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LE GUIN, Ursula K. (1990). “The Carrier Bag Theory of Fiction.” In Dancing at the
Edge of the World: Thoughts on Worlds, Women, Places. New York: Harper
Perennial.
Tradução provisória de Juliana Fausto, favor não citar.
Nas regiões temperadas e tropicais onde parece que hominídeos evoluíram até
seres humanos, a comida principal da espécie era vegetal. Entre 65 e 80% do que os seres
humanos comiam naquelas regiões nos tempos paleolítico, neolítico e pré-histórico era
coletado; somente no extremo Ártico a carne era um alimento básico. Os caçadores de
mamute ocupam de forma espetacular a parede da caverna e a mente, mas o que nós
realmente fizemos para nos manter vivos foi coletar sementes, raízes, brotos, folhas,
castanhas, bagas, frutas e grãos, juntando insetos e moluscos e pegando, com redes e
arapucas, pássaros, peixes, ratos, coelhos e outras pequenas presas para aumentar a
quantidade de proteína. E nós nem trabalhamos duro nisso – muito menos duro que os
camponeses se escravizando nos campos de outra pessoa depois que a agricultura foi
inventada, muito menos duro que os trabalhadores assalariados desde que a civilização
foi inventada. A pessoa pré-histórica mediana podia ganhar bem a vida com uma semana
de cerca de quinze horas de trabalho.
Quinze horas por semana deixam um bocado de tempo para outras coisas. Tanto
tempo que talvez os inquietos que não tinham um bebê por perto para animar-lhes a vida,
ou habilidade para cozinhar ou cantar, ou pensamentos muito interessantes para pensar,
decidiram sair de fininho e caçar mamutes. Os hábeis caçadores então voltavam de modo
impressionante com uma carga de carne, um monte de marfim e uma estória. Não era a
carne que fazia a diferença. Era a estória.
É difícil fazer um relato cativante sobre como tirei uma semente de aveia selvagem
de sua casca, e depois outra, e depois outra, e depois outra, e depois outra e depois cocei
minhas mordidas de mosquito, e Ool disse algo engraçado, e fomos até o riacho beber
água e olhamos salamandras por um tempo, e depois encontramos outro campo de
aveias... Não, não se compara, não pode competir com como eu empurro minha lança nas
profundezas do flanco titânico e cabeludo enquanto Oob, impalado em uma enorme presa
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Aquela estória não tem apenas Ação, ela tem um Herói. Heróis são poderosos.
Antes de você se dar conta, os homens e as mulheres nos campos de aveia selvagem e
seus filhos, e as habilidades dos fazedores, e os pensamentos dos pensadores, e as canções
dos cantores são todos parte dela, foram todos forçados para dentro do conto do Herói.
Mas essa estória não é deles. É dele.
Se você não tem algo no qual colocar, a comida irá lhe escapar – mesmo algo tão
pouco combativo e engenhoso quanto uma aveia. Você coloca tantas quanto consegue em
seu estômago enquanto elas estão a mão, esse sendo seu primeiro recipiente. Mas o que
fazer amanhã de manhã quando acordar e estiver frio e chovendo e não seria bom ter
alguns punhados a mais de aveia para mastigar e dar à pequena Oom para fazê-la se calar,
mas como você conseguiria levar para casa mais que um estômago cheio e um punhado?
Então você se levanta e vai ao maldito e encharcado campo de aveia na chuva, e não seria
uma coisa boa se vocês tivesse algo em que colocar o bebê Oo Oo para que pudesse colher
as aveias com ambas as mãos? Uma folha uma cabaça uma concha uma bolsa uma faixa
um saco uma garrafa uma panela uma caixa um recipiente. Um suporte. Um receptáculo.
É o que diz Elizabeth Fisher em Women’s Creation (McGraw-Hill, 1975). Mas não, não
pode ser. Onde está aquela coisa maravilhosa, grande, longa, dura, um osso, eu acho, com
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que o Homem Macaco primeiro esmagou alguém no filme, e então, grunhindo em êxtase
por ter conquistado o primeiro assassinato próprio, lançou para o céu, e rodopiando ali
tornou-se uma nave espacial penetrando seu caminho até o cosmos para fertilizá-lo e
produzir ao fim do filme um feto adorável, um menino, claro, à deriva pela Via Láctea
sem (estranhamente) nenhum útero, nenhum tipo de matriz? Eu não sei. Nem me importo.
Não estou contando essa estória. Nós já a ouvimos, já ouvimos tudo sobre paus e lanças
e espadas, as coisas de esmagar e espetar e de bater, as coisas longas e duras, mas não
ouvimos a respeito da coisa de por coisas dentro, do recipiente para a coisa contida. Essa
é uma estória nova. Isso é novidade.
