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In: SOLER, Colette.

A psicanálise na civilização, Rio de Janeiro, Contra Capa, 1998

AMAR SEU SINTOMA?*

Pode verdadeiramente a psicanálise, quando ela chega a seu


termo, pretender produzir um sujeito inédito? A pergunta incide
menos sobre a conclusão da seqüência analítica do que sobre o su­
jeito que dela resulta. Lacan não hesitou e mais de uma vez evocou
esse sujeito transformado pel;i an,ílise com o termo, muito for te,
de mer;imorfose. Freud, que de bom gr;ido cremos numa posição
um pouco recu;ida quanto às ambições a consignar a todo trata­
mento terminado, tampouco recuou diante desta questão.
Em seu texto 'J\.nálise terminável e análise interminável", in­
terrogando o resultado possível de uma ;inálise, evoca a transfor­
mação que o sujeito deve sofrer para que se possa dizê-lo "analisado",
no particípio passado: "Não está nossa teoria reivindicando justamen­
te ;i instauração de um estado llUe jamais está presente de modo espon­
dnco no cu, e cuja criação original constitui a diferença essencial entre
o homem analisado e aquele llUe não o é?" ( I 9 3 7, p. 242).
De Freud a Lacan os enunciados divergem muito e às vezes até
parecem anrinômicos. Ali onde Freud assinala, no início do mesmo
capítulo III, a intenção "de chegar a um esgotamento radical das
possibilidades de doença", Lacan anuncia a produção do incurável e
lança a expressão de identificação final ao sintoma, bastante estra­
nha c1uanto aos efeitos tera pêuticos dos c1uais a análise merece ser
creditada. Mas por pouco que não se tr;ite ;is fórmulas como a
árvore que esconde ;i floresta, e que se restitua a cada passo sua
lógic;i, t;ilvez possamos ver essa divergência reduzir-se muito.

Uma posi§ão revisada

Na data em que publica "Análise terminável e análise intermi­


nável", em I 9 3 7, Freud, idoso e doente, sabe que vai morrer. Ele

* "Aimer son symptôme?". Concluído em 26 de fevereiro de I 994 e publicado


em La Cause Frrndienne, n. 27, I 994. Anteriormente traduzido para o português
em OPfão Laca11ia11a, n. I 2, I 99 5.

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COLETTE SOLER

faz o balanço de alguns cinqüenta anos de experiência, nos consig­


nando ali um tipo de testamento teórico no qual se delineiam as
tarefas do futuro. Ele reanima por um instante algumas figuras do
passado como outros tantos antigos tormentos: Fliess e suas teorias
sexuais, Adler e o "protesto viril", que se acreditava esquecido, e
sobretudo Ferenczi, a censura viva - embora nessa data ele já esti­
vesse morto - quanto à sua análise inacabada. Suas respostas se­
rão as últimas e elas guardam para nós toda sua importância.
A questão que Freud coloca não incide tanto sobre as peripé­
cias da análise, suas inércias, e mesmo seu eventual obstáculo final,
quanto sobre seu resultado, sobre a possibilidade de produzir ou
não um sujeito para quem a causa geradora de eventuais novos sin­
tomas estaria esgotada.
Ora, a tese princeps, solidária desde a origem da descoberta
freudiana, propõe que é o recalque das pulsões que condiciona seu
retorno no sintoma. Freud opera ali com dois termos: a pulsão
como exigência de gozo específico, e o lch como princípio de defesa
e rejeição no {}UC conccme a essa exigência... inconcildvcl. A c.1ues­
tão é portanto a do destino do recak1ue durante e depois da análise.
Quando ele fala de tomada de consciência ou de elucidação (idem,
p. 2 3 5), enfatiza o aspecto epistêmico do processo, o ganho de
saber c.1ue se espera de uma análise, um "eu sei". Mas quando
evoca paralelamente, tal como ele o faz, a possibilidade de "revisar
esses antigos recalques"(ibid., p. 242), de chegar a uma "correção
só-depois do processo de recalque originário" (ibid.), trata-se
de algo completamente diferente. Não estamos mais no eixo da
revelação analítica, mas naquele de sua capacidade operativa e
das mudanças que ela é suscetível de produzir no nível da defesa
para com as pulsões, no nível de um "eu quero" ou "eu não quero"
do sujeito.
Freud distingue aí dois modos de transformações possíveis:
entre os recalques "alguns são destruídos" - portanto, admissão
da pulsão - "outros r econhecidos, porém recentemente
construídos com material mais sólido" (ibid.) - por conseguinte,

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A P S I CANÁLI S E NA CIVI LIZAÇÃO

rej eição confirmada. É evidente , Freud não sonha com um s u j eito


que teria ces sado de se defender contra todo o real do gozo pulsional
( seria, em s uma, um ser inassimilável a qualquer laço social) , mas
antes com uma defesa que, ali onde o gozo permanece inaceitável
para o suj eito, ter i a cess ado de gerar reca l q u e com o retorno do
sintoma q u e aí se encontra implicado.
Portanto os dois obs táculos ao tratamento pos s ível da p ulsão
p ela psicanálise estão explicitamente indic ados : de um lado, o fa­
moso "fator q uanti tativo" e a ameaça s empre p resente de um even­
tual " re força m e n to p u lsional" ; do ou tro , a incomple ta " trans fo r­
mação do mecanismo de d e fesa " (ibid. , p. 24 5 ) do lch .
Resultado, diz Freud: " a análise , com sua pretensão de c u rar
n e u ró ticos assegurando a domina ção sobre as pulsões, tem sempre
razão na teoria, mas nem sempre na prá tica" (ibid.) . Ta l é a conclu­
são cm que ele consegue realizar a aliança notável de uma exigência
con c e i tuai, que a firma categoric a m e nte , com u m realismo pragm;1 -
t i co t1 u c abraça o s contornos d a experiência.
Freud, cu o observo, não considera em nenhum mom ento nesse
texto q u e a aná l i s e modifica a exigência pulsional cm si mesma. Eu
creio a t é tJ U C o termo de s ublimação, q u e sempre designa cm Freu d
u m processo d e tra n s fo rmação d a pu lsão, e mesmo de trans forma­
ção socia l i zável, aí não é e nco n t rado. Em contrap arti d a , o t1 u c a
a ná l i s e mo d i fica , a s eg u i r esse texto, é o q ue bem pos s o c h a mar
de t ra tamento da puls ão p elo recalq u e. Res ta então para o suj e ito,
u m a vez e s clarecido pela deci fr a ç ã o analít i ca , o p e r a r u m a nova
e s colh a. A s s im Fre u d, tão fre q üe n t e mente a c u s ado de operar
como mestre, deixa todo s eu l u gar para u m a decis ão renovada do
S U J e ltO.
Esse mesmo traço é reencontrado, aliás de modo m u ito exp l í­
cito, no que s e refere ao famoso fa tor de impasse q u e Freud intro ­
d u z e m seu últim o capítulo, a cas tração como " rochedo de origem"
(ibid. , p. 2 6 8 ) . O fato d e que ele a situe como ''resistências de
transferên cia" (ibid. , p . 2 6 7) bastante nos diz q ue o impass e aqui
evocado não poderia reduzir-se ao temor de uma mu tilação cor p oral,

