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JOVENS POBRES: O MITO DA PERICULOSIDADE

Cecília M. B. Coimbra*
Maria Lívia do Nascimento**

Este capítulo visa colocar em análise diferentes características que


têm sido freqüentemente atribuídas à juventude, consideradas como se
fizessem parte de sua natureza, de modo que acabaram por se tomar
inquestionáveis. Para tanto, apontaremos algumas produções ocorridas
durante o século XX que têm caracterizado o jovem pobre como
perigoso e mesmo como inumano. A seguir, discutiremos alguns efeitos
forjados hoje em nosso mundo globalizado pelas práticas que têm
associado periculosidade, criminalidade e a condição de não-
humanidade à situação de pobreza. Alguns desses efeitos podem ser
expressos, por exemplo, pelos extermínios ocorridos cotidianamente
contra a juventude pobre, pelo significativo aumento de jovens
cumprindo medidas de reclusão, entre outros aspectos que serão aqui
assinalados. Finalizaremos citando uma pesquisa que realizamos por
meio de levantamentos feitos em processos vinculados ao antigo Juizado
de Menores, hoje Juizado da Infância e da Juventude, na qual percebemos
como os diferentes profissionais presentes nesse estabelecimento têm
muitas vezes fortalecido com suas práticas um determinado modo de
ser e de existir para aqueles que procuram esse órgão.
Majoritariamente, na sociedade capitalista, o jovem tem sido
enquadrado na categoria- de ser em formação, em crescimento, em
desenvolvimento. Tal período da vida, considerado de transição,

* Historiadora, psicóloga, doutora pela USP, professora da UFF, ligada à Pós-Graduação


de Psicologia e ao Programa de Intervenção Voltado às Engrenagens e Territórios de
Exclusão Social (Pivetes). Foi fundadora e é vice-presidente do Grupo Tortura Nunca
Mais/RJ.
** Psicóloga, doutora pela PUC-SP, professora do Departamento de Psicologia da
UFF, atuando no Mestrado Estudos da Subjetividade e no Laboratório de
Subjetividade e Política (LASP).
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carrega certas marcas que têm sido afirmadas como elementos de sua notarmos que, nesse mesmo período, ocorrem, também na Europa,
natureza. Algumas práticas, baseadas nos conhecimentos movimentos que propugnam e influenciam as propostas de abolição
hegemónicos da Medicina e da Biologia entre outros, têm afirmado, da escravatura negra nas Américas. Ou seja: ao mesmo tempo em que
por exemplo, que determinadas mudanças hormonais, glandulares e ..<!_esponta a figura do trabalhador livre - segundo os mteresses _:~
econõmicos vinculados ao cap1tâhsmo liberal da época-, produz-se
físicas, típicas dessa fase, são responsáveis por certas características
psicológico-existenciais próprias da juventude. Descrevem, assim, as
. ~-=~--------~,~- . . --~--------~~
uma essencia para esse mesmo trabalhador. Definindo-se formas
diferentes formas de estar no mundo como manifestações dessas corisidêrâãascéírretâs "évefdãdeifãs"oe-sêr'-éde existir, forjam-se
características, percebidas como essência da sua condição. Dessa subjetividades sobre a pobreza; diz-se o que ela é.
maneira, "qualidades" e ,cdefeitos,, considerá.dos típicós do j<?Verri, é:óino Segundo a lógica do capitalismo liberal, os trabalhadores livres
entusiasmo, vigor, impulsividade, rebeldia, agressividade, alegria, têm liberdade para oferecer e vender sua força de trabalho no mercado,
introspecção, timidez, passam a ser sinônimos de uma natureza jovial. desde que se mantenham no seu devido lugar, desde que respeitem as
Por que tal forma de caracterizar a juventude tem sido aplicada regras impostas por uma sociedade de classes. A partir de princípios
apenas a alguns segmentos sociais? Por que o jovem pobre encontra-. defendidos por uma elite que ascende ao poder, essa sociedade estende
se excluído desse quadro? Que outras articulações foram sendo para todos, como ditames universais, as suas palavras de ordem:
produzidas e fortalecidas, ao longo do século XX, para a juventude liberdade, igualdade e fraternidade.
pobre? Entendemos - assim como a p o n t o ~ que a formação da
riqueza,_a acumulação do capital, produz, também, o seu contrário:
Produzindo dispositivos que unem pobreza e periculosidade1 a miséria. Pela ótica e "ética" do capitalismo, a miséria passa a ser
· natllralmente percebida como advinda da ociosidade, da indolência e
c::f;~ (1986) assinalou que, a partir da emergência do dos vícios inerentes aos pobres. Esses princípios burgueses, portanto,
capitalismo industrial e do que chamou "sociedade disciplinar'; as ·não podem ser estendidos a todos e caracterizados como universais,
~
elites passaram a preocupar-se não somente com asf
1n rações pois, numa sociedade onde a liberdade é uma quimera, a desigualdade
cometidas pelo suj;it<?_, mas também com aquelas gue podetiam vir Ê;,,._ · e a competitividade são as regras do bom-viver, e uma existência livre,
~fêcer. Assim, o controle não recaía somente sobre o que se era, igualitária e fraterna não tem lugar.
