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POR GABRIEL AGUIAR, VICTOR

MARQUES E LIANA QUEIROZ PINTURA CHICO RIBEIRO

Transição
ao futuro
A luta para salvar o planeta é uma luta da
classe trabalhadora. Por isso precisamos construir
uma proposta de ambientalismo popular.

¶ A crise climática já está aqui. Nosso fracasso em


enfrentá-la escancara a fragilidade da sociedade
que construímos. Nosso modelo de desenvolvi-
mento, de produção de alimentos e de energia,
nossas formas de deslocamento e, sobretudo, nos-
sa estratificação social, que concentra no topo as
decisões sobre tudo isso, são a causa profunda de
um problema desastroso, que estamos obrigados
a enfrentar imediatamente.
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POR GABRIEL AGUIAR, VICTOR TRANSIÇÃO AO FUTURO
MARQUES E LIANA QUEIROZ
Sabemos que o ser
humano é uma criatura
natural: fazemos parte
da natureza e estamos
A atmosfera terrestre atinge hoje a maior concentra- ramentas para colocar em prática um ousado plano pode ameaçar as próprias condições ecológicas que
ção de carbono dos últimos 800 mil anos. O resultado social-ecológico que enfrente simultaneamente a fome, dentro dela. O animal tornam viável a civilização humana no longo pra-
direto é a elevação de 1,09°C na temperatura média da o desemprego e a catástrofe ambiental. Tanto mais humano não pode existir zo. Lamentavelmente, as relações capitalistas são do
Terra em comparação com o período pré-industrial. trágico então que, nos últimos anos, sob a tragédia segundo tipo.
O alerta se acende para que façamos o que estiver ao bolsonarista, estejamos andando para atrás, de costas sem uma constante e No capitalismo, o que regula o metabolismo da socie-
nosso alcance para impedir o ponto crítico de 1,5°C. para o futuro. O maior desafio da esquerda global no adequada relação dade humana com o resto da natureza é o lucro, o
Passar daí implicará um cenário dramático de secas século XXI é articular a questão social com a ambiental. impulso de acumulação ampliada que, cego em relação
severas, colapso agrícola, extinção massiva de espécies, O Brasil pode mostrar o caminho. metabólica com o resto aos seus próprios custos ecológicos, desorganiza os
supertempestades, incêndios infernais, ondas de calor da natureza. Estamos grandes ciclos biogeoquímicos da biosfera. Essas “fis-
letais e cidades inteiras engolidas pela elevação do suras metabólicas”, como as chama o sociólogo Bellamy
nível do mar. As projeções do sexto relatório do Painel O CAPITALISMO É O PROBLEMA, A CLASSE emaranhados em uma Foster, estressam os “limites planetários”, ameaçando
Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), o TRABALHADORA É A SOLUÇÃO rede de interdependência a estabilidade do sistema Terra e colocando em risco
que há de mais confiável em informação científica, as próprias condições materiais das quais dependem a
indicam que, se não tomarmos medidas contundentes Sob condições capitalistas, a interação entre sociedade não apenas com os reprodução da sociedade humana: o acúmulo de poluen-
agora, em apenas 20 anos chegaremos nesse ponto humana e o resto da natureza é regulada cegamente outros membros da tes nas águas e no ar, a acidificação dos oceanos, a
catastrófico de não retorno. pelas leis econômicas da acumulação. Esse metabolismo desorganização do ciclo bioquímico do nitrogênio e do
O Brasil é um país que foge da regra das termelétri- se dá de forma não consciente, escapa à ação humana nossa espécie, mas enxofre (causada fundamentalmente pela agricultura
cas como a principal fonte poluidora. Aqui, a maior coletiva racional e é subordinado ao impulso do capital com milhões de outras industrial), as transformações drásticas no uso da água
causa de emissões de gases estufa é o desmatamento. à reprodução expandida e descontrolada. Mesmo os doce e da terra, a destruição acelerada de habitats e o
Tragicamente, o cenário de devastação dos biomas economistas mais apologéticos não podem deixar de espécies com as processo, em curso, de extinção em massa, com elimi-
se agrava a cada ano. Segundo o último relatório do reconhecer que a mão invisível (e inconsciente) do quais compartilhamos nação irreversível de biodiversidade. A perturbação
Mapbiomas, a devastação cresceu 14% no país em 2020. mercado produz não apenas coordenação, mas também mais emergencial nesses limites planetários é a que
Praticamente todo o desmatamento registrado foi ile- externalidades negativas e subinvestimento em bens o planeta. Não há envolve o ciclo do carbono, causada pela queima massi-
gal. Todos os biomas sofreram alta de desmatamento públicos. Não se trata de uma mera falha acidental, de separação dualista entre va de combustíveis fósseis para alimentar a economia
em comparação a 2019. O avanço criminoso sobre as fácil correção: o foco da empresa capitalista é aumentar capitalista global, resultando em aquecimento médio
florestas constitui também um cenário de violência o lucro, não satisfazer necessidades humanas. Deixada o social e o natural. da temperatura na Terra e outras mudanças climáticas
contra os povos indígenas, quilombolas e comunidades à sua própria natureza, fatalmente buscará empurrar potencialmente catastróficas.