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CO LETTE S O L E R

e que as imagens recenseadas por Freud que a li pulu lam são a p enas
a tra d u ç ão no im a gin á r io de um p roc esso d i feren t e . E s t e não é i m a ­
ginár io, a saber, o e feito de p e rda l1 u e im p lica a relação a o O u tro , e
c u j a ameaça se reedita a c a d a ap ro x i mação deste O u t ro - a q ui
ap rox i m ;i ç ão t r a n s fc rc n cia l .
S a b l' m o s a t'd tima p a l av ra d e Fre u d s o b re e s s e pon to: " D i z e r
s e e l) u a n d o fo m o s b e m s u c e d i do s c m do m i nar es se fa to r nu m tra ­
t a m e n to a n al í t i c o s e r;í d i ríc i l . N ó s nos consoh m n s c o m a c e rteza
d e que o c a sio n a m o s a o a n a l i s a d o tod a a i n c i t a ç ã o po s s ív e l par;i re v i ­
sar e modificar sua posirão n o l1u e c o n c e rn e a esse fa to r " ( i b i d . , p. 2 6 8 ) .
M c s r re ga i a to , e s s e lJUe d e i x a e s co l h e r ! Sem d úv i da s e d i d lj U C é
u m l i be ralismo d e i m po t ê n c i a -·-- o l) U e de fa t o c o n o t a b ;i s ta nte a
evocação da c o n s o l a ç ã o - --- m a s não s e podc negar lJ Ue a pala v r a
!"i n a l e a sa ída ú l t i m a c a i b a m ;HJ u i a o s u j eito, o u a n tes à " i n s o n d .ívcl
dec i s ão d o ser " ( L1ca n , 1 94 6 , p. 1 77) .
1 �m s u m a , o s u j e i t o tra n s fo r m ado p e l a a n ;íli s e s e d c fi n i r.í p or
u m a IH >\';\ rcb ção com a c a s tração e c o m ;1 p u l s ã o .
( a pró p r i a tese lJ U C La c a n ret o m a a p a rt i r de l 9 (1 4 , em bora
com o u t r a s for1J1 u l a � õ e s e a t ravés da l) U a l d e c o m p l e t a a ê n fa s e
c o l o c a d a i n i c i a l 1 J 1 c n l e , e d u ra n t e dez a n o s , sobre a t erra pla n a g e m
de u m linguajar do conj u n to da l.'x periência do s uj e i to. Da a fi rmação,
n o Sr111i11ário, livro J J : os quatro co11reitosJi111da111rntais da psirn11álise ( I 9 64) ,
d e ll l11 S ll j e i to para ll U Clll , 1 1 0 final, a ra nta s i a S l' red u z à pu l s ã o , a t é
a e v o c a ç ã o m a i s t a r d i a d e u m a identificação fina l ao sinto m a , i s to é
a m e s m a lj l l C s t ã o de u m a rela ção i né dita ou não com p u l s ã o , e de
m o d o m a i s g e ra l , do t r a cam e n to poss ível do g o z o a p a r ti r do
i n c on s cien te c om o lin guagem.
Lacan, a o pro ferir lj U e , no final de uma an.ílis e, iden t i ficar-se
a o seu sin toma é o <1u e o suj eito pode fazer de melhor, surpreendeu
pon.1 u e sem dúvida ele foi mal se g uido a t é então. Ev i de n temente
tudo se deve à de finição do sintom a, aqui implíc ita, e q u e faz des s a
afirmação u ma expressão quase c riptografada. Poderíamos inclusive
pensá-la carregada de alguma provocaç ão irônic a . O analisa n te, de
fato, se dirige à anális e em nome de seu sofrimento, porque nele

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A P S I CANÁ L I S E NA CIVI LIZAÇÃO

há 1 um sin toma . E o psicanalista lhe p rometeria q ue no final ele


poderá dizer: "Meu sintoma, e u o sou ! " . C u riosa terapêutica , essa
passagem do ter ao ser . . . o sintoma. Evidentemente, é p re ciso supor
qu e não se trata do mesmo, de sintoma, e qu e nessa distância, o
efe ito terapêu t ico po derá enco ntra r l ugar, m as a inda é prec iso
elucidar o q ue quer dizer identi fi cação a o sintoma e a q u e p roble­
ma a expressão resp onde.

Um paradoxo?

Fa lar de identi ficação ao si ntoma parece curioso. D e fato , a


identi ficação toma emprestado do O utro, a o p a sso q ue o sintoma
inscreve u m a singular i dade.
Os p sicanalistas de todas as linhas con c ordariam com isso: a
identi ficação é um esti gm a sobre o sujeito das influências do O u ­
tro, inclusive dos outros sem m a i ú s cula , o s semelhantes. Ela retira
deste O u t ro , com ou sem ma iúscula. um elemento , t raço unár i o ,
tJ u e v a i dorava nte ma rcar o suj e ito, o r i e n tá - lo , detc rmin ;í - l o ao
menos pa rcialm ente, e t1 u e a s s ina l a seu ca r;Ítcr e d u cável. a b e rto à
infl u ê n cia. Em toda i d ent i ficação s e p ode per g u n ta r: d e tJ u e m o
s u j eito tomou empres tado e qual traço? O suj eito identi ficado é
sempre u m suj eito inílu enciado, qu er ele o saiba o u não . N a m a i o ­
ria d a s vezes e l e o i gnora, a não s er t1 ue a psican álise lhe revele , e à s
vezes ele até acred ita em sua autonomia ! Foi bem p o r isso t1 ue Lacan,
d esde o início de se u ensino , p ôde e nunciar: " Eu é um o utro " (}e est
u11 autre) . Lem b ramo -nos também de Freud , de seu " Psic ologia de
g ru p o e a nálise do ego" ( 1 9 20) , q u e faz da ident i fic a ção a m ola da
relação da c a da u m com se us semelhantes como à figura d e exceção.
O sinto m a é to talmen te o oposto. S e a identi ficação c ria o
mesm o , o sintoma cria a d i ferença. Sempre singular, rebelde à
u n iv ersalização , ele é p r i n c í p io de d issidênc ia, para usa r u m termo

I . N . d o T N o o r i g i n a l , p arce qu 'il a un sy mp tôme. Homofon i a en tre il a un �ymp tôme


e ele tem um s i n toma) e il y a un sy mp tôme (há um s into ma) . além de p or em relevo
a través da grafia o obj e t o a.

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CO LETTE S O LER

de ress on ância p o l í t i c a que, aliás , Lacan a p l ica à p u ls ã o . Ess a d i ss i ­


dên c i a do s i n toma é t ã o manifesta q u e a h is t ória das s ociedades
regis tro u no Les te, n ã o h á tanto tempo as s im, uma d e fi n i ç ã o de
sintomatologia que reco b r i a as dive rgên cias pol íticas . Is s o não é
nenhum acas o , iss o t e m sua l ó g ica: o sin toma n u nca and a a pass o
cadenc ia d o ; m e s m o quan d o é i n o fe n siv o , e l e s e i ns u rge c o n t ra o s
mandame n t os do s igni fica n t e mes tre. Imposs ível d e h om ogen eizar,
ele tem alguma coisa de real: não s e r i a excess ivo falar de automatismo
do s i n toma , j á t]u e ele faz obj eção a todo diálogo. É v e r d a d e lJ U C o
sin toma h i s té r ico parece distingu ir- se n este ponto. De fa to , ele t o m a
e m p re s t ado d o O u t ro ( á a tos s e d e D o ra) e a s s i m p a re c e faz e r u m
uso t o rnado coletivo d o sin tom a . I sso n ã o passa d e uma falsa obj e ­
ç ã o , j ,l l] U l' s e u t ra ç o é re t irad o d o própr i o s i n t o m a d o O u t ro .
Po r t a n t o , n u m a pri meira a p ro x i ma ç ã o , a id entifi c a ç ã o e o s in­
t oma se o p õ em c o m o p r i n c ípio de u n i v c rsal i z a ç f o de u m l a d o , e
fon t e d e d e s v i o s , d o o u t ro. D a í o para d o x o da ex p re s s ã o " i d e n t i fi ­
c a ç ã o a o s intoma " . C e rt ame n t e e l a desig na u m a m u d a n ç a na m a ­
n e i ra c o m t] U C o s u j e i t o s e rel a cion a c o m s e u s i n toma , t] U C deve s er
d e fini d a .

D uas identificarões de final

Ali o n d e os anali s t a s da Ps icologia do E g o - especi alm ente


o s a m eric a n o s , mas tam bém toda a escola ingles a e por osmose o
c o nj u n t o da I PA - exaltaram, para reduzir esse des v i o do s i n toma,
um final d e análise pela identificação a o a n alista , n u m eco irô n i co
La c a n p ro põe ao s u j e i t o identificar-se antes a sua s i ng u l aridade sin­
tom á t i c a . Esta resposta q u e dá o as s unto por encerrado n ã o é um
fia u - fiau 2 • Ela tem sua lógica, Ll ue permite, além diss o , perceber a
L1ual n ecessidade obedeciam aqu eles que s ustentavam a identi ficação
ao analis t a .