mas tamoém sobre o que se poderia vir a ser, sobre as virtualidades. Ainda no século XIX, na Europa, pari passu às teorias racistas e ao
Em nosso país, que sofre uma herança de mais de trezentos anos movimento éíigênico, servindo-lhes de base, temos a ol>ra d ~
de escravidão, o controle das virtualidades exercerá um papel o 'jfratado das degenerescências, ~m que aparece o termo ' ~
fundamental na constituição de nossas subjeti · des sobre a pobreza. perlgo"sas': definido da seguinte maneira:
Para tanto, muito contribuíram algum s~_ori~ como as racistas
e eugénicas-, que emergiram no século :-OaEuropa, condenando No seio dessa sociedade tão civilizada existem "verdadeiras variedades"
ys ~turas raciais e as caracterizando como indesejáveis, produtoras (... ) que não possuem nepi a inteligência do dever, nem o sentimento
de enfermidades, de doenças físicas e morais (imbecilidades, idiotias, da moralidade dos atos, e cujo espírito não é suscetível de ser esclarecido
ou mesmo consolado por qualquer idéia de ordem religiosa. Qualquer
deficiências em geral, indolência, entre outras). É interessante
uma destas variedades foi designada sob o justo título de classes
perigosas (... ) constituindo para a sociedade um estado de perigo
1 Algumas análises apresentadas neste item podem ser encontradas em Coimbra permanente (ap. LoBo, 1997, p. 55).
(2001).
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Vários outros autores tentaram contribuir na busca de bases "purificação" são comuns em tratados de Medicina, Psiquiatria,
científicas para essas teorias. Já desde o início do século XIX, Antropologia e Direito do final'do século XIX e do injciodo século •-.
popularizava-se entre os cientistas a antropometria, medição de ossos, XX que-apregoam, seguindo ;;;;Odeio da e_ggenia, a esterili~~ção-d;;; ..
crânios e cérebros que, por meio de comparnções, pretendia : chamados degenerados como profilaxia para os males sociais.
,--SJllll-Jlrovar a inferioridad_e de deteiminado_s_segmentos sociais. · ~- Renato Kehl, médico ligado ao movimento eugênico no Brasil,
Ficaram famosas, inclusive entre os educadores da época, as teses de no início do século XX, defende a esterilização
Paul Broca 1824-1880) e Cesare Lombroso (1835-1909).Este último,
,,__.......___________ '-"~•··--·--•''~ - dos parasitas, indigentes, criminosos, doentes que nada fazem, que
com su Antro olo ia Crimina defendeu ser possível distinguir, por
vegetam nas prisões, hospitais, asilos; dos que perambulam pelas ruas
intermédio de certas caractenst_icas anatômicas, os criminosos ·n'atOs
vivendo da caridade pública, dos amorais, dos loucos que.enchem os
eos perigosos socí".;-~~Ateoria das disposiçõ-es inatas para a hospitais; da mole_de gente absolutamente inútil que vive do jogo, do
' criminalidade, defendida por Lombroso, ainda tem muitos defensores vício, da libertinagem, do roubo e das trapaças( ... ) (ap. Loso, 1997,
entre nós (WALDHELM,1998). Durante o período da d~!!!il-,-' p.147-148).
em nosso país, em 1974, por exemplo, em duas cid:ades-satélite de
Brasília, Ceilândia e Taguatinga, por "ordens superiores", em duas Ou seja, deve ser esterilizada toda a população pobre brasileira
pré-escolas públicas, crianças - em sua maioria filhos de imigrantes que não esteja inserida no mercado de trabalho capitalista, todos
nordestinos- foram colocadas em fila para terem seus crânios e faces aqueles que não são corpos úteis e dóceis para a produção.
medidos. Posteriormente, os dados foram enviados-à,fireção, e Coroando e seguindo as pegadas de todas essas teorias,
professores dos referidos estabelecimentos elaboraram laudos que c1~contramos, no Brasil, ainda no mesmo período, olmovimento
descreviam as características emocionais e intelectuais dessas crianças. higienista ue, extrapolando o meio médico, penetra em toda a
Afora tais "devaneios cientificistas,,, temos definições mais socieda brasileira, aliando-se a especialistas como p<eda_gogo.s,.
grosseiras que, cotidianamente, afirmam a existência de "bandidos arqui_tetos, urbanistas e juristas. Tal movimento, formado por muitos
de nascença, os que já nasceram para o crime e vão praticá-lo de psiquiatras da elite brasileira e expoentes da ciência à época, como
qualquer maneira" (BENEVIDES, 1983, p. 56). Para o delegado paulista Franco da Rocha, Nina Ribeiro, Sílvio Romero e Henrique Roxo,
Sérgio Paranhos Fleury- conhecido por sua participação em torturas atingiu seu apogeu nos anos 1920, quando foi criada por Gustavo
a presos políticos durante a ditadura - "bandido era visto como um lliedel a Liga Brasileira de Higiene Mental. Suas bases estão nas teorias
fenômeno da natureza». Dizia ele: racistas, no darwinismo social e na eugenia, pregando também o
aperfeiçoamento da raça e se colocando abertamente contra negros e '
Você cria cachorro? Numa ninhada de cachorro vai ter sempre o mestiços, a maior parte_ da população pobre brasileira.
cachorrinho que é mau-caráter, que é briguento e vai ter outro que se
Esta elite científica estava convencida de sua "missão patriótica"
porta bem. O marginal é aquele cachorrinho que é mau-caráter,
indisciplinado, que não adianta educar (ap. BENEVIDES,1983, p. 57). na construção de uma "nação moderna'~ Suas propostas pautavam-se
por medidas que deveriam promover o "saneamento moral" do país.
