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I A ESCOLARIZAÇÃO DE

CRIANÇAS
1
"COM DGD"

L e a n d r o de Lajonquière

^^3^ tema proposto para a aula para essa questão - por exemplo, um
de hoje é "a escolarização da criança método de ensino ou de escolarização,
com DGD". Como sabemos, segundo os então, essa pessoa estaria em posse da
parâmetros dos organismos mundiais resposta a um dos mistérios de nossas
de saúde, essa sigla significa distúrbios vidas.
globais do desenvolvimento. Essa no- Como assim? Vejamos.
menclatura encobre, de certa forma, a- Educar significa metaforicamente
quilo que poderia, a princípio, ser con- endireitar, no sentido de que toda edu-
siderado como sendo o conjunto dos cação visa à colocação em ato de um
fenômenos próprios do campo da psi- reconhecimento - o educando é reco-
cose ou do autismo na infância. Dessa nhecido, na proporção do sucesso
forma, caberia observar que, quando educativo, como semelhante Em ou-
nos perguntamos pela escolarização de tras palavras, aquele que educa reco-
crianças com DGD, estamos, de fato, nhece o outro, bem como se reconhece
nos interrogando sobre a escolarização a si próprio no outro, visto que o cha-
de crianças psicóticas ou autistas ou, mado bom educando ao fazer as vezes
em outras palavras, sobre a educação de um espelho que nos retorna uma
no campo da psicose e do autismo na imagem em foco de nós mesmos, ganha
infância. Nesses termos, parece-me para si uma marca que o endireita na
que a formulação de partida foge um vida. Diga-se de passagem que, na vida
pouco do empirismo inerente à reflexão cotidiana, quando predicamos de al-
(psico)pedagógica hegemônica. guém que "é um mal-educado" estamos
Neste contexto, afirmo que se al- afirmando que esse outro nos devolve
guém declarasse possuir uma solução uma imagem fora-de-foco de nós mes-

• Psicanalista; doutor em Educação pela Unicamp.


Atualmente é professor do Depto. de Filosofia e Ciências da
Educação da USP, e pesquisador do CNPq.
mos, ao ponto tal de não podermos nos reconhecer nele, bem
como lhe outorgar o estatuto de semelhante.
Assim, poder-se-ia concluir -permitindo-nos certa ligeireza de
raciocínio- que "educar uma criança autista ou psicótica" é fazer
que ela deixe de ser, precisamente, autista ou psicótica, uma vez
que, nào é pouco provável, que perante um autista ou um psicóti-
co venhamos a formular uma pergunta, qual seja: este aqui é gente
ou um extraterrestre? A maioria de nós -neuróticos comuns- expe-
rimentamos certo espanto perante esses quadros, pelo fato de não
podermos reconhecer, nesse que está na nossa frente, um semel-
hante. Por sinal, é a não-semelhança desse outro que atiça, até o
paroxismo, todo tipo de vocação pedagógica ou endireitadora no
âmbito da dita educação especial. Isto é, a tentação de converter
em familiar esse outro que nos aparece enquanto outro- radical.
Nesse sentido, interrogarmo-nos sobre a escolarização de cri-
anças com DGD é como estar nos perguntando sobre o mistério de
como é que nós tornamo-nos aquilo que nós somos, isto é, sujeitos
do desejo inconsciente sempre âs voltas com o seu reconhecimen-
to simbólico e a "relação" com os semelhantes. Ou, em outros ter-
mos, eqüivale a se colocar a questão da cura do autismo ou da psi-
cose, na medida em que algo da educação nestes casos passa pela
"conversão" desses outros em neuróticos corriqueiros. Obviamente,
estou me permitindo algumas imprecisões, para assim, poder ini-
ciar nossa reflexão.
Em poucas palavras, caberia afirmar que estamos interessados
na educação desses que nos aparecem como diferentes, bem como
que pressupomos que aquela deve consistir em possibilitar o ad-
vento dessas crianças, autistas ou psicóticas, enquanto semelhan-
tes, ou seja, que a educação deve visar à instalação da lógica sui
generis de funcionamento desejante que define, precisamente, o
campo das neuroses -como sabemos, temos o hábito, talvez ques-
tionável, de articularmos uma espécie de nosografia psicanalítica
tomando como referência o campo da neurose.
Isso posto, podemos dizer que, nesses casos, a clínica analíti-
ca e o processo educativo apontam, até certo ponto, numa mesma
direção. Qual? Pois bem, aquela de vir a sustentar o surgimento,
aí, onde nào há, ou seja, onde deveria haver e não há, um sujeito
do desejo -um sujeito do recalque. Assim sendo, estamos, pois,
colocando a pergunta acerca das condições necessárias para que a
educação venha a ser, neste domínio, uma educação terapêutica e
não uma ortopedia (psico)pedagógica 3.
