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Luciana Pires
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Ledoux, Michel H. (1991). Introdução à obra de Françoise Dolto, Editora Jorge Zahar, Rio de Janeiro,
pp 230.
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Barros, Manoel (2006) “Aula” In Memórias inventadas: a segunda infância, Editora Planeta do Brasil,
São Paulo.
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Para ler mais sobre a Maison Verte, remeto o leitor a dois textos de Daniela Teperman: 1) Teperman,
Daniela “Maison Verte: a atualidade de um dispositivo institucional voltado à primeira infância e aos
pais”, In Rabello, Silvana e Bialer, Marina (2016). Laço mãe-bebê: intervenções e cuidados, Editora
Primavera, São Paulo; e 2) o capitulo “Françoise Dolto e a Maison Verte” de seu livro Teperman, Daniela
(2014). Família, parentalidade e época – um estudo psicanalítico, Editora Escuta, São Paulo, pp 155- 163.
1
produto do interesse dos adultos. Essa sua condução, aliás, faz-se válida em
muitos dos campos de cuidado da infância, para além da psicanálise infantil.
II
III
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poltrona, desce ao chão e retorna engatinhando rápido e animadamente para
o sofá de onde partiu. Chegando ao sofá, se apoia no assento, levanta-se e
mais uma vez caminha em direção à poltrona.
Tudo isso pode parecer estranho. E nós, adultos, logo pensamos: como
são esquisitas essas crianças! Mas não nos esqueçamos que desde Freud o
infantil a todos habita. E não precisamos ir muito longe para lembrar como
nossa percepção de nós mesmos e de nossas capacidades e pensamentos é
contingencial ao momento em que vivemos. No campo do aprendizado escolar,
por exemplo, quando ainda cambaleamos na aquisição ou compreensão de um
conteúdo, repetimos o percurso original de aprendizado se queremos
reaplicá-lo ou ensiná-lo a outra pessoa. Ou ainda lembremos quantos
pensamentos são dependentes da companhia, ou quanta memória é
contingente a uma localização geográfica.4
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Muitos exemplos do enraizamento da memória no espaço se encontram no espetacular livro Memória
e sociedade: lembranças de velhos de Ecléa Bosi, pela Companhia das Letras, 1994. Acompanhemos uma
declaração da autora: “Eu aprecio muitíssimo esse conceito criado por Simone Weil para entendimento
da cultura: o enraizamento. Os deslocamentos constantes a que nos obriga a vida moderna não nos
permite um enraizamento num dado espaço ou numa comunidade, mas este continua sendo um direito
humano fundamental. Como dizia Simone Weil, o ser humano tem uma raiz por sua participação real
numa coletividade, que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro.
O desenraizamento a que nos obriga a vida moderna é uma condição desagregadora da memória. Um dos
mais cruéis exercícios da opressão na sociedade moderna (opressão de natureza econômica) é a
espoliação das lembranças. Eu penso que os urbanistas quando fazem projetos sobre as cidades,
deveriam escutar os velhos moradores e estarem abertos a sua memória, que é a memória de cada rua,
de cada bairro. Eles estariam recuperando a dimensão humana do espaço que é um problema político
dos mais urgentes. A sobrevida de um grupo se liga estreitamente a morfologia da cidade e essa ligação
se desarticula quando a especulação urbana causa um grau intolerável de desenraizamento. Há nos
habitantes do bairro o sentimento de pertencer a uma tradição, a uma maneira de ver que anima a vida
das ruas, das praças, dos mercados e das esquinas.” (“Memória: enraizar-se é um direito fundamental
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Somos sensibilizados assim para a extensão dos limites da percepção
de nosso corpo, que inclui na infância (e além dela) o corpo dos outros, dos
objetos e do ambiente ao redor. Em consonância, ao refletir sobre a anorexia
que pode acometer o bebê de colo quando o adulto cuidador se ausenta, Dolto
diz que não é do cuidador que o bebê sente falta, mas de si mesmo. Como
compreender essa colocação? O que a psicanalista está afirmando é que a
percepção de sua própria fome e capacidade de mamar, de sua boca e tubo
digestivo está intimamente ligada à apreensão do corpo do cuidador que o
segura no colo e dá de mamar, ao seu cheiro, ao batimento de seu coração, a
sua voz. E quando esse cuidador se ausenta o bebê já não é mais capaz de
reconhecer sua fome e suas proezas orais e digestivas.
do ser humano”, entrevista com Eclea Bosi feita por Mozahir Salomão Bruck In Revista Dispositiva –
revista do programa em comunicação social da faculdade de comunicação e artes da PUC Minas, volume
1, número 2, 2012.)
