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CIDADÃO DE BEM1
LIMA, Joaquim Pacheco de2
Faculdades Londrina (Brasil)
joaquimpiolima1@gmail.com
RESUMO
O mal, um empecimento da (na) sociedade, se expressa nos conflitos e embates do convívio entre
humanos. A maldade bem dita e bendita cresce, abunda, na proporção da desigualdade, fome e
miséria no ambiente da pandemia (Covid-19). O autor reflexiona sobre a abundância da maldade e a
natureza do mal. A abundância como ato de transbordar, fluir de dentro para fora, o vômito do mal
do mundo não inteligível para o mundo insensível – a sociedade. O mal ao ser abordado como Ser
(substância) e sua súbita elevação de poder tem como nexo a estratégia de hegemonia do domínio
político, crise da democracia e exploração econômica da burguesia – como a maldade “bem dita"
dos autoproclamados cidadãos de bem. As expressões fenomenológicas do mal na sociedade se
espairam em crises sanitárias, democrático-política, econômica e social, (neo)nazifascismo. Em
tempo de finais dos tempos a maldade bem dita, com os sortilégios do mal, torna-se “bendita”,
benção. Os vagabundos desvelam como cidadãos e estes como aqueles. O objetivo é de
compreender a ontologia do mal, a luz de Santo Agostinho, como candeeiro, e jogar esperança no
jogo das lutas de classes e de deuses alimentando o sonho e a utopia do bem viver de todos.
Palavra-chaves: Maldade. Cidadania. Desigualdade. Ontologia do mal. Filosofia da religião.
ABSTRACT
Evil is an embarrassment of (in) society and is expressed in the conflicts and clashes of coexistence
between humans. The well-spoken and blessed wickedness grows, abounds, in proportion to the
inequality, hunger and misery in the pandemic environment (Covid-19). The author reflects about
the abundance of wickedness and the nature of evil. Abundance as an act of overflowing, flowing
from the inside out, the vomiting of evil from the unintelligible world to the insensitive world –
society. When evil is approached as Being (substance) and its sudden rise in power, it is linked to
the strategy of hegemony of the political domain, crisis of democracy and economic exploitation of
the bourgeoisie – as well as the “well said” wickedness of self-proclaimed good citizens.
Phenomenological expressions of evil in society spill over into sanitary, democratic-political,
economic and social crises, (neo)nazi-fascism. In a time of the end of time, the well-said
wickedness , with evil spells, becomes “blessed”, a blessing. The vagabonds unveil as citizens and
these as those. The objective is to understand the ontology of evil, the light of Saint Augustine, as a
lampstand, and play hope in the game of class struggles and gods, feeding the dream and the utopia
of good live of everyone.
Keywords: Wickedness. Citizenship. Inequality. Ontology of evil. Philosophy of Religion
1. INTRODUÇÃO
1
Estudo apresentado no III Seminário Internacional sobre Democracia, Cidadania e Estado de Direito, Painel 06, em
22/09/2021, Universidade de Vigo (Espanha).
2
Docente da Escola de Direito da Faculdades Londrina, ministra Direito e Políticas Públicas e Filosofia do Direito,
mestre em Filosofia (UEL). Membro da Coordenação Regional da Rede da Comissão Brasileira de Justiça e Paz.
1
(Vasquez, 2011) nos caminhos da terra, do céu e do inferno. No Juízo Final – é possível inferir que
na seleção dos malditos e dos benditos (Mt 25,31-46) o vagabundo será cidadão e o cidadão será
vagabundo? Em tempo de finais dos tempos, tempo de fascismo fugicida, pandemia – Covid-19 – e,
do digito ergo sunt, da economia de Francisco (papa), para descontaminar o olhar no real é
necessário decifrar o enigma grego da Esfinge – “decifra-me ou te devoro!” (Hesíodo).
