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Casos práticos resolvidos DIREITO DOS CONTRATOS I

Compra e venda

Caso 1
A, residente em Coimbra, vendeu a B, amigo de infância a viver em Estremoz, por
telemóvel, no início do mês, o seu smoking guardado na sua casa de férias, na Ericeira. Ficou
combinado que o preço seria pago no fim do mês, depois de B receber o seu ordenado.
Classificação do contrato celebrado entre A e B como um contrato de compra e venda, que,
segundo o art. 874.º do CC, é aquele em que se transmite a propriedade de coisa ou de direito,
mediante o pagamento de um preço. Predomina em Portugal o sistema do título, pelo que tem
particular relevância o acordo de vontade entre as partes, sendo que é esse que provoca todos os
efeitos da compra e venda (obriga à entrega da coisa, ao pagamento do preço e opera a transferência
da propriedade), nada sendo necessário além do consenso.
O contrato de compra e venda tem dois elementos essenciais: 1) a transferência da
propriedade de coisa ou de direito; 2) e o pagamento de um preço. Produzem-se três efeitos
essenciais: 1) a transferência da titularidade de um direito, que é um efeito real [art. 879.º, a) do CC];
2) a obrigação de pagamento do preço por parte do comprador, efeito obrigacional [art. 879.º, c) do
CC]; 3) e a obrigação que o vendedor tem de entregar a coisa vendida, também efeito obrigacional
[art. 879.º, b) do CC].
O contrato de compra e venda insere-se, ainda, nas modalidades de contrato quoad effectum
(arts. 408.º e 409.º do CC) - dando-se a transferência dos direitos reais por mero efeito do contrato; de
contrato sinalagmático - visto que as obrigações do vendedor e do comprador constituem-se tendo
cada uma a sua causa na outra (o sinalagma pode ser genético, se, no momento de celebração do
contrato, as partes definiram que vão entregar x e receber y; ou pode ser funcional, prolongando-se no
tempo e as partes vão sucessivamente dando e recebendo, permanecendo as partes interligadas na fase
de execução do contrato); e de contrato oneroso, porque existe uma contrapartida pecuniária em
relação a transmissão dos bens (art. 237.º do CC é relevante para efeitos de distinção entre contrato
oneroso e contrato gratuito, sendo que, no primeiro, existe um sacrifício económico para ambas as
partes).
Quanto à forma, não existiu qualquer problema, visto que está em causa a compra e venda de
um bem móvel, a qual, segundo o art. 219.º do CC (por oposição ao art. 875.º do CC), poderia ter sido
convencionada por telemóvel.

Analise, de forma autónoma das demais, cada uma das seguintes situações:
a) B recebe o smoking em casa uma semana depois.
1. interpelado para pagar, B diz que não tem o dever de o fazer, quer por não ser o fim
do mês, quer ainda, sobretudo, porque não foi fixado preço algum, motivo pelo qual nada é
devido. Terá razão?
Existem dois problemas nesta hipótese: 1) a obrigação de pagamento do preço, afastada por
B; 2) a não fixação do preço.
1) Obrigação de pagamento do preço: art. 875.º, c) do CC. Momento de pagamento do preço: o
art. 885.º/ 1 do CC determina que o preço seja pago no momento da entrega da coisa (em
detrimento do art. 777.º do CC, que é afastado por ser regime geral). Ainda assim, o art. 885.º/
2 do CC permite que as partes estipulem no sentido de o preço não ser pago no momento da
entrega do smoking. Por isso, B não tem de pagar o preço a que se comprometeu, visto que
acordou com A que só pagaria no final do mês. Há benefício do prazo estabelecido a favor do
devedor: art. 779.º do CC (a obrigação não pode ser exigida pelo credor até ao fim do prazo
estabelecido - o comprador pode renunciar a prazo e pagar antes e, se o credor não aceitar,
entra em mora).

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2) O argumento utilizado por B (por não ter sido fixado preço, nada é devido) não é
necessariamente verdadeiro. Critérios tendentes à determinação do preço caso as partes não o
façam: art. 883.º do CC (em primeiro, está o preço fixado por entidade pública; depois,
recorre-se ao preço normalmente praticado pelo vendedor à data da conclusão do contrato, ao
preço do mercado ou bolsa no momento do contrato e no lugar em que o comprador deve
cumprir, ou ao tribunal - que decidirá segundo juízos de equidade).
Importa o art. 239.º do CC, que refere que, na falta de disposição especial, a declaração deve
ser interpretada em harmonia com a vontade que as partes teriam se houvessem previsto o
ponto omisso, ou de acordo com os ditames da boa fé.

Concluindo: B não tem de pagar já o smoking, tendo de proceder ao pagamento do mesmo no


final do mês, tal como foi acordado.

2. Depois de examinar o smoking, B constata que o mesmo não veio acompanhado de um


certificado, da conhecida marca “Herodes Boss”, nem de dois botões nos bolsos interiores, Por
ser extremamente vaidoso, B reclama a sua entrega. Quid iuris?
Obrigação de entrega da coisa como um dos efeitos do contrato de compra e venda, que parte
do vendedor: art. 879.º, b) do CC.
- art. 882.º/ 1 do CC: a coisa deve ser entregue no estado em que se encontrava ao tempo da
venda (sob prejuízo de, se a coisa adquirir vícios ou perder qualidades entre o momento da
venda e o da entrega, serem aplicáveis as regras relativas à presunção de responsabilidade do
vendedor estabelecidas no art. 799.º/ 1 do CC);
- art. 882.º/ 2 do CC: a obrigação de entrega da coisa abrange, salvo estipulação contrária, as
partes integrantes, os frutos pendentes e os documentos relativos à coisa ou direito; sendo que
não houve qualquer estipulação sobre este aspeto, a questão reside em saber se se pode incluir
o certificado e os botões como parte da obrigação de entrega da coisa; o Professor PEDRO
DE ALBUQUERQUE considera que se deve retirar deste preceito que o momento relevante
para a fixação do âmbito da obrigação de entrega é correspondente à data da venda e que são
abrangidos pela obrigação de entrega apenas as partes integrantes ou frutos pendentes ao
tempo da venda, excluindo-se as partes integrantes ligadas à coisa em momento posterior ao
da venda, valendo o mesmo quanto aos frutos produzidos depois desta data.

Os botões, sendo parte integrante do smoking, deveriam ter sido entregues com o mesmo.
A questão do certificado é mais difícil: o objeto da compra foi o smoking, e não é necessário o
certificado para o utilizar (como seria, por exemplo, um livrete de um carro). PIRES DE LIMA e
ANTUNES VARELA vêm dizer que a entre dos documentos justifica-se pelo facto de colocar o
comprador em condições de fruir plenamente do seu direito (podendo conceber-se a ideia de que B
iria querer o certificado). Além disso, os documentos a que se referem os arts. 882.º/ 2 e 3 do CC
incluem, como defendem, os certificados de origem.

b) Onde deve ser pago o preço? E onde deve ser entregue o smoking?
Obrigação de entrega por parte do vendedor: sujeita às regras gerais quanto ao lugar do
cumprimento (art. 772.º do CC). Nesta hipótese, por se tratar de coisa móvel, aplicar-se-ia o art. 773.º/
1 do CC, devendo smoking ser entregue no lugar onde se encontrava ao tempo da conclusão do
negócio, que seria a casa da Ericeira.

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O lugar para pagamento do preço seria Coimbra, segundo o art. 885.º/2 do CC (domicílio que
o credor tiver ao tempo do cumprimento).

c) A e B acordam 600 euros pelo smoking. Contudo, ao verificar que o smoking estava
com alguma sujidade, A mandou limpá-lo numa lavandaria, gastando 25 euros. Pretende agora,
que B lhe pague, afinal 625 euros. Quid iuris?
À partida, A não tem razão, apenas podendo exigir o inicialmente acordado.
- art. 878.º do CC (pensado para despesas de escritura ou de transporte): confirma que
as despesas do contrato e outras acessórias ficam a cargo do comprador; porém,
PEDRO DE ALBUQUERQUE e MENEZES LEITÃO distinguem as despesas do
contrato (despesas ou encargos com a celebração do contrato) das despesas acessórias
(despesas fiscais respetivas à transmissão).
Esta despesa é inerente à guarda (dever de custódia), que pertence a A, uma vez que não
tinha, ainda, entregue o smoking.
Acrescenta-se, também, que B não pediu (e não havia obrigação) para limpar o smoking,
tendo sido no âmbito do vendedor que foi feita a limpeza.
- art. 882.º/ 1 do CC: o smoking poderia ser entregue conforme estava, desde que não
estivesse mais sujo do que estava na altura da venda, pois violaria o dever de custódia
e de conservação;
- art. 799.º do CC: se a coisa fosse entregue suja, o vendedor tinha de provar que não
teve culpa (presunção de culpa); havia, ainda, a obrigação de informar o comprador.

Caso 2
Ambrósio vende a Bento o seu relógio Patek, ficando acordado que o preço seria afixado
pelo arbítrio de Célio, avô de Ambrósio e anterior proprietário do Patek.
Célio pretende que o relógio continue a pertencer ao espólio familiar, assim indica que o
preço devido é de 100 mil euros (dez vezes superior ao valor de mercado do bem).
Quid iuris?
Entre Ambrósio e Bento foi celebrado um contrato de compra e venda, o que, nos termos do
art. 874.º do CC, corresponde ao contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa ou de
direito (neste caso, seria de uma coisa - o relógio Patek de A), mediante o pagamento de um preço
(obrigação esta do comprador, que é B).
O contrato de compra e venda tem dois elementos essenciais: 1) a transferência da
propriedade de coisa ou de direito; 2) e o pagamento de um preço. Produzem-se três efeitos
essenciais: 1) a transferência da titularidade de um direito, que é um efeito real [art. 879.º, a) do CC];
2) a obrigação de pagamento do preço por parte do comprador, efeito obrigacional [art. 879.º, c) do
CC]; 3) e a obrigação que o vendedor tem de entregar a coisa vendida, também efeito obrigacional
[art. 879.º, b) do CC].
O contrato de compra e venda insere-se, ainda, nas modalidades de contrato quoad effectum
(arts. 408.º e 409.º do CC) - dando-se a transferência dos direitos reais por mero efeito do contrato; de
contrato sinalagmático - visto que as obrigações do vendedor e do comprador constituem-se tendo
cada uma a sua causa na outra (o sinalagma pode ser genético, se, no momento de celebração do
contrato, as partes definiram que vão entregar x e receber y; ou pode ser funcional, prolongando-se no
tempo e as partes vão sucessivamente dando e recebendo, permanecendo as partes interligadas na fase
de execução do contrato); e de contrato oneroso, porque existe uma contrapartida pecuniária em

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relação a transmissão dos bens (art. 237.º do CC é relevante para efeitos de distinção entre contrato
oneroso e contrato gratuito, sendo que, no primeiro, existe um sacrifício económico para ambas as
partes).
No que respeita à forma (art. 875.º do CC), tratando-se de coisa móvel, não seria necessária
qualquer formalidade para convencionar a compra e venda, pelo que se aplica o art. 219.º do CC
respeitante à liberdade de forma.

O problema desta hipótese incide sobre o dever de pagamento do preço, que é um dos efeitos
essenciais da compra e venda, de acordo com o art. 879.º, c) do CC, - mais concretamente sobre a
determinação do preço.
Pode acontecer que as partes, num contrato de compra e venda, não estipulem um preço nem
um critério de determinação desse preço: quando isso aconteça, deve atender-se ao disposto no art.
883.º do CC, onde se fixam os critérios tendentes à determinação do preço quando não tenha sido
convencionado pelos contraentes.
Há, todavia, a possibilidade de os contraentes, não estipulando o preço, preferirem que a sua
determinação seja logo confiada a uma ou outra das partes, ou a terceiro (art. 400.º do CC). Foi o que
aconteceu neste caso, sendo que foi confiada a Célio a determinação do preço do relógio. Ou seja,
foram estipulados os critérios de determinação da prestação, tendo o preço de ser apurado por terceiro,
que é chamado a intervir em conformidade com esses critérios. Se não houver critérios pactuados, a
prestação deve ser determinada segundo critérios de equidade, como dispõe o art. 400.º/ 1, 2.ª parte do
CC. A tarefa do terceiro nomeado para fixar o preço consiste em complementar a vontade negocial
dos intervenientes (não em formular qualquer juízo ou vontade própria e autónoma que não decorra
do programa contratual gizado). Ou seja, existindo critérios fixados pelas partes, o terceiro não tem
qualquer escolha entre várias possibilidades - mesmo nos casos em que o terceiro decide segundo a
equidade. Se esta determinação não puder ser feita ou não tiver sido feita no tempo devido, sê-lo-á
pelo tribunal (sem prejuízo do disposto no art. 400.º/ 2 do CC). O próprio art. 400.º estabelece um
critério: se não houver critérios estabelecidos pelas partes, deve seguir-se a equidade.
O terceiro não tem um direito a determinar o preço, por isso não há abuso de direito. O que há
é o exercício de uma posição jurídica.
É problemática a questão que consiste em saber qual a solução a dar quando o terceiro
proceda à determinação do preço de forma incorreta (ou porque o fez de forma iníqua - parece ser o
caso de Célio -, ou por não ter observado os critérios estabelecidos pelas partes para o efeito). Não
tendo sido disciplinados critérios pelas partes, a saída será pela aplicação das regras relativas à
interpretação complementadora (integração dos negócios jurídicos). Tendo o terceiro agido de má fé,
o tribunal pode intervir na determinação do preço (art. 883.º/ 1 do CC).
Aqui, o preço foi determinado mas não seguiu os critérios da equidade.
PEDRO DE ALBUQUERQUE defende a aplicação direta (e não analógica) do art. 400.º/ 2,
que estabelece remédios para as patologias na determinação do preço ou na sua determinação.
Conclui-se que este ato de determinação seria avaliado pelo tribunal, de acordo com o juízo de
equidade (o que não seria um valor muito distante do valor de mercado).