tradicionais que habitam esses territórios. Na contra- os custos para o restante da sociedade, explorar pre- No capitalismo, o efeito agregado da ação humana
mão do mundo, que reduziu 7% das emissões de gases datoriamente recursos não precificados e deixar de no planeta é irracionalmente destrutivo e predatório.
em 2020, o Brasil aumentou 9,5%, essencialmente por produzir (ou mesmo destruir) aqueles valores de uso Quem paga a conta são as outras espécies, mas também
conta do desmatamento. dos quais é difícil extrair retorno financeiro, mesmo a maioria das pessoas comuns que veem sua qualida-
O governo Bolsonaro deu passe livre às atividades quando são fundamentais para uma boa vida humana. de de vida deteriorada pela devastação ambiental. A
econômicas mais destruidoras e irresponsáveis. Mas Sabemos que o ser humano é uma criatura natural: empresa capitalista, obedecendo às leis do livre mer-
o Brasil já foi referência mundial em discussão ecoló- fazemos parte da natureza e estamos dentro dela. O cado, não hesita em despejar seus resíduos na água que
gica, e tradições militantes como a de Chico Mendes animal humano não pode existir sem uma constante e bebemos ou no ar que respiramos, nem se preocupa
mostraram na prática que é possível articular luta de adequada relação metabólica com o resto da natureza. se os efeitos colaterais de seus processos produtivos
classes com proteção ambiental. Esse legado nos torna Estamos emaranhados em uma rede de interdepen- tornam a vida nas cidades um inferno.
o país com maior potencial de entregar para o mundo dência não apenas com os outros membros da nossa Por si só, a economia capitalista não é capaz, portan-
um programa efetivo de descarbonização da economia, espécie, mas com milhões de outras espécies com as to, de solucionar os problemas que criou. A mudança
justiça ambiental e transição energética, que alinhe quais compartilhamos o planeta. Não há separação precisa ser compelida por uma força política ainda
os interesses materiais da classe trabalhadora com dualista entre o social e o natural. A questão toda é mais poderosa, que leve a humanidade a um caminho
o interesse geral da humanidade e as necessidades distinguir que tipo de relações sociais podem pro- consciente de viabilidade ecológica. Essa força pode
planetárias – talvez o único país com todas as fer- mover o desenvolvimento humano saudável e qual ser um ambientalismo da classe trabalhadora.

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O que fazer? A ameaça
ecológica exige um plano
de ação política. Nosso
argumento é que o
A QUESTÃO AMBIENTAL É UM PLANO ECOLÓGICO DA
UMA QUESTÃO DE CLASSE objetivo desse plano CLASSE TRABALHADORA
deve ser duplo: mitigar
Já é lugar comum apontar, como fez o relatório da Oxfam tivos são ecologicamente danosos, depois, roubados Ativistas ambientais vêm dedicando enormes e
de 2015 sobre “Extrema desigualdade de carbono”, que das próprias condições materiais de uma vida digna: os efeitos destrutivos desesperados esforços em tentar convencer o “mercado”
mais de 50% das emissões são de responsabilidade do uma biosfera equilibrada, com água limpa, ar puro, da dinâmica predatória que impedir o fim do mundo pode ser lucrativo também.
consumo dos 10% mais ricos, enquanto a metade mais alimentos não envenenados e clima estável. Em termos práticos, essa abordagem se revelou um
pobre da humanidade é responsável por apenas 10% A crise ecológica e as mudanças climáticas ameaçam de acumulação para, fracasso. Seu maior sucesso foi convencer a classe
das emissões. No último relatório, lançado já em 2022, diretamente as condições de vida da classe trabalha- no mínimo, atrasar suas proprietária de que ela deveria parecer mais ecológica
a constatação foi ainda mais chocante: os 20 maiores dora. E, no entanto, no capitalismo, o problema é pra- e gastar pequenas fortunas em propagandas para se
bilionários emitem juntos 8 mil vezes mais carbono ticamente insolúvel, pois cada empresa está impelida consequências mais pintar de verde. A locomotiva da acumulação predató-
do que o bilhão de pessoas mais pobres. Mesmo esses a extrair a maior quantidade de lucro ou perecer na devastadoras, enquanto, ria continuou, impávida e indiferente, na sua jornada
números subestimam a dimensão real da desigualdade: competição econômica. Como os lucros são privados, acelerada em direção ao abismo.
