Você está na página 1de 5

CAPÍTULO 2

A PERDA DA BIODIVERSIDADE
PODE LEVAR À EXTINÇÃO DO
HOMO SAPIENS?
Marcos Buckeridge

Talvez um dos impactos mais graves das mudanças climáticas


seja a perda de biodiversidade. O Homo sapiens se torna cada vez
mais consciente de que há conexões fundamentais entre a espécie
humana e os demais organismos que nos cercam e que vivem
literalmente dentro de nós. Neste sentido, ameaçar outras formas
de vida coloca em risco a nossa própria existência.

C
omo as formigas, o Homo sapiens é uma espécie de animal social. Parte da
similaridade está na capacidade destrutiva, pois um formigueiro tem um
efeito devastador no seu entorno. A rainha e seus súditos, para se manterem
vivos, se alimentam freneticamente das folhas das plantas nos arredores do
formigueiro para suprir o crescimento de um fungo que serve de alimento para a rainha.
No formigueiro, os indivíduos interagem de forma organizada e criam estruturas comple-
xas em que a rainha é alimentada por uma comunidade que tem hospital, disposição de
resíduos, defesa e um sistema sofisticado de busca coletiva por alimentação. Existe um nível
de consciência em cada indivíduo num formigueiro. Porém muito aquém do H. sapiens,

NOVOS TEMAS EM EMERGÊNCIA CLIMÁTICA | 19


cujos indivíduos possuem cérebros que são
ordens de magnitude mais sofisticados e geram Formigas e H. sapiens não diferem
uma consciência expandida capaz de produzir no sentido de que ambos são sistemas
arte, ciência e tecnologia, por exemplo. adaptativos complexos que usam
Também produzimos resíduos, temos hos- recursos ambientais. Nós também
pitais e sistemas de transporte e defesa. Causa- construímos cidades e zonas de produção
mos transformações no entorno de onde quer agrícola em que os indivíduos trabalham
que nos estabeleçamos. O desenvolvimento de incessantemente buscando obter
uma cidade forma uma “aura” de efeitos que alimentos para uma rainha imaginaria
são físicos (construções e modificações no uso que seria a população em geral.
da terra), químicos (poluição de vários tipos)
e biológicos, (destruição da biodiversidade).
Estes são os efeitos antrópicos. Um exemplo é o
fato de que a urbanização, por si só, leva a um de aumento em outros fatores que não são tão
aumento de pelo menos 3oC, independente desejáveis, como criminalidade, produção de
dos impactos das mudanças climáticas (Bazaz lixo e a destruição do meio ambiente.
et al., 2018).
Quando uma área é ocupada por uma O Homo sapiens é uma ameaça
população de H. sapiens, o ambiente em volta a si mesmo?
é fortemente alterado, pois passamos rapida-
mente a derrubar florestas, a caçar e a pescar Uma das maiores ameaças que já enfren-
no entorno para alimentar a população cres- tamos é o conjunto de efeitos sobre o clima
cente. Conforme ela aumenta, a vantagem da que nós mesmos causamos. Aqueles aumen-
aglomeração atrai mais pessoas, sendo que, a tos extras de 15%, ao dobrarem o tamanho das
cada vez que o tamanho de uma cidade dobra, nossas cidades, demandaram consumos cres-
há ganhos e perdas coletivos da ordem de 15% centes de energia. O problema é que a princi-
(West, 2017). Em outras palavras, os benefícios pal fonte que escolhemos foi o petróleo, que
ou perdas não aumentam linearmente com o gera os gases do efeito estufa (como o CO2)
incremento da população, mas de forma super- que aquecem o planeta.
linear, pois há proporcionalmente 15% mais Numa cadeia de erros que se propagaram, ao
serviços como hospitais, lojas, patentes, proces- causar perda de biodiversidade, fomos levados
sos e etc. O problema é que, ao mesmo tempo ao desequilíbrio no clima, que hoje ameaça os
em que há 15% de melhora, há também 15% sistemas rurais e urbanos que criamos. Com o