Caso 3
No início do mês, Anacleto vende a Bento o seu apartamento e automóvel. Ficou
acordado que a entrega seria realizada na semana seguinte e o pagamento do preço no fim do
mês.

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O contrato celebrado entre Anacleto e Bento é um contrato de compra e venda, que, nos
termos do art. 874.º do CC, é aquele em que se transmite a propriedade de uma coisa ou direito,
mediante o pagamento de um preço.

Considere as seguintes questões de forma autónoma:


1. Bento recusa cumprir o contrato, invocando que o negócio foi celebrado por
documento escrito.
O problema que se coloca reside na forma do contrato de compra e venda.
O contrato de compra e venda está sujeito às regras gerais dos arts. 217.º e ss. quanto à forma:
ou seja, é um contrato meramente consensual, bastando o acordo dos contraentes. Vale o princípio da
liberdade de forma (art. 219.º), podendo o contrato ser realizado através de qualquer das formas
admitidas por lei para a declaração negocial.
Mas existem certos casos em que a lei exige a observância de certa forma: é o caso da compra
e venda de bens imóveis (que se contempla neste caso, visto que foi vendido um apartamento, ainda
que acompanhado de um automóvel - que é coisa móvel), como consta do art. 875.º do CC (é norma
imperativa e excecional e tem a finalidade de conferir segurança jurídica ao negócio). Exige-se, assim,
escritura pública ou documento particular autenticado para a venda de bens imóveis, sob pena de o
contrato de compra e venda ser nulo, segundo o art. 220.º do CC (aplica-se o regime do art. 289.º/ 1).
Importa referir que, além destas imposições de forma, o Direito exige, por vezes, a observância de um
conjunto de formalidades. Neste caso, quando se fala em ‘’documento escrito’’, ele pode referir-se a
qualquer coisa, até mesmo um guardanapo.
Acrescenta-se que, tratando-se igualmente da venda de um automóvel, aplica-se o disposto no
art. 409.º/ 2, pois que um veículo é uma coisa móvel sujeita a registo. Contudo, a sua alienação não
está, necessariamente, sujeita a forma escrita. Estes procedimentos já seriam subsequentes à compra e
venda do automóvel.
BAPTISTA LOPES considera que, se, pelo mesmo documento particular, foram vendidos
bens imóveis e bens móveis, aplica-se o disposto no art. 292.º quanto à redução dos negócios jurídicos
(art. 884.º/ 1). Isto, se for possível determinar o preço. Opera a redução do negócio jurídico, não
podendo haver a alienação do imóvel, mas podendo haver a alienação do automóvel.

2. No prazo convencionado, Anacleto procede à entrega das chaves do automóvel e do


imóvel. No entanto, Bento não procede ao pagamento do preço no fim do mês. Anacleto
pretende agora recuperar o imóvel e o veículo. Será possível?
As partes convencionaram que a entrega dos objetos da compra e venda seria feita na semana
seguinte. A obrigação de entregar a coisa é, como consta do art. 879.º, b) do CC, um dos efeitos
essenciais do contrato de compra e venda. É um efeito obrigacional e refere-se a um dever do
vendedor, pelo que o seu regime se encontra no art. 882.º. A coisa deve ser entregue no estado em que
estava ao tempo da venda, como contempla o art. 882.º/ 1, sob pena de recair a presunção de culpa do
devedor - presume-se a responsabilidade do vendedor, nos termos do art. 799.º/ 1.
O número 2 do art. 882.º refere que a obrigação de entrega da coisa (neste caso, do imóvel e
do automóvel) abrange as partes integrantes, os frutos pendentes e os documentos relativos à coisa ou
direito.
Aqui há traditio simbólica, pois ninguém entrega um imóvel fisicamente: a entrega simbólica
faz-se com a entrega das chaves. Ora, neste caso, parecem as chaves do automóvel e as chaves do
imóvel constituir-se como coisas acessórias (art. 210.º/ 2). Por isso, Anacleto agiu corretamente ao

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entregar as chaves do imóvel e do automóvel, visto que, sem elas, Bento não consegue aceder aos
objetos comprados.
Por sua vez, Bento deve proceder ao pagamento da coisa, nos termos do art. 879.º, c) do CC,
já que é sua obrigação. O art. 885.º/ 1 refere-se ao momento do pagamento do preço como o momento
da entrega da coisa. Mas o art. 885.º/ 2 permite que as partes estipulem no sentido de o preço não ser
pago no momento da entrega: neste caso, como houve prazo estabelecido pelas partes - final do mês -,
é nessa altura que B deve proceder ao pagamento.
Há uma declaração de incumprimento definitivo (art. 808.º): a doutrina tem entendido que há
uma remissão para o art. 801.º/ 2.
Como a entrega já foi realizada, a consequência será ação de cumprimento e o pagamento de
juros moratórios.

3. Anacleto contratou uma transportadora para proceder ao envio das chaves do


apartamento e do automóvel. Agora, pretende que Bento suporte o valor correspondente.
O art. 878.º estabelece que as despesas do contrato e outras despesas acessórias ficam a cargo
do comprador (B, aqui). Este preceito foi pensado para despesas de escritura ou de transporte. Mas
este artigo não se aplica às despesas de expedição.
Neste sentido, PEDRO DE ALBUQUERQUE e MENEZES LEITÃO distinguem:
- despesas do contrato, que são as despesas ou encargos com a celebração do contrato;
- das despesas acessórias, que são as despesas fiscais respetivas à transmissão.
PEDRO DE ALBUQUERQUE sublinha a circunstância de as despesas cobertas pelo art.
878.º serem apenas as inerentes à celebração do contrato e não já as concernentes à sua execução (que
deverão, em princípio, recair sobre o vendedor - correm por conta dele as despesas ligadas à guarda e
à conservação).
BAPTISTA LOPES sustenta que são despesas acessórias do contrato, entre outras, as da
escritura, juros do preço, de embalagem, transportes, direitos e seguros.
MENEZES CORDEIRO refere que as despesas devem caber ao comprador, mas existem
exceções.
Se o vendedor decide enviar as chaves por transportadora, é porque assim decidiu. Existiam
deveres de informação. No caso em apreço, o valor que se gaste com o envio das chaves do
apartamento e do automóvel cabem a A, que é o vendedor.
3.1 Quem deve suportar as despesas respeitantes à escritura pública, registo e IMT?
No entendimento de BAPTISTA LOPES, sendo a escritura uma despesa acessória, ela cabe na
previsão do art. 878.º do CC, pelo que fica a cargo do comprador. Como esta é uma despesa referente
à celebração do contrato, ela deve ser suportada por B.
Ratio: se fosse o vendedor a suportar as despesas, poderia acontecer que as mesmas
excedessem o próprio valor do bem, o que vai contra uma racionalidade económica. O vendedor
poderia, assim, nem tirar proveito da própria alienação.

Caso 4
No dia 1 de setembro de 2020, Ana, residente em Lisboa, compra a Beatriz, residente no
Porto, uma guitarra portuguesa que pertencera à Amália Rodrigues, por 5 mil euros.
Entre Ana e Beatriz foi celebrado um contrato de compra e venda, nos termos do art. 874.º do
CC: contrato através do qual se transmitiria a propriedade da guitarra, mediante o pagamento de um
preço. Os efeitos essenciais deste contrato são os que residem no art- 879.º, e, portanto, a transmissão

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da propriedade da coisa (que é um efeito real), a obrigação de entrega da coisa e a obrigação de


pagamento do preço (ambos efeitos obrigacionais).
Assim, o contrato de compra e venda tem dois elementos essenciais, que são a transferência
da propriedade de coisa ou de direito e o pagamento de um preço.
O contrato de compra e venda insere-se, ainda, nas modalidades de contrato quoad effectum
(arts. 408.º e 409.º do CC) - dando-se a transferência dos direitos reais por mero efeito do contrato; de
contrato sinalagmático - visto que as obrigações do vendedor e do comprador constituem-se tendo
cada uma a sua causa na outra (o sinalagma pode ser genético, se, no momento de celebração do
contrato, as partes definiram que vão entregar x e receber y; ou pode ser funcional, prolongando-se no
tempo e as partes vão sucessivamente dando e recebendo, permanecendo as partes interligadas na fase
de execução do contrato); e de contrato oneroso, porque existe uma contrapartida pecuniária em
relação à transmissão dos bens (art. 237.º do CC é relevante para efeitos de distinção entre contrato
oneroso e contrato gratuito, sendo que, no primeiro, existe um sacrifício económico para ambas as
partes).
No que respeita à forma, estando em causa a compra de um bem móvel (guitarra), segue-se a
regra do art. 219.º, que se refere ao princípio da liberdade de forma, em detrimento do art. 875.º. Deste
modo, o contrato de compra e venda poderia ter sido celebrado de qualquer forma, não sendo nulo nos
termos dos art. 220.º.

1. No dia 2 de setembro, há um incêndio no prédio de Beatriz que destrói por completo a


guitarra. Pode Ana recusar o pagamento do preço?
O pagamento do preço é, segundo o art. 879.º/ c), uma obrigação do comprador, e é um efeito
essencial do contrato de compra e venda. O preço é a expressão do valor em dinheiro (neste caso, foi
convencionado o valor de 5 mil euros).
Quanto ao tempo e lugar do pagamento do preço, deve atentar-se ao disposto no art. 885.º,
que indica que o preço deve ser pago no momento e no lugar da coisa vendida. O art. 886.º regula, já,
o que acontece quando haja falta de pagamento do preço: transmitida a propriedade da coisa, e feita a
respetiva entrega, o vendedor não pode resolver o contrato por falta de pagamento do preço (exceção
ao art. 801.º).
Está em causa um problema de suportação do risco. Como a compra e venda (art. 875.º) é um
contrato quoad effectum (quanto aos efeitos), isso significa que a propriedade se transfere solo
consensu. E o sistema do título só o vem comprovar. Assim, devem operar as regras do art. 796.º, que
se referem ao risco: segundo o art. 796.º/ 1, o risco do perecimento da guitarra corre por conta de Ana,
pois, a partir do momento em que se celebrou o contrato de compra e venda, esta passou a deter a
propriedade sobre a coisa. Além disso, o incêndio que fez perecer a coisa é considerada uma causa
não imputável ao alienante (Beatriz). O risco transfere-se no momento em que se produz o efeito real.
Ana não podia recusar o pagamento do preço.
No caso em concreto, verifica-se uma situação de impossibilidade objetiva, nos dítames do
art. 790.º do CC. O art. 790.º/ 1 dispõe que a obrigação extingue-se quando a prestação se torna
impossível por causa não imputável ao devedor.

a. Suponha que as partes acordaram a entrega da coisa até ao fim do mês, já que Beatriz
pretendia colocar a peça em exposição, num museu, por 15 dias. A sua resposta seria
diferente?
A entrega da coisa constitui um dos efeitos essenciais da compra e venda, nos termos do art.
879.º, b) do CC, sendo um efeito obrigacional, que parte do vendedor. Isto é, antes do ato de entrega

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da cosia, o vendedor continua proprietário e não aliena, obrigando-se a alienar. A propriedade só se


transfere quando o vendedor, através de um ato ou declaração de vontade (posterior à realização do
contrato de compra e venda), transmite a coisa ao comprador.
Não sendo a coisa entregue no momento da celebração do contrato, o seu estado pode variar
até à altura da respetiva entrega, como prevê o art. 882.º/ 1. Ora, na eventualidade de a coisa se
deteriorar no período entre a realização do contrato e a sua respetiva entrega, presume-se a
responsabilidade do vendedor, segundo a regra geral de presunção de culpa do devedor estabelecida
no art. 799.º/ 1.
Ao vendedor cabem duas espécies de condutas, no que toca ao estado da coisa: uma negativa,
que corresponde à obrigação de se abster da prática de atos que alterem o estado da coisa; outra
positiva, traduzida na obrigação de fazer o necessário para a conservação da coisa no seu estado ao
tempo da venda.
O artigo 796.º/ 2 estatui que se a coisa tiver continuado em poder de Beatriz - alienante - em
consequência de termo constituído a seu favor (as partes acordaram 1 mês para a entrega da coisa), o
risco só se transfere com o vencimento do termo (no fim do mês) ou com a entrega da coisa. Aplica-se
o art. 807.º, igualmente, para explicar que o devedor se torna responsável pelo prejuízo que o credor
tiver em consequência da perda ou deterioração da guitarra que deveria entregar, mesmo que estes
factos não lhe sejam imputáveis (é o que acontece, visto que ter existido um incêndio não é culpa de
Beatriz). Isto é, aqui, o risco não se transferiu para Ana, que pode, assim, recusar o pagamento do
preço. O alienante ficou sem a guitarra e ficou sem o preço, visto que é ele a suportar o risco.
Sendo o comprador a suportar o risco, ele perde a coisa, mas fica obrigado a pagar o preço.

Caso 5 - Compra e venda com reserva de propriedade


No stand de automóveis Carros Novos Lda., Anacleto decide comprar um carro por 20
mil euros. Como não tinha dinheiro suficiente para pagar a pronto, um funcionário proveu pela
celebração de um empréstimo de 20 mil, a uma taxa de juro de 10% durante 5 anos.
O contrato de concessão de crédito foi celebrado com uma sociedade financeira,
parceira comercial do stand.
O automóvel foi entregue, mas ficou acordado que a propriedade sobre o veículo seria
transferida quando o capital em dívida e os juros fossem pagos.