os super-ricos destroem o planeta não tanto pelo con- mas os custos são coletivos, seria necessário coorde- simultaneamente, Os verdadeiros interessados em impedir o desas-
sumo, mas muito mais pela forma como lucram com nação e planejamento em larga escala para escapar buscamos elevar o poder tre estão em outro lugar. São as pessoas comuns que
a produção. É tão difícil parar as atividades ecologi- dessa armadilha. Para esse tipo de problema, não há ganham a vida trabalhando. Os que não lucram com
camente destrutivas porque elas dão muito dinheiro, saída individual, nem solução de mercado. Trata-se coletivo daqueles que um a poluição, mas que a sentem nos pulmões. Os que
fazendo com que haja poderosos interesses materiais de um problema de ação coletiva, um agudo dilema dia poderão interromper têm que conviver diariamente com o rastro tóxico
particulares que se contrapõem a qualquer solução social, em escala global. das consequências não intencionais do mercado, em
racional que leve em conta o bem-estar comum: o que O que fazer? A ameaça ecológica exige um plano essa dinâmica destrutiva suas comunidades ou locais de trabalho. Os que têm
faz sentido na esfera pública não é o mesmo que faz de ação política. Nosso argumento é que o objetivo de uma vez por todas. suas formas de vida inviabilizadas e os territórios em
sentido em termos privados. desse plano deve ser duplo: mitigar os efeitos destru- que habitam degradados pelos efeitos colaterais da
Os efeitos ecológicos negativos da produção voltada tivos da dinâmica predatória de acumulação para, no produção capitalista. A grande massa de trabalhadores
ao lucro estão bem longe de serem igualitariamen- mínimo, atrasar suas consequências mais devastadoras, está entre os que menos contribuem com o problema,
te distribuídos: são as comunidades mais pobres as enquanto, simultaneamente, buscamos elevar o poder mas mais sofrem com as consequências.
primeiras afetadas. Ironicamente, justo aqueles que coletivo daqueles que um dia poderão interromper essa Sozinhos e isolados os trabalhadores parecem impo-
lucraram com a produção do problema e os que mais dinâmica destrutiva de uma vez por todas. É preciso tentes, e é certamente assim que cada um de nós se sen-
se beneficiam com a forma econômica que está na atuar desde agora para evitar o pior, e ao mesmo tempo te diante de um fenômeno de dimensões tão imensas
raiz da crise climática planetária, são os que têm mais aumentar as chances de vitória no futuro. Nem todos quanto a crise ecológica e o aquecimento global. A boa
recursos e poder para lidar com as consequências estão igualmente interessados em produzir mudanças notícia é que a história nos mostra que quando a classe
ou escapar de seus efeitos. Os bilionários podem, ao nesse sentido. A crise ambiental não é culpa da “huma- trabalhadora se organiza é capaz de exercer tanto poder
menos por um tempo, fugir para suas mansões nas nidade”, assim em abstrato: ela não atinge a todos da quanto os poderosos. O movimento dos trabalhadores
montanhas, se refugiar em bunkers hiper tecnoló- mesma forma e há inclusive os que lucraram (e querem foi a força mais democratizante da modernidade: con-
gicos – alguns até sonham em abandonar o planeta. seguir lucrando) com as atividades econômicas que a quistou o sufrágio universal, a redução da jornada de
Do outro lado, são os trabalhadores que sentem mais produziram. Há, no entanto, um ator social que, caso trabalho, a legislação trabalhista e a seguridade social.
vivamente, nos próprios corpos, que não há “Planeta B”. seja capaz de se pôr em movimento, não apenas teria o Nos últimos 150 anos, a classe trabalhadora organizada
São os que não têm riqueza nenhuma que mais estão poder suficiente para se opor aos interesses privados foi a principal representação dos interesses universais,
vulneráveis às “catástrofes naturais” resultantes das destrutivos, como teria vantagem material direta em da racionalidade pública, a força capaz de impor freios e
mudanças climáticas. fazê-lo: a classe trabalhadora. limites aos interesses do dinheiro. Frente ao desafio da
Nesse mal negócio, os trabalhadores foram dupla- crise ecológica, pode mais uma vez exercer esse papel.