20 | NOVOS TEMAS EM EMERGÊNCIA CLIMÁTICA


2
crescimento contínuo das cidades, o efeito sobre problema mudando o nosso próprio compor-
a biodiversidade de seus entornos aumentou de tamento. Precisamos tentar eliminar os efeitos
forma superlinear e nos jogou em um círculo da parte negativa dos 15% de superlinearidade
vicioso que tende a ser cada vez mais destruti- relacionados aos aspectos que geram o círculo
vo. Já se pode ver no planeta um aumento na vicioso. Para isto, conservar e preservar a bio-
frequência de eventos extremos como enchen- diversidade é crucial.
tes, tempestades, secas e ondas de calor, que
derivam daqueles erros do passado e de seus Mudar ou extinguir?
efeitos sobre um dos elementos fundamentais
para o equilíbrio climático: a biodiversidade. Podemos destruir a nós mesmos, mas será
Pelo menos por enquanto, já que não que podemos destruir o planeta? É mais pro-
temos como mudar para outro planeta e ten- vável que o H. sapiens destrua a si mesmo antes
tar começar de novo, resta-nos enfrentar o que possa destruir tudo o que há de vivo no
planeta. A biodiversidade é um ponto central,
pois ao perdê-la destruiremos a nós mesmos, já
que ela é crucial para a manutenção do equi-
Novo olhar
líbrio climático que é a base para a existência
Precisamos completar a transição da dos sistemas humanos. Mais do que isto, parto
ética de valores intrínsecos – ética da hipótese de que o efeito provocado pela
baseada em valores individuais – para destruição da biodiversidade sobre o clima do
uma ética de valores instrumentais, planeta é superlinear.
que é a ética socioambiental, cujos Recentemente descobrimos que ao pas-
valores consideram os efeitos coletivos sarmos do limiar de temperatura média pla-
(Buckeridge, 2019). Enquanto o H. netária de 25,4oC, as árvores tropicais terão
sapiens continuar insistindo na ética sua mortalidade acelerada (Locosselli et al.,
de valores intrínsecos, agindo de forma 2020). A má notícia é que grande parte dos
individualista e adotando um ponto trópicos já atingiu, ou até passou desta tempe-
de vista homomachocentrista, os ratura média e que o processo de aceleração da
fatores que nos colocaram no círculo mortalidade já começou. Hoje há evidências
vicioso continuarão aumentando de que a Amazônia emite mais carbono do
o desequilíbrio, até que o processo que absorve (Gatti et al., 2021) e o aumento
civilizatório entre em colapso. da mortalidade das árvores pode ser uma das
explicações para isto. E o governo brasileiro

NOVOS TEMAS EM EMERGÊNCIA CLIMÁTICA | 21


ainda teima em dar uma “ajuda” neste proces- como a conhecemos poderá desaparecer? Ou
so destrutivo, permitindo atear fogo a vários será que estamos vivendo uma transição de
dos nossos biomas. fase e o sistema civilizacional que montamos
Admitindo um processo de destruição pode ser substituído por algo melhor?
supralinear, é ilusório pensar que ao dobrarmos A resposta às duas perguntas depende
a destruição da biodiversidade os efeitos sobre somente de nós. O desenvolvimento tec-
o clima também dobrarão. O que pode acon- nológico nos últimos dois séculos mudou
tecer é que, cada vez que dobrarmos o efeito, os completamente o padrão de influência do
impactos sobre o clima mais do que dobrarão H. sapiens sobre a biosfera. Produzindo uma
– é isto que significa ser superlinear – de tal população em constante crescimento e explo-
forma que a tendência seria de chegarmos a um rando cada vez mais os recursos existentes,
colapso muito mais rápido do que imaginamos. fomos ocupando uma superf ície cada vez
Tudo isto significa que entramos em um maior do planeta e demandando recursos de
momento de transição em que a civilização forma superlinear.