Considere as questões isoladamente:


1. Aprecie a validade das cláusulas do contrato de compra e venda.
Está em apreço um contrato de compra e venda (art. 874.º do CC), mais concretamente um
contrato de compra e venda com reserva de propriedade.
Nos contratos de compra e venda, a coisa vendida passa a pertencer ao espólio do comprador,
sendo esse um resultado da eficácia real do contrato de compra e venda, nos termos do art. 408.º/ 1 do
CC. Ainda assim, o art. 409.º/ 1 do CC deixa a possibilidade de o vendedor reservar para si a
propriedade da coisa (neste caso, trata-se de um carro, que é um bem móvel) até ao cumprimento total
ou parcial das obrigações ou até à produção de algum outro evento.
A reserva de propriedade é vantajosa para o vendedor (aqui, o stand), visto que lhe permite,
tendo em conta o diferimento do pagamento do preço, defender a sua posição. O vendedor é
proprietário, mas a propriedade está reduzida com função de garantia do cumprimento da obrigação
de pagamento do preço ou da restituição do capital em dívida e dos juros, nesta situação. O comprador

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Compra e venda

não é proprietário, não a podendo alienar, mas podendo usar dela, tendo uma expectativa real de
aquisição da coisa.
No que respeita à forma, como o contrato de compra e venda com reserva de propriedade está
sujeito às mesmas formalidades que o contrato no qual se insere - contrato de compra e venda -, e
estando em apreço a venda de um bem imóvel, esta poderia ter sido convencionada de qualquer
forma, ao abrigo do princípio da liberdade de forma, contido no art. 219.º do CC (em detrimento do
art. 875.º do CC). Contudo, quando o comprador seja insolvente, é imposta a forma escrita para que
possa ser oponível (art. 104.º/ 4 do CIRE); e, para que seja oponível a terceiros, tanto na compra e
venda de bens móveis como na de imóveis, ela tem de obedecer às regras de registo a que os bens se
encontram sujeitos (art. 409.º/ 2 do CC).
A cláusula de reserva de propriedade deve ser estipulada no âmbito do contrato de compra e
venda, não podendo vir a ser nele inserido posteriormente, dado que a propriedade já se transferiu, aí,
para o comprador.
O ponto, nesta hipótese, é que Anacleto contraiu um empréstimo para efetuar o pagamento ao
stand: ficou acordado que a propriedade não se transmitia com o pagamento do preço, mas ao
pagamento do contrato de mútuo. A propriedade não deixa de se restituir com o pagamento dos juros.
Não existe uma condição, neste caso. Há indícios de que não se está perante uma condição
suspensiva (não é retroativa, nem segue o regime do risco do art. 796.º - quem suporta o risco é o
vendedor): aqui, só está paralisado o efeito translativo - o efeito real. O pagamento de juros não é um
evento futuro e incerto, é antes uma obrigação do comprador: um dos efeitos essenciais do contrato de
compra e venda, que tem de se verificar e que, se não for cumprida, está-se perante uma situação de
incumprimento.
Admissibilidade da reserva da restituição do capital em dívida? Pergunta-se se os termos
acordados são admissíveis: se o comprador já pagou o preço com o capital que recebeu, como é que o
pode o vendedor resolver o contrato? Havendo uma união interna de contratos (os contratos estão
funcionalmente ligados, porque o contrato de mútuo foi celebrado para pagar o preço do contrato de
compra e venda), é o que dá a possibilidade ao vendedor de resolver o contrato. Havendo dois
contratos autónomos, não podia o vendedor invocar o contrato de mútuo para resolver o contrato de
compra e venda.

2. Suponha que o stand de automóveis apresenta dívidas avultadas e os credores da


sociedade nomeiam à penhora o automóvel vendido.
A compra deste bem, sendo um automóvel, estava sujeita a registo, nos termos do art. 409.º/
2. Só assim sendo, é que a cláusula de reserva da propriedade constante do contrato é oponível a
terceiros.
O problema de registo será um problema de oponibilidade a terceiros. Se não tiver sido
registada, há um caso de responsabilidade e o terceiro poderá nomear à penhora este automóvel.
No caso de insolvência do comprador, deve atentar-se no facto de o mesmo estar protegido,
porquanto os credores dele não podem, em princípio, fazer-se pagar pelo valor da coisa vendida com
reserva de propriedade (art. 104.º/ 4 do CIRE). Necessidade de reduzir a escrito, para que o
comprador possa opor.

Imaginado um bem móvel não sujeito a risco. Numa situação de insolvência, aplica-se esta
norma? art. 104.º/ 5 do CIRE Esta é uma norma excecional, não suscetível de analogia.

Ana Maria Varela 9


Casos práticos resolvidos DIREITO DOS CONTRATOS I
Compra e venda

a. Se o bem vendido fosse uma joia preciosa, ao invés de um veículo a motor, a sua
resposta permanecia a mesma?
O art. 409.º/ 2 é claro ao referir que, no caso de bens imóveis ou de bens móveis sujeitos a
registo, só a cláusula constante do registo é oponível a terceiros. Por isso, coloca-se a questão de saber
se, em bens móveis não registáveis, como é uma jóia, existe oponibilidade a terceiros da reserva de
propriedade. O contrato não exige nenhuma forma, mas para ser oponível é necessário que tenha sido
reduzido a escrito.
Na resposta, surgem divergências na doutrina:
- A maioria da doutrina, onde se insere PEDRO DE ALBUQUERQUE, defende que a reserva
poderá ser normalmente oposta a terceiros de boa fé (visto que a lei não exclui a estipulação
de reserva de propriedade quanto a esse tipo de bens). Só se exige a publicidade da reserva de
propriedade, assim, no caso de bens sujeitos a registo. Noutros casos não será exigida
qualquer possibilidade para se opor a reserva a terceiro. Além disso, os direitos reais são
direitos erga omnes.
- Por outro lado, ROMANO MARTINEZ sustenta a inoponibilidade da cláusula de reserva de
propriedade a terceiros de boa fé, na hipótese de vir a ser celebrada relativamente a bens
móveis sujeitos a registo. O autor refere que, embora a reserva de propriedade possa diferir -
por acordo das partes - a transmissão da propriedade para o momento integral do preço, a
função do acordo não é a de permitir ao vendedor a continuação do gozo sobre esse bem, uma
vez que o mesmo é entregue ao comprador para que ele, sim, possa gozar. O objetivo é apenas
o de defender o vendedor de eventuais consequências do incumprimento do comprador. Outro
argumento utilizado é o da relatividade dos contratos (art. 406.º/ 2). O argumento do art.
435.º/ 1 não procede, porque o comprador não pode transmitir direitos que não tem.

Conclui-se pela oponibilidade da cláusula de reserva de propriedade nos bens móveis não
sujeitos a registo.

3. Após receber as chaves da viatura, Anacleto envia uma carta ao stand, onde diz
recusar-se a pagar o preço devido. Pode a Sociedade em questão resolver o contrato e exigir o
pagamento do preço?
À partida, a cláusula de reserva de propriedade é um meio de defesa do vendedor, que, em
caso de incumprimento por parte do vendedor, pode defender a sua posição, conservando para si a
coisa objeto do contrato de compra e venda. Mas, neste caso, o comprador - Anacleto - já tinha
recebido a chaves da viatura, o que funciona como uma traditio simbólica (entrega efetiva da coisa).
Anacleto encontra-se em incumprimento, pois que estava obrigado a pagar. De qualquer
modo, embora tenha havido entrega da coisa, pela cláusula de reserva da propriedade entende-se que
o automóvel ainda é propriedade do vendedor. Nestas situações, o vendedor tem a possibilidade de
resolver o contrato, nos termos do art. 801.º/ 2 do CC (dado que a exclusão deste direito pelo art. 886.º
só se verifica se tiver ocorrido a transmissão da propriedade da coisa).
Importa, contudo, referir que, a jurisprudência e a doutrina maioritária definiram que, se se
tem uma declaração séria e consciente de que não se vai cumprir, há incumprimento definitivo, o que
permite resolver o contrato ao abrigo do art. 886.º.
É impossível exigir o pagamento do preço simultaneamente pedindo a resolução do contrato
(está a querer-se simultaneamente o incumprimento e o cumprimento do contrato). O que se pode
fazer é intentar uma ação de cumprimento (PEDRO DE ALBUQUERQUE). É possível exigir o

Ana Maria Varela 10


Casos práticos resolvidos DIREITO DOS CONTRATOS I
Compra e venda

cumprimento e, mais tarde, o vendedor resolver o contrato se não conseguir que o comprador cumpra
a sua obrigação.
O art. 886.º deve ser lido em conformidade com o regime geral (porque, apesar de não
impedir, não deixa de ser necessário seguir as regras gerais).

a. Considere que Ana é condenada ao pagamento do preço e, na ação executiva, o stand


nomeia à penhora do veículo.
O que está em questão é se se pode nomear o bem em causa para execução, sendo o stand
proprietário do país. Se isso acontecesse, estaria a renunciar à reserva de propriedade.

4. Passado um mês, devido a uma forte tempestade, cai uma árvore em cima do carro,
ficando este completamente destruído. Anacleto entende que não deve suportar na sua esfera
jurídica o perecimento da coisa e recusa-se a cumprir as obrigações assumidas.
Já está patente, agora, um problema de risco, que se prende com saber quem suporta o risco
do perecimento do veículo.
Na venda com reserva de propriedade, tem vindo a ser sustentado que o vendedor continuaria
a suportar o risco pela perda ou deterioração da coisa (até porque é ele que detém a propriedade, em
princípio), ainda que a coisa tivesse já sido entregue ao comprador.
No entanto, MENEZES LEITÃO defende que esta solução é inaceitável, visto que, a partir da
entrega, o comprador já fica investido nos poderes de uso e de fruição da coisa, servindo a
manutenção da propriedade no vendedor apenas para assegurar a recuperação do bem, caso não exista
pagamento do preço. Ora, devendo o risco correr por conta de quem beneficia do direito, parece-lhe
claro que, a partir da entrega, é por conta do comprador que o risco deve correr, não ficando este
exonerado do pagamento do preço em caso de perda ou deterioração fortuita da coisa.
Se se vier a observar a perda ou deterioração da coisa em resultado de um dano culposamente
causado por terceiro, já é manifesto que não pode o vendedor reclamar a totalidade da indemnização,
uma vez que, enquanto conservar o crédito do preço, o património do vendedor não sofre qualquer
diminuição.
PEDRO DE ALBUQUERQUE tem uma ideia de repartição de risco: o comprador continua
obrigado ao pagamento do preço e o vendedor perde a garantia. Não é aplicável o art. 796.º/ 3, porque
não está este contrato sujeito a uma condição.
O art. 796.º refere ‘’transferência do domínio’’: PEDRO DE ALBUQUERQUE refere que o
legislador pretendeu abster-se das qualificações relativas à natureza da reserva de propriedade. É
aplicável, no caso, o art. 796.º/ 1: não é o comprador que suporta exclusivamente o risco do
perecimento da coisa, mas continua obrigado ao pagamento do preço.

5. Suponha que os contraentes acordaram que a instituição financeira reserva para si a


propriedade do automóvel até ao pagamento integral do empréstimo. Esta estipulação é válida?
Problema: admissibilidade da reserva de propriedade a favor de terceiro.
MENEZES LEITÃO E PEDRO DE ALBUQUERQUE consideram que esta estipulação não é
válida, ao abrigo do art. 409.º. Aplica-se a tipicidade dos direitos reais.
PEDRO DE ALBUQUERQUE argumenta que quem não é proprietário não pode reservar a
propriedade, a própria letra do art. 409.º dá a entender que não é possível a reserva a favor de terceiro
(‘’reservar para si’’); outro argumento é o da tipicidade dos direitos reais (art. 1306.º) - na reserva de

Ana Maria Varela 11


Casos práticos resolvidos DIREITO DOS CONTRATOS I
Compra e venda

propriedade, há expectativa real de aquisição do comprador, o que significa que qualquer leitura que
estenda o âmbito do art. 409.º não será de admitir.

6. Imagine que o automóvel não foi entregue a Anacleto e que o stand decide vender e
entregar a viatura a Carlos. Pode Anacleto reivindicar o automóvel?
Ora, estando em causa um contrato de compra e venda com reserva de propriedade, tal
significa que a propriedade ainda pertence ao vendedor, até existir o cumprimento total ou parcial das
obrigações (neste caso, do pagamento por Anacleto). Se a coisa - veículo - não foi entregue, não
houve tradição da coisa.
É de indagar se não está, aqui, à luz do art. 892.º do CC, uma venda de bens alheios. Nesta
hipótese, não poderia o vendedor (stand) opor ao comprador de boa fé a nulidade do negócio. O
negócio seria nulo. Embora o art. 892.º não mencione a distinção entre a venda de bens alheios
imóveis, móveis sujeitos a registo ou bens móveis não sujeitos a registo, não poderia haver
inoponibilidade da reserva de propriedade (art. 1301.º do CC). PEDRO DE ALBUQUERQUE refere
que deve ser aplicado o regime da compra e venda de bem alheio: o vendedor não mantém o direito de
dispor a coisa livremente (pode alienar, mas não pode alienar como se fosse propriedade plena). Não
tendo o direito de disposição (art. 892.º), ele carece de legitimidade para realizar a venda, pois existe
na esfera jurídica do comprador uma expectativa real de aquisição.
O beneficiário da reserva (Anacleto) pode exigir o bem, podendo, contudo, ter de restituir o
preço pago por terceiro (Carlos), tendo o direito de regresso perante o alienante (stand).
Seria possível a ação de reivindicação (art. 1311.º e art. 1315.º).

a. Ao tomar conhecimento da situação, Anacleto entende que o stand não foi honesto
consigo. Decidiu, assim, vender o veículo a Carros Velozes Lda. (concorrente de Carros
Novos), que agora o pretende reivindicar a Carlos.
PEDRO DE ALBUQUERQUE defende que, uma vez que, na compra e venda com reserva de
propriedade, o vendedor mantém a propriedade da coisa, a reserva de propriedade não afeta nenhum
direito adquirido por terceiro, dado o comprador, por não ser proprietário, não poder transmitir ou
alienar mais do que os próprios direitos de que é titular.
Aplica-se o regime da venda de bens alheios: o comprador não é proprietário, mas tem uma
expectativa real de aquisição. Se o comprador restituir o capital em dívida e fizer o pagamento de
juros remuneratórios (há venda de bem alheio, depois o cumprimento da obrigação), há convalidação
do contrato (art. 895.º). Se o vendedor adquirir a propriedade, o contrato entre Anacleto e Carros
Velozes, Lda. convalida-se.