Essas teorias racistas e eugênicas foram realimentadas pela obra A "degradação moral" era especialmente associada à pobreza e
de(charles D~Gi origem das esp@Conceitos como "prole malsã'; percebida como uma epidemia que se deveria tentar evitar. Para erigir
"herança degenera~iva,,, "degenerescência da espécie,,, "taras uma nação, os higienistas afirmavam que toda a sociedade deveria
hereditárias,: "inferiorização da prole,', "procriação defeituosa,,, "raça participar dessa "cruzada saneadora e civilizatória,, contra o mal que
pura': "embranquecimento': "aperfeiçoamento da espécie hum~na", se alojava no seiodap~za. ·· · ·
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Esse movimento imiscuiu-se nos mais diferentes setores da:: pud~rium compor as "classes perigosas": crianças e jovens "em perigo>:
sociedade, redefinindo os papéis que deveriam desempenhar em um , . Qll~ deveriam ter suas yirtualidades sob controle permanente.
regime capitalista a família, a criança, a mulher, a cidade, as elites e os.: · 'Iodas essas teori~s estabelecem/fortalecem a relaçã;;--entre
segmentos pobres. VR1llngcm/ociosidade/indolência e pobreza, bem como entre pobreza
A Medicina passou a ordenar o modelo ideal de família nuclear (1 pcriculosidade/violência/criminalidade: Mesmo autores mais
burguesa. Detentores da ciência, os médicos tomaram para si a tutela tril kos, ao longo dos anos, têm caído na armadilha de mecanicamente
das famílias, indicando e orieutaudo como todos deveriam Vincular pobreza e violência, .a pªrtir de. e~tudos baseados nas
comportar-se, morar, comer, dormir, trabalhar, viver e morrer. li!illdições estruturais da divisão da sociedade em classes sociais e no
O higienismo, aliado aos ideais eugênicos e à teoria da 111\tngonismo e na violência resultantes dessa divisão.
degenerescência de Morei, concebia que os vícios e as virti:ides eram, ' Não épor acaso que, da aliança entre médicos e i.!!r_istas da época,
em graude parte, originários dos ascendentes. Afirmava-se que as pessoas · Mll'HC, ení 1 ~ primeira lei brasileira específica para a infância e
advindas de "boas famílias" teriam naturalmente pendores para a ndolcs2êrienÇo primeiro Código de Menores. Data daí a utilização
virtude.Ao contrário, as que traziam "má herançi' -leia-se ''os pobres'' - do lermo "menor", aplicado não para designar menores de idade de
-, seriam portadoras de degenerescências. Dessa forma, justificava-se qunisquer classes sociais, mas apenas para diferenciar um determinado
uma série de medidas contra a pobreza, percebida e tratada como •~smento: o pobre. Essa marca, presente nas subjetividades do
brnsileiro, impõe-se até hoje, mesmo quando, em 1990, o Estatuto
.. possuidora de uma "moral duvidosa'' que setransmitiahereditaiíamente.
Rizzini (1997) discute o critério de distinção entre as categorias "pobr!'s_,
d11 Criança e do Adolescente (ECA) retira o conceito de "menor" de
icu texto legal. Infância e juventude, crianças e adolescentes são as
dignos'_' e ~'p~~res_'1fi2.~0_{1 ªsegundo uma escalãde moralidade, e-ãfhina '.
designações utilizadas em substituição à categoria "menor".
-qúe para cada uma seriam utilizadas estratégias diferentes. '
Aos "pobres dignos'; que trabalhavam, mantinham a "família '" . Essa J:!Odµ5~0 q_ejJJflnci~s ~ juye1Jt11d_e,s__cl~_s_ig11!1}0em se
expressado, ao longo de todo o século XX, através da reiterada prática
unida" e «observavam os costumes religiosos", era necessário que lhes '.
de internação das crianças e jovens pobres, em especial após o advento
fossem fortalecidos os valores morais, pois pertenciam a uma classe
do Juizado de Menores, em 1923, criado para solucionar o problema
"mais vulnerável aos vicios e às doenças''. Seus filhos deveriam ser ·
,_ln "infância e juventude desassistidas''. Tal política de internação se
afastados dos ambientes perniciosos, como as ruas.
fortaleceu, sobretudo, nos dois períodos ditatoriais brasileiros com a
Os pobres considerados ~~-~~~ por sua vez, por não c1'inção de órgãos como o Serviço de Assistência ao Menor (SAM),
pertencerem ao mundo do trabalho - uma das mais nobres virtudes Implantado em 1941 durante o Estado Novo, e a Fundação Nacional
enaltecidas pelo capitalismo - e viverem no ócio, eram portadores de do Bem0 Estar do Menor (Funabem), que surgiu em 1964 durante o
delinqüência, libertinos, maus pais e vadios. Representavam um período da ditadura militar. A época da vigência dos Códigos de
"perigo social" que deveria ser erradicado; dai a necessidade de medidas Menores, esses estabelecimeptos eram denominados "depósitos': e se
coercitivas também para essa parcela da população, considerada de diziam destinados ao "regime educativo", com a finalidade de
criminos.os em potencial. Assim, embora a parcela dos ccociosos" fosse 1
iprevenção ou preservação''. Em realidade, eram locais onde crianças
a mais visada por seu "potencial destruidor e contaminador'', e jovens pobres sofriam toda sorte de maus-tratos. Se trouxermos essa
a periculosidade também estava presente entre os "pobres dignos", pois análise para o presente, mesmo após o ECA, podemos dizer que a
por sua natureza- a pobreza-também corriam os riscos das doenças. prática da violência nos internatos não é uma característica do passado.