mente expropriados: primeiro, explorados no lugar de
trabalho para gerar lucro para uma classe proprietária
que pouco liga se os efeitos de seus processos produ-

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O movimento dos
trabalhadores foi a força
mais democratizante da
modernidade: conquistou
E , no entanto, o discurso ambientalista mais ação necessária e constituir uma força coletiva real que UM PROGRAMA DE TRANSIÇÃO ECOLÓGICA
disseminado, ao focar na dimensão do consumo, possa se contrapor a eles. A partir dessa análise fria, a o sufrágio universal,
tem dificuldade para dialogar com os trabalhadores. tarefa é elaborar uma visão de futuro, um programa de a redução da jornada Nossa própria experiência brasileira durante os gover-
Não é difícil ver por que a mensagem “nós estamos ação e uma estratégia política baseada nos interesses nos do Lula é um bom começo: na primeira década dos
destruindo o mundo com nosso consumo excessivo” materiais da vasta maioria. de trabalho, a legislação anos 2000 no Brasil, tivemos registros de redução de
não ressoa na experiência da maioria das pessoas. Para Na luta de classes para salvar o planeta, todas as trabalhista e a seguridade emissão de CO2 associado com crescimento no pib e
a maior parte das famílias trabalhadoras, não parece o armas são boas: greves, boicotes, sabotagens. Será pre- redução do desemprego. Mas agora é possível, e neces-
caso que estejam consumindo de modo excessivo: ao ciso combinar táticas de ação direta, que interrompam social. Nos últimos sário, fazer ainda melhor. Os entrevistados do relatório
contrário, muitas vezes suas necessidades materiais processos produtivos, com ação indireta capaz de criar 150 anos, a classe publicado em janeiro de 2022 pelo Fórum Econômico
estão precariamente atendidas. O discurso de que nós nova legislação, consolidar inovações institucionais e Mundial apontaram a mudança climática como o perigo
estamos destruindo o mundo não toca aqueles que produzir uma outra hegemonia cultural. A ação coletiva trabalhadora organizada número um, que pode fazer derreter não só as calotas
mal conseguem pagar as contas. Para que possamos ambiental passa tanto por bloqueios e protestos quanto foi a principal polares, mas também o PIB global. Qualquer programa
realmente avançar na prática, precisamos primeiro pela produção de alternativas eleitorais viáveis. Nada de desenvolvimento econômico deve, portanto, partir
transicionar de uma “ecologia da austeridade”, segundo será conquistado sem a formação de um movimento representação dos da exigência de neutralidade de carbono no médio
a qual as pessoas precisam apertar os cintos, para um de massas diverso e combativo, capaz de pressionar interesses universais, prazo. O desafio está em garantir que o programa de
“ambientalismo popular”, com apelo majoritário, segun- as instituições desde fora, mas coordenando com ini- transição ecológica aconteça, desde já, gerando ren-
do o qual podemos todos viver melhor. Se quisermos ciativas no interior das instituições, para disputar as da racionalidade pública, da, trabalho e vida boa para todos. O programa de
ser eficazes, é necessário deixar de lado um “ecologismo direções das políticas de Estado. A seguir, esboçamos a força capaz de impor um Ambientalismo Popular, listado de forma sumária
de estilo-de-vida”, individualista, para construir uma linhas gerais de um conteúdo programático que pode- abaixo, responde justamente a essa exigência.
maioria política. ria ser executado mesmo por um governo de centro- freios e limites aos
A direita ideológica entende muito bem como jogar -esquerda que, não sendo de ruptura radical, poderia interesses do dinheiro. EMPREGO VERDE PARA TODOS – Enfrentar
esse jogo nefasto, e se esforça para apelar aos inte- caminhar no sentido de um projeto social-ecológico. a crise ecológica dará, sem dúvida, muito
resses materiais das famílias trabalhadoras contra as Essas indicações podem tanto inspirar a esquerda no trabalho. Mas nas condições atuais do Brasil
propostas ecológicas. A situação é perversa: querendo poder como serem usadas como bandeiras de agitação isso não é um problema, e pode até ser uma
manter seus lucros, grandes proprietários investem em para pressionar os governos. solução, tendo em vista a dramática situação
propaganda para convencer as famílias trabalhadoras social dos cerca de 12 milhões de
de que as políticas ambientais significam perda de seus desempregados que querem trabalhar, mas
empregos e de sua renda já escassa. Desde a década não encontram oportunidade no mercado.