Caso 6 - Compra e venda de bens futuros


Aníbal, agricultor, vendeu a Beatriz, comerciante, a totalidade da sua produção mensal
de alface, a mil euros mês, durante um ano. É sabido que Aníbal, por via de regra, produz cerca
de 1 tonelada de alface por mês.
Está patente um contrato de compra e venda, regulado nos arts. 874.º e ss. do CC, celebrado
entre Aníbal e Beatriz, em que o primeiro vende a totalidade da sua produção mensal de alface a
Beatriz, existindo a retribuição pecuniária de 1 000€.
É possível classificar esta compra venda na modalidade de compra e venda de bens futuros,
ao abrigo do art. 880.º do CC.

Ana Maria Varela 12


Casos práticos resolvidos DIREITO DOS CONTRATOS I
Compra e venda

Pergunta-se por que razão são bens futuros e não frutos pendentes: ao que se responde que o
objeto do negócio não é a alface ligada materialmente à terra com carácter de permanência. A
diferença entre a venda de frutos pendentes e a venda de bens futuros reside no facto de a
transferência da propriedade se dar em momentos diferentes: na venda de coisa futura, a transferência
dá-se com a aquisição pelo alienante da coisa; na venda de frutos pendentes, a transferência dá-se com
a respetiva colheita ou separação (art. 408.º/ 2 do CC). As alfaces ainda não existiam, por isso a
propriedade só se transmite com a colheita.

a) Porém, no mês de abril, em razão do mau tempo prolongado, Aníbal apenas produziu
700 kg de alface. Apesar disso, Aníbal exige de Beatriz o pagamento dos mil euros relativos
aquele mês. Quid iuris?
Segundo o art. 880.º/ 1, o vendedor - Aníbal - está obrigado a exercer as diligências
necessárias para que o comprador adquira os bens vendidos, segundo o que for estipulado ou segundo
o que resultar das circunstâncias do contrato. Nada foi estipulado pelas partes acerca da quantidade de
alfaces que deveriam ser vendidas, apenas se referindo a produção mensal de Aníbal.
No art. 881.º, a dúvida acerca da incerteza da tem de ser partilhada pelo comprador e pelo
vendedor. A incerteza relativa à titularidade tem de ser subjetiva: ou a pessoa é proprietária do bem ou
não é, não podendo ser parcialmente proprietária. Para se aplicar o art. 881.º, tem de haver uma
menção expressa no contrato acerca da incerteza. Logo, este preceito não se aplica.
Em contratos onerosos, numa situação de dúvida, vale o art. 237.º, para assegurar o equilíbrio.
Na interpretação, deve considerar-se que, ainda que tenha sido produzido menos 300kg do que a
média, o preço é devido por inteiro.
Podem, assim, seguir-se dois caminhos:
- Se resultar das circunstâncias do contrato, uma vez que A costuma produzir sempre
cerca de 1 tonelada de alface, que devem ser entregues cerca de 1 tonelada de alfaces
para que B lhe pague os 1 000€, invoca-se o regime da impossibilidade parcial (art.
793.º) não culposa ou imputável ao vendedor - A.
A consequência será a do cumprimento parcial, com os 700 kg de alface; terá de
haver redução na medida da impossibilidade (art. 793.º/ 1). No entanto, de acordo
com o art. 793.º/ 2, se B não estiver interessada nesse cumprimento parcial, poderá
resolver o contrato.
- Se se entender que não resulta das circunstâncias do contrato que deveria ser entregue
cerca de 1 tonelada de alfaces, então B teria de pagar os 1 000€ na mesma, uma vez
que esse havia sido o preço estipulado pelas partes, nos termos do art. 879.º, c) do
CC.

Neste caso, tem-se uma obrigação de meio, pois o vendedor só fica obrigado às diligências
necessárias, e não fica obrigado ao resultado.
Sendo a coisa futura, o comprador não se torna proprietário depois da celebração do contrato.
A prestação de Aníbal era de entregar tudo o que produzisse, caso entregue menos ou mais do
que 1 000kg, não se pode dizer que há incumprimento parcial, no que toca ao Direito das Obrigações.
Existe uma presunção de culpa no que toca a A (art. 798.º), que, no caso de as coisas futuras não se
tornarem presentes, ou, pelo menos, não na sua totalidade, que lhe cabe a ele afastar.
Quanto à prestação, se o contrato não tiver natureza aleatória, o art. 880.º aplica-se e só o que
for tornado presente e seja adquirido pelo alienante é que é pago; se tiver natureza aleatória, o
adquirente tem sempre que pagar a totalidade do preço (vende a esperança de ter a coisa futura).

Ana Maria Varela 13


Casos práticos resolvidos DIREITO DOS CONTRATOS I
Compra e venda

Importa referir que este contrato específico era aleatório, já que a atribuição patrimonial não
se apresenta como certa. Isto é relevante porque, segundo o art. 880.º/ 2 do CC, na hipótese de a
transmissão da coisa não se realizar, o preço é, mesmo assim, devido.
MENEZES LEITÃO refere que, para ser aleatório, tem de ser expresso que está em jogo uma
alteração das regras gerais da distribuição do risco. Mas PEDRO DE ALBUQUERQUE e NUNO
PINTO OLIVEIRA discordam.
Estes contratos designam-se contratos de compra e venda de esperanças: significa que naquele
contrato de compra e venda as partes quiseram dizer que, desde que se tomem certas diligências, ainda
que a coisa não se venha a tornar presente, é pago o preço que foi combinado. Há risco, que o
comprador está a assumir, de a coisa não vir a existir na sua totalidade, ou de todo, mas tendo ele de
pagar o preço (compra-se com a esperança de se vir a obter alguma coisa e essa esperança tem de ser
paga). Derroga-se o regime do risco e, por isso, alguns autores referem que isto só ocorre quando as
partes atribuem expressamente natureza aleatória (art. 880.º/ 1). Outros advogam que a lei não refere
que tem de ser expressamente, logo, se der para perceber pelas circunstâncias do mesmo que há risco
que é assumido pelo comprador, no sentido de que o mesmo não venha a acontecer, tem de pagar.
A venda de coisa futura difere da venda de esperança, porque, na primeira, o preço só é
devido se a coisa realmente vier a existir; na segunda, o risco da não concretização da esperança do
comprador pertence-lhe.

b) Imagine agora, em alternativa que Aníbal apenas tinha produzido 700 kg de alface no
mês de abril por não ter utilizado nos meses de fevereiro e de março as dosagens adequadas de
pesticidas. Quid iuris?
Nestes casos, tudo indica que o alienante tem diligências adicionais, no sentido de assegurar
que o adquirente venha a obter as coisas. Essas não estão concretizadas no art. 880.º/ 1, porque
depende do objeto do negócio. Tal pode consubstanciar a prática de atos jurídicos (por exemplo,
quando se tem de comprar a outra pessoa, será adquirir o direito de propriedade sobre certa coisa).
Não tomando as devidas diligências, presume-se a culpa do vendedor, nos termos do art.
802.º. Se não produziu ou produziu menos do que aquilo a que se obrigou, por sua culpa dá-se
impossibilidade parcial (art. 802.º), sendo que o credor tem a faculdade de resolver o negócio ou de
exigir o cumprimento do que for possível reduzindo a contraprestação, tendo sempre direito a
indemnização por interesse contratual positivo. Contudo, o art. 802.º/ 2 diz-nos que não se pode dar a
resolução se o incumprimento parcial tiver escassa importância.
Problema identificado: culpa. O art. 880.º não foi observado e MENEZES CORDEIRO diz
que as diligências necessárias têm de ser analisadas caso a caso. Por isso, aqui, há responsabilidade
obrigacional.
PEDRO DE ALBUQUERQUE refere estar-se perante um negócio completo; se existe um
incumprimento da diligência por parte do vendedor, não existe razão para restringir ao interesse
contratual negativo. Por isso, poder-se-ia resolver pelo interesse contratual positivo ou pelo interesse
negativo. Será opção do comprador.

Porque não pode o lesado pedir uma indemnização por interesse contratual negativo e
interesse contratual positivo? Ao lesado interessa a maior indemnização possível. Ter-se-ia uma
situação em que o lesado estaria uma posição extremamente vantajosa: ao lesado interessaria sempre
uma situação de incumprimento, pois estaria numa posição melhor.

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Casos práticos resolvidos DIREITO DOS CONTRATOS I
Compra e venda

Caso 7 - Compra e venda de coisas sujeitas a pesagem, contagem e medição


(corresponde à 2.ª hipótese do livro de caso práticos do Senhor Professor Tiago Soares da
Fonseca):

Carlos vendeu a Diogo, um terreno para construção por 10 milhões de euros, indicando,
além da respetiva localização, que o mesmo tinha 10 mil m2.

a) Passado sete meses, Diogo verifica que o terreno apenas tinha 9 mil m2. Exige de
Carlos mais mil m2, ou em alternativa, aquilo que considera ter pago a mais, mas este recusa.
Compra e venda de coisas sujeitas a pesagem, contagem e medição: compra e venda de coisa
determinada, pelo que o comprador adquire a propriedade dos bens com a celebração do contrato
antes da aquisição do terreno (art. 408.º/ 1).
A primeira questão que se coloca é a de saber se Diogo pode reagir perante o facto de o
terreno ter menos m2 do que o indicado aquando da celebração do contrato. O Código Civil
estabelece, para estes casos, um regime especial, presente nos arts. 887.º e ss. para a compra e venda
de coisas sujeitas a pesagem, contagem e medição, como é o caso.
Para PEDRO DE ALBUQUERQUE e FERREIRA GIRÃO, o art. 887.º aplica-se a casos em
que se dá a entrega, pelo vendedor, de coisas concretas e não definidas em relação a certo tipo,
supondo, ainda, a menção contratual da quantidade da coisa vendida. Os casos de que este artigo trata
referem-se ao objeto do contrato, que, sendo inteiramente entregue, não se adapta à menção, juízo ou
cálculo sobre ele feito pelas partes ou uma delas. Caso contrário, tratando-se de uma situação de
entrega de uma coisa quantitativamente diferente da do objeto do contrato, estar-se-ia perante uma
hipótese de cumprimento defeituoso.
Tratando-se de uma coisa determinada, a compra e venda dá-se com a celebração do contrato.
Ou seja, o comprador adquire, segundo as regras do art. 408.º, a propriedade do terreno,
transferindo-se para si o risco da perda ou deterioração. Neste caso, de acordo com PEDRO DE
ALBUQUERQUE, havendo divergência entre as medidas referidas e o resultado da medição, os
efeitos sentem-se apenas a nível do preço devido.
Caso o preço tenha sido estipulado por unidade, aplica-se o art. 887.º; caso contrário,
aplica-se o art. 888.º. Como está em causa uma situação do art. 888.º, o comprador deve o preço
estipulado no contrato, mesmo não correspondendo às medidas do terreno.

Há que fazer uma distinção entre o art. 887.º e o art. 888.º (o que está a ser alienado é uma
determinada coisa, o preço não é definido em função dessa quantidade; o que é transacionado é uma
realidade, que pode apresentar elementos contáveis).
Todavia, tendo em conta o disposto no art. 888.º/ 2, o preço sofrerá uma redução, visto que a
quantidade referida difere da declarada em mais de um vigésimo desta (um vigésimo de 10 000 000 é
500 000). O ónus da prova da divergência recai sobre Diogo, que é quem vai pedir a correção do
preço.
PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA referem que a diferença que excede 1/20 é uma
espécie de carência imposta às partes (margem de erro que as partes admitiram). O que é reduzido não
são os m2, mas o preço (ou seja, o preço é reduzido para 9 500 000€).
Não pode, em alternativa, exigir mais m2. O que poderá fazer é exigir a redução dos preços.
Contudo, há que atender aos prazos de prescrição do exercício deste direito, que foge à regra
geral do art. 309.º. Relativamente aos prazos, atende-se ao art. 890.º do CC (6 meses para coisas

Ana Maria Varela 15


Casos práticos resolvidos DIREITO DOS CONTRATOS I
Compra e venda

móveis e 1 ano para coisas imóveis). Tratando-se de um terreno, vale o prazo de 1 ano, pois é um
imóvel. Significa que Diogo exerceu o seu direito atempadamente.

b) Em que condições pode Diogo resolver o negócio?