Cabe assinalar que aquilo que a psicanálise tem a dizer sobre
o particular se situa na antípoda do que a(s) psicologia(s) mais ou
menos clássica(s) sustenta(m) a esse respeito. Por que? Que papel
desempenha a psicologia no campo da educação especial? Ela
reclama para si o direito de explicar como o diferente não é mais
do que um desviopsico-maturacional. São as famosas caracteriza-
ções e avaliações que permitem predicar com desenvoltura: "este
é um DV, aquele é um DGD... etc.". homogeneizar o campo subjetivo des-
Assim, à psicologia competiria dizer do membrando a lógica educativa, a ponto
que trata essa diferença, isto é, outorgar de visar, sem licença poética alguma, o
uma espécie de conhecimento que pos- endireitamento das diferenças ou sin-
sibilite reduzi-la pedagogicamente, pois gularidades psíquicas, ou seja, a fabri-
o objetivo de toda educação é fazer da cação de replicantes. No entanto, o pro-
diferença uma semelhança. No entanto, cesso educativo é inerente â nossa
cabe observar que esse é apenas o constituição neurótica, uma vez que há
objetivo visado pela educação, pois ou- alguma coisa da ordem da articulação
tra coisa diferente é o que acontece no desejante que, ao tempo que se ins-
nível cios resultados. creve como resto, não cessando de não
A educação é sumamente parado- se realizar em nossa vocação educati-
xal - aliás, como todo e qualquer pro- va, não cessa de se inscrever nas ilusões
cesso subjetivo. Ao mesmo tempo que pedagógicas. Justamente, as ilusões pe-
tem por objetivo a fabricação de um dagógicas têm por função o mascara-
semelhante, o processo encerra em si mento da impossibilidade de toclo ato
mesmo uma limitação. Isto é, gera uma educativo vir a produzir clones, isto é,
semelhança mas instala, também, uma igualdades no lugar de semelhantes
diferença e, portanto, o educando nun- sempre mais ou menos fora de foco.
ca chega a ser o "educado" que se es- Em resumo, enquanto a educação nào
perava, pois sempre lhe faltará um pode não nos assemelhar um pouco, o
pouco para ser uma réplica de seu discurso (psico)peclagógico hegemcini-
mestre circunstancial. Em outras pala- co visa a clonagem no real.
vras, a educação tem por mérito re-ins- Dessa forma, é fácil entendermos
crever a diferença que estava na origem o por quê de alguns colegas se auto-
do processo ou, se preferirmos, em cau- apresentarem como profissionais que se
sa no ato educativo. dedicam, excludentemente, â "peda-
Se olhamos para trás, através das gogia do DV", "do DA", "do DGD", etc.
gerações, poderíamos dizer que em Eato que ilustra a crença na existência
alguma coisa todos nos parecemos e de diferentes formas ou procedimentos
em alguma coisa somos diferentes. para fabricarmos réplicas a partir de
Entre nossos pais e nós, há algo que diversas realidades ou essências psico-
permanece, bem como outra coisa que biológicas.
difere. Por que a educação especial pres-
Pois bem, enquanto todo ato edu- supõe que haveria diferentes procedi-
cativo acaba não podendo menos que mentos técnicos dependendo da parti-
articular esse paradoxo, a pedagogia, e cular condição psico-biológica das cri-
mais ainda a pedagogia de nossos dias, anças? Por que a psicologia pensa que
pretende a nâo-presentificação, precisa- pode, por sua vez, oferecer à pedagogia
mente, desse resto processual. Nesse algum conhecimento sobre esses esta-
sentido, afirmamos que a pedagogia é, dos e, portanto, a possibilidade de for-
em termos freudianos, uma grande ilu- mular intervenções que conduzam à
são, ou seja, uma crença animada por fabricação de (pseudo) semelhanças?
um desejo. Qual? Aquele de fabricarmos Porque ambos os campos epistêmicos,
cópias ou clones de nós mesmos. Em tipicamente modernos, acreditam que
outras palavras, a pedagogia de hoje - somos indivíduos, isto é, organismos
e, de forma particular, a pedagogia dita que nos adaptamos ao meio na pro-
especial - almeja, em última instância, porção de nossas capacidades matura-
cionais, bem como do grau de estimulações gratificantes e frus-
trantes recebidas. Dessa forma, se "fulano é DV", "DM" ou "DGD",
por exemplo, supõe-se que estamos em presença de manifestações
qualitativamente diferentes das diversas capacidades maturacionais
em jogo. Supõe-se que uns devem ter imatura ou atrofiada uma
capacidade em especial, enquanto outros uma outra diferente.
Temos, entào, que cada uma dessas siglas corresponderia a um
estado maturacional de partida diferente de alguma das famosas
capacidades. Assim, caberia à psicologia avaliar cada caso para ver-
ificar se ao campo fenomênico observado lhe corresponde uma ou
outra sigla relativa a uma entidade psico-maturacional. Por outro
lado, à empresa educativa caberia a tarefa de estimular cada uma
das capacidades que se supõem atrofiadas ou retardadas na
origem. Por exemplo, a educação dos surdos, desde o final do
século passado até poucas décadas atrás, estava, precisamente,
centrada na tentativa de resgatar, a qualquer preço e em primeiro
lugar, essa diferença sensorial que está na origem Assim, até que
a criança surda nào aprendesse a "falar", ficava suspensa toda ini-
ciativa escolar. Logo, apagada essa diferença, poderia vir o resto:
ler e escrever, aprender a calcular, aprender a pôr carta no correio,
ir ao supermercado, e assim por diante.
Sendo hegemônico esse raciocínio no campo da educação
especial, a diferença entre a educação regular e a dita especial
passa a ser pensada como da ordem da quantidade das capaci-
dades maturacionais a serem estimuladas, no intuito de conseguir
uma homogenizaçào das produções subjetivas, bem como da
paciência profissional requerida nessa empresa.