de 1990 é comum encontrar, no interior dos Estados A prioridade número um de um novo governo
Unidos, carros com o adesivo: “Ou você ganha a vida de esquerda é combater o desemprego e isso
trabalhando ou é um ambientalista”. Nos protestos de pode ser feito justamente absorvendo mão
coletes amarelos da França, desencadeados por um de obra para as amplas transformações
imposto sobre combustível, era comum ouvir que as que a transição ecológica demanda. Para
elites e os ambientalistas se preocupavam com o fim descarbonizar rapidamente precisamos
do mundo, mas que eles tinham que se preocupar com reestruturar tudo: a maneira como vivemos
o fim do mês. em nossas cidades, como produzimos e como
As mudanças climáticas representam, de fato, uma nos alimentamos.
ameaça existencial à humanidade. Mas saber disso A meta explícita de um projeto ecológico
não é o suficiente, e se quisermos fazer algo efetivo a popular deve ser a criação de milhões de
respeito não basta conhecimento teórico, boas inten- empregos sindicalizados e bem remunerados.
ções e apelos morais. É preciso identificar as preferên- Serão necessários braços e mentes para
cias e demandas dos distintos setores sociais, mapear restaurar ecossistemas, para a reconversão
quais são os poderosos interesses que bloqueiam a industrial, para a atualização de uma rede

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A meta explícita de um
projeto ecológico popular
deve ser a criação de
milhões de empregos
inteligente de distribuição de eletricidade, REVOLUÇÃO AGROECOLÓGICA – A agropecuária
sindicalizados e bem
POLÍTICA INDUSTRIAL ECOLÓGICA –
na construção de uma nova infraestrutura de é a atividade que mais emite Gases do Efeito Muitas vezes a pauta ambiental é facilmente
transporte público, na fabricação e instalação Estufa no Brasil e, portanto, se transformada, remunerados. Serão associada a um sentimento anti-industrial,
em larga escala de painéis solares e turbinas a que tem maior potencial de redução. como se a devastação da natureza fosse
eólicas, na eletrificação massiva, na A agropecuária gera muitos empregos e teve necessários braços e o resultado direto de uma mentalidade
adaptação de edifícios comerciais e no um crescimento rápido nas últimas décadas, mentes para restaurar progressista que aposta no desenvolvimento
levantamento em massa de habitações mas é um dos setores mais vulneráveis aos tecnológico. Mas não precisa ser assim:
populares com novas técnicas de construção. efeitos da crise climática. Eliminar as formas ecossistemas, para a a transição ecológica pode ser uma
Do ponto de vista técnico, sabemos como mais predatórias, atrasadas, e, reconversão industrial, oportunidade única para reindustrializar
aumentar a oferta de postos de trabalho: frequentemente ilegais, do uso do solo é uma o Brasil.
pelo crescimento do investimento público forma de forçar a agropecuária brasileira a para a atualização de Mas isso não acontecerá espontaneamente.
orientado à descarbonização e por gastos se tornar mais intensiva em conhecimento, uma rede inteligente de O único agente que pode coordenar, planejar
públicos em bens coletivos. Mas o Estado com adoção de técnicas de baixa emissão de e conduzir essas transformações é o setor
também pode ser diretamente um carbono que podem inclusive reforçar o distribuição de eletricidade, público. Aí torna-se necessário a participação
empregador, criando novas empresas potencial de exportação. na construção de uma ativa da administração pública, na
públicas de tecnologia verde, por exemplo, Efeitos ainda maiores podem ser formulação e execução de políticas
ou com um programa de garantia de emprego alcançados apostando em um novo tipo de nova infraestrutura de industriais para promover inovações técnicas
para a juventude. reforma agrária popular, de alta transporte público e adoção em massa de tecnologias de energia
produtividade e cientificamente avançada, renovável que já existem. Para produzir as
DESMATAMENTO ZERO – A fronteira agrícola mas que quebre o tripé de monocultura, mudanças urgentes na escala e no ritmo
precisa parar de avançar. Isso não significa sementes industriais e agrotóxico. Com apoio exigido, é o Estado que precisará estimular
diminuir a produção agrícola, mas aumentar estatal vigoroso em assistência técnica, conscientemente o desenvolvimento:
sua produtividade em termos de uso do solo. financiamento barato e compras coordenando, estipulando o que é prioritário,
As ações pelo desmatamento zero podem governamentais, é possível potencializar as criando mecanismos para financiar
servir como fonte de trabalho, empregando iniciativas exitosas de agroecologia que já infraestrutura, incentivando pesquisa e
mão de obra local para o plantio, viabilização, existem em assentamentos e em pequenas desenvolvimento.