A aplicação dos arts. 887.º e 888.º/ 2 pode lesar o comprador se o preço a pagar for muito
superior ao referido no contrato, já que este terá de pagar mais do que o inicialmente previsto. De
forma a atenuar este efeito, o art. 891.º permite que Diogo possa resolver o contrato se o preço devido,
ao abrigo dos artigos referidos, exceder o proporcional à quantidade mencionada em mais de um
vigésimo deste e o vendedor exigir esse preço (salvo se houver dolo).
Ainda assim, não pode Carlos resolver o contrato em virtude da redução do preço, como
pensa PEDRO DE ALBUQUERQUE. Diogo poderá exercer o direito de resolução no prazo de 3
meses a contar da data em que o vendedor fizer por escrito a exigência do excesso (art. 891.º/ 2). Este
prazo deverá ser complementado com o prazo que decorre do art. 890.º.
O que se pergunta é em que circunstância é que o comprador pode resolver o negócio: estas
são as de qualquer negócio, à luz do art. 432.º e ss. Nesta hipótese, estas situações não são essenciais
de ter em consideração, mas o facto de o contrato consubstanciar a venda de uma coisa determinada
sujeita a medição. Por conseguinte, o art. 891.º estabelece o direito de resolução ao comprador
somente nas circunstâncias prescritas. Estas não se observam no caso.
Se se aplicasse o art. 891.º aos dados da hipótese, verificar-se-ia que nunca poderia existir
direito de resolução por parte do devedor porque o preceito pressupõe que a discrepância entre a
medida declarada e a medida real dê origem a uma diferença de preço a favor do vendedor. Isto é,
pressupor-se-ia que o terreno tivesse mais m2 do que os que foram declarados. O vendedor, aqui, não
tem esse direito, porque o terreno tem uma área inferior à declarada. O comprador está mais protegido
porque vai confiar no que é transmitido pelo vendedor e, se houver uma discrepância, o comprador
pode ver-se obrigado a desembolsar uma quantia superior à que pensava dispor.
Aplica-se o art. 891.º, cujos requisitos têm de estar preenchidos: direito do comprador;
situação de aumento de preço (não de redução de preço, porque o grande problema é que o comprador
pode ser surpreendido a posteriori com um aumento do preço que não tem capacidade económica de
suportar); o comprador não pode ter agido com dolo. Concluindo, Diogo não poderia resolver o
negócio.

c) Suponha que, no mesmo dia e no mesmo cartório, Carlos tinha vendido a Diogo dois
terrenos: um por 2 milhões de euros com 2 mil m2; outro por 1 milhão de euros, com mil m2.
Posteriormente, vem a verificar-se que, afinal, cada um dos terrenos tem 1500 m2.
Quid Iuris?
Não era possível aplicar o art. 889.º, porque os bens têm preços e características diferentes.
Poder-se-ia ponderar se Diogo queria os terrenos por causa dos m2 e, aí, aplicar-se-ia o art. 887.º, em
que o preço devido é o proporcional à medida real do terreno; ou se era pelo valor a que estes estavam
a ser vendidos, aplicando-se o art. 888.º.
A compensação do art. 889.º não se pode confundir com a que é causa de extinção das
obrigações, apesar de a lógica ser idêntica. Se existir uma pluralidade de coisas, faz-se um acerto de
contas entre o excesso e o defeito e só depois se pondera a aplicação do art. 887.º e do art. 888.º. Os
pressupostos do art 889.º têm de estar preenchidos: venda por um só preço; venda de coisas
determinadas e homogéneas; indicação do preço ou medida de cada uma delas.
Se não funcionar, não se aplica este artigo, visto que os requisitos não estão observados. Por
exemplo, o preceito seria aplicável se se comprasse por 50€ três sacos de batatas e se dissesse que

Ana Maria Varela 16


Casos práticos resolvidos DIREITO DOS CONTRATOS I
Compra e venda

cada saco tem 20kg; mas, mais tarde, se perceber que cada saco tem kg diferentes; poder-se-ia trocar
as batatas de saco.
Não há, ainda, exigência de um preço único: são exigidos preços diferentes. Não estando este
requisito preenchido, não se pode aplicar o art. 889.º. Aplicar-se-ia o art. 888.º e, em termos de
redução do preço, recorria-se ao art. 888.º/ 2 do CC para definir a margem de erro (é um vigésimo).
Para o terreno de 2 milhões é 5%: 0,1 milhão. A margem de erro para o terreno de 1 milhão é 5%:
0,05 milhões.
Há certa doutrina que refere que o regime do art. 889.º afasta o art. 888.º/2, mas PEDRO DE
ALBUQUERQUE não concorda: se estiverem preenchidos os requisitos, aplica-se o art. 889.º; só se
recorre ao art. 888.º/ 2 se ainda existir uma diferença, porque a compensação poderá não ser
suficiente.

Caso 8 - Venda a contento


António, com o intuito de oferecer ao seu filho, compra a Bento um relógio.
Sabendo que o seu filho Martim podia não gostar do relógio, acordou com Bento que o
relógio seria devolvido, caso o filho não gostasse do artigo.
Adicionalmente, as partes acordaram que o pagamento do relógio ou a sua devolução
devia ser realizada até ao fim do dia seguinte.

1. Na semana seguinte, António regressa à loja para devolver o relógio e Bento recusa.
Quid iuris?
Está-se perante uma compra e venda a contento, nos termos do art. 923.º e ss. do CC Estaria
em causa a segunda modalidade (art. 924.º), mas, em casos de dúvida, aplica-se o art. 923.º.
A noção de venda a contento relaciona-se com o grau de agrado do comprador. Esse gosto
não é sindicável; contudo, não é absolutamente discricionário/ arbitrário: o limite é, para casos
excecionais, não se aplicar a resolução se constituir abuso de direito. O objetivo, aqui, era agradar ao
terceiro. Na venda a contento, o critério é subjetivo (enquanto que, na venda sujeita a prova, há um
critério objetivo).
Está patente um contrato preliminar (e não uma proposta - na esfera do declaratário, surge um
direito potestativo a aceitar, mas não há obrigações para o declarante). Aqui, há evidentemente
obrigações. nesse sentido, PEDRO DE ALBUQUERQUE classifica como contrato preliminar, pois só
fica celebrado com a aceitação.
No art. 924.º, há compra e venda com direito de resolver o contrato pelo comprador.
Distingue-se através das regras de interpretação do negócio jurídico.
Concluindo, não podia, pois já se tinha consolidado o prazo: aplica-se o art. 923.º/ 2.

2. Admita que António compra um segundo relógio para a seu pai, ficando acordado que
o mesmo seria devolvido, caso a bracelete não tivesse o tamanho adequado para o pulso do pai.
Quid iuris?
Compra e venda sujeita a prova.
Se o pai de António não gostasse da cor, não poderia resolver o contrato, nem comunicar nos
sentido em que a prova não tinha as características requeridas. Há um critério objetivo (comunicação
da prova), que é judicialmente sindicável.
Relativamente ao prazo aplicável para a prova, recorria-se ao art. 925.º/ 2: não tendo sido
estipulado pelas partes, ia-se ao contrato; não tendo sido nada declarado no contrato, recorria-se aos

Ana Maria Varela 17


Casos práticos resolvidos DIREITO DOS CONTRATOS I
Compra e venda

usos; não havendo usos, era necessário estar preenchido o critério da razoabilidade e o comprador
deveria ter estabelecido um prazo.

Caso 9 - Venda a retro


Catarina tem avultadas dívidas e como tal decidiu vender o seu apartamento a Daniel,
por 200 mil euros, no dia 1 de agosto de 2011. Como pretendia voltar a reaver o imóvel, quando
tivesse maior liquidez financeira, acordou com Daniel que podia resolver o contrato, no prazo
de 10 anos, pelo pagamento de 250 mil euros.
Está patente um caso de venda a retro, utilizando-se os arts. 927.º e ss. do CC.

a) Em 2015, Catarina telefona a Daniel, informando que conseguiu juntar dinheiro


suficiente para reaver a casa, no entanto, Daniel comunica que já vendeu a casa a Belmiro. Quid
iuris?
Poder-se-ia discutir se não estaria aqui presente um mútuo e juros moratórios. A propriedade
sobre o imóvel funcionaria como uma garantia. Na situação de desespero de Catarina, poderia
questionar-se se não estariam aqui patentes juros usurários condritos.
Nesta modalidade de compra e venda, tutela-se o vendedor, o que não é comum (pois, em
princípio, noutras situações, o comprador está numa posição inferior à do vendedor).
Foi estabelecido um prazo de 10 anos e um pagamento para reaver o imóvel. Quanto ao preço,
recorre-se ao art. 928.º do CC e, havendo invalidade que não afeta todo o negócio, há redução ex lege.
Conforme o art. 929.º/ 1 do CC, o prazo seria de 5 anos para resolução do negócio, não implicando a
invalidade de todo o negócio.
Catarina estava dentro do prazo, podendo resolver o contrato (art. 930.º) e pagando ⅕ de 1 000
000€. Catarina pretendia reaver o imóvel, pois já tinha ligação ao mesmo, fazendo sentido que
houvesse outros danos - além de patrimoniais - que fossem ressarcidos.
Há, concluindo, compra e venda com direito de resolução. Assumia-se que Catarina não podia
resolver. Se não existisse registo, não poderia ser oponível a terceiros (art. 932.º) e Catarina poderia
exigir uma indemnização por responsabilidade civil (pois seria oponível inter partes).

b) Imagine que em 2015 o imóvel fica totalmente destruído num incêndio. Sabendo que o
imóvel tinha sido avaliado por 300 mil euros, Catarina pretende resolver o negócio e exigir uma
indemnização ao comprador pelo valor da avaliação.
Está em causa um problema de risco, sendo necessário analisar se se produzem efeitos
retroativos. Essa é a regra, mas alguns autores - ROMANO MARTINEZ - sustentam a aplicação do
art. 796.º/ 3, tratando o problema do risco sem entrar na retroatividade. PEDRO DE
ALBUQUERQUE entende que é retroativa. Neste caso, o vendedor não responde por culpa, pois
houve um incêndio
Trata-se de perda fortuita

Caso 10 - Compra e venda de bens alheios


Nuno e Maria zangaram-se um com o outro, tendo Nuno decidido sair do apartamento
onde morava com a Maria. Por falta de espaço na nova casa, Nuno decidiu vender algumas das
suas coisas que tinha no apartamento, pedindo a Maria se as poderia mostrar a eventuais
interessados.

Ana Maria Varela 18


Casos práticos resolvidos DIREITO DOS CONTRATOS I
Compra e venda

Está em apreço uma perturbação típica da compra e venda: a venda de bens alheios, que vem
regulada no art. 892.º e ss. do Código Civil. Esta, apesar de não definida na lei, traduz-se numa
situação em que alguém aliena uma coisa cuja titularidade pertence a terceiro, como se fosse própria,
e não tendo esse vendedor legitimidade para tal. A posição jurídica do proprietário da coisa não fica
alterada nem atingida. Importa referir que a compra e venda de bens alheios pressupõe sempre que
uma das partes não conheça da titularidade do sujeito em cuja esfera se deveria repercutir o ato de
alienação (ou seja, a quem pertence o bem). A venda de bens alheios é nula, nos termos do art. 892.º
do CC, não podendo esta, contudo, ser oposta ao comprador de boa fé ou ao vendedor de boa fé.
Para estar realmente verificada a venda de bens alheios, têm de se observar certos requisitos:
- a venda de uma coisa alheia como própria, ou seja, transmitem-se bens que não
pertencem ao alienante, tendo, para tal, de existir uma vontade de vender a coisa
como própria;
- a falta de legitimidade para a venda, não dispondo o alienante de poderes para a
prática do ato.
Os seus efeitos são, além da nulidade (art. 892.º), que tem particularidades distintas do regime
geral (relativamente à legitimidade para arguição, ao propósito da obrigação de restituição, e à
possibilidade de convalidação), a indemnização fundada na nulidade do contrato (arts. 898.º e ss.).

Resolva, de forma autónoma das demais, cada uma das seguintes hipóteses:
a) Óscar deslocava-se ao apartamento e fica interessado num armário de Nuno,
pretendendo comprá-lo e levá-lo. Maria, alegando que estava autorizada a “tratar do
assunto”, vende o móvel a Óscar.
Nesta situação, dá-se a entender que Maria conhecia do facto de ser Nuno o titular do direito
de propriedade sobre a coisa - armário -, mas que Óscar não o sabia. Deste modo, está preenchido o
pressuposto necessário que requer que uma das partes não conheça da titularidade do sujeito em cuja
esfera se deveria repercutir o ato de alienação (que seria, aqui, Nuno e não Maria).
Está observado o requisito que exige que a coisa alheia seja vendida como própria,
transmitindo-se bens que não pertencem ao alienante - Maria -, existindo, ainda assim, vontade desta
de vender a coisa como própria.
Pode haver dúvidas no que toca ao preenchimento do requisito da falta de legitimidade de
Maria para a venda, já que se diz que Maria alegou estar autorizada a tratar do assunto, à partida
dispondo de poderes para a prática do ato, tendo sido essa autorização conferida por Nuno. Sucede,
todavia, que Nuno apenas pediu a Maria que mostrasse as suas coisas a eventuais interessados, e não
que as vendesse. Por tal razão, Maria carecia de legitimidade para vender o móvel. A generalidade da
doutrina afirma que este é um pressuposto necessário, pois não haveria compra e venda de bens
alheios se o alienante dispusesse de poderes - legitimidade - para realizar o ato de disposição, como
sucederia com o representante dotado de faculdades representativas.
Ainda se pode questionar, a propósito da legitimidade, se Maria, ao alegar que estava
autorizada por Nuno a vender o armário, faz surgir a aplicação do regime da compra e venda de bens
alheios - pois o alienante declara-se como representante de outrem. Neste sentido, alguns autores
alegam que os arts. 892.º e ss. não se aplicam; PEDRO DE ALBUQUERQUE, contudo, considera que
este regime também abrange as hipóteses em que o vendedor admite não ser titular do bem, mas se
arroga a legitimidade para alienar. ROMANO MARTINEZ ainda acrescenta que se deve recorrer ao
regime da representação sem poderes, disposto no art. 268.º (designadamente no art. 268.º/ 4).
Ou seja, tendo Maria alegado legitimidade para a transmissão do bem, mas não tendo
realmente poderes para isso, a venda seria nula, nos termos do art. 892.º.