Pois bem, a partir da psicanálise essa forma de raciocinar é
questionada, uma vez que é subvertida a noção clássica de indiví-
duo. Nào há dúvidas de que o organismo possui suas leis bio-
lógicas, mas o sujeito do qual fala a psicanálise é outro; como sabe-
mos, esse sujeito é o sujeito do desejo. Desse modo, enquanto a psi-
cologia condena a maioria dos colegas que trabalham em educação
especial à quantificação da diferença psico-maturacional suposta-
mente existente entre um "DA", um "DGD", dentre outros, parece-
me que a psicanálise nos possibilita re-centrar eticamente a lógica
educativa. Isso nào significa que seja sem interesse que alguns, por
exemplo, "ouçam" e outros nào, e sem que o desdobramento do
processo educativo nào responde a uma lógica maturacional. Os
efeitos educativos, isto é, a inscrição de marcas de semelhança -
marcas que, à medida que endireitam, assemelham - dependem da
possibilidade de virmos a colocar em ato um processo de recon-
hecimento que carrega em si mesmo a possibilidade de re-inscrev-
er, paradoxalmente, a diferença que está em causa na origem.
Educar é vir a sustentar a articulação permanente desse paradoxo.
Assim, enquanto a pedagogia hegemônica sustenta que a educação
neste campo deve passar pela estimulaçào "especial", paciente e
metódica, das clássicas capacidades, em virtude do estado matu-
racional cie partida, a subversão possi-
bilitada pela psicanálise nos permite, ao
contrário, afirmar que rima com o dese-
jo, na medida em que a díade semel-
hança/diferença, articulada em todo ato
educativo, exprime o paradoxo mesmo
do desejo - aquele que alguns filósofos
chamam de repetição e diferença. Nesse
sentido, trata-se, no âmbito que nos
ocupa - a educação com crianças autis-
tas e psicóticas - de vir a sustentar o
processo educativo aí onde ele, a
princípio, não funciona "auto-
maticamente", na medida em que o dito
educando não estaria tomado numa
lógica desejante.
Como se constitui o sujeito do
desejo? Como pode ser observado, o
fato de colocarmos a questão em ter-
mos de constituição pressupõe que não
é, precisamente, um dado, mas um
efeito.
O sujeito do desejo é o efeito de
um processo de defesa perante uma
falta. Essa falta é aquilo que ecoa como
ausência na demanda do Outro. Por-
tanto, o sujeito é o efeito de um proces-
so de agenciamento de saber sobre essa
falta no Outro
Como sabemos, o Outro primor-
dial, que uma mãe sabe sustentar,
demanda. Por outro lado, o pequeno se
posiciona perante elas. Como? Tentando
se alocar como objeto dessas demandas.
No entanto, logo coloca-se o problema
seguinte: se ele se posiciona apenas
como objeto de satisfação dessas
demandas, isto é, como objeto de gozo
desse Outro pulsional ...
# alguém do público intervém e
diz: tá ferrado!
Bom, isso vai depender do desen-
rolar da história. O que devemos ter
claro é que um primeiro destino neces-
sário é colocar-se corno objeto das de-
mandas maternas. Justamente, o efeito
sujeito será "aquilo" resultante de um
processo de defesa perante a demanda,
isto é, de um processo de anteparo pe- quer, vou fazer tal coisa...". Isso é inte-
rante o pulsionar do Outro. ressante, porque o mesmo Outro que
O que se afunila nessa série de .demanda é quem outorga também os
demandas do Outro primordial? Se o retalhos de saber, ou seja, que dõa signi-
Outro demanda é porque está em falta. ficantes, matéria prima do saber incons-
Então, aquilo que se afunila no hori- ciente. Em resumo, é esse quem "ensina"
zonte recortado por essa série de de- ao pequeno como se arranjar com o
mandas é o fato de que o Outro está em desejo.
falta, isto é, está castrado. Portanto, se Ensinar é colocar em signos, isto é,
perante as demandas primordiais, o é mostrar. Assim, o Outro que deman-
"sujeito" se aloca na posição de objeto, da, mostra, sem saber, quais são as car-
então ele virá a se constituir como su- tas. Em outras palavras, o Outro "colo-
jeito na medida em que se defenda disso ca" à disposição do pequeno os signifi-
que nelas se afunila como sendo o dese- cantes para que construa um saber, uma
jo do Outro, a castração no Outro. ficção. Um saber ficcional sobre essa
Defender-se é poder agenciar um certo origem, sobre como responder a esta
saber sobre o desejo, sobre a falta no demanda do Outro. No entanto, não
Outro. Em outras palavras, é como se o devemos esquecer que o Outro tem que
infans dissesse alguma coisa deste teor: pedir e também ofertar.
"tudo bem, ela nào me qtier enquanto O Outro transmite uma amostra de
pedaço de carne; na realidade, quer que saber que marca para a criança os limi-
seja tal coisa". Isto é, a criança antepõe tes de um lugar possível. Assim, o ensi-
ao desejo do Outro uma espécie de nado funciona como uma marca, um
coágulo de saber. O outro não lhe quer traço. Na medida em que o pequeno
enquanto pedaço de carne, ou seja, a pega este traço, gruda-se a ele, ou seja,
sua condição objetai nào basta. O Outro aliena-se nesse traço que o assemelha
quer determinadas produções imagi- ao adulto que encarna o Outro. O
nárias, quer que venha a dar susten- assemelha na medida em que responde
tação a determinadas insígnias fálicas. parcialmente à demanda deste Outro. O
Então, podemos afirmar que o problema é que na tradução ou na tran-
sujeito do desejo resulta da defesa pe- scrição deste traço de "um lado" do
rante a demanda. Mas o problema é o campo do Outro para "um outro lado"
seguinte: de onde o sujeito que se cons- cai um resto. Como sabemos, em toda
titui enquanto tal retira esses retalhos de tradução de uma língua para outra há
saber inconsciente para poder agenciar uma perda. Esse resto é, precisamente,
uma resposta singular a respeito do que a diferença.