A partir desse mapeamento dos pobres, surgia uma grande Hoje, em pleno século XXI, tal situação de exclusão pouco mudou e
preocupação com a infância e a juventude que, num futuro próximo, o que vemos nesses estabelecimentos é um quadro de superlotação,
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de falta de equipamentos de educação, de torturas e de violações entra-se para a enorme legião dos "perigosos'; daqueles que são olhados
cotidianas. Tais circunstâncias, já muitas vezes denunciadas por : com desconfiança e, no mínimo, evitados e afastados, quando não
entidades de direitos humanos, aparecem quase que diariamente nas enclausurados e exterminados.
manchetes dos jornais. Em uma dessas reportagens, lemos: Se no capitalismo liberal os jovens pobres foram recolhidos em
espaços fechados para serem disciplinados e normatizados na
As duas principais regras que os adolescentes da Unidade de
Acolhimento Inicial da Febem, a "porta de entradà' da instituição, têm expectativa de que fossem transformados em cidadãos honestos,
de obedecer são: não falar e não se mexer. Eles passam o dia sentados. trabalhadores exemplares e bons pais de família, hoje no
Em razão da superlotação recorde destà semana, surgiu uma nova• : neoliberalismo eles não são wais neç~s_sário.s. aoJ.nercado, ton)i:Jram-
regra: os garotos têm que "dormir de lado" para que três usem o se supérfluos, suas vidas de nada valem - daí justificar-se o extermínio.
mesmo colchão (Folha deS.Paulo, 1 set. 2001,C8). Importa assinalar que, com o neoliberalismo, vem se nnplantando
\
um modelo de sociedade chamado por alguns de "sociedade de
Voltando ao século XX e à vigência dos Códigos de Menores, /
acumulação flexível de capital" (HARVEY, 1993), ou "sociedade do 1
percebemos nessa época uma visível preocupação com a disciplina ;
espetáculo" (DEBORD, 1997) e mesmo de "sociedade de controle" 1
das crianças pobres, com a necessidade de· colocar em ordem os
(DELEUZE, 1992), que vem se mesclando com o que Foucault (1986)
"desviados" ou aqueles que poderiam vir a sê-lo. Para eles, o espaço ,
jurídico prevê a reeducação, a internação e a preparação para o ·
denominou "sociedade disciplinar". De modo geral, essa "nova era"
caracteriza-se, em especial, na Europa, após a Segunda Guerra
trabalho. No conjunto dessas medidas, chamadas de proteção, o Estado
Mundial, pelas diferentes formas de controle ao ar livre que vêm
vai construindo um modelo do que diz ser assistência à pobreza. ·
substituindo as antigas disciplinas que operavam em sistemas fechados
Assim,
como família, escola, fábrica, hospital e prisão. Agora, na chamada
sob_ égide do juiz, os menores não eram "julgados': mas "tutelados"; pós-modernidade, o marketing, os meios de comunicação de massa
llãO :eram "condenados'; mas sim "protegidos" e não eram «presos': :- pnssaram a ser os principais instrumentos de controle social,
mas "internados'~ Visando assegurar sua assistência e proteção, o juiz·. especialmente através da produção de modos de ser, viver e existir. i
os encaminhava aos estabelecimentos (... ) onde deveriam ficar ·
Esse controle é "de curto prazo e de rotação rápida, mas também \
internados pelo tempo por ele determinado. A internação nestes
contínuo e ilimitado, ao passo que a disciplina era de longa duração, );
estabelecimentos, mais que a educação e recuperação dos menores, ·
, Infinita e descontínua" (DELEUZE, 1992, p. 220).
privava-os da liberdade, afastando-os do convívio das ruas, encaradas
como espaço pernicioso.( ... ) Outra preocupação que se fazia presente -Sobretudo nos países periféricos, como o Brasil, essas duas formas
naquela época, e que se verifica até os dias de hoje, era a tendência de se de funcionamento social coexistem. Para a pobreza parece haver um
oferecerem ofícios profissionalizantes em oficinas, que preparam para caminho já delineado; não é por acaso que se verifica o alto índice de
o trabalho, mas em funções socialmente desvalorizadas e de baixa · jovens pobres exterminados, "pretos e.pardos, situando-se entre 18 e
remuneração( ... ) (BuLCÃO, 2001, p. 60). 29 anos, semi-alfabetizados,e moradores de periferia" (SOARES, 1996,
Em nosso país, desde o início do século XX, diferentes dispositivos p. 232). Para os que conseguem sobreviver, estão previstos diferentes
tipos de endausuramento. Muitos jovens pobres maiores de 18 anos
sodais vêm produzindo subjetividades onde o "emprego fixo" e uma ·
"família organizadà'tornam-se padrões de reconhecimento, aceitação, estão _confinados nas prisões. Há também inúmeros casos de ''privação
legitimação social e direito à vida. Ao fugir a esses territórios modelares, :, de liberdade'; aplicada aos que contam entre 12 e 18 anos de idade.