Ana Maria Varela 19


Casos práticos resolvidos DIREITO DOS CONTRATOS I
Compra e venda

Aqui tem-se uma coisa de alheia, mas onde o vendedor diz não ter poderes: representação sem
poderes, por isso o negócio é ineficaz relativamente ao comprador.
Ratificando o negócio, não há lugar à aplicação da venda de bem alheio (não se aplicam os
arts. 892.º e ss.). Mas se não se pretende ratificar o negócio: podendo o comprador pedir uma
indemnização, nos termos do art. 898.º - se se estivesse num caso de venda de bem alheio e não num
caso de representação sem poderes. Haveria obrigação de sanar/ convalidar o negócio, nos termos do
art. do art.. 895.º do CC. esta é uma obrigação de resultados (art. 897.º, sendo o vendedor obrigado a
sanar a nulidade da venda). Se não se conseguir convalidar a venda, recorre-se ao art. 900.º do CC.
Pode convalidar-se a indemnização do art. 898.º e a indemnização do art. 900.º.
Aqui, é possível cumular (nos termos gerais não se pode porque estar-se-ia a colocar o lesado
numa situação inferior), pois há uma função punitiva da má fé, visto que o vendedor vendeu algo que
sabe ou deveria saber que não é seu. A esta função de punir acresce uma função de prevenir o
incumprimento, e pretende ressarcir-se os danos do lesado.
Concluindo, passava-se pela representação sem poderes, mas não haveria justificação para
distinguir em termos teleológicos um e outro contrato (num está-se mandatado com poderes para
celebrar o negócio). Se houver ratificação, fica-se por aí, caso não exista, vai tutelar-se o comprador
nos termos definidos pelo regime da venda de bem alheio. Poder-se-ia exigir a convalidação do
contrato, uma indemnização (art. 898.º), há direito à indemnização do art. 900.º e havia direito à
restituição do preço pago.

b) Pedro desloca-se à casa e gostou muito de um quadro. Maria diz a Pedro que aquele
quadro “era seu”, mas que poderia vendê-lo por 100 euros. Este aceita.
Primeiro, deve dizer-se que Maria, ao alegar que o quadro era seu, mas sendo este
propriedade de Nuno incorre numa perturbação da compra e venda, que é a venda de bem alheio: ou
seja, vende como própria uma coisa que a si não pertence, com vontade de a vender como coisa
própria, sem legitimidade para tal (pois Nuno não lhe conferiu os poderes necessários). Ou seja, Maria
conhecia da verdadeira titularidade do bem - Nuno -, ainda que Pedro o desconhecesse (portanto, uma
das partes sabia a quem realmente pertencia o quadro). Estando todos os requisitos observados,
utiliza-se o art. 892.º e a venda é nula.
Sendo a nulidade prevista no art. 892.º, 1.ª parte do CC distinta da nulidade do regime geral
em diversos aspetos, aqui o problema coloca-se ao nível da legitimidade para arguição da nulidade: o
vendedor não pode opor a nulidade ao comprador de boa fé (Maria não pode opor a Nuno); e já que o
vendedor estava de má fé - Maria, pois conhecia do facto de o quadro ser de Nuno e ainda veio referir,
culposamente e com dolo, que era seu - e o comprador de boa fé - Pedro ignora sem culpa a
alienabilidade do bem, crendo que era de Maria -, só o comprador (Pedro) pode arguir a nulidade (art.
892.º, 2.ª parte).
O art. 898.º difere do art. 253.º (em que o conceito de dolo também se refere a negligência
consciente). O art. 898.º é mais abrangente, porque dolo é entendido como má fé em sentido subjetivo
ético: dolo direito eventual ou negligência consciente/ inconsciente.

Quando soube do sucedido, Nuno exige o quadro de volta a Pedro, que, por sua vez, se
recusa. Maria, contudo, diz que não pode fazer nada e se a pretensão de Nuno for a Tribunal, o
mesmo terá de declarar a nulidade do contrato.
Havendo nulidade, a coisa deve ser restituída pelo comprador (Pedro) ao vendedor (Maria),
esteja ele de boa fé ou de má fé. Esta restituição é feita a quem procedeu à entrega e não ao verdadeiro

Ana Maria Varela 20


Casos práticos resolvidos DIREITO DOS CONTRATOS I
Compra e venda

proprietário, a não ser que haja sido intentada ação possessória ou de reivindicação. Então, o vendedor
deve restituir o preço ao comprador, e o comprador tem de devolver a coisa recebida (arts. 289.º/ 1 e
art. 290.º). No que toca à obrigação de restituir o preço, esta varia consoante haja boa fé ou má fé do
obrigado: o art. 894.º/ 1 determina que se o comprador estiver de boa fé, tem o direito a exigir a
restituição do preço na sua totalidade.

Quanto ao facto de Nuno - proprietário - exigir o quadro de volta, deve atender-se a uma
discussão doutrinária que se coloca ao nível da clarificação da situação resultante da venda de um bem
por terceiro, que lhe pertence: deve Nuno servir-se de uma ação de declaração de nulidade do
negócio ou de uma ação declarativa de ineficácia?
- A isto, RAÚL VENTURA, responde com a prioridade da nulidade sobre a ineficácia:
considera que o proprietário tem legitimidade para interpor uma ação declarativa do seu
próprio direito, ainda que o contrato tenha sido celebrado por terceiro.
- Já PEDRO DE ALBUQUERQUE não segue a mesma posição, referindo que o contrato não
deixa de ser ineficaz em relação ao proprietário e que na ação declarativa do seu próprio
direito, o proprietário apenas terá que demonstrar a respetiva titularidade.

No que se refere à resposta do tribunal, ANTUNES VARELA e NUNO PINTO OLIVEIRA


julgam que o juiz tem o poder-dever de corrigir o erro na qualificação jurídica do efeito prático
pretendido e declarar a ineficácia do contrato. E, no que concerne à possibilidade de a nulidade ser
conhecida oficiosamente, há duas posições:
- GALVÃO TELLES, RAÚL VENTURA, PIRES DE LIMA, ANTUNES VARELA, etc.
respondem a favor do conhecimento oficioso, havendo outras posições de idêntica índole a
jurisprudência;
- MENEZES CORDEIRO, ROMANO MARTINEZ, MENEZES LEITÃO, PAULO OLAVO
CUNHA pronunciam-se em sentido oposto e PEDRO DE ALBUQUERQUE prefere esta
posição, argumentando que, de outro modo, estar-se-ia a afastar, por via indireta, as
proibições de invocação da referida nulidade.

c) Quirino desloca-se ao apartamento e compra a Maria, por 500 euros, a televisão que esta
tinha comprado numa promoção no Centro Comercial de Aljubarrota, juntamente com
Nuno, quando ainda estavam apaixonados um pelo outro e a viver juntos.
Em princípio, a não ser que seja possível recorrer ao regime da conversão, o contrato seria
nulo.

d) Maria vende a bicicleta de Nuno a Ruben, tendo dito a este último que Nuno lhe tinha
prometido, por contrato, vender-lha. Posteriormente, contudo, veio a suceder que Nuno
vendeu a referida bicicleta a Sara. Ruben pretende agora que Maria lhe devolva o preço
que pagou pela mesma, assim como uma indemnização que alega ter sofrido.
Maria cumpriu os seus deveres de informação. Nuno incumpriu a sua parte do contrato.
Rúben tinha conhecimento que Maria não era proprietária.
Contrato-promessa (art. 880.º): Maria tem de exercer todas as diligências.
Venda de bens alheios como futuros (art. 893.º). Sara é proprietária. Contrato cumulativo (art.
880.º/ 1): o preço não seria devido neste caso. Poderia exigir a restituição do preço.
Impossibilidade não culposa.
Não há direito de indemnização.

Ana Maria Varela 21


Casos práticos resolvidos DIREITO DOS CONTRATOS I
Compra e venda

e) Maria encontra no escritório o livro “A Teoria da Justiça”, pertencente a Nuno, e


autografado pelo próprio John Rawls. Liga de imediato a Emanuel e promete-lhe
vender a obra por 500 euros. Semanas mais tarde, após várias tentativas de contacto
sem sucesso, Emanuel pretende intentar uma ação em tribunal para receber o livro ou
uma indemnização pelo prejuízo causado.
● MAIORIA DA DOUTRINA: fica afastada a execução específica, porque, como a
obrigação assumida é a de celebrar o contrato definitivo que pressupõe a aquisição do
bem (o promitente-vendedor ainda não é proprietário), o contrato é válido mas não se
aplica a execução específica.
● PEDRO DE ALBUQUERQUE não concorda, porque a obrigação assumida não
respeita a estes casos, mas a outros - em que a vontade é essencial; não se opõe à
execução de um contrato de compra e venda a execução específica (contratos são
válidos e as partes afastarem tácita ou expressamente a execução específica).

Caso 11 - Compra e venda a prestações


Andreia adquiriu a Bernardo uma máquina de lavar louça, tendo sido convencionada a
reserva de propriedade e acordo que o preço devido, no valor de 1000 euros, seria pago em vinte
mensalidades, de 50 euros.
Por último, convencionaram as partes que “em caso de incumprimento de Andreia,
Bernardo tem direito a receber 2000 em alternativa ao preço devido”.

Analise, de forma autónoma das demais, cada uma das seguintes situações:

1. Andreia esquece-se de pagar a primeira mensalidade. Responda fundamentando:

a. Pode Bernardo resolver o negócio?


De acordo com o art. 934.º, a falta de prestação não dá lugar à resolução do contrato. Nesta
hipótese, não atingia ⅛ do preço. A perda de benefício do prazo vem indicada no art. 1871.º do CC.
Não pode Bernardo resolver o negócio, pois não incumpriu duas prestações, nem incumpriu
prestação que chegue a ⅛ do preço. Para o poder fazer, teria de exceder e incumprir as restantes
prestações.

b. E exigir o pagamento de todas as mensalidades por vencer?


É indiferente que tenha existido ou não reserva de propriedade.

Está em causa uma situação de exigibilidade antecipada? Não. O que está em causa não é o
vencimento do prazo: o vendedor pode determinar, não há vencimento automático (entendimento que
tem sido interpretado do art. 781.º).

c. As respostas anteriores poderiam mudar de Bernardo fosse um comerciante?


Há um desvio ao art. 934.º do CC, com regras mais exigentes. Aqui pretende-se uma maior
proteção do consumidor.
Importa analisar o art. 20.º de Decreto-Lei 133/2009 de 2 de junho, que rege os contratos de
crédito-consumo. Este preceito é mais exigente quanto ao somatório, não sendo tão exigente quanto à

Ana Maria Varela 22


Casos práticos resolvidos DIREITO DOS CONTRATOS I
Compra e venda

percentagem (basta 10%, e no art. 934.º exige-se 12,5%). O outro requisito era o de o credor conceder
um prazo de 15 dias.
O preâmbulo do Decreto-Lei 133/2009, de 2 de junho refere que se visa consagrar novas
regras relativas à compra e venda a prestações: art. 934.º e ss. do Código Civil. O Decreto-Lei
aplica-se desde que não se verifique nenhuma das situações previstas no art. 2.º (casos de exclusão da
aplicação deste regime). Só se aplica a créditos onerosos e não a créditos gratuitos. Há obrigações de
informação reforçadas no âmbito do Direito do Consumo, porque se entende que o consumidor tem de
estar informado para decidir de forma consciente e racional. Certas informações devem ser prestadas
por escrito, havendo direito à livre resolução do contrato e o consumidor pode cumprir o contrato
antecipadamente.

2. Andreia pagou a primeira mensalidade, apesar de tardiamente, e depois voltou a


esquecer-se de pagar a segunda mensalidade.
O incumprimento de duas prestações sucessivas implica o incumprimento grave. O que se tem
aqui não é isso: o comprador falhou à prestação de janeiro e depois falhou novamente à prestação de
fevereiro. Não há falta simultânea ao cumprimento de duas prestações. Não sendo assim, e não
excedendo ⅛ do preço, não pode ser resolvido o contrato.

3. Andreia não pagou a terceira mensalidade, nem a seguinte.


O facto de se faltar a duas prestações consecutivas diminui logo a confiança perante o
vendedor: pode resolver o contrato. Se se está perante falta consecutiva a prestações, há
incumprimento grave e é possível converter a mora em situação de incumprimento definitivo.

Imagine-se que o comprador falha as prestações de janeiro e de fevereiro, e no dia a seguir


(01/03), o vendedor envia carta a resolver o contrato. Pode? Não, pois pretende beneficiar o devedor,
por isso, terá de conceder um prazo razoável ou interpelar o devedor. O art. 934.º estabelece apenas
limites.

4. Andreia falhou no pagamento de três mensalidades, Bernardo aceita o pagamento


tardio das três mensalidades, mas vem posteriormente a querer resolver o negócio.
Aqui sucede que A e B afastaram o regime do art. 934.º, o que implica saber se o mesmo tem
natureza supletiva ou natureza imperativa. PEDRO DE ALBUQUERQUE entende que tem natureza
imperativa, por isso à partida as partes não teriam força suficiente para afastar este regime.
A expressão ‘’sem embargo’’ pode ser interpretada de duas formas: como uma norma
dispositiva ou ‘’não obstante convenção em contrário’’ sendo imperativo. PEDRO DE
ALBUQUERQUE defende que o regime do art. 934.º é para tutela do comprador, e não ficaria o
comprador tutelado se a norma fosse dispositiva porque existe algum desequilíbrio entre o vendedor e
o comprador; e se se pretende estabelecer limites à resolução e à perda de benefício do prazo, a
aplicabilidade do art. 934.º é muito reduzida.
Por isso, a doutrina maioritária tem defendido que se está perante norma imperativa mas com
alguns cuidados, pois não é uma imperatividade absoluta1. Pode afastar-se o regime do art. 934.º em

1
A imperatividade absoluta é aquela em que a lei determina que deve ser de certa maneira, não se podendo
afastar a norma. A imperatividade mínima é aquele em que se pode decidir em sentido ascendente - para cima
(por exemplo, salário mínimo). A imperatividade máxima é aquela em que podem ser definidos valores até certo
montante, não passando dessa barreia (caso dos juros usurários).

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Casos práticos resolvidos DIREITO DOS CONTRATOS I
Compra e venda

favor do comprador, mas nunca em favor do vendedor. Por isso, nesta hipótese, a ideia de Bernardo
não seria coerente.