fiscalização e utilização sustentável dos propriedades, colocando alimento saudável
recursos de novas florestas. no prato dos trabalhadores brasileiros. Se o TRANSIÇÃO ENERGÉTICA – Apesar do Brasil
Aqui se faz necessária a mão visível e mst já conseguiu se tornar o maior produtor contar majoritariamente com energias
pesada do Estado, restabelecendo sua de arroz orgânico da América Latina, o que renováveis por conta das hidrelétricas, há
capacidade de atuação coercitiva e será possível quando um governo aposte um tremendo desperdício de oportunidades
operacionalizando os órgãos ambientais para materialmente em dar escala a esse tipo de no setor energético. A transição energética
garantir a fiscalização e punição aos experiência? A conjugação do conhecimento para energias renováveis deve ser um
criminosos ambientais, que hoje são camponês com a mais moderna técnica caminho natural para um país como o Brasil,
responsáveis por 99% do desmatamento. científica, reforçado por um aparato de favorecido por um enorme potencial em
Os povos indígenas têm atuado como financiamento diferenciado, distribuição e expansão de energia fotovoltaica e eólica. O
verdadeiros guardiões da floresta, razão pela reforço a agroindústria cooperativa pode setor de energias renováveis têm o potencial
qual é do interesse de todos restabelecer e fazer do Brasil o campeão internacional de de adicionar mais que o dobro de empregos
concluir o processo de demarcação de todas agricultura de baixo carbono e produtos que a média dos outros setores da economia.
as terras indígenas no Brasil. orgânicos, contribuindo com o combate à A geração de empregos verdes pode ser
fome e a oferta de trabalho digno no campo. incentivada no setor de energias renováveis
em toda sua cadeia, da produção à
manutenção. Simultaneamente, é

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A agropecuária gera
muitos empregos e teve
um crescimento rápido
nas últimas décadas, mas
imprescindível garantir soberania energética assumir o compromisso de efetivar seus topo da pirâmide, justamente onde eles farão
para as comunidades e populações planos municipais de saneamento básico, é um dos setores mais menos falta: tributar a distribuição de lucros
vulneráveis estabelecendo um programa bem como de gestão integrada de resíduos vulneráveis aos efeitos e dividendos, grandes fortunas e heranças. O
nacional de democratização da geração sólidos. aumento da progressividade da tributação, e
distribuída. da crise climática. a ampliação da incidência de impostos sobre
Na maioria das grandes cidades, o setor de LUXO PÚBLICO PARA TODOS – As coisas boas Eliminar as formas mais a classe proprietária, serve tanto para
transportes é o principal emissor de gases. da vida, que mais geram satisfação humana e aumentar a receita para novos investimentos
A descarbonização de ônibus e carros tem felicidade, tendem a emitir pouco carbono e predatórias, atrasadas, e, públicos ecológicos como inibir os gastos
potencial para ser uma verdadeira revolução são as mesmas há séculos: o tempo livre com frequentemente ilegais, supérfluos em carbono (como jatinhos
na mobilidade urbana, priorizando a redução a família e os amigos, aproveitar a companhia privados) e o consumo individual excessivo.
das emissões ao passo que garante melhor das pessoas, desfrutar de arte e cultura, fazer do uso do solo é uma Os poluidores devem ser cada vez mais
qualidade de vida para os trabalhadores da uma boa refeição com alimentos nutritivos e forma de forçar a pagadores e o impacto negativo aos serviços
cidade. Um transporte de baixa emissão deve saudáveis, aprender novas ideias, admirar ecossistêmicos e ao bem difuso que é o Meio
estar associado à melhoria do transporte belas paisagens de praias, matas, serras, lagos agropecuária brasileira Ambiente deve ser cada vez mais levado em
coletivo, atraindo passageiros. Trata-se e cachoeiras. O desafio coletivo é transformar a se tornar mais intensiva conta nos processos de licenciamento e nas
também de rever, por meio do planejamento os padrões de consumo e produção, compensações ambientais. Isso deve ser
urbano, o próprio desenho de nossas cidades, priorizando bens públicos em detrimento da em conhecimento, com enxergado de fato como um mecanismo
diminuindo os deslocamentos e aproximando compra individual de lixo descartável. Saúde, adoção de técnicas de gerador de receita para ser convertida em
o local do emprego às residências dos educação e trabalho de cuidado são setores reestruturação de ecossistemas, fomento de
trabalhadores. cruciais para uma boa vida de baixo carbono. baixa emissão de carbono programas de empregos verdes, pagamento
Uma boa vida para todos requer programas que podem inclusive de dívidas ecológicas para famílias em
REFORMA URBANA VERDE – Hoje no Brasil de transferências de renda. No Brasil tivemos vulnerabilidade socioambitental.
aproximadamente 85% da população vive nas o programa Bolsa Família, uma das reforçar o potencial de
áreas urbanas, que, por sua vez, ocupam experiências mais bem-sucedidas do mundo. exportação.