2. N . do T. No ori g inal, cette réponse du be1;g er à la bergere n 'est pas un p íed de nez, E m
francês . Jaire un p i1d d1 nez desi g na o g esto convencional d e derrisão: a p onta do
p ole g ar encostada na p onta do nariz com os outros dedos afastados.

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A PSI CANÁLI S E NA CIVI LIZAÇÃO

A fu nção da identi fi c ação para o ser falante não é bem perce­


b i d a se não a p artir do status do su j e ito t a l como Lacan o cons­
tru iu: c o m o e fe ito de li nguagem. Esse suj e i t o sup osto em toda ar­
tic ulação si gnifi c ante n ão tem outra essência senão sua diferença
com a cadeia que o rep rese nta o c u lta n d o - o , e ele n ã o a fi rma sua
pre s enç.i senão p or uma dinâm i ca de desloc amento e de c o rte: um
v a z i o em m ovimento , de algum m o do. Este suj e i t o é um a espécie
de fantasma (ja n tôme) - Lacan chegou a chamá-lo de furão - e
sem dúvida é por iss o que existem fantasmas (ja n tôm es) n o seu ima­
ginário. Ele assombra a casa da linguagem com sua presença d e
enigm a , sem forma e impossível d e fixar residência. A identificação
é j ustamente o que lhe d,í rosto e lu ga r.
Ela é princ ípio de parada, de fixação do ser. É evidentemente
ao preç o de um .i ocultação , pois desde logo a máscara invade a ccn.i,
e o " cu so u " (je suis) n o qua l se instala o suj eito se paga com o " não
pens a r " (ll e pas penser) . Este eventualmente não impedirá nosso su­
j e i t o iden t i fi cado de ser um in telectua l. Apenas, ele pcnsar,í cm tudo
exceto no <.J u e ele é como s u j eito do i n consc i ente. Mas seja q u a l for
a contra parti da, as identi fica ç õ es, por m a is di versas c1 u e s ej a m , e
a t é a "identi ficação . Hti m a " (Lacan, 1 9 6 1 , p. 6 2 7) ao sign i fican te
da falta do O u tro , o falo, as identifi c a ç õ es v estindo o vazio do
suj e i to, garan tem uma determ i nação do ser.
Assim, o estado n ormal do suj eito - não digo o suj eito nor­
mal - é u m " e u sou" (je sit is) que nã o p e nsa na q uilo g ue ele é .
" O homem são " evocado p o r Freud em seu texto d e 1 9 3 7 sobre o
final da análise, aquele que não precisa ria de análise, é tal l1 ual: um
"Jch", ou sej a. o próprio suj eito, posto na forma de Eu (Mo i) pela
identificação.
O ra, o suj eito só se dirige à a nálise, salvo exceções, a partir de
uma manifestação sint omática de sua divisão q u e põe suas identifi­
caç õ es em xeque. Assim acontece com o Hom em dos ratos quando ele
faz um apelo a Freud. É um sujeito o mais identificado possível
com os idea is de retidão e bravura militares, decidido a servir de
exemplo aos oficiais de carreira ! Infelizmente, esse belo e b om oficial

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CO LETT E S O LE R

está atormen tado p o r fenômenos es tran h o s : inibição n o trabal h o ,


bastante inc ômoda para seus estudos, e depois finalmente a obsessão
dos ratos e o p â nico que ela lhe inspira. Eis a í al g uma coi sa c om a
q ual ele não pode identificar-s e , um sin toma que lhe inspira o q ue
Freud chama de horror, e é es ta a questão: é poss ível iden tifi c a r-se
à cois a horrív e l ? É c la ro q u e a div i s ão do suj e i to não se man i festa
no i n ício s emp re sob a fo rma de um sin toma tão con s is t e n t e .
Ela pod e t o m ar ao con t r á r i o , d e modo ele tiv o n a his teria , a fo r­
ma de u m a i n co n sis t ê n c i a sofri da que deix a o suje i t o numa do­
lorosa i n c e r t eza sob re o t}U C pensa, o q u e lJ U e r, s o bre s e u pr ó p r io
lu gar.
A an;Hise , ao en gajar o suj e i t o na ass ocia ção liv re , q u e n :i o deve
nem p e n s a r, nem c a l c u lar, nem j u lgar, é um que s t i o n amento do s e r,
no duplo s e n t ido da ex p ressão: ela quer p ro d u z i r a res p o s ta d e n t ro
d e u m prazo e também tl u e r sus p e n d e r s u a s garan tia s . Por tan to ela
primei ro in t roduz n u m r e m po de e s p e ra um e s t a d o de s u s p e nsão
m c t údic o . E n r re t a n t o , passadas as s uspensões ne c e s s á r i as ;i c l a b o ­
ra ç :i o n a tj L1 a l s e rev c la d a o s u j ei t o o (j lle o dividia sob a cara n to n h a
d o s i n to m a , é p reciso ll l l l' a a n :í lise re en vie o s u j e i to a u m " ru s o u "
(j c su is) d e u m o u t ro tipo. S obre esse pon lo, não obs t ante as for­
m u la ções muito opos t a s , parece-me ll u c o conj u n to do m ovim e n t o
a n a l í t i c o c onve rge. Ora, o sign i fica n t e mes tre da iden t i fi cação e o
sin toma têm cm com u m o fa t o de s erem as inércia s l] U e fi xam e
determ ina m o ser.
De golpe, percebe-se um p r i m e i ro n ível da lógica im plíci ta na
t eorização da Psicologia do Ego: o q u e s e bus cará restaurar no s u ­
j ei to é a normalidade a-si n t o má tica sendo pens ada e m termos de
identi ficação. Seu ser c onforme tendo sido p erturbado pelo s intoma,
visar-se-á res tabelecer no final um efeito de i denti fi cação melh o rada.
E onde encontrar essa melhor iden t i fi caçã o senã o no ana l ista t o ­
m a do com o modelo? Delineiam-nos ali uma aná lise q u e i r i a de um
fracasso da i denti ficação n o rmati vizan t e à s ua saída bem-sucedida
pela identificação ao anal i s ta. A objeção s alta aos olh o s : a análise

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A P S I CANÁLISE NA CIVI LIZAÇÃO

to rna- se, neste caso, um a segunda educ a ç ã o , que reti fica e re fo r ç a


as m arcas i d enti ficató r i as deix a das pelo O u tro . Não h á p o r q u e
i n v e n tar a p s i can á l ise p ara isso; isso é a c o n fusão e ntre o d i s c u r s o
do mes tre e o d iscu rso anal ític o.
A n o ç ã o de identi fic ação ao sin toma é c oere nte c o m a n e c essi­
dad e de reatar o nó, n o fin al de u m a análise, c om o e fe i to d e s e r :
ob ter u m s u j eito novamente de term inado q u a n to a o qu e ele q u e r e
q u a nto ao q u e ele é , mas . . . não pela via de i den t i fi c ação ao O utro .
E s r a é a rese de Lacan desde sempre. Já em seu " Estádio do espelho"
( I 9 3 6b) , ele evocava um te rmo em que o suj e i to se re ú ne c o m o
lim i te ex t .í t i c o d e u m " t u é s i s s o " . A palav ra ex d t i c o e s t an d o ;i ) i
p a ra d i zer que é antes a re s p o s ta d o s e r n ão re p re s e n tá v e l a q u ela
e s p e r a d a , e po r u m a razão m u itís s i m o s imples: é (1u e a i d e n t i fi c a ­
ção n ã o p o de perp e t u a r sen ã o a reg ê n c i a do O u t ro. O s e r q u e e l a
p a rece garantir n ã o pass;i d e m ;i s carada e menti ra, e o analista n ã o
p o d e r i a to rnar-se o c ú m pl i c e d i s s o . A i d e n t i fi c a ç ã o d o s i n to ma , n o
o u t ro ex t re m o d o e n s i n o de Lac an, des igna a fin alidade p r i m e i ra d a
a n ;í l i s c , g u a l s ej a , re u n i r- s e e m u m " c u so u " (j c su is) ti u e n;ío seja
s e m bl a nte . E la ind i c a o es forço por uma té cnic a que no entanto é
a p en as u m a fa la, para atingir o q u e n o suj e i t o n fo é d o regis tro
s i m b ó l i c o mas do rea l, tl ue zomba daq u i l o c.1 uc s e pensa e do L1 u e se
j ulga, e até mesmo de se pensar e se j u lgar, "se" (0 1 1 ) não sendo at1 ui
n a d a a l é m q u e um n o m e d o O u tr o , do s u j eito s u p o s to sab er.
O s intoma representa j ustamente um tal rea l .