Já para as crianças pobres, menores de 12 anos, restam os abrigos.
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Em nosso pais, a partir de meados dos anos 1980, com a gradativa Trabalhadores do social: fortalecendo e rompendo modelos
implantação de medidas neoliberais - onde a nova ordem mundial Desde 1995, um grupo de professores e alunos da graduação de
começa a aparecer com seus corolários de globalização do mercado, Psicologia e técnicos do Serviço de Psicologia Aplicada da Universidade
Estado mínimo, flexibilização cjo trabalho, desestatização da Pederal Fluminense vem desenvolvendo um trabalho de pesquisa e·
economia, competitividade, livre comércio e privatização-, assistimos extensão denominado, provocativamente, Pivetes (Programa de
a uma veemente produção de insegurança, medo, pânico articulados · Intervenção Voltado às Engrenagens e Territórios de Exclusão Social). 2
ao crescimento do desemprego, da exclusão, da pobreza e da miséria. Nesse programa, através de pesquisas no arquivo de processos do antigo
Nesse quadro terrível, os jovens pobres, quando escapam. do Juizado de Menores, atual Juizado da Infância e da Juventude, tem
extermínio, são os "excluídos por excelência': pois sequer conseguem sido submetida a uma análise a atuação de alguns profissionais que,
chegar ao mercado de trabalho formal. Sua atuação em redes ilegais no longo do século XX, acompanharam crianças, jovens e famílias
como o circuito do narcotráfico, do crime organizado, dos seqüestros, , que buscaram atendimento junto a esse estabelecimento.
.entre outros, vem sendo tecida como única forma de sobrevivência, Trabalhamos com três pesquisas, a partir de três momentos da
e se prolifera, cada vez mais, como prática de trabalho, à medida que , história da legislação brasileira para a infância e adolescência. Em
aumenta a apartação social. todas elas o foco de análise tem sido o de discutir algumas práticas/
discursos de especialistas da área que têm, de um modo geral,
Para esses "jovens': destinados de antemão a esse problema, fundidos , fortalecido os modelos dominantes de criança, jovem e familia,
com ele, o desastre é sem saída e sem limites (... ) Marginais pela sua ; produzindo muitas vezes a exclusão daqueles que neles não se
condição, geograficamente definidos antes mesmo de nascer, '.
enquadram.
reprovados de imediato, eles são os "excluídos" por excelência (... ) Por ,
acaso eles não moram naqueles lugares concebidos para se transformar e
Os períodos de estudo foram pesquisados concomitantemente.
em guetos? Guetos de trabalhadores, antigamente. Dos sem-trabalho, O primeiro (1936 a 1945) buscou pensar os efeitos do Código de
dos sem-projeto, hoje( ... ) Que podem eles esperar do futuro? Como Menores de 1927 num contexto de hegemonia do movimento
será a sua velhice, se chegarem até lá? (... ) Bloqueados numa segregação . higienista no Brasil e a atuação de um de seus principais agentes:
(... ) eles têm a indecência de não se integrar (FoRRESTER, 1997, p. 57-58). u comissário de vigilância. O segundo (1974 a 1983) percorreu o
período da ditadura militar no Brasil, a promulgação da Lei de
A exclusão e a alienação dos jovens pobres, pelo envolvimento 1979 sobre o "menor" e a prática do assistente social junto ao Juizado.
com a ilegalidade, têm produzido fortes marcas em suas existências: ; O terceiro {1985 a 1994) discutiu os novos movimentos sociais no
os que conseguem sobreviver aos extermínios, certamente não escapam Brasil, a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),
do recolhimento em internatos e prisões. Atnalmente, a maioria da cm 1990, e a atuação do psicólogo nas práticas do Juizado.
população carcerária dos presídios brasileiros é jovem. De acordo . A primeira apontou que o comissário de vigilância exercia, no
com dados do Ministério da Justiça, estima-se período estudado (1936-1945), atuação relevante junto ao Juizado.
Marcado pelas teorias higienistas, racistas e eugênicas, e por práticas
que os presos de 18 a 25 anos são cerca de 60% do total de presidiários
moralizadoras, influía diretamente nos destinos das familias pobres
(.,. ) Somados aos adolescentes internados em instituições de correção .
(como a Febem) ou.submetidos a outras punições previstas no Estatuto . ao diagnosticar os determinantes da ocorrência da doença, da miséria,
da Criança e do A~_Ôlescente, o contingente de jovens infratores no do abandono e da criminalidade que atingiam o chamado "menor".
país chega a 143 mil pessoas (O Globo, 2 set. 2001, p. 3).
2
Sobre o assunto, consultar Nascimento (2002).