Inicialmente explicitando os termos, é preciso distinguir que maldade e mal não são
conceitos sinônimos. Maldade é um substantivo e mal um advérbio. A maldade pressupõe ação, in
verbis, um dano inesperado, enquanto o mal tem razão ontológico, isto é, dá identidade ao ser,
quando se torna substância. O antônimo de mal é o bem e o de mau (adjetivo) é o bom. A
abordagem filosófica metafísica, o mal é o não-ser diante do ser, a dualidade do ser, segundo
Abbagnano (2007, p.649). Não é a antidivindade com potência limitante, tem causa própria e
antitética à do bem. A maldade é a expressão da vontade malévola, ou nulidade absoluta, conforme
Hegel. Outra concepção, o mal como objeto negativo de desejo, ou dos juízos morais, na visão de
Kant, objeto da faculdade de repelir, um desvalor, juízo negativo de valor, o mal radical (Roza,
2015). A análise do mal deve levar-se em conta a dimensão do mal enquanto natureza e mal moral.
A maldade é a conexão do mal.
A pergunta atual de partida é a mesma que intrigava Santo Agostinho no século IV (d.C):
qual a essência do ser humano, criatura e imagem de Deus? Qual a origem da maldade humana? Por
que, para que, como o mal e a maldade abunda? Construir resposta a tais perguntas são peças para
decifração do enigma humano.
A sensação de que o mal prevalece sobre o bem é uma hipótese, imaginação ou realidade?
“O concreto é concreto por ser a síntese de múltiplas determinações, logo, unidade da diversidade”
(Marx, 1983, p.218). A manifestação da maldade nas suas determinações – enquanto sensações – é
expressão do concreto – das relações materiais de existência regulada pela desigualdade, dor,
sofrimento, negligência, genocida e morte. As determinações, enquanto essência destes fenômenos,
que se manifestam como maldade são (i) a conciliação, (ii) a naturalização e banalidade, (iii) a
desinformação obtusa, (iv) as violências simbólicas e híbridas.
A leitura teológica-pastoral, no meio das classes populares, frente as situações-problema de
maldade, dor, sofrimento e sua relação com Deus é de conciliação, afirma Splinter (2021). A
existência e persistência da maldade no mundo e a indagação sobre a ausência/presença da bondade
de Deus, alguns humanos produzem desculpas para conciliar a dúvida sobre a pergunta – Deus onde
estás? Eis algumas respostas:
1. “Deus mandou o mal para punir”o povo pecador;
2. “Deus mandou o mal para daí tirar o bem”;
3. “Deus não manda um problema que você não pode resolver”;
4. “Deus não cria o mal, mas o permite e dele tira algum bem”, considerando a tese de
Santo Agostinho (1995) e o disposto no Art. 311 do Catecismo Católico (2005), em
que trata sobre a providência e escândalo do mal.
O Papa Francisco (2015), na sua viagem à Filipinas, orientou os cristãos a responderem
com “o silêncio ou a palavra que nasce das lágrimas” quando indagado sobre “porque sofrem as
crianças, porque acontece isto ou aquilo de trágico na vida”. A questão de fundo é: qual a
concepção de Deus e o problema e a ontologia do mal?
A ideia de Deus na resposta 1 é de um ente punitivo, castigador; nas respostas 2 e 3 o
Onicriador é maldoso e experimentador das potencialidades de suas criaturas humanas, embora
saiba do resultado. A resposta 4, Agostinho, na obra Livre Arbítrio, no embate com os pelagianos e
maniqueis, aponta que o mal não é um ser, mas deficiência e privação do ser.
A Igreja Católica, no Catecismo (2005, n. 386-387), constata que o pecado (mal) está
presente na história do homem. A realidade do pecado só é compreensível com o conhecimento
oriundo de Deus. “Só no conhecimento do desígnio de Deus sobre o homem é que se compreende
que o pecado é um abuso da liberdade que Deus dá às pessoas criadas para que possam amá-Lo e
amarem-se mutuamente” (n.397).