apenas 0,6% do território nacional. Esse Esse tipo de programa, centrado na mulher, CONSTRUIR PODER
contexto de hiperconcentração humana cria não só promove uma reparação histórica, mas Relatórios abstratos ou previsões apocalípticas não
um cenário artificial distante das condições também otimiza o uso do recurso As serão suficientes para produzir a mudança que preci-
originais do território e impede uma série de mulheres, além de serem especialmente samos, por mais crucial que seja entender a gravidade
formas de uso do solo, obrigando a população afetadas pelos efeitos da crise climática, são da situação. Sem uma estratégia concreta, capaz de
a viver em uma estrutura urbanística cada reconhecidamente os principais agentes de despertar entusiasmo e esperança, o mero conheci-
vez mais densa e verticalizada que elimina transformação em direção de um senso de mento teórico da magnitude da ameaça pode muito
espaços verdes, riachos, lagoas e paisagens, justiça socioambiental. bem acabar sendo paralisador. E se a solução, como
elevando o preço do metro quadrado, argumentamos, passa pelo engajamento em massa das
excluindo a população empobrecida e TAXAR OS RICOS – Se há, no entanto, um grupo pessoas comuns, precisamos oferecer uma imagem
criando crônicos problemas de saneamento. que merece sim uma boa dose de austeridade positiva de um futuro melhor, pelo qual vale a pena
Estamos cheios de megacidades com o déficit é o 1% mais rico, os que vivem da propriedade lutar, que seja ao mesmo tempo desejável e crível.
habitacional em seu limite e que relegam seus e não do trabalho. Colocar os ricos no Para criar um mundo novo é preciso primeiro ima-
habitantes a moradias precárias.   imposto de renda, como tem repetido Lula, giná-lo. No fim das contas, o que propomos é um exer-
Ainda hoje 35 milhões de brasileiros não faz todo sentido, e deve ser nosso ponto de cício coletivo de imaginação política, cujo resultado
têm acesso à água tratada e cerca de 100 partida inegociável. Em um momento que se deve ser uma visão de longo prazo capaz de orientar
milhões não têm tratamento de esgoto em faz urgentemente necessário recursos e reforçar as diversas lutas imediatas. A vantagem de
suas casas. Nesse setor, os municípios materiais para transformar a economia e uma abordagem abrangente como a que sugerimos, que
apresentam papel decisivo e precisam impedir o desastre, faz sentido buscá-los no encarna uma ambição quase utópica, é a possibilidade

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Ainda hoje 35 milhões
de brasileiros não têm
acesso à água tratada
e cerca de 100 milhões
de conectar várias lutas e movimentos, produzindo Chico também entendia bem a necessidade de cons- nada com os sindicatos de trabalhadores; a revolução
mobilizações sustentadas e persistentes, com o obje- truir coalizão com outros grupos que vivem na e da não têm tratamento agroecológica precisa potencializar os movimentos do
tivo de acumular forças tanto nas eleições quanto floresta, com povos indígenas (o que daria origem de esgoto em suas campo; e a construção em massa de habitação social
nas ruas. à Aliança dos Povos da Floresta), com organizações ecológica tem que ser feita em cooperação ativa com
O que uma perspectiva estratégica nos traz é a ambientalistas nacionais e internacionais, e com tra- casas. Nesse setor, os os movimentos urbanos de luta por moradia. A meta
consciência de que não há atalhos: precisamos cons- balhadores urbanos das fábricas: não por acaso, Chi- municípios apresentam é sempre a mesma: aumentar o poder relativo dos tra-
truir poder. Em outras palavras, conhecimento e boas co Mendes foi fundador do pt, membro do primeiro balhadores frente aos patrões. Essa dinâmica pode
intenções, sem a articulação de uma base de apoio diretório nacional do partido, e um aliado próximo de papel decisivo e então disparar um circuito virtuoso de mobilização:
público ampla, de pouco adiantará. Para vencer, um Lula, que esteve presente em seu velório em 1988. Os precisam assumir cada vitória abre espaço para planos mais ambiciosos,
projeto ecológico necessita de um apelo majoritário. patrões assassinaram Chico Mendes, mas seu legado cada conquista aumenta a confiança de que é possí-
Sua viabilidade política passa pela formação de uma sobreviveu, e essa peculiar combinação de ação direta o compromisso de vel vencer e assim vai se reforçando a capacidade de
coalizão de massas. Uma transição justa, até para que extraparlamentar, sabotando as tentativas de desmata- efetivar seus planos organização dos que lutam.