A op§ão laca n iana

Embora as fórmu l as paralelas da identificação a o significant e


mestre ou a o s i ntoma visem um a função homóloga, elas designam
no entan to dois pro cessos totalm e n t e heterogêneos: a primeira fixa
o v azio do suj eito, a o passo que a segu nda fixa o gozo.
A ide nti ficação tem por correlato o efeito mortificante do
signific ante, digamos a cas tração do g ozo. De fato, não ba sta q ue

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CO LETTE SOLER

ela dê como a r t i fíc io ao suj e i t o falto de iden t i dade seus rep res en­
t a n t e s e s u a s fi g u r a s , fo r n e c e n d o i n v ó l u c r o do q u e há d e
i r re p resentável n a roupa talhada à m oda d o O u t ro. Deve-se tam­
bém frisar que esse vazio do suje ito não é apenas falha de rep res en­
tação. É um vazio que não é inerte, porém dinâmico e cuja ativ idade
se n o m e i a , c o m Fre u d na memória, defesa. D e fesa con tra o gozo.
To talmente opos to, o s i n toma em sua defin ição fre udiana é
um modo d e g ozo. Todas as colaborações sucessivas q u e dele Lacan
pôde p ro p o r n o decorrer de seu e n s ino v i s a ram conceber de q ue
m o d o n r l c s e a r t i c u lam o elemento de l i n g uagem , nece s s á r i o s u p o r
p ara d a r c o n t a d o fa t o de q ue e l e sej a dec i frável e q u e e l e c e da à
d ec i fração, e o elemento de gozo (] U e a í se foz valer cm d e t r i m e n t o
d o s u j e i to. A defi n ição m a i s i m p o rtante do sin toma como fu nção
do s i g n i fi c a n t e , estru t u rado como u m a m e d fo ra , im p l i cava o gozo
n a c o m b i natória s i g n i ficante pela incidência do " s igni ficante eni g má­
tico do trauma sexual" ( I 9 5 7, p. 5 I 8) como memorial de um encontro
i n t ru s ivo de g ozo. No mesmo filão, Lacan pôde distingu i r " o invól u­
c ro forma l" ( I 9 6 6b, p . 6 6) do sintoma de seu n ú c l eo de g ozo.
A ú l t i m a defi n i ção d a d a p o r e l r no St111 i11ário, livro 2 2 : R .S.l.
( I 9 7 5 ) , com o fu nção da letra , res p onde à mesma necessidade, m a s
i n t ro d u z al g o novo. D izer c.1 u e o sin toma é g o z o d a letra não é
d i z e r s i m p l e s m e n t e <.1 uc a l e tra repres e n t a o gozo a t ít u lo d e
m e m o r i a l . É dizer q u e ela p r6pria é objeto e q u e p ortanto o g ozo
i n fi l t r a de uma parte a ou tra o próprio c a m p o da l i n g u a g em, con­
fu n d indo a fronte i ra h a b i t u a lmente t r a ç a da e n t re a l i n g ua g em
m o r t i ficante e o gozo v i v i fica n te. Mas nesse campo da lin g uagem,
p or assim dizer gozado - gozo de decifrar é também "goza -de­
sen tido" (jou i-sens) ( 1 9 74. p. 2 2) - o sintoma s e dist ingue como
uma fi xidez q u e "não cessa de s e escreve r " , sendo a p ró p ria letra
definida pela identidade a s i mesma, ao p asso q u e o s i g n i ficante
comporta sempre a diferen ç a. O incons ciente como lingua g em t ra­
balha, dizia Freud. Traba lhador ideal, j amais em greve, acrescen tava
Lacan. Po is bem, o sintoma é o inconsciente p assado ao real: um
g rev ista, em suma.

400
A PSICANÁLI S E NA C IVI LIZAÇÃO

Concluo então: mais além de sua função homóloga de fixação,


o final por identi fi cação ao analista e o final por identi ficação ao
sintoma são antinômicos. O primeiro enfa tiza a de fesa contra o
real; o segundo, em posição oposta, supõe encarar esse real singular.
A gueda das identificaç ões aos si gnificantes do Outro, como e fe i to
de se paração de onde se descobre o vazio constitutivo do suj eito, é
condição p révia. Todavia é apenas uma condição necessária, mas
não suficie n te. A opção de Lacan consiste a í em preconizar a iden­
tifi cação ao sin toma. É bem isso o qu e ele faz, embora mui to dis­
cre tame nte, ao espe c i ficar se r isso o gue suj eito pode fazer de melhor
(gri fo nosso) . A expressão por si só basta para indicar que há um a
alterna tiva possível.

A Jun ção do sintoma

Essa opção é solidária de uma nova visão de conjunto sobre a


função sintoma tJUe a generaliza e dela reduz a conotação patológica.
É muito pouco dizer simplesmente , como Freud o fazia, que o sin ­
toma é o substituto anômalo de uma satisfação sexual. Uma vez
t] U e e s t a ú l tim a não se ins creve senão no inconsciente, na lingua ­
gem, através das pulsões parciais - descoberta freudiana - que
ignora m a diferença dos sexos, é preciso dizer que a satisfação gue
se prende à relação sexual i em cada c aso sint omát i c a : se a rela ção
sex u al não é inscritível na estrutura de linguagem, o que demons­
t ram, sem e n u n ciá-lo no entanto, todas as elaborações de Freud, é
sem pre o sintoma em sua singularidade que gara n te a cópula do
suj e ito e de seu gozo. O sint oma é portanto o que em todos os
casos faz suplência à ausência de uma relação sexual inscritível. Disto
resulta que não há sujeito sem sintoma , e que o próprio parceiro
vem n esse lugar.
Esse fato obriga, de modo irre futável, a distinguir por um
lado os estados diversos do sintoma ; por outro, as relaçõ es variadas
do sujeito àquele, e a perguntar em qual estado desses estados é
possível identifi car-se e em que sentido.

40 1
CO LETTE S O L E R

As v a r i a ç õ es do s i n t o m a a p a re c e m à fl o r dos fe n ô m e n o s , p o i s
e x i s t e m , é p a t e n t e , o s m a i s o u m e n o s i n c ô m o d o s . U n s s ã o i n t o l e rá ­
v e i s p e l o g o z o d e l e t é r i o q u e i n c l u e m , o u t ro s d e m a s i a d a m e n t e b e m
t o l e ra d o s - q u e s e p e n s e , p o r exem p l o , n a d ro g a o u a in d a n u m a
m u l h e r c o mo s i n t o m a , n e m s e m p re t ã o d e s ag r a dá v e l ; n o c a s o , n ã o
o b a s t a n t e ! Alg u n s s ã o p a rc i a l m e n t e d e s c o n h e c i d o s , p e r m a n e c e n d o
o s u j e i t o c a t i v o d e c o n d u t a s d e g o z o n ã o p e r c e b i da s c o m o t a i s , n ã o
s u bj e t i v a d a s , a t é q u e a a n á l i s e fa ç a c o m q u e e l e o s d i m e n s i o n e . E
d ep o i s , h á o e fe i t o t e ra p ê u t i c o q u e red u z t a l o u t] u a l d e s u a s fo r m a s
q u e a t e n u a m fo b i a s o u s o m a tizaçõe s , c o m o t a m b é m faz d e s a pa re c e r
a o b s e s s ã o d o Ho mem dos ratos. M a s n ã o i m p o r t a c1 u a l fo r a s u a ex­
te n s ã o , e s t e e fe i t o s e m p r e d e i x a u m re s t o de s i n t o m a , i r re d u t ív e l a
(p1 a k1 u c r a n ;í l i s c tcrm i n ;1 d a , n o t] u a l s e fi x a p a r a c a d a u m o gozo
tJ U C foz s u p l ê n c i a � fa l ta d a r e l a ç ã o s ex u a l .