A manifestação da maldade, parcialmente, tem a sua expressão na polarização da
sociedade brasileira entre antipetismo e petismo. Expressa a bipolaridade entre mal e bem,
vagabundos e cidadãos que ocultam as lutas de classes e o domínio global do rentismo capitalista,
neoliberal. Gerando fome, pobreza e morte. Entre setores as classes da elite e as mídias corporativas
dominantes há um movimento de conciliação de classe na construção de uma hegemonia de classe,
no contexto de conflitividade e periculosidade das classes populares.
A indagação corrente é, por que alguns setores da sociedade (em especial religiosos e
reacionários) rotulam e etiquetam “o outro” que pensa diferente, o opositor, como “agente” do mal?
Por que naturaliza a maldade? A tese é que os elementos estruturais da civilização capitalista, do
seu espírito (mentalidade coletiva e sistema ético), conforme o jurista Fábio Comparato (2013), se
configura no moralismo, como consciência moral dualista (bem-mal; vagabundo-cidadão; cristão-
não cristão; capitalismo-comunismo; verdade-mentira; macho-fêmea). A filosofia hegemônica,
enquanto concepção de mundo, dos que articulam os interesses das classes dirigentes e dominantes
na sociedade capitalista, tem como fundamento a naturalização das desigualdades. A maldade e o
mal se naturaliza e banaliza (Arendt, 1999). É o retorno ao estado de natureza, criticado pelos
filósofos contratualistas do século XVIII.
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Neste tempo de confinamento do afeto e do apego há um confinamento do bem. O mal
alvora em poder ou vontade de poder. Às margens dos rios da Babilônia, afirma o salmista no livro
bíblico, assentamos e choramos, na tristeza do israelita no cativeiro (586 a.C), no confinamento,
(Salmos 136).
Na atualidade cresce os indicadores de desemprego, fome e mortes com as políticas
neoliberais. Por que o mal aumenta? Por que o bem fragiliza? Paolo Crepet, filósofo e psicólogo
italiano, na obra Fragilitá del bene: sull’amore - Elogia dell’amicizia - Impara essere felice (2021)
(Fragilidade do bem: no amor. Elogio da amizade. Aprenda a ser feliz) destaca que há uma redução
do amor, da amizade que conduzirá a felicidade. Todavia, o mal aumenta e daí a densidade de
poder. Há um naufrágio emocional que fragiliza o bem.
A deformação da informação é uma estratégia, enquanto ato da maldade. A desinformação
proporciona o sabor do domínio, do ódio (Tiburi, 2020, p. 38). Corrói as instituições democráticas e
ameaça a vida humana. As redes sociais propagam discurso de ódio, teorias da conspiração,
manipulação de dados pessoais, fatos e acontecimentos. Os meios digitais influenciam nossos
olhares sobre a realidade e sobre as relações pessoais com amigos e familiares, bem como, nossas
tomadas de decisões. Entender a engrenagem da cultura digital é uma exigência crítica.
A repórter Patrícia de C. Mello, na obra A máquina do ódio (2020), em suas notas sobre
fake news e violência digital que sofreu pelas milicias digitais aborda a questão da intimidação aos
jornalistas independentes, casos no Brasil, EUA, India, Hungria, etc. Eugênio Bucci (2021), no
combate a desinformação, com a obra A superindústria do imaginário: como o capital transformou
o olhar em trabalho e se apropriou de tudo aponta que é visível, analisa a estratégia do capital, dos
conglomerados monopolistas globais que se ocupam da comunicação, da exploração do olhar e a
extração dos dados pessoais – e dos quais as mídias digitais são um combustível e uma extensão. A
comunicação assume a capacidade de fabricar valor em escala industrial. O corpo da mercadoria
perdeu valor para sua imagem. O desejo substitui a necessidade, enquanto interpelação ao sujeito. O
gozo suplantou o valor de uso ou troca da mercadoria. O neoliberalismo exacerba e difunde o
pragmatismo, tendência filosófica anglo-saxônica difundida por Richard Rorty, influenciado por C.