5
“Caso Agnes” no livro Dolto, F. (2007). A Imagem Inconsciente do Corpo, Editora Perspectiva, pp 52
4
Se essa visão se fazia profundamente necessária nos anos 70, 80,
época em que Dolto produziu sua obra, sabemos o quanto ela se faz novamente
necessária nos tempos atuais em que o humano parece se resumir a
mediadores químicos de ligações neuronais.
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Ou em outras traduções, no livro Imagem Inconsciente do Corpo, encontramos “mãeficando” e
“mãeficados”. Dolto define: “objetos “mãeficados”, isto é, (...)objetos que suscitam na criança por
associações de fantasmas a presença reasseguradora memorizada de sua mãe.” (pg 55)
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Ou qualquer outro cuidador primário, cuidador de referência nos primórdios da vida. Nas palavras de
Ledoux (1991), trata-se do “outro primordial”.
5
um “mamãezar” da cultura e da sociedade para a criança, o que é uma ação
simples, mas extremamente potente em seu efeito apaziguador de possíveis
sintomas da infância.
IV
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“Ao longo da evolução de um ser humano, a função simbólica, a castração e a imagem do corpo estão
estreitamente ligadas”, dizia Dolto (2007, pp. 65).
6
emocionais: inter-humanas, repetitivamente vividas através das sensações
erógenas.”9.
9
Apud Ledoux, Michel H (1991). Introdução à obra de Françoise Dolto, Editora Jorge Zahar, p 85.
7
O caso de Leon é um exemplo de um tratamento analítico no qual o
conceito de imagem inconsciente de corpo comparece como importante chave
de escuta analítica. Através desse trabalho, o paciente tem uma melhora
expressiva. A compreensão que Dolto teceu desse caso extraordinário se
pauta na ideia de que o paciente não experimentou suas costas como
integrante de seu corpo, já que esteve amarrado a uma cadeira por grande
parte da sua primeira infância. É dessa maneira que podemos dizer que sua
imagem inconsciente de corpo não tinha costas pois estas não puderam ser
experimentadas como modo de contato com o mundo, nem investidas no
encontro com outros.10
10
O caso clínico de Leon, presente no livro Imagem inconsciente do corpo, possui muitos outros detalhes
interessantíssimos sobre os quais não vamos nos demorar no presente texto, mas sugerimos fortemente
ao leitor curioso sua leitura completa.
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Não nos cabe aqui detalhá-las. Para quem se interessar sugiro a leitura do livro A imagem inconsciente
do corpo de Françoise Dolto.
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Na mesma linha, já preconizava Freud “os adultos... após uma longa prática, sabem como adiar seus
desejos até que eles possam realizar-se pelo caminho longo e indireto da alteração do mundo exterior”
(Sobre os sonhos, 1901, pp. 694)
8
separa-se do objeto parcial seio e do primeiro alimento lácteo [e] sua boca é
privada do mamilo que ela julgava seu”. 13 Foi então que Dolto interveio dizendo
algo como: “não se pode castrar oralmente aquele que ainda não tem boca 14”.
Com essa colocação, Dolto atentava para o fato de que alguém só pode se
separar daquilo que já tem, e que esse pacientinho ainda não tinha tido
suficientes experiências de proximidade oral para poder se desmamar de
modo enriquecedor15. Logo, no caminho agregador das castrações
simbolicogênicas, só nos separamos daquilo que já possuímos. Quando uma
criança deixa de mamar ao seio da mãe, o desmame não faz com que ela perca
a marca constitutiva dessa experiência, pois a vivência já fora internalizada.
E, além disso, a boca quando se desprende do seio pode ascender a outros
usos, tornando-se, por exemplo, falante.
Ademais, Dolto afirma que este sujeito adulto que sustenta a castração
da criança precisa estar ele mesmo castrado, ou seja, a castração precisa
incidir sobre ele também. É fundamental que a mesma lei que recai sobre a
criança recaia também sobre o cuidador que a sustenta. Reiterando a
necessidade de que o castrador seja castrado, ela nos previne contra o gozo
do castrador. Este seria o caso de um cuidador que, ao dizer o que a criança
pode ou não pode fazer, se vê onipotentemente gozando de uma posição de
mais poder que o faz esquecer de seus próprios limites, fragilidades e
limitações.
