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ARTIGO ARTICLE
Vulnerabilidade socioambiental, redução de riscos de desastres
e construção da resiliência – lições do terremoto no Haiti
e das chuvas fortes na Região Serrana, Brasil
Abstract Data on disasters around the world re- Resumo Dados sobre desastres no mundo apon-
veal greater seriousness in countries with lower tam para uma maior gravidade nos países com
social and economic development levels. In this menores níveis de desenvolvimento econômico e
context, disaster risk-reduction and resilience- social. Neste contexto, políticas de redução de ris-
building policies are priorities in the sustainable cos de desastres e construção da resiliência consti-
development agenda, featuring among the topics tuem prioridades na agenda do desenvolvimento
selected for the Rio+20 Summit. By means of a sustentável, estando entre os temas eleitos para a
contribution of a conceptual nature and from Rio+20. O objetivo deste artigo é, através de uma
examples of disasters in countries with different contribuição de natureza conceitual e dos exem-
development levels, namely the Haiti earthquake plos de desastres em países com níveis de desenvol-
and the torrential rains in the mountain range vimento diferentes, o terremoto do Haiti e as chu-
close to Rio de Janeiro in Brazil, the scope of this vas fortes na Região Serrana (Rio de Janeiro, Bra-
article is to demonstrate how socio-environmen- sil), demonstrar como a vulnerabilidade socioam-
tal vulnerability creates conditions for disasters, biental cria condições para os desastres, ao mesmo
while at the same time limiting strategies for their tempo em que limita as estratégias para prevenção
prevention and mitigation. Lastly, some of the e mitigação. Ao final são apontados alguns dos de-
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Centro de Estudos da
measures that disaster risk reduction and resil- safios que a redução de riscos de desastres e a cons-
Saúde do Trabalhador e
Ecologia Humana, Escola ience-building demand in a socio-environmen- trução da resiliência exigem em contextos de vul-
Nacional de Saúde Pública, tal vulnerability context are highlighted. These nerabilidade socioambiental, o que inclui mudan-
Fundação Oswaldo Cruz.
involve changes in the current patterns of social, ças nos padrões de desenvolvimento social, econô-
Rua Leopoldo Bulhões 1480/
503, Manguinhos. economic and environmental development geared mico e ambiental orientados para a sustentabili-
21.041-210 Rio de Janeiro toward ecological sustainability and social justice dade ecológica e a justiça social como pilares do
RJ. carlosmf@ensp.fiocruz.br
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as pillars of sustainable development. desenvolvimento sustentável.
Centro de Estudos e
Pesquisas de Emergências e Key words Natural disasters, Socio-environmen- Palavras-chave Desastres naturais, Vulnerabili-
Desastres em Saúde, tal vulnerability, Risk reduction, Resilience- dade socioambiental, Redução de riscos, Resiliência
Fundação Oswaldo Cruz
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building
Programa de Pós-
Graduação em Informática,
Departamento de
Engenharia Industrial,
Escola Politécnica,
Universidade Federal do
Rio de Janeiro.
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Freitas CM et al.
ração de 35 segundos com epicentro cerca de 25 ces de desnutrição próximos a uma emergência
km da capital do país, Porto Príncipe, atingindo humanitária. Se aproximava de um desastre social
cidades em um raio de 45 km. O horário do ter- crônico, resultando nos piores indicadores sociais
remoto foi às 16:53, momento em que grande (IDH 0.45, considerado baixo)9,10 e de saúde da
parte da população estava nas ruas, o que pro- ALC (mortalidade em menores de 5 anos de 76
vavelmente diminuiu o número de óbitos. O ter- por mil e esperança de vida ao nascer de 61,5 anos)12.
