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UMA VISÃO

“PSICOPEDAGOGIA &PONTO
PSICANALÍTICA DO TRANSTORNO : PONTOS
DEDO VIST
VISTA
PSICOMOTRICIDADE
DÉFICITADE ATENÇÃO
DE INTERSECÇÃO ”
E HIPERATIVIDADE

“UMA VISÃO PSICANALÍTICA DO


TRANSTORNO DO DÉFICIT DE
TRANSTORNO
ATENÇÃO E HIPER ATIVID
HIPERA ADE”
TIVIDADE

Denise da Cruz Gouveia

Para abordar o Transtorno do Déficit de relata ele, encontrou a afirmação de que não se
Atenção e Hiperatividade que, hoje, tem se sabe em que ela consiste, nem onde ela se situa
difundido como o responsável por grande parte no cérebro.
das questões que as crianças apresentam e, Em contraposição a essa indefinição da
especialmente por seus problemas de apren- neurologia, Freud, em 1895, no “Projeto para uma
dizagem, vou fazer referência a um caso clínico psicologia científica” que, na tradução em
de uma criança que agora está com 8 anos. Este espanhol (“Proyecto para una psicologia para
menino, que estava em atendimento comigo há neurologos”) traz assinalado a quem se destina,
poucos meses, foi encaminhado pela escola para situa e define a atenção2. Situa-a naquilo que ele
uma avaliação desse transtorno com uma neuro- concebia então como eu e que está muito próximo
logista, que atendia outras crianças dessa mesma da concepção de sujeito psíquico de Lacan, ou
escola. seja, do sujeito dividido em inconsciente e cons-
Curiosamente, este menino, longe de ser ciente. Portanto, não se trata de um eu originário,
hiperativo, era extremamente passivo e foi sobre mas de um eu que se constitui e precisa de um
isso que fiz a minha primeira pergunta, quando tempo para isso. Isso quer dizer que a atenção
essa médica me ligou para confirmar o dia- não é algo que está dado desde sempre, mas é
gnóstico desse transtorno na criança. A resposta uma função que se estabelece no processo de cons-
foi que o déficit de atenção podia tanto provocar tituição psíquica. Por outro lado, Freud define a
um quadro de hiperatividade como de hipo- atenção como a função que permite estabelecer a
atividade, de onde se conclui que o fator central relação entre uma representação e uma perce-
nesse transtorno é o déficit de atenção. pção. Ainda segundo Freud, a atenção corres-
É, pois, sobre a questão da atenção que me ponde a um estado de expectativa.
deterei, de forma particular, contrapondo as Mais do que definir e situar a atenção, Freud
concepções que dela têm a neurologia e a estabelece também a sua origem, na vivência de
psicanálise, respectivamente. satisfação primária e, mais precisamente, na
Recentemente, li a transcrição de um semi- alucinação primária. Vale a pena explicar cada
nário ministrado por Alfredo Jerusalinsky1, em um desses termos para esclarecer o caminho que
junho deste ano, onde ele faz um resumo de faço para dar maior precisão ao conceito psica-
suas buscas, nas pesquisas neurológicas sobre nalítico de atenção, no processo de constituição
a atenção. Ao invés de encontrar uma definição, psíquica. Chama-se vivência de satisfação a um

Denise da Cruz Gouveia - Psicopedagoga e Psicanalista, Correspondência


Mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Rua Canário, 917 - Apto. 102 - São Paulo - SP - Brasil
Humano pelo Instituto de Psicologia da USP, Professora 04521-004 - Tel: (11) 3865-2370 - Fax: (11) 3865-2370
de cursos de Psicopedagogia. E-mail: dcgouveia@uol.com.br

