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ISSN 1516-9162

REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE


n. 40, jan./jun. 2011

O INFANTIL NA PSICANÁLISE

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE


Porto Alegre
REVISTA DA ASSOCIAÇÃO ISSN 1516-9162
PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE
EXPEDIENTE
Publicação Interna
n. 40, jan./jun. 2011

Título deste número:


O INFANTIL NA PSICANÁLISE

Editores:
Maria Ângela Bulhões e Sandra Djambolakdjan Torossian

Comissão Editorial:
Beatriz Kauri dos Reis, Deborah Pinho, Gláucia Escalier Braga,
Maria Ângela Bulhões, Otávio Augusto W. Nunes, Valéria Machado Rilho.

Colaboradores deste número:


Maria Lúcia Stein, Maria Alice Maciel Alves, Ana Gageiro, Lúcia Mees e Silvia Fendrick

Editoração:
Jaqueline M. Nascente

Consultoria linguística:
Dino del Pino

Capa:
Clóvis Borba

Linha Editorial:
A Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre é uma publicação semestral da APPOA que
tem por objetivo a inserção, circulação e debate de produções na área da psicanálise. Contém
estudos teóricos, contribuições clínicas, revisões críticas, crônicas e entrevistas reunidas em edições
temáticas e agrupadas em quatro seções distintas: textos, história, entrevista e variações. Além da
venda avulsa, a Revista é distribuída a assinantes e mem bros da APPOA e em permuta e/ou
doação a instituições científicas de áreas afins, assim como bibliotecas universitárias do País.

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R454

Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre / Associação


Psicanalítica de Porto Alegre. - Vol. 1, n. 1 (1990). - Porto Alegre: APPOA, 1990, -

Absorveu: Boletim da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.

Semestral

ISSN 1516-9162

1. Psicanálise - Periódicos. I. Associação Psicanalítica de Porto Alegre

CDU 159.964.2(05)
CDD 616.891.7
Bibliotecária Responsável Luciane Alves Santini CRB 10/1837
Indexada na base de dados Index PSI – Indexador dos Periódicos Brasileiros na área de
Psicologia (http://www.bvs-psi.org.br/)
Versão eletrônica disponível no site www.appoa.com.br
Impressa em agosto 2012. Tiragem 500 exemplares.
O INFANTIL NA PSICANÁLISE
SUMÁRIO

EDITORIAL............................ 07 A educação estruturante


na educação infantil ........................ 99
Structuring education on preschool education
TEXTOS Dorisnei Jornada da Rosa
Infantil, Eu? ................................... 09
Infantile, me/I? Caminhos de oficina no
Maria Lúcia Müller Stein encontro com o outro .................... 109
Ways of workshops in the encounter of the other
As intervenções do analista na Ieda Prates da Silva
análise de uma criança ............ 18
The analyst’s interventions in the analysis Implicância ou bullying? .............. 119
of a child Peeve or bullying?
Alba Flesler Lúcia Alves Mees
Do brinquedo ao trabalho:
Alienação – ato – desejo: os avatares na passagem
o que sabe uma criança? ............ 31 da infância à adolescência .......... 133
Alienation – act – desire: From play to work: the avatars in the passage
what does a child know? from childhood to adolescence
Liz Nunes Ramos Carmen Backes

De onde surge o brincar ENTREVISTA


e o desenhar? .................................... 43 História da psicanálise
Where does play and drawing come from? infantil na Argentina:
Silvia Eugenia Molina algumas contribuições ............... 146
The history of child psychoanalysis in
Notas do infantil ............................... 54 Argentina: some contributions
Notes of infantile Mauricio Knobel
Heloisa Marcon
RECORDAR, REPETIR,
Hans – Uma análise do infatil ... 63 ELABORAR
Hans – an analysis of the infantile Fantasias de espancamento
Gerson Smiech Pinho e devaneios ........................................ 155
Beating fantasies and daydreams 
O quarto tempo do Anna Freud
circuito pulsional ............................ 74
The fourth time of the drive circuit
VARIAÇÕES
Alcova sadiana:
Simone Madke Brenner a perversão enquanto
subtração da filiação .................. 170
A infância como tempo Sadian alcove: perversion as filiation subtraction
de iniciação à arte de Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr
produzir desobjetos ....................... 89
The childhood as the time of initiation Quando o sintoma
to the art of producing nonobjects é da e na linguagem .................... 192
Simone Moschen When the symptom is of and in language
Luiza Milano Surreaux
EDITORIAL

C riança, infantil e infância são termos comumente utilizados como sinônimos,


mas ganham diferentes significações no campo psicanalítico. A infância
enquanto momento inicial da vida inspira Freud a olhar para o infantil.
A concepção de infância, como momento privilegiado para ser criança,
instaura-se, de certo modo, a partir do discurso filosófico iluminista e é inspiradora
de diversas posições educativas direcionadas aos pequenos. Às crianças
começou-se a dar um novo estatuto, visando educá-las com o objetivo de
assegurar o futuro da civilização. Assim, elas seriam, a princípio, preparadas
para que a sociedade ocidental, no futuro, tivesse adultos bons e produtivos.
É assim que o discurso sobre a infância passa a ressaltar a concepção
de criança cuja natureza deve ser corrigida pelo adulto, ou seja, a transformação
de um ser assexuado, imaturo, sem desejo, a um ser sexuado, maduro e
desejante. Com isso, preconiza o ideal na vida adulta e não reconhece esses
elementos já presentes nas crianças. Os diferentes saberes especializados
sobre infância ganham espaço nesse novo contexto.
As formulações freudianas, ao abrirem mais um espaço para pensar a
infância, produzem um novo giro discursivo em relação a esse tema. Fruto da
sua época, Freud postula, inicialmente, a hipótese de estar na infância a base
para a interpretação da vida psíquica do adulto. De certo modo, produz-se, aí,
uma inversão. Não mais se expulsa a criança, mas se aceita a permanência do
infantil na constituição psíquica de todo sujeito. Reconhece-se no infantil a
articulação ao desejo.
Nas primeiras formulações psicanalíticas, infantil é um adjetivo referente
a um momento cronológico da vida psíquica, o qual passa a acompanhar as
7
EDITORIAL

experiências produtoras de sofrimento em tempos posteriores. Na etiologia das


neuroses buscavam-se as experiências sexuais traumáticas ocorridas durante
momentos iniciais da vida. O abandono dessa teoria produz um novo olhar para
o infantil: ao substantivá-lo, começa a ser abordado a partir da lógica do
inconsciente. Fica assim estabelecida uma relação intrínseca entre o infantil e a
pulsão.
Coube a Lacan retomar o texto freudiano a partir de diversas formulações
sobre o desejo e o gozo, introduzindo a condição faltante, constitutiva do sujeito,
e ressaltando a imbricação entre o sujeito do inconsciente e o infantil. O infantil
está, assim, no cerne da psicanálise, instalando-se muito além da cronologia
dos primeiros momentos da vida.
Por seu turno, a psicanálise, por meio de suas intervenções com a infância,
colocou-se em movimento possibilitando o trabalho com o infantil no tempo de
sua constituição. A existência do infantil no psiquismo – que não se restringe
nem se dissolve com a infância –, tem o pressuposto que na própria infância
reside sua sustentação. Então, temos que o infantil é o trabalho psíquico
necessário para transpor a posição de objeto de gozo do Outro, almejando a
posição de sujeito desejante.
O percurso de constituição do infantil na infância, pelas ações lúdicas
das crianças e através das relações endereçadas aos pais, professores, e
instituições – figuras do Outro – são algumas das discussões aqui apresentadas,
através de diversos temas, como o brincar, o desenhar, a escola, a arte, a
sexualidade, os objetos e os desobjetos. Ainda na trilha da movimentação dos
conceitos, a sincronia e a diacronia entre a produção desejante e os tempos de
constituição do sujeito nos registros do real, do simbólico e do imaginário, são
colocados na pauta em diversos contextos clínicos.
Convidamos os leitores a circularem por essas letras, possibilitando a
dança do infantil que nos constitui, sem esquecer que brincar, desenhar, rasgar,
colar e manchar os textos são atitudes desejáveis para o alargamento das
fronteiras do nosso trabalho.

8
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 09-17, jan./jun. 2011

TEXTOS

INFANTIL, EU?1
Maria Lúcia Müller Stein2

Resumo: O texto pretende estabelecer os contornos psicanalíticos da noção


de infantil, a importância desse conceito no desenvolvimento teórico da
psicanálise, bem como sua relevância para a prática clínica.
Palavras-chave: infantil, teoria, clínica psicanalítica.

INFANTILE, ME/I?

Abstract: This text intends to establish the psychoanalytic outlines of the concept
of infantile, its importance in the theoretical development of psychoanalysis, as
well as its relevance to clinical practice.
Keywords: infantile, theory, psychoanalytic clinic.

1
Trabalho apresentado na Jornada de Abertura da APPOA: O infantil na psicanálise, realizada
em Porto Alegre, abril de 2011.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Mestre em
Psicologia Social e Institucional/UFRGS. E-mail: mlpm@terra.com.br
9
Maria Lúcia Müller Stein

Qual é esta certeza sem aquém, se não esta


solidão absoluta da infância, a acidez de
seu verde paraíso a partir da qual o adulto
crerá definir-se negando-a? E até o fim a
criança permanecerá verde, obstinando-se
em reclamar seu paraíso.
Gérard Pommier

T entar circunscrever o tema do “infantil” em psicanálise é tarefa árdua, pois


implica falar de origens, o que sempre soa pretensioso, fantasioso, um tanto
“mítico”. Levando isso em consideração, este texto foi elaborado tentando
estabelecer os contornos psicanalíticos da noção de infantil, norteado por uma
série de indagações que auxiliaram a tecer o estudo.
Afinal, o que é o infantil? De que forma o infantil se apresenta na clínica?
Ele é tema da psicanálise de crianças? Da clínica com adultos? Como trabalhamos
o infantil na clínica? Com quantos “infantis” se faz uma análise? Precisamos
“curar”-nos do infantil? Quais os destinos para o infantil? Quem tem medo do
infantil?
Primeiramente talvez seja interessante esclarecer que, apesar de o tema
do infantil tangenciar a infância e a psicanálise de crianças, ele certamente não
se limita a elas. O infantil concerne a todos psicanalistas e a todos
psicanalisantes.
Apesar de o acento deste trabalho não recair sobre a infância em si, e,
sim, sobre o que em psicanálise entendemos por infantil, valem algumas palavras
sobre a noção de infância. E, para andar por esse terreno, não há como deixar
de mencionar os estudos sociológicos e históricos do autor Philippe Áries (1981)
e m História social da criança e da família. Tais estudos nos mostram, de maneira
belíssima, que a noção de infância, como etapa no desenvolvimento, período
da vida de um ser humano, com suas características, especificidades,
qualidades, etc., é uma construção histórica e culturalmente determinada.
Em seu livro, Ariés (ibid), demonstra como a infância – enquanto idade da
vida – é caracterizada por conter uma série de antecipações da vida adulta.
Mas, com medidas de proteção da confrontação direta com o ato e suas
consequências –, ou seja, a infância, tal como a concebemos hoje, é uma
construção social, produto dos deslocamentos operados pela cultura, que foi
significando e delimitando esse lugar, com o intuito de amparar a infância. E
isso, através dos séculos. Óbvio lembrar que essas mudanças e deslocamentos
seguem acontecendo, uma vez que a humanidade continua inscrevendo seu
desejo e inventando sua história.
10
Infantil. Eu?

À parte uma infância que se constitui num tempo histórico e social,


gostaria de pensar o infantil, dar-lhe bordas que permitiriam diferenciá-lo da infância,
tomando-o como uma experiência “extratempo”. Destaco “extratempo”, pois
voltaremos a isso mais adiante.
Chamemos inicialmente, para compor o diálogo conosco, um escrito de
Birman (1997), dedicado a pensar as noções de infantil e do originário em
psicanálise. Nesse texto, o autor aponta que desde a inauguração do discurso
freudiano a referência à infância se impôs e se difundiu, tanto no campo do
saber erudito quanto no imaginário social, como um signo inconfundível da
psicanálise. A partir do advento da psicanálise, a infância tornou-se o período de
vida no qual os homens deveriam buscar os fundamentos para a interpretação
dos males do espírito, de seus sofrimentos, de seus sintomas. Na infância,
enquanto tal, encontraríamos os fatos que justificariam e lançariam luz sobre a
etiologia do sofrimento psíquico presente na vida adulta.
De fato, se acompanharmos os textos dos primórdios da psicanálise,
encontraremos hipóteses e elaborações teóricas sobre a natureza sexual de
um acontecimento patológico ocorrido na infância. Acontecimento sexual ao
qual o pequeno ser humano seria exposto, e que, em função de sua imaturidade
psíquica e física, não conseguiria compreender ou mesmo assimilar, pelo impacto
excessivo da experiência. É na medida de sua impossibilidade de simbolizar o
acontecimento sexual que este assumiria o caráter de evento traumático,
determinante para o adoecimento e padecimento neurótico na fase adulta.
Seguindo a história da “infância da psicanálise”, acompanhando a produção
científica de Freud, seus artigos, bem como sua correspondência com Fliess,
nos deparamos com as transformações sofridas nessa lógica a partir da clínica
psicanalítica. E, nesse contexto, encontramos paulatinamente o deslocamento
da palavra “infância” para o adjetivo “infantil”, e, posteriormente, outro
deslocamento, de infantil como adjetivo para o infantil como substantivo.
Birman (1997) escreve:

[...]além disso, é preciso considerar que se o significante infantil


se introduziu pela ordem adjetiva, logo em seguida transformou-
se num substantivo. Nestas diversas transmutações, significantes
e gramaticais, algo de fundamental se processou na leitura do
sujeito e de seu sofrimento psíquico. Pode-se dizer, sem qualquer
exagero, que foi neste deslocamento entre as palavras infância e
infantil, assim como nesta dança e nesta transmutação de gêneros
gramaticais, que se pode circunscrever a invenção da psicanálise
como tal (p.9).

11
Maria Lúcia Müller Stein

Tal afirmação contundente ganha relevo quando lembramos que esse


mesmo deslocamento gramatical, a saber, de adjetivo para substantivo, também
ocorreu com o conceito de inconsciente. Esse processo homólogo permitiu a
Freud construir um modelo para o aparelho psíquico, conceber seu funcionamento,
e, a partir disso, inventar a psicanálise, seu corpo teórico, sua técnica, sua
clínica e mesmo produzir reflexões sobre os sintomas sociais. Ou seja, aquilo
que convoca e sustenta nossa prática e nossa produção no campo da psicanálise
e de sua articulação com o campo do Outro.
E, vejam, que incrível: em 1909, encontramos uma referência explícita de
Freud ao infantil articulada com o inconsciente. Trata-se do seu artigo Notas
sobre um caso de neurose obsessiva ([1909]1976), ou, como melhor o
conhecemos, “O Homem dos Ratos”. É no momento em que Freud faz um
esclarecimento ao seu paciente:

Observei que, aqui, ele havia atingido uma das principais


características do inconsciente, ou seja, a relação deste com o
infantil. O inconsciente, expliquei, era o infantil (grifo do autor); era
aquela parte do eu que ficara apartada dele na infância, que não
participara dos estádios posteriores do seu desenvolvimento e que,
em consequência, se tornara recalcada. Os derivados desse
inconsciente recalcado eram os responsáveis pelos pensamentos
involuntários que constituíram sua doença (p.181).

Leda Bernardino (2004), tomando essa mesma passagem de Freud, afirma


que o conceito de infantil na obra freudiana refere-se a esse tempo entre o
recalque originário e o recalque propriamente dito do Édipo. Esse tempo vai
desde a inscrição dos significantes primordiais, a constituição do fantasma
fundamental e do encontro com um mito – o de Édipo, constituindo o inconsciente
como sede do sujeito. Assim, o conceito de infantil recobre o que seria neurose
infantil, para Freud, e o que Lacan define como a estrutura psíquica.
É nesse duplo movimento, operado pelo Outro, encarnado pelos pais,
inscrevendo significantes e marcando o pequeno ser com seu desejo, que a criança
lê esse desejo e constrói seu lugar singular, que podemos articular a noção de infantil.
Pommier (1999) nos diz que a questão do infantil ultrapassa a infância.
Para a própria criança, já há infantil: essas teorias que ela inventa e que continuará
a repetir durante toda a sua vida. O infantil se distingue da criança sobre a qual
ela elucubra. A criança representa para seus pais, como também para ela mesma,
uma aposta narcísica, e é no seu fracasso que ela inventa a “teoria infantil” (ibid,
p.28) que impede a identificação entre o infantil e a criança.
12
Infantil. Eu?

A noção do infantil engendra-se com o reconhecimento da sexualidade


infantil, com a proposta e a posterior reformulação da teoria do trauma da sedução
( a d if e r e n ç a e n tr e a s le m b r a n ç a s
3
), bem como
r e a is e a s f a n ta s ia s in c o n s c ie n te s

com a formulação das teorias sexuais infantis e a constituição do complexo de


Édipo. Enfim, como vemos, é um conceito que permeia toda a formulação do
corpo teórico da psicanálise e pode ser tomado como um fio que nos conduz a
pensar na emergência do sujeito do inconsciente, na questão da fantasia, na
compulsão à repetição, no sintoma...
Assim, à medida que avançamos no estudo do infantil, percebemos que
se trata de um conceito com contornos irregulares e essa imagem nos remete
às várias versões do infantil na teoria psicanalítica4. Não temos intenção fazer
esse percurso teórico aqui, mas gostaríamos de pontuar uma data: 1920. É
nesse ano, com a nova formulação do aparelho psíquico – proposta por Freud –
, que a noção de infantil passa a ser articulada à angústia do real. Isto é, pela
angústia pensada em sua radicalidade como afeto não inscrito no registro da
representação. O infantil como trauma revelaria a posição de desamparo do
sujeito frente ao que existe de imposição no impacto da força pulsional, que
lança aquele no campo da angústia do real (Birman, 1997).
Neste ponto, trago um pequeno fragmento clínico que, para mim, alude
com muita clareza a essa dimensão estrutural do infantil na clínica com crianças.
Cena comum em nossos consultórios: um garoto chega trazido por seus pais,
com a queixa de que é muito tímido e retraído com os coleguinhas da escola,
necessitando constantemente a presença dos pais. Era um menino muito falante
e propunha brincadeiras muito elaboradas, tudo transcorria muito bem desde
que não houvesse nenhuma sombra de competição ou disputa no horizonte.
Quando isso se apresentava, fosse em um jogo ou em uma luta entre os
personagens, caso ele perdesse, ou começasse a perder, era invadido por um
sofrimento atroz. Seu choro era de dor e de intensidade impressionantes, sendo

3
De acordo com Alfredo Jerusalinsky (1996): “O trauma muda de posição da primeira para a
segunda teoria, onde o fundamental na sua elaboração não consiste em tratar dos restos
reais, mas do resíduo significante que Freud denomina fantasia inconsciente” (p.187).
4
“Assim, nos primórdios da investigação psicanalítica até os anos de 1915 e 1920, o infantil se
identificava com o registro da sexualidade, isto é, com o campo do desejo e com o que era
regulado pelo princípio do prazer. Após os anos 1920, em contrapartida, o infantil passa a ser
circunscrito como o que não pode ser erotizado e como o que é regulado por um além do
princípio do prazer. Vale dizer, o infantil passa a ser identificado com o real da angústia e com
trauma, com aquilo capaz de lançar o sujeito no desamparo e de promover seu esfacelamento”
(Birman, 1997, p.24).

13
Maria Lúcia Müller Stein

muito difícil conseguir retomar a brincadeira após um episódio assim. Como um


bebê, tinha que ser contido nos braços para se acalmar, pois a palavra não o
alcançava.
Esse atendimento, para mim, foi exemplar do sofrimento de uma criança
que, através de sintomas, demonstra sua dificuldade em fundar o jogo de ausência-
presença do objeto. O gozo da presença sem cortes do objeto o lança no mais
profundo desespero, na mais absoluta angústia – como diz Lacan, no seminário
de 1963: a angústia é a falta da falta. Segundo Lacan ([1962-1963] 2005): “A
angústia não é o sinal de uma falta, mas de algo que é preciso que se chegue a
conceber neste nível redobrado por ser o defeito deste apoio da falta” (lição de
05/12/1962, p. 61).
A angústia é forjada quando alguma coisa vem ocupar o lugar do objeto
do desejo, capturando o objeto no circuito da pulsão, impedindo sua reinscrição.
Nosso pequeno não consegue suportar a suspensão necessária do tempo da
ausência, o intervalo, para que o objeto se torne causa do desejo.
Alba Flessler (2008) nos diz que um sujeito se efetua em tempos, e que, para
tanto, é necessário também considerar os tempos de engendramento do objeto:

De fato, a busca de objeto, a busca orienta para o corpo do parte-


naire requer uma profunda metamorfose, implica tempos de
passagem e de redistribuição de gozo. Se o primeiro objeto está
localizado no corpo da mãe, passar ao objeto situado no próprio
corpo do autoerotismo e em seguida à orientação da busca em
outro corpo revela tempos de engendaramento do objeto de desejo,
de amor e de gozo. E continua: Sem o trânsito por um desses
tempos de engendramento e localização do objeto, o desejo nunca
chega a se orientar em um tempo posterior (p.189).

No caso referido, à medida que a análise avançava, paulatinamente, o


menino conseguia suportar cada vez mais a ausência dos pais e sua timidez
cedia. Eis que um dia, no meio de uma brincadeira qualquer, dou-lhe as costas
e qual não foi minha surpresa quando sinto que ele – em bom e claro português
– passou a mão na minha bunda. Prontamente, o olhei e sabia que não havia
nada de “acidental” naquele toque, apesar de ele estar tão surpreso quanto eu.
Aliás, justamente, o que traz significância para esse episódio é a surpresa,
reveladora do inconsciente que aí se desvela, que nesse momento se produz
para logo se perder.
“Vocês concordariam comigo que o um que é introduzido pela experiência
do inconsciente é o do um da fenda, do traço, da ruptura” (p. 30), nos diz Lacan
14
Infantil. Eu?

([1964] 1985), no seu seminário de 1964. Todos nós, que passamos pela
experiência de análise, sabemos o que é sentir essa ultrapassagem, esse instante
efêmero de encontro e perda, que é justamente a experiência do inconsciente.
Nessa mesma lição, Lacan utiliza um termo muito interessante para falar desse
encontro com o inconsciente: reachado. Vou citá-lo: “Ora, esse achado, uma
vez que ele se apresenta, é um reachado, e mais ainda, sempre está prestes a
escapar de novo, instaurando a dimensão da perda” (idem, p. 30).
Reachado. Soa horrível, provavelmente uma palavra que não existe em
bom português, talvez nem seja essa a tradução apropriada do francês, mas
achei-a particularmente interessante, pois traz em si mesma a noção de perda
e corte. Se racha, faz fenda, e na fenda se “reacha” algo que tenha se perdido.
E que se perderá de novo.
Mas, voltemos ao nosso pequeno analisante. Afinal o que havia se
processado para que eu estranhasse aquele toque de um menino que, há pouco
tempo, buscava meu colo para chorar como um bebê? Sem dúvida, um novo
elemento entrava em cena: o falo. Assim, se revelava o sexual, sempre traumático,
mas que, mediado pelo jogo simbólico, lançava o menino em outra condição
frente à ausência. Condição necessária de uma perda que pode se inscrever
como falta, como falo enquanto representante dessa falta, que nunca cessa de
se reinscrever através do eterno “pulsar do circuito”, mantendo em aberto os
caminhos do objeto do desejo.
O caso teria muitos aspectos a serem abordados, desde a intervenção
com os pais, com a escola, a transferência, mas o que gostaria de salientar
neste momento é o aspecto estrutural do infantil que se apresenta em construção
na clínica com crianças. Poderíamos pensar que essa análise pôde introduzir o
jogo do objeto, alternância entre presença/ausência, gozo/desejo, pôr em marcha
a passagem para um outro tempo, o tempo do Édipo, tempo do recalque. Mesmo
que isso só se confirme a posteriori, essa análise conduziu à possibilidade,
destaco a possibilidade, de constituição de uma neurose infantil do adulto que o
garoto virá a ser, na medida em que instaura o infantil num “extratempo”. Trata-
se aí da causa de toda temporalização possível, de toda procura possível – em
seus rachas e reachados.
Então, como já dissemos, essa dimensão estrutural do infantil se refere à
insuficiência fundamental do ser humano, ao desamparo comum a todos nós, e
que coloca a necessidade de nos inscrevermos numa ordem simbólica, o que
só poderá ser feito mediado pela construção de uma fantasia.
Assim, o trauma e a sedução, entendidos aqui em sua dimensão de
desamparo, se referem àquilo que se inscreve num registro temporal particular,
fora da dialética da temporalidade histórica. O trauma se apresenta como
15
Maria Lúcia Müller Stein

“acontecimento”, eterno presente evidenciado pela compulsão à repetição, que


pode ganhar elaboração somente quando historicizado nesta outra temporalidade
denominada por Freud de nachträglichkeit. Ou seja, o trauma impõe ao sujeito
a tarefa de se historicizar, de construir uma versão possível para si mesmo. É,
ao mesmo tempo, causa e consequência, historicizante e historicizada.
Sempre que falamos em o trauma, o infantil, o inconsciente, ficamos com
a sensação de uma substancialidade, de uma consistência como se na busca
de sua origem pudéssemos apreendê-los e chegarmos a sua essência.
O filósofo italiano Giorgio Agamben (2005), ao refletir sobre a discussão
da origem da linguagem, aproxima-se da posição da psicanálise e talvez nos
traga elementos interessantes para pensar sobre essa dimensão atemporal do
trauma. Agambem propõe que devemos abandonar a noção de origem como
algo inscrito em uma cronologia, com uma causa inicial que separa no tempo
um antes de si e um depois de si. Sempre que estiver em causa um objeto que
pressuponha o humano, essa noção de origem não pode ser utilizada, uma vez
que o próprio objeto é constitutivo do humano. Ele escreve: “A origem de um tal
‘ente’ não pode ser historicizada, porque é ela mesma historicizante, é ela mesma
a fundar a possibilidade de que exista algo como uma história” (p. 61).
É nesse sentido que podemos pensar o infantil: como um solo fundante,
arcaico e originário, produtor da fratura necessária, que impulsiona o sujeito a
inventar uma ficção para si mesmo, uma história que se faz no próprio movimento
de narrar-se, “conta-se” sujeito. “Uma liga de pulsional e estrutural ‘flexível’, que
faz com que a gente seja o que é e não um outro” (Guignard, 1997, p. 17).
Para finalizar, gostaria de dizer algumas palavras sobre a intrínseca relação
entre fantasia e tempo evidenciada por Freud ([1908]1976) em seu texto Escritores
criativos e devaneios. Nesse belo texto, Freud desenvolve a ideia de que a
fantasia representa no adulto a continuidade da atividade do brincar infantil, mesmo
que salvaguardadas suas diferenças. Mas o que nos interessa aqui é sua
proposição de que a fantasia flutua entre os três momentos abrangidos por
nossa ideação. Nas palavras de Freud (ibid, p.153): “O desejo utiliza uma ocasião
do presente para construir, segundo moldes do passado, um quadro do futuro”.
Ou seja, uma impressão atual desperta algum dos desejos principais do sujeito,
retrocede a uma experiência anterior, criando uma situação no futuro que
representa a realização do desejo. Freud(ibid, p.153) constrói uma metáfora
poética: “Dessa forma, o passado, o presente e o futuro são entrelaçados pelo
fio do desejo que os une”.
A fantasia produz esse efeito de abolir de certa forma o tempo da diacronia,
revelando a nós mesmos essa outra dimensão do tempo, a atemporalidade dos
processos inconscientes. A fantasia é portadora do infantil.
16
Infantil. Eu?

Assim, sendo seja na condução de análises com adultos ou crianças, é


sempre o infantil que faz questão5. Infantil de contornos irregulares, inapreensível
e ir r e d u t í v e l, m a r c a im p r e s s a d e last but not least,
n o s s o e t e r n o d e s a m p a r o , e

possibilidade fundante de que infantil e infinitamente – pelo menos num infinito


enquanto duremos – possamos brincar de construir uma origem.

REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: ensaio sobre a destruição da experiência. In:
______. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2005.
ARIÉS, Philippe. História social da criança e da família Rio de Janeiro: LTC – Livros
Técnicos e Científicos Editora, 1981.
BERNARDINO, Leda Maria Fischer. As psicoses não decididas da infância: um estudo
psicanalítico. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.
BIRMAN, Joel. Além daquele beijo!? Sobre o infantil e o originário em psicanálise. In:
______. Da análise da infância ao infantil na análise. Rio de Janeiro: Contra Capa
Livraria, 1997.
FLESLER, Alba. Os tempos do sujeito. Revista da Associação Psicanalítica de Porto
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Recebido em 17/09/2011
Aceito em 20/10/2011
Revisado por Otávio Augusto Winck Nunes

5
Fundamental referir aqui o texto de Ferenczi, Análise de crianças com adultos (1931): “[...]
não devemos nos dar por satisfeitos com nenhuma análise que não tenha levado à reprodução
real dos processos traumáticos do recalcamento original, sobre o qual repousa, afinal, a
formação do caráter e dos sintomas” (p.337).
17
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 18-30, jan./jun. 2011

TEXTOS AS INTERVENÇÕES DO
ANALISTA NA ANÁLISE
DE UMA CRIANÇA1
Alba Flesler2

Resumo: O presente artigo discute a dimensão do ato psicanalítico a partir dos


três registros propostos por Lacan: real, simbólico e imaginário, especificamente
no trabalho com crianças.
Palavras-chave: ato psicanalítico, análise de crianças, infantil.

THE ANALYST’S INTERVENTIONS IN THE ANALYSIS OF A CHILD

Abstract: This article discusses the dimension of the psychoanalytic act from
the three registers proposed by Lacan: real, symbolic and imaginary, specifically
in the work with children.
Keywords: psychoanalytic act, children´s analysis, infantile.

1
Conferência apresentada nas Jornadas Clínicas da APPOA Dizer e fazer em análise, em
Porto Alegre novembro de 2010.
2
Psicanalista; Membro da Escuela Freudiana de Buenos Aires (Argentina); Supervisora da
Après-coup Psychoanalitic Association of the New York (USA).
É autora de El niño en análisis y el lugar de los padres (Editora Paidós, 2008); e El niño en
análisis y las intervenciones del analista (Editorial Paidós, 2011); Coautora dos livros Los
discursos y la cura e De poetas, niños y criminales: a proposito de Jean Genet. E-mail:
albaflesler@sion.com
18
As intervenções do analista...

U m primeiro convite é sempre uma aposta. O segundo é sinal de valentia,


renovada pela posição desde a qual uma analista de crianças é convidada
a trabalhar. Por que digo que é uma valentia? Porque falar de crianças ou falar da
criança em psicanálise implica trazer problemas reais, já que a criança, desde
o início da psicanálise trouxe problemas aos psicanalistas. Entendo, pois, a
valentia como uma renovação do desejo, que não retrocede ante o real.
A que me refiro?
A criança implica um problema, e prefiro pensá-lo em termos matemáticos,
como um problema real. Para a matemática, um problema é um problema real
quando abre a possibilidade de solução. À diferença de um problema imaginário,
o problema real implica uma solução possível. Claro que, para poder alcançar
essa solução possível, é preciso delimitar qual o impossível em questão.
De que real se trata, quando falamos de crianças? O que primeiro se
apresentou como problema aos psicanalistas era a criança que chegava ao
consultório, pois não vinha o paciente para o qual havia sido criada a psicanálise.
Não vinha por si mesma: era trazida; não falava sua problemática – queria brincar,
no melhor dos casos; e, sobretudo, eis aí o que Freud expôs, não apresentava
a neurose de transferência para ser abordada do mesmo modo com que se
abordava um adulto. Então, não se apresentava desse modo inicial, que Isidoro
Vegh3 indicava hoje pela manhã, como quem chega com a conformação
fantasmática configurada. A criança vem com os pais, traz ou pede objetos,
pequenos objetos, brinquedos, e nos apresenta uma problemática maior, já
assinalada por Freud, quando disse que a transferência é compartilhada com os
pais. Flor de problema, então, o que a criança apresentou com esse real.
Cada vez que, em nossa prática, encontramos algo não subsumível ao
saber teórico, estamos ante um real. O que fazemos e o que fizeram os analistas
com esse real? Uma das vias conhecidas foi a de tentar subsumir esse real ao
simbólico conhecido e propor que a criança seja analisável do mesmo modo que
um adulto. A conhecida técnica kleiniana do brincar equipara a brincadeira aos
sonhos e a interpreta no mesmo sentido; é a intervenção da interpretação do
deciframento da brincadeira. Outras propostas disseram não: não se trata de
assimilar esse real ao teórico conhecido, trata-se então de um real não abordável

3
Referência à conferência apresentada por Isidoro Vegh, nas mesmas Jornadas Clínicas da
APPOA, que está publicada na Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, n° 39:
tempo – ato – memória.
19
Alba Flesler

pela psicanálise; portanto, as crianças não são analisáveis. É a linha que segue
predominantemente a proposta de Anna Freud. É preciso realizar previamente
intervenções na linha pedagógica, porque a criança não pode ser analisada.
Em meu entender, tanto uma posição quanto outra deixam o problema
intacto: é que fazem as intervenções do analista oscilar entre a onipotência –
todo sujeito é analisável do mesmo modo teorizado por Freud – e a impotência
– não é analisável por não coincidir com a soma das características ideais
teorizadas por Freud para o trabalho psicanalítico – da abordagem. Estamos,
então, ante a onipotência ou a impotência do ato analítico. Como fazemos para
eludir essa dificuldade? Como sabemos, existem variadas formas de analisar
uma criança.
Alguns analistas trabalham exclusivamente com os pais e consideram
que tudo o que ocorre com a criança é determinado por eles. Recebem-os,
analisam-os, mandam-os à análise – mesmo que eles nunca cheguem a fazê-
lo. Outros trabalham exclusivamente com a criança: dão-lhe brinquedos, brincam
com a criança, pois consideram que se trata de que o analista intervenha somente
quando ela brinca.
Levantam-se outras vozes dizendo que não é assim, que o analista não
deve brincar com a criança. Brincar é um gozo e deve ser suspenso. Em todo
caso, precisa-se exclusivamente observar a brincadeira da criança e depois
interpretá-la.
Assinalo essas variantes porque podemos reconhecer nelas extremos.
Há analistas que não oferecem brinquedos às crianças, porque propõem que
devem ser sujeitos da palavra e as obrigam a associar “livremente”. Digo que as
obrigam porque entendo que há um forçamento.
Diria que estamos, mais que ante um leque de questões, ante uma salada.
Como situar-nos ante tão diversas perspectivas? E como fazê-lo –
perguntava-me – sem agregar mais uma perspectiva? Porque poderia somar-se
minha própria perspectiva à serie já apresentada. Creio que propor intervenções
do analista, e fazê-lo no plural, pode orientar-nos a uma saída lógica. Mas, para
alcançá-la, temos de nos perguntar que lógica é essa, que plural estamos
enunciando, quando dizemos intervenções. Trata-se, por exemplo, de uma lógica
serial? Não creio. Vejamos suas consequências.
A lógica da série, como vocês bem sabem, é a que poderia fazer-se
infinita, agregando sempre uma perspectiva nova ou chegando à conclusão de
que há tantas intervenções quanto analistas. Proponho, então, que façamos
uma formalização lógica das intervenções do analista, para poder responder a
uma pergunta que Lacan nos propõe desde o início de sua obra. É simples, mas
complexa, tanto quanto esta pergunta: o que fazemos quando analisamos? Como
20
As intervenções do analista...

podem apreciar, estamos em cheio no tema desta Jornada sobre o ato analítico:
fazer, dizer, que lógica? Para poder avançar naquela resposta, que tento aproximar
a essa pergunta, apresentarei um breve percurso para situar os elementos dessa
lógica.
Vou começar indicando que a criança não é o objeto da psicanálise. Toda
disciplina parte de delimitar seu objeto, e creio que seria um erro colocar que o
objeto da psicanálise é a criança. Isso levou às especialidades em psicanálise,
por exemplo, a crer que há especialistas em crianças. Não acredito na
especialidade, o que não quer dizer que não haja especificidades do ato analítico
quando atendemos à criança. Parece um paradoxo, vou tratar de esclarecer que
não é.
O objeto da psicanálise, então, não é a criança, mas o sujeito; por isso,
proponho que o analista atenda à criança, mas aponte ao sujeito. O sujeito, que
Lacan tentou definir ao longo de todo seu ensino, é um sujeito que não é só o
sujeito do significante – mesmo que, em um primeiro tempo, tenha precisado
acentuar a vertente simbólica do sujeito, porque estava em polêmica com os
pós-freudianos. Naquele momento, acentuou que o sujeito é o que um significante
representa para outro significante, mas, à medida que foi avançando em seu
ensino, o imaginário, que havia ficado tão desprestigiado no primeiro tempo do
ensino, adquiriu novo valor, quando Lacan pensa o sujeito da estrutura como
RSI. Ou seja, a estrutura do sujeito não é só simbólica: é o real, o simbólico e o
imaginário. E, como se isso fosse pouco, para Lacan, não apenas se trata dos
três termos, mas de um modo de relação entre eles, amarrados borromea-
namente.
Quero que tenhamos presente o nó, mais uma vez. É muito importante,
para mim, tê-lo presente, quando vamos trabalhar as intervenções do analista.
Retomo-o brevemente:

21
Alba Flesler

Trata-se de três aros amarrados de tal forma que nenhum interpenetra o


outro, e que se amarram passando por cima do que está acima, e por baixo do
que está abaixo. Essas são as leis de amarração do nó, colocando no
entrecruzamento dos três o objeto a . Como podem verificar o objeto a está
bordeado pelos três. Outra questão a assinalar é que o ganho do nó é clínico: se
o nó não pode ser tomado só por um de seus registros, isso implica que não
podemos intervir considerando só o sujeito do simbólico, só o sujeito do
imaginário, ou só o do real. Quando estamos considerando só um dos três
registros, estamos desatendendo ao fato de que a estrutura do sujeito é RSI.
Uma vez colocado o nó, quero avançar, dando mais um passo. É que
esse sujeito da estrutura, pensado por Lacan, me serviu para me perguntar
pelos tempos de estruturação da estrutura. E levou-me a pensar que o sujeito,
mais que idade, tem tempos: tempos do simbólico, tempos do imaginário e
tempos do real, e eles são perfeita e finamente delimitáveis. Vamos avançar
sobre isso, a propósito das consequências para a prática da análise com as
crianças. Voltarei sobre o tema dos tempos depois, mas passemos agora a
outra questão importante, para desdobrar aquilo que quero compartilhar...
Se a criança não é o objeto da psicanálise, o que quero dizer então com
que o analista atende à criança? O que quer dizer atender à criança? Que significa
ser uma criança?
Criança é sempre um lugar no Outro, assim Freud ([1917] 1976) a situa,
mostrando-nos ao menos três vertentes desse lugar no Outro: seja objeto de
desejo equivalente ao falo – tal como situa nas equivalências simbólicas
pênis=bebê; objeto de desejo do Outro; ou também objeto de amor do Outro e
funcionar como objeto relativo ao narcisismo dos pais, His majesty the baby,
expõe Freud ([1914] 1976) em À guisa de introdução ao narcisismo. E, mais
ainda, a criança pode ser objeto no fantasma do adulto, tal como é referido no
texto de Freud ([1919] 1976) Uma criança é espancada. A criança é, pois, um
lugar no Outro.
Merece ser assinalado que esse objeto que a criança é para o Outro já
implica uma operação, pois isso não está dado: nem sempre um vivente chega
a ter o lugar de criança no Outro. Dizemos, às vezes de um modo rápido e sem
medir as ressonâncias disso, que a criança é objeto do Outro. Mas há viventes
que jamais chegam a ocupar um lugar de objeto no Outro, e a prova é de que
são descartados e jogados no lixo, tomados só como um pedaço de carne,
como um incômodo; nesses casos, não chegam a ser uma criança. Mais ainda,
nem sempre uma criança chega a ser um filho.
Assinalo isso, pois nem sempre é evidente. Reparem até que ponto é
importante para o analista atender à criança. Pois atender a ela é atender à
22
As intervenções do analista...

criança do Outro. Situar o que é uma criança para ele. Quando nos propomos a
atender a uma criança, nos ocupamos de localizar se foi realizada ou não essa
operação de alojamento, se foram cursados seus tempos, tempos da estrutura,
que vão se situando e delimitando no Outro. Por sua vez, se dizemos que a
criança é um lugar no Outro, agregaremos que o sujeito é uma resposta. Esclareço
a que me refiro.
Lacan diz: o sujeito responde ao Outro, mas também, com um texto
breve e condensado, nos aproxima distinções temporais que tratei de sublinhar.
Lacan ([1969] 2003) afirma que nem sempre responde; pode não responder, por
exemplo, em Duas notas sobre a criança, esse texto clássico de Lacan à
Madame Aubry, em que Lacan faz, segundo minha leitura, uma distinção. Há o
sintoma da criança que está em posição de responder ao que há de sintomático
na estrutura familiar; Le symptôme de l’enfant se trouve en place de répondre à
ce qu’il y a de symptomatique dans la structure familiale4 . Nesse caso, o sintoma
já é uma resposta. Mas nem sempre há resposta, esclarece Lacan: em outras
ocasiões, a criança realiza a presença do objeto no fantasma materno. Proponho,
então, fazer uma distinção entre responder e realizar, entre resposta do sujeito
e realização do objeto. Se o sujeito responde e, portanto, há uma resposta,
estamos já ante uma lógica.
Que lógica implica a resposta do sujeito? Implica uma lógica de não-
identidade.
Pois cada vez que há resposta, põe-se em jogo uma diferença entre o
lugar da criança como objeto do Outro e a resposta do sujeito. Com minhas
palavras, direi então que o sujeito responde à criança do Outro, à criança que o
Outro lhe demanda ser.
Quando responde sim, se aliena, ganha essa enorme operação constituinte
chamada “alienação”. Quando responde não, também dá um passo, essa vez
no sentido de uma “separação”, operação necessária para a constituição do
sujeito. A distinção entre resposta e realização é essencial para o analista, pois
delata um tempo constitutivo do sujeito ou bem uma falha em sua operação.
Quando recebemos os pais, atendemos à criança do Outro, e quando
recebemos a criança, fazêmo-lo para localizar a resposta do sujeito, caso haja.
Porque a resposta é necessária para que se constitua o sujeito, mas também é

4
[…] o sintoma da criança acha-se em condição de responder ao que existe de simtomático
na estrutura familiar (Lacan, ([1969]2003), p.369).

23
Alba Flesler

contingente. Pode realizar o objeto ou pode responder. E do que depende que


haja resposta do sujeito em vez de realização? Depende de que o Outro doe um
intervalo. Refiro-me à doação do intervalo entre a criança esperada e o sujeito
encontrado; esse intervalo há de ser doado pelo Outro. Se o faz, começa então
a recriar-se a falta. Gosto de dizê-lo nestes termos: se a falta se recria, então
“haverá jogo”, como em mecânica. Diz-se assim de uma lei da mecânica: quando
duas peças não encaixam exatamente, há jogo, ou seja, quando não há encaixe
absoluto. O Outro doa o intervalo quando não há complementaridade entre mãe
e filho. Gosto de dizer, seguindo em certa medida a provocação de Lacan quando
diz que não há relação sexual, que tampouco há relação entre pais e filhos. A
não-complementaridade permite que a falta se recrie, e com ela se recriam os
tempos do sujeito. Se a falta se recria porque o Outro doa o intervalo e o sujeito
responde com a não-identidade, os tempos se recriam.
Podemos lê-lo: quais indicadores nos permitem situar a recriação dos
tempos? Quando os tempos se recriam no simbólico, a criança passa da primeira
oposição significante a poder articular o shifter; ela poderá se efetuar como
sujeito da enunciação, e poderá dizer eu. Depois, se os tempos seguem,
notaremos que pode dispor da metáfora. Da linguagem à palavra e sua articulação
em discurso, o analista poderá localizar os tempos do simbólico.
Se a falta se recria, haverá eficácia também nos tempos do imaginário.
Eles irão da constituição do corpo na imagem especular a mover, depois, à
imagem do corpo na cena. A cena, que não é equiparável ao espaço, também se
recria em tempos, tempos de construção do fantasma.
E o real? O real também implica tempos do sujeito. São tempos de
redistribuição dos gozos.
Então, se o sujeito, mais que idade, tem tempos e estrutura-se em tempos
necessários, mas contingentes, agregarei que eles devem se recriar para cada
tempo da infância. Sua consideração é relevante de distinções clínicas e
diagnósticas. Não é o mesmo que se tenha efetivado ou não o tempo de ser o
falo, também esse outro tempo, tempo de tê-lo. Não é o mesmo o tempo do
júbilo da assunção especular imaginária e que a criança possa brincar de ser
um personagem. Não é o mesmo estar na linguagem que dispor da palavra.
Suas distinções nos levarão às intervenções do analista: o que fazemos
quando analisamos? Que quer dizer atender à criança quando transportamos a
pergunta ao plano das intervenções do analista? Atender à criança implicará
receber os pais.
Sua lógica nos separa de uma infrutífera discussão. Discutir se recebemos
ou não os pais como uma questão de ordem técnica não é o mesmo que receber
os pais porque se trata de atender ao lugar que a criança tem no discurso dos
24
As intervenções do analista...

pais. Ao recebê-los, nos propomos a situar se assim se constituiu o objeto de


amor, de desejo e de gozo como tempo instituinte; por sua vez, se assim se
recriou o lugar de gozo que uma criança pode ter procurado, se assim se cumpriu
ou não um tempo necessário.
Nas entrevistas com os pais, então, situamos o que é uma criança para
eles e, ao fazê-lo, também localizaremos nosso lugar na transferência, porque
essa transferência dependerá de se a criança é predominantemente um objeto
de desejo, um objeto de amor ou um objeto de gozo.
Sua distinção vai nos apresentar, notoriamente, distintas vertentes da
transferência. Quando a vertente da transferência é predominantemente simbólica,
os pais vêm e consultam, vêm com uma pergunta, procuram saber. Uma vertente
predominantemente imaginária da transferência é muito distinta, já que os pais
vêm, mas não consultam, e, sim, demandam. E o mais difícil dos casos é
quando não consultam e não demandam, os mandam. Mandam-nos os
professores, manda-os o juiz, manda-os o pediatra. Não contamos com a vertente
simbólica da transferência e, muitas vezes, tampouco com a predominantemente
imaginária, mas com a mais complicada para intervir: a vertente real da
transferência. Quando os pais não demandam, vêm muito incomodados.
Recebemos então os pais por uma questão de ordem lógica: atender à
criança que nos trazem e delimitar os tempos do sujeito junto à vertente da
transferência. Depois, por que recebemos também a criança? Porque nos
interessa situar a resposta do sujeito. Como o sujeito responde à criança do
Outro? Que tempo tem? Recriaram-se os tempos ou há uma Fixierung de gozo,
ou seja, houve progressão dos tempos, não digo progresso, ou houve uma
detenção? Em definitivo, diagnosticamos tempos. Ocupamo-nos de localizar se
os tempos se detiveram em sua progressão – não propomos que há tempos
evolutivos, não se trata de tempos evolutivamente progressivos, não há progresso
–, mas há, sim, progressão recriadora dependente da recriação da falta de gozo.
Recebi, recentemente, numa consulta, um menino muito pequeno que
ainda não falava. Apesar de ser pequeno, considerei que devia ser atendido.
Tinha 18 meses, não dizia nada. Atendi à mãe na consulta, e esta me conta que
o pediatra os mandara à neurologista. Eles foram. Haviam feito uma quantidade
de estudos psiconeurológicos para descartar o que nosso tempo convida
predominantemente a pensar, ou seja, se há uma causa orgânica para a
disfunção. Descartaram que houvesse, mas, longe de considerar o sujeito,
desconheciam as consequências que tem para uma criança pequena ter passado
por todas essas avaliações. Na entrevista com a mãe, pergunto-lhe o que pensa,
de por que o filho não fala, e ela me responde: “Eu não sei, eu entendo tudo
dele”.
25
Alba Flesler

Escutam-se rapidamente as ressonâncias de sua expressiva explicação.


De qualquer forma, decidi ver o pequeno, e foi muito interessante, porque vieram
a mamãe, o papai e o pequeno. Ao entrar na sala de espera – esse âmbito que,
como costumo dizer, é outro espaço, mas não outra cena –, sou testemunha de
como, ante minha proximidade, a mãe imediatamente alça o menininho, que até
esse momento estava no chão, sentado, brincando no tapete. Minha intervenção
foi saudá-los amavelmente. Era importante que o pequeno visse que havia uma
relação cordial com a mãe, e depois, também suavemente, peço à mamãe que
por favor o deixe no chão. Ela me olhou um pouco surpreendida, mas apoiou.
Foi muito interessante, porque de estar quieto, quase congelado, nos braços de
sua mãe, o pequeno imediatamente veio brincar comigo. Interessante a resposta
do sujeito. A criança estava nesse tempo de lançar os objetos e emitir sons que,
francamente, não se entendiam. Atirava os objetos como o netinho de Freud
([1920] 1976), que, antes de brincar com o carretel, teve a sorte de contar com
um Outro que aceitou o intervalo. Porque o netinho de Freud lançava os objetos,
e esse foi o primeiro tempo do jogo fora do campo do Outro, longe de onde o
Outro podia encontrá-los. De fato, recordem o modo como Freud o conta: “O
menino tinha um costume perturbador”. É certo, com esse costume perturbador
inicia-se a resposta do sujeito, perturbando o campo do Outro; se o Outro tolera
a perturbação de seu campo, então, em vez de lançar os objetos, de lançá-los e
lançá-los, o sujeito poderá responder como um Fort para um D a. E depois passar
a recriar-se, – terceiro tempo do jogo que Freud menciona –, subtraindo sua
imagem do espelho e dizendo “não está”.
Então, voltando às intervenções do analista, direi que o plural das
intervenções não se refere a uma lógica serial. Elas não fazem série, não se
trata de um plural serial, mas de um plural nodal: o analista intervém no real, no
simbólico e no imaginário.
Essa formalização, que foi aproximada à psicanálise por Isidoro Vegh
(1997) em seu livro, que se chama justamente As intervenções do analista, foi
de grande utilidade para pensar os tempos do sujeito e as intervenções do analista
na análise de uma criança. Porque esse nó que está escrito acima não escreve
tempos, não escreve se o objeto a está funcionando como falta, causa de desejo
no simbólico, no real e no imaginário. Ou se está funcionando como um plus de
gozar, tamponando o furo que convém a cada um dos três. Quando o analista
intervém na infância é porque delimitou o tempo do sujeito e localizou a detenção
na recriação dos tempos. Depois, e a partir dela, intervém com os pais e com a
criança em cada um dos três registros.
Apresento breves recortes clínicos sobre a formalização teórica que as
intervenções do analista implicam. Trata-se de três intervenções no real, que
26
As intervenções do analista...

produzem, em meu entender, uma ressonância em cada um dos três registros.


São três recortes de intervenções no real, mas uma produz um reposicionamento
da falta no simbólico, outra no imaginário e outra no real.
Começarei por Tomy, o chamei assim, um menininho de seis anos. Tomy
se debatia, realmente desesperado, em um tempo de encerramento especular.
Estava preso na dualidade biunívoca do tudo ou nada. Oscilava entre o lugar de
“sabe-tudo” ou “tudo me sai mal”. Quando algo saía bem, gritava exaltado: “Super!”
Mas quando lhe saía mal, seu corpo desabava literal e realmente sobre os móveis
ou o chão. Tinha problemas na escola porque essencialmente estava impedido
de buscar saber, não suportava a falta no saber, por isso não podia tolerar os
tempos da aprendizagem e muito menos interessar-se em saber mais. Cursava
o primeiro ano, e a problemática anterior, referida a esse tempo do imaginário, a
do tempo anterior, se estendia à etapa escolar. O que havia ocorrido é que
desde antes de nascer, e depois, isso havia continuado, o olhar fixo e sem amor
de sua mãe havia caído sombriamente sobre ele, alimentando uma falha na
constituição do narcisismo e impedindo o movimento da mal constituída imagem
especular.
Em uma sessão, havia trazido os exercícios de língua da escola que
estavam por resolver. Então, com a cabeça atirada sobre a mesa, sobre os
cadernos, o único que atinava dizer era: “Tudo me sai mal!” Eu havia tentado,
mesmo que infrutiferamente, tratar de diferenciar que não tudo, que havia coisas
que saíam bem; tentei que registrasse a incompletude no todo, mas, como lhes
disse, infrutiferamente. As palavras não chegavam a Tomy. Parei e, sem lhe
dizer nada, me dirigi ao armário de meu consultório, abri a porta e me pus a
olhar uns desenhos. Ele seguia sem levantar a cabeça, estava submergido no
lamento, o olhar fixo, ele não podia ver. Tomei os desenhos dele, que tinha
guardado e, sem olhá-lo, olhava os desenhos. Sem me dirigir a ele, comecei a
comentar em voz alta: “Que bonito este desenho de Tomy! Este é de quando
veio há dois meses e desenhou o Gaturro! 5 Que bom este outro, que lindo desenho,
que sorte que o guardei!” Pouco a pouco, ouvi-o elevar seu corpo da cadeira e vir
a mim e, parado a meu lado, escutei-o dizer desejoso: “Quero ver, quero ver!” O
olhar perdeu sua gravidade, tirando peso do corpo, e aliviado começou a se
mover. Trata-se de uma intervenção no real que reingressa a falta, dando
consistência à imagem do corpo de Tomy.

5
Personagem de quadrinhos argentino (N.T.).

27
Alba Flesler

Outro recorte: os pais de Franco vieram me consultar, dizendo que já não


sabiam o que fazer com ele. “É imparável” – dizem – “faz o que quer.” Efetivamente,
quando o recebo, entra como um furacão no consultório e me conta displicente
que na escola não pode parar, que se move todo o tempo. E de imediato começa
a me dar ordens, em tom imperativo: “traga-me, alcance-me”, toca tudo sem se
deter em nada, e me antecipa: “Vou ficar 22 mil horas aqui”. Como era de se
esperar, quando terminou a hora não quis sair do consultório; ante minha atitude
decidida, sai, mas retorna, levando os brinquedos do consultório daqui para lá,
sem nenhum tipo de escolha, totalmente desorientado, ia contra as portas, e
evidentemente nem perguntava posso levar isso, posso levar aquilo. O desborde
pulsional não admitia descontinuidade alguma, e o “não” resultava ineficaz,
também minha proposta de continuar outro dia. Pensei para mim, naquele
momento, quão só estava Franco, sem freio, e recordei imediatamente que ele
havia me advertido que “não podia parar”. Ou seja, que a palavra não oferecia
uma borda eficaz à pulsão desbordada. Um momento mais tarde, então, ele se
propõe a entrar novamente no consultório, na sala de espera, meu corpo o impede.
Grita para mim: “Má, supermá!” Eu, parada e imóvel, lhe digo com voz calma:
“Já te disse que não”. Inicialmente tenta forcejar, mas cede ao constatar que
minha força era maior, não que ele, mas que sua enlouquecida pulsão. Detido o
automático, pela primeira vez me olha. Pude ver seus olhos surpreendidos: ele
não podia crer que finalmente havia podido parar. Ao despedir-se, me dá um
beijo, visivelmente aliviado, e em nosso próximo encontro me traz de presente
um desenho com um coração. Trata-se de uma intervenção no real que reintegra
a falta no real desenlaçado.
Um último recorte, esta vez referido a uma intervenção no real com eficácia
no simbólico. Havia me consultado a mãe de uma menininha que chamarei
Lara. Desde que havia morrrido o pai de uma colega do colégio, Lara não queria
ir a lugar algum, queria estar sempre com os pais, de noite também. Antes
dessa situação, comentou a mãe, era sumamente independente, nunca estava
em casa, e ambos os pais estavam satisfeitos com essa atitude e chateados
pela nova dependência. Na primeira entrevista, a mãe me conta que a gravidez
foi uma surpresa. Não esperavam Lara porque já tinham filhos grandes e suas
próprias coisas a fazer. Portanto, não me surpreendeu que, nessa entrevista,
resultasse tão complicado para a mãe encontrar um horário para vir. De fato, me
disse: “Terei que fazer um lugarzinho”. Resignada, advertiu-me que seguramente
o pai não quereria vir porque estava muito ocupado e, além disso, disse que isso
já iria passar com o tempo. No entanto, os dois vêm à segunda entrevista.
Quero descrever o pai porque entra com um gesto sumamente sério e, em meu
entender, significativo. Austero, com óculos escuros que não tira, senta-se e
28
As intervenções do analista...

permanece em absoluto silêncio. Enquanto isso, a mãe falava rapidamente,


como que para completar o trâmite, atendendo simultaneamente incessantes
ligações de seu celular. Foi num desses momentos, enquanto ela atendia o
celular, que aproveitei para perguntar ao pai: “E você, que pensa de tudo isso?”
A resposta me surpreendeu e deu um giro inusitado à entrevista. Diz: “Ao entrar,
vi de sua janela a sacada de minha casa, onde agora vive minha mãe. É a
primeira vez que a vejo de fora” – acrescentou, comovido. Levantei-me da poltrona
e, aproximando-me à janela, lhe pedi que me mostrasse. Ele também ficou em
pé e assinalou-me ao longe um toldo, notoriamente surrado, roto, em cores
azuis e brancas desbotadas. “Como está velho!” – disse com pesar. Parados
junto à janela, confirmei: “Que impactante deve ser vê-lo de fora!” Foi então que
começou a contar-me a história triste de seu pai, que havia morrido em um
acidente de carro. Relatou também como ele se sentiu, sendo muito jovem, por
ter estado junto ao pai no momento do acidente. Desse modo, falando e falando,
tirou os óculos escuros e começou a historicizar, que é um modo de dar passagem
ao tempo. Lara avançou em sua análise e, em muito pouco tempo, pude ver de
minha janela como, na sacada da casa da infância, reluzia um novo toldo vermelho.
Tratou-se de uma intervenção no real que reintroduziu a falta no simbólico, na
palavra amordaçada.
Desse modo, diferenciam-se as intervenções que relançam o movimento
ao reingressar a falta na imagem do corpo de Tomy, daquelas que movem a
palavra amordaçada do pai de Lara e as que põem freio na desordem pulsional
de Franco.
Em todos os casos, então, o sujeito faz seu passo ao reencontro do
desejo, liberado da fixação a um gozo pelo corte que o ato analítico realiza. Isso
indica que as intervenções têm um plural nodal, na medida em que todas elas
apontam ao ato analítico. E o ato analítico, diz Lacan ([1974-1975]s/d) no
Seminário A lógica do fantasma, é fundador do sujeito. Se o analista então
atende à criança, mas aponta ao sujeito, realiza intervenções no real, no simbólico
e no imaginário apontando ao ato analítico.

REFERÊNCIAS
FLESLER, Alba. El niño en análisis y el lugar de los padres. Buenos Aires: Ed. Paidós, 2007.
______. El niño en análisis y las intervenciones del analista. Buenos Aires: Paidós,
2011.
FREUD, Sigmund. Introducción del narcisismo (1914) . In: ______. Obras completas.
Buenos Aires: Amorrortu editores. Tomo XVII, 1976. p.65-98.
______. Sobre las trasposiciones de la pulsión, en particular del erotismo anal
(1917). In: ______. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu editores. Tomo XVII,
1976. p.113-123.

29
Alba Flesler

_____. Pegan a un niño. Contribución al conocimiento de la génesis de las


perversiones sexuales (1919). In: ______. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu
editores, Tomo XVII, 1976. p.175-200.
______. Más allá del principio de placer (1920). In: ______. Obras completas. Buenos
Aires: Amorrortu editores. Tomo XVIII, 1976. p.3-62.
LACAN, Jacques. Nota sobre a criança [1969]. In: ______. Outros escritos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
LACAN, Jacques: A lógica do fantasma, Seminário XIV, 1974-1975. Publicação não
comercial. s/d.
VEGH, Isidoro. Las intervenciones del analista. Buenos Aires: Acme Agalma, 1997.