Iden tifirnr-se ao insuportável?

D o m e s m o modo a e x p e r i ên c i a d e m o n s t r a q u e j ;í se p o d e d i s ­
t i n g u i r d o i s c a s o s p a r t i c u la res, s e g u n d o o t] U C r e s t e n o fi n a l d a s
d i s tr i b u i ções d o gozo sej a m a i s n u m e n o s t o l c d v el p a r a o s u j e i to .
N ã o é cm t o d o s os c a s o s , n ó s o s a b e m o s , t] U C a a n á l i s e s e rá b e m ­
s u c e d i d a c m r e d u z i r a s fi xações dol o ro s a s da n e u ro s e e cm rec o n c i ­
l i a r o s u j e i t o c o m a s p u l s õ e s . C o n s i d e re m o s a rea ção t er a p êu t i ca
n e g a t i v a , na q u a l o s o fr i m e n t o perp e t u a d o c o m o u m fên i x e n c o n ­
tra s u a c a u s a e s s e n c i a l m e n os n u m a fi x a ç ã o de g o z o i m p o s s ív e l d e
red u z i r (po i s i ss o v a l e p a r a q u ak1 u e r s u j e i to) d o q u e na m a n u t e n ç ã o ,
e m e s m o no reforço d o que s e apres e n t a c o m o defe s a s u bj et i v a ( a qu e ­
la, p o r exe m p l o , q u e i n i c i a l m e n t e g e r a p a r a o Homem dos ratos o h o r­
r o r q u e s u a o b s es s ã o l h e i n s p i ra) . N e s s e c a s o , a a n á l i s e s ó pode s e
a c h a r prolongada, e t] U a n d o e l a c h ega fi n a lm e n t e a s e u t e r m o , é
antes por renú ncia.
S e , e m t a l c a s o , q u isermos fa l a r a inda a s s i m d e iden t i fi c ação a o
s intoma, s eríamos tentados a confundi-la com uma s i mp les a c e i t a ç ã o :

402
A PSICANÁLIS E NA C IVILIZAÇÃO

cansados da guerra, reconhecermos e admitirmos o que resta no


final impossível de transfo rmar. Mas esta definição um tanto frou­
xa mal permitiria distinguir a identificação da simples resignação. Se a
identi ficação ao sintoma consist isse em apenas "acostumar-se" (se
Ja ire) ao que n ão se pode evitar - aliás, é o modo de escapar disso?
- a expressão não mereceria tanta atenção. Suportar com os den­
tes cerrados pode ter suas vantagens, mas não é um mérito senão n a
ética estóica . Para a psicanálise, isso não será um progresso, se não
for o correlato de uma m udança mais radical. Revisão de posição,
dizia Freud. Ora, en tre o si n t oma recusado na entrada e o sin toma
aceito no fi nal há um terceiro estado do sintoma que define su a
inserção na transferência.

Crer ou não crer

O si ntoma como tal, eu o disse, ex-siste ao inconsciente. No


enta nto todo sintoma pode ser posto em discussã o , interrogado
sobre seu se ntido e sob re sua caus a . Ato gratu i t o sem dú v i da , ma s
s e m p re poss ível. S e Lacan emprega o termo letra para design a r o
elemento q u e se goza no sin toma , é precisam ente p a ra incluir em
sua definição a j unção sempre possível ao inconsciente. A letra tor­
nada obj eto, idêntica a ela própria, não é qualquer "um" : ela perma­
nece suscetível de conexões e seu fora-de-sentido (hors-srns) pode
sem pre retornar ao inconsciente em um traj eto q u e vai do real ao
simbólico. Assim o sintoma, esse grevista , está sempre pron to a
retomar o trabalho . . . na análise.
O suj eito que vem à análise crê em seu sintoma. É completa­
men t e diferen te de identificar-se a ele. Ele crê qu e aquilo que o
estorva, a q u i lo que ele sofre como constrangimento e afeto, "é ca­
paz de dizer .1 l guma cois;i " (La can , 1 9 7 5 , aula de 2 1 de janeiro, p .
I I O) . C rer no sintoma é acrescen tar-lhe, como se fossem "pontos
de suspensão" (idem, p. 1 09) , dizi a Lacan, um " a seguir" do qual se
interroga a não-relação. É crer que o "um" da letra pode retornar

403
C O LETTE S O L E R

ao " d o is" da cadeia , fiar-se na substituição do s s i g n os de q ue o


sin toma tira o sentido. Dito de o u tro m odo , é crer n o "isso fala".
Daí po demos dar uma de fin i ç ã o m ais precisa da iden tificaçã o
a o sint oma q u e n ã o se reduz a simplesmente assumir - q u e r s e
q u eira q u e r n ã o , po uco i mp or ta - o q u e r e s t a d a inércia s i n t omá­
tic a no final de uma a n á l i s e e a re c o n h e c e r aí o modo de g ozo c e n ­
t r al, p r ivilegiado d o sujeito. A expre s s ã o não designa, segundo Lac a n ,
um final de i mpo tência própria a u m suj eito dado. Ela antes designa
um fi nal c o m pa t íve l c o m o impos s í v e l, do q ual o suje i t o se asseg u ­
rou n a a n á l ise p e l o traba lho d o sim b ó l i c o . Isso p o d e ser dito assim :
impossíve l d e a r ticu lar qua l q u er coisa n a l i ngua g em sem impl i car a
c a s t ra ç ã o . D e s de então, id ent i fi c a r-se a o sintoma s u p õ e que o su­
je i t o ten h a c essado de e sperar que d a tradu ç ã o dos pon tos de s u s ­
p ens ã o s u rg isse . . . o te r m o c omp l e m enta r. E l e p o d e a g or a s e
d e s a b o nar do i n c o n s cie n t e, com o J oyce. E j á que fa l a mos da (1 u cda
das i d e n ti fica ç õ e s no d e corre r da análise, fa l e m os t a m b é m de u m a
tJ u e d a da crenç a . Ú u m o u t ro tipo d e (Jueda de fi nal d e a n ;í l i s e (1 u e
faz re to m a r a o fo ra-de-sen tid o . Ap ó s o grande d e s d o b r a m e n to , a
grand e b u s c a de se n t i d o (1 ue fo i a an;í. l isc, ela apag a , no fim, os
p o n to s de s u s p e n s ã o do sintoma e c o l oca o p onto fi nal do s il ên c i o .
Eis a í um t r a çado d e p e rcu r s o : na e n t rada, a c rença n o sinto­
m a que o c o n e c ta com a cadeia signi fi cante d o inconsciente -
t ran s ferê ncia . Na saída , a des cr e n ç a , que o d esco ne c t a da cade i a
i ncons c i ente - fe c h amento do inc o nsc i e n te. Re torno, p o r t a n t o , a
u m " c u não penso ", q u e n ã o é o d a iden tifi c a ção a o a n a lis t a , e q u e
antes é o que L a c a n d esignou c omo um e feito d e "contrapsicanálise".
A identificação ao sintoma é, c om o a t o , o segundo m o do de u m
a t e ísmo d e final de análise, s e m p ro fissão d e fé , o q u e seria u m a
c o n tradição n os termos. O a t o não crê n o i n c o nsc i ente - embor a
o analis ta deva s e fazer en ganado p ela estr u t ura d a l inguagem - a
id entificação a o sint oma tampo u c o o c r ê . S ã o dois po n t os de falha
da tr ansferê n c i a a que pode cond uzir a análise, e são pontos de
silênc i o .