Peirce e J. Dewey. A política do ódio (denunciado por Mello, 2020), enquanto maldade, em um
ambiente patrocinada pela “indústria do imaginário” (Bucci, 2021) e a disseminação pela filosofia
do utilitarismo – como foco na felicidade individual, resulta no crescimento das representações
políticas dos grupos autoritários, neofascistas no diversos países da Europa, América e Ásia.
A maldade se manifesta como violências e guerras híbridas, parte da arte da guerra,
conforme as orientações táticas do teórico de guerra, Sun Tzu (1983). Os grupos autoritários, os
negacionista da ciência, conservadores convivem com uma ideologia beligerante, armamentista e
concebe dualisticamente o ser humano como mal por natureza. A arte da guerra é escolher os
pontos fracos e fortes do inimigo. Afirma Tzu: “Se o inimigo estiver descansando, fustigue-o; se
acampado silenciosamente, force-o a mover-se; se bem abastecido de provisões faça-o ficar
esfomeado. Apareça em pontos que o inimigo deva apressar-se a defender; marche rapidamente
para lugares onde não for esperado” (p.38). As violências nas suas múltiplas formas e as guerras
híbridas são elementos efetivos da citada arte da guerra. Regidos pelos instintos naturais, primitivos
do Uratha – o do fogo interno que anseia pelo submergir, matar e consumir, contrapostos pelos
contratualistas europeus (Hobbes, Locke e Rousseau) do século XVII e XVIII.
Enquanto habilidade dos generais, na promoção da maldade, que luta, conforme Zun Tzu
(1983, p.27), com a espada embainhada, emprega organicamente os tipos de soldados: o prudente, o
bravo, o cobiçoso e o burro. O mérito do primeiro, a coragem em ação do segundo, o tirador de
vantagens e por último o que burro que não teme a morte. Em vista de um princípio de prazer e não
de realidade (Marcuse), de conquista e conservação de poder (Maquiavel), articula os idiotas,
conforme a tipologia psicossocial da filósofa Tiburi (2020): (i) o idiota raiz (divide-se em idiota
ignorante orgulhoso; o idiota burro mesmo; e do conhecimento paranóico; (ii) o neoidiota ou
cananha em potencial (divide-se em idiota mercenário; e o idiota cool. Os fatos recentes no Brasil,
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em 2021, nas manifestações de ruas contra ministros e o STF, os depoimentos de negacionistas de
vacina contra a Covid-19, bem como os oportunistas em negociar “compra de vacinas” com o
governo, conforme denúncia e depoimentos na CPI da Covid-19 no Senado, apresentam os tipos de
idiotas e e soldados de guerra, conforme Tiburi e Sun Tzu.
Os variados tipos de manifestações da maldade expressa um cotidiano autoritário de dor e
sofrimento, racismo, desigualdade, exclusão, extermínio e violências. Os critérios de análise de
identificação das manifestações – ação, atitude, postura e comportamento - de malvadeza
correspondem aos efeitos, ou resultados adversos ao que é um bem, bom, bem-estar, bem-viver,
dignidade humana, direitos e garantias, fraternidade e solidariedade humana.
A a conciliação, a naturalização e banalidade, a desinformação obtusa, as violências
simbólicas e híbridas são os elementos fenomênicos da maldade. Há um treino do ódio na
microfísica do poder (Foucault) no cotidiano. Os aparelhos privados de hegemonia capitalista
dominante (Gramsci) exercem a função de educar e treinar para o vazio de diálogo, de pensamento.
A benção como ato de abençoar, benzer e invocar a graça divina que acarreta bem e
felicidade tem na repetição a sua legitimidade, eficácia, conservação e continuidade. O bendito é
quem sofreu o efeito da benção. É o sujeito que está feliz, fasto, afortunado, próspero, em pleno
gozo de seus direitos de pessoa humana. Há os benditos e os malditos com os mecanismos de
domínio, direção.