5. Suponha que tinham sido acordadas, ao invés de vinte mensalidades, apenas cinco.
Resolva autonomamente cada uma das seguintes sub-hipóteses, mencionado os direitos de
Bernardo:
a. Andreia falta no pagamento de uma das mensalidades.
À luz do art. 934.º, era possível resolução do contrato. O que diferencia é o facto de a
prestação em falta exceder ⅛ do preço.

b. Andreia falta ao pagamento de primeira mensalidade, mas ainda não tinha


havido a entrega da máquina de lavar a louça.
Aqui, não é possível resolver o contrato: é preciso entrega ao comprador o bem, e, no caso,
não foi entregue a máquina.

Era possível determinar o vencimento das prestações?


PEDRO DE ALBUQUERQUE utiliza um argumento para referir que não é necessária
entrega: desproteger o comprador que ainda não tem a coisa. Uma situação de incumprimento por
parte do comprador que já tem a coisa é mais grave do que perante o que não a tem. Não faz sentido,
então, que não seja também tutelado o comprador que não tenha a coisa consigo. PEDRO DE
ALBUQUERQUE entende o art. 934.º como sendo, na primeira parte necessária entrega - paralelo
com o art. 866. º -, mas, quanto à 2.ª parte, é indiferente que tenha existido ou não entrega.
Haja ou não reserva de propriedade/ haja ou não entrega da coisa.

c. Andreia falta ao pagamento da primeira mensalidade, mas não tinha havido


reserva de propriedade, nem entrega do eletrodoméstico.
Coloca-se um problema, o da reserva. Aplica-se, por conseguinte, o art. 934.º, 1.ª parte,
PEDRO DE ALBUQUERQUE sustenta que a resolução tem os limites da 1.ª parte,
independentemente de a venda ter ou não reserva, pois não faz sentido conceder uma proteção
superior ao comprador na venda a prestações com reserva face ao comprador na venda a prestações
sem reserva.
Pode resolver, mas só se exceder a uma prestação ⅛ ou duas prestações sucessivas. Se foi
vendida coisa a prestações sem reserva, vigora o art. 886.º - em princípio, tendo sido entregue a coisa
e tendo sido transmitida a propriedade, não se pode resolver. as partes podem afastar; mas o art. 934.º
não
Não faz sentido que quem tem mais direito tenha tutela inferior do que quem tem menos.

6. Pronuncie-se sobre a admissibilidade da cláusula final inserida no contrato entre


Andreia e Bernardo.
Este é um cenário de admissibilidade de cláusula penal (art. 935.º).
Para tal, têm de estar verificados os requisitos. O objetivo da cláusula penal é o de que, face à
situação de incumprimento ou de mora, as partes estabeleçam um valor à cabeça, porque caso
contrário teriam que provar os danos, o que é uma chatice exigindo muitas diligências.
Era de se abordar a divergência existente na doutrina relativa ao interesse contratual positivo;
tal como a natureza da cláusula penal.

Ana Maria Varela 24


Casos práticos resolvidos DIREITO DOS CONTRATOS I
Compra e venda

Em caso de incumprimento de Andreia, Bernardo tem direito a receber 2000, em alternativa


ao preço devido. Não faz sentido para as cláusulas penais indemnizatórias ou compensatórias -
definem indemnização em caso de incumprimento definitivo - e para as situações de cláusulas penais
stricto sensu: aplicam-se os limites gerais do art. 812.º/ 1.

Caso 12 - venda de bens onerados


(retirado do livro de casos do Senhor Professor Tiago Soares da Fonseca)
Fernando comprou o apartamento a Joaquim, sito no último andar do edifício Tridente,
em Lisboa, por 650.000 euros.
Quando Fernando entra na sua casa, depara-se com Luís dentro da mesma, em roupão
de banho, que começa aos gritos, exibindo um contrato de arrendamento na mão válido por
mais dois anos, a exigir a imediata saída de Fernando.
Fernando pretende que Joaquim lhe devolva 760.000 euros.
1. 650.000 euros correspondentes ao preço pago pela compra da casa;
2. 50.000 euros por despesas os advogados, a escritura e os impostos pagos para comprar
a casa;
3. Os restantes 60.000 euros por lucros cessantes, uma vez que tinha um comprador para
casa por 710.000 euros.
Está em causa uma situação de compra e venda de bens onerados. Esta designa a venda nos
termos da qual o direito está sujeito a um ónus ou limitação que excede os limites normais a direitos
da mesma categoria. Nessa situação o direito transmitido (no caso, direito de propriedade) tem um
ónus (a locação) que excede os limites normais dos direitos da mesma categoria (propriedade sobre
bens móveis - telemóvel).
Pode haver a hipótese de existir um limite ao direito transmitido que não excede os limites
normais do direito da mesma categoria, mas nesse caso não estará perante uma compra e venda de
bens onerados. Quando muito, estar-se-ia perante uma venda de coisa defeituosa, se o comprador tiver
assegurado ao vendedor uma qualidade do direito transmitido que o mesmo não tinha,
Nos termos legais, a venda de bens onerados é anulável - com fundamento em erro ou dolo.
Contudo, se, antes do pedido de anulação do contrato, desaparecerem os ónus ou limitações que
oneravam a coisa, sem que tenha sido causado prejuízo ao comprador, fica sanada a anulabilidade.
O vendedor de bem onerado é obrigado a sanar a anulabilidade do contrato, mediante a
expurgação do ónus ou limitação existente, sob pena de incorrer em responsabilidade por não o ter
feito. Adicionalmente, o comprador de boa-fé tem direito a ser indemnizado pelo vendedor, variando
o valor da indemnização consoante haja dolo ou simples erro. Se as circunstâncias do negócio
mostrarem que, sem erro ou dolo, o comprador teria igualmente comprado o bem, mas por preço
inferior, apenas terá direito a redução do preço, em harmonia com a desvalorização resultante dos
ónus ou limitações, além da indemnização que, ao caso competir O regime da venda de bens
onerados consta dos arts. 905.º e ss do Código Civil.
Divergência na doutrina relativa ao regime do erro vs. regime do incumprimento
(representação da realidade e má execução do contrato). PEDRO DE ALBUQUERQUE segue a
segunda orientação, dizendo que não é de aplicar os requisitos da essencialidade e da
cognoscibilidade, porque o regime do erro é difícil de fazer prova. Difere dizer que se vende carteira
branca por 100€, querendo dizer ‘carteira preta’ - há falsa representação da realidade; outra coisa é
dizer que se vende carteira branca, e vender uma carteira preta.

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Casos práticos resolvidos DIREITO DOS CONTRATOS I
Compra e venda

Contrapor a venda de coisa defeituosa (vício ou falta de qualidade ao nível material) à venda
de bens onerados (está-se perante uma limitação jurídica). Estando perante limitação de direito, há
venda de bens onerados; se houver limitação material, há venda de coisa defeituosa. MENEZES
CORDEIRO apresenta situações paradigmáticas: direitos reais de gozo, usufruto, servidões, direitos
pessoais de gozo (caso qeu aqui se verifica, porque há um arrendamento), direitos reais de garantia,
penhora ou hipoteca (não se inserindo a situação de reserva de propriedade, porque se é vendida da
coisa aplica-se o regime da venda de bem alheio, porque nem o comprador nem o vendedor têm o
direito de dispor da coisa), medidas processuais de natureza real.
Os direitos do comprador são: ‘’anulação’’/ resolução; indemnização por dolo (má fé em
sentido ético, em que alguém age sabendo ou tendo o dever de saber que está a lesar interesses ou
direitos de outrem); indemnização por não convalidação da venda; e redução do preço. ≠ Diferenças
relativamente ao regime da venda de bens alheios, nos remédios do comprador: no art. 908.º, só se
refere interesse contratual negativo, e ainda que a sua letra defira da do art. 998.º, eles devem ser lidos
de forma paralela (PEDRO DE ALBUQUERQUE: se há má fé ética do vendedor, não há razão para o
privilegiar face à situação de venda de bem alheio, porque não se tutela o comprador de igual forma)

Foi celebrado um contrato de compra e venda entre Fernando e Joaquim, nos termos do art,
874.º, transmitindo-se o direito de propriedade sobre o apartamento, nos termos do art. 879.º, a) do
CC. Como enuncia o art. 875.º, estando em causa um bem imóvel (apartamento), o contrato só é
válido se tiver sido celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado.
1. Recorre-se ao regime da compra e venda de bens onerados, e nomeadamente ao art.
905.º do CC, para explicar que, se o direito transmitido estiver sujeito a limitações
que excedam os limites normais aos direitos da mesma categoria (direito de
propriedade), o contrato é anulável. Nesta hipótese, sê-lo ia por dolo, desde que
estivessem verificados os requisitos legais de anulabilidade (de acordo com PIRES
DE LIMA e ANTUNES VARELA, são aplicáveis as disposições dos arts. 251.º e
254.º do CC, designadamente no que se refere à essencialidade do erro e à sua
cognoscibilidade para o declaratário).
GALVÃO TELLES, contudo, afirma que a melhor solução é a recondução à doutrina geral do
erro e do dolo, e o comprador pode pedir a anulação do contrato se estiverem observados os requisitos
necessários.
Aqui, a anulação do contrato só se justifica se o comprador, ao celebrá-lo, não estava
convenientemente esclarecido, sendo indispensável o erro do comprador na forma simples ou
qualificada por dolo. Em suma, nos termos dos arts. 253.º e 254.º, o contrato seria anulável. Nos
termos do art. 289.º, há efeito retroativo, devendo ser restituído a F tudo o que ele tiver prestado: ou
seja, tem o direito a ser-lhe devolvidos os 650 000€ que pagou pela compra do apartamento.
2. Recorre-se ao art. 878.º, para comprovar que as despesas do contrato e outras
despesas acessórias ficam a cargo do comprador (Fernando), pelo que os 50 000€ de
despesas não lhe são ressarcíveis.
3. De acordo com o art. 908.º, agindo com dolo, o vendedor - vendo o contrato anulado -
deveria indemnizar o comprador do prejuízo que este não sofreria se a compra e
venda não tivesse sido celebrada. A determinação do prejuízo sofrida é feita segundo
os arts. 562.º e ss., quer pelos danos emergentes, quer pelos lucros cessantes.
Segundo PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, o que está em causa é o interesse
contratual negativo: isto é, o prejuízo que o comprador não teria se a compra não tivesse sido

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Casos práticos resolvidos DIREITO DOS CONTRATOS I
Compra e venda

realizada (e não o interesse contratual positivo: o lucro que teria obtido se, não tendo o direito
limitações, a compra fosse válida desde o início).
Mas VAZ SERRA refere que o vendedor tem de indemnizar pelo interesse contratual positivo
sempre que este seja superior ao interesse contratual negativo. Por sua vez, PIRES DE LIMA e
ANTUNES VARELA defendem que isso é contrário ao espírito e ao texto da lei, porque tendo em
conta que o comprador pode escolher entre a anulabilidade e a validade do contrato, optando pela
primeira, não faria sentido que viesse pedir juntamente o lucro que o contrato lhe poderia ter
proporcionado se fosse válido; por isso, é contabilizada apenas a restituição do preço, as despesas
feitas com o contrato e com a coisa comprada, as despesas para a ação anulatória e o lucro que ele
deixou de obter numa operação negocial pelo facto de ter de aplicar na compra e venda anulada a
verba correspondente ao preço.
Tem de se verificar se a obrigação de convalidação foi ou não cumprida.
A lei admite que, em certos casos, o negócio possa subsistir, havendo apenas lugar à
devolução do preço. Se o vendedor demonstrar que, se o comprador soubesse do ónus celebrava-se na
mesma o negócio, então o erro não era essencial. Em nome do aproveitamento do negócio jurídico,
reduz-se a contraprestação.
A aplicação do art. 910.º implica que o prazo tenha sido fixado pelo tribunal e não seja
cumprido, ou que tenha o vendedor constituído em mora e não tenha cumprido (incumprimento
definitivo do prazo concedido pelo devedor)..

Caso 13 - venda de coisa defeituosa


(retirado do livro de casos do Senhor Professor Tiago Soares da Fonseca)
Ana, através de uma plataforma de venda de produtos particulares usados on-line,
vendeu a Bernardo, por 300 euros, o seu telemóvel, metade do que custa novo.
Cinco meses e uma semana depois do negócio, por transvio dos correios, Bernardo lá
recebeu o aparelho em sua casa e verificou que o mesmo não liga. Após ter colocado o aparelho
a carregar, Bernardo constatou que, apesar de ligar e ter acesso à internet, o telemóvel não
permitia fazer, nem tão-pouco, receber chamadas.
Quatro semanas depois, na sequência de deslocação a uma loja de marca, as suspeitas de
Bernardo confirmaram-se: o processador do aparelho estava avariado e tinha de ser substituído
por um novo, no valor de 300 euros.
Este caso espelha uma situação de compra e venda de coisa defeituosa, cujo regime é tutelado
nos arts. 913.º e ss. do CC. Expressa situações em que a coisa vendida sofre um vício que a
desvaloriza ou que a impede de ser utilizada para determinado fim; ou que, tendo o vendedor
assegurado determinadas qualidades necessárias para a realização do fim a que se destina, as mesmas
não são observáveis. Este regime apenas se aplica quando o defeito da coisa seja essencial.
Nestas hipóteses, o comprador tem o direito de exigir do vendedor a reparação da coisa ou a
sua substituição, se for necessário e se for possível, pela sua natureza, tal substituição (art. 914.º do
CC). Esta obrigação que recai sobre o vendedor - de reparar ou substituir a coisa com defeito - não
existe se, sem culpa sua, não conhecia desse defeito. Nesse cenário, o comprador tem, contudo, o
direito a ser indemnizado, nos termos do art. 915.º do CC.
Há vários cenários para a venda de coisa defeituosa:
- o vício é um minus em relação ao normal (vende-se relógio com risco no mostruário
que não permite ver as horas, o que o afasta dos relógios normais e pode implicar a
desvalorização da coisa);

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Casos práticos resolvidos DIREITO DOS CONTRATOS I
Compra e venda

- a falta de qualidade acontece quando o vendedor assegura a qualidade e não vem (é


dito que o relógio é especial, porque permite indicar as fases da lua, mas na verdade
não pode); a qualidade traduz um plus em relação à normalidade, que, no caso
concreto, era devido (vem a verificar-se que não tem).
Neste cenário, há um vício, porque qualquer telemóvel permite fazer chamadas.