remoto atingiu o centro econômico, administra- No que se refere à situação ambiental, o Haiti
tivo, político e populacional do país, concentran- possui imenso desmatamento das planícies, mor-
do 66% do PIB e 39% da população localizada ros e encostas, processo iniciado com os espa-
na cidade de Porto Príncipe e seus entornos10. As nhóis e continuado pelos franceses e, após a in-
consequências humanas foram imensas, sendo dependência, pelos fazendeiros, que ocuparam
destruída boa parte da economia e da capacida- os vales férteis e expulsaram os camponeses para
de de governo em um país historicamente vulne- as matas mais íngremes13. O longo processo de
rável aos desastres (Tabela 1). exploração da madeira e do solo no Haiti tornou
Mais de 2 milhões de pessoas foram direta- o país muito mais vulnerável a tempestades do
mente afetadas pelo terremoto, representando que a República Dominicana, embora comparti-
15% da população do país. Segundo informa- lhem a mesma ilha. Enquanto na Republica Do-
ções oficiais em janeiro de 2011, o número de minicana a proporção da superfície coberta por
óbitos chegou a 300 mil e outras centenas de mi- florestas era de 28,4% em 2005, no Haiti era de
lhares lesionadas. Cerca de 1,3 milhões de pesso- 3,8%, mais de 7 vezes menor14. O desmatamento,
as passaram a viver em abrigos e outras 500 mil combinado com a vulnerabilidade às tempesta-
se deslocaram para outras áreas do Haiti, exa- des e ciclones, exacerbou a deterioração ambien-
cerbando mais ainda problemas existentes de tal do país afetando a produtividade de alimen-
acesso a alimentos e serviços básicos. Por volta tos, que caiu 30% só entre 1991 e 2002, aumen-
de 105 mil casas foram completamente destruí- tando a pobreza rural e levando a uma maior
das e 208 mil danificadas. Em torno de 1.300 es- migração do campo para Porto Príncipe (que já
tabelecimentos educacionais e mais de 84 hospi- não possuía capacidade de absorver mais popu-
tais e centros de saúde foram severamente dani- lações e de oferecer serviços, alimentos e sanea-
ficados ou destruídos. Boa parte do porto da mento ambiental adequado para todos)10,13.
capital ficou destruída, assim como prédios im- Em relação ao acesso aos serviços básicos de
portantes do governo e da administração públi- saneamento e saúde, o Haiti já vivia uma situa-
ca10. A precária situação econômica e social, com- ção em que menos da metade da população pos-
binada com a já imensa degradação ambiental suía acesso a serviços de saúde, água e sanea-
no Haiti, resultou em uma condição de alta vul- mento, assim mesmo de baixa qualidade. Em
nerabilidade socioambiental e ausência de capaci- relação aos serviços de saúde, 47% dos haitianos
dade de redução do risco diretamente acoplado à não possuíam acesso a atenção básica e 75% da
precária capacidade de governo no país, agra- atenção à saúde era provida por ONGs ou gru-
vando ainda mais os problemas sociais e econô- pos religiosos, com a maioria sem nenhum con-
micos, ambientais e sanitários. trole do Ministério da Saúde. Em relação ao sa-
A situação política, econômica, social e ambi- neamento ambiental adequado, o Haiti apresen-
ental do Haiti precedente ao terremoto de 2010 já ta os mais baixos percentuais de população com
era bastante vulnerável, sendo o país mais pobre acesso a água potável (58%) e esgotamento sani-
da ALC. As condições de vida eram bastante pre- tário (19%), com 8 milhões de habitantes, do
cárias para grande parte da população, com índi- total de 10 de milhões, sem acesso adequado à
Fonte: PAHO/WHO15
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esta razão que dos 11 municípios atingidos pelo sentava problemas crônicos de construções ina-
desastre de 12 de janeiro, cinco (Petrópolis, Su- dequadas em áreas de riscos (margens de rios e
midouro, Nova Friburgo, Teresópolis e Bom Jar- encostas), drenagem de águas, acúmulo de lixo
dim) se encontram entre os 251 mais vulneráveis nas encostas e desmatamentos, além da urbani-
aos deslizamentos no país20. zação não planejada e a falta de terrenos própri-
O rápido crescimento da população (nos os para moradias seguras21, contribuindo para
municípios mais atingidos, entre 1950 e 2010 a aumentar a vulnerabilidade socioambiental e con-
população triplicou em Petrópolis, quadruplicou verte-las em desastres, expondo e afetando de
em Nova Friburgo e quintuplicou em Teresópo- modo mais intenso os mais pobres. Diferente-
lis)19 e a sua distribuição desordenada pelo terri- mente do Haiti, os indicadores sociais dos três
tório determinou a ocupação de áreas de prote- municípios com maior número de óbitos da Re-
ção ambiental, como margens de rios e encostas, gião Serrana eram melhores, com Nova Fribur-
tanto oficialmente pelo poder público (como es- go e Petrópolis possuindo em 2000 IDH elevados
colas e estabelecimentos de saúde, por exemplo), (0,8 ou mais), PIB per capita em 2010 acima de 8
como ilegalmente, ocorrendo pouca ou nenhu- mil dólares e incidência de pobreza abaixo de 16%.