Recebido em 09/08/2011
Aceito em 05/09/2011
Revisado por Otávio Augusto Winck Nunes

30
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 31-42, jan./jun. 2011

TEXTOS
ALIENAÇÃO – ATO – DESEJO: o
que sabe uma criança?1

Liz Nunes Ramos2

Resumo: O presente texto trabalha a lógica do ato psicanalítico, conforme


proposta por Lacan no Seminário O ato psicanalítico ([1967-1968] s/d). Através
de um caso da literatura, ilustra a alienação, o ato e a assunção do desejo na
infância, a partir da alienação do corpo ao significante e ao objeto a , conforme
inscrições inconscientes portadoras de um saber, suas alterações e efeitos.
Palavras-chave: alienação, ato, desejo, objeto a , infância.

ALIENATION – ACT – DESIRE: WHAT DOES A CHILD KNOW?

Abstract: This text is about the logic of the psychoanalytic act, as proposed by
Lacan in the Seminar The psychoanalytic act ([1967-1968] s/d). Through a case
of literature, illustrates the alienation, the act and the assumption of desire in
childhood, from the alienation of the body to the signifier and to the object a ,
according to unconscious inscriptions than are portable of a knowlegde, its
changes and effects.
Keywords: alienation, act, desire, object a , childhood.

1
Versão escrita a partir da fala de reabertura dos trabalhos do Cartel sobre o Seminário O ato
psicanalítico, ocorrida em 25 de maio de 2011.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). E-mail: liz-
ramos@uol.com.br
31
Liz Nunes Ramos

[...] o ato é, por sua dimensão, um dizer. O ato diz algo [...] A dimensão do
Outro, à medida que o ato vem testemunhar algo, não é mais eliminável [...] aí está
o verdadeiro ponto de inflexão, o centro de gravidade.
Jacques Lacan

A lógica do ato psicanalítico

N as lições de 10/01/68 e de 17/01/68, Lacan ([1967-1968] s/d) formula a


lógica do ato psicanalítico e, através do esquema tetraédrico, demonstra
as vias pelas quais se desdobra a operação analítica. O ponto de partida dessa
operação, ele o situa na alienação do sujeito, desembocando na inscrição da
castração, o que chama de realização da operação verdade.
Ao longo das lições, destaca o que pensa ser o fim de análise a partir de
uma operação que implique o inconsciente, fora da ortodoxia prescritiva. Na
continuidade do Seminário, tomará a mesma lógica do ato psicanalítico para
reformular a formação do psicanalista, o passe, a vida institucional e/ou
associativa. Resumirei os pontos principais dessa lógica e, por ela implicar
profundamente o inconsciente, logo, o sujeito, esboçarei uma breve articulação
com a posição da criança quanto à alienação, ao ato e à assunção do desejo.
O que consta no grafo da lição de 10/01/68 é uma operação que respeita
a temporalidade específica da lógica do significante que organiza as produções
inconscientes. São antecipações e leituras a posteriori, que se desdobram na
análise e na formação. Sobre essa temporalidade, um pressuposto central: há
ato toda vez que algo novo começa, mas ato analítico só há no interior de uma
análise.
Um ato demarca o início de um ciclo, e é o significante inscrito pelo ato
que decide o ponto em que algo se encerra e o novo se reabre pois, no real, não
há começo estabelecido, nem ciclo exato. É o significante que faz corte no real
e inscreve uma perda de gozo, fazendo marca ali onde só havia o real do corpo,
do órgão, e impondo uma ruptura no continuum do real. Retomaremos essa
demarcação num caso recortado da literatura, mais adiante.
Nesse contexto, a pergunta de destaque formulada por Lacan: O ano
novo, onde situá-lo? É aí que está o ato, onde um significante o determina; é o
que o caracteriza, diferenciando-o da ação. Lacan aponta ser essa a estrutura
do ato, um significante enlaçado à ação. O ato falho indica isso: é falho, mas
logrado, por veicular um significante essencial na lógica do inconsciente.
O sentido do ato está numa ultrapassagem que implica o sujeito, como o
ato falho. Como lembra Lacan, assim o fez Júlio César, ao entrar na terra mãe,
a terra da República, enunciando alea jacta est (“a sorte está lançada!”) e lançando
32
Alienação – ato – desejo...

um significante ao mundo, sem saber quais seriam suas consequências. Esse


ato comportou o que todo ato tem de transgressivo, e deu à travessia do pequeno
riacho o sentido de um acontecimento já traçado, uma declaração de guerra a
Roma.
Citando um poema de Rimbaud, Lacan destaca a função do traço na
emergência de um novo desejo:

Um golpe de teu dedo sobre o tambor descarrega todos os sons e


começa uma nova harmonia. Um passo teu é o levantamento de
novos homens e a hora em marcha. Tua cabeça se desvia: o novo
amor! Tua cabeça se volta, o novo amor? (Rimbaud apud Lacan,
[1967-1968] s/d, p.77).

Eis a fórmula do ato, que coloca o inconsciente em jogo, produzindo uma


ruptura sobre o cogito. A fórmula mágica do ato se refere à verdade que emerge
quando se renuncia ao sentido preestabelecido das palavras para dar lugar a um
sentido novo.
O que Lacan (ibid., p. 80) desdobra no esquema abaixo são três
operações: a alienação, a transferência e a verdade. No ponto de partida está o
fato de que o sujeito vem à análise com sua estrutura constituída, alienado no
Outro, com as pulsões organizadas segundo inscrições que lhe são particulares.

33
Liz Nunes Ramos

Para que a lógica da psicanálise se produza, é preciso que haja


psicanalista, e este sabe que o sofrimento do sujeito tem a ver com essas
inscrições inconscientes que o fundaram. Por isso, nos parece que o primeiro
ato de uma análise é que o analista silencie, para que o analisante perceba que
há furo no saber e possa pedir ajuda. Se, como Freud evidenciou, o eu não
sabe, quem sabe? O analista saberia, instalando o sujeito suposto saber e a
demanda na transferência, via pela qual será possível aceder ao saber
inconsciente.
Essa é a condição para o estabelecimento de uma transferência analítica:
supor saber ao analista e suportar se perder nos encadeamentos associativos,
alienar-se para ter acesso ao saber que está fora. Acrescentamos ser a produção
e a escuta das formações do inconsciente o que instala a transferência simbólica,
ultrapassando o imaginário do amor.
Essa é a subversão inicial que Lacan propõe como organizadora do laço
analítico e que levará à subversão da posição do sujeito. Seu ponto de partida é
onde o “eu não sabe”, se pede que o analisante associe livremente, abstendo-se
o analista da fala e da ação.
O que Lacan (ibid., p. 83) chama de “operação verdade” é efeito da
transferência, através da qual o analisante descobrirá que não é o que pensa,
por estar alienado como objeto de gozo do Outro, posição identificatória
determinada pela articulação dos significantes fundadores. É esse lugar de objeto
que será perdido, mesmo que tal identificação, na qual o sujeito acredita ser o
que falta ao Outro, seja uma necessidade estruturante. Uma análise inicia quando
essa ilusão não se confirma, pois a demanda do Outro é infinita. A castração
equivale à simbolização da perda desse lugar de objeto ideal.
O ponto inicial da análise se caracteriza por abordar o “lá onde isso estava”.
Lacan diz: “o Eu deve advir”. Deve romper-se a alienação, feita de ilusão, e
emergir o sujeito. Mas Lacan pergunta: “Será que ele pode advir?” (ibid., p. 78).
Isso não se sabe, quando uma análise inicia. Por isso, também não se sabe se
alguém poderá tornar-se analista, não tendo sentido, na lógica do inconsciente,
propor, antecipadamente, uma análise com fins didáticos. Assim, a passagem à
condição de analista respeita princípios bem específicos e constitui um ato.
Partir desse ponto (“ou eu não penso, ou eu não sou”) se revela, para
Lacan, uma operação lógica necessária e eficaz para abordar a lógica do
fantasma, que comanda o desejo e o gozo no inconsciente.
O falso-ser é inchado de imaginário e, para chegar ao ponto em que
admite a castração, o analista terá suportar o lugar do Outro, a quem se dirige a
idealização e a demanda. A resposta que dará a elas tem a ver com a posição
do desejo do analista, resto de sua análise. Se há analista, há algo que o subtrai
34
Alienação – ato – desejo...

da captura no lugar idealizado e situa esse desejo como o de conduzir o desejo


do analisante a outro ponto, passar do “eu não penso” à lógica do “eu não sou”
(objeto da demanda do Outro). A afirmação do ser recairá sobre “eu não sou
senão um traço, unário”.
O efeito de marca do traço unário põe em relação o Eu ideal e o Ideal do
eu. A tarefa do psicanalista será operar com eles, no que se refere ao ato sexual,
na medida em que nele não há complementaridade. Contrariando o Eu ideal, no
qual o sujeito se propõe como objeto que faria Um com o Outro, a inscrição da
castração deixa como resto um traço que organiza o Ideal de eu e o exercício do
desejo dispensando qualquer objeto de complementaridade.
O fim da operação analítica supõe a realização da “operação verdade”, na
qual o sujeito se desloca desse falso-ser para reencontrar-se com seu traço
constitutivo, deslocando-se da identificação ao objeto a , que vela a falta do Outro.
O que se inscreve como castração é que o Outro não encontrará sua
complementaridade no a que o sujeito era. A inscrição da falta no Outro equivale
à a s s u n ç ã o d o d e s e jo , p e la j.
c a s t r a ç ã o q u e s e in s c r e v e -

A lógica do ato operada via transferência refere-se a manipular os


significantes de maneira que o analisante possa operar com o objeto a como
faltante, como causa de desejo, e não mais como organizador de sintomas; que
suporte, ao buscá-lo na relação sexual, encontrar apenas sua falta.
Na última lição do Seminário A lógica do fantasma, a do dia 21/06/67,
Lacan ([1966-1967] 2008) lembra que o fantasma não é mais do que uma frase
– Uma criança é espancada –, uma articulação significante, que enlaça sujeito
e objeto. Indica que, nesse fantasma, o objeto a é o olhar, que erra, voa, sem
poder ser apreendido, nem eliminado.
Ponto essencial desdobrado na lição de 17/01/68 (Lacan, [1967-1968] s/
d) é o que Lacan desenvolve sobre a economia do gozo, por definição masoquista,
pois sempre comporta alienação. Ele situa que o saber do mestre resulta da
renúncia ao gozo, é assim que ele se institui, por admitir a castração.

O que sabe uma criança?

Para avançarmos a respeito do olhar e da alienação, trago o caso de


Natascha Kampuch (2010), para ilustrar, no tema do refém, tomado no real do
corpo, as diferenças entre a alienação à determinação fantasmática e à inscrição
simbólica. O caso também ilustra o que Lacan traz quanto à alienação do $ no
fantasma ($<>a), que é desfeita em análise.
Trata-se de uma menina austríaca, sequestrada nos arredores de Viena,
em 1998, aos 10 anos, a caminho da escola, e que permanece cativa por 3.096
35
Liz Nunes Ramos

dias – título do livro3 que escreve após a fuga. No dia de seus 10 anos, Natascha
decide que esse será o primeiro dia de uma nova vida. Na época, seus pais já
estão separados – o que implica uma severa fratura narcísica –, e ela não está
em boas relações com a mãe, que a humilha e a submete a maus tratos;
considera-se feia, é vítima de bullying na escola, sente-se sozinha e está bastante
deprimida. Nesse dia havia discutido com a mãe, que a esbofeteara no rosto. A
menina sai de casa sem se despedir, para ir sozinha à escola, tentando demarcar
com esse ato o início de um ciclo de restauração narcísica, de uma nova posição
subjetiva. Está amedrontada, mas aposta na coragem para fazer a travessia à
nova vida. Ao mesmo tempo, o trajeto é acompanhado da fantasia de atirar-se
na frente de um carro; assim, ao perdê-la, a mãe se arrependeria por maltratá-la.
Onde está inscrita para ela a castração da mãe, já que precisaria faltar no real
para reconstituir seu lugar no amor materno?
Quando avista o sequestrador, ele a olha insistentemente. Ela avança
em sua direção, tomada pelo medo, mesmo suspeitando de algo estranho em
seu olhar e no carro com a porta aberta. Diz que poderia ter atravessado a rua e
trocado de calçada, mas, ao invés disso, com olhar baixo, tenta passar entre a
porta do automóvel e o pedaço de calçada restante; momento no qual é capturada
e jogada para dentro do carro. Contudo, frente à decisão de subtrair-se ao universo
materno (primeiro tempo de seu movimento de separação), é evidente que ela
não poderia ter atravessado a rua. Ela não teria como recuar frente à decisão de
desvelar o desconhecido que essa travessia implicava, quanto ao outro universo
que ela teria de conquistar, sobretudo os interrogantes quanto ao sexo, com os
quais não se recusa a se confrontar. Assim iniciam anos de horror, escravidão e
tortura.
Ela fora advertida quanto aos riscos de andar só: “– Pense em tudo que
podia acontecer a você”, dizia a mãe, enquanto a menina acompanhava com
avidez os inúmeros casos de sequestro de garotas violentadas e mortas na
Áustria. Natascha pensava sobre isso, ou melhor, fantasiava, incluindo-se nas
cenas dos corpos mutilados, despedaçados, abandonados nos matos. De forma
que é possível supor a vigência de uma fantasia inconsciente relativa à
identificação ao objeto de gozo, ao dejeto, no campo sexual, fantasia conectada
ao que horrorizava a mãe, sempre preocupada em se excluir da miséria reinante
no entorno.

3
KAMPUCH, Natascha. 3096 dias. Campinas: Verua, 2010.
36
Alienação – ato – desejo...

Apesar de atrair olhares quando saía com o pai, pelas roupas bonitas, ela
percebera que a admiração não implicava um interesse genuíno. Não era mais o
pai da primeira infância. Sentia-se sozinha quando este a deixava de lado nos
bares, uma espécie de boneca, um corpo pouco animado pelas trocas discursivas
ou por traços de feminilidade transmitidos pela mãe. Ao contrário, esta situava
seu corpo feminino como prestes a ser violado. E o ciclo de presença-ausência
do pai tornava sua função pouco confiável. A “escolha” de Natascha, de se subtrair
a essas determinações, é corajosa, mas nessa intenção de desvelar que Outro
lugar o olhar de um homem lhe reservaria tem o infortúnio de se deparar com
alguém muito pouco qualificado para lhe responder.
Quanto a isso há passagens do relato a destacar.
A primeira se passa quando, decorridos muitos anos de cativeiro, Natascha,
interrogando-se sobre seu valor de mulher, sobre a posse de um atributo fálico,
pergunta ao sequestrador por que foi “escolhida”. Ele responde: “- Você veio até
mim como um gato de rua”. Ou seja, não havia atributo fálico; “gato de rua”
indicava um lugar sem ponto de arrimo, vadio e decaído. E ela o escolhera.
Mesmo que tentasse demonstrar coragem, o olhar baixo evidenciava sujeição. A
essas alturas, ela já fora submetida à fome e a trabalhos forçados, emagrecera
muitos quilos, tivera os cabelos raspados e a pele queimada; portava hematomas
e lesões musculares diversas e doloridas, e encontrava-se desorientada, por
sistemáticas destituições de referências temporais e simbólicas.
A s e g u n d a s e r e f e r e a o s e g u i n t e c o m e n t á r io d o s e q u e s t r a d o r : “– E u

s e m p r e q u is t e r u m a e s c r a v a ”. E la c o n t a q u e t r a b a lh a v a s e m in u a , e x p o s t a a o

o lh a r c o n s t a n t e e , a o s a í r e m à r u a , n ã o l h e e r a p e r m it i d o o l h a r p a r a n in g u é m ,

n e m u s a r c a lc in h a s , c o m o f o r m a d e c o n s t r a n g im e n to . O q u e d e v e r ia s e r v e la d o ,

r e l a t iv o à d if e r e n ç a s e x u a l, e r a e x p o s t o a t o d o o m o m e n t o , n ã o o p e r a n d o

e n q u a n t o r e p r e s e n t a ç ã o , n e m s e lig a n d o a o d e s e jo . N ã o h a v ia r e n ú n c ia , d o

s e q u e s t r a d o r, a o g o z o e s c ó p ic o p r o p o r c io n a d o p e lo o b je t o p u ls io n a l o lh a r. I s s o

n o s r e m e te à p o s iç ã o e s c r a v iz a d a d e N a t a s c h a , p e lo o lh a r d e p r e c ia tiv o d a m ã e ,

q u e lh e m a r c a o c o r p o c o m o e x c e s s iv o , g o r d o e d is f o r m e , n ã o d e s e já v e l, s e m

u m a p a la v r a d e e n la c e e n t r e s u a f e m in ilid a d e e a d a m ã e ; a o m e s m o t e m p o e m

q u e e v o c a a q u e d a n a r c í s ic a p a r a o p a i , o o lh a r d e s r e s p e it o s o d o s h o m e n s d e

b a r d o u n iv e r s o p a t e r n o . M a c a b r o c r u z a m e n t o f a n t a s m á t i c o d e e le m e n t o s d e

s u a h is t ó r ia c o m a d e m a n d a d o s e q u e s t r a d o r. N ã o e n c o n t r a o h o m e m q u e

p o d e r ia d e s e já - la , m a s u m q u e a a lie n a a o m e s m o o lh a r a u s e n t e / e s c r a v iz a n t e

d o q u a l p r e t e n d ia s e s a f a r. N e s s a é p o c a já t o m a r a u m a s e g u n d a d e c is ã o ,

im p o r t a n t e n a c o n s t r u ç ã o s ig n if ic a n t e d e s u a lib e r t a ç ã o . E la s e r e c u s a r i a a

c h a m a r o s e q u e s tr a d o r d e mestre, como ele lhe ordenava, e era incessantemente


espancada por isso.
37
Liz Nunes Ramos

O livro ainda mostra a vigência de outros objetos pulsionais, alienantes. A


voz, a qual, através de um equipamento de som, o sequestrador fazia ecoar no
cativeiro sem cessar, ao mesmo tempo em que também captava todos os sons
de Natascha, inclusive sonhos, choro, etc. E o objeto anal, já que sadicamente
a reduz à condição de dejeto humano. Destaco o olhar por estar presente nesse
momento organizador da captura.
A jovem foge após completar dezoito anos, ocasião na qual decide não
passar o resto de sua vida cativa. Novamente, em torno de um significante –
dezoito anos, que comporta emancipação e responsabilidade pelo ato –, ela
tenta fazer um marco; enquanto ele esperava essa data para desposá-la contra
sua vontade. Assim, pela potência da inscrição do significante dezoito anos
começa a reunir forças para fugir. Um momento em especial demarca a virada
em sua posição: aquele no qual Natascha mantém a negativa de declará-lo
mestre, é ameaçada de morte, espancada e desmaia. Ao acordar, escolhe morrer
e decide manter sua recusa, dizendo ao sequestrador que ele havia montado
um jogo do qual só um dos dois sairia vivo, e pede-lhe que a liberte. Dessa vez
ele se detém. Jogo. Aí se revela sua apreensão do imaginário, da falta de verdade
existente no jogo de imagens: ele não a ama, nem a deseja, quer apenas ser
um mestre, a qualquer preço. A negação de seu pedido de libertação a autoriza
a empreender uma luta de vida ou morte, e introduz na situação, já cristalizada
há longos anos, a dimensão da pressa, essencial para a precipitação no ato,
conforme Lacan ([1945] 1998) expõe no texto do tempo lógico. Sem ela, o jogo
sadomasoquista e a dúvida se estenderiam indefinidamente. Bastava que ela
gemesse de dor, de uma forma um pouquinho ambígua, para que ele se
confirmasse como mestre de seu gozo, a despeito de sua recusa. Ao optar pela
morte, Natascha lhe diz que ele não pode ser seu mestre, para sê-lo é preciso
alguém que goze da posição de escravo, e disso ela não gozará. A partir daí, ele
descobre não ter sobre ela o poder de vida ou morte que afirmava ter. É a
introdução do significante morte que transforma a mesma recusa de sempre em
ato e instala os limites do simbólico, situando o corpo não mais como objeto de
gozo.
Poucos dias depois, ao limparem o carro no jardim, toca o telefone, e o
sequestrador se afasta para atendê-lo. A fala de Natascha o fragilizara, e ele a
deixa sozinha pela primeira vez do lado de fora da casa. Finalmente o olhar se
desprende dela, que pode vislumbrar a possibilidade concreta de fuga. Ela já
está fora, fora do domínio discursivo do sequestrador. Coloca-se, então, esse
momento de vacilação que sempre está implicado num verdadeiro ato, que
antecede à asserção da certeza antecipada, na qual o sujeito se precipita no
ato, e encontra a saída afirmando-se pelo traço que porta. Natascha sabe que
38
Alienação – ato – desejo...

se for pega será morta, a fuga é sem volta, então abre o portão, foge e procura
abrigo nos jardins das casas vizinhas. Tal ação se faz acompanhar de algo
particular: ao pronunciar seu nome a uma mulher, sente-se retornando do além.
Todos a consideravam morta, por isso, ao pronunciá-lo, sente-se renascer. Há
anos não o ouvira, nem o dissera para ninguém, pois o sequestrador a obrigara
a escolher outro nome. Escolhera Marie, seu segundo nome, mas este não lhe
soava seu. Deixara de ser Natascha, e não era Marie. A ação de fuga associada
à enunciação de seu nome o reinscreve no discurso do Outro e faz da ação, a
posteriori, um ato, ressignificando todas as decisões anteriores.
Poucas horas após a fuga, o sequestrador conta o que fez ao único amigo,
diz que “queria uma virgem intocada” e, a seguir, desce do carro e joga-se na
frente de um trem. Natascha chora ao saber de seu suicídio, pois ele fora a
única pessoa com quem tivera contato durante os anos de cativeiro, ele fora seu
Outro; o que divide a opinião pública, colocando-a sob suspeição de conivência.
Cabe esclarecer que, para sobreviver, Natascha teve de alienar-se à lógica do
sequestrador, o que é bem diferente de conivência. Sem Outro, não há sujeito;
Natascha precisava que alguém fosse suporte de suas representações
inconscientes, para que essas continuassem a valer para ela. O tempo de
compreender e o momento de concluir não são quaisquer. Antes desses
desdobramentos discursivos, certamente não poderia sustentar seu ato de
separação.
W olfgang Priklopil não era um perverso, mas um obsessivo – que a toma
numa montagem perversa – o que talvez tenha contribuído para ela safar-se viva.
Mas não só. O relato mostra que, se Natascha encontrou a saída, foi porque
percebeu que a recusa à castração era o motor do crime, cometido por não
haver inscrição de objeto perdido, e que havia sofrimento subjetivo em seu algoz
por isso. Soube lidar inconscientemente com a impossibilidade de o sequestrador
simbolizar a ausência do objeto. Ele era o cativo, cativo da necessidade de
apreender o objeto no real, ponto fraco do obsessivo, sempre a perseguir o gozo
absoluto. Ela “soube” (falo do saber inconsciente) “jogar” na linguagem (jogo de
significantes, simbólico, diferente do jogo de imagens) com o fato de que, para
o sequestrador, ela era esse objeto que ele precisava assegurar, algemar ao
corpo, bater, degradar, e que fazer semblante desse objeto seria seu trunfo,
ganhando tempo e margem de negociação. É essa degradação do objeto (do
sexual ao dejeto) que confere ao obsessivo um toque perverso, conforme o
sadismo da pulsão anal. A avareza do sequestrador indica seu aprisionamento
numa estrutura cujo falo se encontra positivado e degradado.
Ao conhecer a falta de Priklopil, Natascha o destituiu da pretensa mestria.
O mais marcante é que, para tanto, ela precisou alienar-se, ao mesmo tempo
39
Liz Nunes Ramos

em que persistiu na afirmação de que ambos eram mortais, castrados,


recusando-se a reconhecê-lo seu mestre. Ou seja, ela refez os três tempos da
constituição do circuito pulsional, reinscrevendo a própria alienação, para depois
disso, num tempo posterior, encontrar a separação. Com isso, preservou-se de
uma desintegração psíquica irreversível, e enfraqueceu as defesas do
sequestrador contra o desejo que ela preservou.
Priklopil não se via, mirava somente o resto, o dejeto. Ela, ao contrário,
assume o risco de interrogar o Outro para saber o que lhe falta e concluir que
não pode supri-lo. Ao oferecer-lhe a escolha de libertá-la e quitar sua dívida para
com a lei, ela barra com palavras o olhar fascinado que a submete, fazendo-o
sucumbir ao que nela advém de desejo. Ao longo dos anos, Natascha sustenta
a renúncia ao gozo masoquista, ultrapassando a condição de ideal decaído, de
virgem vítima, nada intocada, aliás, porque aqui ser batida era ser violada. Ao
longo de sua narrativa, a vemos inscrever a disjunção entre o a e o -j, colocando
a barra sobre o S ($), rompendo identificações, por atos de pura fala, pois não
dispunha de nenhum outro recurso. Ela fez valer a potência da lógica do
significante, por palavras e silêncios, para animar seu corpo feminino mortificado.
Lacan ([1967-1968] s/d, p.106) se pergunta, na lição de 17/01/68:
“há consequência fora da articulação de uma sequência significante?” Na
menina, podemos ver que, apesar de tudo, algo subsistiu sob forma de inscrição
no inconsciente, que ela cultivou como a parte mais preciosa de si mesma, para
suportar seu cotidiano. Ela agarrou fragmentos inconscientes, o que restou de
Natascha, reconhecendo-lhes o valor de um saber capaz de reorganizar seu
espaço físico e subjetivo, reconstituiu cadeias de sua relação à mãe, à avó, ao
pai, à Áustria, às letras. Deixou o significante em seu jogo interrogando se ainda
valia alguma coisa para o Outro, se era amada, se ainda poderia amar. Decide
que qualquer coisa seria melhor do que o cativeiro, que o sequestrador não era
o único Outro, já escolhera a liberdade de escolher, mesmo que a única escolha
fosse a liberdade de morrer. Se não era ninguém, nem Natascha, nem Marie, o
que teria a perder? Não restam dúvidas de que o libertador foi seu apego à lógica
do inconsciente e da linguagem.
Se, de início, o sujeito está ingênuo em relação a sua alienação, quando
coloca em movimento a dimensão da linguagem, como único instrumento de
sua realização desejante, ele tem uma escolha a fazer: renunciar ou não ao
gozo unificante, na conjunção com o sexo oposto, com o Outro sexo.
Essa pequena, tão sábia, cativa do gozo, soube operar com o que origina
toda a estrutura e define a posição de cada um, ou seja, segundo a posição
psíquica operada pelo objeto a . Ao final de sua narrativa, Natascha se diz aliviada,
não só por estar livre, ou pelo sequestrador estar morto, mas por ter encontrado
40
Alienação – ato – desejo...

palavras para contar o que aconteceu em seu livro, embora nada disso vá se
apagar de sua memória. A posteriori, a escrita diz do bem-sucedido de seu ato,
ela está advertida de que seu cativeiro é parte dela mesma, mas não é tudo, há
um nome. Para o sequestrador, contar a história não bastou. Para Natascha,
passar à ordem da escritura foi o que lhe permitiu representar-se no campo do
Outro de outra forma, não como vítima, concluindo seu projeto de ser outra ao
reinstalar o Outro da língua, o leitor, como referência. Não está aí o caráter
libertador do ato? Encontrar palavras para o indescritível... Não é essa a função
do psicanalista, a tarefa humanizante, por excelência?
Nessas lições do Seminário O ato psicanalítico, Lacan ([1967-1968] s/d)
sustenta que, para eliminar o objeto a da fantasia, o analista deverá suportar
fazer semblante desse objeto de gozo para operar a ruptura da identificação do
sujeito a ele, recortando um significante que o represente como sujeito. E, ainda,
suportar que o sujeito se dirija ao Outro; logo, o analista não pode encarná-lo,
deverá cair (desser) do lugar de sujeito suposto saber, para que o sujeito surja
como falta em ser, não preenchendo o que falta.
Essa queda do objeto a é operação irreversível para o psicanalista e o
confronta com o incurável da falta que funda o desejo, ou seja, não há objeto,
nem saber, que supra a demanda do Outro. Se há desejo do analista, ele sabe
que o ser é sem essência, como são todos os objetos a , sempre reevocados no
ato psicanalítico. Por isso, todo ato marca o impossível de reencontrar o gozo
absoluto, já que somos seres de linguagem, puros efeitos de uma marca
significante. O absoluto é mortífero, foi o que Natascha interpretou para Priklopil,
que passa ao ato, se deixa cair (se laisse tomber4 ), identificado ao a que Natascha
não mais encarna. Prova de que a relação do sujeito ao ato se modifica.
O que se formula nestes termos escorregadios, do ato em falso, do artefato
de um sujeito suposto saber sempre em queda, é a mais potente interrogação
lacaniana quanto à lógica do inconsciente: O sujeito pode advir? Um psicanalista
pode advir? Suportaremos os furos do saber para extrair consequências do
inconsciente, dos laços nos quais não haja unificação; ou reinstalaremos as
miragens que o objeto a coloca em jogo?
A clínica e o que chamamos de vida “real” nos mostram que sempre
poderemos, com benefícios, interrogar as crianças: sem saber que o fazem,

4
Ver Lacan ([1962-1963] 2005, p. 125).
41
Liz Nunes Ramos

elas costumam confiar no inconsciente e nas palavras para fazer frente ao real
do sexo. Quando não o conseguem, fazem sintomas; o que, para um bom
entendedor, conduz à interrogação quanto à posição ocupada por elas na
estrutura, no fantasma parental, para o qual precisarão encontrar respostas.

REFERÊNCIAS
KAMPUCH, Natascha. 3096 dias. Campinas: Verua, 2010.
LACAN, Jacques. O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada [1945]. In:
______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. p.197-213.
______. A lógica do fantasma [1966-1968]. CEF do Recife, 2008. 450 p. (Publicação
não comercial).
______. O ato psicanalítico [1967-1968]. Escola de Estudos Psicanalíticos, s/d. 282
p. (Publicação para circulação interna)
______. O seminário, livro 10: a angústia [1962-1963]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2005.

Recebido em 05/08/2011
Aceito em 09/09/2011
Revisado por Valéria Rilho

42
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 43-53, jan./jun. 2011

TEXTOS
DE ONDE SURGE O
BRINCAR E O DESENHAR?
Silvia Eugenia Molina1

Resumo: O texto interroga a possibilidade de pensar o desenho e o brincar


como equivalentes das formações do inconsciente e da associação livre dos
adultos. Essa hipótese sustenta-se a partir do aparecimento do desenho e do
brincar como produto do laço transferencial e, também, do laço parente-filial
orientado pelas funções parentais.
Palavras-chave: transferência, brincar, desenho, castração.

WHERE DOES PLAY AND DRAWING COME FROM?

Abstract: The text interrogates the possibility of thinking the drawing and play
as equivalent of the formations of the unconscious and free association of adults.
This hypothesis rests in the appearance of the drawing and playing as a product
of the transferential lace and also of the parent-son lace guided by parental
functions.
Keywords: transference, play, drawing, castration.

1
Psicóloga; Psicanalista; Especialista em Psicologia e Clínica; Professora do Centro de Estudos
Paulo Cesar D’Avila Brandão, do Centro Lydia Coriat de Porto Alegre; Membro da equipe de
direção do Centro Lydia Coriat de Porto Alegre; Membro da Associação Psicanalítica de Porto
Alegre (APPOA). E-mail: lydiacoriat@lydiacoriat.com.br

43
Silvia Eugenia Molina

N outra oportunidade, nos ocupamos em definir a transferência2, trabalhamos


na perspectiva do estabelecimento de um laço particular a partir do qual o
paciente supõe no analista a capacidade de leitura do saber da subjetivação
(Lacan, [1960-1961] 1992). Proponho agora que passemos a situar de que lugar
surge a transferência.
Qualquer criança possuidora de mínimas condições para se comunicar
desenha ou se expressa por outros recursos imaginários próprios da infância
(garatujas, modelados incipientes, manchas com pintura ou alguma modalidade
do brincar). Essas produções emergem pelo e no laço transferencial. Ocorre
assim, também, no laço parente-filial, se os pais tiverem condições subjetivas
para sustentar a pequena criança, promovendo a estabilidade do significante. A
estabilidade do significante constitui uma referência simbólico-imaginária parental,
que permite à pequena criança demarcar a “porta” (borda) simbólica para transitar
entre o familiar e o social. Dessa forma, estende os limites da conquista simbólica
ao espaço social da realidade que lhe é indicada. A estabilidade do significante
se dará através da palavra e do olhar, discurso simbólico, imaginário veiculado
pela criança ao Outro, intermediado pelos outros parentais.
Mas, caberia interrogar: o brincar e o desenho, surgindo dessa maneira,
podem ser assemelhados à associação livre? O desenho porta uma mensagem,
além da que ele dá a ver? No exercício clínico, na inter e na transdisciplina,
constatamos que as crianças modificam o tipo de produção na presença do
analista ou do profissional da área instrumental, ou seja, existe uma diferença
de endereçamento da produção que é posta em ato pela criança.

2
A transferência na intervenção psicanalítica com crianças: estabelecimento de um laço
particular a partir do qual o paciente supõe no analista a capacidade da leitura do saber da
subjetivação: o saber da subjetivação provém do efeito que o discurso parental terá sobre as
marcas corporais registradas desde o estágio fetal no contato carnal, afetivo simbólico com a
mãe, até a época do domínio da linguagem, por volta dos três anos. A partir daqui, recalcadas,
essas marcas continuarão a se manifestar como revivescências durante a vida do sujeito.
Ess e retorno tem consequências emocionais que geram c ondições favoráveis para a
ressignificação. O analista, por sua vez, terá de fazer a leitura para depois traduzir em
palavras a expressão simbólica das manifestações da imagem inconsciente que o laço
transferencial provoca. Através da leitura da produção imaginária, terá de diferenciar o sintoma
clínico, o de estrutura e os diferentes momentos da subjetivação. Por se tratar de um sujeito
em constituição (bebê-criança), o analista terá de sustentar esse laço, encarnando os
personagens que facilitem a instalação e a ampliação da função simbólico-representativa. A
formação teórico-clínica tem de ser instrumentalizada via saber da subjetivação do próprio
psicanalista, processado pela análise pessoal. É precisamente isso que possibilita que as
crianças modifiquem o tipo de produção na presença do analista ou do profissional da área
instrumental.
44
De onde surge o brincar e o desenhar?

Verificamos, também, que toda criança que mantém alguma forma de


laço com o social traça não o que vê, mas aquilo que ela significa do que vê. Seu
objetivo é dar a ver ao Outro, para ser interpretada, na tentativa de encontrar
maneiras de aliviar seu desconforto subjetivo, o que logo entende quando encontra
um espaço de escuta. É possível perceber esse fato desde que a sincronia3
tenha sido instalada na estrutura da linguagem da criança e, consequentemente,
na comunicação, através do laço primordial com a mãe que encarna a função
materna. Isso nos permite dizer que a criança se constitui na via de acesso à
fala (como função) por identificação com o desejo materno de vir a se comunicar
com o(s) outros/Outro4 (Lacan, [1972-1973] 1992b).
Como se dá o trânsito dos recursos imaginários primordiais para o
simbólico? Um bebê, situado no simbólico – operação propiciada pela mãe,
que, encarnando a função materna, encontra vias imaginárias para apoiar o acesso
ao projeto simbólico, enquanto se dispõe a percorrer as castrações necessárias
–, pode comunicar-se e interpretar o mundo, e encontra no brincar, inicialmente,
e, a seguir, através do desenho, a oportunidade de fazer esse trânsito. Ou seja,
um bebê terá a possibilidade de recuperar simbolicamente o objeto primordial,
sua mãe, do qual está destinado a se separar. Separação da qual se beneficiará
com os ganhos que a promessa simbólica aponta.
Apresento duas vinhetas clínicas para exemplificar essa transição.
Marcelo, num primeiro momento, através da relação privilegiada com a sua mãe,
situa como o objeto pulsional primordial se desdobra em todos os objetos

3
A modalidade do ato de filiação do bebê será efetivada a partir da estruturação fantasmática
do casal parental. A formação fantasmática contém os referenciais éticos, morais e estéticos
transgeracionais, e transmitirão os indícios significantes em relação aos lugares que o sujeito
como criança, adolescente ou adulto, ocupará nos espaços familiares e sociais (sincronia).
Tal transmissão configura a sabedoria do bebê, inscrevendo, portanto, a imagem inconsciente
do corpo, formação psíquica que cria o substrato significante, direcionando a existência
subjetiva que possibilita a progressã
o constitutiva do desenvolvimento do bebê, da criança e do adolescente no decurso do tempo
(diacronia). Portanto, a formação fantasmática familiar transmitida deverá conter o saber
inconsciente que possibilita a formulação das teorias sexuais infantis. Para que essa
transmissão de indícios de significantes se transforme em transmissão significante, será
preciso que as funções parentais operem encarnando a sustentação psíquica do filho, através
do laço filial, modulando as transmissões simbólico-imaginárias através do afeto, e em todos
os momentos da constituição subjetiva.
4
Nos referimos à pluralidade dos Nomes-do Pai.

45
Silvia Eugenia Molina

pulsionais parciais que a família e o social lhe indicam 5. Gabriela6 transita para
outro momento da constituição subjetiva, o de Pequena Criança. Ela nos mostra
que, por meio do brincar e do desenho, adquire competências para continuar
indagando os ganhos simbólicos de sua separação do corpo e do psiquismo
maternos. Separação que legitima seu estatuto de sujeito, livrando-se de ser
um subproduto do corpo materno, um cocô, para aceder à condição de sujeito,
através das teorias sexuais infantis, instituindo o desenho como uma via de
acesso ao simbólico.
Gabriela, com um ano e nove meses de idade, conta acerca dessa
experiência subjetiva, que podemos acompanhar passo-a-passo. Ela está
brincando com seus pais de procurar os ninhos dos ovos de Páscoa que ganhara,
abrindo as caixas de alguns brinquedos que também recebeu nessa
oportunidade. Uma dessas caixas contém fantoches da Turma da Mônica7. O
pai a está ajudando a abrir a embalagem quando, de dentro dos fantoches, sai
um rolo de papel que “dá corpo” àqueles. A saída desses enchimentos a
surpreende tanto, que começa a recolhê-los, mostrando-os para a mãe, que
está grávida, filmando a cena, e os nomeia de “cocô”. Coloca o primeiro deles na
cestinha que contém os ovos, fazendo uma alusão clara à teoria sexual infantil
(Freud, [1905] 1976a) de que tudo provém e depende de mamãe. Na saída do
segundo rolo de papel, ao qual ela denomina de “cocô”, o pai lhe indica que

5
Marcelo é filho de uma psicóloga-psicanalista e, frequentemente, vê sua mãe trabalhar com
o material, que, torna-se suporte para dramatizar essa vivência psíquica tão fundamental.
Chamo de metáfora do pontilhado da folha:  a metáfora surge a partir da figura sugerida pela
brincadeira de Marcelo, interpretada à luz do esquema lambda, de Lacan. Nessa brincadeira,
ele rasga a folha em branco, obtendo dois pedaços, que logo reúne e afasta, reiteradamente.
Em cada ato, sempre observa o espaço resultante do rasgado da folha. Com essa brincadeira,
ele obtém os quatro elementos que constituem o número do simbólico: a mãe, o bebê, o
rasgado que indica a função do pai, que encarna a função paterna, e o resultado dessa
operação – o espaço virtual, não substancial, a falta gerada pelo destaque da folha.
6
Esta vinheta foi analisada a partir de filmagens realizadas no convívio familiar de Gabriela.
7
Características dos personagens da Turma da Mônica. O personagem Mônica, menina que,
apesar de se defender até com a força bruta, sabe manter laços de amizade, em especial com
Magali, demonstrando também um temperamento dócil e feminino, apaixonando-se pelos
rapazes bonitos do bairro. Magali, menina de apetite voraz, fundamentalmente por melancias,
sabe ser amiga. Horácio é o filhote de tiranossauro que conseguiu recalcar sua agressividade,
tornando-se meigo, amigo, gentil e solidário. Gosta de expressar sua opinião, filosofando.
46
De onde surge o brincar e o desenhar?

coloque a mão no buraco interno da cabeça por onde se manipula o fantoche.


Ela recusa a fazer isso com certa expressão de nojo, evidenciando já estar
constituindo as diferenciações simbólicas: limpo-sujo e alimento-excremento.
A seguir, a convite do pai tenta, ela própria, tirar o enchimento do fantoche
da Mônica. Como não consegue, o pai a ajuda, enquanto ela comenta: “vai sair!
É cocô! É cocô! E o outro cocô?”, pergunta a menina. A mãe lhe indica que ela
o colocou na cesta, da qual o retirara. O pai pergunta de quem é o aniversário?
Ela responde: “da Isabela”, sua boneca, “e o Bidu”. Busca sua boneca e deita-a
na cesta dos ovos de Páscoa, respondendo para o pai que “Isabela vai levantar,
estava tomando banho”. Pela cena, começa a entender que os filhos que se
formam na barriga da mamãe se diferenciam dos excrementos. Nessa
associação, ela faz o deslocamento do significante “cocô” (produto corporal
valioso por representar os filhos no momento da teoria sexual alimentar, na qual
o que prevalece é a imagem da onipotência materna) para o significante “filhos”
(“ovos na cestinha”, “o outro cocô”, aquele dos ovos (redondos) na cestinha”
(útero). Busca uma panela (útero), na qual coloca seus “tic-tacs” (prendedores
de cabelo, representando ao que prende, ao que liga). Mostra isso para o pai,
dizendo que “esta é a panela da Bruxa Má. Nela, a Bruxa faz comidinha:
massinha, coração, cocô e gelatina. A Bruxa Má bateu e ela quer coração”. A
mãe de Gabriela, que, através da outra forma do amor, “coração”, indica-lhe
outro momento da estruturação das teorias sexuais infantis: o da participação
do pai na concepção dos filhos, que se dá através dos encontros de gente
grande (“quer grande, os ovinhos”), mas a mãe pode transmitir também, bater se
ela continuar a fazer esse pedido ao pai. Sobe na perna do pai, falando do
fantoche. Aponta para a prateleira superior da biblioteca e diz para o pai: “quer
grande, os ovinhos”.
Apresenta a necessidade de conquistar o coração do pai e que quer fazer
com ele algo de “grandes” (gente grande), que tem a ver com os ovinhos, com a
gestação. Quer conquistar o coração do pai, pois agora sabe que ele também
participa na formação dos filhos na barriga. Porém, aqui surge um inconveniente:
a presença da Bruxa Má quer o coração do pai e pode comer o coração da
menina, caso ela continue nessa investida amorosa com o pai. Intui, também,
que aquela é esperta em conquistar corações, é quem sabe “preparar corações”,
que é dela que recebe este saber.
Ao apanhar um dos ovos feitos de cascas de ovos de galinha pintados,
cheio de balas, diz para o pai “quer bala” (a palavra ‘bala’ é utilizada, normalmente,
pelas crianças pequenas para indicar doçuras do laço amoroso). Há aqui mais
uma modalidade do convite amoroso que começa a desdobrar. Recolhendo os
“tic-tacs” da panela, quer colocá-los dentro da cesta. O pai indica que dentro da
47
Silvia Eugenia Molina

cesta vão se perder, sugerindo guardá-los dentro do ovo que já está aberto e que
ela mesma pintou. Ela aceita, pedindo ao pai para “segurar o ovinho”, ato que
metaforiza o filho que juntos concebem, para o qual ela contribuirá com as
estratégias femininas, para incrementar os encantos pessoais, conseguindo
assim acelerar os “tics-tacs do coração conquistado”.
Gabriela encena o coelho da Páscoa pulando: “puem, puem, puem!...
caia para cima... quer o baum” (ovo de Páscoa grande), o qual segura e deixa no
chão...continua batendo no ovo de casca de galinha e “descascando-o”, fazendo
“picadinho” dele...”coelho da Páscoa pulando, não gosto de balanço, não gosto
de balanço... um grandão, um grandão, outro grandão... o grandão esse”!
Vemos aqui que corre o risco de virar “picadinho”, com a ameaça de
vingança da Bruxa Má, caso ela persista nas suas tentativas de fazer algo que
está além do seu alcance – “pular”, para fazer filhinhos como os coelhos (um
dos animais mais prolíferos e, na nossa cultura, na Páscoa, simboliza a fertilidade
e, além disso, ao pular, metaforizam o ato sexual) coisa de gente grande. Por
essa razão, declara que “não gosta de balanço”, desse balanço que é coisa de
“grandões”.
No instante seguinte, fala: “Estou abrindo, quer abrir, abrindo... estou
mexendo no chocolate”. O pai diz que terão que tapar esse buraquinho. Ela diz
que “quer ver o buraquinho do chocolate”. Apesar de não ser fácil desistir de
mexer com o que é doce, pois ela é “uma dentucinha que nem a Mônica”,
Gabriela terá que metabolizar os significantes através do desafio, ou da
agressividade, para conseguir inscrever os significantes doados, apropriando-se
deles para construir uma diferença. Porém, o pai lembra que nesse buraquinho,
nessa brincadeira de imaginarizar como é que é, terão que colocar uma tampinha,
a tampinha do esquecimento operado pelo recalcamento.
Prossegue dizendo: “Descascar mais, descascar mais... picadinho, soltei
um pum!... Estou cortando... quero desenhar, quero desenhar, quero uma caneta,
tirar” (a tampa da caneta). Passa a desenhar num dos pedacinhos do ovo triturado.
Nesse momento, o pai oferece uma folha para desenhar. É essa ameaça
(representada pela Bruxa Má) de trituração que evidencia o risco da perda de
partes do corpo (e escapa um pum), vivência subjetivo-corporal que coloca a
necessidade da renúncia, da perda do objeto indevido (“estou cortando” expressa
o que quer dizer: é preferível aderir à castração). Isso a leva a tentar recuperar
aquele objeto através do desenho (“quero desenhar, quero uma caneta, tira a
tampa”). Apela assim ao recurso imaginário de reaver o objeto, simbolicamente
perdido, pela via do desenho, usufruindo, então dos benefícios da castração
simbólica (em lugar de sofrê-la) e obtém assim o aditamento de se apropriar de
um novo campo de representação do objeto.
48
De onde surge o brincar e o desenhar?

Quando ele chega com a folha, ela já se encontra desenhando em suas


próprias mãos “coração e bolinhas”. E, também, o faz na mão do pai “coração e
bolinha”, e garatuja nela o seu nome: “Gabriela”. Passa a desenhar nas mãos
deles as “bolinhas” (nas pequenas crianças a forma redonda das “melancias”,
dos seios, dos ovinhos configuram suportes para a simbolização da condição
feminina de gestar e alimentar os filhos). As “bolinhas” tornam-se o agente
significante dos filhos, produtos deste amor que seu pai sustentou para fomentar
a tarefa de simbolização, empreitada a partir da qual consegue ganhar seu nome
próprio: “Gabriela”. Começa a cantar “sempre amiga assim é Magali, comilona
igual, eu nunca vi”... “Horacio, Horacio”... “Sou a Mônica, sou a Mônica, dentucinha
e sabichona”. Tira as sandálias, apesar de o pai se opor, chamando pela mãe
(que já tinha saído). O pai pergunta se ela quer o colinho da mamãe e ela
responde que sim. Dá para o pai um “presente, moeda, um cheque, para pagar
dodoínha”. Passa a pular no colo do papai e diz: “pulei no papi”.
Aparece aqui o ganho simbólico aportado pela decisão de acolher a
castração; em decorrência disso, surge a continuidade identificatória com as
outras mulheres, através da preservação do laço amoroso com a sua mãe. A
separação, efeito da castração, permite-lhe entender, ao mesmo tempo, os outros
e se entender, conseguindo filosofar acerca da narrativa da novela familiar. Desse
modo, torna-se um sujeito qualificado como seu ídolo, Mônica, aquela que sabe
colocar em prática o saber inconsciente delegado para ir armando um projeto
simbólico para sua vida, no qual lhe seja possível perder ganhando. Por esse
legado simbólico, ela sente-se em dívida com seu pai, por ele ter possibilitado
metaforizar o drama através do qual é possível escrever, entendendo através da
sua narração das teorias sexuais infantis o sentido da sua vida (Freud,
[1908]1976b). A teorização é retomada e ampliada por Bergés e Balbo (2001).
Por isso, agradece por ele ter conseguido “entender”, inconscientemente, sua
“dodoínha” – essa “loucura” provocada por sua dor, “a dor da doidinha”, a dor de
ter de esquecer aquilo que, caso ela continuasse insistindo, a deixaria “doidinha”.
Conseguiu entender, via saber inconsciente, que caso ela teimasse em não
renunciar, teria de enfrentar o pavor da loucura8.

8
Como Bergès, J. e Balbo, G. (2001) resumem que o trânsito à subjetividade se dá através da
sexualização da teoria na infância (da teoria acerca de onde vêm as crianças) à sublimação
parcial da pulsão através da pulsão de investigação, com o simultâneo recalcamento da
pulsão de morte. No entanto, quando esse recalcamento não opera, não acontece a formulação
das teorias sexuais infantis, porque a teoria do nascimento das crianças não seria sexual (o
nascimento se daria pelo autoengendramento ou numa relação com Deus), razão pela qual a
libido busca um outro alvo que não o sexual: a pulsão de morte.

49
Silvia Eugenia Molina

Diferenciando o desenho do desenhar, podemos considerar o desenho


como ato. Através de Gabriela, constatamos que, na sua produção, a criança se
expressa com sua mão para além da consciência. A mão é a ferramenta que
ganhou, na passagem do estádio do espelho (momento em que a mãe, no
exercício da função materna, terá de sustentá-la, legitimando a descoberta da
mão) ao momento da Pequena Criança. Com isso, há um outro estatuto para a
mão, utensílio psíquico e corporal que lhe permitirá administrar o laço parental e
familiar, podendo, a partir de agora, ampliar o laço social na diacronia, enquanto
constrói a realidade. A mão é o instrumento que ela se ocupa em “preparar”,
apropriando-se dela ao rabiscá-la ou pintá-la.
Ato que Gabriela também mostra ao pintar as mãos do protagonista principal
dessa cena, seu pai, suporte e apoio, além de destinatário, dessa construção.
Torna-se um saber que provém das marcas corporais registradas desde o estágio
fetal no contato carnal, afetivo e simbólico com a mãe, até a época do domínio
da linguagem, por volta dos três anos. A partir daqui, essas marcas recalcadas
continuarão a se manifestar como revivescências durante a vida do adulto. Com
isso, nos deparamos com o desenho como ato de inscrição gráfica do Outro.
Ato de apropriação-inscrição que é estratégia de desafio aos significantes doados
e sustentados pelas funções parentais. Nesse sentido, o desenho reuniria o
eixo diacrônico e o eixo sincrônico próprio à linguagem.
Mas a inscrição, agora na dimensão do traço simbólico, se diferencia da
marca imaginária. No trabalho de leitura psicanalítica vemos esse sujeito inaugural
ocupado em continuar trabalhando na apropriação simbólica da representação
do si mesmo.
Gabriela se ocupou muito bem em exemplificar esse desenvolvimento e,
através da interpretação, podemos entender os desenvolvimentos lacanianos do
Eu como instância imaginária de desconhecimento, de ilusão, de alienação,
sede da identificação e das relações duais, portanto do amor, do ódio e da
agressividade (diferenciadas somente quando marcadas pelo simbólico na
sincronia). Tais aspectos se diferenciam do sujeito do inconsciente, instância
simbólica, autônoma em relação ao Eu. Portanto, a inscrição no inconsciente
possibilita o enlace ao registro do simbólico, campo da linguagem, do significante.
Esse Outro, através do qual o sujeito poderá se constituir, antecede a ele, já que
o inconsciente é o discurso do Outro e o desejo é o desejo do Outro.
É no registro do inconsciente que o analista terá de operar, através da fala
(como função, a cadeia do discurso, do sujeito), pois será nela que o inconsciente
se manifestará, através das formações do inconsciente (atos falhos, chistes,
sonhos, da cadeia do significante, o discurso do sujeito do inconsciente). Em
consequência, o desejo, produto da falta operada pela lei (interdição do incesto),
50
De onde surge o brincar e o desenhar?

sustenta o registro do simbólico. Já o real estará constituído pelo Outro terrificante,


que persiste em mergulhar o bebê, a criança e o adolescente, num universo
informe, carente da intervenção estruturante do significante. Disso se deduz que
o objeto é sempre metonímico. O objeto do desejo é necessariamente objeto do
desejo do Outro, sempre objeto do desejo disso que falta e que foi perdido
primordialmente, fato que determina a sujeição do sujeito ao significante. Assim
sendo, não há significação a não ser metafórica, pois ele surge da substituição
de um significante por outro significante na cadeia simbólica. E, algumas vezes,
encontramos a produção de palavras que, ao mesmo tempo, apresentam um
valor metonímico e metafórico e que, por isso, carregam uma significação.
Nas pequenas crianças, com função simbólica, encontramos o prazer de
construir e inventar palavras recalcantes, apropriando-se do recurso que manifesta
liberdade de expressão, possível pela função simbólica à qual a criança se acolhe,
além de usá-las para assegurar o recalcamento.
À diferença dos casos anteriormente trabalhados e à produção da pequena
criança que apresentarei a seguir, encontramos, crianças com sintomas clínicos
muito restritivos. Por exemplo, com mutilações imaginárias, que mostram a
possibilidade de comunicação pelo desenho ou recursos antes citados
(modelagens incipientes ou manchas com pintura) se constituírem numa carcaça
de comunicação. Assim, necessitam apoiar-se nas palavras e na intervenção do
analista para, através do brincar ou do desenho, sustentarem a relação
transferencial.
Um exemplo do uso das “palavras recalcantes” é dado por uma analisante,
que chamaremos Raquel, de três anos de idade. Quando contava com dois
anos foi diagnosticada com paralisia cerebral leve, com sequelas de hemiparesia
esquerda.
Numa sessão, ela chega querendo desenhar “uma minhoca. Uns
‘talhaços’. E H de Cecília, minha colega, e a Cecília nem é a minha amiga, é
amiga da Nina. Uma mão. Essa mão que é como um bicho de mão”.
Chega contando que hoje vem tentar entender isso dos “talhaços” na
minhoca. Constatou que seu corpo foi cortado (lesão real, orgânica) e precisa
compreender como isso se relaciona com as diferenças que ela não gostaria de
saber, pois gostaria que o H (H de homem) fosse das meninas. Isso que foi
talhado provoca muito ressentimento, a ponto de começar a ver sua mão como
algo monstruoso.
Pergunto: – “Como é esse bicho de mão?”
“Esse bicho de mão é como um pai, porque é grande... Estou fazendo um
monstro, que nem o que o mano faz. Vou fazer agora uma borboleta. Vai ficar
enrolada no porão. E uma cobra com três ‘combes’”.
51
Silvia Eugenia Molina

“O que são os ‘combes’?”


“As ‘combes’ são como as ‘giges’. É uma borboleta no porão. O minhocão
e a ‘salase’. Estou fazendo um monstro de tinta, e não é de verdade! É o monstro
do pai que tem. Está escondido atrás do binóculo dele”.
Tinha pintado sua mão de cor de rosa e, a seguir, pinta de preto. Ela
também constata que essa maneira de ver sua mão está contaminada da forma
como o seu pai vê sua mão, na qual ela teme ficar enrolada, aprisionada, como
a “borboleta no porão” (suporte do significante da função simbólica). Borboleta
insere-se como inseto leve e sutil, semelhante à matéria da qual é feito o simbólico,
e alude à feminilidade nas meninas.
“Ver a tua mão como um bicho de mão te vem do pai...”. Aqui ela diz que a
lesão fantasmática não vem dela, que vem do pai, porém teme se contaminar por
ela. Nesse momento pega outra folha, sobre a qual cai um pingo de tinta preta.
– “Alguém pintou aqui”.
– “Então vamos trocar a folha, porque não pode alguém pintar tua mão de
preto, de bicho de mão. Tu escolheste que ela seja cor de rosa”...
– “Estou pintando as unhas de marrom. E de preto e de rosa. É que o
mano não gosta de rosa! Silvia, não fui eu que pintei, o pincel caiu...”.
– Tu dizes que não foste tu que escolheste a cor de rosa, mas que ela
surgiu pela queda do pincel.
No fim da sessão, ela, além de se perguntar se o H é delas porque lhes
foi arrancado (mutilação peniana), se pergunta se foi esse mesmo corte que faz
com que ela veja a sua mão como um bicho de mão, ou isso lhe acontece
porque a enxerga através da ótica do pai (lesão fantasmática). Constatamos
que a ferida narcísica da mutilação peniana está potencializando a lesão
fantasmática.
O objeto do desejo, que é eminentemente produtivo, é aquilo que nos faz
interrogar a peculiaridade da nossa existência para projetar a vida através da
criatividade pela identificação com o Outro. Essas três crianças colocaram em
evidência que a função interrogativa, instrumento da gestação das teorias sexuais
infantis, já está presente no bebê, quando introduzido na cultura, através dos
pais em condições psíquicas para exercerem as funções. Para tanto, é
necessário que elas funcionem na antecipação simbólica, motivando o bebê,
desde o início da sua vida, a participar segundo a modalidade subjetiva deles.
Em consequência, desde suas primeiras atividades corriqueiras, ele será pulsado
pelos interrogantes “O que eles querem?” “O que eles querem de mim?”, assim
como também “E o que eu quero para mim?”
Podemos então pensar que, na infância, o brincar e o desenho surgem
como efeito da castração, e que são formas de expressão simbólica através das
52
De onde surge o brincar e o desenhar?

quais é possível para a criança expressar seu discurso inconsciente (Lacan,


[1957-1958] 1999). E que, pelo laço transferencial, assim como o laço parente-
filial, configuram espaços que funcionam, para a pequena criança como
facilitadores das produções infantis. Tal espaço tem como objetivo o cultivo da
versão simbólica da subjetividade, no sentido da sua inscrição pela singularidade.
Sendo que essas crianças, através da transferência, também se dirigem ao
Outro, através do analista, supondo nele a capacidade de leitura e de interpretação
que favorece a significação, portanto, a expansão da função simbólica através
da metáfora paterna, ferramenta que garante a possibilidade de manter velados
os significantes na sua mutação metonímica.
Em consequência, para concluir, essas modalidades de manifestação –
o desenho e o brincar – constituem na infância equivalências das formações do
inconsciente nos adultos.

REFERÊNCIAS
BERGÉS, J.; BALBO, G. A atualidade das teorias sexuais infantis. Porto Alegre: CMC
Editora, 2001.
FREUD, S. Três ensaios sobre as teorias da sexualidade [1905]. In:______.Obras
psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976a, v.VII. p. 123-253.
______. Sobre as teorias sexuais das crianças [1908]. In:______.Obras psicológicas
completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976b, v.IX. p. 213-230.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente [1957-1958].
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1999.
______. O seminário, livro 8: a transferência [1960-1961]. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editores, 1992a.
______. O seminário, livro 20: mais, ainda [1972-1973]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1992b.

Recebido em 18/10/2011
Aceito em 06/01/2012
Revisado por Otávio Augusto Winck Nunes

53
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 54-62, jan./jun. 2011

TEXTOS

NOTAS DO INFANTIL1
Heloisa Marcon2

Resumo: O artigo apresenta duas dimensões da música que são constitutivas


do sujeito. A primeira concerne ao que a linguagem maternante porta de estrutura
da linguagem; a segunda concerne ao que, pela própria estrutura da linguagem,
escapa sempre ao dizível – dimensão esta da voz como pura música ou da voz
como objeto a .
Palavras-chave: psicanálise, música, matriz simbólica, objeto a , recalcamento
originário.

NOTES OF INFANTILE

Abstract: The article presents two dimensions of the music which are constituitive
of the subject. The first is about what the mothers’ language has of the language
structure; the second is about what, through the language structure, always
escapes the utterable – it is the dimension of voice as pure music or voice as
object a .
Keywords: psychoanalysis, music, symbolic matrix, object a , original repression.