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Esse diagnóstico definia com quem a criança deveria ficar, se o pátrio Aliadas à segurança do regime, ao aspecto filantrópico cientificista
poder deveria ser retirado, se a criança deveria ficar internada e sob a ,.. predominante na prática hegemónica do assistente social-, temos
ulgumas outras características, muito fortalecidas nos anos 1960 e 1970,
guarda do Estado. O comissário de vigilância é citado nos processos
,1ue impingiam uma outra "fisionomia" às ações desenvolvidas por
como um profissional incumbido de encargos similares aos que o
esse profissional no Juizado de Menores: o intimismo, o familiarismo ..
assistente social ou mesmo o psicólogo passaram a exercer no Juizado
e o psicologismo. De um modo geral, essas características, discutidas
posteriormente. Cabia-lhe a tarefa de produzir laudos e pareceres e · · por Coimbra (1995) ao ·analisar as práticas psi durante o período da
realizar visitas domiciliares para fundamentar as decisões do juiz. ditadura militar, atravessavam o cotidiano do assistente social, um dos
Havia uma preocupação em relação aos aspectos m.édicos e técnicos mais atuantes do Ju.izadojl~quela ép.oca. ~
psicológicos, bem como com a questão moral, através dos hábitós', da No que diz respeito à pesquisa realizada no período de 1985 a
,,._,
conduta, dos vícios e dos defeitos do "menor,, em questão, sendo J994/ foi constatado que, embora a atuação direta o ps1co ogo nao se
priorizada a investigação dos seus antecedentes morais e dos de suas ·n~e tão presente nos processos estudados, o discurso psi encontra-
familias. se disseminado- como nos anos 1970 e 1980 - nas falas dos demais
A análise do período seguinte (1974-1983) mostrou o assistente ' técnicos que atuavam no Juizado, sobretudo nas palavras dos
social atuando não só conforme o modelo higienista, que combinava assistentes sociais. Entendemos por discurso psi ma certa prática,
a caridade, a filantropia e o cientificismo, mas também segundo ninda hoje hegemônica, que reduz a su jetivi a e a uma dimensão
práticas em que outras "fisionomias" se faziam presentes. O modelo psicológica interiorizada, isofando-a de um contexto mais amp]_Q,_
que propugnava a salvação do país pela salvação da criança, já -- Observamos que,2_1cg.ç_Q}ogo tem sido sempre chamado a atuar
anteriormente utilizado pelo COilJÍSsário de vigilância, assumia outro nos casos considerados mais difíceis, em especial classificados como
"rosto"nos anos 1960 e 1970, com a vigência da Doutrina de Segurança <1tos infrac10na1s. Dessa maneira, a demanda endereçada ao psicólogo
solicita que ele exerça a função de um perito do individual, assumindo
Nacional e com o fortalecimento do tecnicismo. Insere-se aí,
um<:1; _ p.9_~tur~etensamente neutra 1 desvendando <<~rios_~_,
perfeitamente, o surgimento do Serviço Social no Brasil, na década de 1
(desej~~n e "verdades'' do sujeito.
1940> marcado pelo assistencialismo católico, pelo cienti:ficismo, mas
No espaço jurídico, a prática psicológica - enquanto técnica de
também pela missão de erigir uma nação moderna. Esse modelo de
exame, procedimento que resgata cientificamente o inquérito na
salvação da criança é, também, completamente incorporado pela
produção de uma verdade-, pela atuação do psicólogo ou do discurso
ditadura militar que se instaura no Brasil nos anos 1960 e 1970. psi, acaba por conferir uma "essência" às formas alternativas de
A Doutrina de Segurança Nacional' exerceu grande influência e convivência familiar, pois deslosa o foco.sk questõessociais para
penetron nos mais variados espaços, destacando o combate ao "inimigo aspecto.u,.uramente indiviã~ais e psicológico-existenciai~:·------.•
interno'; que poderia colocar em perigo a segurança do regime. Esses Até 1990, todos esses técnicos tinham suas atuações orientadas de
"inimigos'' não eram somente os que se opunham politicamente ao acordo com o Código de Menores de 1927 e em sua posterior
governo de força instalado, no Brasil, com o golpe militar de 1964: reformulação, ocorrida e1111979. Pautadas no princípio da "situação
eram também todos aqueles que não se ajustavam aos modelos, irregular", essas duas legislações seguiam uma lógica que colocava no
padrões e normas vigentes - em especial, os pobres. terreno da imoralidade, da anormalidade e mesmo da patologia os
modos de vida das famílias pobres, justificando assim a necessidade
3
de o Estado tomar para si a tarefa de proteger crianças e jovens cujas
Sobre o assunto e a importância da Escola Superior de Guerra (ESG) na elaboração
dessa doutrina, consultar Coimbra (2000) e Bazilio (1985). familias fossem classificadas de "irregulares". Os textos das duas leis
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defendiam a proposta de que existiam formas melhores e ideais • O compromisso de considerar o jovem na condição de sujeito de
consoante as quais deveriam os pobres educar, cuidar e proteger seus · direitos decorre de urna proposta de igualar juventudes até então tidas
filhos. Ao longo de todo o século XX, justificavam-se assim as propostas_ rnmo desiguais e mesmo possuidoras de essências diferentes.
de retirada do pátrio poder devido à condição de pobreza, incentivavam-se Entretanto, tal lógica é formulada a partir dos princípios científicos
as adoções de crianças pobres, internavam-se os abandonados, e se ._ que vêm historicamente caracterizando o jovem dentro de um modelo
propagavam outras práticas de exclusão. É interessante notar que o · dominante, que o qualifica como um ser em formação, em
princípio da "situação irregular" se constitui numa das principais bases , c1·cscimento, em desenvolvimento.