A) Bernardo escreveu a Ana a pedir-lhe o pagamento de 300 euros pelo arranjo do


aparelho. Esta, porém, recusa-se, alegando que já passou tempo demais, que hoje em dia os
telemóveis só servem para navegar na Internet, que Bernardo poderia fazer chamadas pelo
Whatsapp e, por fim, que nem sequer sabia que o processador do telemóvel estava avariado,
uma vez que já não lhe dava uso há mais de dois anos.
Se não existir culpa do vendedor, não há um dever de reparar a coisa: neste caso,
desconhecendo o vício, não há má fé ética (conhecer ou dever conhecer o vício).
Esta alínea relaciona-se com os remédios que o comprador possui - art. 914.º - e com a
obrigação que tem o vendedor de reparar ou substituir a coisa; ou não, no caso de ele desconhecer sem
culpa a falta da qualidade de que a coisa padecia.
- PEDRO DE ALBUQUERQUE sustenta que deve ser afastada apenas a obrigação de
substituição, pois é uma solução que decorre da interpretação literal do art. 914.º, mas
também no plano da intencionalidade problemática do preceito (refere ‘’esta’’ e não
‘’esta e aquela’’ obrigação); acresce o art. 909.º, que afasta a obrigação de
indemnização a cargo do vendedor, se este desconhecer sem culpa o vício ou a falta
de qualidade da coisa, o que significaria que - se se levasse a interpretação do art.
914.º ao extremo -, não haveria nenhuma responsabilidade a cargo do vendedor se ele
tivesse agido sem culpa; portanto, conseguiria repercutir na esfera jurídica do
comprador praticamente a totalidade do risco de defeito da coisa com exceção da
responsabilidade que existira por não cumprimento da obrigação de convalidação.
Quando é que existe direito à substituição da coisa? Há relação de subsidiariedade entre
reparação e substituição: quando não houver possibilidade de a coisa ser reparada, ter a coisa natureza
fungível, e houver má fé. Por isso, PEDRO DE ALBUQUERQUE diz que a lei refere que a reparação
existe independentemente de culpa. Além disso, há uma presunção de culpa, nos termos do art. 799.º -
aqui, vigora a presunção de cupa e, mesmo não vigorando, parece incontestável que se deve saber se
as funcionalidades do bem que se vende estão asseguradas ou não (o vendedor estaria numa situação
de negligência ou de dolo eventual).
À alegação de Ana, quanto a já ter passado tempo de mais, aplica-se o disposto no art. 916.º/
2, que exige que a denúncia seja feita até 30 dias depois de conhecido o defeito e dentro de 6 meses
após ter sido entregue o telemóvel.
Quanto ao facto de referir que Bernardo pode utilizar o aparelho para ir ao WhatsApp ou
navegar na internet, recorre-se ao art. 913.º/ 2, que se reporta ao fim da coisa vendida: sendo um
telemóvel, certamente servirá para telecomunicações e a falha dessa funcionalidade é grave e retira o
propósito do seu uso. Não seria expectável que o comprador admitisse que pudesse haver um vício:
PEDRO ALBUQUERQUE sustenta que se deve atender ao comportamento negocial das partes,
nomeadamente ao preço convencionado.

Direitos do comprador:
- ‘’anulação’’/ resolução (art. 913.º - art. 905.º); o vício tem de ser grave (art. 802.º/ 2);
- reparação/ substituição (art. 914.º);

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Compra e venda

- redução do preço (art. 911.º), principalmente se o vício não for grave;


- indemnização por dolo (art. 908.º - art. 913.º);
- não há lugar a responsabilidade objetiva;
- indemnização por não reparação/ substituição.

B) Bernardo, em alternativa ao pedido anterior, opta pela anulação do negócio,


juntamente com uma pretensão indemnizatória.
Pode? Se sim, com que fundamento e até quando?
É de se aplicar o constante do art. 905.º: A deve indemnizar B, nos termos do art. 908.º - agiu
com dolo -, por remissão do art. 913.º/ 1; isto, em virtude da presunção de culpa que decorre do art.
799.º/ 1 do CC. Mais se adiante que, neste caso, até se tem má fé subjetiva ética do vendedor, pelo que
B teria uma indemnização pelo interesse contratual:
- negativo, se se seguir a orientação de MENEZES LEITÃO, CALVÃO DA SILVA,
CARNEIRO DA FRADA, SANTOS JUSTO e NUNO PINTO OLIVEIRA; sempre
que o vendedor tiver atuado com dolo (no sentido referido no art. 253.º), abrangendo
os casos de negligência consciente; deve indemnizar-se o comprador no que concerne
ao prejuízo que este não sofreria se a compra e venda não tivesse sido celebrada
(solução típica da culpa in contrahendo - art. 227.º);
- positivo, se se optar pelo entendimento de MENEZES CORDEIRO, VAZ SERRA e
PEDRO DE ALBUQUERQUE, porque onde se diz ‘’não tivesse sido celebrada’’,
deve ler-se ‘’não tivesse havido oneração/ defeito’’, a fim de se garantir uma maior
proteção ao comprador.
Para não se aplicar o art. 908.º, teria o vendedor de ilidir a presunção de culpa constante do
art. 799.º do CC.

Prazos: aplicar o art. 287.º do regime do dolo, na falta de melhor solução. PEDRO DE
ALBUQUERQUE refere que nos termos dos arts. 916.º e 917.º (para situações de vendedor de boa
fé), seria possível um prazo mais longo no caso de venda de bens imóveis; nos termos do art. 287.º, o
prazo de 1 ano começa a contar do conhecimento do vício. O autor diz que há um problema porque
em matéria de prazos é difícil a aplicação analógica (pretende-se uma certeza jurídica). Havendo má
fé do vendedor, aplica-se o art. 287.º do CC. O regime dos arts. 287.º, 916.º e 917.º não se aplica a
todos os direitos: aplica-se à ‘’anulação’’/ resolução.

Caso 14 - Compra e venda de bens de consumo


Em 2022, Célio, estudante de desenho, compra na loja, Equipamentos Inteligentes S.A.,
por mil euros um tablet que incluía uma caneta stylus, dispositivo que permitia desenhar e tirar
notas das aulas.
Em 2023, o ecrã do tablet deixa de reconhecer a caneta digital. Consequentemente, Célio
dirige-se à loja exigindo a imediata devolução do preço pago. A loja propõe a reparação do
equipamento, o que é prontamente recusado por Célio, que afirma ir queixar-se junto da ASAE.
Aqui, não se aplica o regime dos arts. 913.º e ss. do Código Civil, visto que existe um regime
especial, o Decreto-Lei n.º 84/ 2021 [art. 3.º/ 1, c)], que regula a compra e venda de bens de consumo.
Este diploma só se aplica ao caso, visto que a data dos acontecimentos é de 2022 em diante.
É importante fazer referência ao art. 53.º do Decreto-Lei, relativamente ao âmbito temporal,
que refere que o diploma se aplica aos contratos celebrados após a entrada em vigor do mesmo (art.

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Casos práticos resolvidos DIREITO DOS CONTRATOS I
Compra e venda

55.º). O âmbito objetivo reporta-se ao objeto, que é uma compra e venda (art. 3.º em conjugação com
o art. 2.º). O âmbito subjetivo é o facto de ter de haver um consumidor (que não se dedica a uma
atividade profissional para a aquisição daquele produto com cariz essencial, como se vê no art. 49.º) e
um vendedor que se dedique profissionalmente à venda de produtos (é o que distingue do regime
cível).
Sendo relevante definir ‘’consumidor’’ (entendendo-se que, nesta hipótese, seria Célio):
- a generalidade da doutrina e da jurisprudência entende que o consumidor tem necessariamente
de ser uma pessoa física (pois, se a compra for feita por uma pessoa coletiva, não há uma
relação de consumo);
- MENEZES CORDEIRO e PEDRO DE ALBUQUERQUE entendem o contrário, porquanto o
que está por detrás do diploma não é a tutela da forma jurídica do consumidor; além disso, por
detrás de uma pessoa coletiva estão pessoas singulares.

Este Decreto-Lei regula a compra e venda de bens de consumo, nos termos do art. 1.º/ 1, a),
estabelecendo um regime de proteção aos consumidores nos contratos de fornecimento e nos contratos
de conteúdos ou serviços digitais.
No caso em apreço, era vendido um tablet, com uma caneta incorporada. A caneta deixa de
ser reconhecida. Não estão em causa serviços digitais, porque o deixou de funcionar foi o ecrã do
tablet.
De acordo com o princípio da conformidade do bem, constante do art. 5.º do Decreto-Lei,
devem ser respeitados os requisitos constantes dos arts. 6.º a 9.º. Este diploma define requisitos de
conformidade do bem nos 27.º a 31.º para a compra e venda de conteúdos ou serviços digitais:
requisitos objetivos no art. 27.º e requisitos subjetivos no art. 28.º. Em qualquer das situações, é o
profissional que se responsabiliza pela instalação incorreta. Qual tal seja violado e exista, portanto,
falta de conformidade - instalação incorreta por parte do consumidor ou por parte do profissional -, o
bem tem-se como desconforme, ao abrigo do disposto no art. 10.º
A entrega do bem ao consumidor consta do art. 11.º do Decreto-Lei: o vendedor tem o dever
de entregar o bem consoante a conformidade do contrato. Enquanto que o diploma anterior quanto aos
direitos do consumir não estabelecia nenhuma hierarquia quanto aos direitos do consumidor (embora
houvesse doutrina que o considerasse), adora é claro que existe uma hierarquia, não podendo logo
partir-se para a resolução (art. 15.º). Segundo o art. 16.º - direito de rejeição -, há uma hierarquia, mas
o legislador pondera o facto de, se o defeito se verificar logo após o contrato (no prazo de 30 dias após
a entrega), o consumidor poderá logo exigir a resolução e devolução do preço. Nos restantes casos,
deve verificar-se o disposto no art. 15.º/ 4.
Entregue o bem, existe uma garantia: o vendedor deve entregar o bem em conformidade com
o contrato, conformidade essa que é verificada no momento da entrega. Cabe ao vendedor afastar a
presunção. Assim, segundo o art. 12.º/ 1 é o profissional o responsável por qualquer falta de
conformidade que se manifeste num prazo de 3 anos a contar da entrega do bem. Atualmente, o
período para a manifestação do defeito é de 3 anos, mas essa presunção é de 2 anos. O ponto fulcral é
o ónus da prova: é verdade que passado 2 anos o consumidor pode provar que o defeito já existia no
momento da entrega, mas é muito difícil, Estes direitos estão referidos no art. 15.º; relativamente aos
prazos dispõem os arts. 12º (prazos de 3 anos, sendo o profissional responsável) e 13.º (só se presume
existentes defeitos que se manifestam nos primeiros 2 anos). Quanto aos bens usados, dispõe o art.
13.º/ 3 que o prazo pode ser reduzido até 18 meses por acordo (art. 12.º/ 3), mas só há inversão da
prova a favor do consumidor no prazo de 1 ano.

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Compra e venda

Por isso, Célio não poderia resolver o contrato: este é o último direito do consumidor.
Primeiro teria de passar por outros direitos, porque existe uma hierarquia. Não se verifica nos
primeiros 30 dias, por isso não pode haver rejeição. Quem tinha razão era a loja.

Caso 15
(retirado do livro de casos do Senhor Professor Tiago Soares da Fonseca)
Sara é uma ilustre advogada da nossa praça, com escritório em Lisboa.
Tendo perdido uma ação de Direito da Família, de uns largos milhares de euros, Sara
envia a referida sentença a Telmo Sabe de Família, professor de Direito. Analisada a referida
Sentença, Telmo Sabe de Família foi da opinião de que a mesma padecia de diversos erros de
Direito, justificando-se a interposição de recurso. Sara, depois de consultar o seu cliente, decidiu
contratar um parecer de Telmo.
Porém, atrapalhado com as aulas de faculdade, consultas jurídicas, mestrados e família
(a sua!), Telmo fez o dito parecer apressadamente, inclusivamente não atendendo aos factos
provados na sentença, extremamente relevantes para fundamentar a ilegalidade do aresto.
Sara, tendo recebido o parecer no último dia do prazo, limitou-se a junta-lo às suas
alegações de recurso, só se apercebendo das falhas do mesmo dois meses mais tarde, quando foi
notificada do acórdão da Relação de Lisboa e dos comentários no mesmo parecer.
Confrontada com um pedido de Telmo do pagamento de honorários, no valor de 10.000
euros, Sara marca uma reunião com os demais sócios da sociedade para decidir o que fazer.
Quid iuris?
Está em causa saber se está em apreço um contrato de empreitada, nos termos do art. 1207.º e
ss. do CC. Têm de estar presentes os elementos da realização da obra e do pagamento do preço (não
há empreitadas gratuitas). Não havendo preço, seria um contrato de prestação de serviços: a
empreitada é uma modalidade de uma prestação de serviços (art. 1155.º do CC) - atípica.
Um normal jurista, chamado a pronunciar-se sobre determinada decisão, teria de atender aos
factos provados, o que não fez. Seria possível aplicar o regime dos direitos e responsabilidade.

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