1
Trabalho apresentado na Jornada de Abertura da APPOA: O Infantil na Psicanálise, realizada
em Porto Alegre, abril de 2011.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Mestre em
Filosofia/UFRGS. E-mail: heloisamarcon@yahoo.com.br

54
Notas do infantil

“A música desperta o tempo; desperta a nós [...]”


Thomas Mann

O objetivo deste trabalho é trazer algumas notas do que nós, psicanalistas,


estamos escutando da música do infantil.
Quais as notas do infantil? O que da voz, do grito e da fúria, ao ronronado
carinhoso, incide na matriz simbólica do sujeito? E o que escapa dali e retorna
para nos assombrar?
Quero chamar a atenção para o que vou nomear aqui de duas dimensões
distintas da música que incidem sobre o sujeito e tomarei emprestadas de Ítalo
Calvino as duas metáforas para apresentá-las.
A primeira dimensão da música me surge negativamente, isto é, a partir
do que ela não é. Ela diz respeito ao contrário do que Ítalo Calvino atribui ao
poeta Leopardi3 como milagre: “aliviar a linguagem de todo seu peso até fazê-la
semelhante à luz da lua” (Calvino, 1990, p.37). Então, essa primeira dimensão
da música concerne ao que a linguagem maternante porta de estrutura da
linguagem – aí o peso da linguagem – e funda a matriz simbólica no infans,
implantando no organismo do filho um funcionamento significante mínimo.
Vejamos como isso se dá.
Ângela Vorcaro (2005) apresenta no texto “Incidência da matriz simbo-
lizante no organismo – condição necessária ao advento da fala” os dois momentos
de implantação dessa matriz. O primeiro momento ela nomeia de alternância
circular e recíproca, porque o organismo da criança vai do estado de tensão para
o de apaziguamento e deste para o anterior, sem que haja propriamente intervalo,
isto é, uma ausência; há sempre a presença da tensão ou imediatamente a
presença do apaziguamento. Trata-se da relação de mera oposição alternante
que se sobrepõe em continuidade recíproca, ou seja, os termos se determinam
reciprocamente na relação diferencial em que um reenvia ao outro em
continuidade. Isso “é o que sustenta a condição mínima para a possibilidade
simbólica estrutural, ou seja, ao que virá a ser um sistema que não conhece
igualdades”(Vorcaro, 2005). Isso, porque aqui os dois termos já se opõem; então
já não são iguais, mas só são algo, um em oposição ao outro. Claro que quem
promove a passagem de um estado ao outro, ou de um termo ao outro, é a mãe,
que lê as manifestações orgânicas do filho como mensagens. “As manifestações

3
Giacomo Leopardi (1798-1837) é considerado por muitos o maior poeta romântico italiano e
um dos melhores líricos da literatura ocidental.

55
Heloisa Marcon

vitais são signos, marcas que representam um sujeito para alguém, ou seja, a
mãe antecipa uma posição de sujeito aderida ao ser” (Vorcaro,2005). O grito do
bebê, inicialmente apenas manifestação de seu fluxo vital, grito de necessidade,
é transformado pela mãe em demanda de um sujeito. “Na fugacidade desse ato
de supor um sujeito no grito situa-se o ponto de inseminação no simbólico”
(Vorcaro, 2005). Dessa forma, o grito, mesmo se for repetido idêntico pelo filho,
vai ser lido de forma diferente pela mãe, avançando “na direção significante, uma
vez que muda de valor a cada emissão” (Vorcaro, 2005). Inevitavelmente, em
algum momento, haverá um desencontro, e o termo alternante que devia
comparecer vai vir cedo demais ou tarde demais e vai ficar excluído. E, então, o
infans ocupará essa posição vazia com seu grito. Mas agora, nesse segundo
momento, momento de escansão, momento em que se explicita a impossível
sustentação da automaticidade tensão-apaziguamento, o grito e a coisa se
desconectam um do outro, e o grito surge como a primeira substituição do
infans!

Isto que se desprende como grito, que se separa do corpo passando


por um orifício do corpo, ultrapassa a função fonatória do organismo,
é referência invocante, resquício de um objeto indizível, que faz
dessa emissão o que não se pode dizer (Vorcaro, 2005).

O grito busca recuperar o que estava antes ali e agora não compareceu,
busca apagar a falta na qual para sempre o sujeito estará, no intervalo diferencial
que mobiliza o ciclo da repetição no campo do desejo. E “...o que o faz surgir
sujeito ao campo do Outro é um significante binário, por articulá-lo (S2) com o
que o teria satisfeito (S1)”(Vorcaro, 2005). Então, o que faz o sujeito surgir como
sujeito ao campo do Outro é o grito, S1, ser lido e interpretado pela mãe, e
nessa medida ele já ser S2 ali no campo do Outro, estando apenas nessa
medida (através da leitura da mãe) articulado ao S1, ao que o teria satisfeito.
Dado que vimos que o grito e a coisa já se desprenderam, então o S1 não é
propriamente o representante da coisa; é, antes disso, o traço da falta da coisa.
É nesse sentido que se pode dizer que o sujeito é arrancado de sua imanência
vital e lançado no campo do desejo, ficando, a partir de então, a buscar ou dizer
disso que o teria satisfeito (S1) a partir dos S2.
Dessa forma, da univocidade de signos e da transparência da linguagem
do primeiro momento (da alternância circular e recíproca),passamos, nesse
segundo momento, para a emergência da equivocidade e da opacidade da
linguagem, uma vez que haverá, para sempre, um indizível, verdade perdida e
irrecuperável no jogo de significantes em que entrou o sujeito a partir de S1-S2.
56
Notas do infantil

Rousseau e Wittgenstein gritaram até a morte e só conseguiram dizer do


irrecuperável S1 através dos equivocados S2! 4.
Lembrei de uma situação clínica. Coordeno uma oficina de música5 e,
naquele ano, nesse espaço, compúnhamos músicas, algumas vezes
coletivamente, e noutras, alguns se arriscavam num solo. Numa dessas vezes,
um paciente chega inspirado e já sugere o tema e já sai improvisando algo tipo
um rap. Ele foi falando/cantando uma frase após a outra. E nós fomos anotando
como foi possível a letra que ele ia fazendo e, depois, organizamos o ritmo, isto
é, algo com uma estrutura que, enquanto tal, delimita intervalos, pausas, respiros.
No entanto, mesmo depois dessa estrutura rítmica ensaiada com ele, ele seguiu
cantando uma frase emendada na outra, independente do que determinava o
ritmo. E assim o fez uma vez após outra, até que fizemos o seguinte: ele cantava
a frase e nós contávamos o intervalo até chegar o momento de ele entrar com a
próxima frase. Funcionou! Claro que não estou afirmando que esse sujeito tenha
se estruturado sem a matriz simbolizante, que seu corpo não tenha sido marcado
de alguma forma pelo ritmo, por algum mínimo intervalo, tanto que ele fala – e
muito, sem parar, tudo levando a tudo, sem uma amarragem central, organizadora
e limitadora; trata-se de um psicótico –, mas me é impossível não lembrar da
alternância circular e recíproca do primeiro momento de constituição da matriz
simbólica, porque ele não conseguia, sozinho, manter o ritmo, pois o ritmo é
feito de intervalo. Do ritmo, do tempo, só participa plenamente, ou seja, só é
habitado, atravessado, o sujeito que for estruturado a partir do intervalo instaurado
no momento em que a automaticidade tensão-apaziguamento cai por terra e o
sujeito, barrado pela língua materna, é lançado no campo do desejo. A hipótese
sustentada por Didier-Weill para a psicose vai, justamente, na direção disso que

4
São dois filósofos que, cada um a seu modo, acreditaram e trabalharam intensamente no
desenvolvimento de teses que pretendiam demonstrar a possibilidade de uma linguagem sem
equívocos – Rousseau, a partir da idéia da transparência da linguagem, e Wittgenstein, a partir
da pretensão de formalização de toda a linguagem. Eles queriam evitar a todo custo a
equivocidade da linguagem e mantê-la no nível da univocidade dos signos.
5
Trata-se de uma oficina terapêutica sob minha coordenação, que acontece num CAPS II, uma
vez por semana, por uma hora e meia, e tem a participação de usuários desse serviço e
residentes do Programa de Residência Integrada em Saúde. A proposta da oficina, basicamente,
é estarmos ali reunidos e nos relacionarmos, tendo a música como ponto de ligação. A oficina
muda todo ano, de acordo com os participantes. Dessa forma, em alguns momentos da
mesma, trabalhamos apenas em composições do grupo e, em outros momentos, apenas
cantamos e tocamos as músicas sugeridas pelos participantes.

57
Heloisa Marcon

aparece como impossibilidade para esse paciente da oficina de música. Afirma


ele: “[...] a foraclusão psicotizante é justamente uma foraclusão desse enxerto
do tempo” (Didier-Weill, 1997, p. 257). Lembremos que, para Lacan, a operação
constitutiva da psicose é a foraclusão, enquanto a da neurose é o recalcamento.
A voz como música, mas ainda nessa primeira dimensão da música, ou
seja, com o peso da estrutura da linguagem, é a voz da mãe que fala com o filho
e o chama a entrar na linguagem, aproximando-se das condições de apropriação
dele: quando ela usa da prosódia ou do mamanhês, ou seja, quando ela fala

[...] com uma entonação que se caracteriza pela grande incidência


dos picos prosódicos, pela sintaxe simplificada, pelo uso de
diminutivos, pela evitação de encontros consonantais – frequente-
mente suavizados por substituição de fonemas –, pela repetição
silábica e pelo uso de um registro de voz mais alto que o habitual
(Jerusalinsky, 2004, p. 206).

Mas essa prosódia da voz da mãe só funciona, isto é, só tem função


estruturante, quando invoca realmente o filho; quando, ao falar com o bebê em
mamanhês, a mãe faz intervalo, porque supõe ali um sujeito e espera dele uma
resposta. Só assim ela o invoca. Ela assim o faz, portanto, pelo ritmo e pelo
tom, e não pelo conteúdo! Claro que, com isso, alguns significantes, e não
outros, vão ficar marcados. “A musicalidade presente na fala da mãe, seus picos
prosódicos e seus silêncios vêm sublinhar inconscientemente certos pontos
significativos do que é dito” (Jerusalinsky, 2004, p. 208). Apesar de o mamanhês
ser feito de termos compartilhados entre mãe e filho, que nem sempre existem
na língua – nesse sentido ele estar fora da lei –, pode-se pensar, junto com
Julieta Jerusalinsky, que o mamanhês “[...] fica situado como um efeito de tal
castração” (Jerusalinsky, 2004, p. 210), a castração sendo (como vimos acima
quanto a S1-S2) a falta do objeto inerente à estrutura da linguagem. Por intermédio
do mamanhês se começa a nomear e diferenciar coisas, mas não se consegue
dizer tudo com ele, ficando preservado o equívoco e o indizível. O mamanhês,
então, não é, ainda, um bom exemplo da voz como pura música, pois ele está
mais do lado da fala do que do lado do que falta a ela; eles (mãe e filho) estão
realmente ocupados com os sentidos daqueles sons, que o signo ‘mama’ funcione
para designar a ‘mamadeira’ para ambos.
Como efeito da fundação da matriz simbólica temos, então, o que, pela
própria estrutura da linguagem, escapa sempre ao dizível, temos o que arrisquei
nomear de segunda dimensão da música, que incide sobre o sujeito. Tal
dimensão, sim, seria propriamente a do milagre de Leopardi (da leveza),
58
Notas do infantil

apresentado por Calvino na escolha da seguinte imagem: “a voz de uma mulher


que canta na janela” (Calvino, 1990, p. 37). Trata-se da voz como pura música,
como o que Harari (1997) apresenta como o que falta à fala. Trata-se, portanto,
da voz como objeto a , como isso que sobra na operação de surgimento do
sujeito no campo do Outro, e que resiste à significantização, conforme Lacan
([1962-1963] 2005, p. 36) apresenta no primeiro esquema da divisão do Outro e
do sujeito no Seminário “A Angústia”.

A voz como pura música ou a voz como objeto a é a voz como objeto da
pulsão invocante, cujo circuito se dá, como propõe Jean-Michel Vives (2009),
entre um “ser chamado”, um “fazer-se chamar” e um “chamar”. Mas, para chamar,
é preciso oferecer a voz, é preciso dispor de sua voz, sem ser obstaculizado
pela voz do Outro. E, como sabemos, esse pode ser todo o problema – conseguir
não ser obstaculizado pela voz do Outro. Podemos pensar nas diversas situações
em que a fala do Outro pode tomar o estatuto de mandamento e funcionar
como interpelação nas situações de passagem a ato ou nos surtos psicóticos.
Vives nos oferece um exemplo preciso da voz como objeto a e da possibilidade
de modificação do lugar do sujeito no circuito da invocação num início de
tratamento.

Étienne veio se consultar depois de uma tentativa de suicídio


ocorrida em estranhas circunstâncias. Depois de ter recebido um
telefonema de sua mãe, de quem, uma vez mais, parece ser o
objeto de ásperas advertências, “eu vim me tratar, diz ele, de todos
os nomes de pássaros” desliga e impõe-se, então, a ele, a certeza
que deve pôr fim a seus dias... Esse ato não se concretiza, visto
que sua companheira o encontrou inconsciente, porém vivo. O
que se pode dizer ao sujeito acerca das circunstâncias de sua
tentativa de suicídio, durante a nossa primeira entrevista, é que

59
Heloisa Marcon

ele ficou sem voz diante das ondulações sonoras das palavras
maternas e o mais estranho é que ele não reconheceu a voz de
sua mãe, quando esta lhe tinha aparecido estranhamente diferente.
Parece interessante que, durante a primeira sessão, o paciente
introduza o animal e mais particularmente o pássaro, de quem se
tem o hábito de associar à voz, para tentar considerar o que
especifica sua relação com a mãe. O animal, sendo absolutamente
estranho ao significante, ao ser introduzido logo na nossa primeira
entrevista, fez o paciente pressentir que alguma coisa naquilo que
escuta do discurso de sua mãe, escapou ao registro da palavra: o
que escapa é a voz. Algumas semanas mais tarde, ele esclarecerá
esse aspecto, dizendo: “eu disse, inicialmente, que não tinha
reconhecido a voz dela, ora parece-me mais justo dizer que ouvi
sua voz, mesmo que não saiba muito bem o que eu quero dizer.Com
efeito, acrescenta ele, eu a ouvi novamente quase no fim, mas
desta vez, isso era diferente, eu também falava alto e mais forte
que ela (Vives, 2009, p.188-189).

Vives levanta a questão do estatuto delirante da certeza de Étienne para


se matar, lembrando da proximidade do funcionamento superegoico com a
alucinação auditiva. Edith Lecourt (1997) recolhe da escrita de Freud, um precioso
trecho a esse respeito:

O que havia incitado o sujeito a formar o ideal do eu [supereu],


cuja guarda é entregue à consciência moral, era justamente a
influência crítica dos pais, tal como é transmitida pela voz deles
[...] (Lecourt,1997,p. 51; grifo meu).

A voz da mãe de Étienne, que retorna na dimensão de objeto a no Real,


naquele momento, invadiu totalmente o sujeito – que pôde, num segundo
momento, procurar o analista. Algo ali, naquele momento, não fez intervalo na
“[...] continuidade monstruosa estabelecida entre a voz do Outro e o mutismo
que ela provoca no sujeito” (Vives, 2009, p. 190). Lembram-se da continuidade
recíproca entre tensão-apaziguamento?

No caso desse paciente, o estofo desse Supereu reduz-se a um


fragmento de voz desatrelado de suas amarras simbólicas, o mais
próximo do objeto errático denominado, na teoria lacaniana, objeto
a (Vives, 2009, p. 192).
60
Notas do infantil

Diante dessa injunção, o paciente ficou sem voz, afundando-se num


silêncio mortífero, “[...] presença absoluta que ainda não teria a efração da
pulsação criada pela alternância presença/ausência” (Vives, 2009, p. 193).
Lembram-se da presença alternada – presença da tensão, presença do
apaziguamento que ainda não é presença/ausência?
Mas um intervalo estava instaurado e em funcionamento em Étienne,
mesmo que tenha sincopado ou pausado no momento da passagem ao ato dele
na tentativa de suicídio. Lembram que ele contou que, ao final da ligação telefônica,
ele gritou com a mãe, falou mais alto e mais forte que ela? Então, “[...] ele tenta
cobrir a voz da mãe com a sua” (Vives, 2009, p. 193). Ele tenta cobrir ou fazer
calar a voz da sua mãe como objeto a no Real.

Assim quando a voz se desvela como apelo impossível de ser


respondido, o sujeito é, então, confrontado ao real. Pode então,
seja, escolher ingressar no simbólico, “abrindo a sua garganta”
como esse paciente podia fazê-lo, ou decair no real, tornando-se
o “lixo”, o “dejeto”, “a merda”, [...] aquilo que interpreta como sendo
o desejo do Outro (Vives, 2009, p. 194).

Mas o que possibilita responder diferentemente ao impossível apelo da


voz do Outro como objeto a ? Dito de outro modo, o que possibilita fazer uma
barreira a essa pulsão cujo componente corporal não tem como fechar – o ouvido?
Ou ainda: como tornar-se surdo à pura continuidade vocal do Outro?
Vives, seguindo Didier-W eill, propõe o recalcamento originário como sendo
o que faz toda diferença. Ele não fala diretamente do recalcamento do traço
unário, como o faz Didier-Weill6, mas parece propor uma metáfora para tal
recalcamento: o ponto surdo (ao invés de ponto cego) – esquecimento do timbre
originário, surdez ao real, que é o som musical da voz. Dessa forma, depois de
estruturado o ponto surdo, “O sujeito que era invocado pelo som originário, tornar-
se-á, pela palavra, invocante. Nessa reviravolta de situação, o sujeito conquistará
sua própria voz” (Vives, 2009, p. 197). E ficará, de quebra, protegido das
alucinações auditivas.

6
Conforme trabalhei no texto Notas da pulsão, em Fundamentos da Psicanálise, Revista da
APPOA, n. 31, dezembro/2006, p. 68-75.

61
Heloisa Marcon

O ponto surdo, estruturado por intermédio do recalcamento originário, é


como um intervalo silencioso a partir do qual o sujeito pode surgir para produzir
som – grito, palavra, fala ou ronronado carinhoso (como na insondável nostalgia
da voz de Billie Holiday, quando canta o amor impossível do Outro por ela7).

REFERÊNCIAS
CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das
Letras, 1990.
DIDIER-WEILL, Alain. Os três tempos da lei. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
DIDIER-WEILL, Alain. Nota azul: Freud, Lacan e a arte. Rio de Janeiro: Contra Capa
Livraria, 1997. p.57-104.
HARARI, Roberto. O seminário “A angústia” de Lacan: uma introdução. Porto Alegre:
Artes e Ofícios, 1997, p.188.
JERUSALINSKY, Julieta. Prosódia e enunciação na clínica com bebês: quando a
entoação diz mais do que se queria dizer. In: ______. Quem fala na língua? Salvador:
Ágalma Editora, 2004.
LACAN, Jacques. O seminário ,livro 10:a angústia [1962-1963]. Rio de Janeiro: J.
Zahar Ed., 2005.
LECOURT, Edith. Freud e o universo sonoro. Goiânia: Editora UFG, 1997.
Mann, Tomas.A montanha mágica.Rio de Janeiro:Ed.Nova Fronteira. 2006.
VIVES, Jean-Michel. A pulsão invocante e os destinos da voz. Psicanálise & Barroco
em revista, Juiz de Fora, v.7, n.1: 186-202, jul. 2009.
VORCARO, Ângela. Incidência da matriz simbolizante no organismo – condição
necessária ao advento da fala. Disponível em: < http://www.freud-lacan.com/
Champs_specialises/ Presentation/ Incidencia_da_matriz_simbolizante_no_
organismo> Acesso em: 16 out. 2011.

Recebido em 03/01/2012
Aceito em 01/03/2012
Revisado por Maria Ângela Bulhões

7
Conforme Didier-Weill, Nota azul, p.74-75 “É sua aptidão a supor no Outro um amor rasgado,
impossível, que secundariamente rasga o Sujeito e faz dele, para além de um sujeito amado,
um sujeito amante.”
62
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 63-73, jan./jun. 2011

TEXTOS
HANS – UMA ANÁLISE
DO INFANTIL

Gerson Smiech Pinho1

Resumo: Este artigo aborda as particularidades do tratamento psicanalítico


quando se situa dentro do período denominado infantil, bem como alguns dos
problemas cruciais que o sujeito encontra nesse tempo de sua constituição.
Para tanto, toma como eixo da discussão o caso do pequeno Hans, de Freud, e
a retomada que Lacan fez do mesmo.
Palavras-chave: infantil, recalcamento, pequeno Hans, psicanálise de crianças,
teorias sexuais infantis.

HANS – AN ANALYSIS OF THE INFANTILE

Abstract: This article discusses the particularities of psychoanalytic treatment


when this lies within the period named infantile, as well as some of the crucial
problems that the subject deals at this time of his constitution. To do so, it takes
as a discussion axis the Freud´s case of Hans, and the the resumption that
Lacan made of this case.
Keywords: infantile, repression, little Hans, psychoanalysis of children, children´s
sexual theories.

1
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Membro do
Centro Lydia Coriat; Mes tre em Ps icologia Soc ial e Ins tituc ional (UFRGS). E-mail:
gersonsmiech@gmail.com

63
Gerson Smiech Pinho

A descoberta freudiana revelou o caráter de enigma que organiza a estrutura


do sintoma. Enigma muito particular, diga-se de passagem, pois o sujeito
que o produz é o único que detém a chave capaz de decifrá-lo. Seu sentido
emerge na medida em que aquele que dele padece se dispõe a falar no espaço
de uma análise. Através da fala em livre associação, uma significação velada,
até então recalcada, vem à tona e pode aparecer. Assim, a cada nova experiência
de análise, mais uma vez constatamos que sintoma e recalque andam sempre
de mãos dadas.
Na clínica psicanalítica com crianças, porém, é frequente encontrarmos
situações com nuances um pouco diferentes. Quando se trata de alguém nos
primeiros anos de vida, temos a particularidade de transitar por um tempo anterior
ao recalcamento, ou, ao menos, prévio a seu acabamento. A singularidade dessa
experiência reside no fato de acompanhar a neurose infantil em sua constituição,
bem como o estabelecimento do processo de recalque em seus primórdios. Em
tais circunstâncias, quais particularidades seriam possíveis de pensar em relação
ao trabalho de análise, já que o recalcamento ainda não está concluído? E,
ainda, quais consequências implicariam na direção do tratamento?
Ao abordar a articulação entre tempo e inconsciente, Bernardino (2004)
situa o infantil como o tempo entre o recalque originário e o recalque propriamente
dito do Édipo. Nele se situam a inscrição dos significantes primordiais, a
organização do fantasma fundamental e o trânsito pelo complexo de Édipo,
constituindo o inconsciente. É a época do estabelecimento da neurose infantil e
da estrutura do sujeito.
Lévy (2008) também propõe situar com maior precisão a ideia de infantil
enquanto conceito psicanalítico. Segundo esse autor, o termo infantil circunscreve
o momento da constituição do aparelho psíquico e de um sujeito do inconsciente,
delimitado pelo período de construção do recalque e da constatação de um “não
ainda” totalmente recalcado. Recobre a época em que a criança está “na espera”
por um recalque completo, assim como por sua constituição no limite da metáfora.
Corresponde à fase anterior à latência, caracterizada pelo primeiro tempo de
organização da sexualidade, pelo desdobramento do complexo de Édipo, e que
é posteriormente soterrado pela amnésia que cobre os primeiros anos de vida.
Partindo da definição colocada por esses autores, podemos recolocar as
perguntas feitas anteriormente e interrogar as particularidades do trabalho
psicanalítico e da direção do tratamento quando operamos dentro do período
denominado infantil. Para que possamos nos aproximar dessas questões, é
também necessário situar os problemas cruciais que o sujeito encontra nesse
tempo de sua constituição e com os quais nos confrontamos ao abordá-lo na
análise. Este é o tema que proponho percorrer neste escrito.
64
Hans - Uma análise do infantil

Ao longo da discussão, vou me reportar ao texto de Freud ([1909]1980), a


respeito do caso do pequeno Hans, bem como à extensa retomada que Lacan
(1992) fez dele em seu seminário A relação de objeto e as estruturas freudianas.
Tomo como pressuposto que o tratamento de Hans é paradigmático de uma
psicanálise no período infantil, não só pela idade em que o paciente se encontrava,
mas porque nela observamos os elementos fundamentais pelos quais o sujeito
transita nesse tempo de sua constituição.

O jogo imaginário com a mãe e o primeiro despertar pulsional

É impossível precisar o ponto de origem para o nascimento de um sujeito


– o “marco zero”–, que definiria o início de sua existência. Se o instante do parto
é o momento de aterrissagem de qualquer humano no mundo, os vetores de seu
destino já estão traçados desde muito antes, no inconsciente daqueles que
tramaram seu surgimento. No discurso parental, estão antecipadas as linhas
mestras que irão desenhar o caminho a ser trilhado por esse que inicia seu
percurso pela vida. Diante desse espaço virtual, gestado pelo desejo do Outro, o
recém-chegado teria como incumbência inicial dar forma a algum modo de
preenchimento desse lugar.
Na organização do primeiro laço amoroso que irá partilhar, a criança
necessita se oferecer como objeto de amor à mãe e se certificar de que produz
prazer e satisfação a ela. Para a criança, é uma experiência fundamental verificar
se sua presença governa, mesmo que de forma parcial, as idas e vindas daquela
de quem tanto precisa. Segundo Lacan (1992), frente ao desejo materno,
insaciável em seu fundamento, a criança toma o caminho de fazer-se, ela mesma,
com todo seu corpo, o objeto que supostamente poderia satisfazer à mãe.
Na medida em que a inveja do pênis está no centro do desejo materno, a
criança se apresenta à mãe lhe oferecendo o falo faltante. Assim, ao interrogar
o enigma do desejo do Outro, a criança encontra como resposta o falo imaginário,
objeto com o qual irá se identificar. Compõe-se, dessa forma, o triângulo imaginário
ou pré-edípico.

65
Gerson Smiech Pinho

Este esquema representa o primeiro tempo de constituição de um sujeito,


aquele em que a criança busca produzir resposta ao enigma do desejo sustentado
pela mãe. Trata-se de ser ou não ser o falo imaginário, representação que tem
como missão recobrir a falta encontrada no Outro primordial.
Se tomarmos o caso do pequeno Hans, relatado por Freud ([1909]1980),
verificamos que toda essa dialética imaginária opera explicitamente na etapa
anterior ao surgimento da fobia do menino. Dois dos elementos destacados na
parte inicial do caso são fundamentais enquanto expressão dessa estrutura.
O primeiro elemento é o destaque dado às atitudes de sedução e de
exibição de Hans, dirigidas principalmente à mãe.
O segundo é o modo como o falo está situado para o menino, que
constantemente interroga e fantasia sua presença no mundo ao seu redor. Além
do interesse que demonstra por seu próprio pênis, questiona sistematicamente
a presença desse objeto em seu entorno. Pergunta, primeiro à mãe, depois ao
pai, se também têm um “faz-pipi” 2. Além disso, busca observar a presença ou
ausência do objeto fálico, tanto nos animais – como o leão, a vaca, o cachorro
e o cavalo – quanto nos seres inanimados – como a locomotiva, a mesa e a
cadeira.
Nessa etapa inicial, o falo emerge como um elemento central na
organização do mundo para Hans e, fundamentalmente, em sua relação com a
mãe. O recalcamento, ao que tudo indica, ainda não está operando, pois é com
a maior liberdade e sem-cerimônia que Hans observa e interroga a mãe e o pai
a respeito da presença ou da ausência do “faz-pipi”. No princípio, todo o jogo
imaginário entre Hans e sua mãe está relacionado a ver, não ver, prestar atenção
no falo e espiar onde ele está. Ao se identificar ao falo, o sujeito se propõe a
recobrir a falta materna, compondo o fantasma de uma mãe fálica.
Se esse primeiro tempo de constituição do psiquismo só se tornou possível
a partir da antecipação feita pelo Outro materno, o jogo de ser ou não ser o falo
é igualmente necessário para o que virá a seguir. De acordo com Flesler (2008),
o jogo imaginário com a mãe se prolongará até o surgimento do primeiro despertar

2
Cabe sublinhar o comentário, feito por ele, de que se sua mãe tivesse um “faz-pipi”, seria
grande como o de um cavalo.

66
Hans - Uma análise do infantil

pulsional e da irrupção do real a ele relacionado. Nesse momento, o que passa


a se colocar em jogo para a criança é o encontro com a castração materna.
Como todo despertar, o que ocorre aqui diz respeito a um instante no qual
sucede a mudança de uma cena a outra, como no momento em que abrimos os
olhos após dormir. Da mesma forma, a falta materna, que se achava velada, é
colocada a descoberto, e a possibilidade de recobrir a imagem do falo se desfaz
como uma miragem. A ilusão de completude cai por terra.
Para Lacan (1992), o fio que possibilita à criança não se perder no labirinto
composto pelo falo imaginário é que falte o falo à mãe. Ou seja, que o sujeito
registre que não tem condições de preencher aquilo que falta a sua onipotente
mãe e constate sua castração.
Lacan (1992) sublinha essa passagem a propósito do pequeno Hans,
sublinhando o modo como a irrupção do primeiro despertar pulsional se articula
à castração materna. Quando Hans passa a perceber as manifestações de seu
pênis e inicia a atividade masturbatória, o pênis converte-se em algo real para
ele. Dessa forma, fica evidente a falta de coincidência entre o seu insignificante
“faz-pipi” e a extensão da imagem do objeto fálico, que até então buscava
recobrir com todo seu corpo.
O menino constata a diferença que separa o falo imaginário e o pênis
real e é confrontado com o gigantesco abismo entre cumprir com uma imagem
e ter algo real, diminuto e miserável a oferecer. Fica descoberto o jogo ilusório
em que estava mergulhado no laço com a mãe, já que o gozo experimentado
ao manipular seu pênis não cabe na imagem que a mãe quer ver dele. O pênis
real passa a ser um elemento de difícil integração no conjunto da estrutura.
Para a mãe de Hans, o lugar do filho está em ser a metonímia de seu
desejo de falo. O comportamento dela – que arrasta o menino por todas as
partes, do banheiro à cama – indica que ele é somente um mero apêndice
indispensável, função que ele só pode cumprir a partir de todo seu corpo, e não
enquanto detentor do falo. Não se trata de seu “faz-pipi”, mas dele enquanto
totalidade. Por esse motivo, quando o pênis aparece como real, Hans passa a
se imaginar como distinto do desejado. É expulso do campo imaginário no qual,
pelo lugar que ele ocupava, a mãe podia encontrar a forma de se satisfazer.
Como afirma Flesler (2008), o universo materno se fecha, pois não inclui um
menino com falo, somente um menino-falo.
O sujeito será reconhecido como possuidor do falo somente se o Outro
consegue acompanhar e suportar o corte e a redistribuição do gozo que reclama
esse novo tempo. É nessa passagem que os pais de Hans se embaralham.
Diante desse novo cenário, surge a angústia e a necessidade de um
trabalho psíquico que faça borda e coloque limite ao gozo.
67
Gerson Smiech Pinho

Hans e seus mitos

Com a angústia produzida diante da experiência siderante, que consistiu


no primeiro despertar pulsional e a concomitante descoberta da castração
materna, Hans se vê desalojado do lugar subjetivo que pôde ocupar no jogo
imaginário entre a mãe e o falo3.
A fobia de Hans nasce como uma estrutura provisória, que visa delimitar
um novo espaço para ele4. Na medida em que acaba de ser rechaçado do lugar
que ocupava no interior da relação imaginária com a mãe, o sintoma fóbico
aparece como suplência que permite situar uma nova ordem de interior e exterior,
uma série de pontos e signos de alarme que se põe a organizar o mundo a partir
de então. O cavalo temido por Hans marca um limiar, e essa é sua função
essencial. A partir dele, é possível situar alguma borda diante do gozo que se
avizinha. A primeira versão da fobia – o medo de que um cavalo o morda –
expressa o fantasma de devoração que espreita. Mantendo-se longe dos cavalos,
alguma trégua é possível em relação à angústia.
A partir do surgimento do sintoma fóbico também se inicia o trabalho de
análise. E do que fala Hans ao longo dela?
Durante o tratamento, observamos o menino construindo uma série de
pequenas narrativas de conteúdo imaginativo a respeito dos mais variados temas.
Essas histórias estão sempre incluídas nos diálogos com seu pai, que foi quem
conduziu a análise sob a orientação de Freud. A respeito desses relatos, Lacan
(1992) faz dois importantes assinalamentos. Em primeiro lugar, que as
elucubrações de Hans estão diretamente ligadas à elaboração das teorias sexuais
infantis. Em segundo, que essas construções estão sempre relacionadas à
intervenção paterna e ao modo como o pai se posiciona.
Para que possamos apreender melhor as questões elaboradas por Hans,
aproximemo-nos por um instante daquilo que consistem as teorias sexuais
infantis. Essas teorias são construções típicas do período que estamos
denominando de infantil e versam sobre diversos temas fundamentais, como a
diferença entre os sexos, o nascimento, a concepção e o ato sexual. São

3
Além do despertar pulsional e do surgimento do pênis enquanto real, Lacan (1992) também
assinala o nascimento da irmã de Hans como um evento fundamental na modificação da
estrutura, que o retira da condição de representante do falo imaginário materno.
4
Após um curto período de angústia difusa, Hans organiza uma fobia a cavalos, a qual passa
por diferentes tempos e versões: temia que o cavalo o mordesse, que o cavalo caísse, tem
medo dos veículos puxados por cavalos, e assim por diante.

68
Hans - Uma análise do infantil

hipóteses formuladas pelas crianças diante do real sexual que desponta e


algumas delas são bastante típicas, como a teoria que atribui a posse de um
pênis aos seres humanos de ambos os sexos, a de que os bebês nascem pelo
ânus, de que o coito é um ato violento, e assim por diante.
Freud ([1908]1980) afirma que as teorias sexuais infantis são
principalmente o resultado da falta de recalque, característico desse momento.
Lévy (2008) acrescenta que essas construções dependem também da falta de
metáfora. Como a ausência de conclusão do processo de recalcamento é também
concomitante ao não estabelecimento da metáfora paterna, a criança pequena
ainda não tem condições de produzir ou dar conta de construções metafóricas.
Seu trânsito pelo campo simbólico acontece ainda somente na dimensão da
metonímia. É necessário que a metáfora paterna conclua sua estruturação, para
que o sujeito possa alcançar maior extensão simbólica e apreender a dimensão
de sentido que organiza a metáfora. De acordo com Lévy (2008), cada uma das
teorias sexuais infantis comporta uma parte de verdade que metonimicamente
serve para constituí-las, sem metáfora.
Para entender as teorias sexuais infantis, Lacan (1992) recorre à noção
de mito, aproximando essas duas formas de construção.
Um mito, seja ele religioso ou folclórico, sempre se apresenta como um
relato, uma narrativa, o qual se organiza a partir dos lugares que define. Isso
significa que um mito apresenta certa estabilidade, que faz com que qualquer
modificação implique outras, de acordo com a configuração de uma estrutura.
Além disso, a ficção que compõe os mitos sempre tem alguma relação com a
verdade, no que diz respeito aos temas da vida, da morte, da existência, do
sexo e do nascimento.
Nesses aspectos, há uma aproximação e uma coincidência entre os mitos
e as construções da criança presentes nas teorias por elas elaboradas. Nelas
também observamos a forma de uma narrativa estável, que diz respeito a temas
fundamentais para o sujeito. Assim como os mitos apontam para a introdução
do instrumento significante na cadeia das coisas naturais, as teorias infantis
vão articular o simbólico ao real sexual que se coloca em cena para a criança. A
relação de contiguidade dos mitos e da criação mítica infantil é indicada por
todas essas semelhanças.
Voltemos, agora, a Hans e tomemos uma de suas pequenas narrativas
míticas, criada por ele logo após a intervenção de seu pai, que lhe comunicou
que as mulheres não tem pênis.

De noite, havia uma girafa grande no quarto, e uma outra, toda


amarrotada; e a grande gritou porque eu levei a amarrotada para
69
Gerson Smiech Pinho

longe dela. Aí, ela parou de gritar; então eu me sentei em cima da


amarrotada (Freud, [1909]1980, p. 47).

A interpretação que o pai de Hans dá dessa narrativa é de que a girafa


grande é ele (o pai), com seu pênis representado pelo pescoço comprido. A
girafa amarrotada seria a mãe e seu órgão genital. A cena relatada seria o
resultado do esclarecimento dado sobre a ausência de pênis nas mulheres.
O pai acrescenta ainda que tudo isso também seria a reprodução de uma
cena que se desenrola diariamente. Hans sempre entra no quarto dos pais pela
manhã e sua mãe leva-o para a cama com ela (Hans senta na girafa amarrotada),
apesar dos protestos do pai (a girafa grande que grita). Tratar-se-ia, para a
criança, de tomar posse da mãe, com a consequente cólera do pai. Porém,
como comenta Lacan (1992), essa cólera nunca se produz no real. O pai de
Hans pouco intervém no sentido de situar alguma interdição em sua relação
com a mãe. Quando esboça alguma tentativa, parece não ser escutado de
forma alguma. Nesse caso, encontramos um pai pouco disposto a assumir seu
posto e sua função. Esse é um elemento central para o surgimento do sintoma
fóbico, o qual organiza uma suplência diante da inconsistência da função paterna.
Lacan (1992) propõe uma interpretação diferente para a cena das girafas.
Segundo ele, há duas girafas, uma grande e outra pequena, mas ambas são
girafas. Aqui, há uma analogia com a criança capturada no desejo fálico da mãe
como metonímia. Ao se ofertar como falo para a mãe, a criança cria a mãe fálica
como um duplo. É isso que está representado na cena das girafas. A girafa
duplicada seria o duplo metonímico da mãe detentora do falo. Mais do que uma
triangulação em que o pai estaria incluído, a cena reporta ao triângulo da primeira
relação imaginária entre a mãe, a criança e o falo.
O que há de muito interessante nesse ponto é a indicação de que a girafa
pequena era “amarrotada”. Lacan (1992) sublinha o aspecto simbólico dessa
representação, que é essencial para entendermos sua função. Mesmo que a
cena reporte à triangulação imaginária pré-edípica, aqui há uma passagem
fundamental da imagem ao símbolo. A girafa pequena, que é só um desenho
sobre uma folha de papel que se pode amarrotar, é algo de dimensão
fundamentalmente simbólica. É verdade que a girafa pequena é um duplo materno,
porém ele está reduzido a um suporte puramente significante – algo que se
pode amassar, amarrotar, tomar e sentar em cima. A imagem duplicada da mãe
passa por uma transformação, ao ser representada como uma bola de papel,
cujo estatuto é inteiramente simbólico.
A partir disso, o fantasma das duas girafas pode ser pensado como
elemento viabilizador da passagem do imaginário ao simbólico. E é esse o
70
Hans - Uma análise do infantil

caminho que Hans vai tramando com o suporte desse e de todos os outros
inúmeros mitos que vai forjando no percurso de sua análise.
Se, no momento do encontro com a castração materna e diante da pouca
consistência do lugar do pai, Hans fica paralisado com a angústia produzida
pelo despertar sexual, encontramo-nos agora em um tempo em que é possível
começar a dar conta simbolicamente de todas essas questões. De acordo com
Pedó (2011), Hans passa a poder interpretar a avalanche pulsional de uma
sexualidade desconhecida, cujas exigências se via à mercê, na medida em que
cria teorias viáveis, que o orientem no mundo com referências relativas à sua
origem, a uma identidade sexual e a um esboço de escolha objetal. Com isso,
torna-se possível construir sua neurose.
Fica evidente como o percurso de análise de Hans não configura um
trabalho de levantamento do recalque, mas de sua introdução e viabilidade.
A cena das girafas é uma das pequenas narrativas míticas forjadas por
Hans. Ao longo do relato de sua análise, encontraremos inúmeras outras, que
vão compondo uma série cada vez mais extensa. Todos os elementos dessa
criação mítica têm um valor significante. Ou seja, nenhum deles tem uma
significação unívoca e, a cada tempo da análise, vão adquirindo sentido diferente
do original, a partir da nova posição que encontram na estrutura. Isso quer dizer
que cada elemento só pode ser concebido a partir de sua relação com os outros
significantes. Assim, um significante central nesse caso, como o cavalo, está
primeiramente associado à mãe, depois ao pai, mas também a Hans, ao falo, e
assim por diante.
O encaminhamento do imaginário em direção ao simbólico permite que
se construa uma organização mítica verdadeira, transposição simbólica
necessária a todo trânsito edípico. Ao longo de toda a observação, vemos como
a produção mítica de Hans reage e se modifica diante das intervenções de seu
pai.
Apesar de Lacan (1992) afirmar que a cura de Hans desembocou em uma
conclusão atípica, a mesma só foi possível devido à manifestação do pai real,
que tão pouco havia intervindo até então. Por outra parte, esse só pode aparecer
porque por trás estava o pai simbólico, sustentado pela posição de Freud. Dessa
forma, tudo aquilo que tendia a cristalizar-se de modo prematuro se relança para
reorganizar o mundo simbólico.
Cabe aqui sublinhar o quanto a intervenção de uma análise no período
infantil necessariamente implica a presença dos pais ou daqueles que encarnam
as funções parentais para a criança. Porge (1998) afirma que a neurose de
transferência da criança se manifesta quando aquele que está encarregado de
transmitir a mensagem familiar não sustenta a suposição de saber fazê-lo. Quando
71
Gerson Smiech Pinho

não consegue decifrar as interrogações que a criança lhe endereça. O analista


é chamado a preencher essa função, o que viabiliza reestabelecer o lugar que a
criança propõe ao Outro. A transferência dirigida pela criança ao analista é uma
transferência indireta, que visa sustentar a transferência na pessoa que, no início,
se revelou inapta a suportá-la. O analista vai permitir que a neurose de
transferência da criança se desdobre e que seja tolerada por aqueles a quem
está destinada. Foi o que aconteceu com Hans e seu pai, em sua transferência
com Freud. O que a criança demanda é que a deixem fazer sua neurose. O
analista tem como função poder reendereçar a mensagem da criança em direção
aos pais.
Na intervenção clínica no tempo do infantil, trata-se de abrir espaço para
que a constituição da neurose, que por algum motivo está obstaculizada, possa
seguir seu curso.

Para concluir

Na primavera de 1922, Freud recebeu a visita de um jovem de dezenove


anos que se apresentou a ele como o “pequeno Hans”, cujo tratamento consistira
no primeiro relato de uma análise com uma criança, publicado mais de dez anos
antes. Passado todo esse tempo, o rapaz afirmou que, ao ler o texto de sua
análise, esta lhe parecera totalmente desconhecida. Ele não conseguia se
reconhecer naquela narrativa, que se estendia dos três aos cinco anos de sua
vida e dizia não se lembrar de mais nada a respeito daqueles eventos.
Ao mencionar esse episódio, Freud ([1909]1980) compara a amnésia de
Hans, em relação a seu tratamento, a um fenômeno comum referente à
interpretação dos sonhos. O esquecimento que acometera o jovem assemelha-
se àquilo que experimentamos quando acordamos com um sonho na cabeça e
decidimos analisá-lo imediatamente, voltando a dormir a seguir. Quando voltamos
a acordar, tanto o sonho quanto sua análise terão igualmente sido esquecidos.
Lacan (1992) toma essa comparação feita por Freud para assinalar uma
diferença entre a análise de um paciente adulto e aquela experimentada por
Hans. Segundo ele:

[...] aquilo de que se trata na observação de Hans, como nós


podemos tocar com os dedos, é algo de forma alguma comparável
a esta integração ou reintegração pelo sujeito de sua história que
seria a do levantamento eficaz de uma amnésia com a conservação
dos elementos conquistados. Trata-se aí de uma atividade muito
especial, esta atividade no limite do imaginário e do simbólico,
72
Hans - Uma análise do infantil

que é exatamente da mesma ordem do que se passa nos sonhos


(p. 156).

Se a análise de Hans não consiste na reintegração de sua história a partir


da suspensão de uma amnésia, o que está em jogo não é da ordem do
levantamento do recalque. O trabalho com o menino, no limite do imaginário e
do simbólico, consiste muito mais na elaboração da passagem de um registro a
outro, que é o próprio movimento do trabalho de recalcamento, ainda inacabado.
O tratamento de Hans teve como efeito possibilitar que a operação de
recalque fosse possível, viabilizando que a constituição da estrutura neurótica
do sujeito seguisse seu curso. Como afirma Lacan (1992), a análise de Hans é
privilegiada, pois permite observar a transição do jogo imaginário com a mãe ao
redor do falo ao jogo da castração com o pai; passagem que acontece a partir
de uma série de mitos forjados pelo próprio menino.
A partir disso, podemos concluir que a fobia de Hans não consiste em um
retorno do recalcado propriamente dito. Trata-se da suplência dos pontos de
impasse que Hans encontrava no caminho de estruturação de sua neurose. O
que joga em uma análise no tempo infantil é a construção da própria neurose do
sujeito.

REFERÊNCIAS
BERNARDINO, Leda. As psicoses não-decididas da infância: um estudo psicanalítico.
São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.
FLESLER, Alba. El niño em análisis y el lugar de los padres. Buenos Aires: Paidós,
2008.
FREUD, Sigmund. Sobre as teorias sexuais das crianças [1908]. In: ______. Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de
Janeiro: Imago Editora, 1980.
FREUD, Sigmund. Análise de uma fobia em um menino de cinco anos [1909]. In:
______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1980.
LACAN. A relação de objeto e as estruturas freudianas. Porto Alegre: APPOA, 1992
(Publicação para circulação interna).
LÉVY, Robert. O infantil na psicanálise. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
PEDÓ, Marta. Sobre o infantil na psicanálise. Correio da APPOA, Porto Alegre, n. 201,
p. 07-14, maio. 2011.
PORGE, Erik. A transferência para os bastidores. In: ______. A criança e o psicanalista.
Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1998.
Recebido em 12/03/2012
Aceito em 21/04/2012
Revisado por Gláucia Escalier Braga

73
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 74-88, jan./jun. 2011

TEXTOS
O QUARTO TEMPO DO
CIRCUITO PULSIONAL1
Simone Mädke Brenner2

Resumo: Este texto trabalha os destinos da pulsão em suas incidências clínicas.


O quarto tempo do circuito pulsional surge como uma hipótese a partir da
observação cotidiana e da clínica de crianças. O circuito pulsional apresenta o
infantil de todos nós.
Palavras-chave: circuito pulsional, castração, recalque, infantil.

THE FOURTH TIME OF THE DRIVE CIRCUIT

Abstract: This text discusses the targets of the drive in their clinical implications.
The fourth time of the drive circuit arises as an hypothesis from the daily observation
and clinic of children. The drive circuit presents the childish of us all.
Keywords: drive circuit, castration, repression, infantile.

1
Este texto só foi possível graças às valiosas contribuições de Fernanda da Silva Gonçalves,
Marta Pedó, Silvia Eugênia Molina, Alfredo Jerusalinsky, Simone Moschen e Ana Maria da Costa,
os quais me ajudaram a suportar os efeitos do quarto tempo em mim mesma, e assim me foi
possível escrever.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); E-mail:
smbrenner@sinos.net
74
74
O quarto tempo do circuito funcional

Não há nenhuma necessidade de ir muito longe numa análise de adulto,


basta ser alguém que pratica com crianças para conhecer esse elemento
que constitui o peso clínico de cada um dos casos que temos que
manipular e que se chama pulsão.
Lacan

P roponho-me neste texto articular melhor o que comecei a escrever no texto


Bate-se numa criança e circuito pulsional: declarações de amor3 , sobre o
que denomino o quarto tempo do circuito pulsional (2011).
Naquele texto apresentei o relato de uma paciente de sete anos de idade
que eu tinha em comum com uma neuropediatra que fez o encaminhamento
dessa criança em função de lhe parecer que o quadro neurológico tinha também
no seu bojo um pedido de escuta. Era uma criança com diagnóstico de epilepsia
e, na história pregressa, de terror noturno. Posteriormente, mantinha transtorno
do sono. Apresentava crises convulsivas generalizadas, primeiramente durante
o sono e, no momento da avaliação psíquica, também em vigília. Iniciou
medicações anticonvulsivantes que, além de não controlarem as crises durante
o sono, aumentaram sua frequência. As medicações, mesmo associadas, não
modificavam o padrão das crises durante o sono. Apresentava alterações
eletroencefalográficas nas regiões temporal e frontal. Mostrava-se absolutamente
arredia e impermeável ao outro, sendo permanentemente desafiadora, deixando
claro que precisava bastar-se a si mesma, sendo que, para ela, o outro
inevitavelmente era ameaçador, estando impossibilitada de confiar em quem
quer que fosse. Essa convergência de sintomas fez a neurologista se perguntar
sobre o que as alterações no corpo dessa criança apontavam, “falavam”. No que
se referia, em particular, à ineficácia das medicações para controlar suas crises
e para ajudá-la a adormecer, parece que deixava claro que não podia adormecer,
e isso precisava ser escutado.
A. chega contando sobre as coisas que vinham acontecendo, as quais
denominava como “desrespeito” aos olhos dos outros. Ela conta suas afrontas,
suas transgressões, porém demonstrando muito prazer quando isso podia lhe
resultar em surras e espancamentos, principalmente por parte do seu pai. Fala
claramente da sua intenção de “machucar” as pessoas à sua volta com palavras
chulas. Quando dela indago sobre o que será que a faz ter que funcionar assim,

3
Texto publicado no Correio da APPOA, número 203, julho de 2011.

75
Simone Mädke Brenner

ela diz: “Tu não sabe o que o marido dela diz e faz!” (referindo-se à mãe, que se
encontrava dentro da mesma sala). Pergunto: “O marido dela é teu pai?”; e ela
responde: “É, parece... deveria ser....”.
Enquanto me contava isso, pede para desenhar com canetinhas e, logo
depois, afirma: “Já sei que tu vai me xingar. Não pode pintar com canetinhas e
eu pintei!” Respondo: “Podes, sim, pintar! “Se não pudesse eu não teria
deixado, teria te falado que não podias!” Ela parece admirada com minha
resposta e depois me fala: “Quando alguém me diz não, faço uma cara
muito feia!” (Faz uma cara ameaçadora). Afirmo que quando for preciso direi
os nãos necessários a ela. Ela logo olha para sua mãe e diz: “Preciso muito
vir aqui, muitas vezes!”
Relata muitos pesadelos que eram recheados de cenas de invasões, de
agressões de todos os lados e que, quando os narrava nas sessões, demonstrava
muito prazer em relatá-los. Nesses momentos chegava a dizer que pensava
muito em que quando tiver um filho fará com ele o mesmo que nesses sonhos
fazem com as pessoas, maltratá-lo.
Com frequência, quando se mostra irônica, debochada e gozando com a
sua tragédia, canta a seguinte música:

Eu nasci gay, a culpa é do meu pai, que contratou um tal de Wilson


para ser capataz. Eu vi o Bofi tomar banho e o tamanho dessa
mala era demais... O desgranido do pai dela depois reclama dela.
Ele contratou o capataz e depois reclama que ela é o que é. O
nome dela é Maria do Carmo.

Aos poucos, esses mesmos pesadelos começam a lhe produzir angústia;


aliás, é nesse momento que ela os nomeia de pesadelos. Antes, ela os chamava
de sonhos. Começa então a assustar-se com o que vê, passando a ter medo
deles.
Enquanto contava seus sonhos, precisava muito desenhar. Desenhava
suas interpretações acerca dos seus sonhos. Até que, num momento, diz:
“Gostaria de poder desenhar um príncipe, mas não consigo. Esta princesa vai
ficar sozinha”. Acrescenta: “As flores da nossa casa todo mundo cuida, têm
muitas flores. As de cada um ninguém cuida!”
Nesse momento diz que depois de cantar a música começa a sentir
ânsia de vômito. A partir daí, conta que está conseguindo dormir, que vem tendo
sonhos bons, com flores, casas... Diz que, quando dorme assustada, precisa
cuspir várias vezes, não podendo mais “engolir”. Pergunto se ela teve que engolir
algo que não queria ou que não podia e ela diz que sim, “Isso me machucou
76
O quarto tempo do circuito funcional

muito. Nessas horas, preciso fazer muito, muito xixi. Vou lá fazer xixi.” Vai ao
banheiro e quando volta comenta: “Meu pai sabe muito sobre o meu xixi!”
Na sua última sessão, sendo o tratamento interrompido pelo pai, ela canta:

Super água em ação, não quer saber de poluição. Quando está no


ar, ele vai salvar nossa cidade da destruição... Era uma vez um
azul do céu, que pinta o papel. Que molha o mar. Era uma vez uma
menininha que pinta e fascina e molha o mar. Ela mistura o céu
com sonho e fantasia, ela imaginou que se transformaria em
borboleta e asas ela ganhou, pra onde ela voou foi colorindo tudo
por onde passou. Quero ser um peixe diferente do que me fizeram!
Quero poder ser um peixe cor de rosa!

É importante relatar que, após o início do atendimento psíquico, suas


crises foram diminuindo de frequência, até cessarem por completo. O
eletroencefalograma também melhorou, tornando-se praticamente normal.
Ao longo das poucas sessões que teve, e da grande melhora no seu
quadro neurológico, vem então a pergunta: o que se operou no corpo dessa
criança? Ou o que acontecia antes que fazia seu corpo literalmente “berrar”,
claramente adoecendo?
A relação que fiz deste caso com o texto Bate-se numa criança, de Freud
([1919]1953), é porque se trata de uma criança que oscila entre o gozo de ser
invadida, batida, e o repúdio a tudo isso. Ela fala da fantasia que tem, de ser
espancada, humilhada e desprezada por todos ao seu redor, em particular pelo
pai, e, ao mesmo tempo, faz uma demanda muito clara e consistente de se
tratar e poder sair dessa posição de objeto.
A primeira parte daquele texto sobre a qual gostaria de pensar é quando
Freud nos fala de como temos que nos perguntar sobre a relação que pode
existir entre o sentido de tais fantasias (as fantasias sobre uma criança ser
batida) e as reprimendas corporais recebidas realmente por essa criança em
sua educação familiar. Refere nesse momento que, na maioria das vezes, são
casos de sujeitos que não foram tratados e educados à força, com superioridade
física por parte de seus educadores. Isto é, a fantasia de uma criança de ser
espancada não se relaciona diretamente com o fato de a criança em questão
ser efetivamente espancada, mas com a possibilidade de ela ter sido vítima de
um acontecimento infantil que tenha provocado uma fixação. Tal fixação prescinde
da necessidade de haver “força traumática”; no entanto, fica a pergunta sobre
por que tal tendência sexual havia ficado fixada precisamente ali. Propõe então
Freud que o sentido de tal fixação esteja no fato de ter havido, como causa
77
Simone Mädke Brenner

desta, componentes sexuais “prematuros” à criança e que, por isso, teríamos


que supor que o acontecimento traumatizante e produtor de tal fantasia se
apresentaria, em algum ponto, como um fim provisional.
Ele diz:

las fantasias de flagelación tienen una historia evolutiva harto


complicada, en cuya trayectoria varían más de una vez casi todos
sus elementos: su relación con el sujeto, su objeto, su contenido y
su significación (Freud, [1919]1953, p.189)4 .

Na primeira fase das fantasias de flagelação, a criança espancada é


indiferenciada, isto é, pode ser qualquer um; porém, nunca é a própria criança
que fantasia, é sempre outro. Nessa primeira fase existe o espancador, a criança
espancada e aquela que olha e que “admira” a cena. Aparece a hipótese de que
o pai bate na criança odiada por aquela que olha, demonstrando assim seu
amor por esta.
Na segunda fase das fantasias de flagelação, a pessoa que bate na
criança é a mesma, porém a criança espancada é a própria criança que fantasia.
A criança fantasia ser batida pelo pai e, para Freud, essa é a fase mais importante
de todas. Volta a afirmar que não tem sentido real e que também tem conteúdo
que permanece fora da consciência, não pode ser recordado.
A terceira fase das fantasias de flagelação se assemelha à primeira;
porém, não aparece mais o pai como aquele que bate, mas, sim, os agentes
ativos e passivos ficam indiferenciados e a posição do sujeito nesse momento é
de tê-la como o sustentáculo de uma intensa excitação, inequivocamente sexual,
e que provoca, como tal, a satisfação onanista.
Enquanto relia tal texto de Freud ([1919]1953), fiz uma relação com o que
ele fala das pulsões, pensando sobre a construção dos três tempos do circuito
pulsional.
No primeiro tempo do circuito pulsional o bebê posiciona-se como ativo,
quando vai em busca do objeto, que é externo ao Eu, e apodera-se dele.

4
As fantasias de flagelação possuem uma história evolutiva bastante complexa, em cuja trajetória
variam mais de uma vez quase todos seus elementos: sua relação com o sujeito, seu objeto, seu
conteúdo e sua significação (livre tradução).
78
O quarto tempo do circuito funcional

O segundo tempo do circuito pulsional é um tempo reflexivo, quando o


bebê toma parte de seu corpo no lugar do objeto, sugando aqui, não o objeto
externo, mas parte de seu próprio corpo, aparecendo assim o “chupar-se”.
No terceiro tempo do circuito pulsional, o sujeito retorna ao outro e se faz
ser objeto dele. Nasce aqui a possibilidade de sujeito, alguém que, tendo
percorrido a primeira instância de se apoderar de algo fora de si e ter encontrado
nesse fora de si algo que lhe significou, busca uma forma de marcar em sua
carne esse outro, a tal ponto que pode, nesse terceiro tempo, devolver ao outro
o seu próprio tesouro. Este tesouro é, necessariamente, resultante desse
caminho de três tempos, fruto de um laço tecido do bebê já nascido, que,
sofrendo as consequências de uma falta real, vai em busca do objeto capaz de
ilusoriamente restaurar aquilo que para sempre se perdeu. Busca refazer aquele
momento no qual o externo estava no lugar da indiferença, pois não tinha
nenhum registro de que esse externo poderia ser algo que pudesse se tornar
parte do Eu. Todo o trabalho dos três tempos do circuito pulsional refere-se ao
árduo trabalho de um sujeito nascendo de fato. Em ato, o nascimento é o corte
fundante para que o sujeito possa começar a inaugurar seu circuito pulsional.
Analiso aqui o nascimento de um sujeito que possa transcender o
momento da alienação que representa esse terceiro tempo. É um quarto tempo,
aquele em que o bebê se entrega ao outro, deixando claro seu estofo narcísico,
já tendo condição de se retirar em parte dessa cena. Como quando entrega seu
pezinho, sua barriguinha, seu pescoço para ser deliciado pela sua mãe e aos
poucos os tira; quando responde às demandas de fazer gracinhas, para ser
bem olhado por ela, e depois começa a dizer que não; quando come “bem e
bonitinho”, para ver sua mãe muito satisfeita e aos poucos nega alguns alimentos,
deixando claro que já pode fazer sua escolha de satisfação (o que e o quanto
quer comer!); quando se presta a aceitar todas as roupas e adornos que sua
mãe lhe coloca e, aos poucos, os retira, um a um, impedindo que os mesmos
sejam repostos; quando se mostrava muito satisfeito em ver a satisfação de
sua mãe em trocar suas fraldas, para começar a não querer mais ser
incomodado enquanto faz seu cocô (escondendo-se em algum cantinho da
casa) e demonstrando que não é mais quando sua mãe quer que as fraldas
serão trocadas, mas, sim, e também, quando ele achar que isso já tem
necessidade. Portanto, é um quarto tempo do circuito pulsional que possibilita
que o sujeito, atravessado pela castração simbólica, nasça de fato. Isso, porque,
para que esse quarto tempo se inaugure, é vital que a castração esteja operando
nos dois campos: na mãe e na criança. Para isso é necessário que alguém
faça o circuito da pulsão de fato circular, se refazer e, portanto, tornar possível
os efeitos simbólicos da castração: apoderar-se do objeto ilusoriamente
79
Simone Mädke Brenner

satisfatório, fazê-lo ser real e simbolicamente marcado no corpo, devolvê-lo ao


outro como a clara declaração de uma dívida impagável para, depois, conseguir
dizer que sim, por ser impagável ela precisa simbolicamente circular, seguir
seu rumo não ficar fixada ali. Ficar fixada talvez seja o fruto de ficar presa no
terceiro tempo do circuito pulsional: no tempo da alienação ao Outro.