desses códigos, por influência direta do higienisrno, aliado às teorias ,
Nas palavras do próprio Estatuto, no arti_go 6-':
racistas, eugênicas, da degenerescência e da evolução das espécies, que
marcaram os momentos de promulgação dessas leis. Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que
O Estatuto da Criança e do Adolescente, nascido no Brasil no ela se dirige (... ) e a condição peculiar da criança e do adolescente como
bojo dos novos movimentos sociais, afirma a criança e o jovem de . pessoas em desenvolvimento.
qualquer segmento social corno sujeito de direitos, preconizando a,. Dessa forma, apesar do avanço que o ECA acarreta para a política
lógica da "proteção integral", retirando o princípio da "situação de proteção de crianças e jovens brasileiros, a lógica de igualar
irregular': desfazendo a separação entre "menor" e criança, e recusando juventudes tão desiguais em termos socioeconômicos, culturais e
a prática da internação corno primeiro e principal recurso das medidas . históricos integra-se aos princípios e modelos defendidos pelo
chamadas de assistência à infância e à adolescência. liberalismo. Ou seja: é urna tentativa de equiparar a valores burgueses
Em seu artigo 32 afirma o Estatuto: modos de vida que continuam desiguais e que tendem a se tornar, no
neoliberalismo, cada vez mais distantes entre si.
A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundament~is
inerentes à pessoa humana( ... ) assegurando-se-lhes, por lei ou por
outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar Algumas conclusões - a multiplicidade de um campo aberto
o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em _.
condições de liberdade e de dignidade. Talvez outros caminhos possam ser trilhados se nos detivermos
um pouco sobre a importância e a função que as práticas sociais têm
É inegável a importância trazida pelo ECA no que se refere ao tm nosso mundo, corno já foi assinalado por Foucault (1986).
reordenamento jurídico vinculado à área da infância e da juventude Opondo-se à linha de pensamento, ainda hoje dominante no
e à proteção dos direitos e garantias para esse segmento da população. ( lcidente, que entende objetos, saberes e sujeitos corno dotados de
É fundamental sua defesa no sentido de torná-lo urna realidade, pois uma essência, urna natureza que lhes seria própria, Foucault propõe
mais de dez anos após sua promulgação ainda são mantidas práticas o inverso: são as práticas sociais que forjam os diferentes objetos,
rnenoristas e atos de violência, de desrespeito e de abusos que fazem iuberes e sujeitos que estão no mundo. Com isto, podemos avaliar
parte do cotidiano dos estabelecimentos responsáveis pelas "medidas ~omo nossas práticas cotidia]J.as, por menores e pouco visíveis que se
socioeducativas"4 preconizadas na nova legislação. npresentern, constituem poderosos instrumentos de reprodução
,;/ou criação, produzindo os mais surpreendentes efeitos.

4 Segundo o ECA, as medidas socioeducativas podem ser de diferentes tipos, a saber: ► últimas devem ser cumpridas em estabelecimento próprio para adolescentes, em
advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, que se proponha oferecer educação escolar, profissionalização e atividade
liberdade assistida, regime de semiliberdade e privação de liberdade. As duas ► pedagógica.
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As formações profissionais em geral - não somente a psi - n~s Implicações, assinalando o que nos atravessa, nos constitui e nos
têm ensinado a caminhar sempre guiados por modelos que vao, IH'Oduz, e o que constituímos e produzimos com essas mesmas
indicando O que devemos fazer e como devemos fazer. Entretanto; pn~ticas, poderemos pensar, inventar e criar outras formas de atuar, de
M1~r profissional.
0
para-quê, o objetivo do que fazemos, nu~ca é mencion~do. A°;
contrário essas formações nos fazem acreditar na neutralidade ~ Especialmente nesses tempos neoliberais - onde a globalização e
objetividade de nossas atuações. Não percebemos como nossas prátic:a"; 1odos os seus corolários, mais do que uma versão do modo de produção
têm forjado/fortalecido, a todo momento, os modelos de bor_n c1dadao, Utpitalista atual, impõem uma forma eficaz de definir modelos de ser,
bom pai, bom marido, bom filho, bom alun~ etc:, a~e1tos com • tló estar e de existir num mundo dito flexível e pós-moderno, fundado
universais e verdadeiros, calcados em formulaçoes c1ent1ficas. , ~ohre graves desigualdades sociais .:..io
trabalho daqueles qu~ atuam
Por isso, entendemos ser importante a noção de análise de noss • nn 6rea da criança e da juventude pobres reveste-se de enorme
implicações, ferramenta teórico-metodológica empregada pela ª?ális importância. É necessário entender que os discursos/ações do capital
institucional francesa, que, em contraponto à posição neutro-pos1t1V1sta, = muitas vezes microscópicos, invisíveis e apresentados como
apresenta a figura do intelectual implicado, aquele que, além de analis , desinteressados e naturais - provocam poderosos efeitos: excluem,
seus pertencimentos e suas referências institucionais, coloca també , t;Nligmatizam e tentam destruir a pobreza, notadarnente sua juventude.