Biodiversidade da Amazônia
Podemos pensar por exemplo na visão do uso sustentável da biodiversidade na Amazônia
e de como o efeito da floresta sobre o clima afeta a agricultura. Por um lado, podemos usar
a ética intrínseca e nos solidarizarmos com cada uma das espécies e tentarmos defender o
ponto de que nenhuma delas deve ser extinta devido às ações humanas. O outro ângulo,
da ética de valores instrumentais, é pensar que ao mantermos a Amazônia preservada,
poderíamos encontrar lá algum remédio para alguma doença humana importante (câncer,
doenças degenerativas, por exemplo). Da mesma forma, podemos pensar que ao controlar
o clima em grande parte da América do Sul, a preservação da floresta Amazônica garante
que continuemos tendo alimentos suficientes para a nossa população.
Para se aprofundar nessas relações conheça o trabalho da Rede Amazônia Sustentável
(RAS), composta por pesquisadores de mais de 30 instituições do Brasil e do exterior,
que têm como produzir e aplicar evidências científicas como caminho para fortalecer a
sustentabilidade na região Amazônica.
https://www.rasnetwork.org/

22 | NOVOS TEMAS EM EMERGÊNCIA CLIMÁTICA


2
Das espécies que conhecemos, a União
Internacional de Conservação da Natureza Para saber mais
(IUCN, International Union for Conserva- O que o Brasil ganha com as mudanças
tion of Nature1) reporta que temos hoje 41% climáticas, Marcos Buckeridge, Jornal da
dos anfíbios, 26% dos mamíferos, 34% das USP em 25/02/2019 - https://jornal.usp.
árvores coníferas, 14% dos pássaros, 37% dos br/artigos/o-que-o-brasil-ganha-com-
tubarões e raias, 33% dos recifes de coral e 28% as-mudancas-climaticas/
dos crustáceos numa lista vermelha de espécies O poder da sinergia no combate
em perigo de desaparecer. Em conjunto, as às mudanças climáticas: Como
espécies ameaçadas, segundo a IUCN, somam a democracia e a ciência podem
hoje quase 30% das espécies que conhecemos. acelerar as ações contra o clima.
É um número muito alto. Podemos olhar Marcos Buckeridge (2021)
pelo ângulo da ética de valores intrínsecos e nos https://scholar.google.com.
solidarizarmos com cada um dos grupos de ani- br/citations?view_op=view_
mais e plantas em perigo de extinção, mas pode- citation&hl=pt-BR&user=DBFsQ3sAA
mos também olhar através da ética instrumen- AAJ&sortby=pubdate&citation_for_
tal, concluindo que a extinção dessas espécies view=DBFsQ3sAAAAJ:KTwcwpFFj4wC
está nos levando à nossa própria extinção.

1 https://www.iucnredlist.org (consultado em 5/9/2021)

REFERÊNCIAS
Bazaz, A. et al (2018). Summary for urban policymakers: What the IPCC special report on 1.5C means for cities. New
York, NY: Global Covenant of Mayors for Climate & Energy/C40 Cities. https://doi.org/10.24943/SCPM.2018
Buckeridge, M. (2019) Bases Históricas e Científicas da Ética Socioambiental In: Ética Socioambiental (Eds: L.F. Florit,
C.A.C., Sampaio, A. Philippi Jr.) Editora Manole. pp. 152.160.
Gatti, L. V. et al. (2021) Amazonia as a carbon source linked to deforestation and climate
change. Nature. 15 jul, 2021
Locosselli, G.M., et al (2020) Global tree-ring analysis reveals rapid decrease in tropical tree longevity with temperature.
Proceedings of the National Academy of Sciences of the USA. www.pnas.org/cgi/doi/10.1073/pnas.2003873117
West, G. (2017) Scale. Peguin Press, NY527p.

NOVOS TEMAS EM EMERGÊNCIA CLIMÁTICA | 23

Você também pode gostar