Cabe também destacar que, quando há uma tendência particular-


mente estreita da pulsão ao objeto, utilizamos o termo fixação
para designá-la. Essa fixação ocorre com frequência em períodos
muito iniciais do desenvolvimento da pulsão, opõe-se então
intensamente à separação entre pulsão e objeto e põe fim à
mobilidade da pulsão” (Freud, [1915] 2004, p.149).

Aqui se instauram as condições para a resolução edípica: cena na qual o


bebê “pergunta” para sua mãe até que ponto ele não é tudo aquilo que ela deseja
e, ao mesmo tempo, está seguro do seu amor.
Quando falo do quarto tempo do circuito pulsional, penso naquilo que
Françoise Dolto(1984) nos apresenta sobre o conceito de castração simbolígena.

Pela castração simbolígena, ao contrário, a mãe, que desmamou


o filho e constatou, através de seus gritos, o mal-estar que ele
sente em viver e em aceitar esta prova, esforça-se por consolá-lo.
Tanto mais quanto, frequentemente, ela também sofre com esta
mudança de relação com seu próprio corpo e com seu bebê. Ela
inicia a criança de modo a sentir-se tão próxima dela e ainda mais
agradavelmente do que antes da privação, em troca humana com
ela. A mãe a inicia de modo a encontrar na comunicação linguageira
com ela uma introdução à atenção do outro: o pai, os irmãos e
irmãs, consoladores e interlocutores substitutos, aliados à mãe,
que vêm revelar ao bebê um mundo social... É assim que,
justamente, o desmame, esta castração oral, é simbolígena (Dolto,
1984, p. 67).

Para Dolto, a castração que opera na criança necessariamente também


precisa operar no adulto. Portanto, o que ela chama de “troca humana” tem a ver
com a linguagem ser o meio fundamental de consolá-la, não mais com o objeto
que fora interditado e nem com outros que simplesmente os substituam. Ambos
estão privados desse objeto: a mãe e o bebê, e o que sustenta essa operação
de interdição não é só a privação do objeto, mas, sim, junto com esta, as palavras
80
O quarto tempo do circuito funcional

que bordejam aquilo que caiu. Para Dolto, é essa operação que torna possível o
trabalho da sublimação, que é da ordem da cultura, da Lei.
No entanto, saber sobre o efeito simbólico da castração só é possível no
momento posterior, podendo-se saber então sobre os “frutos das castrações”,
que para Dolto representam:

o destino dado às pulsões que não podem satisfazer-se diretamente


na satisfação do corpo a corpo, ou na satisfação do corpo com
objetos eróticos incestuosos. Tais pulsões são mantidas como
proibidas – e há aí o fato de realidade promocional – pelo modelo
que editou o dito da proibição, no respeito da humanização da
criança (Dolto, 1984, p.61).

Só sabemos sobre a consistência simbólica da castração pelo que a ela


se segue. Da mesma forma, a operação do circuito pulsional: só temos como
saber sobre a consistência do segundo tempo a partir de terceiro tempo, isto é,
se quando o bebê se fizer ser objeto de si mesmo (por exemplo, chupar-se) ele
mostra ter sido marcado pelo Outro (por isso, ao chupar-se, ele se faz sustentado
por este) ou não. Isso, porque, se ele está se chupando e isso está atado ao
que se constrói na relação com o outro, isso lhe possibilita buscar este e entregar-
lhe seu “tesouro”. Isto é, o terceiro tempo testemunha a consistência do segundo
tempo. Nesse terceiro tempo ele declara que mesmo quando se vê tendo que se
haver com a solidão, consigo mesmo, o Outro está marcado já no seu corpo;
por isso é um chupar-se por um tempo, até que o outro retorne. Ele não prefere
o chupar-se ao encontro. Quando não há a passagem para o terceiro tempo,
nos vem a pergunta sobre o que operou (ou não operou) nos tempos anteriores,
isto é, que caminho desses tempos foi trilhado que, no terceiro, o sujeito nos
mostra que o chupar-se não era mediado pelos efeitos do Outro no seu corpo e,
sim, era uma tentativa de com isso fazer algo para que seu corpo não
desaparecesse. Sim, a sensação que um sujeito tem de não ser marcado no
real do seu corpo pelos significantes que o significaram é o ter que fazer esse
real ser de fato sentido, para que o corpo não desapareça.
Por isso, no terceiro tempo o sujeito faz uma declaração de amor, porém,
no âmbito da alienação, com todos os benefícios e riscos que sabemos que
isso tem.
A clínica nos aponta como, em muitos casos, ficar atado neste terceiro
tempo desfaz o circuito pulsional, por isso acho precioso o nome “circuito”. É
uma palavra que aponta a algo que precisa estar em movimento, em reorga-
nização. Portanto, para que o circuito se dê, é necessário que os tempos não
81
Simone Mädke Brenner

se fechem. Quando será que um tempo pulsional pode vir a se fechar e, com
isso, pôr em risco o circuito?
Entendo que em qualquer um dos tempos o risco ocorre, quando o encontro
com o Outro por alguma razão fracassou. Às vezes fracassa, por exemplo, em
momentos quando o nascimento do bebê não coincide com o momento em que
o sujeito-mãe possa psiquicamente encontrá-lo, como nas graves depressões
maternas. Outras vezes, pelo fato de o pequeno sujeitinho nascente ter algo
que, em sua origem, dificulta muito a sutileza desse encontro (por exemplo:
crianças que nascem com patologias orgânicas que dificultam muito o encontro)
ou ainda pelo fato de a mãe ter uma condição psíquica que não passa pelos
efeitos da castração simbólica; portanto, não há de fato condição de encontro
com o Outro, mas, sim, o bebê é tomado como espelho da mãe. Neste último,
é como se o outro reconhecesse na criança puramente a si mesmo, não havendo
condição para a surpresa, para a dúvida, para a descoberta. Enfim, nesse tipo
de contato o sujeito-bebê não existe para a mãe, ele funciona como um reflexo
do espelho, uma imagem que sustenta aquele que olha, nada mais. Esses são
alguns dos momentos nos quais há o risco de o circuito se fechar, isto é, a
pulsão ilusoriamente atingiu o objeto e aí se fechou.
O quarto tempo de que falo, penso ser o tempo que confere o estatuto
simbólico da castração nos dois lados: no lado do bebê, que se entrega ao
outro, porém não todo (quando ele já pode decidir o quanto sua mãe pode se
“deliciar” com seu corpo) e do lado da mãe, que primeiro torna possível esse
endereçamento (tendo possibilitado que juntos construíssem os três tempos
anteriores), como também a retirada do corpo como objeto de deliciar-se, sendo
aquela que suporta e confere um valor inegável nessa declaração feita pelo bebê
de que ela é não toda para ele (e vice-versa). Enfim, ele também a castra.
Existem mães que nesse momento sucumbem, isto é, não toleram essa
castração que elas próprias deram condição para que o bebê ensaiasse. Aqui
penso ser um daqueles momentos em que Dolto fala da castração não
simbolígena na mãe, pois, para ter chegado ao quarto tempo, operou a castração,
porém sem a condição simbólica necessária para que ela produza seus frutos.
Os frutos da castração não sabemos quais são, essa é por excelência a
castração simbólica. Quando ela opera, todos estão marcados por ela. Uma
mãe, ou alguém na posição de mestria, sucumbe por ter a ilusão de que a
castração só é operada no outro, e não em si mesmo ao mesmo tempo. Tem a
ilusão de poder controlar a castração.
Falo de alguém na posição de mestria, pois abro aqui a minha tentativa
de entender, trabalhar e construir a ideia deste quarto tempo do circuito pulsional
a partir do que Freud, Lacan e Dolto trazem sobre o tema, não se restringindo às

82
O quarto tempo do circuito funcional

questões de uma pequena criança. O circuito se faz e se refaz durante toda a


vida. Pensar sobre um bebê na sua relação com o Outro primordial é um recurso
clínico importante para pensarmos a montagem desse circuito, mas isso não
significa que este se reduz à infância, mas, sim, que refere-se ao infantil de
cada um de nós.
Interessante que,no texto de Freud ([1915] 2004)sobre as pulsões e
destinos das pulsões, o quarto destino das pulsões é a sublimação, isto é, uma
forma de termos acesso à satisfação da pulsão,porém necessariamente
bordejando-a, jamais satisfazendo-a.
As três fantasias de que Freud fala no texto Bate-se numa criança me
parece que têm relação com esse circuito; porém, trata-se de um circuito que
não chega ao quarto tempo.
O que acontece é que, na fantasia de ser batido, o sujeito, mantendo-se
de fora, consegue inserir o terceiro na cena (o sujeito olha, mas fora da cena),
depois o sujeito volta a uma posição dual (ele e o outro), para, num terceiro
tempo, estar numa posição de ser capturado pela cena, isto é, o prazer que
sente na fantasia o impede de deixá-la circular, de perdê-la. Freud fala que aí
está o risco da perversão, isto é, a fantasia funcionar como algo que burla os
efeitos da castração, e não como o testemunho dos efeitos dela.
Talvez a pergunta sobre o que faz uma criança ficar fixada num objeto
pulsional, no olhar do outro, sem conseguir estar livre, seja que na infância ela
precisa que o adulto esteja ele próprio já submetido a isso mesmo a que ela
precisa se submeter: aos efeitos da castração, da Lei, da linguagem.
Por isso, é fundamental nos perguntarmos por onde deslizam os conteúdos
imaginários de uma criança, isto é, a serviço de que a fantasia está operando?
Acho importante poder pesquisar se, quando a criança fantasia ou brinca, deixa
claro que sua produção psíquica toma um rumo quando uma castração simbólica
operou; por exemplo, quando se abre, a partir da interdição, uma criação que é
claramente marcada pela castração. São aqueles momentos em que elas chegam
claramente a nos dizer: “já que não posso dirigir de verdade, vou inventar o meu
carrinho e aí sim vou poder dirigir de continha! Mas... quando eu for grande vou
poder de verdade, né?!” Isto é, a criança, na sua produção no brincar, verdadei-
ramente faz um ato de criação o qual a possibilita tanto ser permeável à castração
quanto mantém, a partir desta, um sonho. Ela constrói uma mediação que costura
tempos diferentes (o passado, o presente e o futuro) e que a submete a uma lei
que lhe possibilita criar e não a impede de sonhar. Isso é por excelência um
brincar! Diferente de uma fantasia cuja trajetória é achar formas de burlar aquilo que
foi interditado. São situações em que as crianças passam muito tempo, um tempo
que muitas vezes finda com a exaustão, insistindo em inventar artimanhas, histórias,
83
Simone Mädke Brenner

na aposta de que o outro possa ser trapaceado, que sua insistência vai lhe
garantir aquilo que lhe foi proibido. Aqui, o brincar (fica a pergunta se de fato é
um brincar!), as invenções, mostram que a criança está fixada, presa, refém da
ineficácia de uma castração simbólica. Como muito bem nos fala a minha
paciente! Em outras palavras, a primeira tem o efeito de possibilitar que o sujeito
deslize, faça uma história (sua história!), enquanto na segunda o sujeito patina,
fica capturado por uma instância que o impede de seguir seu rumo.
No caso da criança anteriormente relatado, o quarto tempo não estava
inscrito no outro, isto é, na cena em que ela interdita que o outro goze no e com
seu corpo, o outro lhe diz: não. O que ela fala com seus sintomas e com suas
palavras é do quanto ainda padece de uma cena na qual o outro toma seu corpo
como objeto, o corpo dessa criança não está numa posição casta, e, sim,
altamente erotizada. O pedido por ser batida por todos mostra o quanto sua
posição sadomasoquista chega ao ponto de alienação em que ela se coloca
ativamente a ser passivamente destruída. Ora, as crianças nos ensinam muito
sobre essa lógica, a lógica de um adulto que, por não estar suficientemente
marcado pelos efeitos da castração, na relação com ela, revela aquilo que não
pôde ser recalcado e que é fruto simplesmente de uma repressão. Portanto, há
um não, um não à castração do interditor. Isso é o que impede que a criança
seja beneficiada pelos efeitos da lei simbólica.
Assim, para que o quarto tempo do circuito pulsional se inscreva, a criança
precisa que a declaração de amor do outro parental já possa também ter sofrido
o interdito do corpo. Sem essa inscrição simbólica no outro parental, a criança
fica na posição de dúvida se pode insistir nesse quarto tempo sem correr o risco
de se perder de seus pais.
Portanto, entendo que a mistura de pavor e de prazer nesta menina, quando
sofre as agressões do pai, diz disto: é no corpo, na invasão que ela se sente
amada, “mal amada”, mas amada. Ela só consegue suportar o risco de insistir
no quarto tempo quando sua mãe consegue lhe oferecer outra forma de amor,
um amor que passa pelas palavras, e não pelo corpo somente. Isso está dito na
poesia em que ela fala na última sessão: são palavras amorosas e não palavras
atos de corpo.
É rico como essa criança nos mostra que inoperância dos efeitos dos
significantes como sustentáculo da castração faz o corpo dela entrar em colapso.
Sua doença neurológica fala claramente disso: suas convulsões noturnas, sua
impermeabilidade às medicações, que a acalmariam e que diminuiriam suas
convulsões, seu funcionamento cerebral, que aponta importante alteração em
áreas do cérebro que “falam” dos efeitos do recalque, do interdito no real do
corpo, fazem com que seu cérebro funcione sem freio simbólico. Nada o acalma,
84
O quarto tempo do circuito funcional

o organiza; enfim, é um funcionamento cerebral que revela claramente os efeitos


da inexistência da Lei operada pelos significantes no corpo. Esse caso nos
aponta o quanto o que sustenta as sinapses, a organização do cérebro e seu
bom funcionamento, não é somente ele estar sadio, mas, sim, que ele precisa,
como todos os órgãos de nós, humanos, daquilo que compreende a construção
do que Dolto fala da imagem inconsciente do corpo. O fato de o cérebro não ter
sido marcado pelos efeitos “humanizantes” – que compreendem o trabalho de
sucessivamente recalcar o corpo através da construção e da estruturação da
linguagem – põe, sim, em risco o funcionamento cerebral.

Quero marcar aqui a relação da polaridade do ciclo pulsional com


algo que está sempre no centro. É um órgão, a se tomar no sentido
de instrumento, da pulsão – num sentido diferente, portanto, daquele
que tinha há pouco, na esfera da indução do ich. Esse órgão
inapreensível, um objeto que não podemos mais que contornar e,
numa palavra, esse falso órgão – aí está o que convém agora
interrogar.O órgão da pulsão se situa por relação ao verdadeiro
órgão (Lacan, [1964]1979, p.185).

A forma como a criança vai melhorando em seus sintomas diz exatamente


disto: da capacidade que as palavras têm de organizar um corpo, um órgão.
Palavras essas que são frutos de uma relação do sujeito com um outro para o
qual as palavras têm o efeito simbólico. O trabalho com crianças nos ensina
esse lado muito impressionante do quanto as palavras marcam o corpo, no
mais real que se pode pensar. “As palavras para tomarem sentido, devem,
primeiro, tomarem corpo, serem, ao menos, metabolizadas em uma imagem do
corpo relacional” (Dolto, 1984, p.34).
Essa menina confirma o que Dolto afirma, mostrando que o corpo, para
tomar sentido e ser sentido precisa, primeiro, ter sentido nas palavras de um
outro .É com as palavras, com os efeitos dos significantes que um corpo pode
adormecer,se organizar, se acalmar e poder, aos poucos, ser esquecido pelos
efeitos da operação do recalque, e não da repressão. Digo do recalque, quando
um corpo é silenciado através das operações do recalcamento nas quais o
trabalho psíquico é o de, gradativamente, ir traduzindo, suplantando algo que
parte do órgão/corpo e que, através das construções das sucessivas “camadas”
de linguagem, o corpo vai se “escondendo” e gradativamente se dando a ver
pelas produções simbólico-imaginárias que a partir dele são criadas, isto é, o
órgão/corpo vai sendo “humanizado” (Dolto). Diferente de um corpo que, por não
ter sido beneficiado por esse trabalho, sente-se pulsando demais, sendo sentido
85
Simone Mädke Brenner

demais, a ponto de impossibilitar que o sujeito possa minimamente esquecê-lo.


Ele então, para ser suportável, é muitas vezes “apagado”, seja pelo “deletar” de
suas sensações, seja pelo apagamento químico.
Essa menina também nos mostra o quanto ela clama pelos efeitos dos
significantes que possam humanizá-la. Prova disso é a forma clara e precisa
com que ela demanda ser escutada. Outro detalhe precioso é que, apesar de
ela ter um quadro neurológico importante, nas sessões ela nunca mencionou
esses episódios. Eu sabia das suas convulsões pelo relato dos pais e da
neurologista. Isso era algo com que eu me questionava muito: por que será que
isso não a faz sofrer, não a assusta, como para a maioria das crianças que
sofrem desses sintomas? Ela vai me ajudando a entender isso exatamente pela
via dos efeitos que tinha para ela o falar de si e ser escutada. Obviamente,
nesse movimento de falar do corpo bordejando-o, isto é, sem falar das convulsões
noturnas, ela fala do que a fazia enlouquecer à noite, o que a fazia ter um corpo
que se mexia sem controle, desesperadamente, até a exaustão. Portanto, ela
fala sem falar do que sabe sem saber que sabe. Essa operação foi acionada
pelo efeito da fala da neurologista, pois é ela que aponta para a criança que seu
corpo pedia por vários cuidados: cuidados médicos referentes a ele estar
claramente em risco, como também cuidados que se referiam à imagem
inconsciente do corpo.
Bem, venho tentando “costurar” alguns conceitos que, para mim, são
fundamentais na clínica – pulsão, recalque, castração, circuito pulsional –, para
buscar com eles pensar sobre uma pergunta que esse caso o tempo todo me
fazia: há um abuso? O que é, afinal, o abuso?
Essa é uma questão importante no que tange ao trabalho do recalcamento:
fazer o corpo pulsionar no âmbito simbólico é aquilo que a criança nos ensina
quando passa do momento de olhar, mexer e se meter em tudo para o falar,
perguntar, se tornar curiosa com as palavras, e não mais com o ato. Isso envolve
um longo e árduo trabalho, que Dolto denomina de pulsão epistemológica, aquela
que nasce a partir do interdito do corpo (no mais amplo sentido que possamos
pensar!) e que é fruto das sucessivas castrações com que um sujeito é
beneficiado. Falo no amplo sentido de interdição do corpo, pois isso se mostra
nas pequenas crianças de forma aparentemente muito simples e cotidiana, muitas
vezes camuflada por cenas muito “amorosas”, exemplos de uma grande
“dedicação” materna. Refiro-me àquelas situações comuns no trabalho clínico
com crianças quando estas nos mostram seus sofrimentos por ficarem atadas
ao momento de ruptura necessária ao outro e que “patinam” exatamente porque
encontram no adulto dificuldades para sustentarem os efeitos da castração.
São situações em que o adulto força a criança a comer aquilo e o quanto ele
86
O quarto tempo do circuito funcional

quer que ela coma, que a criança faça cocô e xixi no momento em que o adulto
quer (isso se inclui, na definição por parte deste, de quando as fraldas serão
retiradas), na insistência em manter uma higiene rigorosíssima, a qual impede
que a criança comece a poder cuidar sozinha de seu corpo...
Enfim, são alguns dos inúmeros exemplos de situações nas quais as
crianças nos ajudam a pensar que o abuso é algo muito mais sutil e complexo
do que muitas vezes podemos pensar. Abuso porque, para uma pequena criança
viver esses momentos que parecem tão simples, mas que são de fundamental
importância (são os momentos em que ela inaugura seu nascimento como sujeito
de fato, e que são as situações que possibilitam ou não o circuito pulsional), é
necessário que o outro tenha no seu inconsciente a marca desta castração.
Para o adulto ter a sutileza de interpretar o quanto uma criança precisa e deseja
comer, o quanto suas fezes e sua urina representam muito mais do que um
simples controle esfincteriano, e, sim, representam a saída daquilo que entrou
(e como entrou?!), de que suas roupas, que até agora sua mãe escolhia e vestia,
passam a ser quase sua própria pele (por isso brigam tanto para elas próprias
se vestirem e se despirem!), é necessário que esse adulto tenha diante do corpo
do seu filho a construção do interdito, o qual o possibilita saber até onde penetrar.
Talvez esses sejam os abusos mais difíceis de serem trabalhados: os
que são revestidos de “muito amor e muita dedicação”, aqueles que fazem não
só a criança, mas também a qualquer sujeito, ficar atado. Atado, porque no
outro está o imperativo de não transpor o terceiro tempo do circuito pulsional,
isto é, o não ousar interditar o Outro. Nessa lógica, a castração opera num lado
só: é como se a mãe dissesse para a criança que esta precisa comer para que
assim a mamãe se sinta feliz (aliás essa é uma frase comum de se escutar!),
pouco importando o que isso representa para a criança. E se, mesmo assim, a
criança brigar, lutar para não se submeter ao abuso, a mamãe a chantageia, a
pune, a faz comer à força, muitas vezes até vomitar. Isso é um abuso! Sabemos
que isso pode, sim, acabar com o circuito pulsional, fazer a criança se perder de
si mesma e ficar fixada ao outro. Ficar fixada, seja pelo direito, rendendo-se
como belo cordeiro que come pela sua mãe e toma assim um volume de corpo
que não é o seu (como alguns casos de obesidade), seja pelo avesso, numa
negativa que se torna um imperativo (como alguns casos de anorexia). De qualquer
maneira, nesses cenários o jogo de ir e vir, de se entregar e de poder receber, de
poder se desarmar sem ter medo de ser engolido pelo outro não está armado.
Arma-se um cenário de guerra, de quem domina quem, quem invade mais, quem
se submete mais, enfim, é um cenário que muitas vezes nos apavora quando
vemos uma pequena criança de dois anos enlouquecendo seus pais. Enlouquece-
os porque eles a enlouqueceram, deixando-a perdida com suas pulsões.
87
Simone Mädke Brenner

Ora, essa loucura primordial, uma desconfiança primordial, abala as


possibilidades de qualquer sujeito, tenha a idade que tiver, de amar. A cena que
uma pequena criança nos ensina sobre esse momento de saída do terceiro
tempo do circuito pulsional e de poder ser sustentada no quarto tempo é, ao
longo da vida, o que a possibilita amar. Amar numa posição de entrega que
nunca é total, a que sempre sobra e falta algo, e que exatamente por isso faz o
desejo circular, “Circuitar” com as pulsões.

REFERÊNCIAS
DOLTO, F. A imagem inconsciente do corpo (1984). São Paulo: Editora Perspectiva,
1992.
FREUD, S. Pegan a um nino [1919]. In: ______. Obras completas. Buenos Aires:
Santiago Rueda, 1953.
______. Pulsões e destinos da pulsão [1915]. In: ______ Obras completas. Rio de
Janeiro: Imago, 2004.
LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise[1964]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979.

Recebido em 15/12/2011
Aceito em 20/03/2012
Revisado por Maria Ângela Bulhões

88
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 89-98, jan./jun. 2011

TEXTOS A INFÂNCIA COMO TEMPO


DE INICIAÇÃO À ARTE DE
PRODUZIR DESOBJETOS1
Simone Moschen2

Resumo: O artigo propõe discutir os possíveis efeitos, sobre o brincar, da extensão


do ensino fundamental para nove anos, com ingresso obrigatório aos seis anos
de idade. Seu horizonte é sustentar a importância do brincar como exercício
capaz de franquear às crianças o passaporte para o simbólico e para as
possibilidades de invenção que o caracterizam.
Palavras-chave: infância, brincar, ensino de nove anos.

THE CHILDHOOD AS THE TIME OF INITIATION


TO THE ART OF PRODUCING NONOBJECTS

Abstract: The article proposes to discuss the possible effects of the extension
of elementary school to nine years on the child´s play, with compulsory admission
at the age of six years. Its horizon is to sustain the importance of play as an
exercise able to give children the passport to the symbolic and to the possibilities
for invention which characterize play.
Keywords: children, play, elementary school of nine years.

1
Este texto foi produzido para apresentação na Mesa Redonda intitulada A infância e as novas
políticas para a educação. O tom oral da intervenção foi, neste artigo, mantido em grande parte.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Professora do
Pós-Graduação em Educação e em Psicologia Social e Institucional/UFRGS; Pesquisadora do
CNPq. E-mail: simonemoschen@gmail.com

89
89
Simone Moschen

E ste artigo resulta do debate desdobrado em uma mesa de discussão intitulada


A infância e as novas políticas para a educação. Na ocasião, discutiam-se
os possíveis efeitos da implementação de uma política de educação que indicava
o acréscimo de um ano ao ensino fundamental; sendo esse ano incorporado ao
início da escolarização. Essa nova normatização, que implicou o ingresso
obrigatório das crianças aos seis anos na escola, tinha como horizonte, dentre
outros objetivos, o de ampliar o período da escolarização, que é de responsa-
bilidade do estado brasileiro. Este texto quer refletir sobre o impacto que mudanças
operadas pelos adultos no modo de conceber e propor a infância produzem
sobre a experiência que as crianças fazem do mundo e de si.
Se, por um lado, os modos de viver a infância, como idade da vida, são
absolutamente determinados historicamente e produzidos territorialmente, por
outro lado, podemos situar na criança, especialmente na criança pequena, um
atravessamento que transversaliza diferentes tempos e diversos territórios, a
saber, a condição de extrema dependência dos pequeninos. É sobre as
consequências disso que poderíamos situar como uma constante, em meio às
inúmeras variáveis sócio-históricas, que me proponho a pensar neste texto.
Paradoxalmente, uma constante que faz parte da natureza do pequeno homem
e que, por sua presença, lança-o num movimento de “denaturação” sem fim.
Recorramos aos poetas para inquietar nosso percurso:

Entrevi, como uma estrada por entre as árvores,


O que talvez seja o Grande Segredo
Aquele Grande Mistério de que os poetas falsos falam.
Vi que não há Natureza,
Que Natureza não existe,
Que há montes, vales, planícies,
Que há árvores, flores, ervas,
Que há rios e pedras,
Mas que não há um todo a que isso pertença,
Que um conjunto real e verdadeiro
É uma doença de nossas ideias
A Natureza é partes sem um todo.
Isso é talvez o tal mistério de que falam.
Foi isto o que sem pensar nem parar,
Acertei que devia ser a verdade
Que todos andam a achar e que não acham,
E que só eu, porque a não fui achar, achei.
Alberto Caeiro
90
A infância como tempo de iniciação...

Quase nada do que chamamos de humano pode ser sustentado num


argumento que busque na Natureza suas bases. Qualquer raciocínio que se
desdobre reivindicando sua legitimidade numa suposta Natureza dos homens
será facilmente derrubado por uma simples reflexão histórica capaz de nos mostrar
que os homens se produzem como homens quando são assujeitados às
condições de uma ancestralidade que configura um campo de possibilidades e
de limitações para a sua realização. Os homens, cujo estatuto ao nascer poderia
caricaturalmente se resumir a três quilos de carne cabeluda – como refere Lacan
no seminário sobre Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise –, só
passam a ser chamados de humanos quando são nomeados como tais por
outros seres humanos; estes, por sua vez, encontram-se imersos num universo
de linguagem e símbolos historicamente constituídos e territorialmente
enraízados. A humanização do organismo vai se dar no entre-lugares de um
assujeitamento às condições históricas transmitidas pelos adultos próximos às
crianças e da tomada de posição do pequeno frente a esses determinantes que
lhe chegam, vindos de uma ancestralidade que ele não domina.
A condição de dependência que o pequeno ser tem em relação ao outro,
adulto, é característica do organismo humano e tem como consequência abrir
espaço para uma transmissão ímpar. Isso, porque, se pensarmos que o modo
como um adulto dará voz àquilo que supõe ouvir de uma criança que ainda não
fala, está absolutamente determinado pela língua que esse adulto habita, pelas
possibilidades do dizer que essa língua encerra, pelos saberes que a cultura
desse adulto acumulou ao longo de diversas gerações, bem como pelos mitos
que, na ancestralidade familiar, foram se desdobrando de forma a firmarem-se
como verdades que sustentam decisões e julgamentos. Se pensarmos que essa
tradução, que o adulto faz dos grunhidos do bebê, ele a faz banhado nesse mar
de sentidos em que ele mesmo aconteceu como sujeito, podemos dizer, então,
que a dependência do pequeno é o adubo que fertiliza o campo da transmissão
das formações simbólicas de cada linhagem, de cada cultura.
A dependência do filhote humano, determinada pelas condições de seu
organismo, abre espaço para que as manifestações do próprio organismo nunca
sejam lidas sem as interferências da cultura, da qual o adulto, leitor, se faz
intérprete. Paradoxalmente, são as condições do organismo humano que fazem
com que o próprio organismo, sua suposta natureza, nunca seja registrado senão
de forma “deturpada”, ou, dito de modo menos coloquial, de maneira mediada
por uma interpretação simbólica. São as características de dependência do
organismo da pequena criança que a inclinam à busca do olhar do adulto, de
sua voz, de seu toque, das condições de leitura do mundo que este pode lhe
doar. A pequena criança, de forma bastante radical, se vê no espelho que o
91
Simone Moschen

adulto lhe oferece. Esse espelho, porém, reflete os sentidos que o ser criança
tem naquela cultura, naquela formação familiar, nas fantasias daquele adulto
que, travestido de superfície refletora, devolve ao pequeno a significação de sua
imagem.
A condição de absoluta dependência do pequeno organismo humano
determina que tudo que seja humano, desde o início, passe por uma interpretação
simbólica, uma interpretação linguageira, que, por sua vez, é determinada
culturalmente. O modo como os pequenos ingressam no mundo faz com que
suas manifestações sejam necessariamente capturadas na ordem das palavras
dos outros que os recebem e lhes apresentam a vida, capturadas pelos sentidos
atualizados por esses outros, fazendo com que a dita Natureza humana nunca
se atualize de forma direta. Isso faz com que a Natureza seja uma referência
mítica a um organismo que, ao ser tatuado pelas palavras, se transformou em
um corpo desnaturado.
A necessidade que temos de nos ver através dos olhos, da voz, da
interpretação do outro, essa necessidade, radical na primeira infância, nos
acompanha pelo resto de nossa existência. A especificidade da criança está no
fato de que, quanto menor ela é, menos dispõe de instrumentos psíquicos e
cognitivos para falar em nome próprio. Quanto menor é a criança, maior é sua
colagem a esse outro/Outro3 – outro/Outro entendido tanto como semelhante,
quanto como tesouro dos significantes. Quanto menor a criança, maior é sua
dependência, para acontecer como sujeito, de encontrar alguém – seria melhor
dizer “alguéns” – disposto(s) a suportar sua condição inicial de profunda
dependência.
Uma boa forma de visualizarmos essa dificuldade de falar em nome próprio
é nos recordarmos do modo como a criança se refere a si mesma, quando está
iniciando seus primeiros ensaios pela fala. O pequeno, com frequência, se referirá
a si em terceira pessoa, dizendo: a Simone quer, a Simone gosta. A criança fala
de si colada à posição discursiva do outro. Fala de si deslocando-se para o lugar
desde onde o outro fala dela. Diríamos, em termos linguageiros, que, embora o
enunciado “a Simone gosta” seja próprio, o lugar da enunciação é ainda o do
outro. Só num segundo momento se abrirá uma fenda nessa colagem, e a criança

3
“Lugar onde a psicanálise situa, além do parceiro imaginário, aquilo que anterior e exterior ao
sujeito, não obstante o determina [...]. O que se tenta indicar com essa convenção escrita é que,
além das representações do eu e também além das identificações imaginárias, especulares, o
sujeito é tomado por uma ordem radicalmente anterior e exterior a ele, da qual depende, mesmo
que pretenda dominá-la” (Chemama, 1995, p.157).
92
A infância como tempo de iniciação...

poderá tomar a palavra em nome próprio, para, então, dizer eu. O jogo entre o eu
e o tu retira sua complexidade do fato de que a fala não diz simplesmente do
uso de um instrumento de comunicação, mas nos informa do lugar desde o qual
estamos nos situando para falar.
Essa posição da criança, de colagem discursiva ao outro/Outro coloca-
nos, aos que trabalhamos com os pequenos, na extrema responsabilidade de
nos perguntarmos sempre sobre o que estamos antecipando como possibilidades,
como demandas e como sentidos para os filhotes humanos. Pois, se as crianças
mais facilmente se colam ao outro/Outro, o que este lhes disponibiliza tem um
impacto que não é de se negligenciar.
Assim, quando falamos de políticas públicas voltadas para a infância,
estamos falando sobre a construção de um terreno que antecipa discursos,
sentidos e práticas que podem tomar os pequenos sem muita mediação.
Particularmente neste momento, penso que se faz absolutamente necessário
que pensemos sobre o que estamos demandando das crianças, quando
elaboramos uma lei que amplia o ensino fundamental para nove anos e requer a
matrícula nesse ensino aos seis anos. Que experiência de infância estamos
construindo quando elaboramos esse texto legal – ou outros? Pois não se trata
somente de letras no papel. Trata-se de letras que constituirão práticas, que
produzirão sentidos, que dirão aos pequenos que chegam o que é ser criança
em nosso mundo. Os pequenos, por sua vez, ávidos de sentido, se identificarão
a essas proposições e assumirão, com maior ou menor facilidade, aquilo que
lhes transmitimos.
Façamos um pequeno parêntese para retomar algumas das proposições
de Philippe Ariés (1981), no trabalho intitulado História social da criança e da
família. Esse trabalho pode nos interessar na medida em que ele nos faz ver
como mudanças no mundo dos adultos introduzem novos sentidos e potencia-
lizam novas experiências para as crianças. Nessa pesquisa, o autor desdobra a
tese de que o sentimento de infância, tal como se desenha em nossa cultura,
teve seu nascimento por volta do século XVII. Estavam presentes na sala de
parto da infância ilustres convidados que apadrinharam tanto essa experiência
nascente como patrocinaram, se não o surgimento, o adensamento desse tempo
que chamamos de Modernidade. A infância, como tempo de preparo para a vida
adulta, como espaço de ensaio tutelado das responsabilidades e possibilidades
que o mundo público requer, faz parte do projeto civilizador que caracterizou a
Modernidade. Projeto que talvez estejamos questionando, em nosso tempo
presente, por conta da experiência de seus engodos e de seus limites.
A passagem de uma organização calcada de forma privilegiada no coletivo
a uma organização social que produziu a privatização dos conflitos, em que o
93
Simone Moschen

argumento passou a ser buscado na intimidade do ser e, mais do que isso, em


que essa busca foi acompanhada da tentativa constante de estabelecer o
apagamento das determinações simbólicas do sujeito; essa passagem abriu
espaço para a possibilidade e para a necessidade de se estabelecer um tempo
da vida no qual os pequenos seriam chamados a se ensaiar nas atribuições do
mundo dos grandes, seriam paulatinamente nelas introduzidos, de forma a
construírem os instrumentos “internos” necessários para realizar a ascensão –
seja ela de que ordem for – esperada pelos adultos.
É no momento em que a posição que cada um ocupará no mundo não
está antecipada por uma trama social estável que a infância tem lugar como
incubadora de perspectivas de realizações futuras – perspectivas e apostas,
pois os adultos passarão a ver nos pequenos a possibilidade de transposição de
suas frustrações, de realização de seus desejos fracassados. Como homens
modernos, não tivemos nosso destino traçado na origem – ou, pelo menos,
queremos crer que não –, mas fomos chamados a construí-lo individualmente –
vale sublinhar: individualmente –, ensaiando-nos nessa construção no tempo
denominado de infância. Como homens modernos, guardamos a ilusão de sermos
fundadores de nós mesmos; ilusão que talvez consista em um dos grandes
engodos que nos constitui e nos aproxima. Supomos e buscamos a autonomia
do ser, a realização de si, sem qualquer dependência do outro, a espontaneidade
máxima, a independência e a liberdade totais. Contudo, esquecemos de lembrar
que apostar nessa via nos deixa cada vez mais sós, cada vez mais desamparados,
cada vez com menos possibilidades de criar o mundo e a nós mesmos – não à
toa vivemos uma verdadeira epidemia de tristeza e desamparo que a indústria
farmacêutica espertamente nomeou de depressão.
Acho muito intrigante que o alargamento do ensino fundamental se dê na
direção da primeira infância, e não da juventude. Está bem que possamos pensar
que a medida pode intencionar garantir, para um número maior de crianças
menores, o ingresso na escola. Mas, por que não trabalhar no sentido de tornar
a educação infantil uma realidade cada vez mais abrangente? Por que não nos
colocarmos justamente a questão pelo seu avesso, ou seja, de que os jovens
chegam muito jovens diante da necessidade de optar – quando têm opção – por
um projeto profissional? Que infância estamos propondo, ao alargar o ensino
fundamental no sentido do início da vida? Não estaríamos completamente
consonantes com um movimento de achatamento da experiência da infância e
de alargamento do que chamamos de adolescência?
Valem mais algumas palavras sobre a aceleração do tempo. Como pensá-
la em relação a algo que se desdobra na infância: o brincar? Quando nos referimos
à infância, certamente nos vemos acompanhados pela ideia do brincar. Infância,
94
A infância como tempo de iniciação...

em nossos tempos, é composta por gente que brinca. Desde que o sentimento
de infância, como um tempo de ensaios para a vida na pólis, passou a fazer
parte de nosso ideário compartilhado, o brincar como característica desse tempo
também passou a ocupar um plano privilegiado – talvez tão privilegiado que não
reconhecemos na adultez a necessidade de brincar.
Freud ([1920]1974), na década de 20, escreve um dos poucos textos em
que aborda diretamente o brincar. A essa atividade ele atribui três características:
a repetição, a passagem operada pela criança através da brincadeira da posição
passiva à posição ativa frente ao outro, e o vir-a-ser desdobrado pelo brincar.
Gostaria de dedicar algumas palavras a essa passagem da posição passiva à
posição ativa que está em curso sempre que uma criança se põe a brincar.
Lembremos por onde iniciamos: pela ideia de que a criança nasce nas palavras
dos adultos que lhes são próximos. É por esses adultos que ela é significada,
acontecendo como ser humano a partir dos sentidos que lhe são atribuídos.
Trocando em miúdos, a criança nasce como sujeito, assujeitada às nomeações
que lhe vêm do Outro. Nasce como sujeito numa posição passiva frente a esse
Outro. O passaporte que ela vai cunhar para a posição ativa, para o lugar de
sujeito de uma ação, para a condição de falar em nome próprio, é elaborado
com o material que lhe chega do brincar. É o brincar que vai armar a ponte do
lugar de assujeitamento ao lugar de sujeito. Por isso, o brincar é coisa tão séria
para a criança. Por isso, também é tão preocupante quando uma criança não
brinca, pois é como se ela tivesse aberto mão, ou não estivesse podendo dispor
dos instrumentos pelos quais ela vai armar uma posição ao mesmo tempo
enlaçada e diferenciada frente aos outros que a apresentaram ao mundo.
O brincar é a construção de uma versão própria sobre o mundo ao qual a
criança foi apresentada pelo adulto. Assim, quando observamos um achatamento
da infância operado pelo incremento das tarefas e pela diminuição do tempo livre
– o tempo do brincar – poderíamos nos perguntar o quanto não estamos
construindo como horizonte uma adultez em que os sujeitos vão se encontrar
cada vez mais reduzidos a uma posição de passividade frente ao Outro. Claro!
As coisas não são tão lineares assim; mas vale pensar sobre as consequências
de um mundo no qual o brincar fica cada vez mais rarefeito. Isso porque, tomando
a tese freudiana como pertinente, crianças que não brincam têm estreitadas as
suas possibilidades de construir uma posição ativa, de tomar a vida nas próprias
mãos e, nessa medida, essas crianças prenunciam uma adultez mais
dependente e vulnerável ao Outro.
Tomemos agora a outra perspectiva que Freud ([1920]1974) nos lança, a
de que a criança que brinca vai conformando as condições para assumir a posição
adulta. Brincar é brincar de ser grande, numa conjugação absolutamente
95
Simone Moschen

interessante da experiência do tempo: – Agora eu era... Situada no presente,


“agora”, a criança se lança para o futuro, identificando-se ao lugar que o adulto
almeja que ela venha a ocupar e, desde o futuro, ela olha para trás, para onde
ainda está e nos diz: – Eu era. Vale lembrar que essas viagens no tempo são
possíveis graças aos atributos da linguagem. Por estar fazendo a passagem da
passividade à atividade, da fusão ao Outro para a relação ao Outro, a criança
fala de seu agora desde o futuro que o mundo adulto desenha para ela como
horizonte identificatório. No brincar, a criança se ensaia no amanhã sem ter que
responder, em toda a sua extensão, pelos efeitos desse ensaio. Afinal, é só faz-
de-conta! O pequeno achata o tempo em seu brincar, contraindo a linha que vai
do passado ao futuro e, com isso, ele cria, a partir dos traços que recolhe, das
vozes e olhares do adulto, algo que vai paulatinamente situando como próprio.
Nesse tempo mágico, em que a linearidade está suspensa, florescem as
condições de criação. Manoel de Barros (2003) no belíssimo livro Memórias
inventadas – quais não são – nos fala desse tempo e de sua relação com o
brincar. O início do livro é absolutamente intrigante: “tudo que não invento é
falso” inicia o poeta.
Em um dos capítulos, o poeta canta as peculiaridades da experiência do
tempo do brincar. O capítulo se chama Desobjeto e é lindo para pensar a atividade
imaginativa presente nesse tempo-espaço “zipado” da infância. Esse tempo em
que aprendemos a nos relacionar com os desobjetos que fazem parte do mundo,
que aprendemos a construir desobjetos, que aprendemos a olhar o mundo e a
nos autorizarmos a ver possibilidades não antecipadas nos saberes e nomeações
construídos e consolidados. Um tempo em que nos ensaiamos no espaço da
criação que a linguagem de que somos feitos franqueia. Um tempo mágico, mas
de uma magia que faz parte deste mundo, e não de outros, e que, fazendo parte
deste mundo, de nosso mundo de linguagem, torna possível construir outros
mundos.
Diz Manoel de Barros

O menino que era esquerdo viu no meio do quintal um pente. O


pente estava próximo de não ser mais um pente. Estaria mais
perto de ser uma folha dentada. Dentada um tanto que já havia
incluído no chão que nem uma pedra um caramujo um sapo. Era
alguma coisa nova o pente. O chão teria comido logo um pouco de
seus dentes. Camadas de areia e formigas roeram seu organismo.
Se é que um pente tem organismo. [...] Acho que os bichos do
lugar mijavam muito naquele desobjeto. O fato é que o pente perdera
a sua personalidade. Estava encostado às raízes de uma árvore e
96
A infância como tempo de iniciação...

não servia mais nem para pentear macaco. O menino que era
esquerdo e tinha cacoete para poeta, justamente ele enxergara o
pente naquele estado terminal. E o menino deu para imaginar que
o pente, naquele estado, já estaria incorporado à natureza como
um rio, um osso, um lagarto (Barros, 2003).

No quintal onde os dentes do chão comem os dentes do pente, onde


bichos mijam em desobjetos, onde um pente tem organismo, floresce a
capacidade de se relacionar com o mundo sem a necessária sustentação dos
objetos que se propõe a não ser nada além daquilo que usamos dizer que são.
No quintal de uma infância em que o menino esquerdo vê o mundo pelo avesso
e tem cacoete de poeta, desponta a possibilidade, tão avessa a nossos tempos,
de criar a partir dos restos, de apanhar desperdícios e alçá-los à dignidade das
coisas mais preciosas. No território onde os restos são convites para uma criação,
o mercado dos objetos perde parte de sua necessidade, e nisso talvez resida a
potência subversiva do brincar.
“As crianças, em sua tentativa de descobrir e conhecer o mundo, atuam
sobre os objetos e os libertam de sua obrigação de ser úteis” (Krammer, 2006,
p. 16). O tempo do brincar é o tempo do investimento desejante nos objetos que
torna a pedra do quintal a maior pedra do mundo. É o tempo de dignificar os
restos arruinados, tomando-os como parte indispensável de uma engenhoca
que, apostamos, mudará o mundo. Aprendemos a necessidade do inútil
brincando. Sobre a utilidade do inútil nos fala Hanna Arendt:

Entre as coisas que emprestam ao artifício humano a estabilidade


sem a qual ele jamais poderia ser um lugar seguro para os homens,
há uma quantidade de objetos estritamente sem utilidade [...]. É
como se a estabilidade humana transparecesse na permanência
da arte, de sorte que certo pressentimento da imortalidade – não a
imortalidade da alma ou da vida, mas de algo imortal feito por mãos
mortais – adquire presença tangível para fulgurar e ser visto, soar e
ser escutado, escrever e ser lido. (Arendt, 2001, p.180; grifo nosso)

Estranhamente, o que confere consistência e estabilidade ao artifício


humano, ao mundo e a nós mesmos, é uma série de desobjetos (nas palavras
de Manoel de Barros) produzidos por obra de um investimento amoroso que
captura a coisa, desloca-a de sua suposta Natureza e a faz viver no mundo dos
símbolos, no mundo da linguagem. Ao brincar, somos iniciados na arte da
construção dos desobjetos que nos humanizam.
97
Simone Moschen

Nessa perspectiva, penso que há algo que pode se movimentar de forma


interessante a partir da proposta de lei nº 11.114/2005, que estabelece o ensino
fundamental de nove anos, a saber, os efeitos do ingresso do brincar pela porta
da frente do ensino fundamental. Sim, por que, ao receber crianças de seis anos
em seu território, o ensino fundamental se verá desafiado a dar legitimidade ao
brincar – se não quiser transformar o ingresso desses pequenos em violência.
A necessidade do ensino fundamental de pensar a educação das crianças
de seis anos implicará, certamente, a necessidade de um diálogo extenso entre
a chamada educação infantil e o ensino fundamental. Mudanças poderão ter
lugar se não for somente o ensino fundamental aquele a se tomar do lugar de
pautar o diálogo, dizendo o que espera da educação infantil, quais são as
habilidades que quer ver desenvolvidas pelas crianças que ali irão ingressar aos
seis anos. A escola infantil tem muito a ensinar ao ensino fundamental. Muito a
ensinar sobre a arte de criar a partir dos restos, sobre a utilidade do inútil, sobre
a necessidade dos desobjetos, sobre o brincar como nascedouro da capacidade
de invenção, sobre as possibilidades que se abrem quando abandonamos o
pragmatismo dos objetos e somos capazes de olhar a vida pelo avesso. Só
quem brinca pode revirar o mundo para nele inserir novos sentidos. E aí não
estamos falando somente de crianças.

REFERÊNCIAS
ARENDT, Hanna. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
ARIÉS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981.
BARROS, Manoel de. Memórias inventadas – a infância. São Paulo: Planeta, 2003.
CHEMAMA, Roland. Dicionário de psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
FREUD, S. Além do princípio do prazer [1920]. In: ______. Ed. standart brasileira das
obras completas de Sigmund Freud. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
KRAMER, Sonia. A infância e sua singularidade. In: BRASIL. Ministério da Educação.
Ensino fundamental de nove anos: orientações para a inclusão da criança de seis
anos de idade. Brasília: FNDE – Estação Gráfica, 2006.

Recebido em 10/11/2011
Aceito em 20/12/2011
Revisado por Gláucia Escalier Braga

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Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 99-108, jan./jun. 2011

TEXTOS A EDUCAÇÃO
ESTRUTURANTE NA
EDUCAÇÃO INFANTIL
Dorisnei Jornada da Rosa1

Resumo: O artigo aborda a função do educador no processo de subjetivação


das crianças que frequentam creches e escolas infantis, a partir do que conceitua
sob o nome de Educação Estruturante.
Palavras-chave: educador, educação estruturante, educação infantil, brincar.

STRUCTURING EDUCATION ON PRESCHOOL EDUCATION

Abstract: This article discusses the teacher’s role in the subjectivation process
of children attending kindergartens and nursery schools, to propose the
conceptualization of Structuring Education.
Keywords: teacher, education, structuring education, preschool education, play.

1
Psicóloga; Psicanalista da Clínica Palavra Viva; Membro da Associação Psicanalítica de Porto
Alegre(APPOA); Terapeuta em estimulação precoce; Pedagoga Especial para Deficientes Mentais;
Trabalha em Educação Precoce na Escola Municipal Lygia Morrone Averbuck, com bebês de 0
a 3 anos com problemas de desenvolvimento; Assessora de Educação Precoce e Psicopedagogia
Inicial nas escolas infantis da Prefeitura de Porto Alegre. E-mail:dorisneijornada@yahoo.com.br

99
99
Dorisnei Jornada da Rosa

Cuidar das crianças pequenas ou pedagogizá-las? Fazer suplência aos


pais ou educar? Essas são questões que atravessam todos aqueles que se
ocupam da educação infantil atualmente. Nas creches ou nas escolas infantis,
a frequência em turno integral tende a se tornar o padrão; com os educadores,
as crianças brincam, se alimentam, escovam os dentes, dormem, dão seus
primeiros passos, tiram as fraldas, dizem suas primeiras palavras. O que separa
a função parental da função do educador? O limite é ainda mais difícil de
estabelecer quando se trata de crianças que apresentam transtornos de
desenvolvimento; isso, sem falar do contingente de crianças expostas à
vulnerabilidade social e à fragilização dos laços familiares. O que fazer? Paralisar-
se frente aos aspectos estruturais2, instrumentais3 e sociais de que padecem
seus aluninhos, ou intervir nesses campos?
Há 21 anos, mais exatamente em 1991, foi criado o trabalho de Assessoria
de Educação Especial à Educação Infantil da Prefeitura de Porto Alegre. Nos
primeiros anos, um grupo de professores de escolas especiais da Secretaria
Municipal de Educação de Porto Alegre (SMED)4 criou os atendimentos de
Educação Precoce (EP)5 e Psicopedagogia Inicial (PI)6. Importa situar que integro
e coordeno a equipe de EP e PI da Escola Municipal Lygia Morrone Averbuck;
somos quatro profissionais, as quais temos, cada uma, dois turnos semanais
para assessorar e atender as creches e escolas infantis da Zona Leste, Partenon
e parte da Zona Norte de Porto Alegre.
Naquela ocasião precisávamos nos empenhar muito na busca de vagas
em creches e escolas infantis para as crianças com transtornos de desenvol-
vimento atendidas em EP e em PI, pois os educadores alegavam não possuir

2
Estruturais: nomenclatura utilizada pelo Centro Lydia Coriat de Porto Alegre e de Buenos Aires
para referir os aspectos orgânicos, cognitivos e psíquicos que abatem os sujeitos.
3
Instrumentais: nomenclatura utilizada pelo Centro Lydia Coriat de Porto Alegre e de Buenos
Aires para referir os aspectos de linguagem, atividade de vida diária, sociais, desenvolvimento
motor, aprendizagem, etc.
4
SMED (Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre): formada por 96 escolas com cerca
de 4.000 professores e 1.200 funcionários. Essa estrutura atende a 55.000 alunos da Educação
Infantil, do Ensino Fundamental, do Ensino Médio, Educação Profissional de Nível Técnico, e da
Educação de Jovens e Adultos (EJA).
5
Educação Precoce: atendimento a bebês com problemas de desenvolvimento de 0 a 3 anos,
conjuntamente com os adultos que desempenham as funções maternas e paternas para a
criança. Doravante referida neste artigo por EP.
6
Psicopedagogia Inicial: atendimento instrumental de crianças com problemas de desenvolvimento
de 3 a 6 anos. Doravante referida neste artigo por PI.

100
A educação estruturante...

formação teórica e prática para acolher esse tipo de clientela na escola infantil.
Em contrapartida, comprometíamo-nos a prestar capacitação aos educadores e
suas equipes, o que incluía: formações teóricas, acompanhamento e observações
na sala de aula mensais nas creches, além de reuniões sistemáticas com os
educadores que acolheriam essas crianças. Isso inaugurou o trabalho de
assessoria em EP e PI na escola infantil.
De início, quando as equipes de EP e PI chegavam às escolas infantis,
os educadores demandavam-lhes orientações e fórmulas mágicas para o “Mielo”
(criança com mielomeningocele), o “P.C.” (criança com paralisia cerebral), o
“Hiperativo”, o “Cadeirante”, a “Surdinha”, o “Ceguinho” e assim por diante. Havia
muito ainda o que avançar: várias crianças com deficiência já frequentavam o
ensino infantil; contudo, os educadores ainda não se referiam a elas pelo nome
próprio, mas as identificavam por seus quadros clínicos.
Começamos então, enquanto equipes de EP/PI, criadas nas quatro escolas
especiais do Município de Porto Alegre, a propor espaços de formação e escuta
dos cuidadores-educadores. O intuito era desmistificar os diagnósticos das
crianças, falando, então, da Maria, do João e dos outros alunos pelo nome
próprio, e também de suas histórias. Com isso, os quadros passaram a ocupar
uma posição secundária, possibilitando que os educadores pensassem nas
questões individuais das crianças e incluíssem atividades subjetivantes no
planejamento escolar.
É preciso ressaltar, no que diz respeito às crianças pequenas, que não
as tomamos de forma segmentada, a partir de seu sintoma: contamos com uma
rede interdisciplinar de profissionais na SMED, a qual é articulada e desarticulada
conforme cada caso. Identificamos a criança que esteja apresentando um
transtorno psíquico e ou atraso instrumental na escola infantil, encaminhamo-la
aos serviços de saúde (psicologia, fonoaudiologia, neurologia, etc.), e propomos
os atendimentos terapêuticos em EP ou PI. Além disso, realizamos interconsultas
com profissionais de saúde, escutamos os pais dos alunos e construímos
intervenções e estratégias com as equipes dos berçários7, maternais8 e jardins9
que atendem essas crianças na escola infantil.

7
Berçário: B1 (de 0 a 1ano e 5 meses) e B2 (de 1ano e 6 meses a 2 anos e 4 meses) com 15
crianças.
8
Maternal: M1 (de 2 anos e 5meses a 2 anos e 11meses) e M2 (de 3 anos a 3 anos e 11 meses)
com 20 crianças
9
Jardim: JA (de 4 anos a 4 anos e 11 meses) e JB (de 5 anos a 5 anos e 11 meses) com 25
crianças.

101
Dorisnei Jornada da Rosa

Tal rede foi criada pela SMED porque também nós, os profissionais de
EP/PI, precisávamos de formações, assessorias e interconsultas com várias
especialidades. Ao chegarmos às creches e escolas para observar as rotinas e
as crianças, víamo-nos tomados pelas demandas dos educadores e pela
urgência em responder e intervir em diversos campos. Nesse contexto,
identificávamos algumas posições mais frequentemente assumidas pelos
educadores:

1. Impotência e paralisação

Muitos eram os educadores que se paralisavam ante os sintomas sociais


e à violência das comunidades; falavam de sua impotência para ajudar a criança
frente a miséria, AIDS, abandono, drogas e agressividade; o mesmo acontecia
frente aos “donos do tráfico” e seus filhos. Em certa ocasião, houve inclusive um
“zum-zum” fantasioso sobre a creche ter sido construída como “fachada” e para
lavagem de dinheiro do tráfico, mas ninguém falava explicitamente sobre isso,
só sintomatizavam.

2. Rivalização com os pais e suplência parental

Uma situação muito comum nas escolas infantis era a culpabilização


dos pais pelos sintomas das crianças. Bater ou chorar constantemente, por
exemplo, era interpretado por seus educadores como efeito de “estar acontecendo
algo de ruim em casa” (sic). Consequentemente, acabavam por orientar os pais
com intervenções pedagógicas e encaminhá-los à psicologia.
No imaginário dos educadores, ante o suposto fracasso da função parental,
caberia à escola e a seus educadores a encarnação do “pai ideal”. Instaurava-se
assim uma disputa de saber entre educadores e pais: quem sabe mais sobre o
que é melhor para a criança? Alguns educadores chegavam a tomar as crianças
como seus filhos; numa oportunidade, encontrei numa creche um bebê que
chamava a monitora de “mamã”, e estava até muito parecido com ela. O fato é
que muitas vezes os discursos pedagógicos dos professores e as funções
parentais confundiam-se, dificultando mais ainda o exercício de ambos.
Em algumas escolas, os pais chegavam a ficar literalmente de “fora”, só
sendo chamados a comparecer em reuniões e no período inicial denominado de
adaptação escolar. De outra parte, muitos deles pareciam resignar-se a essa
situação e renunciar ao saber parental, em nome do saber “especializado” do
educador. O interessante é que isso reproduzia algo que também acontecia no
interior da escola: geralmente a entrevista inicial com os pais era realizada com
102
A educação estruturante...

a coordenadora ou o dirigente, ficando o educador sem saber da história da


criança e seus laços familiares; seu contato com os pais se dava na porta da
sala de aula, por recados na agenda, ou em reuniões pedagógicas ou
administrativas das quais participavam com a comunidade escolar. É como se o
bebê ou a criança fosse uma tábula rasa em que se dariam novas inscrições,
negando sua filiação e matriz parental. Qual a posição que os educadores
ocupavam? A de suplência parental?

3. Demanda de escuta e intervenção continuada

Muitos educadores pediam a presença do assessor de EP/PI para serem


escutados em suas angústias e serem acompanhados em seus trabalhos e
intervenções; requeriam um terceiro para testemunho, validação e
encaminhamentos que ajudassem a criança. Por exemplo, ao chegar a uma
Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI), uma professora relatou-me que
Maria tinha problemas, estava desatenta, batia em todos e não a ouvia. Conta
que sua tia frequentava a mesma sala, que seus pais eram usuários de crack e
abandonaram os filhos para a avó materna cuidar. Dona Maria, a avó, convidada
a comparecer à escola para falar comigo e a professora, veio a contragosto e
muito desconfiada “acerca do que queríamos com ela”. Apresentei-me, expliquei-
lhe que era uma conversa com o objetivo de auxiliar sua neta; deixando claro
que nada lhe seria exigido. Conta-nos, então, toda a história, seu sofrimento,
sua luta e os tantos netos sob sua responsabilidade; trabalhava muito e batia
neles. Não deixa de relatar também sua história e de como apanhava quando
criança. Ao escutarmos sua narrativa, apontei o quanto ela e Maria sofriam do
abandono parental, e perguntei-lhe se já havia contado à neta sobre isso. Aos
poucos Dona Maria foi “amolecendo”, pensando e colocando-se no lugar da
neta. Falamos da importância de ambas terem uma escuta e encaminhamos as
duas para atendimento psicológico.
Ante tais situações encontradas nas escolas – e, principalmente, frente
às interrogações dos educadores de como intervir com crianças com atraso de
desenvolvimento, agressividade, agitações psicomotoras, fragilidades psíquicas,
“surtos e pits”, “brincar solto”, negligências parentais, etc. –, começamos a
incentivá-los a também participarem do processo de subjetivação das crianças
pequenas (zero a seis anos). Assim foi se configurando um espaço transferencial
da assessoria EP/PI com os educadores: entramos e saímos da escola,
escutamos, intervimos, reconhecemos, validamos; às vezes sugerimos atividades
de âmbito coletivo, outras, individual, bem como propusemos intervenções com
base no que passamos a denominar de Educação Estruturante.
103
Dorisnei Jornada da Rosa

Conceituamos este trabalho como Educação Estruturante visando a


construir intervenções que possibilitassem às crianças deslocarem seus
sintomas e angústias para o brincar, bem como a construir junto aos educadores
e pais suas funções e diferenciações no campo educativo, familiar e escolar. É
importante ressaltar que não se trata de tornar a educação uma terapêutica,
mas de propor que a educação não se fundamente em uma concepção
desenvolvimentista e pedagógica da infância; e que os cuidados tenham funções
estruturantes, o que nós chamaríamos de “cuidados simbólicos”, os quais
encontram suporte nas inscrições significantes parentais. Isso significa que a
ordem de inscrição do educador não é a mesma dos pais; importa tomá-la como
algo da posição transferencial que ocupa na vida da criança. Por isso a importância
da interdisciplinaridade, independentemente da existência de problemas de
desenvolvimento.
O nome Educação Estruturante é inspirado em um texto de Alfredo
Jerusalinsky (1999), no qual propõe três brinquedos estruturantes que
promoveriam as articulações necessárias à constituição do sujeito. Através
desses brinquedos, os educadores deixariam se dar livremente a função
educativa:

Uma função “educativa” no sentido mais amplo e mais clássico do


termo. Em que nada de escolar nela se registra, nada de um padrão
de saber, mas a colocação em ato de uma inscrição (Jerusalinsky,
1999, p. 159).