ma ação do estado para conter este processo. Teresópolis possuía IDH médio (0,7) e PIB per
Segundo relatório produzido pelo Ministério do capita mais baixo, em torno de 7 mil dólares e
Meio Ambiente para a análise do desastre da maior incidência de pobreza em 2003, com 21,9%.
Região Serrana, do total de 657 deslizamentos As taxas de mortalidade infantil em 2010 varia-
analisados em uma área na cidade de Nova Fri- vam de 12,2 por mil em Nova Friburgo à 19,6
burgo, 92% estavam associados a algum tipo de por mil em Petrópolis, mas todos possuíam es-
alteração antrópica na vegetação em áreas de ele- perança de vida ao nascer igual ou superior a 70
vada inclinação (morros, montes, montanhas e anos23,24. Entretanto, apesar do desastre ter atin-
serra), além da ocupação de faixas menores que gido populações de alta e baixa renda, em Tere-
30 metros em cada margem dos rios aumentan- sópolis, das 3.400 habitações atingidas, 65% per-
do a vulnerabilidade aos desastres21. O próprio tenciam à população de baixa renda17.
setor saúde contribuiu para aumentar esta vul- O desastre de 12 de janeiro, embora o mais
nerabilidade e também se tornou impactado pela grave já registrado no país, não ocorreu de uma
mesma. Levantamento realizado pelo Ministério hora para outra, sendo antecedido de uma série
da Saúde nos municípios de Bom Jardim, Nova de outros em anos anteriores, como sintomas de
Friburgo, São José do Vale do Rio Preto e Sumi- um desastre anunciado, como se pode ver no
douro, constatou que de 43 estabelecimentos de Quadro 1. A análise deste quadro permite cons-
saúde, 35 (81%) estavam localizados em áreas de tatar que se passou de desastres com centenas de
risco a ameaças naturais22. óbitos nos anos 1980, para desastres com deze-
Como uma fratura exposta da sociedade, o nas de óbitos a partir do século XXI, ou de uma
desastre revelou como a Região Serrana apre- situação de desastres intensivos para extensivos,
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Civil integravam o Sistema Nacional de Defesa podem contribuir para acelerar o desenvolvimen-
Civil, com outras 900 em fase de negociação17. to, proteger os investimentos e reduzir a pobre-
Embora a vulnerabilidade socioambiental na za1. Assim, estas políticas devem envolver desde
Região Serrana e no Brasil não possa ser tratada a preparação para as respostas aos desastres até
do mesmo modo que no caso do Haiti, há ele- a construção de sociedades e comunidades resili-
mentos estruturais de nossa realidade que não entes através dos processos de recuperação e re-
só contribuem para que os maiores impactos construção. Os exemplos do Haiti e da Região
recaiam sobre os grupos sociais mais vulnerá- Serrana não deixam dúvidas sobre a urgência
veis, principalmente os mais pobres, mas tam- desta agenda.
bém prolonguem suas consequências através de
um ciclo vicioso, com ainda baixa e fragmentada
capacidades de redução de riscos e construção da Considerações finais
resiliência.