- Os benditos – filhos da luz.
- Os malditos – filhos das trevas.
- Bem dizer – dizer bem. Bem dizer o mal torna o mal um bem. Será? O bem é a essência
do ser humano, causa da felicidade, segundo Aristóteles em Política. Em Platão, a construção de
sua ontologia puramente idealista, concebe como ideia do Bem, no Livro VII da República, no
mundo inteligível. O mal em Platão não tem idealidade (não está no mundo inteligível) porque é
fruto da imoralidade humana, a sua realidade platônica está no mundo sensível. O mal necessita da
existência do bem. Na ontologia metafísica estoica o bem é o ser e o mal é o não-ser. Para a
ontologia agostiniana o mal só existe como a negação e a contradição daquilo que é o Bem e o Ser
em sentido metafísico. Daí o conceito de Deus, ser perfeito, eterno e imutável. Afirma Agostinho, o
mal é carência de Deus. Mas no cotidiano temos a percepção de que o mal bem dito torna-se bem.
O mal bem dito torna-se bendito? Os malditos tornam-se benditos?
Quem é o maldito? É aquele que é alvo de uma maldição; que exerce influência nefasta. É
em sua natureza perverso, cruel, excessivamente mau. A pergunta que não quer se calar: - qual a
razão da inversão, da ocultação do bem como mal e o mal como bem? Carência de luz, de Deus, de
razão e excesso de irracionalidade. A resposta angular é: a hegemonia do mal.
O bem torna-se invisível, sem acesso, visibilidade, sem ativação dos algoritmos por meio
das plataformas virtuais que estão sob o controle do mal. O mal torna dominante, governante e
dirigente na sociedade. Afirma Gramsci (2013; 5, p. 62), “a supremacia de um grupo social se
manifesta de dois modos, como “domínio” e como “direção intelectual e moral”. A análise
gramsciana da hegemonia concebe que “uma classe é dominante em dois modos, isto é, é
“dirigente” e “dominante”. É dirigente das classes aliadas, é dominante das classes adversárias que
almeja “liquidar”. O domínio do mal se expressa com o uso da força, violência e coerção. A direção
intelectual e moral do mal se expressa no consenso, consentimento e proliferação de ideias, valores,
comportamento e postura, naturalizando a maldade por meio dos aparelhos privados de hegemonia
– família, escola, igrejas, meios de comunicação social, redes sociais, direito, etc.
A abundância do mal é a manifestação da hegemonia, enquanto grupo social dominante e
dirigente. Continua a pergunta: como o mal prevalece sobre o bem?
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Nas relações de poder entre governantes e súditos há dois campos distintos: a moral e a
política. Na concepção maquiavélica da política fundamenta-se na conquista e na conservação do
poder. A preservação e continuidade do mal no poder necessita de legitimidade, justificação e
consentimento por meios de mecanismos: a) políticos; e b) religiosos.
Alguns exemplos de mecanismos políticos: fake news, deformação das informações,
desvalorização da democracia e do Estado Democrático de Direito, racismo, preconceito,
discriminação, negacionismo, misoginia, feminicídio, onicídio e outras centenas de formas.
No Brasil, em passado próximo, alguns mecanismos políticos utilizados pelo mal foram: (i)
impeachment da presidente Dilma (2016); (ii) destruição dos direitos e garantias trabalhistas e
previdenciárias; (iii) políticas ultraneoliberais com pobreza, desemprego e fome; (iv) lavajatismo;
(v) atitude de governo genocida no combate à Covid-19.
Quanto aos mecanismos religiosos para firmar a hegemonia do mal – no campo da
superestrutura – é necessário a benção e a invocação da graça divina que acarreta bem. O critério de
análise do mecanismo político e religioso são os efeitos: dor e sofrimento de pobres, seus
apoiadores e inocentes, e orgasmo do Diabo.
Na busca da conexão entre a maldade bendita e bem dita. A maldade é predicado do mal.