404
A P S I C A N Á LI S E NA CIVI LIZAÇÃO

Conversão de gozy s

Podemos no entanto questionar a c rença de entrada tanto quan­


to sua queda sobre sua verdadeira mola. O que é que fa z crer?
O que au toriza supor que no inconsciente há signifi cantes
q u e podem responder pelo fora-de-sentido do sintoma? Devemos
dizer q u e se crê nisso gratuitamente, a ntes de verificá-lo , sem ga­
ran t i a . É u m a t o de fé. Na psicanálise, verifica-se que essa crença
n ão era gra t u i t a - não se o veri fi c a sempre, é bem esse o problema
- entretanto, antes de veri ficá-lo, às vezes nela se entra.
Qu e na psicanálise a fé preceda à prova , esse é um inconve­
n i en te certo do ponto de vista da exigênc i a c i e n t ífic a . No entanto,
contrariamente a o que s e c rê, não é uma particularidade: apesar das
aparências, n a ciência s e pas s a do mesmo modo. S ó que n a p s i caná­
l i s e pode acontecer l1 ue esta fé faça obs t á c ulo à produção da prova.
Al i ás , na opinião comum h á , apes a r da notoriedade crescente
da ps i canálise , uma s u speita que pesa tanto sobre seu fu ndamento
de r;1ciona l i d a de, q uanto sobre as comun idades analíticas, cons ide­
ra das com freq üência c omo s e i tas, agru pamen tos não part i l h a n do
s enão crenças. Essa s u s peita encontra seu fu ndamento parc i a l , não
digo sua j u s tificação, j u stamente no fato de que nelas s ó se entra
sob a condi ção de crer que o sintom a será dócil e su pondo -se que
haverá u m saber para respondê-lo - transferên c i .i . 1� a pos t u l ação
de entrada, presente de modo implíc i t o , qu ando alguém considera
que a q u ilo que não lhe vai bem é um sintoma: a partir desse m o ­
m e n t o , e l e c r ê ser i s s o algo dec i frável e ll ue i s s o diz alguma coisa
dele. Suspei ta- se q u e crer é sempre mais do q u e crer.
É certo que s e pode formular, como Lacan o fez, o recurso à
análise em termos de questão qu e busca sua resposta. O sujeito
u ltrapassado pelo gozo de seu sintoma o monta como enigma e
apela para o s u j e i t o suposto sab er, de quem espera a resposta pelo
viés da int erpretação: ele c rê em seu s i ntoma e ao mesmo tempo
espera que a resposta do simbólico vá operar s obre o real. S ó que,
eu o d i s s e , falar d e g ozo da letra d e s l o c a a fronteira. D e v e - s e

405
CO LETTE S O L E R

portan t o dizer que a li onde o sujeito crê e aparentemente espera


uma resposta, ali onde ele p ensa ser em um registro p u ramente
epistêmic o , vaz i o de gozo, a li mesm o ele já perm u t o u um gozo por
um o u t ro. Pois entrar n a associação livre é operar uma c onversão de
g ozo q u e m e tonimiza a q u e le que estava fi x a d o no sintoma, d esdo ­
bra n d o - o de um mesmo golpe cm u m g ozar da decifração e um
g ozar do sent ido. O q u e Lacan formula em "A t erceira " : o " Eu
penso, portan t o se g oza " ( I 9 7 5 , p . 1 7 9 ) .
N o final , o s uj e i t o L] u e , iden t i fi c a d o a s e u sintoma , cessa de
cre r, ro m p e de fato com esse modo. É u ma reconversão . .. de g ozo.
O s adiamentos do final na análi s e intcrmin,í.vel têm ass i m o sentido
d e uma esc o lha d e g o zo . Não é u m .i escolha c1 ual9 u c r : é p a rado xal­
llH' n lT a d e u m g o z o to m a d o de um us o do desejo q ue i nsis t e n a

dem a n da . Ma s , va l endo esse d esejo e e s s a dem and.i como falta a


g oza r, t r a t a - s e de u m gozo d a p ró p r i a fa l t a-a- g ozar, di g a m os, u m a
s a l i s Li ç ão t i ra d a d a p erp e tu a ç ã o da defe s a. C o m p reende-se LJ u e s e
h ;í u m a a l t- e rn a t iva ;\ id e n t i ficação d o sin tom a , e l a s e e n con tra d e s t e
l a d o , e e s t a d e fe s a deve t e r sido a t rave s s a d a p a ra L1 l l l' a ide n t i ficação
fi n a l a o s i n t o ma adve n h a . Porém o sin toma a o q u a l o su j e ito p o s s i ­
vd m cn t r se i d e nt i fica n o fi nal é u m s intoma t ran s fo r m a d o , m a is­
a l é m da t ravess i a da fa n t a sia . Te n d o e n t regue suas chaves , ele fica
como desabitado de sua m en t i ra sig nificante - "Proto11 psmdos" ( I 8 9 5 ,
p . 3 6 3 ) d izia Fre u d , ''jalsus " ( I 9 70, p. 8 0) retom ava Laca n , o eL1 u í­
vorn com o " ca ído" (chu) q ue d eriva da etimolo g i a , i n d ica ndo de
modo p rec i s o s u a redu çfo. Este sintoma não é uma formaç ã o de
c o mpro m is s o , p o i s ele cessou de incluir o (- I ) da de fesa. A p artir
de c11 tão, a l e t ra do sinto m a reco bre o vazio do suj eito Ll u e se des­
faz da Ll u estão do ser e da clucubração de saber a ele referida: não se
fala m a is.
Qu estão: este suj eito doravante casado com seu sintoma, Ll ue
lugar. p ara não dizer q u e chanc e, ele d e i x a ao l aço social e, n1u i t o
p articu larmente, a o laço do amor? Tomo a q uestão pelo lado homem,
o único e m q ue se pode p redicar por todos.

406
A P S I CA N Á LJ S E NA C l V ! L l ZAÇÃO

A mar seu sintoma ?

E m I 9 7 5 , n a mesma lição de 2 I de j aneiro em q u e i n troduz a


de finiç ão do sintoma como função da letra , Lacan avança a s eguin t e
fórmula: " Transponho u m pass o - para quem é embaraçado pelo
falo , o que é uma mulher? É u m sintoma " ( I 9 7 5 , p. 1 07) .
A B íblia colocava a mulher dentre os b ens , entre o asno e o
b o i . Eis o q u e a coloca em série com a ob sessão, a fobia, o próprio
fe t ic h e , inc l usive e até mesmo, para comple t ar a série das e s t r u t u ­
ras clínicas, com as v o z e s do automatismo ment al.
En tretanto percebemos a ló gic a que conduz a es sa a fi rm a ç ã o
a p a re n t e m e n te estra n h a : a lingu agem a c a sala , é certo , o homem e a
m u l h e r como significantes e o disc u rso lhes pres creve a s n o r m a s de
s ua s condu t a s, m as n a hora da verdade da c opu lação dos c o rpos,
q uando não é mais o sembl ante que responde e sim o gozo real, não
há nada no inconsciente para inscrever uma relação dos gozos sexuadas.
Daí o eterno m i s tério do casal amoroso Ll ue a p sicmMise desde Freud
pretende elucidar na via r a c i o nal da dec i fra ção do i n c onsc i e n te.
Não h á d upla i n s c rição dos gozos no inconsc iente, mas sim
p a ra c a da s uj e i t o a inscriçã o - repres ent a n t e d a re presentação,
dizia Freud - a m a rca dos prim eiros encontros de gozo . . . a repe t i r.
Assim o inves t imen to d o objeto se encon tra duplamente de termi­
nado: a c a s t ração é sua condição p r ime i ra , como menos-gozar i n e ­
rente a o suj eito e que pe rmite tra n s ferir sobre o obj e t o u m valor de
gozo !, através do q u e o parceiro vem represen tar, L] Uase m e t a fo rizar
o gozo do próprio s uj e ito; m a s é precis o a inda q ue e s s e obj eto
t raga a través do encontro - acaso do c1 m or - a marc,1 vinda do •
inconscien t e do s u j eito. Qu e ela s eja s i n toma e não apenas objeto
anônimo e intercambiável, quer dizer que a "uma" em questão porta
algu ns sina i s enigmá t i c o s dela des c onhecidos, e na maioria das ve­
zes do próprio s u j e i t o , q u e a colo cam em afinidade com seu i n ­
c o n s ciente . S enão como conceber o cará t er imperativamente eletiv o

3 . C f. os desenvolv imentos do Seminário, livro 1 4: a lógica da fantasia.