O que é Educação Estruturante? É a que propõe ao educador ter seu


olhar dirigido aos aspectos diacrônicos da criança – os de desenvolvimento
como um todo –, bem como considerar o tempo sincrônico da criança –, sua
estruturação psíquica e orgânica e a articulação com o desejo. Isso quer dizer
que se deve considerar também seu tempo de aprender, suas condições
orgânicas e sociais. No planejamento de atividades e intervenções, deve-se pensar
também no aluno com transtorno de desenvolvimento e nas questões individuais
de cada criança, a fim de serem englobadas no plano de trabalho com o grupo e
vice-versa.
Ao detectar sinais de angústia ou de inibição no brincar e no aprender,
por exemplo, o educador pode intervir, promovendo o deslocamento da angústia
para o brincar com jogos estruturantes ou para o criar, para, num segundo tempo,
produzir efeito em sua aprendizagem e desenvolvimento. Claro que não podemos
esquecer de que não se trata de interpretar a angústia da criança, relacionando-
a a sua vida e personagens reais; isso seria iatrogênico e assustador. A Educação
104
A educação estruturante...

Estruturante consiste em colocar em jogo algo que está impedindo a criança de


se desenvolver. O educador olha, escuta, compreende, intervém, planeja e lança
ao grupo, mantendo a mira na criança. Enfim, o papel do educador é articular
brinquedos, jogos e produções, seja na primeira ou na segunda infância.
Importante lembrar a interdisciplinaridade, através da assessoria de EP/PI para
a construção conjunta dessas intervenções.
Retomemos os brinquedos estruturantes propostos por Jerusalinsky
(1999), para discernir melhor do que se trata de pôr em jogo na Educação
Estruturante. O primeiro deles é o brincar de “está, não está”, e tem como
modelo uma brincadeira que ficou conhecida, entre os leitores de Freud ([1920]
1973), como o jogo do Fort-da. Observando seu neto de um ano e meio envolvido
numa atividade enigmática e repetitiva, o autor assim a descreve: a brincadeira
consistia em fazer desaparecer seus brinquedos, atirando-os para algum lugar
longe de sua vista, pronunciando o som “Ooo”, interpretado por Freud como “embora”.
Certo dia, o objeto da brincadeira era um carretel preso à ponta de um barbante; o
mesmo ato e o mesmo som se repetiam ao fazê-lo desaparecer. Porém, dessa
vez, o menino inseriu um segundo ato: puxar o cordão para fazer o carretel reaparecer,
pronunciando “Da” (“aqui”). No jogo, a criança colocava em cena a aparição/
desaparecimento da mãe, recobrindo com a palavra sua ausência. O brincar auxilia
a fazer a operação de separação, simbolizando uma experiência vivida.
Nas palavras de Jerusalinsky, é a captura, pela criança, da imagem de si
mesma vista ou não vista pela mãe que desempenha um papel preponderante
nessa brincadeira. Afinal, segundo ele, “esse movimento permite à criança
inscrever o olhar do Outro Primordial no âmbito da linguagem” (Jerusalinsky,
1999, p. 157), possibilitando-lhe não desaparecer na ausência desse olhar
unificador, já que é quem recorta sua silhueta da realidade do mundo e dos
objetos que a cercam; caso contrário, a representação de seu corpo se
dispersaria.
Nessa mesma série de ausência-presença, Jerusalinky inclui os jogos
de imitação nas gracinhas oferecidas aos adultos (“fazer bichinho”, por exemplo);
os jogos de ocultamento (esconde-esconde); as negativas (virar a cara para a
mãe quando está ofendido); e mais adiante o brincar de esconder.
O início do ano escolar, ocasião em que bebês e crianças pequenas se
separam de suas mães, é um período em que a ausência materna poderia ser
simbolizada no brincar de esconde-esconde, no ir e vir da bola, no aparecer e
desaparecer do educador, no atirar e buscar dos objetos, propiciando assim
certo alívio para os pequeninos.
As brincadeiras em frente ao espelho também podem ser momentos de
evocação da ausência do olhar materno. As educadoras brincam com os
105
Dorisnei Jornada da Rosa

pequeninos, lhes dizem coisas sobre a mamãe não estar ali, mas elas estão ali,
brincam então com as suas imagens e as das crianças. Elas simbolizam a
ausência das mamães dos bebês em enunciados: “Tua mamãe virá ao final do
dia te buscar” ou “A mamãe está trabalhando para dar coisas ao nenê (sic)”.
O segundo jogo estruturante é o brincar de “cai, não cai”. Na série dos
jogos de borda (ou de queda), Jerusalinsky inclui: jogar brinquedos fora do berço,
empurrar objetos lentamente em direção à beira da mesa até sua precipitação,
espiar pelas frestas, mexer nos buracos e pequenas aberturas, andar pelas
beiradas e por todo lugar que ofereça risco de queda, brincar de cair, saltar,
tocar o que não pode, entrar onde não se entra, etc. O que essas brincadeiras
têm em comum é a construção do espaço e do outro, que fazem limite ao corpo
da criança, instituindo as bordas entre o eu e o não eu. Também entra em causa
aqui uma relação dialética com o olhar materno: ele unifica o corpo da criança,
a ponto de permitir-lhe apropriar-se de seu domínio motor, ao mesmo tempo em
que o aprisiona a uma existência imaginária. “O ‘andar pela borda’ remete à
indagação constante sobre a extensão e a aplicabilidade da ruptura que a palavra
introduz na motricidade e no olhar” (Jerusalinsky, 1999, p. 158); afinal, os
especialistas em brincar com as bordas sabem muito bem carregar consigo o
olhar do Outro em suas aventuras.
O terceiro tipo de brinquedo estruturante é o brincar de “este é o outro”,
compondo o que Jerusalnsky chama de jogos transicionais. A condição de
transicional, particularizada por Winnicott (1975), alude à substituição do objeto
de desejo: ao invés do seio materno, a criança carrega o bico e/ou o cheirinho,
etc. Na escola infantil, na fase de adaptação da criança, é importante acolher os
objetos transicionais, a fim de que ela encontre amparo para fazer a passagem
do âmbito materno para o âmbito social que a escola representa. Por essa
razão, também é importante manter o “dia do brinquedo” – dia de trazer um
brinquedo de casa – ou o “dia de criar” – levar o trabalho para casa.
Não raramente, a presença desses objetos transicionais provoca certo
ímpeto interditor nas educadoras, pois o que se destaca deles é seu traço de
apego à figura materna ou sua face de objeto de gozo. Porém, é importante
lembrar a sua face de separação: eles também são o significante da falta materna,
e, como tal, um elemento mediador entre a mãe e seu filho. Graças a eles se
torna possível suportar a ausência materna sem correr o risco de desaparecer.
Não podemos esquecer a importância da intermediação e da palavra do
educador, pois esses brinquedos estruturantes não são uma atividade ou
brincadeira pedagógica. Eles só terão efeito estruturante se for algo registrado,
falado e intermediado pelos educadores. Mariotto (2009) ressalta que a creche é
um elemento de subjetivação para as crianças pequenas, dependendo do laço
106
A educação estruturante...

transferencial e do lugar que o educador ocupa para os bebês e as crianças


pequenas. Não se trata de “ser o pai e a mãe”, nem tampouco de uma suplência
parental, mas de um desdobramento das funções parentais aliado ao “desejo do
educador” e suas funções educativas:

[...] educar e cuidar são faces moebianas do ofício da Creche, e


que se assim desempenhadas, permitem ao sujeito ser suportado
por essa banda, situando aí o caráter preventivo dessa função.
Garantido que as condições mínimas de subjetividade estejam
presentes [...] (Mariotto, 2009, p. 131).

A educação, seja sistemática ou assistemática, produz efeitos de inscrição


significante nas crianças pequenas, pois educar e cuidar se perpassam e são
funções que estão diariamente no discurso dos educadores das creches e escola
infantis. Nesse sentido, os educadores, nos seus laços com as crianças, podem
propor um ordenamento simbólico, pois encarnam as insígnias da escola ou creche
em que trabalham, ao mesmo tempo em que precisam ser autorizados pelos pais
ou seus substitutos para exercerem essas funções junto aos pequeninos.
Na perspectiva da Educação Estruturante, o que está em jogo na escola
infantil é a possibilidade de intervenção no processo de subjetividade. Não se
trata de o educador buscar um lugar de saber absoluto, pois, como diz Mariotto
(2009), isso seria então uma alienação absoluta do outro (criança) que se pretende
educar. Trata-se aí da castração dos mestres e de posições que contemplem
um furo no saber, pois é nesse vazio que o ato educativo constituído se dará, diz
ela. Dessa forma, os educadores são e serão convocados a falar mais sobre o
que deixam a desejar, bem como de seus próprios desejos de participarem ou
não do processo de subjetivação e melhor instrumentalização dos pequenos.
107
Dorisnei Jornada da Rosa

O trabalho das assessorias em EP/PI é promover que os educadores


infantis pratiquem um olhar singular para cada aluno, incluindo os aspectos
diacrônicos, sincrônicos e sociais pertinentes a cada criança, de modo a inventar
intervenções diárias que possibilitem o brincar e o aprender na forma de uma
Educação Estruturante. O pedagógico e o educativo se estendem e se expandem
aqui no sentido de que educar, cuidar e subjetivar podem ser também ofícios da
educação infantil.

REFERÊNCIAS
FREUD, S. Mais além do princípio do prazer [1920]. In: ______. Obras completas. 3.
ed. Rio de Janeiro: Imago,1973. v. III.
______. O mal-estar na civilização [1930]. In: ______. ______.v. XXI.
JERUSALINSKY, Alfredo. Psicanálise e desenvolvimento infantil. 2. ed. Porto Alegre:
Artes e Ofícios, 1999.
LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise
[1964]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979.
MARIOTTO, Rosa Maria Marini. Cuidar, educar e prevenir: as funções da creche na
subjetivação dos bebês. São Paulo: Escuta, 2009.
WINNICOTT, D. W. O Brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

Recebido em 09/11/2011
Aceito em 23/04/2012
Revisado por Maria Ângela Bulhões

108
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 109-118, jan./jun. 2011

TEXTOS
CAMINHOS DE OFICINA NO
ENCONTRO COM O OUTRO1
Ieda Prates da Silva2

Resumo: O presente texto traz uma leitura psicanalítica do trabalho em oficinas


terapêuticas com adolescentes num Centro de Atenção Psicossocial, propondo
que as mesmas se constituem como um dispositivo clínico quando orientadas
pela escuta do sujeito. Aponta os efeitos do laço coletivo sustentado em
transferência, a partir de um fazer com o outro, constituindo um endereçamento
ao Outro do discurso. Através de fragmentos clínicos, expõe e analisa os efeitos
estruturantes desse trabalho em oficina.
Palavras-chave: oficinas, escuta do sujeito, transferência, Outro, adolescentes.

WAYS OF WORKSHOPS IN THE ENCOUNTER OF THE OTHER

Abstract: The present text brings a psychoanalytic view of the work in therapeutic
workshops with adolescents in a Center of Psychosocial Attention, proposing
that the workshop constitute itself as a clinic device when oriented by the listening
of the subject. Points the effects of the collective bond sustained in transference,
by doing with the other, constituting an addressing to the Other of the language.
By using clinic fragments, exposes and analyses the structuring effects of this
workshops.
Keywords: workshops, listening of the subject, transference, Other, adolescents.

1
Trabalho apresentado na II Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e Intervenções Sociais,
realizada em Porto Alegre, 30 de setembro e 01 de outubro de 2011.
2
Psicanalista; Membro da APPOA; Coordenadora de Ensino e Pesquisa do CAPSi de Novo
Hamburgo. E-mail: iedaps@uol.com.br

109
109
Ieda Prates da Silva

A presença de outros que veem


o que vemos e ouvem o que ouvimos
garante-nos a realidade do mundo
e de nós mesmos.
Hanna Arendt

A s questões aqui formuladas surgem a partir de meu trabalho no CAPS Infantil3


de Novo Hamburgo, cidade do Vale dos Sinos, próxima de Porto Alegre.
Focalizarei o texto na experiência do trabalho em oficinas com adolescentes,
sustentado pela psicanálise, o que nos ajuda a fundamentar e a tecer ferramentas
para esse trabalho, e a pensar sobre os efeitos subjetivantes que essa experiência
clínica pode produzir.
Parto de uma primeira premissa: as oficinas terapêuticas constituem-se
como dispositivo clínico, quando orientadas pela escuta do sujeito e pelo trabalho
em transferência, num contexto coletivo, atravessadas por acontecimentos de
toda ordem, e através de diversas formas do fazer em oficina. As oficinas, também
chamadas de ateliês, organizam-se ao redor de um fazer, que pressupõe um
fazer com, se desdobrando em um fazer-se. Se pensarmos que o Eu só se
singulariza no laço com o outro, o coletivo – sustentado em transferência – vem
oferecer ao sujeito uma possibilidade de singularizar-se, na medida em que há
uma escuta e um endereçamento. Esse endereçamento ao Outro do discurso
situa o Outro nos bastidores, para usar uma expressão de Lacan, retomada por
Erik Porge (1998), ao tratar do lugar da transferência na análise de crianças.
É essa escuta singular no coletivo, ou seja, cada sujeito ali tomado no
um-a-um, considerado na sua singularidade e na sua história, que permitirá que
o fazer em oficina se constitua num encontro com o outro, portanto, num encontro
consigo mesmo. Estou me referindo não só à escuta das palavras, mas à acolhida
de seus corpos, de seus movimentos, de suas produções. Sujeitos que se
manifestam ou se escondem, se oferecem ou se furtam ao encontro com o
outro, num modo de se fazer ex-sistente, como uma nota de rodapé.4

3
Centro de Atenção Psicossocial Infantil é um serviço de saúde aberto e comunitário do Sistema
Único de Saúde (SUS) para atendimento diário a crianças e adolescentes com transtornos
mentais.
4
Na interessante expressão de S. Zabalza (2011), que propõe as oficinas como “notas de
rodapé”, no sentido que Lacan lhes outorga: um fora que não é um não-dentro. Dispositivo que
permite ao sujeito expressar, com o seu corpo, e o seu fazer algo que não aparece diretamente
na fala, mas vem como lateral, uma abertura ou uma escansão que retira a linearidade, interrompe
a continuidade e traz o novo que já estava ali, mas que não se dava a ver. Acrescenta algo e faz
furo, ao mesmo tempo.
110
Caminhos de oficina no encontro com o outro

Utilizo a palavra fazer, aproximando-a do sentido que Hannah Arendt (1997)


dá ao termo reificação, ao falar da arte:

Naturalmente, a reificação que ocorre quando se escreve algo,


quando se pinta uma imagem ou se modela uma figura, tem a ver
com o pensamento que a precede; mas o que realmente transforma
o pensamento em realidade e fabrica as coisas do pensamento é o
mesmo artesanato que, com a ajuda do instrumento primordial – a
mão do homem – constrói as coisas duráveis do artifício humano
(p.182).

Agora, as oficinas terapêuticas nos mostram ainda outra via: que essa
experiência no coletivo, de fazer com o outro, de fazer para o Outro – que é o
Outro do social, o Outro do discurso –, de reconhecer algo de si nesse produto
que sai de suas mãos e que é reconhecido pelo semelhante, essa experiência
ela é produtora de pensamento e de subjetividade.
A Oficina de Escrita com adolescentes, que realizo no CAPSi em parceria
com uma colega da equipe, é composta por adolescentes com questões
psíquicas graves e significativas restrições no processo de escolarização, na
circulação e nos laços sociais. A entrada nessa Oficina (que eles intitularam
Dando Letra) se faz por um desejo expresso do adolescente, ou por percebermos
nele interesse pela escrita, ou, ainda, por indicação da equipe, naqueles casos
em que se aposta que a escrita possa vir a se constituir como uma via de
acesso a significantes que possam alçá-los a um lugar de enunciação e a uma
posição no social não tão restritiva. Refiro-me àqueles adolescentes para os
quais a entrada na linguagem não se deu sem percalços, e a utilização da
escrita pode “transmitir uma história de exílio em relação à comunicação”, nas
palavras de Leda Bernardino (2011)5:

Poderíamos então dizer que a escrita aí permite des-colar do


Simbólico para servir-se dele, introduz a possibilidade de
aproximação com o “ser libidinal”, por este acesso à comunicação
que leva à afetação do outro, permitindo fundar um laço social.
Utilizar um código para comunicar-se é estabelecer laço social, é
entrar no discurso. [...] A escrita, então, nestes casos, permite

5
Gentilmente cedido pela autora.

111
Ieda Prates da Silva

passar da relação colada ao significante ou do gozo corporal para


um outro tipo de encontro com a linguagem, com esta ordenação
que é a linguagem escrita (p.11).

Alguns momentos se constituem como privilegiados para se testemunhar


a produção de sujeito que está em curso ali. Tomo o exemplo de um menino,
que vou chamar de Ivo, na época com 16 anos, o qual mais desenhava do que
escrevia durante a Oficina. Percebe-se em seus desenhos a repetição de certos
traços, que parecem constituir uma escritura6. Ivo desenhava sua escola, sua
casa, ele próprio, as meninas, a igreja que ele frequentava com a mãe. Sempre
esteve só com sua mãe, sendo que, até os oito anos de idade, vivia preso dentro
de casa, não tinha linguagem, não brincava nem frequentava a escola. Pois
bem, a cena a que me remeto se deu quando ele iniciava a escrever diretamente,
passando do desenho ao texto. Sua escrita era até então contínua, sem cortes,
sem sinais de pontuação. Nesse dia, ele escreve e depois vai ler para os colegas
seu texto. Ao iniciar a leitura, está falando de sua escola, das notas que recebeu
no boletim, etc. Começa a ler e, ao terminar a primeira frase, se dá conta,
levanta a cabeça do papel, olha para o colega a sua frente e pede: “Me dá o
lápis!” Pega o lápis, põe um ponto na frase, dizendo: “Ponto!” Segue lendo,
colocando – com o lápis que lhe alcançou o colega – ponto nas frases,
introduzindo intervalos, conferindo sentido ao texto. Esse sentido, que é dado a
partir de um código compartilhado com o outro, ele o constrói nesse momento
da leitura, do encontro com o olhar e a escuta de seus semelhantes, querendo
se fazer entender por eles. O leitor, endereçamento necessário de uma escrita,
se constitui em ato, nesse momento em que olha o colega e diz: “Me dá o lápis!”
(como se dissesse: “o teu lápis, com o qual tu escreves letras, que são as
mesmas que eu utilizo, mas para dizer as minhas palavras, o meu texto”).
Seguindo adiante na leitura, Ivo inicia outra frase e, dando-se conta de
que agora se trata de outro assunto, levanta os olhos novamente para os colegas,
para, e diz: “Outra coisa”; e recomeça a frase, anunciando assim que vai falar de
um novo assunto. Ou seja, ele faz aqui a alteridade. O Outro (do social) se faz
presente para ele no momento em que lê seu texto na presença desses outros,
seus pares, numa relação sustentada em transferência, que permite que os

6
Como aponta Chemama: “O desenho não seria sempre marca, tendo que fazer função de traço,
inscrição de um sujeito que precisa fazer, ao mesmo tempo, separação em relação ao Outro?”
(Chemama, 1991, p.23).

112
Caminhos de oficina no encontro com o outro

colegas de oficina possam operar como interlocutores, como testemunhas,


avalizando sua produção textual, emprestando suas ferramentas (ele tinha o
seu próprio lápis, mas vai pedir o do colega para pontuar seu texto) para que ele
torne seu escrito compreensível para esse outro, pois já há um terceiro que faz
marca ali. O movimento de pegar o lápis, acompanhado da demanda endereçada
ao outro, não é mera ação motora, mas se constitui como um Ato, na direção
que Lacan ([1967-1968] s/d) aponta: como produtor de um novo sentido, a partir
do deslocamento ou da produção de um significante que situa o sujeito em outra
posição. Considero que a palavra “ponto”, quando Ivo a exclama repetidamente,
já não se trata apenas do ponto gramatical, mas de um verdadeiro ponto de
capitonné, isto é, ponto de enodamento dos três registros: simbólico, real e
imaginário. Não se trata de simples aquisição cognitiva, mas de produção de
sujeito, no coletivo. Dá-se por efeito da operação de diferenciação/identificação
aos pares, numa relação em transferência que possibilita inscrever o terceiro.
Ana Costa (2007), trabalhando o tema da transferência, nos diz:

A transferência não constitui somente a confiança em alguém que


saberia sobre as condições dos padecimentos sintomáticos daquele
que se queixa de um padecimento qualquer. Muito mais que isso,
ela constitui a hipótese de um sujeito a um saber que se estabelece
a partir do funcionamento da pulsão. Ou seja, sem a constituição
de um sujeito a este saber, ele funciona “sozinho”. Este saber
resulta de uma certa equivalência entre a máquina das pulsões e a
máquina da linguagem. Num princípio, tanto a linguagem quanto a
pulsão são inscrições que nos vêm do Outro, precisando de um
percurso para que um sujeito ali se constitua. Ou seja, a priori é
um saber sem sujeito, sendo este o sentido da alienação a essa
máquina. A atribuição de um sujeito a este saber – que Lacan
denominou sujeito suposto ao saber – condensa toda a importância
do trabalho na transferência (p. 148).

Um pouco anterior à cena relatada acima, Ivo havia introduzido na sua


escrita o vocábulo “eu”, onde antes sempre aparecia seu nome em terceira
pessoa.
A seguir, alguns extratos de seus escritos:
1) O Ieda eu vou morar a casa da B. (menina pela qual está apaixonado)
porque a B. é legal. O Ieda a minha mãe não deixa pra mim ir no BIG. O S.
(nome da mãe da menina que ele gosta) eu to prometendo pra mim morar a (tua)
casa. Sabe que achei ideia eu vou pidi serviço a mãe da B. prá mim arrumar a
113
Ieda Prates da Silva

minha vaga do serviço. O Ieda eu gostei a casa da B. O Ieda eu não quero morar
mais a minha casa, mais nunca mais porque a minha mãe não deixa sair algum
lugar. A minha mãe não deixa fazer amigo. Eu to combinado eu vou morar a
casa da B. É sério eu vou embora. Eu to falando muito sério. Eu to falando
verdade. Eu to falando ideia. (E termina, colocando seu nome completo e a
data.)
2) Eu fiquei triste, minha mãe não deixou ir no passeio. Não sei qual
motivo? Tem que ajuntar papelão? (Sua mãe é catadora.)
3 ) O J. (colega da oficina) tu pode fazer pergunta para mim.
A) Você tem namorada (Sim) ou (Não)
B) Você já beijou a boca das guria (Sim) ou (Não)
C) Você foi a cama a tua namorada (Sim) ou (Não)
D) Você gosta das guria mais bonita (Sim) ou (Não)
E) Você quer ir no cinema (Sim) ou (Não)
F) Você quer namorar as guria (Sim) ou (Não)
4) Eu sonhei a B. Eu tava com medo eu tremi tremi eu sonhei eu queria
morar a casa da B. Eu sonhei a mãe da B. me dando carona eu mixei nas cueca
eu acordei mixo das cueca. Eu sonhei eu tava andando mão dada das guria.
Outro ponto que quero destacar é a particular relação com o tempo que
se dá nas oficinas. Trata-se de outro tempo, que não o cronológico, embora, é
claro, não estejamos totalmente alheios à marcação do relógio. Nesse sentido,
vamos na contramão daquilo que Foucault (1987) denuncia como tempo
disciplinar:

[...] um tempo integralmente útil, com a anulação de tudo o que


possa perturbar e distrair. [...] O que significa que se deve procurar
intensificar o uso do mínimo instante, como se o tempo, em seu
próprio fracionamento, fosse inesgotável; ou como se, pelo menos,
por uma organização interna cada vez mais detalhada, se pudesse
tender para um ponto ideal em que o máximo de rapidez encontra
o máximo de eficiência (p.130-31).

Esse imperativo, a que estamos – nós, os neuróticos – facilmente


submetidos na modernidade, é subvertido na Oficina que denominamos Fora da
Casinha, que é uma oficina que consiste em andar pela cidade. O tempo que
leva para que se reúnam, discutam aonde querem ir, argumentem para convencer
o colega, ou aceitem a sugestão do outro, até chegarem ao consenso, pode
ocupar a maior parte da oficina, correndo-se o risco de nem conseguirmos sair
do CAPSi.

114
Caminhos de oficina no encontro com o outro

Ali, o tempo se expande, se alarga: nas risadas, nos assuntos que se


atravessam e se atropelam, na fala delirante e ininterrupta de um dos
adolescentes, na dificuldade para considerarem a opinião do outro. Assim, por
exemplo, esse menino, que fala sem nenhum intervalo, repetindo programas de
televisão, se agitava com a demora e a dificuldade para entrarem num acordo, e
me dizia, um tanto brabo: “Vamo, Ieda, vamo nós, deixa eles!”, pegando-me pela
mão e propondo uma saída (no duplo sentido) que desconsiderava o coletivo, o
lugar terceiro, representado ali na oficina por um acordo mínimo entre eles.
A circulação pela cidade, entre pares, para esses adolescentes tratados
como criancinhas, que são trazidos pela mãe, que não andam sozinhos, produz
encontros e desencontros surpreendentes. Estranhamento e acolhida se
intercalam, nos encontros com os transeuntes, com os lojistas, com o guarda
da esquina, com os clientes da livraria. Falam muito alto ou emudecem, sentam
na soleira da porta, pegam as revistas e querem levá-las embora; enfim, uma
série de situações inusitadas, que exigia inicialmente constante mediação da
parte dos terapeutas que os acompanham, mas que, com o exercício da saída
à rua e do encontro com o diferente, mediado por uma palavra em transferência,
têm produzido movimentos que nos surpreendem, e nos levam a reconhecê-los
em outra posição subjetiva, diversa daquela em que, sem nos darmos conta, os
estávamos colocando.
Trago um exemplo deste efeito de surpresa, que alguns acontecimentos
em oficina produzem em nós, os terapeutas: uma das adolescentes, que
chamarei de Ana, a qual apresentava dificuldade para aceitar que não poderia
pegar e levar as revistas que quisesse, sem pagar, em um determinado dia em que
vamos novamente ao sebo, mostra-me algumas moedas que tem na mão, dizendo
que vai comprar revistas. Ocupo-me de mostrar-lhe as revistas que “cabem dentro
de seu orçamento”, mas ela não se decide por nenhuma. Distraio-me,
acompanhando o movimento e a curiosidade de outros adolescentes da oficina,
e, quando vejo, Ana traz nas mãos, muito contente, uma revista, dizendo que vai
levá-la. Noto que custa um pouco mais do que o valor que ela possuía, e lhe
digo: “Esta aí, não dá!”. Ela me responde que “dá, sim!”, mas eu insisto. Nesse
momento, a dona da loja, que está no caixa, me informa: “É dela, ela já pagou a
revista. Eu lhe dei um desconto.” Ana me surpreende, em outra posição diferente
daquela em que eu a supunha. E me pego a repetir a posição da mãe, que reluta
ou se recusa a reconhecer o filho em outro lugar, que não mais o de sua criancinha.
Nesse episódio, Ana me relembra também que é na ausência que o sujeito
desponta: é no momento em que me ausentei, que saí de cena, que se abriu o
espaço para que ela escolhesse e fosse à luta para levar sua revista, para afirmar
o seu desejo.
115
Ieda Prates da Silva

Sua posição de sujeito não passa despercebida – e é reforçada, inclusive


– pela dona da loja, que, a partir desse dia, muda o endereçamento de sua fala.
Antes, quando entrávamos na livraria, ela costumava dizer: “As revistas que ela
gosta estão na prateleira tal.” Agora, quando chegamos lá e Ana começa a
procurar, a dona do sebo diz, olhando para ela: “As revistas que tu gostas estão
na prateleira tal”.
Há uma descoberta do mundo, uma observação do semelhante e uma
apropriação do corpo – enquanto corpo adolescente (portanto, não mais entregue
à mãe) – que testemunhamos ir se constituindo nessas andanças pela cidade.
Assim, percorremos praças, museus, livrarias, cafés, shopping; ou jogamos bola
numa praça ou parque, assistimos a um vídeo turístico sobre a cidade; ganhamos
mapas, que passam a fazer parte do acervo e do instrumental da oficina.

Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas


interposto entre os que nele habitam em comum, como uma mesa
se interpõe entre os que se assentam ao seu redor; pois, como
todo intermediário, o mundo ao mesmo tempo separa e estabelece
uma relação entre os homens (Arendt, 1997, p. 62).

Numa saída ao centro, Beto quis levar o mapa de Novo Hamburgo com
ele. Neste, estão localizados os principais pontos turísticos do município.
Havíamos trabalhado com o mapa, localizando a rua do CAPSi e o endereço de
cada um deles ou, pelo menos, o bairro em que moram. Nesse dia, Beto quis
levar o mapa e foi abrindo-o e identificando, ao passar por elas, as coisas que
localizara no mapa. Mas se mostrava surpreso quando encontrava, na realidade
da cidade, o que estava representado no papel. Frente a uma grande escadaria
do centro, olhava-a, e ria, apontando ora para o desenho no papel, ora para a
concretude da escada: “Olha a escadaria, olha!, Tá aqui a escadaria!” (no mapa);
“Tá ali a escadaria!” (apontava para ela), surpreso de encontrá-la sob duas formas
diferentes (a escada no real e sua representação gráfica).
Esse mesmo adolescente, numa ida à praça para jogarem futebol, se
recusou a jogar, de início, dando voltas e voltas ao redor do campo em que se
divertiam meninos da oficina e outros que estavam pela praça. Até que ele
conseguiu se aproximar e entrar no jogo (pacientemente estimulado pelo
Residente e Professor de Educação Física, que acompanhou um tempo essa
oficina). É um adolescente que apresenta uma estrutura paranoica. No caminho
de volta, se posicionou ao meu lado, e começou a falar:
B – “Tá louco... aqueles caras... tá louco!....”
I – “Tu jogaste com eles”.
116
Caminhos de oficina no encontro com o outro

B – “Eu não conheço eles, tá louco!....”


I – “Mas tu podes conhecer, podes te apresentar, dizer teu nome...”
B – “Eu não, não conheço eles. Eu não me misturo. Eu não conheço
essa gente”.
I – “Mas, se pode conhecer gente nova, não?”
B – “Aí a casa cai! Não! A casa cai! Eu não me misturo.... (pequena
pausa) Tu acha que eu devia, Ieda?”
Sua dúvida, que antes era a certeza que enunciava sua estrutura psíquica,
abre uma brecha na posição paranoica, a qual, aliás, predomina nas relações
sociais vigentes: nós também não nos misturamos. O outro (mesmo que seja o
vizinho) é mais facilmente sentido como estranho do que como semelhante, e,
do “estranho” para o “perigoso” é meio passo. A radicalidade com que a rivalidade
fraterna se estende para os laços sociais não permite que possamos conviver
com as diferenças, aceitando, assim, que há diversos modos do viver. Mas a
dúvida que a experiência em oficina, sustentada em transferência, permite a
Beto formular, desponta uma fresta nessa percepção do mundo como hostil e
ameaçador: pequenina, mas preciosa fresta!
As oficinas, das quais pude aqui trazer apenas alguns fragmentos,
propõem outra lógica, que se sustenta por uma ética, uma clínica e uma política
que são indissociáveis. Em tempos em que retornam e nos rondam os fantasmas
das políticas higienistas, urge se afirmar, no cotidiano, a dimensão profundamente
humana da escuta do sujeito na clínica das instituições de saúde mental.
Concluo, me servindo das palavras de Analice Palombini (2005):

Se a clínica que a gente opera [...] aposta numa dimensão não


transparente da subjetividade, que resiste à captura, que se afirma
como resistência; se nossa clínica abandona a pretensão de
transparência, mantendo aberto o campo da conflitualidade próprio
a essa subjetividade definida como resistência, então, nossa
política, conforme a essa aposta, tomará distância da perspectiva
de governo das almas, de disciplinarização dos corpos, de que o
estado moderno incumbe seus profissionais. Nossa política
caminhará na direção nômade que segue os caminhos desviantes
da invenção [...], e nos ensina a fazer valer mais em nossas vidas
a mesma aposta que fazemos na vida daqueles a quem se dirigem
os nossos serviços: os loucos, os tortos, os torpes, os feios, os
pobres, os pardos, todos esses desviantes que habitam também
em nós e que podem nos conduzir por caminhos que ainda não
ousamos explorar (p. 5).
117
Ieda Prates da Silva

REFERÊNCIAS
ARENDT, H. A condição humana. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
BERNARDINO, L. Pulsão, letra, significante e gozo na clínica do autismo. Trabalho
apresentado no Congresso Internacional sobre Autismo, da Associação Psicanalítica
de Curitiba. Curitiba, de 24 a 27 de agosto de 2011. (não publicado)
CHEMAMA, R. O ato de desenhar. In: TEIXEIRA, A. B. do R. (Org.) O mundo, a gente
traça: considerações psicanalíticas acerca do desenho infantil. Coleção Psicanálise
da Criança. Salvador: Ágalma, 1991, p.11-26.
COSTA, A. Uma clínica aberta. In: APPOA. Psicose: Aberturas da Clínica. Comissão
de Aperiódicos da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (org.). Porto Alegre: APPOA/
Libretos, 2007, p.147-54.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir. 25. ed. Petrópolis: Vozes, 1987.
LACAN, J. O Seminário: o ato psicanalítico [1967-1968]. Publicação da Escola de
Estudos Psicanalíticos, para circulação interna. São Leopoldo: Ed. Oikos, s. d.
PALOMBINI, A. Acompanhamento terapêutico: dispositivo clínico-político. Trabalho
apresentado no Fórum sobre Acompanhamento Terapêutico, UFRGS. Porto Alegre,
17 de novembro de 2005.
PORGE, E. A transferência para os bastidores. In: Littoral: A criança e o psicanalista.
Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1998.
ZABALZA, S. Nota ao pie: una perspectiva topológica del Hospital de Día. Revista
Imago Agenda, nº 156, dezembro de 2011. Disponível em: http//
www.imagoagenda.com/articulo.asp. Acesso em 26.02.2012.

Recebido em 08/12/2011
Aceito em 07/01/2012
Revisado por Deborah Nagel Pinho

118
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 119-132, jan./jun. 2011

TEXTOS

IMPLICÂNCIA OU BULLYING?1

Lúcia Alves Mees2

Resumo: Através da noção de construção da fantasia, o texto indaga sobre o


bullying e suas relações com a puberdade e a adolescência. A retomada de
parte da história da escola – e dos discursos que a circunscrevem – contribui
para interpretar a implicância entre os pares e suas implicações.
Palavras-chave: bullying, adolescência, fantasia.

PEEVE OR BULLYING

Abstract: Through the notion of fantasy construccion, the text questions about
the act of bullying and its relation with puberty and adolescence. The remake of
part of the school history – and the discourse that circumscribes it – contributes
to interpret the teasing between the subjects and their implications.
Keywords: bullying, adolescence, fantasy.

1
Este texto é a versão modificada do publicado pela Revista da Associação Psicanalítica de
Curitiba, nº 24: Abusos na infância, em 2012.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). E-mail:
lmees@portoweb.com.br

119
119
Lúcia Alves Mees

U ma jovem analisante fala sobre uma cena, entre ela e o irmão, que faz coro
com a indagação do título. O irmão coloca o pé sobre o colo dela. A analisante
reclama do odor dos pés. Ele insiste. Ela se levanta e faz menção de fotografá-
lo para expor no Facebook. Ele diz que não, ela persiste. Ele joga as meias
sujas sobre ela e as esfrega no rosto da analisante, machucando-a. Ela chora,
vai para o quarto e eles ficam sem se falar por um tempo.
Preocupada com o futuro da relação entre ela e o irmão, a analisante se
pergunta se essas brincadeiras entre irmãos ajudam a construir uma relação de
parceria e se, consequentemente, contribuiriam para eles seguirem sendo amigos
pela vida afora, ou se elas significam ruptura e prenunciam o afastamento entre eles.
Na cena específica, é claro que a violência que incide sobre o corpo,
infligindo dor, põe fim ao jogo fraterno. Por ora, apenas sublinharemos o corpo e
a dor como balizas para o dentro e fora da relação fraterna.
A chamada implicância entre irmãos se apresenta na cena em suas
características principais, sobretudo naquilo que indaga a implicação de cada
um. O verbo implicar contempla três empregos: o de “ter implicância com” (“o
diretor implica com aquele funcionário”), o de comprometer ou envolver (“o agente
implicou o chefe no escândalo) e produzir como consequência (“autonomia implica
responsabilidade”). Pois a polissemia do verbo implicar nos leva a imbricar o
zoar, com o envolvimento e a produção de uma responsabilidade. São esses
três aspectos que as cenas de implicância trazem consigo.
A reciprocidade da implicância permite que ambos dirijam um ao outro a
pergunta sobre a implicação de cada irmão na existência do outro. A possibilidade
de jogar/brincar com a rivalidade pode ser elaborativa, assim como impeditiva,
do laço. Quando um dos envolvidos deixa de ocupar o lugar de implicante/
implicado, introduzindo a ruptura que interrompe o “entre dois”, a implicância
talvez não mereça mais esse nome. Algo se excluiu da cena. A possibilidade de
implicação se esvazia.
Seja diante dos pais ou não, a cena da implicância se dirige ao desejo
parental, implica-o, indagando o amor ou o reconhecimento. A pergunta sobre
quem tem razão parece perpassar os jogos dos irmãos ou, ainda, “quem é o
escolhido?” Ou mais ainda: “como situas teu desejo diante disso?” O terceiro
para o qual a cena se endereça é decisivo no desfecho dela. Pois a intervenção
do terceiro (Freud e Lacan demonstraram sobre o pai e seu Nome) requer o
corte com o imaginário da escolha binária, assinalando o lugar singular de cada
um a partir do desejo que o caracteriza. A rivalidade que supõe um “ou eu ou
ele(a)” pode se elaborar quando a resposta não atende ao registro imaginário da
escolha que exclui o outro, mas aponta para o registro simbólico que supõe o
lugar no qual cada um precisará se ocupar, ou seja, implicar-se.
120
Implicância ou bullying?

A implicância entre colegas da escola frequentemente encena o mesmo:


quem detém o lugar privilegiado diante do amor e do reconhecimento do Outro?
Qual o desejo do Outro que se lê em sua reação? Mas há também a ruptura
com a pergunta, anunciando o bullying, suas batidas e humilhações, e o que ele
significa enquanto violência e, consequentemente, de fratura do simbólico.
Esse enlaçamento entre corpo, dor, humilhação, marcas e batida foi
assinalado por Freud, no célebre texto Uma criança é espancada – uma
contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais ([1919]/1976). Lacan
([1957-58]/1999)3 retoma esse escrito para ponderar que ele precisaria ser mais
trabalhado, de modo a não ser associado exclusivamente com a encenação
distorcida da cena edípica. Será a partir do Édipo e seu mais além, ou aquém,
que pretendemos abordar a temática da implicância e do bullying.
Freud divide a fantasia de espancamento em três tempos. O primeiro,
nem sádico nem masoquista, acompanha a tenra infância e está associado ao
complexo de intrusão, ou seja, ao ódio da criança pelo irmão, ou irmã menor,
que atrai os pais. A frase que caracteriza esse tempo é: “meu pai bate na criança
que eu odeio”. A fantasia é pautada pela demanda de amor do pai e ser batido
significa a ausência desse amor. Se o irmão é o batido, a criança que fantasia
se afirma como amada.
Na segunda fase, o prazer que até ali não se manifestara se fará presente.
A criança que apanha é a mesma que fantasia, e o texto é: “sou espancada pelo
pai”. A fantasia é masoquista, acompanha a masturbação, é inconsciente e só
se mostra na construção de uma análise. O sentimento de culpa seria
responsável pela reversão da fantasia, transformando-a em masoquista. O amor
ao pai do primeiro tempo suscita a culpa da criança e a regressão à fase anal-
sádica, transformando o aspecto sexual do coito em apanhar nas nádegas como
seu correlato.
A terceira fase, como a primeira, é consciente, aquele que fantasia não
faz parte da cena, pois ela é indeterminada: quem bate pode ser um professor
ou qualquer autoridade, e as crianças batidas não referem alguém específico.
Para Freud, esse tempo é sádico na forma, mas a satisfação que produz é
masoquista.
Lacan, no seminário sobre as relações de objeto ([1957-1958] 1999),
retoma a fantasia descrita por Freud, destacando que na primeira fase se trata
de

3
Sobre o texto e seu contexto histórico e conceitual veja também Mees (2011).

121
Lúcia Alves Mees

uma comunicação de amor, [...] que se declara para aquele que é


o sujeito central e na coisa que ele recebe [...] que é a expressão
de seu voto, de seu desejo, de ser preferido, de ser amado (Lacan,
[1956-1957] 2008, p. 64).

A rivalidade entre os irmãos governa a cena, o chamado por Freud de


“complexo de intrusão”. Lacan inclui a associação desse tempo e dos demais
com a inscrição do simbólico.

A relação com o irmão ou irmã menor, com um rival qualquer, não


assume seu valor decisivo no plano da realidade, mas, por se
inscrever num desenvolvimento totalmente diferente, num
desenvolvimento da simbolização, ela o complica e exige uma
solução totalmente diversa, uma solução fantasística [...]. A criança
descobre a chamada fantasia masoquista de fustigação, que
constitui, nesse nível, uma solução bem-sucedida do problema
(Lacan, [1957-1958] 1999, p. 250).

A primeira dialética da simbolização da criança, a da primeira fase


da fantasia de espancamento, reitera Lacan, se dá na relação com
a mãe, para além das satisfações ou frustrações, mas a partir da
descoberta do que é objeto do desejo dela. Tanto para um sexo
quanto para o outro, o tema do outro como desejante está ligado à
posse do falo: “Freud instaura ali um significante-pivô, em torno do
qual girava toda dialética do que o sujeito tem de conquistar por si
mesmo, por seu próprio ser” (idem, p. 248).

O falo entra no jogo a partir do momento em que o pequeno sujeito aborda


o desejo da mãe e, mais ainda, ele entra no sistema significante tão logo o
sujeito tenha de simbolizar, em oposição ao significante, o significado como tal,
isto é, a significação. A presença do falo conduz à tentativa de saber o que ele
significa, conhecer o desejo que ele refere.

O desejo da mãe não é simplesmente, nesse momento, o objeto


de uma busca enigmática que deva conduzir o sujeito, no decorrer
de seu desenvolvimento, a rastrear esse sinal, o falo, para que
então este entre na dança do simbólico, seja o objeto preciso da
castração e, por fim, seja entregue a ele sob outra forma, para que
ele faça e seja o que se trata de fazer e ser. Ele o é, ele o faz, mas

122
Implicância ou bullying?

aqui, estamos absolutamente na origem, no momento em que o


sujeito se confronta com o lugar imaginário onde se situa o desejo
da mãe, e esse lugar está ocupado (idem, p. 249).

A fantasia de espancamento, em seu primeiro momento, fornece a versão


sobre o desejo da mãe pelo falo, conferindo ao irmão o lugar de representante do
objeto desse desejo, bem como a encenação da retirada dele dessa posição ao
ser batido.
O segundo tempo da fantasia está ligado ao Édipo e dá conta da relação
privilegiada da menina com o pai. Ela é espancada como signo do amor do pai
por ela. A menina recorre à figuração da etapa anterior para exprimir tal fantasia,
que nunca vem à luz, exceto em análise.

A fustigação não atinge a integridade real e física do sujeito. É jus-


tamente seu caráter simbólico que é erotizado como tal, e o é desde
a origem [...]. O caráter fundamental da fantasia masoquista [...] é
a existência do chicote. É isso que, em si mesmo, merece ser por
nós acentuado. Estamos lidando com um significante que merece
ter um lugar privilegiado na série de nossos hieróglifos, antes de
mais nada por uma simples razão, a de que o hieróglifo corresponde
àquele que segura o chicote designa desde sempre o diretor, o
governador, o mestre/senhor (Lacan, [1957-1958] 1999, p.251).

Apesar das alterações da primeira para a segunda fase da fantasia, relativas


ao objeto das batidas, e sua significação no que tange ao amor, o chicote é
conservado. Ele é mantido como material do significante, o objeto chicote,
indicador do lugar do Outro que o empunha (a autoridade) e persiste para assinalar
a relação do sujeito com o desejo do Outro.
O terceiro tempo do espancamento será decisivo no desfecho da
construção da fantasia e, consequentemente, na simbolização, efeito da inscrição
do significante, e da constituição do objeto de desejo, efeito da relação ao desejo
do Outro. Nessa fase, pode-se colher a construção da fantasia, quanto anunciar
a fantasia perversa.

Num terceiro tempo, e depois da saída do Édipo, não resta outra


coisa da fantasia senão um esquema geral. Introduz-se uma nova
transformação, que é dupla. A figura do pai é ultrapassada,
transposta, remetida à forma geral de um personagem na posição
de bater, onipotente e despótico, enquanto o próprio sujeito é

123
Lúcia Alves Mees

apresentado sob a forma das crianças multiplicadas, que já nem


sequer são de um sexo preciso, mas formam uma espécie de
série neutra (Lacan, [1957-1958] 1999, p. 247).

O que se destaca da cena na fantasia posterior à dissolução edípica é


um objeto, no caso, representado pelo olhar terceiro daquele que observa o
indeterminado do bater e do apanhar.

E isso mostra bem o caráter de dessubjetivação essencial que se


produz na relação primordial, e resta essa objetivação, esta
dessubjetivação em todo caso radical, de toda estrutura em cujo
nível o sujeito não mais se encontra a não ser enquanto uma
espécie de espectador reduzido ao estado espectador ou
simplesmente de olho, quer dizer, o que sempre caracteriza no
limite e ao ponto da última redução toda a espécie de objeto, É
preciso menos, nem sempre um sujeito, mas um olho para vê-lo,
um olho, uma tela sobre a qual o sujeito é instituído (Lacan, [1956-
57] 2008, p.65).

De outro lado, possui diferente significação a indeterminação dos


personagens na fantasia perversa, pois “Freud marca com precisão nesta ocasião
que é através dos avatares e da aventura do Édipo, que devemos considerar a
questão, o problema da constituição de toda perversão” (idem, p. 66). Pois no
fantasma perverso se trata de um congelamento do chicote, de modo que ele se
constitua como fetiche e não como significante. Paralisação no objeto fetiche,
fixando a crença no falo materno que a faria gozar.

O fantasma perverso tem uma propriedade que agora podemos


destacar. Que é esta espécie de resíduo, de redução simbólica
que progressivamente eliminou toda a estrutura subjetiva da
situação, para só deixar emergir aí alguma coisa inteiramente
objetivada e, afinal de contas, enigmática [...]. Encontramo-nos aí
no nível do fantasma perverso, de alguma coisa que tem, ao mesmo
tempo, todos os elementos, mas que perdeu toda a significação,
ou seja, a relação intersubjetiva, é de alguma forma a manutenção
em estado puro do que se pode chamar de significantes em estado
puro, sem a relação intersubjetiva, os significantes esvaziados de
seu sujeito, um tipo de objetivação dos significantes da situação
enquanto tal (idem, p.65).
124
Implicância ou bullying?

As fases da fantasia de espancamento, assim, descrevem a constituição


do sujeito ou, mais exatamente, outorgam à fantasia o estatuto de fundadora de
um sujeito. A fantasia, construída a partir do desejo do Outro (no exemplo freudiano
“Quem e por que bate?”), constitui a matriz para as relações do sujeito com os
outros e o mundo. Mediadora entre o irrepresentável, a fantasia compõe uma
versão para o real, através de um objeto que dirige o desejo.
Dito isso, retomamos a indagação do título, somando aqui a pergunta
sobre o que o bullying pode dar a escutar sobre a fantasia de espancamento e,
por sua ocorrência se dar no interior da escola, se esta na atualidade possui
alguma peculiaridade que relacione sua associação com tal violência.
O século XX foi marcante no que tange às mudanças relativas à autoridade
(Mees, 2001). Se os princípios militares e religiosos guiaram a disciplina nas
escolas no passado, hoje os fundamentos ditos não falocêntricos marcam as
relações hierárquicas, inclusive as de professor e aluno. O Estado ou o divino
não são mais balizas para a pedagogia. O mestre/professor, que guiava por
estágios que pretendiam quase a perfeição, atualmente está mais para parceiro
amigável do que figura de autoridade diante de seus alunos. Combina-se aí um
vasto ganho de liberdade, com o esmaecimento da alteridade demarcadora da
diferença de lugares.
A escola atual, em vários aspectos, está longe daquela do final do século
XVIII descrita por Foucault:

[A organização linear na escola] é sem dúvida de origem religiosa.


[...] A ideia de um ‘programa’ escolar que acompanharia a criança
até o termo de sua educação e que implicaria de ano em ano, de
mês em mês, em exercício de complexidade crescente traz o tema
da perfeição, em direção à qual o mestre exemplar conduz, torna-
se entre eles o de um aperfeiçoamento autoritário dos alunos pelo
professor (Foucault, 1997, p. 155).

De outro lado, algumas similaridades com a atualidade se afirmam, como


a do controle sobre o tempo, através da compartimentação do saber, visando
organizar durações rentáveis.

Esse é o tempo disciplinar que se impõe pouco a pouco à prática


pedagógica – especializando o tempo de formação [...]. Recolhe-se a
dispersão temporal para lucrar com isso e conserva-se o domínio de uma
duração que escapa. O poder se articula diretamente sobre o tempo:
realiza o controle dele e garante sua utilização (Foucault, 1997, p. 154).

125
Lúcia Alves Mees

A escola, assim, segundo o autor, é um exemplo do fenômeno da aplicação


das técnicas de apropriação do tempo das existências singulares, de controle
desse tempo, de tentativa de reger os corpos e as forças, a fim de realizar uma
acumulação da duração que busca o lucro ou a utilidade. Tal processo tem
origens e localizações diversas, ao mesmo tempo em que se apoiam uns nos
outros, esboçando pouco a pouco um método geral.
Walter Benjamin (2009), em uma de suas primeiras produções dirigidas à
educação, em 1915, considera que a produção passou a substituir a criação,
atendendo à demanda do mundo do trabalho.

A falsificação do espírito criador em espírito profissional, que vemos


em ação por toda parte, apossou-se por inteiro da universidade e a
isolou da vida intelectual criativa e não enquadrada no funcionalismo
público. O desprezo, típico de casta, por grupo de artistas e eruditos
livres, estranhos ou até hostis ao Estado, é um sintoma claro e
doloroso dessa situação (idem, p. 39).

Lyotard (2008), mais tarde, junta-se a essa tese, enfatizando o aspecto


mercantilista da escola. Trata-se aí de subjugar a escola ao mercado e aos
ditames do capital. Para ele, o estatuto do saber se alterou depois dos anos 50
e 60. A partir daí, não se tratava mais da formação no sentido amplo, visando à
condição de cidadão de cada aluno e, sim, do saber que passa a ser vendido e
consumido de acordo com as regras de produção: “O princípio do desempenho
[...] tem por consequência global a subordinação das instituições do ensino
superior4 aos poderes constituídos” (idem, p. 91).
Silviano Santiago (2008), no posfácio do livro de Lyotard, chama atenção
para outra consequência da mudança na relação com o saber: a diferença na
relação entre aluno e professor. Pondera o autor que o saber cada vez mais
prolifera nas bibliotecas, laboratórios de pesquisa, em museus, em arquivos
públicos, além da informatização desses dados, levando aluno e professor a
não possuírem um desnível entre si no acesso à informação.

4
Observe-se que o autor se refere às instituições de ensino superior, entretanto, parece-nos
que sua tese principal pode ser transposta para a educação de modo geral. O texto de Lyotard
foi encomendado pelo Conselho das Universidades do Quebec, portanto, por isso a ênfase no
terceiro grau.
126
Implicância ou bullying?

[No passado] o indivíduo tinha de se entregar, desde a mais tenra


id a d e , a u m le n t o e interiorização do saber,
g r a d a t iv o p r o c e s s o d e

tanto de um saber universal e multidisciplinar básico, quanto de


saber disciplinar e superior. A escola e os professores, donos de
uma informação completa do saber, eram os principais responsáveis
por esse trabalho junto aos alunos que, por definição, tinham
informações incompletas. O desnível justificava a autoridade do
professor e a obediência do discípulo (idem, p.128).

Essas breves considerações sobre a educação servem aqui para assinalar


a progressiva alteração das relações de autoridade na escola, assim como a
crescente incidência do mercado (seja ele de trabalho ou de capitais) na
determinação dos rumos da pedagogia. Percebe-se a educação acompanhando
os grandes eixos organizadores da cultura: das promessas religiosas, passando
pelo apogeu da ciência no século XIX, até o alargamento do discurso capitalista,
principal guia atual na determinação das relações.

O espaço do saber contemporâneo, o espaço da técnica, ou melhor,


das tecnociências, pois estas se inscrevem mais facilmente no
discurso capitalista do que no discurso universitário, está em ruptura
com o espaço, o universo infinito das ciências que se inscreviam
no lugar do discurso do mestre, em substituição ao discurso
religioso. A especificidade maior desse discurso capitalista é que
[...] este não produz nenhuma promessa do supereu coletivo, a
não ser essas ‘promessas de nada’, evocadas por Lacan no fim da
última guerra mundial (Rassial, 1997, p.99).

Tal ausência de promessa-guia tem o efeito de desorientação, sobretudo


para os adolescentes, na medida em que

[...] as tecnociências, capitalistas e pós-modernas, consagram o


adolescente a uma errância sem objetivo e sem esperança, a não
ser aquele – melancólico, para qualificar o gozo – de ‘perder-se’
em redes não orientadas (idem, p. 99).

Isso porque,

[...] para permanecermos em nosso lugar, não basta que um lugar


seja designado, é preciso que ele tenha validade garantida por um

127
Lúcia Alves Mees

saber atribuído a um sujeito e que ele esteja associado a uma


promessa de gozo ou de possibilidade de gozo (idem, p.98).

Qual promessa orientaria o jovem na direção de um mais além? Quem


encarnaria o lugar do saber, interditor e proporcionador de um horizonte de gozo?
Pois, se aquilo que justifica a escola se torna exterior a ela (a produção, o
sucesso), como seria reconhecida uma autoridade intrínseca àquele que
representa a instituição, ou seja, o professor? Se o saber está diluído em várias
fontes de conhecimento, como a escola guardaria seu lugar de transmissora
desse saber e, portanto, de reconhecimento?
São essas relações de prestígio, sucesso e valor que o bullying parece
denunciar. O popular, o nerd, o loser, a pati, designam aqueles que ganham
lugar de fracasso ou o avesso dele, sobretudo no ambiente escolar. O bully, o
valentão, é outra figura na galeria de personagens que as crianças e jovens
vivenciam hoje no colégio.
O termo bullying compreende todas as formas de atitudes agressivas,
intencionais e repetidas, que ocorrem sem motivação evidente, adotadas por
um ou mais estudantes contra outros, causando dor e angústia, e executadas
dentro de uma relação desigual de poder. Portanto, os atos repetidos entre
iguais (estudantes) e o desequilíbrio de poder são as características essenciais,
que tornam possível a intimidação da vítima. Por não existir uma palavra na
língua portuguesa capaz de expressar todas as situações do bullying possíveis,
o quadro a seguir relaciona algumas ações que podem estar presentes: colocar
apelidos, ofender, zoar, gozar, encarnar, sacanear, humilhar, discriminar, excluir,
isolar, ignorar, intimidar, perseguir, assediar, aterrorizar, amedrontar, agredir, bater,
chutar, empurrar, ferir, roubar, quebrar pertences. O bullying é um problema
mundial, sendo encontrado em toda e qualquer escola, não estando restrito a
nenhum tipo específico de instituição: primária ou secundária, pública ou privada,
rural ou urbana. Pode-se afirmar que as escolas que não admitem a ocorrência
do bullying entre seus alunos, ou desconhecem o problema, ou se negam a
enfrentá-lo5.
Em recente pesquisa sobre o bullying em Porto Alegre (Rolim, 2010),
dentre os muitos aspectos levantados, dois se destacam para análise aqui: a
faixa etária de maior incidência do fenômeno, entre 11 e 13 anos (idade média

5
Disponível em: www. bullying.com.br/BConceituacao21.htm#inicio. Ultimo acesso em 15/02/
2012.

128
Implicância ou bullying?

dos que sofreram bullying é de 12,81); e as consideradas piores ofensas presentes


na chacota: “veado” para os meninos6, “vagabunda” para as meninas7.
O período da vida de presença mais intensa do bullying nos remete à
puberdade e seu lugar desencadeador da adolescência enquanto processo
psíquico, ou “momento simbolígeno”, como afirma Rassial (1997). As mudanças
no corpo dão início ao que se coloca como reapropriação deste pelo eu. Pois a
puberdade não mudou apenas a aparência, mas o estatuto e o valor do corpo,
exigindo a reconfiguração da imagem corporal. O Outro também fica em suspenso
em sua consistência imaginária e simbólica. Até então, o sujeito estava
resguardado do apelo de responder por seus atos, visto sua infância ser guiada
pelos pais. Seu ser criança era afetado por aquilo que seus pais lhe indicavam
como realização. Uma nova pergunta sobre o desejo do Outro se impõe
contundentemente na adolescência. O âmbito restrito da família, que perfazia
quase toda a lei e a identidade a ser seguida, dá lugar a uma indagação que se
dirigirá ao laço fraterno e ao outro sexo. Propomos que a puberdade e a
adolescência reposicionam o sujeito também em relação à fantasia, reencenando
sua construção, tal como a fantasia de espancamento o faz. De novo, nesse
tempo da constituição do sujeito, tratar-se-á de compor suas implicações. Mais
uma vez estará em causa a implicação com o rival, enquanto aquele que indaga
sobre o lugar de cada um, sobre o desejo do Outro e seu objeto de satisfação.
Ainda, de novo, a implicação com a sexuação e o lugar diante do pai que “bate”,
marca e submete, assim como o destaque de um objeto que anime o desejo. O
corpo, da mesma forma, volta à cena, implicando uma nova imagem e a indagação
sobre sua sexuação.
O fenômeno do bullying parece responder a tal encenação da fantasia de
fustigação, revelando as dificuldades na construção fantasmática e as do
adolescer. A fantasia é, porém, encenada no cotidiano escolar: a rivalidade entre

6
“[...]aqueles que possuem dificuldades de relacionamento com as garotas, que são tímidos
demais, ou desajeitados; os que já tentaram, mas foram rechaçados por não serem ‘desejáveis’,
estes todos são chamados de ‘veados’, bichinhas’, ‘baitolas’. Não é necessário, para isso, que
possuam trejeitos, hábitos ou um estilo especial; basta que não ‘fiquem’ com as meninas [...]”
(Rolim, 2010, p.103).
7
“uma das ofensas mais graves praticadas entre as alunas consiste em qualificar uma delas de
‘vagabunda’ [...] a que ‘dá para qualquer um’, que é uma ‘puta’. O impressionante, no caso, é que
aquelas que empregam termos do tipo, em sua grande maioria, ainda não se iniciaram sexualmente”
(idem, p.106).