Numa abordagem religiosa, na Bíblia, o mal tem como expressão Satanás e o Diabo que não tem
nome próprio. Nas escrituras o Diabo é chamado por diversos nomes e títulos, que indicam de
alguma forma o seu caráter, ações e propósitos. A identidade do diabo na Bíblia é possível designar
por meio de seus nomes expostos. Os principais são:
• Acusador: ele dissemina falsos testemunhos contra o povo de Deus (Apocalipse 12,10).
• Adversário: ele é contrário a Deus (1 Pedro 5,8).
• Antiga serpente: ele foi o ser que enganou o homem no início da História (Apocalipse
12,9; 20,2).
• Assassino: procura a morte física e espiritual das pessoas (João 8,44).
• Belzebu: significa “senhor das moscas” (Mateus 12,24).
• Diabo: significa “acusador” (Lucas 8,12).
• Dragão: mais um indicativo de seu poder destrutivo (Apocalipse 12,3.7.9).
• Inimigo: indica sua oposição (Mateus 13,28).
• Leão que ruge: indica sua ambição destrutiva (1 Pedro 5,8).
• Maioral dos demônios: indica sua liderança entre os anjos caídos (Marcos 3,22).
• Maligno, do grego Belial: indica sua falta de valor (2 Coríntios 6,15).
• O deus deste século: preside sobre o estilo de vida pecaminoso da humanidade (2
Coríntios 4,4).
• O mal: indica toda a maldade de seu ser (João 17,15).
• O príncipe da potestade do ar: (Efésios 2,2).
• O príncipe deste mundo: indica sua influência sobre os governos mundiais (João 12,31).
• Pai da mentira: ele é o grande fomentador da falsidade e engano que há no mundo (João
8,44).
• Satanás: significa adversário (1 Timóteo 5,15). Este é o principal designativo para o
Diabo na Bíblia.
• Tentador: ele é aquele que incita as pessoas a pecar (1 Tessalonicenses 3,5).
Vale destaque as pesquisas sobre o tema: Frederico Dattler, Diabo e Demônios na Bíblia
(1997); o biblista Ildo Bohn Gass, Satanás e os demônios na Bíblia, (Cebi, 2013); a antropóloga,
Elaine Paigels, As Origens de Satanás: um estudo sobre o poder que as forças irracionais exercem
na sociedade moderna, 1996. Abordam sobre quem é Satanás e que mal representa para a
sociedade. A evolução da ideia de Satanás desde o Antigo Testamento e na nova Escritura.
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O fundamento do ódio ao Outro, ao diferente, expressão da maldade na sociedade
brasileira, tem como um dos lócus religioso, aparelho privado de hegemonia, setores do
pentecostalismo. A partir do momento de converter-se para a representação política. Segundo
Camilo Rocha (2020), uma das características do neopentecostalismo é a ênfase de “uma constante
guerra espiritual contra a figura do Diabo e seus representantes na Terra, da cultura à política.” Os
religiosos pentecostais, a partir da ética protestante e o espírito do capitalismo, da fugalidade
cimentam o desejo de prosperidade com a teologia da prosperidade. Simula a cura das dores e
sofrimentos dos des-graçados, vulneráveis fundados no dualismo platônico e neomaniqueu por meio
da beligerância entre o mal x o bem; o diabo x Deus. O diabo (Satanás) é concebido como ser
ontológico em disputa com Deus. A riqueza é benção e a pobreza maldição (ação da maldade). O
“neoidiota” mercenário ganha dinheiro dos “idiotas de raiz”, conforme a tipologia de idiotas,
descrita por Márcia Tiburi, em Como conversar com fascista (2020). Pois é, “homo homini lupus”,
de Hobbes, ou “lups est homo homini lupus” (o homem é um lobo do próprio homem).
