saúde coletiva precisa rios? Quais atividades econômicas, sociais e cul-
valorizar a vida e a natureza com mais democra- turais na região são mais saudáveis e sustentá-
cia e justiça ambiental. A economia ecológica veis nessa reconstrução, incluindo a agricultura
diria: reduzir o metabolismo social insustentá- familiar e agroecológica, o artesanato, o turismo
vel pela enorme extração de matérias primas e ecológico e histórico-cultural? Como reduzir a
produção de rejeitos do produtivismo e consu- periculosidade da mineração?
mismo de nossa civilização por meio de outras Nesse momento, inúmeras iniciativas es-
economias mais solidárias, justas e sustentáveis. tão sendo construídas por instituições, gru-
A ecologia política diria: enfrentar com mais de- pos acadêmicos, movimentos sociais e co-
mocracia e luta por direitos os inúmeros confli- munidades atingidas. É necessário aumentar
tos ambientais e a enorme assimetria de poder a sinergia entre elas e evitar que certas práti-
entre, de um lado, setores, corporações, institui- cas institucionais e políticas bloqueiem seu
ções e países que mais se beneficiam com esse potencial transformador.
comércio injusto e, de outro, comunidades e tra- Afinal, a saúde coletiva poderia se perguntar:
balhadores que mais sofrem ou sofrerão com a desenvolvimento para que, para quem e de que
destruição da vida e do meio ambiente. forma? Se for farsa, como diria Marx, a repetição
E a saúde coletiva, o que pode dizer ou fazer? vira tragédia.
Por exemplo, alinhavar esforços e mobilizações

1. Milanez B, Santos RSP, Wanderley LJM, Mansur 3. Porto MF, Rocha DF, Finamore R. Saúde coletiva,
MS, Pinto RG, Gonçalves RJAF, et al. Antes fosse território e conflitos ambientais: bases para um
mais leve a carga: avaliação dos aspectos econô- enfoque socioambiental crítico. Ciênc Saúde Cole-
micos, políticos e sociais do desastre da Samarco/ tiva 2014; 19:4071-80.
Vale/BHP em Mariana (MG). http://www.ufjf.br/ 4. Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Nota da
poemas/files/2014/07/PoEMAS-2015-Antes-fosse Abrasco sobre a tragédia da mineração em MG:
-mais-leve-a-carga-vers%C3%A3o-final.pdf (aces- SAMARCO-VALE-BHP. É preciso questionar a ideia
sado em 18/Dez/2015). de progresso e crescimento econômico a qualquer
2. Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. custo. http://www.abrasco.org.br/site/2015/11/
Tragédia em Mariana: produção agropecuária nota-da-abrasco-sobre-a-tragedia-da-minera
em áreas atingidas está comprometida. https:// cao-em-mg-samarco-vale-bhp/ (acessado em 15/
www.embrapa.br/busca-de-noticias/-/noti Dez/2015).
cia/8410974/tragedia-em-mariana-producao-a
gropecuaria-em-areas-atingidas-esta-comprome Recebido em 22/Dez/2015
tida (acessado em 19/Dez/2015). Aprovado em 06/Jan/2016

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 32(2):e00211015, fev, 2016

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