o Outro quer dele? Pois bem, nào pode Resumindo, em toda tentativa de
tirar um saber do seu próprio umbigo, transmissão alguma coisa se transmite;
ou seja, nós não trazemos uma carga mais ainda, o transmitido - um traço -,
genética de saber nesse sentido. Justa- assemelha, endireita, isto é, educa,
mente, o sujeito extrai e recorta esses endireita àquele que aparece como di-
saberes parciais para poder construir ferente, torna-o semelhante; porém,
uma resposta ao desejo do Outro, res- numa outra instância o torna diferente,
posta que funcione como um anteparo, pois o saber, agenciado por aquele em
que aponte a uma modalizaçào da posição de educando, revela-se parcial,
demanda. Seria como se a criança clizes- ou seja, nào constitui uma resposta con-
se "pare aí!... nào me seqüestre, eu vou clusiva à pergunta pelo desejo do Ou-
lhe dar outra coisa, aqtiilo que você tro. Assim temos que o sujeito, efeito da
operação de defesa da falta no Outro, sustentar uma instância educativa re-
leva consigo a diferença que estava no nunciando à noção de indivíduo em
ponto de partida. A diferença se re- torno da qual gravitam todas as ilusões
inscreve ad infinitum ou como diria pedagógicas. Em suma, trata-se de sus-
Deleuze, desdobra-se. tentar uma experiência subjetivante
Estamos nos perguntando por sendo, apenas, educadores e não peda-
aqueles que nos aparecem como total- gogos.
mente diferentes, que habitam o mundo Pois bem, minha intenção é justi-
segundo uma outra lógica subjetiva. Ou ficar o caráter singular do dispositivo
seja, sobre como fazer para eles institucional valendo-me daquele pe-
entrarem numa lógica desejante neuró- queno algoritmo que estaria no cerne
tica, de como seria possível vir a sus- do campo do desejo. Em outras pa-
tentar um dispositivo educacional que lavras, assinalar como o funcionamento
opere a passagem do campo da psicose institucional de Bonneuil torna possível
para o da neurose. Justamente, se al- a articulação do sujeito do desejo,
guém dissesse possuir uma fórmula téc- como efeito de uma operação de defe-
nica para resolvermos essa questão, sa perante a demanda objetivante do
então, teria desvendado o mistério de Outro.
como vir, em última instância, a fabricar O lema que sustenta o cotidiano
vida humana. em Bonneuil é "um lugar para viver".
A psicanálise afirma, ao contrário Lema que reaparece com uma pequena
da psicologia, que nào há nenhum mé- diferença no nome da Pré-Escola Te-
todo que garanta essa fabricação, que rapêutica Lugar de Vida.
nào podemos saber a priori o destino Qual é a idéia básica? Por que
de toda e qualquer empresa subjetiva. Bonneuil é uma escola e não uma clíni-
Como sabemos, existe uma série de ca mais ou menos clássica? Trata-se de
métodos para garantir a gestação (pode um lugar, aberto à recepção de todos
ser de proveta, de aluguel), mas não aqueles expulsos do sistema francês de
uma seqüência de passos técnicos para ensino, onde nào se administram cuida-
gerarmos subjetividades desejantes. No dos -sejam eles médicos, psicológicos,
entanto, a psicanálise pode, sim, escla- psicanalíticos, psiquiátricos, fonoaudi-
recer-nos sobre aquilo que não devemos ológico, e t c . Nesse sentido, caberia
fazer no campo educativo. afirmar que Bonneuil é, paradoxal-
Justamente, parece-me que a École mente, "mais escola" que até muitas
Expérimentale de Bonneuil-sur-Marne escolas ditas normais de hoje em dia.
está pensada a partir dessa idéia. Como sabemos, existem escolas que se
Nessa instituição, fundada por apresentam ao mercado pedagógico
Maud Mannoni em 1969, não se faz psi- pelos serviços para-educativos de que
canálise, embora tudo o que faz esteja dispõem. Assim, dizem possuir fonoau-
inspirado por ela. Então, temos que a diólogos, psicólogos, psicopedagogos,
psicanálise inspira um projeto educati- orientadores para tal fim ou tal outro,
vo, porém não pedagógico. Essa inspi- etc. A presença desses profissionais
ração é a subversão radical da lógica teria como fim garantir o sucesso da
pedagógica moderna. O subvertido é, empresa educativa. Parece que a pre-
precisamente, essa idéia de sermos in- sença desses saberes funciona como
dividualidades psico-biológicas à espera uma garantia extra. Que reivindicam
de metódicas estimulações mais ou para si cada um desses campos profis-
menos gratificantes. Assim, o desafio é sionais? A potestade de vir a estimular,
de uma forma especializada, alguma próprio jogo especular. Por outro lado,
das ditas capacidades maturacionais lembremos que os movimentos anti-psi-
-ponto de arranque de toda educação. quiátricos italianos e ingleses - reco-
Assim, um "estica" a língua, outros, a nhecidos por Mannoni como fontes ins-
vontade, a memória, a atenção, a cria- piradoras- assinalaram que os psicóti-
tividade, e t c . Mais ainda, pensa-se que cos, em geral, acabam se dando muito
na medida em que cada um "estica" bem com as instituições perversas. Os
mais ou menos sincronizadamente com paranóicos têm um prato cheio: nos
os outros, a educadora/pedagoga pode manicômios sempre encontram alguém
fazer o serviço dela "por fora". Isso é que os persegue. Aliás, eles têm razão.
um ponto digno de ser destacado, pois Há um dito popular que sentencia: os
as crianças que freqüentam Bonneuil bêbados, os malucos e as crianças sem-
sào todas mais ou menos "a-normais". pre dizem a verdade! Pois bem, a psi-
Aliás, tão fora da norma que a maioria quiatria é uma grande perseguidora.