407
CO LETT E S O L E R

do amor através do qual um homem se imagina poder dizer a uma


mulher: " Tu és minha mulher " ? Mentira que o tempo se encarrega
de denunciar? Sem dúvida , mas não é mentira do sujeito. É o "real
que, por não poder senão mentir ao parceiro, inscreve-se como neu­
rose, perversão ou psicose" ( I 9 74, p. 2 I ) . Assim, o todo do amor
vem a se sustentar do verbo, seja na palavra do s edutor c uja função
é menos de seduzir do que de constituir seu objeto, n a missiva de
amor que substitui o parceiro pela carta - deve-se desconfiar do
apaixon a do muito devotado às suas cartas - ou no sintoma que o
realiza, o verbo.
V:1le dize r t]UC uma mulher, t;i nto quanto uma obsessão, u m a
fo b i a, ou a i n d a . . . u ma voz, permite a o suj e ito g ozar de s e u i ncons ­
ciente, de um termo retira do de s eu inconsc i ente. Nada a ver com a
q u estão de sa be r s e isso agrada ou não a ela . S e ela goza - recipro­
cidade --- -- ou não, é um pro ble m a completamente d i ferente, aquele
de s e u s obje tos o u de seus sintomas próprios. Lacan u m a vez ob­
servou essa q uestão surpreen dente: j u lga -se um h omem por sua
m u l h er e a rec ípro c a não é verda deira ! Preconceito, crenç a , o d c u l o
o u sa bedoria de experiência? Antes, lógica inevidvcl: se u m a mulher
para um homem é sintoma , ou seja, realização do inconsciente, então
nela vemos aparecer o inconsciente ex teriorizado, o inconsciente na
superfíc i e -- como, aliás, cm cada caso e contrariamente ao que se crê.
D e fato, às v ezes ela parece muito com uma obsessão; entre o
rato do l 1 0 11w11 dos ra tos e uma mulher pode haver a s maiores ;malo­
gias! Iss o apa rece d esde os fenômenos e em primeiro lugar no fato
de que o amor, não um vago sentimento mas o amor verdadeiro, é
um forçamento inesperado, sensível ao encontro, com freq üência
cm con tradição com as opções do suj eito. Além disso, uma mulher
pode obcecar de um modo dev astador. A expressão francesa diz '' ele
a tem na pele" 4 • Na verdade, devemos constatar q ue na grande
4. N. do T. N o original, ;/ /'a dans la pea u . Expressão do final do séc. XIX,
s i g n i ficando esta,· apa ixonado p o1·. Trata-se de um cruzam en to entre na pele, expres­
sa ndo a identifi cação quanto à forma, e locuções em que a pele represe11ta o
corpo desej ado. c t� também a defin ição cín i ca do amor dada por N i colas de
Cham fere ( I 7 40- 1 794) como "contato de duas epidermes " .

408
A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

maioria das vez es um homem antes tem " u m a " na cabeça e não
pode fazê-la sair de seu espírito. Às vezes isso se acompanha de
fobia: ele não pode se aproximar, ou seja, aproximar-se de tod as
exceto dela, para evocar a fórmula "tudo menos isso" que Lacan
aplica à m u l her de Sócrates. Isso tampouco exclui a fetich ização:
esta e nenhuma outra, condição vital, absoluta, sem a qual o suj eito
crê estar à beira da morte.
Um c aso m e pareceu bem ilustrativo do valor de sintoma de
uma mulher: vê-se nele uma seqüência que indica a equ ival ênc i a
desta com a condição fantasístic a d e gozo; e m s egu ida, q u a n do s e
interrogam a s particular idades da escolha de obj eto, o s tra ços que a
conectam com o próprio inconsciente do suj e ito, de um modo quase
fetichista.
É um rapaz inteiramente votado às práticas masturbatórias
- que portanto nunca se a p rox imou carnalmente de uma m ulher
- com precisas téc nicas que as acompanham e q u e cons istem em
utili zar fotos publicitárias nas qua is o traço distintivo é o fa ro do
corpo não estar inteiro. Ele escolhe pedaços de corpo, ele não p re­
cisa ver senão um pedaço para que seja erótico; ou então, gravações
de c asa is copulan do - eis a í, portanto, a maneira pela qual est e
rapaz consome sua energia na masturbação. Eis que encontra "um a "
mulhe r. A partir d o momento em que ele está com essa pessoa, h á
uma desapa rição-milagre d e todos os cenários masturbatórios.
Podemos j á deduzir que ele permutou uma condição de gozo por
uma outra e que ela está situada no próprio lugar das condições
fantasísticas que ele utilizava até então. Porém a prova vai muito
mais longe: a jovem o deixa, e i -lo sozinho. . . Poderíamos supor que
ele retornaria aos seus cenários, mas . . . não imediatam ente. Durante
um bom tempo ele l h e escreve , escreve-lh e cartas injurios as, amea­
ças, todo tipo de c oisa. Enquanto ele l h e escreve, nada de
masturbação, nada de cenários. Uma manobra da moça conduz à
interrupção das cartas e aí, isso é bem demonstrativo, apenas ele
cessa de escrever, recomeça com as mesm a s pequenas fotos, as m es­
mas grav ações. Dito de outro modo, não somente se vê de modo

409
CO LETTE S O LE R

c o n c re t o uma m u l h e r vir no l u g a r d a s a t i s fa ç ã o como t a m b é m s e vê


q u e a p e n a s e s c re v e r- l h e - n ã o sei d e m o do exato o q u e havia n a s
c a r t a s , m a s s ã o n e c e s s a r i a m e n t e s i g n i fi c a n t e s --- a p e n a s o m a n e j a r
e n d e r e ç a d o a e s s a m u l h e r de u m c e r t o n ú m e ro d e p a l a v r a s , d i re t a ­
m e n t e s u rg i da s d e s e u i n c o n s c i e n t e , p o i s b e m , i s s o s a t i s fa z i a a o
g ozo, s e a s s i m p o s s o d i ze r, a p o n t o d i s s o d i sp e n s á - l o de s e u s c e n á ­
rios.
S e rá p re c i s o a i n d a v e r i fi c a r q u e e l a é u m a p ro d u ç ã o d a s p a r t i ­
c u la r i d a d e s d e s e u i n c o ns c i e n t e ? E l e a n o t o u p e l a p r i m e i r a v e z n u m a
d e s t a s ;1 d m i n i s t ra d o r a s o n d e m u i to s e s c r i t ó r i o s s e a v i z i n h a m n a
m e s m a peç a , s e p a r a d a s p o r d i v i s ó r i a s m óv e i s . E r a m d i v i s ó r i a s fr i ­
t a s e m t r e l i ç a , p o r t a n to d e s e n h a n do l o s a n g o s d e v a z i o s . N o m o ­
m en t o c m q u e fa l a v a c o m a p e s s o a q u e o a t e n d i a , u m b a ru l h o c h a ­
m a s u a ;H c n ç ;io e , c o m o r a b o d e o l h o , e l e p e rc e b e f"u rt i v a m e n t e ; n o
e 11 t1 u a d ra m e n t o d e u m d e s s e s l o s a n g o s , u m t o r n o z e l o e o c o m e ç o
d e u m s a p a t o c o m t i ra s de c o u ro . E l e s e n t e u m a p e r t u r b a ç ã o e s t r a ­
n h a , q u l' o s u r p !"l' c n d c . Po r o c a s i ;i o d e u m a s e g u n d a v i s i t a , e l e re p e ­
t e a ex p e r i rn c i a , des t a vez. i n t e n c i n n a l m c n t:c, e e n t ã o s r s e g u e a b u s c a
e o e n c o n t ro d a m o ç a . Qu e e l a t e n h a s i d o e s c o l h i d a p o r s u a c o n v e ­
n i ê n c i a , a d a p t a d a d e m o d o e s p e c í fi c o , o q u e o é a i n d a m a i s à s c o n ­
d i ç õ es fa n t a s ís t i r a s d o s uj e i to , i s s o é c l a ro . O a c a s o fa z c o m t] u e ,
a l é m d i s s o , e l a t e n h a o mesmo nome e a mesma d a t a de nascimento
t] U e a m ã e d e l e , ex c e t o a d i fc re n ç ;i d e v i n t e a n o s e n t re a s d u a s . É o
e l e m e n t o de re p e t i ç ã o . To d a v i a h ;í: m a i s , a s a b e r : u m a l e m b r a n ç a
e n c o b r i d o r a c1 u e i n s e re a p ró p r i a m ã e n a c o n d i ç ã o d e d e s p e da ç a m e n r o
d o o b j e t o p re s e n t e n o s c e n á r i o s . S u a m ã e c o s t u r a v a a m i ú de à
m á q u i n a , m u i t o o rg u l h o s a de não u s a r m o t o r e l é t r i c o , e s i m u m a
d e s s a s v e l h a s m á q u i 11a a p e d a l h oj e e n c a l h a d a s em fe r ro s - v e l h o s .
U m d i a , q u a n d o e l e t i n h a t rês a n o s , e s t a v a s e n t a d o n o c h ã o , d o
o u t ro l a d o d a m á g u i n a , g u a s e n a d a v i a de s u a m ã e , ex c e t o , e n t re o s
s u p o r t e s d a m á q u i n a , o p é . . . a p o i a d o s o b re o p e d a l n o p r ó p r i o r i t­
m o do b a r u l h o da m á q u i n a , do q u a l e s p re i ta a s i n t e r r u p ç õ e s e re t o ­
m a d a s . Lem b r a n ç a de u m a s a t i s faç ã o p ro fu nda. Po d e m o s fi g u rar
até que p o n t o a eleição amorosa c o n c erne p o u c o à s u b j e t i v idade d a