129
Lúcia Alves Mees

os irmãos/colegas passa facilmente da implicância/implicação para rechaço,


luta fratricida pelo suposto risco da própria expulsão. A autoridade que “bate”
está difusa, de modo que o lugar é ocupado por qualquer um, mas a ilegitimidade
em fazê-lo transforma a função inerente ao lugar em violência. Na impressão de
que todos estão potencialmente sob ameaça de ficarem de fora dos laços, alguns
parecem tomar a posição ativa de expurgar, como se garantisse a possibilidade
de permanecer. Ingresso imposto à força, com o preço de estar preso à violência
e condenado à resposta insuficiente que essa produz. “Ser violento” não é o
mesmo que “tornar-se homem”, e ter um lugar não se satisfaz com a expulsão
dos pares. Da mesma forma, difamar o colega não responde sobre quais traços
são os próprios a cada um. Estar submetido à violência também não produz a
inscrição no corpo de um novo estatuto para ele, não produz a submissão que
diria de assunção da castração e que conferiria um lugar. Ou seja, o bullying8
pode encenar as grandes questões da puberdade e da adolescência, mas não
permite sua conclusão. Condena à repetição, impedindo a elaboração acerca
da implicação do corpo e do nome de cada um.
Freud já apontara que a homossexualidade e a promiscuidade são as
formas de pôr o pai em xeque nas duas heranças que a função paterna traz: a
da escolha sexual e a do acato à lei. A atenção dos jovens na escola a esses
dois aspectos faz coro com as questões que importam na adolescência: como
se tornar homem, apropriando-se de um corpo, agora autorizado a levar a termo
a relação sexual, e provando – através de atos – uma posição ativa frente à
linguagem? Para as meninas, a implicação é a de se tornar mulher, sexuada,
desejada, mas sem deixar de guardar algo do pai e da lei. O recato traduziria o
acesso à sexualidade sob algumas balizas: não todos os homens. A “vagabunda”
pode bem representar aquela que acede a todos, desviando-se do ditame de
deixar ao menos um sob interdição.
Mas o que fracassa a ponto de que a passagem adolescente se sintomatize
na violência? Qual a responsabilidade de pais e professores nesse processo?
Qual o lugar da escola diante disso?
A adolescência atual se vê às voltas com a sobreposição do questiona-
mento do Outro, próprio da juventude, com a tendência crescente dos adultos
de não ocuparem um lugar na cena. Os adolescentes não demandam aos pais
e professores suas respostas sobre si, como implicação lógica da juventude.

8
Sobre o bullying veja também Pinho (2011) e Ribeiro (2011).

130
Implicância ou bullying?

Soma-se a isso, em alguns casos, a demissão de pais e professores do próprio


lugar de alteridade diante do jovem.

A função do Nome-do-Pai é histórica, e se é essencialmente


intrapsíquica, ela só funciona através da intersubjetividade, uma
intersubjetividade socialmente determinada. É assim que o declínio
da função paterna, do qual Freud falou, no laço social e no laço
familiar, não é só imaginário, mas afeta a própria inscrição simbólica
do sujeito (Rassial, 1997, p. 51).

A escola da atualidade, como dissemos antes, está frequentemente


submetida ao discurso capitalista. Tal discurso busca produzir objetos de gozo,
anulando a falta própria do desejo. Lacan (1971-1972) fala em verwerfung da
castração, rejeição da castração nos campos do simbólico. Tal rejeição leva ao
apagamento da divisão estrutural do sujeito, desligando-o do “não saber do
inconsciente” e levando-o a desconhecer “as coisas do amor”. A verwerfung
ainda modifica a relação do sujeito com o objeto, transformando-o em consumidor
que pode alcançar o que procura.
Junta-se a isso a presença das ciências. O saber é transmutado em
objeto, com estatuto de bem de consumo, regido pela lógica utilitária. O
significante-mestre capital passa a comandar o saber científico: é ele que financia
as pesquisas, patrocina os pesquisadores, induz a elaboração do saber, obrigando
a aderir às “política dos resultados”. Pois o saber científico, praticamente
subsumido pela tecnologia, tem que produzir objetos úteis e consumíveis. As
instituições de ensino, assim, ficam pressionadas a uma política de resultados
e direcionadas para o mercado.
O discurso do capitalista falha enquanto regulador do laço social, pois
tende a ser promotor de segregação. A via de tratar as diferenças na cultura
científica capitalista é a segregação determinada pelo mercado: os que têm ou
não acesso aos produtos consumíveis. Trata-se, portanto, de um discurso que
não forma propriamente laço social, pautando-se sobretudo pela exclusão.
A escola, mais e mais submetida ao discurso da produção, do capital,
vem sendo palco do não elaborado na posição adolescente diante da castração.
O risco da segregação problematiza o laço entre os pares, que são agora
destinatários da indagação sobre o lugar de sujeito e o objeto. O tempo, encurtado
pela proximidade com o objeto de consumo, cobra do púbere que desde cedo
saiba responder sobre seu ser e seu sexo (“És gay?” “És puta?”). E pode fazer
reagir violentamente às demonstrações inevitáveis de que a adolescência requer
um trabalho psíquico até que possa responder sobre isso.
131
Lúcia Alves Mees

Estariam os púberes e adolescentes condenados a se bater e se debater


indefinidamente na busca de uma marca do Outro que possibilite a construção
da fantasia, indispensável à conclusão do adolescer? Ou ainda, na dificuldade
de destacar o objeto de desejo, guia do porvir, os jovens se arriscariam a compor
a impessoalidade perversa como saída ou como sintoma da permanência nos
laços utilitários/segregadores da cultura atual?

REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo:
Ed. 34, 2009.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.
Fenômeno bullying e a educação física escolar. In: http//www. bullying.com.br/
BConceituacao21.htm#inicio. Último acesso em 15/02/2012.
FREUD, Sigmund. Uma criança é espancada – uma contribuição ao estudo da
origem das perversões sexuais. [1919] In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro:
Imago, 1976. v. XVII.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 4: a relação de objeto e as estruturas freudianas.
Publicação para circulação interna da APPOA, 1956-1957.
_____. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente [1957-1958]. Rio de
Janeiro: J. Zahar Ed., 1999.
_____. El saber del psicoanalista. Publicação para circulação interna da ENAPSI,
1971-1972.
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio,
2008.
MEES, Lúcia. Abuso sexual: trauma infantil e fantasias femininas. Porto Alegre: Artes
e Ofícios, 2001.
_____. Freud e Annas. Correio da APPOA, n. 203, julho 2011.
PINHO, Gerson. O sujeito do bullying. In: Autoridade e violência. Porto Alegre: APPOA,
2011.
RASSIAL, Jean-Jacques. A adolescência como conceito da teoria psicanalítica. In:
Adolescência:entre o passado e o futuro. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1997.
RIBEIRO, Eduardo M. Bullying: uma violência em busca de sentido. In: Autoridade e
violência. Porto Alegre: APPOA, 2011.
ROLIM, Marcos. Bullying: o pesadelo da escola. Porto Alegre: Ed. Dom Quixote, 2010.
SANTIAGO, Silviano. Posfácio. In: A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2008.

Recebido em 13/04/2012
Aceito em 11/05/2012
Revisado por Beatriz Kauri dos Reis

132
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 133-145, jan./jun. 2011

DO BRINQUEDO
TEXTOS AO TRABALHO:
os avatares na passagem
da infância à adolescência
Carmen Backes1

Resumo: A adolescência muito recentemente se recorta da infância e torna-se


um momento diferenciado. Antes ambas eram vistas como integrando o mesmo
processo contínuo que levava o sujeito a atingir a idade madura. Na clínica
psicanalítica constatamos que, para pensar a adolescência, faz-se necessário
passar pelo infantil, pois muitos processos se reeditam, e o adolescente precisa
refazê-los e reintegrá-los. Neste artigo, propusemos pensar nos avatares da
transformação do brincar na infância, em estudo e trabalho na adolescência,
que não se opera sem recorrer aos processos sublimatórios.
Palavras-chave: infância, adolescência, brincar, trabalhar.

FROM PLAY TO WORK:


the avatars in the passage from childhood to adolescence

Abstract: Very recently adolescence distinguishes itself from childhood and


becomes a different time in life. Before, both were seen as part of an ongoing
process that lead the subject to reach adulthood. In the psychoanalytic clinic, to
consider adolescence, it is necessary to go through the infantile, due to the
facet that many processes are reissued and the teenager needs to remake and
re-integrate them. In this article, we purpose to consider the avatars of the
transformation from playing in childhood to study and work in adolescence, which
does not operate without resorting to sublimatory processes.
Keywords: childhood, adolescence, play, work.

1
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Psicóloga do
Instituto de Psicologia (UFRGS); Doutora em Educação (UFRGS). Autora do livro: O que é ser
brasileiro? (Escuta, 2000) e organizadora do livro: A clínica psicanalítica na contemporaneidade
(Editora da UFRGS, 2008). E-mail: cbackes@cpovo.net.

133
133
Carmen Backes

A infância e a adolescência apenas recentemente destacaram-se uma da


outra como categorias próprias e diferenciadas. Muito já foi escrito sobre a
história da infância, da família e do casamento; contudo, não há uma obra de
referência sobre a história da adolescência. Talvez, justamente, por ser
considerada como invenção recente, datada da segunda metade do século XX.
É no Pós-Segunda Guerra que a adolescência distingue-se das outras “etapas
da vida”, vindo a se constituir como aquele período que empurrou “a infância para
trás e a maturidade para frente”, e ganha, talvez pela primeira vez na história, um
lugar social. Os anos 90 assistiram aos jovens francamente instalados como
categoria, ganhando estatuto próprio e transformados em paradigma do sujeito
contemporâneo. É nesse contexto que vemos surgir o adolescente, após a
infância, impulsionado pelos efeitos corporais da puberdade e pelas exigências
sociais, mas, que, todavia, ainda não é um adulto.
Aquilo que se opera na infância carrega seu registro pela adolescência,
permitindo os processos de sublimação, que vão pautar, por sua vez, toda a vida
do sujeito adulto. Deve-se à psicanálise o reconhecimento da sexualidade já
presente na infância e o alerta de que a sua repressão ocasionaria o sofrimento
e a doença neurótica. Contudo, Freud atribui lugar especial ao processo de
educação das pulsões para a vida em sociedade. Por outro lado, o autor alerta
imediatamente para o fato de ser esse o fator preponderante na constituição e
no desenvolvimento dos processos neuróticos. Esse é o preço a ser pago por
uma vida comunitária e a razão do mal-estar constituinte de todo sujeito humano.
O pai da psicanálise atribui papel central ao mecanismo psíquico da sublimação,
como um dos destinos das moções sexuais, favorável ao desenvolvimento de
atividades artísticas e de investigação intelectual. De que forma a educação
poderia promover a integração das crianças na ordem social vigente auxiliando-
as a tomar os rumos da própria sexualidade sem, no entanto, causar excessiva
frustração?
A psicanálise denomina de latência o período da segunda infância, que
se caracteriza por uma renúncia temporária da satisfação das pulsões sexuais.
A latência situa-se entre dois tempos de forte efervescência pulsional: o edipiano
e o pubertário. Essa época de “adormecimento” das pulsões é decisiva para a
aquisição de capacidades sublimatórias, na medida em que Freud ([1915] 1981)
considera que a sublimação é um dos destinos pulsionais que proporciona uma
modalidade de satisfação efetiva diferente da descarga direta.
Consideramos que os destinos pulsionais de tipo sublimatório constituídos
na infância são de extrema relevância na adolescência, pois é o momento em
que o sujeito precisa derivar libido para o campo das decisões intelectuais e
profissionais. Do mesmo modo, trata-se de um mecanismo importante para
134
Do brinquedo ao trabalho...

auxiliar o sujeito a desvencilhar-se dos objetos infantis. A infância, ainda


considerada, na cultura atual, como um momento feliz puro e belo, é cercada de
objetos que, por sua pregnância, são de difícil desistência, pois altamente
idealizados dentro desse contexto.
Nos Três ensaios para uma teoria sexual, Freud ([1905] 1981) inclui um
elemento que vai nos interessar sobremaneira para pensar na reativação dos
processos infantis na adolescência e na vida adulta, qual seja, que a sublimação
caracteriza-se por uma mudança que não se faz por meio do retorno do recalcado
sob a forma de sintoma. A libido vai encontrar sua satisfação diretamente em
atividades socialmente valorizadas, às quais o grupo dá sua aprovação, uma vez
que são de “utilidade pública”. Nesse texto o autor aponta primordialmente o
campo da arte, ciência, cultura e literatura como aqueles indicados a propiciar
sublimação.
Para falar sobre a sublimação, Freud convoca a experiência do artista
como aquele indivíduo que não renunciou aos seus anseios por satisfações de
toda ordem, mesmo que estas lhe tenham sido negadas pela realidade de variadas
formas. Se essas satisfações são negadas na relação com o “mundo exterior”,
ele é levado a retirar libido dos objetos externos e a introjetá-la. Tal como no
neurótico, essa libido será agora investida em suas construções mentais
impregnadas de desejo, em suas fantasias. No entanto, a semelhança com a
neurose termina aí, pois, a sublimação implica que essa libido investida na
fantasia não será submetida aos processos de condensação e deslocamento
que o recalcamento opera.
Na neurose, esses processos deformam o material fantasístico, criando
as condições necessárias para que se suspendam as barreiras do recalque e o
conteúdo retorne à consciência, sob a forma de sintoma (retorno do recalcado),
fonte de sofrimento para o sujeito. No caso do artista, essa libido investida na
fantasia será sublimada, o que implica que seu destino não é o recalque e o
retorno como uma formação do inconsciente. Em seu artigo As pulsões e suas
vicissitudes, Freud ([1915] 1981), de fato, estabelecia a sublimação e o recalque
como destinos distintos que a pulsão pode adotar.
Há, portanto, identidade entre o processo de sublimação e o do
recalcamento que vai até o nível da introjeção da libido e seu investimento na
fantasia; daí para diante se distinguem. A sublimação implica um percurso da
libido que não exclui a passagem pelo recalcado originário. O recalque originário
é o significante que originalmente ficou encarregado de representar psiquicamente
a pulsão e jamais teve acesso à consciência. Quando a libido retorna do mundo
externo, devido às frustrações sofridas, ela vai alimentar estruturas articuladas
em torno do recalcado originário. Portanto, quando Freud ([1915] 1981) diz que,
135
Carmen Backes

na sublimação, o destino da libido não passa pelo recalcamento, devemos ter


em mente que se trata do recalcamento secundário, e não do primário.
Se, na sublimação, a fantasia vem à tona por uma via que não a distorce,
ela traz consigo não o recalcado originário enquanto tal, mas a si mesma como
uma construção intimamente ligada e próxima a ele, moldada a sua semelhança.
Nesse sentido, as obras de arte, imagem fiel da fantasia, são manifestações do
recalcado originário, manifestações da pulsão que originalmente foi dirigida ao
objeto materno, primeiro objeto de amor e também de frustração.
As moções pulsionais mais arcaicas da criança são, ao mesmo tempo,
um ponto de partida e um núcleo nunca inteiramente resolvido sob o primado da
genitalidade. Lacan, por sua vez, sugere falar de “um ponto de limite, um ponto
irredutível” (Lacan, [1959-1960] 1988, p. 119). Mas se há, por um lado, a insatis-
fação intrínseca, por outro lado, Freud ([1915] 1981) aponta para a abertura que
parece, à primeira vista, quase sem limite, das substituições que podem ser
feitas no nível do alvo. A sublimação é o processo psíquico inconsciente, que
permite substituir um objeto sexual por um objeto não sexual, socialmente
“indicado”.
A puberdade, por ser o momento específico em que “a carne insiste”,
coloca o adolescente momentaneamente desancorado frente ao descontrole da
explosão pulsional pubertária. É o real do corpo que urge pela Coisa e necessita
novamente ser capturado pelas vias significantes.

***

Por seu nascimento prematuro, o bebê humano, através da relação de


amamentação, coloca-se numa posição de total dependência do Outro e, com
isso, instala-se a representação mais primordial da imago materna. Delineiam-
se aí os “sentimentos mais arcaicos e mais estáveis que unem o sujeito à
família” (Lacan, [1938] 2003, p.36), sendo o complexo do desmame inteiramente
dominado por fatores culturais e, portanto, diferente dos instintos. No homem,
“é uma regulação cultural que condiciona o desmame”2 (id., ibid., p.36).
Assim, o desmame deixa no psiquismo humano uma marca permanente,
pois interrompe aquilo que Lacan nomeia de uma “relação biológica” com a mãe
e que moldará as experiências psíquicas posteriores. Ele pode, portanto, ser

2
Colocaríamos a palavra cultural entre aspas, pois o desmame, ou a passagem de uma fase da
libido a outra está na relação direta a um reviramento na demanda do Outro originário.

136
Do brinquedo ao trabalho...

aceito ou recusado e, na falta de um eu que afirme ou negue, pois que ainda em


estado rudimentar, a aceitação ou recusa não pode ser considerada uma escolha.
Dessa forma, os complexos familiares dão a ver que é por crises dialéticas
que o indivíduo cria a si mesmo e aos seus objetos. Aquilo que faz laço entre os
humanos apoia-se no traço do recalque das relações primárias com o Outro
originário. Através do complexo do desmame, definido por Lacan ([1938] 2003),
com sua fixação da imago materna e posterior abandono, sabemos que essa
imago instala-se precocemente e de forma extrema, tendo em vista a prematuri-
dade do bebê humano ao nascer, que o joga numa total dependência do Outro.
O “corte” realizado pelo desmame opera ambivalência na relação ao objeto
primário e, por ser de ordem vital para o bebê, a imago imprime-se profundamente
no psiquismo, provocando uma nostalgia da mãe, de difícil sublimação, o que
faz supor que a relação a esse objeto primeiro possa se refazer incansavelmente.
A respeito do complexo de intrusão e sua reiteração da perda objetal,
destacamos a relação com um objeto outro – o rival, com o qual pode se desen-
volver uma montagem imaginária, que inclui desde a sedução até o despotismo,
através de uma identificação mental com o outro, pois não depende necessaria-
mente da sua participação direta. Caracteriza-se por ser uma relação ambígua
(amor e ódio), de domínio e subjugação. A insistência na relação imaginária com
o objeto do complexo de intrusão pode fazer insistir também a reiteração da
perda do objeto, com seus sucessivos e infindáveis substitutos.
Por fim, o último dos complexos é relativo ao conflito edipiano, que instaura
a relação objetal a três, dominada por moções pulsionais sexuais, agressivas e
temor de retaliação. O ultrapassamento desse conflito, através do recalcamento
e da sublimação do objeto primeiro e da constituição de ideais, retiraria o terceiro
da condição de rival a ser vencido, deslocando-o para uma posição de referencial.
Nesse sentido, o terceiro não é aquele frente ao qual se insiste em tomar o
lugar, em substituí-lo como objeto, mas, sim, aquele que lança o sujeito adiante,
na via do desejo.
Se situamos que na adolescência se dá a reedição do complexo de Édipo,
e que é necessária, nesse momento, a ratificação do recalcamento, poderíamos
perguntar: por que o objeto primário insiste na adolescência? Um esclarecimento,
porém: tomamos aqui as relações de objeto de um grande número de
adolescentes, como tendo a particular característica de serem repetidamente
renovadas, como no caso de Gustavo, que descrevo a seguir.
Gustavo é um adolescente tardio, de 26 anos, que está cursando a
faculdade de Design, depois de ter transitado por duas outras, sem concluir
nenhuma, preocupado com o fato de, a essa idade, ainda não ter se formado e
depender financeiramente dos pais, sem perspectiva imediata de mudar tal
137
Carmen Backes

situação. Aparenta não ter dificuldade de relacionamento com as mulheres,


pois já teve muitas namoradas: assim como termina com uma, logo inicia com
outra, sem transcurso de tempo entre uma e outra. Esse modo de funcionamento
não lhe traz interrogação, mas, sim, o fato de, nos últimos tempos, insistir para
ele a imagem de uma mulher mais velha, Fernanda, com quem se relacionou,
mas que não seguiu adiante por julgá-la inadequada, pois se trata de uma mulher
mais velha, madura, independente, de opiniões firmes, com a vida profissional
decidida, “uma mulher masculina.... como minha mãe”. Para melhor defini-la,
c ita u m t r e c h o “Garota Nacional” da Banda Mineira Skank: “Eu detesto
d a m ú s ic a

o jeito dela mas, pensando bem, ela fecha com meus sonhos como ninguém...”.
Depois de findo o namoro, logo se apaixona por outra garota, mas são os
pensamentos em torno da namorada anterior que insistem, algo que, para ele, é
novo, pois facilmente se desprende de um relacionamento e vincula-se a outro,
da mesma forma apaixonada de sempre.
Irritado com pensamentos que não consegue controlar, vai a uma festa e
“toma um porre”. No dia seguinte, da amnésia alcoólica lhe restam um cupom
fiscal no bolso e uma lembrança da infância: picolé Chicabom (chocolate e leite)
que desfrutava nas madrugadas, depois das festas com Fernanda, o mesmo
que lembra ter conhecido com a mãe, em idade bastante precoce. Por associação
e não com toda a certeza, julga ter saído da tal festa e ido ao mesmo posto de
gasolina, comprado novamente o picolé, porém desta vez sem a companhia de
Fernanda.
Esse recorte clínico sugere pensar nos paradoxos (amor e ódio) associa-
dos ao objeto, apontando para a dificuldade de substituição, pois, se nenhum é
suficientemente adequado, poderíamos perguntar sobre aquele insituável, que
teria dado origem à série. Nesse sentido, o fragmento clínico coloca em relevo a
insistência da imago do objeto primeiro e permite lançar a hipótese de certa
recusa em ceder o objeto, operando uma substituição que seja efetiva e duradoura
– se é que a substituição efetiva seria possível. Ao mesmo tempo, Gustavo
denota a ambivalência primordial, dando a ver os índices da imago materna e
revelando o papel psíquico que representa a imagem da mulher forte, que ele
“detesta”, mas que o acompanha em seus sonhos diurnos. Renovando
incansavelmente a exclusão, é sempre ele que põe um final nas relações, pois
não suportaria “levar um pé na bunda”. Triunfa agora, colocando-se ativo na
reedição do abandono, ativando a agressividade que os restos infantis dos
complexos familiares colocam em ação.
Rassial (1997), em seu livro A passagem adolescente, afirma que o sujeito
necessita, a posteriori, realizar novamente uma série de operações fundadoras.
Primeiramente, se na fase do espelho eram o olhar e a voz maternos que lhe
138
Do brinquedo ao trabalho...

asseguravam consistência e existência, na adolescência o jovem deverá – se


não se apropriar desses objetos parciais – ao menos deslocá-los para os pares.
Em segundo lugar, se, na fase fálica, na circulação pelo complexo de Édipo,
tudo girava em torno da mãe, é o reconhecimento da função paterna que, na
infância, provocará a “desistência” do objeto materno e, na adolescência, a validação
do Nome-do-Pai permitirá o acesso a uma relação genitalizada ao outro do Outro
sexo. A adolescência comporta, portanto, a confirmação do reconhecimento da
diferença sexual, como também o reconhecimento do próprio sexo.
Por último, na infância, o sujeito se constitui enquanto alguma coisa para
o desejo dos pais, principalmente da mãe; na adolescência ele deverá reorientar
a pergunta sobre o desejo: se antes tudo se articulava em torno de como satisfazer
melhor ao Outro originário, agora ele deverá operar o giro de tomar-se da
responsabilidade sobre seu desejo.
Como vimos, o infantil faz retorno na adolescência de forma massiva,
tendo em vista a necessidade da ratificação ou não, a posteriori, das operações
fundadoras realizadas na infância. Esse é o norte que orienta as colocações
aqui desenvolvidas.
O trabalho da adolescência é, principalmente, operar os lutos que a
puberdade impõe, colocando algo no lugar daquilo que falta. Porém, adiantamos
que o luto – luto pelo corpo infantil, pelos pais da infância, pelos objetos –, que
a adolescência implica, traz em si a radicalidade de uma falta que não inclui a
possibilidade de substituição.
Talvez um segundo desmame – guardando as devidas proporções com
relação à infância – precisasse ocorrer, para que o adolescente pudesse desejar
algo mais do que o aconchego quentinho do lar materno e paterno, “ato necessário,
no caminho da autonomia possível, que a passagem adolescente requer”
(Cabistani, 2009, p. 91).

Metamorfoses do objeto: do brinquedo ao trabalho

A origem da relação do sujeito com o objeto está para sempre perdida e,


embora fundante, é inacessível ao sujeito. A relação ao objeto no brincar, além
de dar suporte à fantasia, é também prática significante que implica uma produção
relativa à constituição libidinal do próprio corpo. O outro originário “empresta”
significantes para que a criança possa ir recobrindo seu próprio corpo, retirando-
o, desta forma, do lugar de puro objeto. Esse procedimento contribuirá para a
posterior operação de separação eu/Outro.
Por outro lado, a dificuldade, ou mesmo a impossibilidade da criança de
desprender-se do corpo materno ou de seus substitutos interfere em suas
139
Carmen Backes

possibilidades lúdicas. Assim, o brincar nos traz notícias preciosas sobre o


estado de desenvolvimento simbólico da criança a partir das condições de operar
esse desprendimento. Essa dificuldade intervém em sua capacidade de brincar
e nas condições de aceitar situações de separação.
Freud ([1920] 1981) em Mais além do princípio do prazer, descreve o jogo
do fort/da, na experiência de seu neto brincando com o aparecimento e
desaparecimento de um objeto, ensinando assim que a palavra é o que pode dar
suporte à ausência. Nessa brincadeira, a criança joga um carretel amarrado
com um barbante para fora da borda do berço, fazendo-o desaparecer e puxando-
o de volta até que reapareça. Durante o processo, ele dá, ao ato de jogar o
carretel e puxá-lo, um suporte fônico, dizendo – “ooo” (fort, em alemão = embora
ou fora) e “aaa” (da , em alemão = aqui). Na brincadeira completa então (embora/
aqui), o menino encena, recria a presença/ausência da mãe.
Dessa forma, o fort/da nada mais é do que a possibilidade de recobrir
com palavra a ausência do outro materno. Essa brincadeira, então, caracteriza-
se, principalmente, como a simbolização da ausência da mãe, ao mesmo tempo
em que introduz uma distância entre a criança e o Outro. O jogo auxilia a fazer
a operação de separação: insere significantes numa experiência vivida,
transformando-a em brincar. Brincar, assim, permite fazer novas experiências e
prescindir da presença do outro. Nesse sentido, brincar é um novo significante
incluído no universo simbólico da criança.
No decorrer da constituição subjetiva ocorre a metamorfose (transforma-
ção) do brincar em outra coisa: estudar na latência; estudar e trabalhar na
adolescência. Que não se confunda, porém, a transformação do brincar em
estudar e trabalhar, com a oposição entre lúdico/sério, ou prazer/desprazer,
confusão essa que acarretaria um empobrecimento, além de retirar do estudo e
do trabalho importante fonte de satisfação. Não haveria razão, sugere Rodulfo
(1990), para operar disjunção entre brincar e trabalhar.
Transformações na função do brincar ocorrem em diferentes momentos
da estruturação subjetiva. Interessa-nos aqui dar alguma visibilidade a essas
transformações no decorrer da passagem adolescente. “Onde era o brincar, o
trabalho deverá advir”, é uma paráfrase utilizada por Rodulfo (1990, p. 158) para
designar que, se o trabalho do brincar não foi realizado na infância, compromete-
se, na adolescência, tudo o que for da ordem da sublimação, mormente a
sublimação necessária para a inserção em um trabalho profissional, porque

[...] em maior ou menor grau, as formações de desejo, longamente


desdobradas e desenvolvidas no campo do brincar infantil e
adolescente, passam, cedem grande parte de sua força e de seu
140
Do brinquedo ao trabalho...

poder intrínseco para o trabalho, como atividade central da existência


adulta, outorgando-lhe assim uma base pulsional decisiva [...]. Sem
esta base, o trabalho ou não pode se constituir, ou se pseudo-
constitui, como uma fachada talvez socialmente muito produtiva,
mas subjetivamente vazia de significação (Rodulfo, 1990, p. 158).

Segue o autor referindo que, em contrapartida, podem ocorrer inúmeras


dificuldades em operar a metamorfose do brincar em trabalhar na adolescência,
que poderiam sugerir algo de uma insistência do objeto primeiro.
Algumas atividades dos adolescentes, embora socialmente reconhecidas,
ocupam o lugar do trabalho profissional e remunerado que eles não conseguem
constituir. Rodrigo, outro exemplo clínico, mantinha-se “atarefado”, numa
“brincadeira” agradável e prazerosa com meninos3, economizando-se da angústia
de construir um projeto que lhe proporcionasse independência financeira da
família. O trabalho toma um caráter somente lúdico, e não propriamente
profissional.
Gustavo, de quem já falamos acima, ocupava-se com estágios acadêmicos
que tomavam caráter de profissão. Frequentemente, contudo, encontrava
dificuldade de relacionamento com superiores hierárquicos, pois considerava-se
um “excelente profissional”, conforme suas próprias palavras, o que o levava a
fazer reivindicações “salariais” diferentes daquelas de um estagiário.
Rodulfo (1990) também afirma que o devaneio constitui-se, para muitos
adultos, como a única forma do brincar remanescente da infância que não cedeu
lugar ao trabalho profícuo. Nisso, encontramos também outros elementos que
remetem ao caso de Rodrigo, quando cria um logotipo para roupas de surf 4 e
sonha para si um futuro muito promissor com o projeto da marca guardado na
gaveta da escrivaninha.
“Brincar de trabalhar” é a expressão que melhor definiria a ocupação de
Rodrigo. Ao mesmo tempo, essa foi a única atividade que conquistou por esforço
próprio, pois, diante da impossibilidade de ser o ideal, como o irmão mais velho,
acabava sempre sendo sua versão negativa e, para não sê-lo, fantasia uma vida
profissional que mistura brincar e trabalhar: ser o estagiário-fisioterapeuta dos
meninos que jogam bola num time famoso, ou enriquecer surfando.

3
Era o estagiário (não remunerado) de fisioterapia nas categorias de base de um time de futebol.
4
Inspirado no criador da marca Mormaii, cuja história o fascina, pois trata-se de um médico que
abandona a profissão, lança a marca, consegue fazer fortuna e manter-se morando à beira do
mar, tendo como atividade principal a administração da marca e a prática do surf.

141
Carmen Backes

Os mesmos elementos de análise encontram-se no caso de Gustavo,


que escolheu seu primeiro curso superior – analista de sistemas – porque sempre
fora “muito fera” com o computador. A segunda faculdade foi de designer gráfico,
que se constituía como uma continuação da primeira. Alcança muito prazer e
satisfação trabalhando no computador, criando e projetando objetos, porém,
tem muita dificuldade em transformar uma ou outra em atividade profissional. O
caso oferece elementos para situar um ponto de fracasso dessa metamorfose
do brincar em trabalhar, que impede o investimento no campo profissional, pois
a atividade lúdica acaba prevalecendo e impedindo o deslocamento de um
quantum libidinal de um campo a outro.
“Há coisas que devem cair no brincar infantil para que o trabalho advenha
como possibilidade” (Rodulfo, 1990, p.170). A respeito dessa afirmação do autor,
uma outra característica chama a atenção no caso de Gustavo: não conseguia
permanecer por muito tempo num mesmo local de estágio, sempre era
dispensado precocemente. Alegava que os trabalhos que lhe eram destinados
para executar eram muito primários (“Sei fazer muito mais e melhor do que
aquilo”) e, de fato, suas produções eram de potencial elevado, tendo sido premiado
várias vezes com objetos por ele criados. Também adotava um jeito próprio de
executar os projetos, o que acabava sempre por desagradar seus empregadores.
Nesse sentido, não conseguia adaptar-se às regras dos locais de trabalho; em
casa, executava os projetos do seu jeito e no seu tempo, isto é, com as regras
“inventadas” por ele próprio.
O brincar infantil coletivo implica obedecer regras estabelecidas conjun-
tamente. Chama a atenção que Gustavo pareceria ter dificuldade em aderir às
normas impostas pelo outro e “fazer passar suas qualidades por um certo código
e aceitar entrar em contato com procedimentos e saberes já instituídos” (Rodulfo,
1990, p. 170). Parecia instalar-se numa onipotência infantil, que dificultava o giro
necessário para transformar o brincar em trabalhar e, portanto, poder aderir às
regras que o Outro institui.
Por outro lado, brincar tem um código privado, que não necessariamente
é compartilhado com uma comunidade, pois a criança pode fazê-lo sozinha.
Nesse sentido, o brincar guarda semelhança com o sonho e, por isso, precisa
ser “decifrado”. Portanto, para que o brinquedo entre no circuito do trabalho, ele
necessita entrar num âmbito mais amplo, compartilhado e com outras regras.
Essa é a primeira e essencial transformação do brinquedo em trabalho. “Brincar
com outra coleção de significantes” (Rodulfo, 1990, p.172) é a expressão que o
autor utiliza para melhor definir a passagem do brincar ao trabalhar.
Por que trago aqui as funções do brincar na infância? Porque o brincar é
o suporte da fantasia e porque tanto esta como aquelas se redimensionam na
142
Do brinquedo ao trabalho...

adolescência, se reestruturam. A primeira importante função do brincar na infância


diz respeito à possibilidade da construção de uma superfície corporal relacionada
à fase do espelho, responsável pela constituição eu/Outro. Na adolescência
ocorre a reconstituição da fase do espelho diante da necessidade de reapropriação
da imagem corporal que a puberdade fez vacilar. O brincar toma aí uma
importância fundamental. Veja-se, a exemplo disso, o quanto a prática de esportes
lúdicos é bem-vinda para o adolescente, como uma forma de operar a contenção
desse corpo que transborda.
Conforme vimos acima com o fort/da, outra função do jogo na infância, é
a de auxiliar a operar a simbolização da presença/ausência da mãe; na
adolescência, esse jogo se reconstitui com o objetivo de operar a separação
familiar/social. As viagens “experimentais” dos adolescentes, desacompanhados
da família, frequentemente para fora do país, sob a forma de intercâmbios
estudantis, cumprem a função de exercitá-los nessa passagem do estranho
(estrangeiro) ao familiar.
Ainda outra função do brincar é auxiliar no acesso ao corpo do Outro,
através dos jogos sexuais, para daí extrair material para a constituição de sua
própria imago corporal. Se, na infância, essa operação dava-se a partir do
“esburacamento” do corpo materno, na adolescência passa a se operar com o
“manuseio” do corpo do outro, que inclui o reconhecimento da existência do
Outro sexo e a correlativa iniciação na atividade sexual.
Renunciar ao prazer do jogo e do brinquedo não é tarefa fácil. Na realidade,
diz Freud ([1908] 1981), não conseguimos renunciar a nada, o que fazemos de
fato é trocar, substituir umas coisas por outras. Os pais frequentemente precisam
auxiliar os filhos a se desvencilharem dos objetos infantis, utilizando-se para
isso de diversas “manobras”.
Nesse sentido, pareceria que um “direcionamento” sublimatório, por parte
das autoridades parentais, funcionaria melhor do que a recriminação superegoica.
Queremos com isso salientar a diferença entre o superego repressivo parental e
aquilo que pode ser transmitido como um “saber gozar pulsional”,5 que o
adolescente percebe como sendo acessível a ele, além de apreciado e
recomendado pela autoridade parental. Portanto, “dar exemplo” ao adolescente,
através de um saber-fazer com a realidade, funcionaria melhor, em termos
educativos, do que a repressão superegoica.

5
Expressão utilizada por Penot (2005).

143
Carmen Backes

Na continuidade entre as gerações opera-se um jogo entre repetição e


diferença. Os jovens inscrevem, com mais ou menos sofrimento, alguma diferença
no mundo dos mais velhos, ao mesmo tempo em que fazem outras tantas
repetições. Faz efeito aí a maneira pela qual o outro parental terá sabido se
“desfazer”, ceder de seus objetos, como também se prestar à operação de
simbolização de seu rebento. Nesse caso, o investimento pulsional parental
sobre seu objeto (filho) precisa ter suficiente qualidade sublimatória, para que
não se produza uma modalidade de recusa parental.
Quais as soluções pulsionais o sujeito será capaz de colocar em operação
diante do drama existencial que a adolescência implica? Certamente entrará
em jogo a capacidade dos jovens de se entregarem a atividades sublimatórias à
sua disposição, e a tarefa dos adultos será de abrir e incentivar o acesso a
satisfações pulsionais, em lugar de pura descarga excitatória, quase aditiva. A
possibilidade do adolescente de se enganchar num projeto, seja ele profissional,
amoroso ou intelectual, será diferente se nisso estiver incluído o reconhecimento
pelo adulto parental, e não somente pelo social. De qualquer modo, nunca é
demasiado lembrar que, para o pulsional, não haverá satisfação integral.
A possibilidade de orientação e aquisição de consistência, a partir das
significações e dos referenciais oferecidos pelo Outro familiar, é a “rede de
proteção” de que o adolescente necessita. O jovem, por estar exatamente
atravessando o processo de constituição fantasmática, frequentemente encontra
dificuldade dupla na consecução desse projeto: naquilo que ele necessita
sistematicamente apoiar-se para fortalecer essa construção, sistematicamente
insiste em não se oferecer à simbolização, por certa recusa de significação e de
valor, por parte de seus referentes.
Em contraste com a inibição da pulsão, poderiam se abrir novas margens
de “negociação”, permitindo ao jovem maior liberdade e novos destinos, que
permitirão também um ganho subjetivo. Nesse sentido, é necessário o cuidado
de não incentivar as inibições, nem sufocar os “desvios” pulsionais, mas antes
lançar interrogações e buscar arejar com análises desapaixonadas.

REFERÊNCIAS
CABISTANI, Roséli. A economia da angústia na adolescência. Revista da Associação
Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, n. 36, p. 85-92, jan./jun. 2009.
FREUD, Sigmund. Tres ensayos para una teoria sexual [1905]. In: ______. Obras
completas. 4. ed. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. v. 2.
______. El poeta y los suenõs diurnos. [1908] In: ______.______. v. 2.
______. Los instintos y sus destinos. [1915] In: ______.______. v. 2.
______. La represion. [1915] In: ______.______. v. 2.
______. Mas allá del principio del placer. [1920] In: ______.______. v. 3.

144
Do brinquedo ao trabalho...

LACAN, Jacques. Os complexos familiares na formação do indivíduo [1938].


In:______. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 29-90.
______. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise [1959-1960]. Rio de Janeiro: J.
Zahar Ed., 1988.
PENOT, Bernard. A paixão do sujeito freudiano. Rio de Janeiro: Companhia de Freud,
2005.
RASSIAL, Jean-Jacques. A passagem adolescente. Porto Alegre: Artes e Ofícios,
1997.
RODULFO, Ricardo. O brincar e o significante. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.

Recebido em 17/10/2011
Aceito em 06/01/2012
Revisado por Deborah Nagel Pinho

145
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 146-154, jan./jun. 2011

ENTREVISTA HISTÓRIA DA PSICANÁLISE


INFANTIL NA ARGENTINA:
algumas contribuições
Maurício Knobel1

Maurício Knobel nasceu na Argentina, onde se formou em medicina, na


Universidade de Buenos Aires, e iniciou sua carreira docente na mesma
Universidade, na cátedra de Anatomia Humana. Tomou contato com a psicanálise
através de um livro de Freud que lhe foi dado por seu professor e chefe da
cátedra, Dr. Pedro Belou, que lhe escreveu a seguinte dedicatória: A quem
conhece tão bem o homem por fora, para que o conheça melhor por dentro.
Foi no início dos anos cinqüenta que Knobel concluiu a pós-graduação em
Psiquiatria e tornou-se membro da Sociedade Psicanalítica da Argentina (IPA).
Há uma curiosidade em sua escolha amorosa. Casou-se com Clara Freud,
sobrinha neta de Freud, que, ainda namorando Knobel, passa a estudar Psicologia,
tornando-se sua aluna.
Foi como docente na Universidade de Buenos Aires que se dedicou ao
tema da infância e adolescência, fundando o Instituto de Orientação Psicológica
à Família, atendendo sobretudo a população mais carente. Porém, com a ditadura
militar na Argentina, perdeu o cargo no início de 1976, ao receber uma carta do
tenente interventor na Universidade de Buenos Aires, que lhe comunicava sua

1
Agradecemos a Ana Maria Gageiro por ter escrito a apresentação do entrevistado deste
número.

146
História da psicanálise infantil...

demissão por “atividades subversivas”. Foi nesse mesmo ano que recebeu um
convite do reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Dr. Zeferino
Vaz, para organizar o Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da
Faculdade de Ciências Médicas e ficar no Brasil por dois anos. Acabou
permanecendo definitivamente, até a morte, em 22 de janeiro de 2008, aos 85
anos.
Naturalizado brasileiro, desde 1985, foi presidente do Departamento de
Psiquiatria da Sociedade de Medicina e Cirurgia de Campinas, da Regional
Campinas da Sociedade de Medicina Psicossomática, da Sociedade de
Neurologia, Psiquiatria e Higiene Mental do Brasil e da Comissão Assessora de
Saúde Mental do Estado de São Paulo.
Entre diversos outros cargos, ocupou a vice-presidência da Associação
Mundial de Psiquiatria Dinâmica e da Federação Internacional de Psicoterapia
Médica, foi consultor da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa
do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e membro da comissão científica da
Universidade de Londrina. Idealizou e dirigiu o Centro de Prevenção ao Suicídio
em Campinas.”2  
Teve mais de 300 trabalhos científicos publicados, além de haver escrito
52 capítulos de livros e 12 livros, entre os quais Adolescência e família (1971),
Adolescência normal (1973), com Arminda Aberastury, Psiquiatria infantil
psicodinâmica (1977), A adolescência e a família atual (1981), Psicoterapia
breve (1986) e Orientação familiar (1992).
Podemos situar Knobel como um psicanalista vinculado à IPA, voltado à
escola inglesa – um pós-kleiniano que teve em sua formação, forte influência de
seus professores, entre eles, Pichon-Riviére, Jose Bleger, Arminda Aberastury,
Angel Garma, Arnaldo Rascovisk, Leon Grimberg.
Sem dúvida, sua contribuição mais marcante à psicanálise e à psicologia
foi a publicação, em parceria com Arminda Aberastury, de Adolescência normal
(1971), em que trabalha o conceito de síndrome normal da adolescência para
ajudar a ompreender os conflitos vividos pelo adolescente.

2
Vizzotto, Marília Martins. A Psicologia e a Psiquiatria perdem um de seus maiores expoentes:
uma homenagem ao Dr. Maurício Knobel. In: Scielo Estudos de Psicologia (Campinas), v. 25, n. 1
Campinas Jan/Mar. 2008.

147
Maurício Knobel

A Dra. Telma Reca foi a precursora da psicoterapia infantil na Argentina e


uma crítica sagaz do establishment psicanalítico de sua época, enquanto o
nome de Arminda Aberastury foi e continua sendo o da pioneira, única e
indiscutida, da psicanálise de crianças “pura” e kleiniana. O antagonismo entre
ambas as posturas é uma marca de origem da psicanálise com crianças, que
evoca a clássica polêmica Melanie Klein/Anna Freud. Porém, a batalha não
teve lugar, à diferença do que sucedeu na Inglaterra, dentro da instituição analítica,
mas em um espaço extraterritorial – a Universidade e o Hospital. Não deixa de
ser surpreendente que Telma Reca fizesse o papel de uma sorte de Anna Freud
argentina, tratando-se de uma psiquiatra infantil formada nos Estados Unidos.

SILVIA FENDRIK: Dr. Knobel, o Sr. esteve muito próximo de Arminda


Aberastury. O primeiro que gostaria de perguntar-lhe é sobre a relação entre
Arminda e Telma Reca. Em seu critério, existia uma rivalidade pessoal?
MAURÍCIO KNOBEL: Creio que não. As pessoas – poucas pessoas –
que se dedicavam a tratar crianças nessa época não tinham muita opção de
mestres. Arminda Aberastury se f ormou analiticamente e mantinha
correspondência com Melanie Klein, e ela foi uma das primeiras a introduzir
Melanie Klein no grupo analítico argentino. Telma era uma mulher muito séria,
muito trabalhadora, muito responsável; fundou o serviço do Hospital de Clínicas,
mas com uma forte influência americana, em que a psicanálise era considerada
uma coisa mais de ficção. Isso dura até hoje, até hoje é a mesma história, com
o tema dos métodos empíricos, da metodologia científica, contra a “imaginação”
da psicanálise. Eu me formei aqui como analista didata e trabalho como analista
didata, mas um dos problemas para a psicanálise é um pouco de dogmatismo.
A formação psicanalítica é um investimento de tempo e dinheiro muito grande –
8, 10 anos. Inclusive nos honorários: é recém formado, então cobra tanto; já é
membro titular, cobra mais, e se é didata, muito mais... Então, há de se defender
o investimento. Eu tive essa experiência pessoalmente, porque trabalhei como
psicanalista em Buenos Aires, antes de ir ao Brasil. Só que no Brasil, exceto
Rio, Porto Alegre e São Paulo, a isso não é dada tanta importância. Eu recebi
muitos mais pacientes por ser professor da Universidade que por ser psicanalista
didata. Aqui2 há uma espécie de subcultura psicanalítica, com todas as hierarquias
eclesiásticas da psicanálise. Forma-se um escalão médio artificial, o que não
ocorre em outras psicoterapias. Telma Reca fazia uma psicoterapia fora desse

2
A entrevista foi realizada em Buenos Aires, em 1993, por Silvia Fendrik.

148
148
148
História da psicanálise infantil...

sistema, mesmo que de base analítica, porque ela também interpretava. O


prestígio que teve não foi ganho por graça dos céus, mas, sim, porque trabalhava
bem. Eu vejo isso assim: ou se trabalha bem, ou se trabalha mal, com qualquer
teoria. Ninguém é dono de uma teoria. Até o próprio Einstein queria retificar sua
teoria, pensando que estava equivocado, mas havia muita gente que pensava
que ele tinha razão, apesar de ele mesmo dizer que não. Esse tipo de fanatismo
que existe, de idealização, existia em parte em Arminda Aberastury, mas eu
nunca a escutei dizer nada contra Telma Reca, nunca. Uma vez foi organizada
uma mesa redonda, na qual Telma lhe questionou onde ela via o problema sexual
nas crianças, e Arminda lhe respondeu, muito naturalmente, “porque eu pergunto
a elas”. Telma era mais recatada nesse sentido, porque tinha se formado nos
Estados Unidos e não se metia muito com o inconsciente e com a sexualidade.
Mas, de qualquer forma, tinha seu êxito.

FENDRIK: Ela dizia que se havia de respeitar o modo de cada criança


apropriar-se dos símbolos que tinham a ver com a sexualidade...
KNOBEL: Eu lhe disse isso da influência americana, mas isso se vê em
diversos psicoterapeutas, que, para mim, vem de Ferenczi – que foi analista de
Melanie Klein. Ferenczi propunha uma psicanálise mais livre, mais curta. As
psicoterapias breves analíticas nascem com Ferenczi, que foi o primeiro que se
atreveu a questionar a duração da psicanálise. Com uma criança, em casos
muito complicados, duvido que a psicanálise faça algum efeito, especialmente
se há comprometimentos orgânicos que, por enquanto, não são curados por
ninguém. Eu diria que o que está mais no auge agora é a psicobiologia, que
procura se apoiar numa sólida base biológica; mas, embora seja um caminho,
não se encontrou nada tão sólido. Mas eu creio que os que atacam a psicanálise
têm tantos preconceitos quanto os que a defendem como se fosse a panaceia.
Não é nem uma coisa nem outra, mas o ataque tampouco leva a nada. Sempre
se pode criticar tudo e fazer crítica pela própria crítica.
Tenho presente uma das últimas discussões no Brasil, na Universidade.
Agora a física está entrando na medicina, agora temos os nanoelementos. Resulta
que se um gene tem 50 nanoelementos, ou 100, ou 1000 – não sei – e a falha
genética está em um só nanoelemento, quem vai descobri-lo? Podem passar
séculos para chegar-se a uma prova final, e creio que tampouco, porque de
repente o nanoelemento que nos surpreende agora passa a ser também uma
coisa monumentalmente grande e tem “nanitos”. Eu fui professor, por muito
tempo, de psicologia da infância e da adolescência, temos que aprender a
respeitar as ideias dos outros. Mas vamos nos concentrar no que você me
perguntou sobre a relação entre Arminda e Telma Reca.
149
Maurício Knobel

Por que Telma Reca teve tanto sucesso? Bem, ela se formou nos Estados
Unidos e trouxe a mentalidade de lá, e estudou a psicanálise que muitos leem,
tanto aqui quanto lá. Fez por um tempo um grupo de estudos, para se familiarizar
com a terminologia. Escutei isso muitas vezes: “Eu sou psicóloga lacaniana e
faço análise de crianças.” – “Com quem se formou?” – “Bom... li Mannoni, algumas
coisas de Lacan.” Ou um rapaz que queria fazer a residência em psiquiatria e se
apresentou dizendo que tinha lido as obras completas de Freud. – As obras
completas de Freud? Está seguro? Eu ainda não terminei de ler Freud, e faz
quarenta anos que estou nisso. Confundem leitura com formação.

FENDRIK: Creio que isso que o Sr. diz efetivamente toca um ponto de
muito interesse, porque pode-se dizer que Telma Reca era uma “leitora” crítica
da psicanálise e Arminda Aberastury, por sua vez, era totalmente representativa
da psicanálise de crianças e, no entanto, trabalha com critérios evolutivos muito
lineares; a própria noção de trauma não é psicanalítica. Trauma pode ser uma
mudança, a morte de um avô, os enganos – isso não é nem muito psicanalítico,
nem muito kleiniano...
KNOBEL: Claro, o pensamento bem elaborado em todos os seus detalhes.
Arminda pensava isso, e às vezes pecava, se posso dizê-lo assim, “quebrando”
as normas da técnica psicanalítica. Por exemplo, na análise de crianças, ela
obviamente usava jogos não figurativos, porque, claro, se se põe um velhinho
com barba e outro bonequinho que representa um menino, o menino vai falar do
avô, ou do pai, ou do menino. Agora, se se põem dois caminhõezinhos, aí vai a
imaginação do garoto, e aí se pode trabalhar com o simbólico. Agora, ela tinha
uma coisa, por exemplo, acabava o giz que o menino usava para desenhar na
lousa e ela abria a porta do consultório e chamava a empregada para que fosse
comprar giz. O menino tinha que ter o giz, e isso não está em Klein,
imediatamente suprir a necessidade da criança, e tampouco está nos livros de
Arminda. Eu fiz supervisão com Arminda e, em situações assim, dizia: mas por
que não mandaste comprar plastilina? Eu não estava de acordo, me parecia que
isso era estimular muito a onipotência da criança – quero tal coisa; bem, aí a
tens, aí está. Essa era uma característica de Arminda. Ela também trabalhava
muito com a parte teórica, mas fazia muitas coisas que não se encaixavam com
a teoria. Mas creio que ela tinha muito respeito pela figura do psicanalista, cada
um é o psicanalista que pode ser, não o que deveria ser, se não, somos caricaturas,
não psicanalistas.

FENDRIK: No entanto, me dá a impressão de que ela transmite a ideia de


um psicanalista “tipo”, um certo estereótipo.
150
150
150
História da psicanálise infantil...

KNOBEL: Ela considerava que havia normas dentro da psicanálise que


deviam ser respeitadas, mas, por exemplo, isso de suprir imediatamente o que
a criança pudesse necessitar é algo dela, que nem sequer se preocupou em
transmitir.

FENDRIK: Que fazia quando alguém não estava de acordo com uma
coisa que, para ela, era tão importante como isso, das suplências?
KNOBEL: Ela respeitava o que cada analista sentia a necessidade de
fazer. Era muito respeitosa nesse sentido. Tinha, isso sim, uma visão muito
clínica, não só de seus analisandos, como dos que se supervisionavam com
ela. Quando via falhas grosseiras, as denunciava, internamente. Nesse sentido,
era muito respeitosa da instituição psicanalítica. Eu um pouco a comparo com
um militar: é um militar, e vai pensar como um militar, as ordens devem ser
cumpridas, as sessões têm que durar tanto, tem de se fazer isso ou aquilo, mas
ela mesma as quebrava em seu trabalho e, evidentemente, não o publicava.

FENDRIK: Em minha opinião, ela transmite uma técnica bastante rígida,


apesar de que conta como começou, conversando com uma menina na sala de
espera, lendo livros de psicanálise e atendendo crianças no consultório de Higiene
Mental no Hospício.
KNOBEL: Consultório? Estava no banheiro, colocou uma mesinha com
um biombo no banheiro, e lá atendia... e tinha-se de atravessar várias salas de
loucos, era um hospital psiquiátrico...
Mas ela teve muita coragem para trabalhar lá com crianças, porque no
hospital psiquiátrico havia pacientes de todas as idades misturados.

FENDRIK: Interessante, isso de “higiene mental” nesse contexto... Mas,


bem, estávamos no regulamento para chegar a ser analista de crianças, que
efetivamente soa um pouco como um regulamento militar... O senhor diz que ela
era muito regulamentarista e, ao mesmo tempo, transgressora dos regulamentos.
KNOBEL: Sim, mas penso que isso foi necessário, porque depois come-
çaram a aparecer psicanalistas – na verdade, já acontecia em Viena, na época
de Freud – que se autodenominavam psicanalistas porque tinham assistido à
conferência de fulano, ou lido tal livro. Até hoje isso segue. Por isso, creio que
essa regulamentação foi necessária, para dar mais seriedade à formação. Agora,
alguém esteve um ano em Paris e volta à Argentina ou ao Brasil e é psicanalista
lacaniano. Isso não dá formação a ninguém. Eu posso assistir a aulas de filosofia
kantiana durante um ano, mas não vou me tornar filósofo. A teoria freudiana é
uma teoria que tem muitos pontos fracos, mas vai se construindo com o trabalho
151
Maurício Knobel

de outros analistas. Mas continua. Eu creio que é uma tendência a escapar,


isso de que cada um “é” psicanalista, “meu” grupo, eu sigo o fulano, e então
aparecem escolas do que se quiser. Todas rebaixando o nível de formação, não
se encontra muita gente que realmente tenha lido Freud estudando e, sobretudo,
que tenha se analisado a sério.

FENDRIK: Certo é que o essencial da formação é a análise, e que isso


falta. Mas isso se arruma com um regulamento? Por que alguém teria que se
fazer milico?
KNOBEL: O problema é que o regulamento está feito para ser cumprido,
e não se cumpre. Nem sequer os didatas o cumprem, e isso é desonesto. Mas
não pode ser que alguém se chame analista porque leu ou assistiu a conferências
em Paris. Uma coisa é o regulamento, e outra coisa são as pessoas. É como a
política, que está cheia de gente desonesta. Na formação também entra isso,
estou de acordo com você, mas vinculo isso mais a um problema econômico.
Uma coisa é um paciente de antes, e outra coisa é um paciente de agora, eu
preciso de pacientes e faço de conta que estou fazendo uma análise didática.
Tem que haver uma decantação, ou então um vale-tudo, e cada um faz o que
quer, que é o que está ocorrendo. Isso Arminda jamais haveria aceitado. Ela
exigia que as pessoas se analisassem e supervisionassem, e chegou a dizer na
IPA “fulano não está em condições de ser analista”. Naquela época estavam
mais definidos que hoje as normas, os custos da formação; hoje todos se chamam
psicanalistas. Quando os velhos analistas, como Ferenczi, abriram o caminho,
jamais disseram que a análise não era necessária.
Também houve terapeutas muito bons, por exemplo, Erich Fromm, que
vivia a metade do ano em Nova Iorque e a metade em Cuernavaca, e recebia
pacientes nos dois lugares. Mas ele não se chamou psicanalista. Muitos
lacanianos tomaram uma frase de Lacan, “o analista se autoriza a si mesmo”,
mas o que diz Lacan não é “qualquer um que siga meu ensino pode ser analista”.

FENDRIK: O Sr. escreveu um livro com Arminda...


KNOBEL: O livro sobre a adolescência normal se baseou em um trabalho
meu, que publiquei na revista da Universidade de La Plata, no ano de 62, sobre
a síndrome da adolescência normal, um trabalhinho que tinha 6 ou 8 páginas,
sobre minha prática com crianças no hospital. Eu estava como professor em La
Plata, e já formava parte de um grupo de estudos com Arminda, fazia os
seminários, as supervisões, estava fazendo formação na APA, e um de meus
supervisores, enquanto fazia a didática, foi Arminda. O outro foi León Grinberg.
Arminda leu meu trabalho, gostou, e no grupo de estudos se discutiu esse
152
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152
História da psicanálise infantil...

artigo, e depois dividimos o livro entre os componentes do grupo. Eu escrevi a


primeira parte, sobre a síndrome da adolescência normal, e os colegas, outras
partes, sob a supervisão de Arminda. Eu a conheci como professora e como
supervisora.

FENDRIK: Como foi o último período da vida dela?


KNOBEL: Durante o último período, notei uma posição muito contraditória
respeito à psicanálise tão regulamentada. Além disso, havia os amigos do
Plataforma, do Documento3, as pessoas que se vão da instituição. Também se
aproximou de Maud Mannoni; eu conheci os Mannoni, quando vieram em 72 à
casa de Arminda. Enfim, estava muito dividida entre a fidelidade à instituição e
todo esse movimento. Mas minha opinião é de que a afetou muito a separação
de Pichon, não a crise da APA. Ela estava afetivamente muito ligada a Pichon,
e assimilou muitas ideias dele.

FENDRIK: O Sr. crê que ela não se dava conta das diferenças com o
pensamento kleiniano, a entrevista evolutiva, o diagnóstico, a devolução, etc.?
KNOBEL: Eu creio que não, não esqueça que ela se fez kleiniana, mas
ao lado de Pichon Rivière, e tudo o que você menciona é a clássica anamnese
psiquiátrica, o que Pichon fazia no hospital. Ela incorporou isso de Pichon; por
isso, isto não está em nenhum livro de psicanálise.

FENDRIK: Ninguém dos que a rodeavam tampouco se deu conta? Me


parece fascinante, ela faz uma espécie de “contrabando” e várias gerações de
analistas pensaram que era psicanálise kleiniana.
KNOBEL: Não se pôde ver, porque a maioria dos analistas não tem
formação psiquiátrica, e então ela inclui isso em seu livro de psicanálise e ninguém
se deu conta, porque o mesclou bem e se transformou em lei.

FENDRIK: Mas o extraordinário é que os analistas que ela formava


tampouco se deram conta... Foi tão forte o poder da negação?
KNOBEL: Sim. É assim, mal você o mencionou, imediatamente se me
fez evidente. Claro, é Pichon, a prática das historias clínicas no hospital...! Isso
é o que ao menos para mim tem de fascinante a psicanálise, vive-se descobrindo

3
Os grupos Plataforma e Documento se cindiram da Associação Psicanalítica Argentina por
razões fundamentalmente políticas, com fortes questionamentos à rigidez e ao elitismo da
instituição, à qual, entre muitas outras coisas, naquela época não podiam ingressar os psicólogos.

153
Maurício Knobel

coisas novas. Eu o vejo assim, para mim está claríssimo. Mas ela não podia se
dar conta disso, tinha que negá-lo.

FENDRIK: Ou seja, que a psicanálise de crianças argentina foi mais


pichoniana que kleiniana.
KNOBEL: No livro de Pichon Da psicanálise à psicologia social, no tomo
II, há um capítulo sobre psicoterapia de crianças que, para mim, é uma jóia,
sobre o que significa tratar uma criança, com inclinação kleiniana, mas bem
pichoniano.

FENDRIK: E os grupos de mães? As duas, Telma Reca e Arminda


Aberastury, faziam grupos de mães, apesar de as posturas e os dispositivos
serem diferentes.
KNOBEL: Os grupos de Arminda eram analíticos. Isso surge aqui; o curioso
é que o que não vingou, nem aqui nem em outros lugares, foram os grupos de
pais. Se insinuou, mas não seguiu.

FENDRIK: Por que, o Sr. acredita, se deu isso?


KNOBEL: Eu creio que porque as que começam com a psicanálise de
crianças são duas mulheres, isso é fundamental. Me refiro a Melanie Klein e
Anna Freud. Será pelo mito de que é mais fácil para uma mulher captar o que
sente uma criança, do que para um homem...