de nossos colegas poderia "realizar-se" Ora, os autistas e catatônicos também
profissionalmente. acabam sendo "felizes" nos asilos, pois
Bonneuil inverte, precisamente, a nada "melhor" que se oferecer como
lógica pedagógica hegemônica. Dessa objeto de gozo para o Outro. Entào,
forma, enquanto se pensa que "essas" em Bonneuil -reconhecendo esse
crianças devem ser "esticadas" para impasse institucional- trata-se, precisa-
assim serem educadas, Mannoni mente, de estilhaçar a miragem especu-
propõe, simplesmente, "uma educação lar inerente ao dispositivo manicomial.
para todos". É como se dissesse "aqui Assim, Bonneuil posiciona-se como um
não se estica, criam-se as condições pa- espelho que tem um furo no centro, ou
ra que algo da ordem da educação seja, é uma instituição que, ao contrário
possa advir". Trata-se de sustentar um das instituições psiquiátricas e pedagóg-
Outro primordial "esburacado" -não o icas clássicas, dispõe-se ofertar, apre-
Outro perverso da pedagogia hege- sentando-se em falta. Única e paradoxal
mônica- doador de significantes, que possibilidade - assim sendo anti-
possibilitem a queda de um sujeito co- metódica- de virmos a sustentar as con-
mo efeito de um saber sobre o desejo dições para que alguma coisa da ordem
que se afunila em toda demanda educa- do sujeito possa advir.
tiva. O dispositivo institucional de Pois bem, onde está o "buraco"
Bonneuil responde a essa tentativa e o nesse dispositivo institucional chamado
conceito de instituição estilhaçada indi- Bonneuil?
ca, precisamente, essa direção de tra- Observo -para aqueles que nào
balho. estào familiarizados- que Bonneuil se
Por sinal, permito-me traduzir "e- reduz apenas a dois pequenos sobrados
clatée" - termo que Mannoni utiliza para na periferia de Paris (a cidade de
qualificar o dispositivo institucional- por Bonneuil-sur-Marne), separados no
estilhaçada, no lugar de estourada, meio por um vizinho. Trata-se de duas
como proposto habitualmente. Vejamos. casas muito pequenas e simples. Nào
O que é que se estilhaçam? Os parecem com uma "instituição" ou qual-
espelhos. Como sabemos, o que está quer um dos centros especializados que
em questão nestes quadros clínicos é estamos acostumados a ver. É como se
alguma coisa da ordem da experiência fossem duas moradias, Aliás, trata-se,
especular: ou sào vicissitudes pré-espel- justamente, de "um lugar para viver"...
ho, ou são vicissitudes inerentes ao Para viver educadamente! Qual é o dis-
positivo ou a lógica que torna possível
a vida do desejo? Bonneuil constitui-se
como "um lugar para viver", pois arti-
cula-se sobre uma proibição.
O cotidiano em Bonneuil consiste
na realização de uma série de tarefas
educativas: fazer a comida, comprar
pão, limpar a casa, aprender espanhol,
italiano, matemática, às vezes francês,
contar contos, aprender música e assim
por diante. Isto é, no dia-a-dia as cri-
anças realizam coisas que qualquer ou-
tra criança e adulto podem fazer na
vida cotidiana. Nào há mistério algum
nas tarefas. O traço singular de
Bonneuil não passa pela oferta educa-
tiva. Isso é interessante de ser assinala-
do, pois é hábito encontrarmos pessoas
que pensam que o distintivo passa pelo
fato de as crianças freqüentarem uma
série de ateliês onde se fariam coisas
muito extraordinárias. Assim dito, dá-se
a entender que as atividades realizadas
tiram as crianças da psicose. Obvia-
mente, o que está em questão nào é
nada da ordem de uma labor-terapia.
Em principio, qualquer intervençào
pode vir a ter efeitos subjetivantes -
aliás, são os behavioristas que pensam
que há a priori coisas mais "estimu-
lantes" que outras. Aquilo que
caracteriza Bonneuil é a decisão de
manter, em todo tipo de circunstâncias,
a operatividade de uma proibição -a
proibição do incesto, isto é, a proibição
da miragem perversa, a proibição de
fazer do outro um objeto de gozo. Ou,
como se diz em Bonneuil - onde não se
fala com as crianças em lacanês, pois
nào seria bom para a educaçào delas-
"o homem nào pode ser o lobo do
homem".
Como sustentar no dia-a-dia esta
proibição, uma vez que partimos do
pressuposto de que ela nào impera no
campo da psicose e do autismo, no
intuito de que possa advir alguma coisa
da ordem do sujeito do desejo?
Neste ponto, recuperamos a interrogação acerca do impasse
inerente à educação. A educação é possível porque o Outro acaba,
em última instância, renunciando, a fazer do outro o seu objeto de
gozo. Em suma, o Outro opera um desmentido - "ãénégation"-
sobre a sua demanda educativa.
O campo da neurose é o recalque, isto é, o recalque da difer-
ença, da castração, do desejo... de uma pergunta - o Outro, o que
quer de mim? Assim, para que o sujeito venha a se constituir como
efeito do recalque desse interrogante, o Outro deve desmentir sua
demanda -"eu te peço isto, mas nào é muito bem isso que eu
quero". Desmentir, dizer uma mentira do tipo: "eu gostaria que
você faça isso, mas em última instância, eu não vou morrer se você
fizer o contrário". Esse espécie de oxigênio que o Outro insufla na
sua própria demanda permite ao "sujeito" constituir-se como efeito
de um saber sobre essa demanda. A essa operação de desmentido,
corresponde, do "outro lado", o recalque. O que se recalca?