Rev. Psicopedagogia 2004; 21(64): 69-71

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dos pólos do conjunto de registros das primeiras orienta os investimentos no mundo externo. Não
experiências do bebê (o outro pólo corresponde se pode perder de vista isto, quando nos vemos
ao conjunto de registros da vivência de dor). diante de crianças das quais a escola ou os pais
Desse conjunto de registros, que advém da se queixam de falta de atenção.
repetição da experiência de satisfação, onde a O menino ao qual já me referi, aos sete anos
criança é atendida nas suas necessidades pela e meio, usava chupeta e paninho, mesmo durante
figura materna, os principais são a imagem do o dia. Winnicott3 destacou a importância desses
objeto satisfatório e o estado de desejo que busca objetos transicionais, na constituição psíquica da
reviver a experiência de satisfação. A alucinação criança. Enquanto objetos substitutos do seio ou
primária, por sua vez, é uma falsa percepção. da mãe, eles têm a função de representá-los
Explicando melhor: no estado de desejo, a simbolicamente, inaugurando o campo da
imagem do objeto satisfatório é reanimada brincadeira simbólica, da fantasia e da
resultando em algo semelhante à percepção, ou criatividade. Por outro lado, enquanto objetos da
seja, numa alucinação. Esta satisfação através da realidade, distintos do seio e da mãe, eles têm a
alucinação tem vida curta, na medida em que não função de abrir o campo da percepção e da
leva à satisfação real. experiência no mundo externo. É o próprio
No entanto, é a alucinação primária que se Winnicott, porém, que adverte sobre a possi-
desdobra na representação, na percepção e na bilidade e o perigo desses objetos transicionais
própria atenção, nos primórdios da constituição se tornarem objetos fetiches. Explicando melhor,
do sujeito psíquico ou da organização psíquica. a chupeta ou o paninho podem assumir a função
A imagem do objeto satisfatório alucinada, ou seja, de obturar a falta do seio ou da mãe, na medida
a falsa percepção, dá origem à representação de em que estão demasiadamente colados a eles,
desejo, o germe das representações incons- estancando o processo de constituição psíquica.
cientes. Essa alucinação, por outro lado, na A persistência no uso desses objetos, nessa crian-
medida em que se torna representação, libera o ça de sete anos e meio, explica tanto o caráter
campo da percepção, dando origem também à empobrecido de sua brincadeira, que se resumia
percepção real, voltada para o mundo externo, o à manipulação de brinquedos, como o seu
germe das representações conscientes. Final- alheamento ao mundo externo e a atenção
mente, o investimento que, na alucinação, faz “deficitária” que dava aos seus objetos.
reviver a imagem do objeto satisfatório, se É preciso fazer funcionar esse movimento
transforma em atenção psíquica em busca do articulatório entre a representação de desejo, a
objeto satisfatório no mundo exterior, ou seja, na atenção e a percepção para entender as conse-
percepção real. qüências de um “transtorno” nesse processo de
Através desse detalhamento é possível constituição psíquica. A primeira condição para
entender melhor a afirmação sobre a atenção como que essa organização psíquica inicial se
um estado de expectativa, pois quando se dirige complete, culminando na divisão entre incons-
a atenção para o mundo externo, ao menos inicial- ciente e consciente, é que a partir da represen-
mente, existe a expectativa de encontrar o objeto tação de desejo se constitua uma cadeia de repre-
satisfatório. E, na medida em que todas as repre- sentações. É a diferenciação entre percepção e
sentações guardam uma relação com essa pri- representação que permite isso, na medida em
meira representação, a atenção conserva esse que a semelhança entre a representação de
caráter. Entende-se perfeitamente quando se diz desejo e a percepção do objeto satisfatório no
que só damos atenção àquilo que nos interessa. mundo exterior é sempre parcial, fazendo com
Na perspectiva psicanalítica, portanto, não é que esse movimento se repita mais uma vez e
possível pensar a atenção de forma autônoma. É mais uma vez. A repetição desse movimento
preciso pensá-la nessa articulação, onde o desejo produz a extensão da cadeia representativa com

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a interposição de representações substitutivas portanto, a fantasia, com a divisão psíquica em


entre a representação de desejo e a percepção. inconsciente e consciente regularão também o
Essa cadeia de representações substitutivas, mundo dos objetos e das palavras, tomados na
portanto, diz respeito a uma série de objetos do sua objetividade, ou seja, esvaziados de seu
mundo externo, que são tomados como símbolos conteúdo de desejo.
do desejo, ou seja, que se relacionam entre si, O estancamento na constituição psíquica
porque, embora distintos, guardam uma relação desse menino de sete anos e meio, provocado
de semelhança com o objeto satisfatório. pela obturação da falta que o uso persistente da
Essa extensão da cadeia representativa, chupeta e do paninho denotava, explica também
enquanto primeira condição da constituição do os problemas que ele apresentava no seu
sujeito psíquico dividido, é também a primeira processo de aprendizagem, comprometido
condição da aprendizagem concebida como sobretudo pelas falhas no raciocínio lógico e na
reconstrução dos conhecimentos socialmente compreensão e expressão da linguagem oral e
compartilhados, na medida em que aí se forja a escrita.
função significante ou de significação necessária No entanto, essa médica neurologista atribuía
à compreensão desses conhecimentos transmi- todos os seus problemas escolares e o seu atraso
tidos por palavras e por imagens. Essa extensão de desenvolvimento ao déficit de atenção.
da cadeia representativa é ainda a primeira Podemos concluir, portanto, que mesmo sem
condição para que o pensamento lógico se esta- saber no que consiste a atenção e onde ela se
beleça, pois como apontamos acima é aí que se situa no cérebro, não podendo o seu déficit ser
constróem as equivalências simbólicas, as séries detectado a não ser através de manifestações
hierárquicas e as relações de semelhança e fenomênicas, a neurologia a reveste de autonomia
diferença. Embora essas relações lógicas, e a erige como causa das mais diversas pertur-
inicialmente, regulem apenas as representações bações, esquecendo do lugar do sujeito para fazer
substitutivas da representação de desejo e, funcionar a função.

REFERÊNCIAS psicologia científica”, in Edição Standard


1. Jerusalinsky A. “Diagnóstico de déficit Brasileira das Obras Psicológicas Com-
atencional, qué puede decir el Psico- pletas de Freud. Rio de Janeiro: Imago;
análisis?”. Texto inédito. Buenos Aires; 1987.
junho de 2003. 3. Winnicott DW. “O brincar e a realidade”. Rio
2. Freud S. (1895). “Projeto para uma de Janeiro: Imago; 1975.

Trabalho elaborado por esta autora em seu consultório Artigo recebido: 29/10/2003
clínico. Aprovado: 23/12/2003

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