E, mesmo assim, antiga. Antes – uma vez que você pensa nisso, certamente muito
antes – da arma, uma ferramenta tardia, luxuosa, supérflua; muito antes da utilidade de
faca e machado; bem ali com com os indispensáveis batedor, moedor e cavador – pois
qual a utilidade de cavar um monte de batatas se você não tem no que arrastar para casa
aquelas que não consegue comer –, junto ou antes da ferramenta que força a energia para
fora, nós fizemos a ferramenta que traz energia para casa. Faz sentido para mim. Sou
adepta do que Fisher chama de Teoria da Bolsa da evolução humana.
Esta teoria não apenas explica grandes áreas de obscuridade teórica e evita grandes
áreas de nonsense teórico (habitadas em grande parte por tigres, raposas e outros
mamíferos altamente territoriais); ela também me alicerça, pessoalmente, na cultura
humana de um modo como jamais me senti alicerçada. Sempre que a cultura foi explicada
como tendo se originado e elaborado a partir do uso de objetos longos e duros para furar,
esmagar e matar, nunca pensei que tinha ou queria ter qualquer parte nisso. (“O que Freud
interpretou mal como sua falta de civilização é a falta de lealdade da mulher à
civilização”, Lilian Smith observou). A sociedade, a civilização de que eles falavam,
esses teóricos, era evidentemente a deles; eles a possuíam, eles gostavam dela; eles eram
humanos, inteiramente humanos, esmagando, furando, penetrando, matando. Também
querendo ser humana, procurei por evidências de que eu o era; mas se era isso que era
preciso, fazer uma arma e matar com ela, então evidentemente eu era ou extremamente
defeituosa como ser humano ou não era humana de todo.
É isso aí, eles disseram. O que você é é uma mulher. Possivelmente não humana
de todo, certamente defeituosa. Agora fique quieta enquanto continuamos contando a
Estória da Ascensão de Homem o Herói.
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Se é uma coisa humana colocar algo que você quer, porque é útil, comestível ou
belo, em uma bolsa ou em uma cesta ou em um pouco de casca de árvore ou folha ou em
uma rede tecida com seu próprio cabelo ou com o que você tiver, e então levar para casa
consigo, casa sendo outro tipo, maior, de sacola ou bolsa, um recipiente para pessoas, e
depois mais tarde tirar e comer e compartilhar ou guardar para o inverno em um recipiente
mais sólido ou colocar na bolsa xamânica ou no santuário ou no museu, o lugar sagrado,
a área que contém o que é sagrado, e então no dia seguinte fazer provavelmente tudo de
novo – se fazer isso é humano, se é isso que é preciso, então eu sou um ser humano afinal
de contas. Inteira, livre, alegremente, pela primeira vez.
Não, que se diga de uma vez, um ser humano não agressivo e não combativo. Eu
sou uma mulher brava que envelhece, deambulando altivamente com minha bolsa de mão,
lutando contra bandidos. Entretanto nem eu nem ninguém me considera heroica por fazer
isso. Essa é só uma daquelas malditas coisas que você tem que fazer para continuar
coletando aveias selvagens e contando estórias.
Às vezes parece que essa estória está chegando ao fim. Para que não deixe de
haver estórias sendo contadas, alguns de nós aqui nas aveias selvagens, entre o milho
estrangeiro, achamos que seria bom começarmos a contar ainda outra, uma com a qual as
pessoas possam prosseguir uma vez que a antiga esteja terminada. Talvez. O problema é
que todos nós nos deixamos tornar parte da história do matador e, assim, talvez todos
terminemos junto com ela. Por isso é com um certo sentido de urgência que procuro
natureza, sujeito, palavras da outra história, a não contada, a estória da vida.
Ela não é familiar, não vem fácil, impensadamente até os lábios como a história
do matador; mesmo assim, “não contada” foi um exagero. As pessoas vêm contando a
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estória da vida por eras, com todos os tipos de palavras e modos. Mitos de criação e
transformação, estórias de trickster, contos populares, piadas, romances...
Eu divirjo de tudo isso. Não iria tão longe a ponto de dizer que a forma natural,
própria e adequada do romance é aquela de um saco, uma bolsa. Um livro guarda
palavras. Palavras guardam coisas. Elas carregam sentidos. Um romance é uma bolsa
xamânica, guardando coisas em uma relação particular e poderosa umas com as outras e
conosco.
Uma relação entre elementos no mesmo romance pode bem ser aquela do conflito,
mas a redução da narrativa ao conflito é absurda. (Eu li um manual de redação que dizia
“Uma estória deve ser vista como uma batalha” e continuava falando de estratégias,
ataques, vitória etc.). Conflito, competição, estresse, luta etc. dentro da narrativa
concebida como uma bolsa/barriga/caixa/casa/bolsa xamânica podem ser vistos como
elementos necessários de um todo que em si mesmo não pode ser caracterizado como
conflito ou harmonia, já que seu propósito não é nem a resolução nem a estase, mas um
processo contínuo.
Finalmente, está claro que o Herói não fica bem nesta bolsa. Ele precisa de um
palco ou de um pedestal ou de um pináculo. Você o coloca em uma bolsa e ele fica
parecendo um coelho, uma batata.
É por isso que gosto de romances: em vez de heróis, eles têm gente dentro.