Recalca-se a diferença que se perfila entre o dito e o desmentido,
ou seja, um nào-saber.
Lembremos que Freud sustenta que a denegaçâo é aquele
mecanismo graças ao qual um sujeito formula um de seus desejos,
embora continue negando que lhe diga respeito - a clássica for-
mula: "o Senhor vai pensar que é isto, mas nào é". Isso posto, cabe
observar que é uma certa forma de ter acesso a algo recalcado. O
que se afirma e se nega na "dénégationl No jogo da afirmaçào-
negaçào articula-se algo da ordem de uma diferença. Diferença
que, precisamente, o Outro desdobra quando desmente a sua
própria demanda -"não é muito bem isto que eu queria, queria
outra coisa".
Dessa forma, se entendemos que esses mecanismos articulam
o campo do Outro, então se poderia concluir que o dispositivo
educativo deve recriar a dupla desmentido-recalque. Pois bem, o
que isso tem a ver com os ateliês? Com as tarefas corriqueiras
desenvolvidas em Bonneuil? Vejamos. É fácil observar que são tare-
fas cotidianas, ou seja, atividades que definem o cotidiano de uma
cultura dada. Nesse sentido, bem se poderia ilustrar o postulado
mannoniano apelando para essa clássica expressão: cultura neles!
No lugar de dizer: estimulaçào neles! Interessante de ser salienta-
do, pois a pedagogia especial propõe de fato uma série de ativi-
dades a fim de "estimular" uma ou várias habilidades psico-orgâni-
cas, para assim, dependendo dos resultados obtidos, "inserir" a cri-
ança na vida cotidiana. É sabido que as crianças com Síndrome de
Down devem, por exemplo, diferenciar, primeiro, o verde do
amarelo, para assim poder aprender depois que a letra M é o JVI
com a qual escrevemos mamãe. Em suma, sempre pensam as inter-
venções "educativas" sob a lógica da estimulaçào de habilidades.
Em Bonneuil entende-se por cultura desde tirar o capim do
jardim, cultivar batatas, dar descarga no banheiro ou participar das
atividades que o Musée du Louvre costuma ofertar para todas as
crianças. Por que? O que está em jamos. Se pensasse que vocês são mar-
questão na transmissão desses savoir- cianos, iria embora, pois confesso-lhes
vivre? que tenho medo de extraterrestres. No
Quando ensinamos algo para uma mínimo, tenho que reconhecer que so-
criança, acontecem duas coisas. Por um mos semelhantes, mas também difer-
lado, colocamos em ato nossa fantas- entes. Se fôssemos, de fato, idênticos,
mática, isto é, a inciativa do ato cai na não falaríamos entre nós. Por que? Nós
conta do desejo do adulto. Por outro, falamos para arrancar do outro/Outro
transmite-se uma lógica operativa que alguma coisa, um certo saber sobre o
transcende o campo fantasmático no desejo. Obviamente, há desejo - uma
interior do qual estamos singularmente diferença irredutível - porque nào so-
tomados, uma vez que se trata de um mos iguais, embora sejamos semelhan-
pedaço da cultura, um universal, um tes. Isso posto, não há dúvida que se
fragmento de liame social. Em suma, à trata, efetivamente, de instaurar algo da
medida que a criança "apre(e)nde" a ordem das identidades. Tratar-se-ia de
amostra de laço transmitida, faz laço. imprimir certas insígnias identitárias.
O cotidiano em Bonneuil aponta à Justamente, a psicanálise nos ensina
sustentação da possibilidade de as cri- que se quisermos isso no trabalho com
anças virem a fazer laço. O que "gruda"? crianças autistas e psicóticas, então, não
O que enlaça é o desejo do adulto, em devemos montar um dispositivo perver-
posição de educador, mas também o so, pois se ofertarão como objeto. A
próprio fragmento interativo transmiti- única forma de colocarmos um limite à
do. O que se transmite? Uma forma de nossa vocação igualitária é "colocarmos
colher batatas, uma forma de lavar a cultura no meio". À medida que a rela-
louça, de brincar, de lidar com isso ção cotidiana entre o adulto e a criança
chamado dinheiro. Nisso "outro" que se está perpassada pela obrigação de jogar
transmite ecoa uma dimensão outra que com as regras da cultura, a instituição se
estilhaça, precisamente, a miragem adul- estilhaça evitando que o pequeno ocu-
to-criança. Entre o adulto e a criança pe a posição de objeto de gozo do
medeia um fragmento cultural. Assim, adulto-Outro. É como dizer para as cri-
temos o espelho estilhaçado. Portanto, anças: não queremos vocês, queremos
em Bonneuil se evita a montagem de outra coisa que é alter. Em outras pala-
um dispositivo perverso. Em outras vras, "eu não sou o todo da cultura,
palavras é como se se dissesse para as apenas sou mais um".
crianças "você nào faz por que eu O segredo de Bonneuil é isso. Um
quero, você faz assim porque é dessa grupo de adultos que fazem, às vezes,
forma que todos devemos fazer se quis- coisas muito divertidas, no intuito de
ermos manter vivo esse pedaço de cul- dar sustentação ao laço educativo
tura". quando se trata de crianças consider-
# Questão do público: Isto não adas resto pelo sistema escolar tradi-
tem a ver com a noção de identidade? cional. Assim, a questão não passa por
Quer dizer que se nessa transmis- inventar ateliês nas escolas tradicionais
são haveria algum efeito de identidade? -Ah! Depois de passar horas a fio,
É claro! Por isso disse que o objetivo da repetindo "verde... amarelo", agora,
educação é fabricar semelhantes, para vamos ao ateliê de música! Não se trata
assim, pudermos nos reconhecer, até disso.