154
154
154
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 155-169, jan./jun. 2011

RECORDAR, FANTASIAS DE
REPETIR, ESPANCAMENTO
ELABORAR E DEVANEIOS

Anna Freud (1922)1

Freud, Anna e as fantasias de espancamento2

Em 1922, Anna Freud apresenta o escrito Fantasias de espancamento e


devaneios, em Congresso para a comunidade analítica. Essa elaboração, que
promove sua aceitação como membro da Sociedade Psicanalítica de Viena,
conta a análise de uma moça de quinze anos e assinala “o desenvolvimento da
vida de fantasia desta devaneadora”. A autora narra os desdobramentos dos
devaneios, tidos como superestrutura da fantasia masoquista de espancamento,
chamados por ela de “histórias agradáveis”. Para a analisante, a fantasia de
espancamento representava tudo o que era ruim e desprezível, enquanto as
histórias agradáveis eram a expressão do que aludia a beleza e alegria.
Anna Freud pondera que as “histórias agradáveis” poderiam parecer um
avanço da fantasia de espancamento, pois proporcionavam felicidade, ausência
de culpa e de atividade autoerótica. Entretanto, conforme ela, tratava-se ainda
de retorno à fase anterior, pois elas também ganhavam o significado latente da
fantasia: as “histórias agradáveis” expressavam igualmente o amor incestuoso
pelo pai. A diferença se localizava na solução: na fantasia, o espancamento; e

1
Esse texto é uma tradução do inglês realizada por Maria Alice Maciel Alves.
2
Agradecemos a Lúcia Alves Mees por ter escrito a apresentação deste texto da seção Recordar,
repetir, elaborar.

155155
Anna Freud

no devaneio, o perdão e a reconciliação. Diferiam ainda, segundo Anna Freud,


quanto ao mecanismo que as caracterizava, pois, enquanto a fantasia de
espancamento significava o retorno do recalcado, as histórias agreadáveis
representavam a sublimação.
O que não está escrito no texto de Anna Freud é que – tudo indica – o
caso seja o dela mesma. Em carta endereçada a Lou Andreas-Salomé, pouco
tempo antes da apresentação do texto em questão, Anna Freud refere o retorno
perturbador de suas fantasias de fustigação e de suas consequências
masturbatórias. Nela, Anna refere sua análise, a primeira que realizou com seu
pai, entre 1918 e 1920. Depois disso, ela esteve uma segunda vez no divã de
Sigmund, entre 1922 e 1924.
August Ruhs (2010)3 propõe que o texto de Sigmund Freud, Uma criança
é espancada (1919), tem relação com a análise de sua filha, sendo provável que
o quinto caso citado nesse escrito faça alusão a Anna. E, ainda, que o caso
relatado por Anna tenha sido inspirado em sua própria análise.
No final de seu texto, Anna Freud conta sobre o destino do devaneio: a
analisante se torna escritora. Muitos anos depois da “história agradável ter
surgido, a moça a descreveu num absorvente conto literário. Enquanto a história
escrita retinha o tema do devaneio, o método foi alterado: não havia mais a
repetição entre o forte que atacava e o fraco que sofria as consequências, e a
ação se desenvolvia num período continuado de tempo. O clímax que produzia o
gozo deixara de existir e no desfecho, a união harmônica entre os antagonistas
era apenas sugerida, sem ser descrita. Tais mudanças, segundo Anna F.,
correspondem a uma alteração no mecanismo de obter prazer, este não sendo
mais direto e não produzindo excitação. A fantasia privada se transformara numa
comunicação dirigida a outros, condição da sublimação.
Se a análise em questão é mesmo a de Anna Freud, teria ela de fato
escrito um conto, ou o texto do qual se trata é esse, apresentado no Congresso?
A citada sublimação não seria relativa ao deslocamento de contar histórias para
o pai-analista, para o relato à comunidade analítica? A passagem do privado
para o público não diria também da transferência amorosa, agora deslocada
para a transferência de trabalho com aqueles que se tornariam seus colegas?

3
“Je bats un enfant – quelque remarques sur Le cas d’Anna G”. In: Mon analyse avec Le
professeur Freud. Paris: Ed. Aubier, 2010.

156
156
156
Fantasias de espancamento e devaneios

E m seu artigo Uma criança está sendo espancada, Freud lida com uma
fantasia que, segundo ele, é encontrada em surpreendente número de
pessoas que procuram tratamento analítico por conta de uma história ou de
uma neurose obsessiva. Ele pensa que ocorra, muito provavelmente, ainda mais
seguido, em outras pessoas que não foram forçadas a tomar essa decisão por
causa de uma doença manifesta. Essa “fantasia de espancamento” está
invariavelmente investida de alto grau de prazer e é descarregada num ato de
prazerosa gratificação autoerótica. Vou supor que vocês estejam familiarizados
com o conteúdo do artigo de Freud – a descrição da fantasia, a reconstrução
das fases que a precederam e sua derivação do complexo de Édipo. No decorrer
de meu ensaio, voltarei a ele frequentemente.
Em seu artigo, Freud diz:

Em dois de meus quatro casos femininos, desenvolveu-se uma


elaborada superestrutura de devaneios sobre a fantasia masoquista
de espancamento, que era de grande significado para a vida da
pessoa em questão. A função dessa superestrutura era possibilitar
uma sensação de excitação satisfeita, mesmo com ausência do
ato masturbatório (p. 190).

Foi possível encontrar um devaneio, dentre uma grande variedade, que


pareceu especialmente bem adequado para ilustrar essa breve observação. Esse
devaneio era feito por uma garota de aproximadamente quinze anos, cuja vida de
fantasia, apesar de sua abundância, nunca tinha entrado em conflito com a realidade.
A origem, a evolução e o término desse devaneio podiam ser estabelecidos com
certeza, e sua derivação, originando-se na dependência de uma fantasia de
espancamento de longa duração, ficou comprovada numa análise detalhada.

Vou, agora, assinalar o desenvolvimento da vida de fantasia dessa


devaneadora. No seu quinto ou sexto ano – a data exata não pode ser
estabelecida, mas foi certamente antes de entrar na escola – essa menina
formou uma fantasia de espancamento do tipo descrito por Freud. No começo,
seu conteúdo era bastante monótono: “Um menino está sendo espancado por
um adulto”. Um pouco mais adiante mudou para: “Muitos meninos estão sendo
espancados por muitos adultos”. A identidade dos meninos, bem como dos
adultos, contudo, permaneceu desconhecida, assim como ficou, em quase todas
as ocasiões, o motivo pelo qual o castigo foi administrado.
157
Anna Freud

Podemos supor que as várias cenas eram bastante vívidas na imaginação


da criança, mas suas referências a elas eram bastante escassas e vagas durante
a análise. Cada uma das cenas que ela fantasiou, com frequência e apenas
muito brevemente, era acompanhada de forte excitação sexual e terminava num
ato masturbatório.
O sentimento de culpa que, no caso dessa menina, também, ficou ligado
a essa fantasia, é explicado por Freud da seguinte maneira. Ele diz que essa
versão da fantasia de espancamento não é a original, mas é a substituta, no
plano consciente, para uma precedente fase inconsciente na qual as pessoas,
que agora tornaram-se irreconhecíveis e indiferentes, eram bem conhecidas e
importantes: o menino que está sendo espancado é a criança que produziu a
fantasia; o adulto que bate é o próprio pai da criança. Mesmo assim, essa fase,
de acordo com Freud, não é a primária; foi precedida por uma fase anterior, que
pertence ao período de maior atividade do complexo de Édipo e que, por meio
de regressão e repressão, foi transformada na versão que apareceu na segunda
fase. Na primeira fase, a pessoa que bate também é o pai; contudo, a criança
que está sendo espancada não é a criança que fantasia, mas outras crianças,
irmãos e irmãs, isto é, rivais pelo amor do pai. Nessa primeira fase, portanto, a
criança solicitava todo o amor para si mesma, e deixava toda punição e castigo
para os outros. Com a repressão dos conflitos edípicos e o aparecimento do
sentimento de culpa, a punição se volta contra a própria criança. Ao mesmo
tempo, contudo, como consequência da regressão, da organização genital à
pré-genital, anal-sádica, a situação de espancamento poderia ainda ser usada
como expressão de uma situação amorosa. Essa é a razão para a formação de
uma segunda versão, a qual, por causa de seu conteúdo muito significativo,
deve permanecer inconsciente e ser substituída, no plano consciente, por uma
terceira versão, que é mais apropriada aos requisitos da repressão. É assim
que a terceira versão ou fase torna-se portadora de excitação e culpa: pois o
significado oculto dessa estranha fantasia pode ser expresso com as palavras:
“Papai ama só a mim”. No caso de nossa devaneadora, o sentimento de culpa
que surgiu no despertar de seus conflitos reprimidos pelo pai estava, a princípio,
menos ligado ao conteúdo da fantasia em si – embora a última também fosse
desaprovada desde o início – do que a gratificação autoerótica que regularmente
ocorria em seu término. Por alguns anos, portanto, a menininha fazia tentativas
sempre renovadas, mas sempre falhas, de separar uma da outra, isto é, de reter
a fantasia como uma fonte de prazer e, ao mesmo tempo, desistir da gratificação
sexual que não podia ser reconciliada com as exigências de seu ego. Durante
esse período, a própria fantasia era sujeita a uma grande variedade de alterações
e elaborações. Na tentativa de gozar do prazer permitido por todo o tempo

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158
Fantasias de espancamento e devaneios

possível e de adiar a conclusão proibida indefinidamente, ela acrescentava todo


tipo de detalhes acessórios, que eram em si, bastante indiferentes, mas
copiosamente descritos. A criança inventava complicadas organizações e
instituições, escolas e reformatórios, nos quais aconteciam as cenas de
espancamento, e estabelecia regras e regulamentos definidos, que determinavam
as condições de ganhar prazer. Nesse momento, as pessoas que administravam
os espancamentos eram invariavelmente, professores; somente mais tarde, e
em casos excepcionais, os pais dos meninos eram acrescentados – na maioria
como espectadores. Mas mesmo nessas elaborações detalhadas da fantasia,
os atores permaneciam esquemáticos, sendo-lhes negadas todas as caracterís-
ticas determinantes, como nomes, rostos individuais e história pessoal.
Certamente, não quero subentender que tal adiamento da cena prazerosa,
o prolongamento e a continuação da fantasia inteira, é sempre a expressão de
sentimentos de culpa, um resultado da tentativa em separar a fantasia da atividade
masturbatória. O mesmo mecanismo é usado em fantasias que não são moldadas
por sentimentos de culpa. Em tais fantasias, esse mecanismo simplesmente
serve à função de aumentar a tensão e, consequentemente, o fim antecipado do
prazer.
Vamos olhar para as vicissitudes posteriores da fantasia de espancamento
da menininha. À medida que a menina cresceu, ocorreu o fortalecimento de
todas as tendências, subservindo o ego, no qual as exigências morais do
ambiente foram agora incorporadas. Como resultado, tornou-se cada vez mais
difícil que a fantasia concentrasse toda a vida sexual da criança.
Ela desistiu de suas tentativas, invariavelmente mal-sucedidas, de separar
a fantasia de espancamento da gratificação autoerótica; a proibição se espalhou
e agora se estendia também ao conteúdo da fantasia. Cada ruptura, que agora
poderia acontecer somente após uma luta prolongada na qual poderosas forças
opunham-se à tentação, era seguida por violentas autocensuras, dor de
consciência e temporário humor depressivo. O prazer derivado da fantasia era
cada vez mais confinado a um simples momento prazeroso, que parecia estar
encaixado no desprazer que ocorria antes e depois dele. Como a fantasia de
espancamento não servia mais a sua função de fornecer prazer, ocorria cada
vez menos frequentemente no decorrer do tempo.

II

Ao mesmo tempo, aproximadamente entre seu oitavo e décimo ano (a


idade exata não pode ser averiguada), a menina iniciou uma nova espécie de
atividade fantasiosa, a qual ela própria chamava “histórias agradáveis”, em
159
Anna Freud

contraste com a desagradável fantasia de espancamento. Essas “histórias


agradáveis” pareciam, à primeira vista, descrever apenas cenas prazerosas,
alegres, que exemplificam casos de comportamento bondoso, atencioso,
afetuoso. Todas as figuras, nessas histórias agradáveis, tinham nomes, rostos
individuais, aparências externas que foram detalhadas com grande exatidão, e
histórias pessoais que, com frequência, alcançavam retroatiavamente o seu
passado fantasioso. As circunstâncias familiares dessas figuras, suas amizades
e conhecidos e sua relação um com o outro eram especificados precisamente,
e todos os incidentes de sua vida diária eram ajustados, tão verdadeiros à realidade
quanto possível. A montagem da história prontamente mudava com cada alteração
na vida da devaneadora, no momento exato em que ela frequentemente
incorporava uma variedade de acontecimentos sobre os quais havia lido. A
conclusão de cada sucessão de episódios era acompanhada de um forte
sentimento de felicidade, livre de qualquer vestígio de culpa; certamente, não
havia mais qualquer atividade autoerótica ligada a ela. Esse tipo de atividade
fantasiosa podia, portanto, tomar conta de uma parte sempre crescente da vida
da criança. Aqui encontramos o que Freud enfatiza em seu artigo: a superestrutura
dos devaneios, que são de grande significado para a pessoa que os tem. A
seguir, tentarei demonstrar a extensão na qual estamos justificados em considerar
esses devaneios como uma superestrutura construída sobre uma fantasia de
espancamento masoquista.
A própria devaneadora estava bastante despercebida de qualquer conexão
entre as histórias agradáveis e a fantasia de espancamento e, naquela época,
certamente, teria negado sem nenhuma hesitação. Para ela, a fantasia de
espancamento representava tudo que era desagradável, repreensível e proibido,
enquanto as histórias agradáveis eram a expressão de tudo o que trazia beleza
e felicidade. Uma conexão entre as duas simplesmente não poderia existir; de
fato, era inconcebível que uma figura desempenhando uma parte numa história
agradável não pudesse, mesmo, aparecer numa cena de espancamento. As
duas eram apartadas tão cuidadosamente que cada ocorrência da fantasia de
espancamento – que por vezes realmente irrompia – tinha de ser punida por
uma temporária renúncia das belas histórias.
Mencionei anteriormente que, durante a análise, a menina fazia mais
rápido o relato da fantasia de espancamento – em geral com indicações de
vergonha e resistência, e na forma de alusões breves, obscuras, com base nas
quais o analista elaboradamente tinha que reconstruir o verdadeiro quadro. Em
contraste com essa reticência, ela ficava demasiadamente ansiosa, uma vez
que as dificuldades iniciais tinham sido superadas, para falar vívida e
prolongadamente sobre os vários episódios fantasiosos de suas histórias
160
160
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Fantasias de espancamento e devaneios

agradáveis. De fato, tinha-se a impressão de que ela nunca se cansava em falar


e que, ao fazer isso, ela experimentava um prazer semelhante, ou mesmo maior,
do que nos devaneios. Nessas circunstâncias, não era difícil de obter um quadro
muito claro de todas as figuras e o alcance da situação. Resultou que a menina
tinha formado não apenas uma, mas uma série inteira de histórias, que merecem
ser chamadas “histórias continuadas”, tendo em vista a constância dos
protagonistas e todo o conjunto. Dentre essas histórias continuadas, uma
destacava-se como a mais importante: continha o maior número de figuras,
persistia através de longos períodos de anos e sofria várias transformações.
Além disso, originando-se nela, outras histórias ramificavam-se, as quais – como
em lendas e mitologia – foram elaboradas, resultando inúmeros contos quase
independentes. Ao longo da história principal, existiam várias histórias menores,
mais ou menos importantes, que eram usadas em troca, mas as quais eram
formadas de acordo com o mesmo padrão. Com a finalidade de adquirir insight
sobre a estrutura de tal devaneio, selecionei como exemplo a mais breve das
histórias agradáveis, em razão de sua clareza e completude, adequando-se
melhor aos propósitos desta comunicação.
Em torno dos seus quatorze ou quinze anos, depois de ter formado uma
quantidade de continuados devaneios, os quais ela mantinha paralelamente, a
menina incidentalmente deparou-se com um livro de histórias de um garoto;
continha, entre outras, um conto situado na Idade Média. Ela o leu uma ou duas
vezes com vívido interesse; quando terminou, devolveu o livro ao seu dono e não
o viu novamente. Sua imaginação, contudo, foi imediatamente capturada pelos
vários protagonistas, eliminando as circunstâncias externas que eram descritas
no livro. Tomando posse deles, ela teceu o conto, como se fosse seu próprio
produto espontâneo da fantasia e, daí por diante, concedeu a esse devaneio um
lugar nada insignificante na série de suas histórias agradáveis.
Apesar de diversas tentativas feitas durante a análise, não foi possível
estabelecer, mesmo aproximadamente, o conteúdo da história que ela tinha
lido. A história original tinha sido tão recortada em pedaços, esvaziada de seu
conteúdo, e sobreposta a novo material fantasioso, que era impossível distinguir
entre os elementos emprestados e os produzidos espontaneamente. Portanto,
tudo que pudemos fazer – e isso foi, também, o que o analista tinha de fazer –
foi abandonar essa distinção, que em qualquer acontecimento não tem significado
prático, e lidar com o conteúdo inteiro dos episódios fantasiados, sem considerar
suas fontes.
O material que ela usava nesta história era o seguinte: um cavaleiro medieval
foi envolvido numa longa hostilidade com vários nobres que estavam em coligação
contra ele. No decurso de uma batalha, um jovem nobre de quinze anos (isto é,
161
Anna Freud

a idade do devaneador) é capturado por ajudantes do cavaleiro. Ele é levado ao


castelo do cavaleiro, onde é mantido prisioneiro por um longo tempo. Finalmente
ele é solto.
Em vez de desenrolar e continuar o conto (como num romance publicado
em fascículos) a menina usou a trama como uma espécie de moldura externa
para seu devaneio. Dentro dessa moldura, ela inseriu uma variedade de episódios
menores e maiores, cada um deles como um conto completo, que era
inteiramente independente dos outros, e se formavam exatamente como um
romance real, contendo uma introdução, o desenvolvimento de um enredo que
leva a uma crescente tensão e, por ultimo, a um clímax. Nisso ela não se sentiu
inclinada a elaborar uma sequência lógica dos acontecimentos. Dependendo de
seu humor, ela podia reverter a uma fase inicial ou posterior do conto, ou interpor
uma nova situação, entre duas cenas já completas e contemporâneas – até,
finalmente, a moldura de suas histórias ficar em perigo de ser estilhaçada pela
abundância de cenas e situações acomodadas dentro dela.
Nesse devaneio, o mais simples de todos, havia somente dois
protagonistas que eram realmente importantes; todos os outros podem ser
desconsiderados, por serem incidentais e subordinados. Uma dessas persona-
gens é o jovem nobre a que a devaneadora dotou de todas as características
boas e atraentes possíveis; a outra é a do cavaleiro do castelo, que é descrito
como sinistro e violento. A oposição entre os dois é intensificada pela adição de
diversos incidentes de suas histórias familiares passadas – de modo que todo o
cenário é o de um antagonismo aparentemente irreconciliável entre o que é forte
e poderoso e o outro, que é fraco e submetido ao poder do primeiro.
Uma grande cena introdutória descreve seu primeiro encontro, durante a
qual o cavaleiro ameaça pôr o prisioneiro sob tortura, para forçá-lo a revelar seus
segredos. A convicção do desamparo do jovem é consequentemente confirmada
e seu temor do cavaleiro despertado. Esses dois elementos são a base de
todas as situações subsequentes. Por exemplo, o cavaleiro ameaça o jovem e
prepara-o para a tortura, mas no último momento o cavaleiro desiste. Ele quase
mata o jovem ao longo da extensa prisão, mas antes que seja tarde demais, o
cavaleiro cuida dele e devolve-lhe a saúde. Logo que o prisioneiro se recupera, o
cavaleiro o ameaça novamente, mas, diante do vigor do jovem, o cavaleiro o
poupa novamente. E cada vez que o cavaleiro está prestes a infligir-lhe grande
dano, concede ao jovem um favor após outro.
Ora, vamos tomar outro exemplo, de uma fase posterior da história. O
prisioneiro perambulou além dos limites de seu confinamento e encontrou o
cavaleiro, mas este, como seria esperado, não pune o jovem com um novo
aprisionamento. Em outra vez, o cavaleiro surpreende o jovem no ato de transgredir
162
162
162
Fantasias de espancamento e devaneios

uma proibição específica, mas deitar-se poupa ao jovem a humilhação pública


que seria a punição para este crime. O cavaleiro impõe toda sorte de privações
e o prisioneiro, então, saboreia duplamente as delícias do que é concedido
novamente.
Tudo isso se passa com cenas vividamente animadas e dramaticamente
comoventes. Em cada uma, a devaneadora experimenta a completa excitação
da ansiedade e vigor do jovem ameaçado. No momento em que a ira e a raiva do
torturador são transformadas em piedade e benevolência isto é, no clímax de
cada cena –, a excitação é resolvida por um sentimento de felicidade.
A representação dessas cenas em sua imaginação e a formação de cenas
novas, mas muito semelhantes, em geral requeriam alguns dias, no máximo
duas semanas. A elaboração sistemática e o desenvolvimento dos simples
elementos da devaneadora geralmente eram melhor sucedidos a cada fase da
fantasia. Naquela época, ela já fazia uso extensivo da possibilidade de não levar
em conta as implicações e consequências de cada situação. Conforme foi antes
mencionado, ela podia ignorar completamente o que tinha acontecido antes ou
depois de um incidente. Como consequência, ela ficava, a cada vez, inteiramente
convencida sobre os perigos que ameaçavam o prisioneiro e acreditava
sinceramente no eventual desfecho triste da cena. Vemos, então, que os
acontecimentos levando a um clímax – a preparação dele – eram amplamente
contemplados. Mas se o fantasiar persistia por um período prolongado de tempo,
fragmentos da memória sobre os finais felizes eram prolongados de uma cena
para outra, contrariamente às intenções da devaneadora. Então, a ansiedade e
a preocupação pelo prisioneiro eram descritas sem real convicção, e o humor de
perdão-amor do clímax, em vez de ser confinado a um simples e breve momento
de prazer, começava a espalhar-se, até que, finalmente, também se apoderava
de tudo que tinha previamente servido aos propósitos de introdução e
desenvolvimento do enredo. Mas quando isso acontecia, a história não servia
mais a sua função, e tinha, então, de ser substituída (pelo menos por diversas
semanas) por outra que, depois de algum tempo, deparava-se com a mesma
sina. A única exceção era o principal grande devaneio, que de longe sobrevivia a
todas as demais pequenas histórias insignificantes. Isso era devido provavelmente
à grande riqueza de personagens que apareciam nela, bem como às suas muitas
ramificações.
Tampouco não é improvável que seu amplo plano fosse executado com o
propósito de assegurar a ele uma vida mais longa, cada vez que emergia.
Se olharmos separadamente para os vários devaneios do cavaleiro-jovem
como uma série contínua e interligada, ficamos surpresos com sua monotonia,
embora a devaneadora nunca o tivesse notado, tanto no decurso da fantasia,
163
Anna Freud

quanto ao falar sobre eles, em sua análise. Contudo, ela não era, de maneira
nenhuma, uma menina pouco inteligente e era, de fato, bastante crítica e exata
na escolha de seu material de leitura. Mas as várias cenas do conto do cavaleiro,
despojadas de seus detalhes acessórios, que, à primeira vista, pareciam dar-
lhes uma vívida e individualizada aparência, são, em cada caso, construídas
sobre o mesmo andaime: antagonismo entre a pessoa forte e a fraca; uma má
ação – a maioria não intencional – por parte do fraco, que o coloca à mercê do
outro; a atitude ameaçadora do último, a qual justifica as mais graves apreensões;
uma ansiedade crescente, geralmente descrita com meios requintados, até que
a tensão torna-se quase insuportável; e finalmente, como clímax prazeroso, a
solução do conflito, o perdão do pecador, reconciliação e, por um momento,
completa harmonia entre os antigos antagonistas. Cada uma das cenas individuais
das outras denominadas “histórias agradáveis” tinha, com somente algumas
variações, a mesma estrutura.
Mas essa estrutura também contém a importante analogia entre as histórias
agradáveis e a fantasia de espancamento, do que nossa devaneadora não
suspeitava. Na fantasia de espancamento, também, os protagonistas são pessoas
fortes e fracas que, em seu delineamento mais claro, se opõem, como adultos
e crianças. Aí, também, é regularmente uma questão de má ação, muito embora
a última seja deixada tão indefinida quanto aos protagonistas. Também
encontramos um período de crescente medo e tensão. A decisiva diferença entre
os dois permanece em sua solução, a qual, na fantasia, é trazida à tona pelo
espancamento, e no devaneio, por perdão e reconciliação. Quando, na análise,
a atenção da menina era atraída para essas surpreendentes semelhanças na
estrutura, ela não podia mais rejeitar a crescente percepção de uma conexão
entre os dois, externamente produtos de fantasias tão diferentes. Uma vez aceita
a probabilidade de sua relação, ela imediatamente foi surpreendida por uma
série de outras conexões.
Mas, apesar do reconhecimento de sua estrutura semelhante, o conteúdo
da fantasia de espancamento parecia não ter algo em comum com as histórias
agradáveis. A asserção de que seu conteúdo diferia, contudo, não podia realmente
ser mantida. A observação mais aproximada mostrou que, em vários lugares, as
histórias agradáveis continham mais ou menos traços claros do velho tema do
espancamento tentando irromper. O melhor exemplo disso pode ser encontrado
no devaneio do cavaleiro, com o qual já temos familiaridade: a tortura que é
ameaçada, embora não levada a efeito, constitui o pano de fundo de um grande
número de cenas, que lhes emprestava uma distinta coloração de ansiedade.
Essa tortura ameaçadora, contudo, é reminiscente de sua velha cena de
espancamento, cuja execução permanece proibida em suas histórias agradáveis.
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Fantasias de espancamento e devaneios

Podem ser encontradas outras formas de espancamento irrompendo em seu


devaneio, não nesse conto do cavaleiro particularmente, mas em outros devaneios
desta menina.
O exemplo seguinte é retirado da grande história principal, até ser revelado
na análise. Em muitas cenas, o papel da pessoa passiva, fraca (o jovem no
conto do cavaleiro) é representada por dois personagens. Embora ambos tenham
os mesmo antecedentes, um é punido e o outro, perdoado. Nesse exemplo, a
cena de punição não foi acentuada de forma agradável ou desagradável;
simplesmente formou um pano de fundo para a cena de amor, sendo que seu
contraste serviu para aumentar o prazer.
Em outra variação do devaneio, a pessoa passiva é forçada a rememorar
todas as punições passadas que sofreu, enquanto, na realidade, ela está sendo
tratada afetuosamente. Aqui, também, o contraste serve para aumentar a ênfase
no prazer.
Numa terceira versão, a pessoa ativa, forte, lembra igualmente como a
mentira é superada pela disposição conciliatória associada ao clímax, um ato
passado de punição ou espancamento que ela, tendo cometido o mesmo crime,
sofreu.
As quatro versões recém descritas ilustram maneiras nas quais o tema
de espancamento pode passar dos limites do tema principal de um devaneio.
Mas também pode ser mostrado de maneira tal que constitua o tema mais
essencial de um devaneio. Um dos prerrequisitos para isso é a omissão de um
elemento indispensável na fantasia de espancamento, ou seja, a humilhação de
ser espancado. Assim, a grande história principal dessa garota continha diversas
cenas, particularmente impressionantes, que culminavam com as descrições
de um ato de espancamento ou de punição, sendo o primeiro descrito como não
intencional, e o último como autopunição.
Cada um desses exemplos do tema de espancamento, irrompendo dentro
das histórias agradáveis, foi fornecido pela própria devaneadora, e cada um poderia
ser usado como uma prova adicional para a asserção de que estavam
relacionados. Mas a evidência mais convincente de seu parentesco chegou mais
tarde na análise, na forma de uma confissão. A menina admitiu que, em algumas
raras ocasiões, tinha acontecido uma reversão direta das histórias agradáveis
para a fantasia de espancamento. Durante períodos difíceis, isto é, na época de
crescentes demandas externas ou de capacidades internas diminuídas, as
histórias agradáveis não mais tinham êxito em preencher sua tarefa. E, então,
tinha acontecido frequentemente que, na conclusão e clímax de uma bela cena
fantasiada, a cena de amor prazerosa e agradável era subitamente substituída
pela velha situação de espancamento, junto com a gratificação sexual a ela
165
Anna Freud

associada, quando então levava a forte descarga da excitação acumulada. Mas


tais incidentes eram rapidamente esquecidos, excluídos da memória e,
consequentemente, tratados como se nunca tivessem acontecido.
Nossa investigação da relação entre a fantasia de espancamento e as
histórias agradáveis estabeleceu até aqui três importantes ligações: (1) a admirável
similaridade na construção das histórias individuais; (2) certo paralelismo em
seu conteúdo e (3) a possibilidade de reversão direta de uma para outra. A
diferença essencial entre as duas jaz no fato de que as histórias agradáveis
admitem a ocorrência de cenas afetuosas inesperadas, precisamente no ponto
em que a fantasia de espancamento descreve o ato de castigo.
Com esses pontos em mente, volto à reconstrução de Freud sobre a
história da fantasia de espancamento. Como já foi mencionado, Freud diz que a
forma na qual conhecemos a fantasia de espancamento, não é a original, mas
um substituto para uma cena de amor incestuosa que, distorcida pela repressão
e regressão à fase anal-sádica, encontra expressão como uma cena de
espancamento. Esse ponto de vista sugere uma explanação da diferença entre
a fantasia de espancamento e o devaneio: o que parece ser um avanço da
fantasia de espancamento para história agradável não é senão retorno a uma
fase anterior. Ao serem manifestamente removidas de uma cena de espancamento,
as histórias agradáveis tornam a ganhar o significado latente da fantasia de
espancamento: a situação amorosa escondida nela.
Mas essa asserção tem como lacuna um importante elo. Aprendemos
que o clímax da sua fantasia de espancamento está inseparavelmente associada
à ânsia de obter gratificação sexual e aos sentimentos de culpa que aparecem
subsequentemente. Em contraste, o clímax das histórias agradáveis está livre
de ambos. Num primeiro olhar, isso parece ser inexplicável, uma vez que sabemos
que tanto a gratificação sexual quanto o sentimento de culpa derivam da fantasia
de amor reprimida, que está disfarçada na fantasia de espancamento, mas está
representada nas histórias agradáveis.
O problema resolve-se por si quando levamos em consideração que as
histórias agradáveis tampouco dão expressão à fantasia de amor reprimida,
sem mudá-la. Nessa incestuosa fantasia de desejo, originando-se na tenra
infância, todos os impulsos sexuais estavam concentrados num primeiro objeto
de amor, o pai. A repressão do complexo de Édipo forçou a criança a reconciliar
a maior parte de seus alvos sexuais infantis. Os primeiros alvos sensuais foram
relegados ao inconsciente. Que eles reemerjam na fantasia de espancamento
indica uma falência parcial da repressão tentada.
Enquanto a fantasia de espancamento representa, dessa forma, um retorno
do reprimido, as histórias agradáveis, por outro lado, representam sua sublimação.
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Fantasias de espancamento e devaneios

Na fantasia de espancamento, os impulsos sexuais diretos são satisfeitos, enquanto


nas histórias agradáveis os impulsos inibidores do alvo, como Freud os chama,
encontram gratificação. Assim como no desenvolvimento da relação de uma criança
com seus pais, a corrente de amor originalmente não dividida torna-se separada
em conflitos sensuais reprimidos (aqui expressos na fantasia de espancamento) e
num elo afetivo sublimado (representado pelas histórias agradáveis).
Os dois produtos da fantasia podem agora ser comparados, em termos
do seguinte esquema: a função da fantasia de espancamento é a representação
disfarçada de uma situação de amor sensual nunca mutável, que expressa, na
linguagem da organização anal-sádica, um ato de espancamento. A função das
histórias agradáveis, por outro lado, é a representação dos vários arrebatamentos
ternos e afetuosos. Seu tema, contudo, é tão monótono quanto o da fantasia de
espancamento. Consiste em trazer à cena entre uma pessoa forte e uma fraca,
um adulto e um menino, ou como muitos devaneios expressam, entre um ser
superior e um inferior.
A sublimação do amor sensual em amizade terna é, naturalmente, muito
facilitada pelo fato de que, já nos primeiros estágios da fantasia de espancamento,
a menina abandonou a diferença entre os sexos, que é invariavelmente
representada como um menino.

III

O objetivo deste artigo foi examinar a natureza da relação entre as fantasias


de espancamento e os devaneios que coexistiam lado a lado. Tanto quanto
possível, pôde ser estabelecida sua mútua dependência. A seguir, usarei a
oportunidade dada por este caso, para seguir o desenvolvimento e o destino de
um desses contínuos devaneios.
Vários anos depois que a história do cavaleiro surgiu, a menina a escreveu.
Ela produziu um conto absorvente que cobre o período da prisão do jovem.
Começava com a tortura do prisioneiro e terminava com sua recusa em escapar.
Suspeita-se que sua escolha voluntária em permanecer no castelo seja motivada
pelos sentimentos positivos pelo cavaleiro. Todos os acontecimentos são
ilustrados como tendo ocorrido no passado, sendo que a história é apresentada
dentro da emolduração de uma conversa entre o cavaleiro e o pai do prisioneiro.
Enquanto a história escrita, pois, retinha o tema do devaneio, o método
de sua elaboração foi modificado. No devaneio, a amizade entre os personagens
forte e fraco teve de ser estabelecida repetidas vezes em cada cena, enquanto
na história escrita o desenvolvimento estende-se por um período inteiro da ação.
No decurso dessa transformação, as cenas individuais do devaneio foram
167
Anna Freud

perdidas; enquanto alguma situação material que elas continham retornou na


história escrita, os clímax individuais não foram repostos por um único grande
clímax no final do conto escrito. Seu propósito – união harmônica entre os antigos
antagonistas – é somente antecipado, mas não realmente descrito. Como
resultado, o interesse, que no devaneio estava concentrado em pontos altos
específicos, é, na versão escrita, dividido igualmente entre todas as situações e
protagonistas.
Essa mudança de estrutura corresponde a uma mudança no mecanismo
de obter prazer. No devaneio, cada nova adição ou repetição de uma cena
separada permitiu uma nova oportunidade de gratificação prazerosa dos instintos.
Na história escrita, contudo, o ganho prazeroso direto é abandonado. Enquanto
o escrito real foi feito num estado de feliz excitação, semelhante ao estado de
devaneio, o final de sua história não evoca tal excitação. Uma leitura deste não
proporciona a obtenção de prazeres como devaneios. A esse respeito, não teve
mais efeito sobre seu autor do que teria a leitura de qualquer história comparável,
escrita por outra pessoa.
Essas descobertas sugerem uma íntima conexão das duas diferenças
importantes entre o devaneio e a história escrita – o abandono das cenas
individuais e a renúncia do ganho de prazer do devaneio em clímax específicos.
A história escrita deve ter sido motivada por diferentes fatores e serve a outras
funções do que o devaneio. Senão, a história do cavaleiro teria simplesmente se
tornado sem uso, em sua transformação da fantasia à história escrita.
Quando foi perguntado à menina o que a tinha induzido a escrever a
história, ela própria podia dar somente uma razão da qual ela estava cônscia.
Ela acreditava que tinha se voltado à escrita numa época em que o devaneio do
cavaleiro era especialmente obstrutivo – quer dizer, como uma defesa contra a
excessiva preocupação com ele. Ela havia procurado criar um tipo de existência
independente para os protagonistas, que tinham se tornado demasiado vívidos,
na esperança de que, então, eles não mais iriam dominar sua vida de fantasia.
O devaneio do cavaleiro de fato foi concluído, no que se referia a ela, depois de
ter sido escrito.
Mas esse relato de sua motivação ainda deixa muitas coisas inexplicadas:
as mesmas situações que, devido à sua vivacidade, supunha-se que a tinham
impelido a escrever, não estão incluídas nele, enquanto outras, que não são
parte do devaneio (por ex., a tortura real), são tratadas extensivamente. O mesmo
é verdadeiro com relação aos protagonistas: a história escrita omite diversas
personagens cuja caracterização individual foi inteiramente executada no
devaneio e, em vez disso, introduz, inteiramente, novas personagens, como o
pai do prisioneiro.
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Fantasias de espancamento e devaneios

Uma segunda motivação para escrever a história pode ser derivada das
observações de Bernfeld, sobre as tentativas criativas dos adolescentes. Ele
observa que o motivo de escrever devaneios não é encontrado no devaneio em
si, mas é extrínseco a ele. Ele sustenta que tais esforços criativos são instigados
por certas tendências ambiciosas que se originam no ego; por exemplo, o desejo
do adolescente de influenciar outros com a poesia ou ganhar o respeito e amor
de outros por esses meios. Se aplicarmos essa teoria à história do cavaleiro da
menina, o desenvolvimento do devaneio até a história escrita pode ter sido
conforme a seguir.
A serviço de tais esforços ambiciosos, como foram recém mencionados,
a fantasia privada transforma-se numa comunicação dirigida a outros. No curso
dessa transformação, a atenção pelas necessidades pessoais do devaneio é
substituída pela atenção ao leitor prospectivo. O prazer derivado diretamente no
conteúdo da história pode ser dispensado, porque o processo de escrever para
satisfazer os esforços ambiciosos indiretamente produz prazer no autor. Essa
renúncia do ganho direto do prazer, contudo, também previne a necessidade de
dedicar tratamento especial a determinadas partes da história – o clímax dos
devaneios –, que estavam especialmente adequadas ao propósito de obter prazer.
Igualmente, a história escrita (como a inclusão da cena de tortura demonstra)
pode descartar as restrições impostas ao devaneio, no qual a realização das
situações emergentes da fantasia de espancamento tinha sido banida.
A história escrita trata todas as partes do conteúdo do devaneio como
material igualmente objetivo, sendo a seleção guiada unicamente com relação à
sua adequabilidade para representação. Quanto mais êxito ela tiver em apresentar
seu material, maior será o efeito sobre os outros e, portanto, também ganhará
seu próprio prazer individual. Renunciando ao seu prazer particular em favor de
causar impressão sobre os outros, o autor realizou um importante passo de
desenvolvimento: a transformação de um autismo numa atividade social.
Poderíamos dizer: ela encontrou a estrada que leva a sua vida de fantasia de
volta à realidade.

169
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 170-191, jan./jun. 2011

VARIAÇÕES ALCOVA SADIANA:


a perversão enquanto
subtração da filiação1

Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr2

A o abordar um dos clássicos da literatura de Sade ([1795] 2008), A filosofia


na alcova, o presente artigo visa destacar o imperativo categórico perverso
de subtrair a filiação. Isso é possível reconhecer no texto sadiano, tanto no que
diz respeito à recusa da herança do patrimônio simbólico das gerações que
antecedem o sujeito, no qual a dívida com os pais e a cadeia geracional não são
passíveis de serem reconhecidas, quanto à recusa da responsabilidade no que
diz respeito à transmissão às novas gerações. Nesse sentido, se, de um lado,
o príncipe dos perversos nos ensina sobre o gozo, de outro, aponta a debilidade
da perversão no que diz respeito ao amor.
Calvino (1993), em Por que ler os clássicos, apresenta quatorze propo-
sições para defini-los; entre outras: “clássico é um livro que nunca terminou de
dizer aquilo que tinha para dizer” (p. 11). Desse modo, ao dialogarmos com esse
texto com o propósito de pensar a perversão em relação à filiação, julgamos
importante destacar a prudência e a sensibilidade desse autor. Nossa aposta é

1
Trabalho apresentado no evento Relendo Freud: Uma criança é espancada, realizado em
Gramado, maio de 2011.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Doutorando no
Programa de Psicologia Social e Institucional da UFRGS; Bolsista Capes; Autor e organizador dos
livros A interpretação dos sonhos várias leituras – publicação comemorativa aos cem anos da
Traumdeutung (São Leopoldo, Editora Unisinos, 2001); Violências e contemporaneidade (Porto
Alegre, Artes e Ofícios, 2005). E-mail: nortonjr@brturbo.com.br
170
Alcova sadiana...

de que a análise de A filosofia na alcova não escorregue numa ingenuidade


interpretativa, preservando, assim, a dimensão imensurável de seu campo
enunciativo.
Ao destacar a importância do diálogo entre a psicanálise e o campo das
letras, Chemama (2002), chama a atenção para não reduzirmos a obra ao autor
a supostas patologias, pois a cegueira do especialista corre o risco de negligenciar
aquilo que o autor pode dizer explicitamente. Partindo desse princípio, refere
que, ao relermos um clássico de alguma forma somos lidos por ele. De acordo
com essa tese, orientamos nossa leitura do texto de Sade a partir da hipótese
de que ele poderá auxiliar na reflexão sobre as possibilidades e os limites da
clínica psicanalítica das perversões.
Segundo Giannattásio (2000), A filosofia na alcova trata de uma obra
cuja excentricidade resiste à catalogação de algum gênero literário específico,
haja vista a presente diversidade que a faz circular entre o folhetim político, os
diálogos filosóficos e o romance epistolar, sem falar na proposta de um modelo
educacional fundado na pedagogia do gozo. Em contrapartida, a condição de
Sade enquanto autor herege, maldito, perigoso, subversivo e satânico, facilmente
se vê capturada por estereótipos que o jogam num permanente repúdio que
beira a condenação.
Donatien Alphonse-François, o marquês de Sade (1740-1814) ficou
conhecido na história da literatura como alguém que testou os limites do homem
através da busca frenética de um gozo ilimitado. Pode-se dizer que seus
romances, escritos no transcorrer de quase trinta anos, passando por onze
prisões e três regimes políticos distintos, evidenciam o desejo implacável da
abolição de regras e costumes religiosos através da libertação plena do sujeito.
Para Sade ([1795] 2008), a felicidade só é possível no campo da imaginação.
Somente ela, conforme sugere Giannattásio (2000), suporta o absoluto e o
contraditório diante de uma alcova que irá se fundar no desmentido da existência
divina e comportar, simultaneamente, o inferno, o purgatório e o paraíso, através
de “um misto de experiência erótica e reflexão” (p. 25). Isso de certa forma
conduz seus leitores a identificar um traço característico em sua obra: o imperativo
do gozo sem restrições e a abolição de toda e qualquer referência à lei de ordem
divina. Como aponta Roudinesco (2008), os libertinos demarcam uma
especificidade da perversão em relação às práticas perversas místicas:

Ao contrário das místicas que faziam de seu corpo o instrumento


de salvação de sua alma, os libertinos, insubmissos e rebeldes,
buscavam viver como deuses e, portanto, libertar-se da lei religiosa,
tanto pela blasfêmia quanto por práticas voluptuosas da sexualidade.

171
Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr

Opunham à ordem divina o poder soberano de uma ordem natural


das coisas (p. 44).

Em seu livro a Impostura perversa, André (1995) destaca que a


incomparável capacidade de revelar a face recalcada da libertinagem fazia com
que Sade transcendesse o simples ideal de libertinagem. Nesse aspecto, ele
não possuía apenas a pretensão de não se submeter ao discurso dominante, às
crenças religiosas e à regulamentação dos costumes. Ou seja, Sade não se
limitava em confrontar o conceito de divindade e o saber atrelado a essa instância
em nome do culto à natureza como apologia ao gozo. Segundo esse autor, tudo
isso também estava em questão, mesmo porque tratava-se de princípios básicos
de qualquer libertino no fim do século XVIII. Entretanto, sua filosofia substitui a
falsa liberdade moral celebrada pelos libertinos por uma nova moral de obediência
estrita. Desse modo:

[...] enquanto a maioria dos libertinos se contentava com a recusa


às leis morais estabelecidas em prol da busca de prazer, Sade
transpunha o limite do prazer e propagava uma lei moral ainda
mais severa, já que seu mandamento era, em suma, este: Deverás
gozar, isso é uma obrigação (Idem, p.22).

A partir dos efeitos da leitura de A filosofia na alcova, entendo que é


possível aprender algo sobre as perversões. Anteriormente, ao referir o imperativo
categórico perverso, o fiz com intuito de seguir a orientação de Lacan ([1959-
1960] 1997), presente no seminário da Ética da psicanálise, quando menciona
que é preciso ler A filosofia na alcova, acompanhado das fórmulas kantianas da
Crítica da razão prática. Segundo Lacan, além de se tratar de um texto
extraordinário, “é impossível progredirmos nesse seminário nas questões
colocadas pela ética psicanalítica se não tivermos esse livro como termo de
referência” (id., ibid., p. 92). Pode-se dizer que ele está interessado em analisar
a incidência da ação moral dada por Kant na alcova de Sade, qual seja: faz de
tal modo que a máxima de tua vontade possa ser tomada como uma máxima
universal.

Quero apenas aqui, para operar o efeito de choque, efeito de abrir


os olhos que me parece necessário no caminho de nosso progresso,
fazê-los notar isto – se a crítica da razão prática foi lançada em
1788, sete anos depois da primeira edição da Crítica da razão
pura, há outro livro que, este, foi lançado seis anos depois da Crítica
172
172172
Alcova sadiana...

da razão prática, mais ou menos nos dias que seguiram o Termidor,


em 1795, e que se chama A filosofia na alcova (Lacan [1959-60]
1997,p. 99).

Logo no início do texto Kant com Sade, o autor retoma essa questão,
dizendo que depois de ter visto que A filosofia na alcova é compatível com a
Crítica da razão prática, “diremos que ela a completa, que ela fornece a verdade
da crítica” (Lacan, [1966] 1998, p. 777). Os respingos de Kant em Sade serão
pensados a partir de uma máxima universal da ação: o direito de gozar de outrem,
como instrumento de prazer. Trata-se de um princípio ao qual nada deve fazer
obstáculo ao gozo:

Para que essa máxima sirva de lei, é necessário e suficiente que,


na experiência de tal razão, ela possa ser aceita como universal
por direito de lógica. O que, lembremos sobre esse direito, não
quer dizer que ela se imponha a todos, mas que valha para todos
os casos, ou, melhor dizendo, que não valha em nenhum caso, se
não valer em todos (Lacan, [1966]1998, p.778).

Como é possível constatar, para Lacan, serão os critérios kantianos3 que


irão justificar a ideia de antimoral em Sade, pois, se é eliminado da moral todo o
elemento sentimental, o mundo sadiano seria um delírio viável. As ressonâncias
kantianas na tentativa de articulação moral na literatura libertina são evidentes.

Sade demonstra, com muita coerência, que, uma vez universalizada


essa lei, se ela confere aos libertinos a livre disposição de todas as
mulheres indistintamente, consentindo elas ou não, libera-as
inversamente de todos os deveres que uma sociedade civilizada
lhes impõe em suas relações conjugais, matrimoniais e outras.
Essa concepção abre todas as portas que ele propõe imaginaria-
mente no horizonte do desejo, cada um sendo solicitado a levar a

3
Ao leitor que desejar aprofundar a relação de Lacan com Kant, sugerimos a leitura do livro de
Safatle (2006): A paixão do negativo, em especial, o capítulo que irá abordar o texto de Lacan
“Kant com Sade”, tomando-o “como ponto de viragem do pensamento Lacaniano”. Estamos de
acordo com a oportuna observação do autor de que é a partir desse texto que “Lacan verá a
psicanálise não exatamente como uma terapêutica, mas como uma ética com consequências
clínicas” (SAFATLE, 2006, p. 166).

173
Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr

seu extremo as exigências de sua cobiça e de realizá-las (Lacan,


[1959-1960] 1997, p.100-101).

Antes de abordar os elementos de A filosofia na alcova, que fundamentam


essa proposição da subtração da filiação, pode-se dizer que, sob certo aspecto,
concordamos com Foucault, quando o autor diz que “Sade teria inventado um
erotismo disciplinar e ao mesmo tempo nos entedia, na medida em que parece
um sargento do sexo, um amanuense dos cus e seus equivalentes” (Foucault,
1994, p. 822). Todavia, é preciso ressaltar também que Sade contribuiu para
evidenciar a nossa ignorância acerca do sexual, questionando as leituras da
perversão para além da ideia de figura maldita, diabólica e imoral. Nesse sentido,
é possível afirmar que o erotismo em Sade é miserável, a tal ponto que o célebre
dos libertinos, através da crueza de suas letras, obtura as possibilidades de o
leitor fantasiar. Mas, ao transpor os limites, ele inaugura na literatura a
possibilidade de reconhecer aquilo que diz respeito à especificidade do pathos
perverso.
Como é possível constatar, a sexualidade em Sade transcende as
limitações de quaisquer categorias de análise, evidenciando, assim, a insuficiência
dos saberes diante do sexual. No hiperbólico universo sadiano, o sodomita deixa
de ser objeto de ojeriza, as mulheres ejaculam e enrabam como os homens, a
noção de loucura e interdição será subvertida. Trata-se de um modelo social
fundado na perversão:

Sade propõe de certa forma, um modelo social fundado na


generalização da perversão. Nem interdito do incesto, nem
separação entre o monstruoso e o ilícito, nem delimitação entre
loucura e razão, nem divisão anatômica entre homens e mulheres:
para conciliar o incesto, o adultério, a sodomia e o sacrilégio, diz
ele, o pai deve enrabar sua filha casada com uma hóstia (Roudinesco,
2008, p.53).

Os leitores familiarizados com a obra de Freud rapidamente podem


identificar que os livros de Sade não faziam parte de suas leituras de preferência.
Entretanto, podemos eleger ao menos um ponto que os aproxima, a saber,
reconhecer à condição humana a suposição da existência de um gozo em fazer
o mal e de causar dor no outro. Conforme ressalta Roudinesco (id., ibid.), ele
percebeu que “a perversão é necessária à civilização enquanto parte maldita
das sociedades e parte obscura de nós mesmos”. Entretanto, em vez de enraizar
o mal na ordem natural do mundo, tomando-o como sinal de uma inferioridade
174
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Alcova sadiana...

do homem, Freud sustentou que o acesso à cultura permite arrancar a


humanidade de sua própria pulsão de destruição.

Nunca é o bastante insistir no fato de que Freud foi o único cientista


de sua época – depois de muitas divagações a deixar de ver no
trio infernal do homossexual, da histeria e da criança masturbadora
a encarnação de uma noção de perversão reduzida a inépcia. E
assim deixou de querer domesticar a perversão ao atribuir seus
pretensos estigmas a personagens excluídos da procriação, da
mesma forma abandonou as classificações oriundas da sexologia,
rompendo, por conseguinte, com o princípio de uma descrição
voyeurista –, isto é, perversa – das perversões sexuais (Roudinesco,
2008, p.101).

Nesse sentido, a autora chama a atenção para o fato de Freud ter


reconhecido uma dimensão humana à estrutura perversa, pois, ao transpor os
estereótipos de pensar a perversão apenas a partir de um gozo do mal, do
campo das degenerescências ou anomalias, tomou-a tanto no aspecto
constituinte da psique, como em sua dimensão clínica, inaugurando assim, a
possibilidade de escuta dessa posição.

A filosofia na alcova

Contador Borges, além de realizar a tradução de A filosofia na alcova,


organizou também, algumas notas elucidativas no transcorrer da leitura e
escreveu um pósfácio intitulado: A revolução da palavra libertina. Nesse escrito
encontra-se a observação de que dois anos antes da publicação de A filosofia
na alcova ([1795] 2008), Sade viveu uma temporada no inferno da prisão
Madelonnettes, em plena era do terror. O autor ilustra o mundano cenário ao
qual o marquês se encontrava submetido, na época em que estava às voltas de
nomear sua alcova:

A prisão, que antes fora um Convento estava abarrotada de presos


políticos do Antigo regime. Suas acomodações eram precárias e
insuficientes, as condições de higiene péssimas. Por falta de lugar
Sade acabou sendo instalado junto às latrinas. Passou seis meses
nesse ambiente. Foi em seguida transferido para a prisão de São
Lázaro, antigo Convento de Carmes onde viria reencontrar o pintor
das sombras e ruínas, Hubert Robert seu companheiro de cela em

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Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr

Sainte-Pélagie. As condições não eram melhores. Os prisioneiros


vagavam sujos, maltrapilhos e barbudos pelos corredores infectos.
Seis deles contraíram febre maligna, dois morrem na semana que
Sade lá esteve [...] Sade passa uma semana em São Lázaro no
ano de 1794. Quem sabe por essa ocasião já estivesse esboçando
mentalmente esta obra (p.205-206).

Na abertura de A filosofia na alcova, composto de sete diálogos e o


panfleto que integra o romance, Franceses mais um esforço se quereis ser
republicanos, encontramos de forma explícita o seu claro endereçamento: “Aos
libertinos”. A pretensão de abarcar esse universo é evidente, quer seja através
de todos os sexos, ou de todas as idades. Isso nos faz concordar com
Giannattasio (2000), ao referir que a alcova sadiana configura-se como uma
espécie de metáfora do mundo. Desde o início, os personagens principais são
apresentados ao leitor como modelos a serem perseguidos em busca de uma
paixão sem amarras. A citação a seguir é extensa, mas necessária para
compreensão do ideal sadiano de tornar qualquer um em ardiloso devasso:

Voluptuosos de todas as idades e de todos os sexos, a vós somente


ofereço esta obra; nutri-vos de seus princípios, eles favorecem vossas
paixões; e essas paixões com que estúpidos e frios moralistas
tentam vos horrorizar, são apenas os meios que a natureza emprega
para fazer o homem atingir as metas que traçou para ele. Não ouvi
senão essas paixões deliciosas: sua voz é a única que pode vos
conduzir à felicidade.
Mulheres lúbricas, que a voluptuosa Saint- Ange seja o vosso
modelo; desprezai, a seu exemplo, tudo o que contraria as leis do
prazer que a acorrentaram durante toda a vida.
Moças tanto tempo contidas em laços absurdos e perigosos de
uma virtude quimérica e de uma religião nojenta, imitai a ardente
Eugénie; destruí, pisoteai tão rapidamente quanto ela todos os
ridículos preceitos inculcados por tais imbecis.
E vós, amáveis devassos, que, desde a juventude, não tendes
outros freios que vossos desejos e outras leis que vossos
caprichos, que o cínico Dolmancé vos sirva de exemplo; ide tão
longe quanto ele, se, como ele, desejardes trilhar os caminhos de
flores que a lubricidade vos prepara. Convencei-vos em sua escola
que, só estendendo a esfera de seus gostos e de suas fantasias,
só sacrificando tudo à volúpia, o infeliz indivíduo denominado
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Alcova sadiana...

homem e jogado a contragosto neste triste universo conseguirá


semear algumas rosa sobre os espinhos da vida (Sade, [1795]
2008, p.11).

Logo após a dedicatória, vê-se a sugestiva indicação de que a mãe deverá


prescrever a leitura à filha.
No primeiro diálogo encontra-se o esboço do contrato perverso que
inicialmente será arquitetado entre Saint-Ange, aquela que representa e determina
a lei a ser executada, e seu irmão e amante, o Cavaleiro de Mirvel. Trata-se dos
rumos da educação da virgem Eugénie, da qual Saint-Ange foi encarregada,
pelo pai da menina, para ser preceptora por dois longos e tortuosos dias. O
encontro na alcova de Madame de Saint-Ange envolve três libertinos: Dolmancé,
o bugre de beleza incomparável, célebre ateu, reconhecido como o mais imoral
dos homens, cruel, impiedoso, desumano e sedutor; Augustin, o portador do
soberbo membro; e o Cavaleiro de Mirvel (irmão e amante da Madame). E uma
jovem virgem de 15 anos, chamada Eugénie de Mistival, cuja a mãe é carola e o
pai um libertino.
Saint-Ange conheceu Eugénie num convento, enquanto o marido
repousava numa estação de águas. Ao fixar o olhar na menina, de beleza
incomparável, ela resolveu se aproximar do pai, que logo foi seduzido a ofertar a
filha aos princípios da libertinagem, através de infindáveis lições de prática e
teoria. Para Saint-Ange, nada será poupado para perverter a menina: “Quero,
com duas lições, torná-la tão celerada quanto eu... tão ímpia... tão debochada”
(Sade, [1795] 2008, p.19).
Pode-se dizer que, desde o início do texto, é recorrente o ideal de fazer
do outro a sua imagem e semelhança, através do engodo imaginário de amá-lo
como a si mesmo. Seria essa a aposta perversa de que há equivalência sexual?
Lacan, a partir de sua leitura de O mal-estar na cultura, lembra o quanto esse
mandamento de “amarás teu próximo como a ti mesmo”, parecia desumano
para Freud. Isso o fazia recuar dos riscos desse imperativo: “recuo de amar meu
próximo como a mim mesmo na medida em que nesse horizonte há algo que
participa de não sei qual crueldade intolerável. Nessa direção, amar meu próximo
pode ser a via mais cruel” (Lacan, [1959-1960] 1997, p.237).
O começo do segundo diálogo é marcado pela chegada de Eugénie à
alcova. Apesar de sua odiada mãe se opor a esses dois dias de plena educação,
a menina se vê sedenta, em busca de instrução e sabedoria, desejando apenas
ouvir. Nesse aspecto, cabe ressaltar um traço recorrente na alcova sadiana: a
retórica é condição para o ato, ou seja, na alcova, teoria e prática estão amalga-
madas:
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Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr

O espaço da alcova é ao mesmo tempo território da teoria e da


prática, bem como centro de produção e reatualização do
imaginário. Transferir a ação sadiana para um outro espaço,
qualquer que seja, significa certamente higienizá-la e domesticá-
la. Trata-se em verdade, de formular um modelo ideal de pedagogia.
O modelo que melhor possa revelar ao homem sua condição
(Giannattasio, 2000, p.30).

A teoria na alcova é cuidadosamente explicitada. A escuta atenta do


aprendiz será condição para o pleno exercício da prática. Primeiro, os
preceptores se encarregam de uma fala exaustiva, como se estivessem tomados
pela certeza de que tudo possa ser dito. Depois, isso requer o dever de que
tudo seja executado, pois, na alcova de Sade, dizer é fazer. Lacan, no seminário
De um Outro ao outro, identificou com muita precisão a dominação que ordena
a relação entre o mestre e o seu discípulo, a partir do efeito da voz do primeiro
sobre o outro; vejamos: “Que o masoquista faça da voz do Outro, por si só,
aquilo a que dará a garantia de responder como um cão, isso é o essencial”
(Lacan, [1968-1969]2008, p.249). Nesse aspecto, André (1995) também
ressaltou um traço característico no ideal sadiano, a saber, arrombar os ouvidos
de sua vítima, o leitor.

Constitui primeiro um imperativo ‘é preciso ouvir’, e é por aí que ele


foca do que há de mais estrutural na perversão: antes que o membro
monstruoso force o orifício anal ou vaginal da vítima, é o enunciado
da fantasia que força o ouvido do leitor. Força-o por sua
monstruosidade, por sua violência, mas também, e principalmente,
força-o pela vontade totalitária que implica (André, 1995, p.25).

Segundo o autor, o imperativo da fantasia sadiana transcende o imaginário


das cenas sexuais e exige o dever de ouvir. Algumas passagens são ilustrativas
nesse aspecto, tais como quando Dolmancé, ao ver seu amigo, o Cavaleiro,
esforçar-se para penetrar a virgem Eugénie de Mistival. Com seu membro
monstruoso, exclama: “Ora, porra! acaso alguém é delicado de pau duro” (Sade,
[1795] 2008, p.121). Ou, ainda, quando o Cavaleiro diz: “grita, quanto quiseres
putinha, vai entrar nem que morra mil vezes” (Sade, [1795] 2008, p.121). Lacan
([1969-1970] 1992) ao resgatar Sade no seminário O avesso da psicanálise,
além de referir que o masoquista é um delicado humorista, pois ele não precisa
de Deus, seu laico lhe basta, toma Sade como um teórico que ama a verdade.
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Alcova sadiana...