seja factível em termos pragmáticos, precisa materia- mento, com atuação institucional partidária se revelou Um ambientalismo popular vibrante e ousado preten-
lizar benefícios imediatos para a classe trabalhadora, poderosa: menos de um ano após o assassinato, sua municipais de de não apenas preservar a natureza, mas impulsionar
que é a ampla maioria da população. ideia de “Reservas extrativistas” – a “reforma agrária saneamento básico, a esperança e ampliar politicamente o horizonte de
O desafio central nesse sentido é superar a tensão e dos seringueiros”, inspirada pela demarcação de terras expectativas coletivo. O Brasil pode deixar de ser um
as antigas desconfianças entre o mundo do trabalho indígenas – foi incorporada à nova constituição. bem como de gestão pária, como é hoje sob Bolsonaro, para ser um modelo
e os grupos ambientalistas. O sindicalismo teve um Para que essa orientação estratégica tenha alguma integrada de resíduos e uma inspiração global. Podemos não apenas vencer
papel histórico na imposição de limites ao capital e na chance de prosperar, precisamos de objetivos claros e a crise climática, mas construir um mundo melhor
expansão da oferta de bens públicos. Uma boa parte uma delimitação simples de quem são nossos amigos e sólidos. no processo. Com suas vastas florestas e sua classe
da legislação ambiental foi conquistada também pela nossos inimigos. A tese fundamental é que a estabiliza- trabalhadora politicamente experimentada, o Brasil
pressão do trabalho organizado, a partir da consciên- ção do clima e o enfrentamento à crise ecológica podem é o lugar privilegiado onde isso pode acontecer. As
cia dos riscos sobre a saúde dos trabalhadores e suas ser compatibilizados com elevação dos padrões de vida fichas estão todas nas nossas mãos. Um Brasil líder em
famílias por parte de certos processos produtivos. A da maioria trabalhadora. O que defendemos aqui não é agricultura de baixo carbono, polo mundial em pesqui-
tarefa agora é conectar, no programa e no imaginário um projeto de ruptura revolucionária. Nada do que foi sa em bioeconomia e energias renováveis, vanguarda
popular, uma economia política do pleno emprego e a sugerido estaria fora da capacidade de atuação de um nos investimentos públicos para uma nova indústria
transição ecológica: ligar energia limpa com moradia governo reformista conciliatório bem-intencionado. ecológica, aliando combate à pobreza e desigualdade
digna, descarbonização com oferta abundante de Uma proposta como essa busca, de fato, dividir poli- com descarbonização acelerada, tem tudo para ser um
empregos de boa qualidade, preservação de áreas ticamente o capital privado, isolando os setores mais farol da humanidade, atraindo olhares de admiração e
verdes com expansão da renda e do lazer. atrasados e sujos, e atraindo parcelas mais tecnologi- apoio de todos os povos do mundo. A liderança moral
Podemos encontrar um modelo desse tipo de aliança camente desenvolvidas e ecologicamente orientadas do Brasil e a força de seu exemplo prático animariam a
na própria história da esquerda brasileira, encarnado da iniciativa privada. juventude e os movimentos de todos os países, inclu-
na figura de Chico Mendes. Um militante combativo da O fundamental, no entanto, é que essas reformas sive para pressionar seus governos à ação mais ousada
Amazônia profunda, Chico Mendes ganhou notoriedade sirvam para reforçar a capacidade de organização e e maior colaboração internacional para uma transi-
internacional como um mártir da causa ecológica. Mas mobilização dos atores sociais que podem pressionar ção justa. Essa contribuição pode marcar o ponto de
ele era antes de tudo, e assim se via, um sindicalista: os governos na direção de uma crescente oferta de virada histórico na relação da espécie humana com
presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de bens públicos, redução das desigualdades, planejamen- o resto da natureza. Aliando a mobilização de afetos
Xaperi e dirigente da Central Única dos Trabalhado- to democrático das atividades produtivas, redução do com o pragmatismo da ciência e da técnica, é possível
res. Os “empates”, muitas vezes vitoriosos, que Chico tempo de trabalho, ampliação da esfera de cuidados, materializar pela ação política o projeto ambientalista
e seus companheiros de luta organizaram para manter desmercantilização das condições básicas de vida e popular. E, se podemos, é nossa obrigação histórica. O
a floresta de pé, eram primeiramente uma mobiliza- socialização crescente do investimento. A criação de tempo está correndo. Mais do que um programa, aqui
ção classista, pela defesa das condições de vida dos novos empregos verdes deve ir junto com o aumento se encerra um convite urgente.
trabalhadores extrativistas. da sindicalização e a reconversão industrial co-gestio-

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