Se o adulto cuidador manda que uma criança não faça isso ou aquilo
porque entende que ela ainda não possui as habilidades para tanto, e,
desobedientemente, a criança faz exatamente aquilo que tinha sido proibido
e faz bem, Dolto aconselha que o adulto diga à criança: “eu te proibi pois
13
Nasio, J-D (1994). Introdução às Obras de Freud, Ferenczi, Groddeck, Klein, Winnicott, Dolto, Lacan.
Editora Zahar, Rio de Janeiro.
14
Notem que esta paciente “não tinha boca” assim como Leon “não tinha costas”, o que significa que
estes órgãos não tinham registro em suas imagens inconscientes de corpo.
15
Mesmo aqueles que não foram amamentados ao seio podem ter a experiência de fusionamento com o
cuidador-mamadeira que lhe fornece leite.
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achava que você não saberia fazer isso bem, mas me enganei e você estava
certa pois tinha mesmo condições de fazer direito”. Isso vale para subir no
telhado, andar de bicicleta ladeira abaixo e tantas outras aventuras nas quais
podemos imaginar uma criança se arriscando. Sei que essa direção do conselho
de Dolto produz muito embaraço nos pais, acostumados que estão a entender
que devem preservar sua autoridade custe o que custar.16
“Não entendo o que você quer dizer, mas tenho certeza que faz
sentido...” Assim Dolto aborda seus pacientes Dominique17, Leon18 e alguns
outros. Nesses casos, salta aos olhos o fato de que é essa intervenção que
produz o ponto de virada no trabalho com essas crianças psicóticas, mais do
que as eventuais interpretações. O que opera transformações psíquicas não é
a compreensão do sentido da fala, mas o reconhecimento de que há um sujeito
de sentido na fala. Correlatamente, numa entrevista concedida ao jornalista
televisivo francês Bernard Pivot em 198719, ela afirmou: “eu não sei o que o
bebê me diz, mas eu sei que ele diz...; eu tento entendê-lo e ele sabe que não
o entendo exatamente.”
Não se deve regrar por regrar, adverte Dolto. Regras em vão compõem
um cenário perversor do valor da lei e não o contrário. Mas não é só a mãe, o
pai, o tio, o avô ou qualquer adulto que cumpra a função de cuidador primário
que precisamos refrear para que não ganhe valor em cima da criança, para que
não goze da posição de desigualdade que a relação adulto-criança prescreve.
16
Para aprofundar esta discussão sugerimos a leitura do capítulo “A dinâmica das pulsões e as chamadas
reações de ciúme quando do nascimento de um irmão mais novo” no livro: Dolto, Françoise (1984). No
Jogo do Desejo – Ensaios Clinicos, Editora Zahar, São Paulo.
17
O Caso Dominique foi primeiramente publicado em 1971 e se trata das anotações do atendimento
efetuado por Dolto em 12 sessões de um adolescente psicótico.
Dolto, Françoise (2010). O caso Dominique, Editora Martins Fontes, São Paulo.
18
Dolto, Françoise (2007). A Imagem Inconsciente do Corpo, Editora Perspectiva, São Paulo, pp 240.
19
Dolto, F. (2003). Les grands entretiens de Bernard Pivot: Entrevista. Direção de Nicolas Ribowsky.
Produção Ina. Paris: Gallimard. 1 DVD (168 min.).
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O psicanalista também precisa cuidar para que a dignidade de sujeito da
criança esteja sempre no campo de suas intervenções.
20
Em 1939 publicou sua tese de medicina que foi em 1971 reeditada pela Editora Seuil sob o título de
“Psicanálise e Pediatria”.
Dolto, Françoise (1988). Pediatria e Psicanálise: as grandes noções de psicanálise; dezesseis
observações de crianças, Editora Guanabara, Rio de Janeiro.
21
Dolto, Françoise (2017). Seminário de Psicanálise de Crianças, Editora Martins Fontes, São Paulo.
22
Dolto, Françoise (2008). Quando os filhos precisam dos pais – Respostas a consultas de pais com
dificuldades na educação dos filhos, Editora Martins Fontes, São Paulo.
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