A maldade humana, na dimensão fenomenológica religiosa, ressurge das profundezas do
Tormento, alimentando as ideias de estereótipo, identidade e ethos, conforme Boaventura e Freitas
(2019, p. 478) na polarização entre “cidadãos de bem” (ethos positivo) e “cidadão do mal” (ethos
negativo).
Eis alguns estereótipos dos religiosos autoproclamados “cidadãos de bem”, disponíveis nas
redes sociais:
“1. Que essas pessoas, são profundamente ignaras, simplórias, egoístas e muito
materialistas... toscas, enfim....
2. Que elas NUNCA LEEM NADA, não sabem pra que serve os livros (exceto a Bíblia,
livro comum a evangélicos e católicos) e que constroem suas crenças e opiniões com base
nos preconceitos e meias verdades que absorvem aqui e ali;
3. Que são extremamente crédulas, absorvendo qualquer lixo vomitado pelos meios de
comunicação tradicionais e, cada vez mais, pelo zap-zap. Nunca, em nenhum momento lhes
passa pela cabeça que esses meios de comunicação têm interesses próprios, muito menos
que essas pessoas são manipulados com extrema facilidade;
3. Que desconhecem completamente a complexidades dos grandes problemas políticos,
econômicos e sociais que qualquer país enfrenta;
4. Que a capacidade de análise dessas pessoas tem a profundidade de um prato raso. São
extremamente primárias. Como resultado são defensores das soluções mágicas, simplórias,
rápidas e indolores. O "bandido bom, é bandido morto" é a frase que resume tudo;
5. Que a visão de mundo vocalizada pelo Mito (seus problemas, soluções, etc) é IDENTICA
ao dessas pessoas. Por isso elas se identificam com ele. Por isso na cabeça dessa gente
"Bolsonaro tem razão" em quase tudo.”
O ponto de partida da presente reflexão foi - a maldade abunda. Por que? Diante do rugir e
clamor do povo (idem: “O Senhor disse: “Eu vi a opressão de meu povo no Egito, ouvi o grito de
aflição diante dos opressores e tomei conhecimento de seus sofrimentos” Êxodo, 3,7), a resposta
exigente é de radicalização (ir à raiz), transformação. “Os filósofos até agora se limitaram
a interpretar o mundo de diversas maneiras; mas o que importa é transformá-lo”, afirmou K.
Marx. Em tempo de comorbidades, crises e pandemia, a resposta urgente imediata são as vacinas.
Quais vacinas para combater o mal e a maldade? A vacina indicados pelos técnicos militantes da
política e dos movimentos sociais na história são: (i) antineoliberalismo e anticapitalismo; (ii) anti
ressentimento e regressão civilizatória; (iii) a utopia da fraternidade.
A abundância da maldade tem conexão com o neoliberalismo. Afirma o professor da UFF,
José R. Gregório (2019, p. 13), que o capitalismo em crise tem no neoliberalismo a “estratégia para
solucionar a crise [do capital] e tentar estabelecer o fim da luta de classes,” disseminando a ideia de
que a crise é de Estado. A queda da rentabilidade e acumulação do capital e a organização e
movimento do trabalho nos últimos decenais tem como contra-ataque dos capitalistas, rentista a
construção e fortalecimento do Estado-finança. Como efeito para as relações de trabalho o
“desemprego, desindustrialização, imigração, deslocalização de toda sorte de mudanças
tecnológicas e organizacionais” (op.cit. Harvey, 2012, p. 110). A maldade brilha com repressão
salarial, redução das prestações sociais (reformas trabalhista, previdenciárias, administrativas e
outras).
A vacina antineoliberalismo tem como material exigente o anticapitalismo cuja posologia é
de construção de novas relações de produção da vida material de existência, de desenvolvimento
intelectual e moral das pessoas. O aparelho estatal tornar-se um “Estado Ampliado” (Gramsci) com
sistema pactuado de controle das relações dos cidadãos-cidadão e cidadão-natureza.