certo ponto, como idênticos. Caso con- O estilhaçamento da instituição se
trário, por que estaríamos juntos? Ve- produz também com o sistema singular
de acolhida das crianças por famílias Sexta-feira nas maisons d'accueil. En-
do campo - les families d'accueil -, quanto algumas crianças podem estar
bem como pelo fato de a moradia estar na escola no período das nove da ma-
des-centralizada - les lieux d'accueil. A nha às quatro e meia da tarde - fazen-
escola, em si, ocupa dois sobrados, do italiano, cozinhando ou realizando a
mas a "escola" se estende até onde vai tarefa de francês-, outras podem estar
a transferência que o significante Bon- colhendo alfaces no horto do vizinho.
neuil convoca. Algumas crianças vivem Em suma, em Bonneuil todo mundo
nas moradias que a escola possui em pode estar em qualquer lugar, sentindo-
Bonneuil ou Créteil, outras com seus se partícipe de Bonneuil.
próprios pais ou com famílias cam- Bonneuil opera como o signifi-
ponesas. Obviamente, essa decisão, cante que coloca todos em posição de
aliás, como todas, são pensadas singu- trabalho. As pessoas nào fazem seu
larmente. Isto é, nào há regimentos capricho, fazem aquilo que a lógica do
administrativos destinados à instituição trabalho as obriga a realizar. Bonneuil é
de uma generalização. O importante é um lugar que nos desafia a viver sem
que, seja onde for, as crianças sempre atrapalhar a vida dos outros.
moram em "casas", ou seja, em lugares Quando de meu estágio em
tomados por uma lógica caseira. Bonneuil, participei um certo tempo do
Por que as famílias que conforman grupo escolar para crianças muito
essa rede de families d'accueil são fa- pequenas^. Muitas vezes, tratava-se
mílias rurais, famílias de cidades ou apenas de cantar uma ou duas músicas
vilarejos perdidos no interior da França? infantis populares. O grupo podia ser
Que fazem as crianças durante o tempo de quatro crianças e três ou cinco adul-
que passam com elas? Trabalham naqui- tos. Tratava-se de formar uma roda na
lo que a família trabalha. Se fabricam qual, de mãos dadas, alguém pergunta-
queijo, a criança também fabrica queijo, va o que iríamos cantar, quem queria
se nessa família o senhor é pedreiro, a marcar o ritmo... Pois bem, talvez
criança também trabalha de pedreiro... alguém deva estar se perguntando até
Alguém poderia dizer: "pois bem, qual que ponto era possível manter uma ro-
é o rendimento dessas crianças?" Típica dinha com crianças psicóticas e autistas.
pergunta de psicólogo ou pedagogo Justamente, neste ponto devemos
tradicional! Essa pergunta está proibida! lembrar uma frase que Manonni gosta
Nào se visa à performance. Mais ainda, de repetir: "a única coisa que pedimos
o objetivo não é uma aprendizagem às crianças é que façam de conta que
profissional, embora haja algumas cri- sào normais". Cabe observar que não se
anças que acabem aprendendo algum pede para elas serem normais, mas para
ofício. O fundamental é provocar, justa- fazerem de conta. Trata-se de uma de-
mente, a constituição de um "outro manda eme se articula no desmentido.
lugar" que nào os dois sobrados, para O que fizemos naquelas circun-
estilhaçar a instituição. Assim, a criança stancias? Fazíamos de conta que éra-
está em Bonneuil, mas nào está; estuda mos todos normais. Aliás, em Bonneuil
em Bonneuil, mas está no campo crian- se faz de conta que as crianças são
do vacas. adultas, ou se preferirmos, responsá-
As crianças podem passar alguns veis. Dentre outras razões, é por isso
meses com as families d'accueil e re- que as crianças "trabalham". Essa é uma
gressar o final de semana, podem morar outra forma de subverter a pedagogia,
com os pais mas viver de Segunda à pois ela infantiliza. Como sabemos, a
criança é um efeito cia pedagogia mo- bota você prá fora. Você escolhe".
derna. Chegados a este ponto, alguém
Voltemos àquela roda normal! pode perguntar-me: "mas vocês tinham
Pode-se perguntar: "quem começa?" certeza se tal intervenção teria os efeitos
Algumas vezes, alguma criança balbucia esperados?" Obviamente, nunca se tem
algo e o adulto toma isso como a certeza. Essa é a regra. De fato, tenho
resposta. O adulto diz: "Ah!... você disse visto muitas crianças abandonarem a
que quer começar, vamos, marque o sala onde estávamos cantando. O inte-
ritmo!" Alguém dos presentes pode ressante é que ninguém toma conta da
muito bem colocar em dúvida a criança. Às vezes, elas acabam se en-
natureza da "resposta" infantil. Entre- contrando e brincando sozinhas num
tanto, a questão nào passa por aí. Trata- outro canto da casa, sem ninguém se
se de que "o show deve continuar". preocupar. É também bom lembrarmos
Todo mundo faz de conta que o ritmo que as portas dos dois sobrados não
está sendo marcado, canta-se... A tarefa têm chaves e, entretanto, não há na
do adulto é manter a cena que encena história de Bonneuil registro de que
um laço. uma criança tenha se perdido ou tenha
Certa vez aconteceu - foi uma sido atropelada na rua.
dessas manhas "terríveis"- que algumas Pois bem, certo dia nós, os adul-
crianças foram desfazendo logo a roda: tos, fomos, de fato, abandonados.