Os riscos de desastres se constituem socialmente
Algumas lições dos exemplos do Haiti através de processos que se estruturam na dinâ-
e da Região Serrana mica do desenvolvimento econômico e social,
Ambos os exemplos permitem vislumbrar que bem como da proteção social e ambiental4. É so-
mantidas as condições do atual modelo de de- bre estes processos que devem se fundamentar
senvolvimento econômico e social de ambos os os conceitos e as práticas que constituem as ba-
países esboça-se um futuro de crescentes amea- ses para redução de riscos de desastres e da vulne-
ças e vulnerabilidades socioambientais resultando rabilidade socioambiental, bem como para a cons-
em desastres com potencial de afetar grandes con- trução da resiliência. A redução de riscos de de-
tingentes da população. Em escala global, não só sastres deve combinar um conjunto de políticas
as populações mais pobres nos países pobres são que previnam a ocorrência e limitem (mitigação
mais suscetíveis, como fica evidente no exemplo e preparação) as consequências (perdas e danos)
do Haiti, mas também as mais pobres mesmo oriundas dos desastres. Isto envolve um conjun-
nos países mais ricos, como ficou demonstrado to de estratégias para a construção da resiliência
no caso do Furacão Katrina que em 2005 afetou que tornem as sociedades e as comunidades ap-
Nova Orleans nos EUA. tas a desenvolverem as habilidades de responder
Desastres como os do Haiti e da Região Ser- adequadamente aos eventos, monitora-los, an-
rana no Brasil evidenciam que as condições la- tecipa-los e aprender com os mesmos, fortale-
tentes de vulnerabilidade socioambiental também cendo sua capacidade de adaptação após os de-
estão na raiz da baixa capacidade de governança sastres, mantendo um nível aceitável de funcio-
para estratégias de redução de riscos e construção namento e estrutura para restabelecer-se, recu-
da resiliência. Aproximadamente 90% dos paí- perar-se e reconstituir-se, não só retornando a
ses com forte capacidade de governança para normalidade de sua vida “cotidiana”, como tam-
desastres são os de alta renda. Em contraposi- bém em condições ainda mais sustentáveis e se-
ção, os países de baixa (como Haiti) e média- guras do que as anteriormente existentes2-4,28.
baixa (como Brasil) renda respondem por 95% Considerando a vulnerabilidade socioambi-
dos países com baixa capacidade de governança. ental como aspecto central para compreensão dos
O rápido crescimento econômico de muitos desastres, não se pode considerar que as capaci-
países, como o Brasil, tem contribuído para re- dades de redução de riscos e de resiliência podem
duzir a pobreza e melhorar as condições de vida ser descontextualizadas dos processos que as ge-
de milhões de pessoas. Paradoxalmente crescem, ram. A questão de desenvolver habilidades e for-
principalmente neste grupo de países, os riscos de talecer as capacidades para tornar-se resiliente
maiores impactos, incluindo os econômicos, pois envolve mudanças de padrões, desde os cogniti-
as capacidades de governança para a redução de vos (o modo como se interpreta o mundo ao
riscos e a resiliência não se desenvolvem com a redor e seus eventos) até as políticas e ações que
mesma rapidez que o crescimento econômico. Esta resultam nos macro-determinantes sociais, eco-
realidade também vem ocorrendo nos países de nômicos e ambientais que resultam não só nos
alta renda, como os da Organização para Coope- aspectos básicos do viver (acesso ao trabalho,
ração e Desenvolvimento Econômico (OCDE)11. renda, alimentação, educação, saúde, habitação,
Diante deste quadro, o tema das políticas de saneamento ambiental, entre outros), como tam-
redução de riscos de desastres vem recebendo gran- bém de onde se vive e trabalha (uso e ocupação
de atenção na agenda do desenvolvimento sus- do solo, de gestão ambiental e apropriação dos
tentável global, uma vez que se reconhece que recursos naturais, entre outros) articulados e in-
1585
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