em debate O lugar de saber-poder que ocupa na divisão social do trab"".1. Tem-se que estar atento e perceber que, apesar das políticas oficiais
no mundo capitalista, analisando seu território não apenas no âmb1t; E' oficiosas, irrompem ainda, nos segmentos subalternos, e em especial

da intervenção que está realizando, mas levando em conta as relaçõr por ação de seus jovens, formas de resistências e lutas. Eles teimam
sociais em geral, o seu cotidiano, a sua vida, em suma: o lugar qu t m c~n:inuar existindo, apesar de tudo; suas resistências deflagram-
1

ocupa na história. Como afirma Lourau (1977, p. 88): NC cot1d1anamente, sendo muitas vezes percebidas como fragmentadas
, d ,
' lnrn os padrões reconhecidamente organizados, e até mesmo como
Estar implicado (realizar ou aceitar a análise de minhas implicações) , t:ondutas anti-sociais, delituosas e, por isso, "perigosas".
ao fim de tudo, admitir que eu sou objetivado por aquilo que pretend,
_ Por outro lado, muitos jovens através de diferentes ações vêm
objetivar: fenômenos, acontecimentos, grupos, idéias etc. Com o sab:
científico anulo o saber das mulheres, das crianças, dos loucos: illinnando outras formas de funcionamento e de organização, que
saber social, cada vez mais reprimido como culpado e inferior. lo,gcm às preestabelecidas. Essa juventude pobre e marginalizada cria
0
r 111venta outros mecanismos de sobrevivência e luta, resistindo às
Segundo esse autor, trata-se de encontrar formas de analis_ar noss · rxclusões e destruições que vivenciam diariamente em seu cotidiano
implicações para que, em cada situação, possamos nos situar n . r conseguindo, muitas vezes, escapar. ao destino traçado pela lógic~
relações de classe, nas redes de poder, em vez de nos fixarmos, no 110 capital e entendida como inexorável e imutável.
cristalizarmos em posições que chamamos científicas. Santos (1996, p. 261-262) afirma que nos"territórios dos pobres"
Se consideramos os objetos, sujeitos e saberes como produçõ.
"
11us zonas urbanas opacas", estão
,
históricas, datadas e advindas das práticas sociais; se aceitamos que
especialismos técnico-científicos que fortalecem a divisão social os e~paços do_ aproximativo e da criatividade, opostos às zonas
lummosas, espaços da exatidão. Os espaços inorgânicos é que são
trabalho no mundo capitalista cumprem, entre outras funções, a
abertos, e os espaços regulares são fechados, racionalizados e
produzir verdades reputadas absolutas e universais e a desqualificaçã
racionalizadores. Por serem <(diferentes", os pobres abrem um debate
de muitos outros saberes que se encontram no mundo; se entendemq novo, ~édito, às vezes silencioso, às vezes ruidoso (... ) É assim que eles
ser relevante em nossas práticas cotidianas a análise de noss -,- reavaliam a tecnoesfera e a psicoesfera, encontrando novos usos e
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JOVENS EM TEMPO REAL JOVENS POBRES: O MITO DA PERICULOSIDADE 37

finalidades para objetos e técnicas e também novas articulações práticas , HMtvEY, D. A condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1993.
e novas normas, na vida social e afetiva (... ) Essa busca de caminhos é, , Lüno, L. F. Os infames da História. A instituiçã_o das deficiências no Brasil. Tese de
também, visão iluminada do futuro e não apenas prisão em um: doutorado - Pontifícia Universidade Católica. Rio de Janeiro, 1997.
presente subalternizado pela lógica instrumental ou aprisionado num R. El Estado en el análisis institucional. ln: LouRAu, R.; LAPASSADE, G.
l,11UtlAU,

cotidiano vivido como preconceito. El análisis institucional. Madri: Campo Abierto, 1977.
/ ,, NASCIMENTO, M. L. PIVETES: a produção de infâncias desiguais. Rio de Janeiro/
Sem pretender racionalmente fazer revoluções, mudar o presente; ___Niterói: Oficina do Autor/Intertexto, 2002.
e preparar o futuro, muitos desses movimentos de resistência, serri Hll',ZINJ, I. O século perdido. Raízes históricas das politicas públicas para a infância
dúvida, produzem revoluções moleculares, forjam mud_a°'ças: 110 Brasil. Rio de Janeiro: Santa Úrsula/Amais, 199-7.. - ."
micropolíticas em seus atores e nos cenários onde atuam, e aponta~: SAN'J'Os, M. A natureza do espaço. Técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo:
para novos caminhos, criações, invenções. É verdade que foram ~:; Hucitec, 1996.
continuam a ser ignorados pela história oficial, pelos "ilustres''' L. E. et al. Violência e politica no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume
Sn/\RES,

contistas e intelectuais, pelos meios de comunicação. Apesar desse, Dumará/Iser, 1996.


competente apagamento oficial, vêm ocorrendo várias e diferenteS: W111.DHELM, M. C. V. Produção sociopolitica do corpo nos livros didáticos de Ciências
editados nas décadas dé 1960 a 1990. Dissertação de mestrado - Educação/
experiências empreendidas por jovens em seus cotidianos, qu ,
UFF. Niterói, 1998.
configuram práticas de resistência, expressas através da música, d :
outras artes, de microorganizações coletivas, de redes de solidariedade-.
O importante é percebê-las, fortalecê-las, e nos aliarmos a elas.

Bibliografia
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Novo Espaço,1985.
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