uma jogou-se no chão, a outra abriu a Vimo-nos sorrindo, pois éramos quatro
porta e desceu escada abaixo, uma adultos, agarrados pelas mãos, cantan-
outra chorava aos berros. Em circun- do uma música infantil. Cantamos até o
stâncias como essas, um adulto pode final, realizamos o pequeno ritual de
acompanhar quem desceu pelas es- encerramento da atividade grupai e a
cadas, um outro pode exclamar: "Ah, demos por encerrada. Por que mantive-
não está cantando a música, você deve mos a situação? Porque a manutenção
ter esquecido, vamos cantar juntos". desse fragmento cultural supõe a exis-
Observemos que não se trata nem das tência de um terceiro. Em suma, trata-se
pretendidas interpretações psicológico- de uma tentativa esforçada para manter
analíticas, nem comentários pedagógi- sempre a referência a um terceiro. Aliás,
cos do tipo "está além das suas capaci- é precisamente por isso que grande
dades". Ao contrário, trata-se de manter parte das atividades se realiza fora dos
o cenário do "fazer de conta". Aí é que muros de Bonneuil. Por exemplo, as
está o feeling do adulto, de como se crianças freqüentam a piscina pública
mantém na transferência. Pode ser o no horário normal, como qualquer ou-
caso de continuar a cantarolar a música tra. Ou seja, não há um horário para as
nas escadas. No entanto, a intervenção "deficientes" nadarem metodicamente.
nunca deve acenar com a possibilidade É fácil? Não, não é "fácil" acompanhar
de que alguém possa deixar de partici- quatro, cinco ou meia dúzia de cri-
par por atrapalhar o empreendimento anças. Esse gesto anti-asilar abre mar-
dos restantes. Àquele que boicoteia é gem para todo tipo de imprevistos. O
lembrada a Lei de diferentes formas. que costuma acontecer? Pois bem, as
Por exemplo, "olha, você nào está nos típicas coisas que acontecem quando se
deixando cantar, estamos nos divertin- está com crianças não muito educadas.
do muito aqui, se você não quiser, tudo Justamente, é o inverso do que
bem, não participe, mas nào atrapalhe. acontece nas escolas e nos estabeleci-
Se você continuar atrapalhando, a gente mentos de educação especial, onde se
convoca qualquer "saber científico" NOTAS
para obturar a pergunta que se aninha
na diferença: o que quer o outro de 1 Versão corrigida e parcialmente modificada
mim? Assim, fabricam-se casos. No p e l o autor da aula proferida, s o b o m e s m o tí-
entanto, um sujeito é antinômico com a tulo, em 18 de n o v e m b r o de 1997, n o c o n t e x -
fabricação de toclo caso. Por isso, em to do Curso de Aperfeiçoamento Novas

psicanálise devemos renunciar à preten- Tendências no Tratamento da Criança com


Distúrbios Globais do Desenvolvimento, pro-
são de fabricar explicações claras e dis-
movido pela Pré-Escola Terapêutica Lugar de
tintas. Nesse mesmo sentido, os edu-
Vida-USl'. A transcrição da fita gravada na
cadores de Bonneuil sabem também do
época foi realizada por Cynthia de Medeiros
nosso limite explicativo. Mais ainda, por (doutoranda FEUSP).
saberem sabiamente isso, estão sempre
prestes à invenção do cotidiano, ou ^ Essa conceitualização foi desenvolvida
seja, dispostos a não fazer do impre- detalhadamente n o texto Dos "erros" e em
visto um incidente - um desvio a especial daquele de renunciar à educação.
respeito cie uma norma. Aliás, Basaglia Notas de psicanálise e educação publicado em
já assinalara que a lógica da psiquiatria listilos da Clínica, A n o 2, N* 2, pp. 27-43.
aponta, precisamente, para a conversão 1997. Por o c a s i ã o da aula - aqui transcrita- mi-
nistrada com antecedência à redação desse
dos imp rei'is tos um incidentes.
texto, a m e s m a foi apresentada tanto parcial-
Assim sendo, podemos muito bem m e n t e q u a n t o c o m rapidez. Assim sendo, para
concluir que a pedagogia especial con- maiores precisòes s o b r e o desenvolvimento
siste em fazer dos imprevistos educa- q u e se s e g u e à c o n t i n u a ç ã o , r e m e t e m o s os
tivos incidentes psicopedagógicos iner- leitores à q u e l e texto.
entes à escolarização das "crianças
DGD". • ^ Para maiores esclarecimentos consultar:
Kupfer, M-C. Educação Terapêutica: o que a
psicanálise deve pedir à educação in Estilos
da Clínica, N" 2, pp. 5 3 - 6 1 , 1997. Jerusalins-
ky, A. La educación, jes terapêutica? in
Escritos de la Infância, N* 5, pp. 11-18, 1 9 9 5 .

4
cf. d e Lajonquière, L. Deficiências Sensorials
e Subjetividade. Notas Críticas à Ideologia
Reabilitadora In Educação & Sociedade, N"
4 8 , pp. 3 0 4 - 3 2 5 , 1994.

^ Para maiores detalhes a propósito de saber


sobre, saber de e o caráter nào-sabido d o sa-
b e r inconsciente, r e m e t o os leitores a meu
texto Dos "erros" e em especial daquele de
renunciar á Educação e em especial à q u e l e
intitulado A criança, "sua" (in)disciplina e a
Psicanálise publicado In Aquino, J . ( O r g . )
( 1 9 9 6 ) A Indisciplina na Escola, São Paulo:
Summits, pp. 25-37.

^ Estágio pós-doutoral, realizado c o m auxílio


do CNPq durante os meses de J a n e i r o e
Fevereiro de 1995.

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