O antivírus do ressentimento e regressão civilizatória tem sua demarcação na tese maldosa
“toma um copo de veneno e espera, passivamente, que o mundo reconheça e desagrave seu
sofrimento” (Prado, 2021). O ressentimento pode ser concebido como resistências de “busca de
Justiça contra os horrores infligidos a povos escravizados e perseguidos.” Concebido como
regressão civilizatória e como veículo de manipulação política das massas.
Prado (2021) aponta que os ressentidos não estão dispostos a perdoar, muito pelo
contrário, remoem a vingança em fantasias de violência, são o alvo perfeito para a propaganda
fascista, de redenção dos prejudicados. Advém, também, das memórias de agravos e sofrimento
de um povo, as vezes manipulado pela política oportunista, populista. Explora a pulsão de
destruição e morte pelos pretensos prejudicados. Aproveita das brechas na democracia, cultiva o
ódio a todos considerados inimigos. A deformação da informação, por meio de fake news,
diabolicamente difundido por Steve Bannon, criado pela Cambridge Analytica. Tinha como
finalidade satânica “explorar os temores mais profundos das pessoas e justificar os alvos dos
ressentidos.”
Os grupos de ressentidos no Brasil no últimos anos, afirma Prado, basicamente são três:
(a) parcela da classe trabalhadora meritória (do consumo idealizado e insatisfação controlada);
(b) classe média tradicional com apreço pela diferenciação e privilégios por ocupação e lugar
social. O racismo implícito torna-se explicito pela intolerância do convívio entre Casa
Grande&Senzala; (c) parcela dos evangélicos neopentecostais “(...) a pauta liberal os ofende e
desvaloriza os esforços pessoais”, a manipulação a boa fé visa fins econômicos e políticos. A
maldade abunda. É vomitada pela boca numa retórica plástica gritante de um religiosismo falso
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que expressa horror aos princípios dos direitos humanos, diversidade, democracia, igualdade.
Tornando-se vendedor falso de uma “empresa burocrática de salvação”.
Em tempo, vale destacar a importância do movimento religioso pentecostal. O teólogo
Faustino Teixeira (2021), em “Um olhar sobre os pentecostais”, destaca que é preciso uma olhar
não generalizante, com foco nos elementos da experiência espiritual dos fieis, mais do que dos
pastores. De respeito a singularidadeAponta estudos de vários pesquisadores (Regina Novaes;
Marcos Alvito; João Moreira Sales; Richard Shaull e Waldo César; Maria D. Machado; Cecília
Mariz; Pierre Sanches, Ronaldo de Almeida; Juliano Spyer). Conclui Faustino, “os estudos
sobre pentecostais e neopentecostais no Brasil não podem se furtar de lidar com toda a
complexidade que envolve a questão, com os distintos filamentos que provocam um olhar mais
aguçado e atento sobre um dos fenômenos mais significativos das últimas décadas
no Brasil e América Latina.
A utopia de uma sociedade fraterna, regulada com ênfase nos bens comuns, o bem viver de
todos, é a última vacina de combate ao mal figurado no fascismo. Como assombração de um
neoliberalismo que provoca fissura profunda na ordem social, o regime político mussoliniano,
autoritário, não são opostos, mas aprofunda e exacerba as tendências autoritárias existente no
capitalismo, conforme Gandesha (2020). A nova configuração do mal como (neo)fascismo furtivo
vem de dentro do capitalismo e da democracia liberal – de um liberalismo econômico que exclui o
liberalismo político.
O antidoto do mal bem dito, bendito, aplicado nos consultórios das classes dominantes,
dirigentes e governantes, tem como prescrição o combate ao neoliberalismo, o fascismo, o
ressentimento regressivo. O tratamento eficaz contra o mal e a maldade necessita da conjugação do
Estado ampliado e uma sociedade civil banhada numa cultura do Comum, conforme Dardot e Laval
(2017). O princípio do comum articula as lutas práticas no enfrentamento ao capitalismo e aponta
novas formas democráticas de governo coletivo dos recursos disponível.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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