Realmente são diversas as cenas pelas quais os ouvidos do leitor são


aviltados, como, por exemplo, quando Dolmancé procura encorajar Eugénie diante
a violência à qual será submetida, dizendo: “sodomizo gente mais jovem todos
os dias. Ontem mesmo um garotinho de sete anos foi deflorado por este pau em
menos de três minutos. Coragem Eugénie. Coragem! (Sade, [1795] 2008, p.70).
Nesse contexto, quando a senhora Mistival acorda, após as infindáveis cenas
de torturas, aparece-nos outro exemplo: “Ó céus! Porque me chamaram do seio
do túmulo? Por que devolver-me aos horrores da vida?” – Dolmancé, como um
ardiloso carrasco, apenas executa a lei sem deixar espaço para qualquer
interrogação acerca do ato ao qual se faz instrumento, flagelando sem parar a
sua vítima, responde – “Ah, mãezinha, é que nem tudo foi dito. Acaso ouvistes
vossa sentença?” (id., ibid., p.194). Isso, por sua vez, demarca o imponderável
do contrato perverso, pois, “após a sentença pronunciada não dá para apelar”
(id., ibid., p.121). Nesse enunciado, Sade aponta a severidade da lei à qual a
perversão está submetida, quando, face ao imperativo de gozar, não há
possibilidade de recuar. O ato de fé perverso requer tamponar o buraco reconhecido
no Outro:

Afirmo desde já que a função do perverso, a que ele cumpre, está


longe de se basear num desprezo qualquer pelo outro, pelo
parceiro, como se disse durante muito tempo e como já não ousam
dizer há algum tempo, principalmente por causa do que enunciei
[...] o perverso é aquele que se consagra a tapar o buraco no
Outro. Para introduzir aqui as cores que dão o relevo às coisas,
direi que até certo ponto, ele está do lado do fato de que o Outro
existe. É um defensor da fé (Lacan, [1968-1969] 2008, p.245).

Em Kant com Sade, Lacan ([1966] 1998) aponta o quanto Sade se


enclausurou em sua própria fantasia. Segundo o psicanalista, esse homem
que teria cometido crimes insignificantes em sua vida privada, comparado às
cruezas de suas narrativas, mais do que carrasco, torna-se vítima, pois a fantasia
que ordenou sua escrita de alguma forma o levou ao confinamento por mais de
três décadas. Lacan observou que o rigor de seu pensamento passou pela
lógica de sua vida, pois ele não é tapeado por sua fantasia. Nesse sentido, o
perverso é também vítima do próprio roteiro, do qual estão alienadas as suas
modalidades de gozo. Fleig identificou isso com precisão: “o próprio sujeito
perverso está submetido a um roteiro particular, ele segue uma lei muito mais
rígida do que as leis que ele contesta” (Fleig, 2008, p.60).

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A recusa à reprodução e o ódio ao feminino

No terceiro diálogo da alcova de Sade, Eugénie é surpreendida com a


presença de um homem: Dolmancé. Saint–Ange demonstra também estar
surpresa, apesar de nos deixar na suspeita de ser a responsável, com o aval de
seu irmão, por tal arranjo. Ao entregar-se ao bugre, sugere à convidada a imitá-
la atentamente, tomando-a como exemplo; Dolmancé não se abstém de alertá-
la das consequências diante de qualquer desfeita:

Vamos, escutai-me minha linda e pequena aluna, ou receais que,


se não fordes dócil, usarei sobre vós direitos que me dão
amplamente o título de vosso preceptor castigo para punir os
pudores da cabeça (Sade, [1795] 2008, p.27).

As fontes de prazer e volúpia são nomeadas minuciosamente:

[...] o Cetro de Vênus que tens sobre os olhos, Eugénie é o primeiro


agente dos prazeres do amor. Denomina-se membro por excelência.
Não há uma só parte do corpo humano em que ele não se introduza
(Sade, 2008, p.28).

Logo após, a sentença é dada:

Uma linda jovem deve ocupar-se apenas em foder e jamais em gerar.


Contornaremos tudo o que se refere ao mecanismo vulgar da
reprodução, para nos ater única e exclusivamente às volúpias libertinas,
cujo espírito de modo algum é reprodutor (Sade, 2008, p.29).

Na promessa libertina a dor será uma espécie de tributo para se obter


prazer. Uma vez vencida, nada poderá se igualar ao gozo. Para Saint-Ange,
agrada à natureza chegar ao prazer mediante o sofrimento. Entretanto, para
Sade, isso não é suficiente, pois, antes de essa dor vir a se inscrever no real do
corpo, é preciso recusar qualquer desejo de reprodução. Dolmancé, ao dizer
“quando perdi minha mãe soltei até rojão”, irá acolher e reforçar o ódio à mãe, da
qual padece a jovem Eugénie, sobretudo por não reconhecer dívida alguma com
a figura materna. O ódio ao útero é acompanhado da renúncia às virtudes, às
falsas divindades, à religião e ao desmentido da existência divina. Além disso,
ele oferece a possibilidade de imaginar a suposta contradição do que vem a ser
sentir-se bem no mal:
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Alcova sadiana...

Nem sempre se pode fazer o mal. Privados do prazer que nos


proporciona, temos de ao menos tentar equivaler esta sensação
com a pequena e picante maldade de jamais fazer o bem (Sade,
2008, p. 45).

Sua principal cúmplice, o acompanha diante da loucura de um gozo


transbordante, pois para Saint–Ange:

O destino da mulher é pertencer a todos o que a desejarem: Numa


palavra: fode e apenas fode; é para isso que estás no mundo. Não
há limites aos teus prazeres senão os de tuas forças ou os de tuas
vontades. Não escolhe lugares, tempo ou pessoas: todas as horas,
todos os lugares, todos os homens devem servir a tua volúpia (Sade,
2008, p.48).

Apesar da aparente falta de limites da ensandecida madame Saint–Ange,


há uma restrição, a recusa ao gozo vaginal, pois é preciso evitar essa maneira
de gozar diante do risco de ter filhos. Segundo ela: “fazer perder assim os direitos
da procriação e contrariar o que os tolos chamam leis da natureza é algo
verdadeiramente cheio de encantos” (id., ibid., p.58). Essa questão retorna em
outros momentos, inclusive com a ameaça de rompimento da amizade, caso a
aluna não siga os conselhos de sua preceptora: “Confesso ter pela procriação
tal horror que eu deixaria de ser tua amiga no mesmo instante em que
engravidasse” (id., ibid., p.76). Em contrapartida, para Dolmancé, os hábitos do
universo autorizam o incesto, na medida em que a sua realização é uma lei
sensata e feita para cimentar os laços de família. Nesse caso, a possibilidade
de gerar configura-se como o único obstáculo na continuidade do pacto perverso.
Como podemos constatar, Saint–Ange demonstra-se obstinada em fazer da
aluna sua imagem e semelhança. Logo, frente ao ideal perverso, quase tudo é
possível, com exceção da diferença.
No quarto diálogo, além dos demais personagens, entra em cena,
Augustin. A proliferação dos dejetos e os limites da dor são alguns dos horrores
que nos espreitam. Lacan, ao analisar a essência da busca sadiana, refere que,
para atingir absolutamente das Ding, para abrir as comportas do desejo, Sade
recorre à dor de outrem e, igualmente, a dor própria do sujeito. Estamos topando
com a dimensão do insuportável, pois “o extremo do prazer, na medida em que
consiste em forçar o acesso à Coisa, nós não podemos suportá-lo” (Lacan,
[1959-1960] 1988, p. 102). Para Lacan, diante do das Ding, não há palavras, não
há imagens, é a precariedade tanto simbólica, quanto imaginária: o real.

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Face ao cenário de crueldades com que o leitor é defrontado, torna-se


praticamente inevitável o pensamento de se vale a pena fazer mais um esforço
para chegar ao final do texto, antecedendo assim, o clássico enunciado de
Sade: “Franceses mais um esforço se quereis ser republicanos”. Segundo
Roudinesco (2008):

Neste texto admiravelmente construído, e não comportando nenhum


relato de atos sexuais, Sade preconiza como fundamento para a
república, uma inversão radical da lei que rege as sociedades
humanas: obrigação da sodomia, do incesto e do crime (p.49).

Lacan recomenda expressamente a leitura desse pequeno trecho. Através


desse apelo, que se enuncia na Paris revolucionária, o marquês de Sade propõe
como máxima universal de nossa conduta, diante das ruínas das autoridades,
do advento de uma verdadeira república, o contrário do que pode ser até então
considerado como o mínimo vital de uma vida moral viável e coerente. Para
Lacan, Sade não sustenta nada mal isso.

Não é por acaso que encontramos no início da filosofia na alcova


um elogio da calúnia. Esta, diz-nos ele, não poderia, em nenhum
caso, ser nociva – se ela imputa a nosso próximo algo muito pior
do que se pode com razão atribuir-lhe, ela tem por mérito alertar-
nos contra suas empreitadas. E prossegue deste modo, justificando
ponto por ponto o derrubamento dos imperativos fundamentais
da lei moral, e preconizando o incesto, o adultério, o roubo e
tudo o que vocês podem acrescentar (Lacan, [1959-1960] 1988,
p.100).

Caso o leitor suporte chegar ao sétimo diálogo, correrá o risco de topar


com o inferno. O desfecho desse capítulo é marcado por indescritíveis torturas
ao corpo materno. A senhora Mistival, mãe de Eugénie, resolve buscar a filha na
alcova de Saint–Ange. Os libertinos, ao saberem de tal propósito, através da
carta enviada pelo senhor Mistival, combinam a crueldade da lição exemplar que
será executada. Novamente, antes da barbárie se inscrever no real do corpo, a
retórica discursiva antecede e justifica o ato.
Dolmancé, maestro das atrocidades que irão se desvelar, prepara a menina
para abrir mão de qualquer resíduo sentimental que por ventura possa existir em
relação aos pais: “deves saber, senhora, que não há nada mais ilusório do que
os sentimentos do pai ou da mãe para com seus filhos, e desses para com os
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Alcova sadiana...

autores de seus dias” (Sade, [1795] 2008, p.186). Assim que a senhora Mistival
adentra a alcova, todos fazem questão de deixar evidente que ela não possui
mais qualquer autoridade sobre a filha. Quanto a Eugénie, só lhe resta mostrar
ao seu mestre que apreendeu muito bem as lições que lhe foram dadas e,
assim, diante dos apelos da mãe para sair daquele lugar promíscuo, a filha lhe
oferece a genitália.
Eugénie, através da aberração de seu ato, aponta que na perversão,
diferentemente da neurose, o gozar se sobrepõe às possibilidades de amar.
Isso nos faz resgatar a distinção proposta por Jorge (2010) entre a lógica que
ordena a fantasia na neurose e na perversão. Para esse autor, na neurose, a
fantasia é uma fantasia de completude amorosa. Nesse sentido, o neurótico
deseja resgatar a completude perdida pelo viés do amor. Desse modo, ele estaria
fixado numa demanda amorosa, como tentativa de preencher o vazio que lhe
concerne enquanto sujeito, elidindo, assim, o polo do gozo da fantasia. Em
contrapartida, na perversão a fixação é no polo do gozo.
Seguindo as pistas de Lacan, o autor irá dizer que a fantasia é fantasia de
relação sexual possível, e atravessá-la é deparar-se com o impossível em jogo
na relação sexual. Nesse caso, se de um lado existe um excesso de demanda
amorosa, de demanda de reconhecimento no campo das neuroses, o que de
certa forma singulariza o seu padecimento, de outro, haveria também, um excesso
diante da busca de um gozo transbordante que captura o perverso, abolindo
assim, as suas possibilidades de amar. Nesse caso, o fim da análise, enquanto
travessia da fantasia, é uma travessia da fantasia amorosa, para o neurótico, e
uma travessia da fantasia de gozo, para o perverso. Entretanto, o autor refere
que o fim da análise não implicaria somente dar acesso ao neurótico ao polo do
gozo do qual ele tanto se defende, e, no caso da perversão, dar o acesso à
dimensão do amor, do qual ele também se defende. Ou seja, o que irá importar
nessa travessia será a possibilidade de desejar, desejar enquanto verbo
intransitivo:

Mas o que mais importa nessa travessia não é o fato de o sujeito


ter acesso ao outro polo da fantasia, mas o acesso à dimensão do
desejo, inscrita no signo da punção, entre o sujeito e o a – o desejo
enquanto falta é a presentificação da perda de gozo – na origem da
entrada do sujeito na linguagem. Ao ter acesso ao pulsional e ao
gozo e deixando de se fixar no polo do amor o neurótico terá acesso
ao desejo, em contrapartida, o perverso, ao ter acesso ao polo do
amor, deixando de se fixar no polo pulsional, terá acesso ao desejo.
Perda de amor e gozo (Jorge, 2010, p.85).

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As construções desse autor fazem pensar na importância de fazer a


distinção entre a fantasia perversa e as fantasias perversas que podem ocorrer
em sujeitos neuróticos.
A senhora Mistival, após ser espancada, humilhada e torturada até
desmaiar, tem sobre seu corpo a filha que pratica relações sexuais com os
libertinos em cima da própria mãe desfalecida. Inanimada, com sua diferença de
sujeito abolida, a mãe, à beira da morte, é tomada como objeto de um gozo que
se aproxima da necrofilia. A erotização da pulsão de morte passa a se materializar
no gozo de uma fantasia de completude posta em ato. Diante disso, a fantasia
perversa na qual o sujeito está engolfado o situa numa busca de captura do
objeto causa do desejo, pois

O objeto, como mostramos na experiência freudiana, o objeto do


desejo, ali onde se propõe desnudo, é apenas a escória de uma
fantasia em que o sujeito não se refaz de sua sincope. É um caso
de necrofilia (Lacan, [1966] 1998, p.792).

Como é possível constatar, a cada página de A filosofia na alcova, o


leitor se depara com uma mãe sendo injuriada, ultrajada, humilhada, espancada,
violada e torturada. Isso o leva a supor que ela será exterminada a qualquer
momento. Entretanto, mais do que a eliminação do semelhante, Sade requer
apontar a divisão subjetiva do outro, aniquilando a sua condição de sujeito,
jogando-o, assim, no limite do suplício. Como destacou André (1995), o
assassinato da mãe será deixado num estado de contínua ameaça, sobretudo
porque ela precisa ser educada, ou seja, ouvir a voz que emana dos
mandamentos do gozo:

Na verdade, o carrasco sadiano sacrificava sua subjetividade a esse


Outro sanguinário e coercitivo. Reduzia-se a ser apenas uma voz
que enunciava o mandamento natural do gozo, e um instrumento
que o executava como um funcionário zeloso. Era a vítima que
duvidava e fazia perguntas sobre o que se queria dela (como
ignorasse a Lei, era preciso educá-la), era ela que se dividia entre
corpo e fala, era ela que sofria todo o peso da angústia. A apologia
sadiana do crime, no entanto, tinha um horizonte que a detinha.
Assim, A filosofia na alcova fracassa no limiar do assassinato da
mãe, jamais perpetrado e sempre deixado em estado de ameaça
(André, 1995, p.22).

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Antes de ser expulsa aos pontapés da alcova, mais uma sentença será
cruelmente executada: a senhora Mistival deverá ser contaminada com sífilis, e
a Eugenie caberá a tarefa de instrumentalizá-la, costurando os orifícios da mãe:
“afastai as coxas, mamãe; vou coser–vos para que não me deis mais irmãos ou
irmãs” (Sade, [1795] 2008, p.195). Millot (2004) situa a dimensão do triunfo
perverso que está em causa quando o sujeito goza diante do horror da erotização
da pulsão de morte:

A erotização da pulsão de morte abre aqui a via para a perversão


propriamente dita, de que ela constitui a forma primária. Com efeito,
ela torna possível essa transmutação do horror inspirado pela
castração num gozo que dele representa o mais perfeito desmentido.
O que um tal triunfo comporta de desafio caracteriza a perversão
(p.10).

Lacan, ao finalizar o texto Kant com Sade, resgata essa indigesta


passagem, dizendo que, costurada, a mãe continua proibida: “está confirmado
o nosso veredito sobre a submissão de Sade à lei. De um verdadeiro tratado
sobre o desejo, portanto, pouco há aqui, ou, mesmo nada” (Lacan, [1966] 1998,
p.802-803). Bataille ([1957] 1985) dá o tom da complexidade em questão quando
diz que Sade é um autor que tornou desejável o gozo do mal. O desfecho da
alcova, após quase tudo ter sido dito e executado, ilustra bem essas observações:

Quanto a nós, meus amigos, vamos para a mesa; e, daí os quatro


para o mesmo leito. Eis uma boa jornada! Nunca como tão bem,
nunca durmo melhor na santa paz de deus do que quando me sujo
o bastante, durante o dia, com aquilo que os tolos chamam de
crime (Sade, [1745] 2008, p.198).

Em Sade, o desejo de aniquilar o outro como sujeito leva a vítima ao


horror do suplício. O limite se materializará no grito de dor. Barthes (1991) nomeou
esse grito como o “fetiche sonoro” que o carrasco almeja. Nesse sentido, o que
está em causa é a dor da própria existência, ainda que ela se materialize numa
necessidade imperiosa de rechaçar ao outro o padecimento que o confronto
com a diferença produz no sujeito situado na perversão. O gozo que ordena
esse desejo de causar dor no outro terá como alvo o pudor, pois, para Lacan, o
despudor de um constitui por si só a violação do pudor do outro, onde a “dor tem
seu fim – o esvaecimento do sujeito” (Lacan, [1966] 1998, p.785). Alguns anos
depois, no seminário Os quatros conceitos fundamentais da psicanálise, o autor
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fará uma breve síntese, porém precisa, sobre seu propósito ao escrever Kant
com Sade. Vejamos:

A experiência nos mostra que Kant é mais verdadeiro, e eu provei


que sua teoria da consciência, como ele escreve da razão prática,
só se sustenta ao dar uma especificação da lei moral que,
examinada de perto, não é outra coisa senão o desejo em estado
puro, aquele mesmo que termina no sacrifício, propriamente falando,
de tudo que é objeto de amor em sua ternura humana – digo mesmo
não somente na rejeição do objeto patológico, mas também em
seu sacrifício e em seu assassínio.

“É por isso que escrevi Kant com Sade” (Lacan, [1964] 1998, p.260).

Essa passagem é pertinente na medida em que nos adverte em


relação à potência do imperativo categórico que ordena o desejo
perverso, pois a busca do gozo em questão é tão avassaladora a
ponto de requerer o sacrifício de princípios fundamentais para
valorização da condição humana, tais como: o amor e a ternura.
Nesse caso, o despudor perverso, ao odiar a diferença, não
reconhece limites. Portanto, caso for necessário, ele irá aniquilar o
outro como sujeito para colocar em cena as imagens que capturam
suas modalidades de gozo. No seminário A angústia, na lição A
angústia, sinal do real, Lacan se pergunta: o que busca o sádico
no Outro? A partir dessa questão, ele deixa muito evidente que
Outro para o sádico existe, dizendo-nos que não é simplesmente
por ele tomá-lo por objeto que devemos dizer que há nisso uma
relação imatura ou ainda pré-genital, pois a referência do Outro
como tal inclusive faz parte da meta sadiana. Mesmo porque Deus
é exibido por toda parte no texto de Sade, ainda que na busca
ensandecida de realizar o gozo de um Deus tão profanado. Isso o
levará a dizer que “nessas estruturas denuncia-se a ligação radical
da angústia com o objeto como aquilo que sobra. Sua função
essencial é ser o resto do sujeito, o resto como real” (Lacan, [1962-
1963] 1997, p.184).

Portanto, em Sade mais do que um desejo implacável de um gozo sem


limites, o sujeito é reduzido a sua condição de dejeto. Sendo assim, a lógica
perversa odeia a própria vida.
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O ideal perverso de subtração da filiação

Como já mencionado, é pertinente ressaltar que na alcova de Sade existe


um suplício que antecede a crueza da dor que irá se inscrever no corpo. Trata-se
do apelo desesperado ao reconhecimento de uma filiação. É isso que a Senhora
Mistival exige de Eugénie ao chegar à alcova, o respeito de sua filha, e a autoridade
que lhe concerne enquanto mãe, embora seja justamente isso que lhe será
negado. Nesse aspecto, pode-se dizer que Sade propõe pensar a perversão
para além da busca de um gozo pleno a qualquer preço, da mera
instrumentalização da vítima ou da capacidade de o sujeito erotizar a morte e
transformar a miséria em gozo ou, até mesmo, a falta em plenitude, ou seja, o
desejo perverso recusa à reprodução. Mais do que isso, recusa à filiação.
Ao preconizar que os filhos, caso for inevitável que nasçam, devem ser
engendrados sem com que ocorra prazer sexual, fruto de copulações múltiplas
que impeçam qualquer possibilidade de identificação de um pai, Sade propõe a
radical subtração da filiação. Eles não podem ser senão propriedade da república
– e não dos pais, devendo ser separados da mãe desde o nascimento para se
tornarem objetos de prazer. Como bem apontou Roudinesco “A alcova sadiana
repousa então na abolição da instituição do pai e na exclusão da função materna”
(2008, p. 52). Nesse caso, o suplício da mãe, evidenciado nas palavras de
madame Mistival, terá como resposta a recusa da filha a qualquer espécie de
dívida com a cadeia geracional e as possibilidades de transmissão.
Nesse sentido, o moralismo sadiano, materializado no imperativo
categórico “goza!”, pode auxiliar na compreensão da lógica perversa. Entretanto,
é necessário certo cuidado para não cristalizar a voz desse imperativo em
parâmetros eminentemente comportamentais, aberrações ou meras atipias
sexuais. Como refere Jerusalinsky (2010), os comportamentos não demonstram
muita coisa, pois eles precisam ser confrontados com o tecido significante, o
tecido simbólico, para serem lidos, ou seja, se o comportamento é letras entre
os humanos, é necessário saber em que estrutura e lógica ela funciona; não
somente a que história pertence. Segundo o autor, estrutura e lógica estão
implicitamente relacionadas na transmissão da verdade. Ao interrogar-se acerca
de quais são os princípios que permitem afirmar como verdadeiro em certo tecido
significante e permaneça em outra geração, o autor diz que, apesar de haver
transformação, se a lógica ordenadora do critério de verdade permanece, há
filiação:

A filiação é o que permite a continuidade do simbólico, independen-


temente da mudança da figura [...] da mudança moral, da moda,

187
Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr

do aspecto do comportamento. É assim que alguém pode se


reconhecer e ser reconhecido como filho, apesar de o pai ser careca
e o filho, punk, usar um corte moicano e quatro piercings, três
tatuagens, das quais o pai tem horror. O que não impede que ele
seja reconhecido como filho, e se reconheça como filho porque há
um traço que sustenta a continuidade simbólica (Jerusalinsky, 2010,
p.13).

Nesse caso, a continuidade simbólica será a lei que possibilitará ao sujeito


o reconhecimento singular da cadeia geracional à qual ele pertence, o que implica
o reconhecimento recíproco entre pai e filho para assegurar a continuidade
histórica. Em contrapartida, o padrão rígido de gratificação sexual, que o perverso
persegue a qualquer custo, o encarcera numa escolha de objeto que visa encarnar
as insígnias de um gozo contínuo, jogando-o na condição de instrumento deste.
Como apontou Barthes (1991), o texto de Sade se desenrola como se fosse
produto de um funcionamento automático, em que os autores dos enunciados
tornam-se recitadores, o que, por sua vez, implica a recusa do sujeito.
Então, a captura imaginária, da qual padece o sujeito perverso, terá como
consequência a recusa do reconhecimento dos precários traços que sustentam
a sua condição de dívida com a continuidade simbólica da cadeia geracional à
qual pertence. Isso, por sua vez, evidencia a fragilidade da eficácia da castração,
pois, para Lacan, na castração há uma falta fundamental, que se situa como
dívida na cadeia simbólica. Portanto, a referência à castração estará ligada a
uma ordem simbólica instituída, que terá como consequência a divida simbólica
face ao objeto imaginário – o falo. Ocorre que, na perversão, o sujeito recusa
essa dívida, subtraindo a condição de filiação que lhe concerne, haja vista o
ideal de captura desse objeto. Diante disso, o apagamento subjetivo será
tamanho que irá fragilizar as possibilidades de constituir laços simbólicos,
ordenados pela falta. Trata-se de uma condição humana que parece não estar
disposta a sacrificar pretensas liberdades sexuais em nome da preservação de
um patrimônio simbólico que possa ser transmitido às futuras gerações.
Para finalizar, achamos importante apontar a relação entre a perversão e
o sexual, pois estamos de acordo com Queiroz (2004), de que esse foi tanto o
caminho de Freud, quanto o de Lacan. Embora existam outras contribuições
que tomam as perversões eminentemente a partir da relação do sujeito com a
lei. Calligaris (1991), ao analisar os depoimentos dados pelos carrascos nazistas
no histórico julgamento de Nuremberg, interroga-se como cidadãos comuns
puderam ser capazes de se envolver na condição de agentes de tamanha barbárie
sem que ninguém os impedisse. Isso o leva a propor a tese da “paixão pela
188
188188
Alcova sadiana...

instrumentalidade”. Segundo o autor, essa paixão não estaria circunscrita apenas


a um estado de exceção, ou seja, ela pode também ser uma posição neurótica
diante a alienação do sujeito à condição instrumental. Nesse caso, o desejo de
corresponder a uma espécie de ideal compartilhado, mediante um saber paterno
suposto na causa em questão, responderia pelo envolvimento de neuróticos em
regimes totalitários.
Pode-se dizer que, ao problematizar a instrumentalização perversa,
Calligaris situa a perversão para além do campo eminentemente sexual, pois,
para esse autor, a “perversão é uma patologia social e não sexual” (p. 118).
Sendo assim, ela seria o efeito do laço do sujeito com o Outro, quando o primeiro
torna-se instrumento para o segundo. Nesse sentido, a montagem perversa seria
a realização de uma fantasia compartilhada, entre dois ou mais sujeitos, não
necessariamente de estruturas perversas, em que a obtenção de um gozo
específico é o único propósito. Segundo o autor, isso inclusive pode produzir
uma montagem coletiva. Nesse caso, o Terceiro Reich também poderia ser lido
como uma forma de instrumentalização do Outro, em função da obtenção de um
gozo específico. Peixoto (1999), nessa esteira de pensamento, diz que existem
perversões que podem adquirir forma de massa ou de grupo. O autor toma como
exemplo os grupos nazistas e a própria política atual, em que os sujeitos
acreditam que suas verdades e as do outro só podem se revelar de forma plena
através de esquemas perversos.
O propósito de tensionar essa discussão não parte do princípio de que
recuso essas hipóteses formuladas pelos autores citados, pois também acredito,
inclusive a partir de minha prática clínica, que sujeitos neuróticos podem
compactuar-se em montagens perversas, instrumentalizando o outro, a fim da
obtenção de um gozo específico. Apenas desejo salientar que uma lógica
paranoica pode também produzir efeitos de dominação, manipulação e destruição
de grupos. Além disso, conceber a barbárie do Terceiro Reich, quer seja a partir
da perversão, quer seja através da paranoia, parece-me uma forma de empobrecer
a discussão mediante capturas psicopatológicas que ingenuamente buscam
recobrir o real diante do horror.
Portanto, a contribuição de Calligaris é valiosa, sobretudo, por ampliar as
nossas possibilidades de pensar a perversão. Entretanto, é possível fazer uma
disjunção entre lei e sexualidade? Ambas não estão implicitamente relacionadas,
assim como, o sexual e o social? E ainda, a posição do sujeito em relação à lei
não seria a forma encontrada para sustentar uma sexualidade possível? Logo, a
perversão, talvez mais do que qualquer outra estrutura psíquica, nos evidencia o
quanto a lei, a sexualidade e o social são absolutamente inseparáveis. Sendo
assim, todo e qualquer pathos é social.
189
Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr

Desse modo, entendemos que a singular posição perversa em relação à


lei diz respeito ao desmentido da castração simbólica. Esta, em se tratando de
neurose, irá confrontar o sujeito com a impossibilidade de encontrar um objeto
adequado ao gozo, haja vista a dissimetria radical entre o objeto que se busca e
o encontrado, pois, pelo simples fato de falar, a castração se atualiza na medida
em que as palavras faltam e são sempre insuficientes para recobrir o real. Em
contrapartida, na perversão o gozo não se trata de um simples direito, mas de
um dever. Nesse caso, ao gozar da lei, o perverso irá desmentir a castração,
recusando assim a disjunção entre saber e verdade. Isso o jogará na busca de
um saber instrumental sobre o gozo do Outro, ainda que isso requeira a subtração
da própria filiação. Portanto, o engodo perverso da busca de um gozo ininterrupto,
mais do que situar o outro na condição de objeto, demanda tamponar a falta do
Outro.

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Alcova sadiana...

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Recebido em 27/01/2012
Aceito em 16/03/2012
Revisado por Sandra D. Torossian

191
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 192-203, jan./jun. 2011

VARIAÇÕES
QUANDO O SINTOMA
É D A E N A LINGUAGEM
Luiza Milano Surreaux1

P artirei de uma pergunta nada ingênua sobre o campo dos distúrbios de


linguagem: como circunscrever e nomear aquilo que não vai bem na linguagem
de um sujeito?
A tentativa de resposta fala uma trajetória que venho percorrendo para
buscar uma concepção de sintoma que seja pertinente à clínica dos chamados
distúrbios de linguagem. Por isso, faz-se necessário empreender um esforço no
sentido de buscar definir o que se configura como sintoma de linguagem. O que
é isso que “não vai bem” na fala do sujeito, o que é isso que “falha” quando o
sujeito fala? Essa definição determina o objeto de estudo e de intervenção da
clínica de linguagem 2.
Minha indagação origina-se no fato de o “patológico” não satisfazer à
clínica de linguagem tal como a penso.
A influência do olhar médico na clínica de linguagem é ainda muito grande,
fazendo com que a tomada de um paciente em tratamento muitas vezes se dê
pela via do patológico (em oposição ao “normal”). Numa perspectiva de
investigação etiológica, influenciada pela dinâmica médica, o orgânico é que
determina o funcionamento da linguagem. Busca-se assim, na história recente

1
Fonoaudióloga e professora do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas do Instituto de
Letras da UFRGS. E-mail: surreaux@uol.com.br
2
Ao utilizar a expressão clínica de linguagem estou delimitando uma área específica da
fonoaudiologia, a saber, a clínica que trabalha com sujeitos que apresentam distúrbios de linguagem.
192
Quando o sintoma é...

e pregressa do paciente, tentar circunscrever a origem do não funcionamento


(ou do mau funcionamento) da linguagem.
Como diria Foucault, frente à grande variedade de sintomas, resta à clínica
fixar-lhe o sentido para conter hemorragias semânticas. Entre a palavra que
nomeia e o olhar que busca confirmar, o patológico institui sua verdade.
Mas com o descolamento do discurso médico, faz-se necessário buscar
outras formas de descrever aquilo que não vai bem na linguagem de um sujeito.
Assim, outra via possível seria apontar que a linguística estaria provida de
recursos que auxiliem a clínica de linguagem a cercar aquilo seria o próprio do
sintoma. No entanto, corre-se o risco de apenas produzir outra aderência (do
discurso médico para o discurso da linguística). Em uma aderência à linguística,
há o risco de o clínico se oferecer como “filtro” de uma análise linguística estática
que almeja detectar o “incorreto” nas produções linguísticas de seu paciente. Ao
marcar para si o lugar de saber absoluto sobre a língua, ao paciente resta apenas
o lugar de inábil. Prova disso é que a tendência em muitas avaliações de linguagem
é a detecção apenas do erro, da falha, em vez de levantamento das possibilidades
de efeitos discursivos que eles provocam.
Mas a linguagem tem irregularidades, tem particularidades para cada
sujeito. Se essa constatação é válida para nossa atividade linguageira cotidiana,
ela torna-se ainda mais gritante na fala sintomática. Ou seja, é fato que a
linguagem apresenta sempre irregularidades, mas também é verdade que na
fala sintomática o irregular toma lugar de maior evidência. Por esse motivo, não
basta lidar com a noção de patologia apriorística, cuja aplicabilidade é limitada.
Sem dúvidas, ela aponta um conhecimento sobre o que é visível (ou audível) na
fala do paciente, mas jamais falará da forma particular de cada sujeito estar na
linguagem.
Parto do princípio de que o que deve ser priorizado pelo clínico de linguagem
é a particularidade do funcionamento do inusitado (da combinação inusitada que
surge na fala do paciente) e não na performance patológica já estandartizada.
As manifestações de linguagem dos pacientes surpreendem por serem inusitadas,
sempre diferentes umas das outras. Apesar de todas ocorrerem na linguagem,
elas não montam e desmontam os mesmos aspectos ou componentes da
linguagem de igual maneira.
É por isso que proponho iniciar por um olhar sobre o texto freudiano das
afasias. Esse escrito inaugural de Freud ([1891]1977), em minha opinião, tem
força suficiente para inaugurar uma leitura particular da sintomatologia de
linguagem.
Sigmund Freud, ainda neurologista, em seu primeiro escrito, expõe uma
tese bastante crítica à neurologia da época (que tinha um forte viés localizacio-
193
Luiza Milano Surreaux

nista). No campo da neurologia do fim do século XIX predominavam as contribui-


ções de Broca e Wernicke, pesquisadores que situaram minuciosamente as
regiões cerebrais responsáveis pela produção e recepção da linguagem.
O texto de Freud vem, então, marcar posição distinta da tendência da
época. Em meio à predominância das teorias localizacionistas, Freud propõe
descartar a causalidade direta entre o cerebral e o psíquico, afastando o
isomorfismo entre o cerebral e o mental.
Em meu entender, o que se destaca no referido artigo é a forma com que
Freud contextualiza a fala sintomática. Ao aproximar o “erro afásico” do lapso
que quem está cansado, distraído ou sob pressão pode realizar, Freud atribui
estatuto de sintoma funcional aos equívocos que qualquer falante possa produzir.
Essa perspectiva, do meu ponto de vista, inaugura um lugar fundador da noção
de sintoma de linguagem. O texto, assim considerado, assinala o marco para
uma escuta original do sintoma de linguagem.
Exemplos no texto não faltam. Quando Freud fala do sintoma por ele
chamado de “parafasia”, além de vê-lo como perturbação da linguagem, trata-o
também como “um sinal de funcionalidade reduzida do aparelho associativo da
linguagem” (1891[1977] p. 35). Eis a primeira e maior contribuição do texto
freudiano para a clínica de linguagem: a ideia de funcionalidade. Explícita demais
para ser reconhecida? Ou tão sutil que nos faria duvidar de que a preciosidade
de um trabalho estaria já em seu primeiro parágrafo? Talvez provoque o mesmo
efeito que a Carta roubada3: estando tão à vista de todos, fica ela desapercebida
daqueles que se afligem em buscar ali “esclarecimentos”, “explicitações”.
O que mais os “peritos” podem encontrar nesse texto? Em primeiro lugar,
a evidente interlocução ruidosa de Freud com os expoentes da neurologia e
afasiologia da época, demonstrando contraposição à tendência localizacionista
em relação à sintomatologia das afasias. Também se poderia tomá-lo como
documento histórico quanto à afasiologia ou ainda como fragmento pré-
psicanalítico de Sigmund Freud4. Sim, isso já foi encontrado e registrado.
Excelentes trabalhos, importantes reflexões. No entanto, eu prefiro seguir Dupan5
e, pretensiosamente ou não, buscar o sutil na evidência que uma trama propõe.

3
Conto de Edgar Alan Poe, A carta roubada. In: Histórias Extraordinárias, São Paulo, Abril
Cultural, 1981.
4
O minucioso estudo de Garcia-Roza (2001) disseca o texto das afasias de Freud buscando
também um texto-documento fundador. Garcia-Roza encontra no trabalho sobre as afasias os
primórdios da construção freudiana que serve como alicerce para a elaboração da noção de
“aparelho psíquico”, tão cara à psicanálise.
5
Personagem do conto A carta roubada, o detetive Dupan.

194
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Quando o sintoma é...

Freud fornece sua concepção original de parafasia:

[...] a parafasia observada em alguns doentes não se distingue em


nada daquela troca ou mutilação de palavras que quem é saudável
pode encontrar em si próprio em caso de cansaço ou sob influência
de estados afetivos que o perturbam (Freud, [1891]1977, p. 35).

Observe-se que, em Freud, o que está em jogo é a subversão da própria


linguagem, e não somente da afasia. Garcia-Roza (2001, p. 28) aponta que a
concepção de aparelho de linguagem, em Freud, no texto das afasias, precede
a noção de aparelho psíquico, pois prevê um modelo para o funcionamento do
inconsciente. Ou seja, segundo a reflexão desse autor, a partir do momento em
que Freud apresenta o aparelho de linguagem como unidade funcional, sujeita
ao equívoco e às combinações imprevisíveis, ele está antecipando a observação
acerca de movimentos similares entre a forma de funcionamento da linguagem e
a do inconsciente.
No texto das afasias, ao destacar o sintoma da parafasia como caracte-
rística funcional do aparelho da linguagem, Freud prepara o terreno para articular,
mais adiante, as noções de “falhas” no funcionamento do aparelho psíquico,
através do estudo clássico dos sonhos (A interpretação dos sonhos, 1900), dos
lapsos e atos falhos (Psicopatologia da vida cotidiana, 1901) e dos chistes (O
chiste e sua relação com o inconsciente”, 1905), textos publicados uma década
após o trabalho das afasias.
O que quero enfatizar é que talvez tenha sido exatamente a reflexão sobre
o sintoma da fala do sujeito afásico que tenha permitido a Freud realizar um
profundo questionamento sobre como se movimenta a linguagem de um sujeito
com sequelas afásicas e compará-las com a fala cotidiana. O autor demonstra
que o sintoma da parafasia é um articulador importante para demonstrar o
movimento da linguagem de um sujeito.
Assumo ter levado ao extremo as consequências de ter lido no texto das
afasias de Freud os primórdios de uma teorização da noção de sintoma de
linguagem que interessa à clínica de linguagem. E ainda mais, encontrei um
teórico que, pela via do sintoma de fala (a afasia), realiza o traçado que nos
permite pensar no funcionamento da linguagem, seja na normalidade, seja nas
alterações. Como anuncia o autor,

Pretendemos agora ver que hipóteses nos servem para a explicação


das perturbações da linguagem com base numa tal estrutura do
aparelho da linguagem; por outras palavras, o que é que nos ensina

195
Luiza Milano Surreaux

o estudo das perturbações da linguagem em torno da função deste


aparelho (Freud [1891]1977, p. 66-7).

As reflexões até aqui apontadas permitem destacar que, diferentemente


da abordagem médica, proponho relativizar a concepção de sintoma com a noção
oriunda da psicanálise, em que o sintoma é tomado como algo que da ordem
daquilo que não se vê. Aquilo que não se vê pode ser pensado como o recalcado
para Freud, ou como significante da falta para Lacan. De qualquer maneira, é
sempre uma metáfora, uma substituição, algo que vem em lugar de. Essa noção
psicanalítica de sintoma contrasta com a mostração do “dar a ver”, oriunda da
clínica médica.
Não se pode, no entanto, negligenciar a instância do corpo, da voz, daquele
arcabouço orgânico e fisiológico que possibilita – ou não – que o sujeito fale.
Frente a um paciente que não fala, ou fala muito pouco, o clínico de linguagem
não pode, nem deve, descartar a investigação acerca daquilo que é um dos pré-
requisitos para que o sujeito fale.
Nesse sentido, podemos pensar nos desdobramentos da leitura do sintoma
histérico, o qual partiu de uma leitura médica, com Charcot, em que as histéricas
tinham que comprovar seu sintoma com o corpo. Diferentemente, as histéricas
escutadas por Freud o faziam com sua história (talking cure). Cabe lembrar
também Quinet (2000, p. 120), ao dizer que Freud descobre na análise das
histéricas que o sintoma se forma como os demais processos inconscientes
(como o sonho, o chiste e o lapso) porque tem exatamente a mesma estrutura.
Esse é um importante passo em direção à ruptura entre normal e patológico na
concepção de sintoma na psicanálise.
No campo da psicanálise, Freud ocupou-se de diferenciar aquilo que é da
ordem da pulsão (corpo) daquilo que é da ordem de representação (linguagem).
Foi então já desde a fundação da psicanálise que Freud tangenciou essa questão
cartesiana da divisão corpo e alma. Se a pulsão é da ordem do corpo, e a
representação é da ordem da linguagem, estamos lidando aqui com conceitos
limítrofes entre o corpo e a linguagem (somático e psíquico). E, particularmente
no caso da histeria, parece que algo que torna uma representação intolerável
retorna ao corpo.
Parece-me que, ao menos em alguma instância, a clínica de linguagem
lida simultaneamente com as duas formas (o corpo e a linguagem). A ela é
demandado um saber sobre o que não vai bem na linguagem, o que repercute
em uma indagação do lugar do funcionamento do arcabouço orgânico e das
implicações – ou não – do orgânico na ordem da linguagem. Se o caminho por
mim escolhido partiu de uma analogia com o deslocamento da escuta do sintoma
196
196
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Quando o sintoma é...

histérico por Freud, optarei por, a partir de agora, abordar a concepção de sintoma
na psicanálise e suas possíveis implicações sobre o conceito de sintoma para a
clínica de linguagem.
O sintoma, para a psicanálise, é uma formação do inconsciente. Segundo
Freud, entre as formações do inconsciente encontram-se o sonho, o lapso, o
chiste e o sintoma. Portanto, as mesmas regras que valem para o lapso, para o
sonho e para o chiste valem também para o sintoma. São todos formações do
inconsciente. E as formações do inconsciente têm simultaneamente duas
implicações: se por um lado, elas estabelecem sentido, por outro lado, elas
denunciam a emergência da falta.
Ao referir-se ao lapsus linguae (equívocos orais ou simplesmente lapsos),
Freud ([1901]1981, p. 788) diz que esses lapsos, observados no homem normal,
dão a mesma impressão que os primeiros sintomas daquelas parafasias que se
manifestam “sob condições patológicas”. Ou seja, a instância do “erro” é inerente
ao fato de o ser humano falar.
Freud, como se vê, já desde seus primeiros trabalhos enfatiza o quanto
são próprios do humano a imperfeição e o desassossego. No campo da linguagem
– que como se está podendo constatar – não anda longe do funcionamento do
inconsciente, a falha não é simplesmente necessária, ela é condição para seu
funcionamento. Partindo-se dessa consideração, a abordagem do sintoma na
clínica de linguagem passa a ser redimensionada.
Chama a atenção que Lacan, ao retornar aos textos freudianos das
formações do inconsciente, o faz pela via de Saussure, de Jakobson e,
indiretamente, de Benveniste. É já desde o início do Seminário 5, As formações
do inconsciente (Lacan [1957-58] 1999) que ele apresenta uma relação estreita
entre a psicanálise e os estudos linguísticos desses autores. Lacan aponta que
substituição e combinação são processos, movimentos da linguagem, que se
articulam de modo semelhante às formações do inconsciente. Ou seja, encontra-
se na estruturação sintática, na “escolha” lexical que realizamos na fala cotidiana,
um movimento semelhante ao movimento estrutural que se pode observar no
lapso, no chiste, no sonho, no ato falho e no sintoma de fala.
Ainda no seminário das Formações do inconsciente, ao discutir a questão
da relação do sujeito com a língua (que ali é chamada de “código”), Lacan lembra
do constitutivo que é para o sujeito e para a língua a noção de espaço, de falta.
A incompletude do sujeito pode também ser encontrada na língua em aspectos
bem primordiais, como o fato de um fonema definir-se por pura oposição a todos os
outros fonemas do sistema (um som é o que todos os outros não são). Essa é a lei
fundante da teoria do valor em Saussure, que abrange desde a relação de
diferenciação mínima entre os fonemas até a constituição de um enunciado longo.
197
Luiza Milano Surreaux

Sob efeito destes apontamentos, a escuta do sintoma de linguagem do


sujeito sofre necessariamente deslocamentos. Acredito que o sintoma de
linguagem só pode ser analisado ali onde ele se dá, ou seja, na fala do paciente
(e não fora dela, através de uma “higienização”, de um “tratamento dos dados”
alienado da instância clínica ou uma análise calcada na pura organicidade do
quadro), conforme Freud já apontava em relação ao chiste e às afasias.
Lacan ressalta algo já percebido por Freud, que é a função do Outro no
chiste. É a intervenção do Outro enquanto terceiro que constitui a tirada espirituosa
contida no chiste. Há, tanto no chiste, como no sintoma de linguagem, uma
violação do código. Isso desloca o Outro do seu lugar de leitura, mas ao mesmo
tempo é preciso que ele esteja lá para fazer essa leitura. O estudo dos chistes
é extremamente ilustrativo de um momento de compartilhamento de uma falta e
da consequente criação do novo. Uma analogia entre o chiste e o sintoma de
linguagem parece-me, portanto, inevitável.
Por isso também destaco o papel do clínico de linguagem que situa o
efeito da produção de linguagem de seus pacientes ora como sintoma, ora como
lapso, ora como chiste. Ele não deve tomar toda produção como sintomática,
pois não é pelo fato de ele ser paciente que todo enunciado por ele evocado deva
ser lido como desviante. Uma das conquistas mais belas na evolução de um
caso clínico é perceber o deslocamento que se dá do sintoma para o lapso ou o
chiste. Trata-se de uma mudança na relação do sujeito com a linguagem. Se,
na escuta do Outro, sua fala só é tomada no viés patológico, o paciente fica
praticamente desautorizado a enunciar desde um lugar que não o da fala
desviante. Assim, ao paciente, não é possível surpreender o Outro (terapeuta de
linguagem) nunca. Diferentemente, se é possível supor na fala do paciente –
porque é possível supor na fala de qualquer sujeito – um efeito de chiste, de
lapso ou de qualquer outra dinâmica do funcionamento da linguagem na vida
cotidiana, está-se a conceber a condição de falante do paciente, e não somente
sua situação de não falante (ou mau falante). Nesse sentido, Lacan ([1957-
58)]1999, p. 32) pergunta-se sobre o ato falho: “Será isso um ato falho ou um ato
bem sucedido? Uma derrapagem ou uma criação poética? Não sabemos. Talvez
seja tudo ao mesmo tempo”6.

6
Frente ao chiste do familionário, Lacan, assim como Freud, pergunta-se: será um neologismo,
um lapso, um chiste? Lacan aponta que o simples fato de se formular essa pergunta já introduz
uma ambiguidade do significante no inconsciente.

198
198
198
Quando o sintoma é...

Se o sintoma é a marca do sujeito, acredito que não se pode responder


ao pedido inicial (do paciente ou dos pais) de que o sintoma seja suprimido com
urgência. Esquece-se que, na maioria das vezes, o paciente já vive uma
identificação bastante forte com esse seu jeito de falar e que alterar a “forma”
com que ele se expressa tem implicações que muitas vezes não podemos
dimensionar de antemão.
Sintoma será tomado como manifestação sintomática, já que nem todas
as manifestações sintomáticas devem ser tomadas enquanto sintoma (no sentido
em que este é de estrutura). Trata-se de poder pensar a manifestação sintomática
como significante, na concepção lacaniana do termo, ou seja, articulada em
uma rede de significantes que representam algo (ainda que da ordem inconsciente)
da história do sujeito. Ou seja, não desconsidero o sinthoma, ao contrário,
sabendo que ele é o que constitui o estilo do sujeito, dou passagem à escuta do
sintoma de linguagem. Se considero que há sintoma (de linguagem) é porque ali
há sinthoma. O sintoma é desprovido de sentido apriorístico, que desconsidere
o enigmático que todo sintoma traz consigo.
Mas se sintoma pode evocar sofrimento, frente ao sofrimento no âmbito
da linguagem, o que faz com que alguns procurem um médico; outros, um
analista; outros, um clínico de linguagem? Pode-se tomar, por exemplo, a afonia
de Dora. Freud leu ali a impossibilidade de Dora suportar a relação de seu pai
com a Sra. K., frente ao assédio feito pelo esposo da amante de seu pai a Dora.
Freud aponta a disfonia de Dora como uma espécie de silenciamento sobre o
significado sexual do sintoma. E se Dora consultasse um otorrinolaringologista?
E se Dora procurasse um fonoaudiólogo7? Certamente a leitura de seu sintoma
tomaria rumos distintos.
A peculiaridade do sintoma para cada paciente faz Freud dizer que em
cada análise toda psicanálise deve ser refeita (um caso não servindo de modelo
para o outro). Essa reflexão freudiana permite-me dizer que a hipótese com que
trabalha a clínica de linguagem é renovada a cada caso clínico. Trata-se de
tomar o funcionamento específico da linguagem do paciente como interrogante,
algo como “reinventar” os destinos da clínica de linguagem frente ao instigante
que cada paciente evoca nessa clínica.

7
Lembro-me de uma colega fonoaudióloga que relatava o caso de uma paciente que teve rápidos
progressos na recuperação de uma afonia, mas logo após cai num quadro depressivo ao não se
reconhecer na “nova voz”.

199
Luiza Milano Surreaux

Minha intenção é investigar a pertinência da tomada do sintoma de


linguagem como uma manifestação da ordem de um ato criativo por parte do
sujeito, e isso é derivado de uma definição de linguagem que comporte o
funcionamento do que é irregular e de uma noção de sintoma que considere a
manifestação linguageira como algo próprio desse sujeito.
Se o ato falho e o chiste abalam, subvertem a ordem da linguagem, seja
na forma, seja no sentido, ou em ambos, e estou aqui apontando que o efeito
disso é um ato “bem sucedido”, o que pensar do sintoma de linguagem? Se o
ato está do lado da nomeação, da ata (daquilo que faz registro) quando se fala
em ato falho ou em chiste, ou simplesmente quando se fala em “vida cotidiana”,
porque não pensar nesses mesmos efeitos incidindo sobre a fala cotidiana do
sujeito que, ao falar, falha, produz um interrogante ao subverter a linguagem de
forma tão singular?
O chiste provoca o deslocamento do Outro de seu lugar de leitura, mas é
preciso que ele esteja lá para fazer a leitura. Quando se trata de um sintoma de
linguagem, o terapeuta de linguagem deve se ocupar justamente dessa tarefa:
ao mesmo tempo em que ele é aquele que testemunha essa violação do código
– deslocando-se de um lugar de saber apriorístico sobre a linguagem –, ele
também necessita estar frente ao paciente como instância que possibilite o
reconhecimento de uma leitura possível para aquela enunciação, que só pelo
fato de ser a enunciação de um sujeito, é única.
Assim como o Outro é condição para sancionar o chiste, é também o
terapeuta de linguagem que pode ocupar um lugar de alteridade, reconhecendo
o sintoma como ato criativo. A partir da subversão na linguagem do sujeito em
tratamento, o terapeuta de linguagem figura como aquele que intervém para
reconhecer ali uma fala como possível.
Há, como se pôde ver, uma característica comum entre sintoma de
linguagem e chiste: o “novo”, que brota tanto no chiste como no sintoma de
linguagem, escapa ao código. No entanto, há entre essas duas manifestações
de linguagem uma diferença fundamental. Enquanto o chiste traz consigo um
tom irônico, o sintoma de linguagem apresenta algo da ordem do sofrimento. A
subversão presente no sintoma de linguagem tem como especificidade causar
dificuldades ou impedimento para o sujeito se comunicar com seus pares.
Enquanto no chiste trata-se de um não-dito compartilhado, que provoca
prazer, no sintoma de linguagem trata-se de um não-dito irredutível, como radical
alteridade, o que, por sua vez, provoca sofrimento.
No chiste, a falta compartilhada provoca uma leitura que tem efeito
simbólico. No sintoma de linguagem há também algo da instância da falta em
jogo, mas a questão é que essa falta muitas vezes resulta numa não leitura, que
200
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Quando o sintoma é...

recai sobre o real. Se ambos evocam a falta, pode-se dizer que a falta evocada
pelo chiste convoca uma leitura que opera no terreno do simbólico. Já na esfera
do sintoma de linguagem, a falta evoca uma não leitura por conta do
estranhamento que vem à tona. Essa não leitura recai sobre o real que o sintoma
evoca. Ou seja, ela atualiza o mal-estar da fala sintomática como pura coisa,
um resto que “cai” quando o outro escuta guiado somente pelo estranhamento
(“isso não pertence ao código”).
Na clínica, pode-se pensar que o terapeuta de linguagem imprime a leitura
(escuta/leitura) do sintoma como tentativa de abordar o real através do simbólico.
Esse papel de leitor que cabe ao terapeuta de linguagem implica poder movimentar
algo que desde sua repetição não tem possibilidades de deslocamento. É
justamente uma leitura que propicia a construção de novas redes de significação
para um dizer que soa como “não-comunicante” que pode provocar uma ruptura
na insistência do sintoma. E essa possibilidade de escapar da repetição
sintomática necessariamente passa pela brecha da enunciação.
Dizemos que o ato implica um começo. Essa característica dá ao ato a
impressão de criação, de algo novo. É também nesse sentido que proponho
pensar o sintoma de linguagem como ato, como ato criativo. Se a clínica de
linguagem se permitir tomar o sintoma pelo viés dessa impressão de criação, na
qual o sintoma aproxima-se da estrutura de funcionamento de outras subversões
da linguagem (como o chiste ou o ato falho), acredito que o encaminhamento do
trabalho clínico nesse campo possa se desenvolver de forma bem mais próxima
daquela do dia-a-dia ou da fala cotidiana dos pacientes, que também estão por
aí produzindo seus atos falhos sem terem a chance de serem tomados como
produções bem sucedidas. O que irrompe de novo na fala do paciente tem lógica
própria, que merece ser analisada e abordada por um viés que considere esse
material discursivo como combinação singular bastante peculiar, aquela que
está sendo possível para aquele sujeito, naquele momento, mesmo tendo como
pano de fundo a regularidade do funcionamento da língua. O que se está a
propor aqui é a tomada do sintoma de linguagem como uma combinação singular,
que se considerada como ato criativo (e não como puro “erro”), pode proporcionar
alternativas bastante originais para a fala dos pacientes em atendimento.
Qual então o papel do terapeuta de linguagem? Também será na via freudo-
lacaniana que inicio uma resposta. Como tentei ilustrar, Freud (e Lacan, em sua
releitura), em Interpretação dos sonhos ([1900] 1981) Psicopatologia da vida
cotidiana (1901[1981]) e O chiste e sua relação com o inconsciente (1905 [1981]),
apresenta múltiplos exemplos em que o lapso e o chiste passam a ter uma
leitura possível através do Outro, que escuta e reconhece aquela formação
linguageira como tendo um sentido possível. Possível, apesar de infringir, violar

201
Luiza Milano Surreaux

a ordem prevista pelo código. Acredito que é de um lugar semelhante a esse que
se trata a posição de escuta do terapeuta de linguagem. Ele seria aquele que
escuta a produção criativa de seu paciente desde um lugar de suporte. Mas aqui
entra em cena uma especificidade da escuta na clínica de linguagem. A noção
de suporte é por mim aqui sugerida nas suas duas conotações, muito próprias
à clínica de linguagem. Por um lado, o terapeuta sustenta aquela fala subversiva
para reconhecer em seu paciente um falante, ou seja, imaginariza um lugar de
falante para aquele que vem sendo considerado não falante (ou mau falante),
criando um contexto em que se considera o paciente como um par em posição
de enunciação. Nesse sentido, a noção de suporte está fortemente ancorada no
respaldo linguístico que o clínico deve ter. Para que ouse atribuir a uma massa
amorfa de sons e sentidos a possbilidade de constituir signo linguístico, o
terapeuta de linguagem precisará mobilizar seu conhecimento acerca da estrutura
e do funcionamento da língua. A segunda conotação do termo aponta para o fato
de que o terapeuta de linguagem ao mesmo tempo suporta8, às vezes por muito
tempo, a repetição de uma fala sintomática até o momento em que o sujeito
dela conseguir se apropriar e produzir deslocamentos, fazendo uso criativo de
seu sintoma, ou seja, se permitir falar. E é dessa possibilidade de tomar o
sintoma como uma combinação singular, efetuando uma escuta que reconheça
e suporte o novo que brota na singularidade dessa fala que se ocupa o terapeuta
de linguagem.

REFERÊNCIAS
FREUD, Sigmund. A interpretação das afasias [1891]. Lisboa: Edições 70, 1977.
_______ La interpretación de los sueños [1900]. In: ______. Obras completas de
Sigmund Freud – Tomo I. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981.
_______ Psicopatologia de la vida cotidiana [1901]. In: ______.Obras completas de
sigmund Freud – Tomo I. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981.
_______ El chiste y su relación con lo inconsciente [1905]. In: ______. Obras
completas de Sigmund Freud – Tomo I. Madrid: Biblioteca Nueva , 1981.
GARCIA-ROZA, Alfredo. Introdução à metapsicologia freudiana – 1, Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2001.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente [1957-1958].
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
______.Seminário 23 – O sinthoma (1975-1976). Mimeo.

8
O terapeuta de linguagem suporta o real que essa fala atualiza, ele suporta sua angústia.

202
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202
Quando o sintoma é...

______ El seminario sobre La carta robada. In: ______. Escritos 2. Buenos Aires:
Siglo Veintiuno Ed, 1987.
POE, E.A. A carta roubada. In: ______. Histórias extraordinárias. São Paulo: Abril
Cultural, 1981.
QUINET, A. A descoberta do inconsciente – do desejo ao sintoma. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2000.

Recebido em 22/03/2012
Aceito em 06/05/2012
Revisado por Sandra D. Torossian

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NORMAS PARA PUBLICAÇÃO

I APRECIAÇÃO PELO CONSELHO EDITORIAL


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torial da Revista e consultores ad hoc, quando se fizer necessário.
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tos do autor, serão indicadas por algarismos arábicos ao longo do texto.

IV REFERÊNCIAS E CITAÇÕES
No corpo do texto, a referência a autores deverá ser feita somente menci-
onando o sobrenome (em caixa baixa), acrescido do ano da obra. No caso de
autores cujo ano do texto é relevante, colocá-lo antes do ano da edição utiliza-
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Ex: Freud ([1914] 1981).
As citações textuais serão indicadas pelo uso de aspas duplas, acresci-
das dos seguintes dados, entre parênteses: autor, ano da edição, página.

V REFERÊNCIAS
Lista das obras referidas ou citadas no texto. Deve vir no final, em ordem
alfabética pelo último nome do autor, conforme os modelos abaixo:
OBRA NA TOTALIDADE
BLEICHMAR, Hugo. O narcisismo; estudo sobre a enunciação e a gra-
mática inconsciente. 2. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente
[1957-1958]. Rio de Janeiro: J. Zahar Ed., 1999.

PARTE DE OBRA
CALLIGARIS, Contardo. O grande casamenteiro. In: CALLIGARIS, C. et
al. O laço conjugal. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1994. p. 11-24.
CHAUI, Marilena. Laços do desejo. In: NOVAES, Adauto (Org). O desejo.
São Paulo: Comp. das Letras, 1993. p. 21-9.
FREUD, Sigmund. El “Moises” de Miguel Angel [1914]. In: ______. Obras
completas. 4. ed. Madrid: Bibl. Nueva, 1981. v. 2.

ARTIGO DE PERIÓDICO
CHEMAMA, Roland. Onde se inventa o Brasil? Cadernos da APPOA,
Porto Alegre, n. 71, p. 12-20, ago. 1999.
HASSOUN, J. Os três tempos da constituição do inconsciente. Revista
da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, n. 14, p. 43-53, mar.
1998.

ARTIGO DE JORNAL
CARLE, Ricardo. O homem inventou a identidade feminina. Entrevista
com Maria Rita Kehl. Zero Hora, Porto Alegre, 5 dez. 1998. Caderno Cultura,
p. 4-5.

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
KARAM, Henriete. Sensorialidade e liminaridade em “Ensaio sobre a
cegueira”, de J. Saramago. 2003. 179 f. Dissertação (Mestrado em Teoria Lite-
rária). Faculdade de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul, Porto Alegre. 2003.

TESE DE DOUTORADO
SETTINERI, Francisco Franke. Quando falar é tratar: o funcionamento da
linguagem nas intervenções do psicanalista. 2001. 144 f. Tese (Doutorado em
Linguística Aplicada). Faculdade de Letras, Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 2001.

DOCUMENTO ELETRÔNICO
VALENTE, Rubens. Governo reforça controle de psicocirurgias. Disponí-
vel em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff01102003 23.htm>. Acesso
em: 25 fev. 2003.
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