410
A P S I CANÁLISE NA CIVI LIZAÇÃO

amada e muito aos traços de identificação do obj eto no inconsciente


do sujeit o !
Crer nisso (y croire) , neste sintoma-mulher, q u e d e s e u fo r a do
sent ido embaraça o sujei to; crer n isso , como em u ma obsessão, u m a
fobia ou q u alquer outro sintoma, crer n isso consiste pensar que a
escolha amorosa é decifrável. Fo i o que fez Freud ao con s i d erar o
q ue parece mais rebelde à razão, isto é , a paixão amorosa como
podendo, não obstante, ser decifrada racionalmente e tendo liberada
sua chave exatamente como o sin toma. No momento em que ele
escreve sobre a psicologia da v ida am orosa, e l e faz a opção de cre r
nisso , ou seja , de postular q u e s e pode fa z e r o inconsci ente respon ­
d e r à questão: " Po r que ela? ', e é também o que fa z o analisan t e na
aná lis e.
Há muito t empo uma observação de Lacan me surpreende u.
Em sua única lição sobre os Nomes-do - Pai, desenvolvendo a idéia
de q u e para não errar o psicanalista deve se fazer l udibriado pelo
in consciente, ele insere uma pequena observa ção sobre um a cit a ç ã o
d e Cham fort, dizend o : "Nunca se é totalmente pateta d e uma m u ­
l h er enquanto e la não for a sua" 5 • A sua d e mulher ou a sua de
pateta? Quest ão. Vemos entretanto o desliza m e n t o ope rado do
inconsciente a uma mulher.

Nela crer (la c roi re)

Qu e o suj e i to inte rrogue ao inconsciente sobre seus amores é


u ma coisa ; contudo que a resposta lhe venha da "uma" em q u estão
é uma o utra. Não é mais crer n isso, mas sim " nela crer ". Um risco ,
d i z Lacan , a q uele d o amor. A i está a diferença d a obsessão, d a fobia
etc. É que uma mulher fala sem q u e se lhe per g unte. Nela crer não
é ap enas su p or que ela sej a a eleita do inconsci ente, é tam bém con­
fundir sua fala com a verdade dest e inconsciente , reconh ecer a í o

5 . N. do T. No original, "On n'est jamais tout à fa i t dupe d'une femme tant


qu' elle n' est pas la vôtre". Como, em francês, dupe é um substantivo femin ino,
traduzimo -lo por "pateta" a fim de mantermos a q uestão pro p ost; em s e g uida
pela autora.

41 1
C O L ETTE S O LE R

p ro fe r i m e n t o de u m : " t u é s " de i n t e r p r e t a ç ã o . É colocar seus ditos


no l u g a r dos p o n t o s de s u s p e n s ã o do s i n t o m a , l á o n d e d e v e r i a v i r a
d e c i fr a ç ã o . A re a l i d a d e c l ín i c a d e s t e fa t o é i n t e i r a m en t e i n d u b i t á v e l .
D a í u m a d iv e r t i da v a r i a n t e do i m perativo b íb l i co : a m a r s u a p ró x i m a
c o m o a v o z de s e u i n c o n s c i e n t e !
S a b e m o s o p e s o na ex p e r i ê n c i a do "Mag ister dixit " . N a a n á l i s e ,
à s vezes devemos p ô r n a b a l a n ç a o " M i n h a m u lher d i z q u e " . M u i ­
t o s d o s fo t o s c l í n i c o s s e e s c l arecem a p a r t i r daí, e s obre t u do e s t e :
q u e u m a m u l h e r p o s s a à s vezes t e r u m p a p e l q u a s e p e r s egu i dor,
c o m o v o z q u e b u z i n a nas o re l h a s . C o m c e r t eza i s s o não v a i bem
com a h a r m o n i a d o c o t i d i a n o , pois a s m u l h e r e s g o s t a m , a o c o n t rá ­
ri o , q u e s e l h e s fo l e e q u a s e s e m pre n a vez d e l a s . . . pagam c o m o
exe m p l o . C o n s ta t a m o s t a m b é m q u e n a fa l ta de r e d u z i - l a ao s i l ê n ­
c i o , a s o l u ç ã o p a ra o h o m e m às v e z e s é csc m a r m u i t a s , t o c a r s u a s
s i n fo n i a s , p o r q u e l1 u a n d o e l e n ã o t e m s e n :i o verd a d e i ra m e n t e u m a
pa ra c r e r é, c o m o s e d i z , a lo u c u ra . . .
N a a l u c i n a ção, o s u j e i t o é i d e n t i fi ca d o p e l a m e n s agem o u v i d a ;
p o r i s s o L1 c a n p ô d c d i z n : d e c r ê n e l a s , s u a s v o z e s . Po i s b e m , c r e r
cm s u a m u lh e r n ã o é m u i to d i feren t e . Po r é m u m a n u a n ç a : t a l c o m o
p a ra a s vozes , i s s o n ã o q u e r d i z e r s u b m eter-se a e l a s ! O b s e rv e m
S c h re b e r : e l e re c e b e do o u t ro u m a m e n s agem c.1 u e s e p o d e r i a fo r­
m u la r a s s i m : " Ti.1 n ã o és u m h o m e m ! '' . E e l e c r ê n a s voze s , m a s
p ro t e s t a e l u ra a t é e n c o n t ra r u m c o m prom i s s o . " M in h a m u l h e r d i z
ll u c " t e m a e s t r u t u r a d a p e rsegu i ç ã o , e não é p o r c a p r i c h o l1 u c La c a n
c o l o c a : o c ô m i c o do a m o r é o c ô m i c o da p s i c o s e , a s a b e r, g u c se
creia nela, como u m a voz. To d a v i a há e s ta d i fere n ç a : s e a p a r a n ó i a
i d en t i fi c a o gozo n o l u g a r do O u t r o ( La c a n , I 9 6 6 c , p . 74) . o a m o r
a í c o l o c a a n t e s de t u d o a mensa gem da verdade.
D a í e s t e v o t o , bem m a s c u l i n o : " Fe c h e o b i c o ! " D ito de o u t ro
m o d o : " S ê bela e c a l e a b o ca ! " N ã o se deve ima g i n a r q u e s ã o o s
c r i t é r i o s d e e s t é t i c a q u e a d o m i n a m . O p e s o i n c ide s o b re o " c a l e a
b o c a " . C o m o s e l h e dissessem: "Não vá lá onde es tá o inconsciente".
Na anál i s e , " l á o n d e isso era, e u devo adv i r " , mas n o a m o r, q uando
"lá o n de isso era, adv ém sua fala", p ois bem, estamos n u ma e s t ru t u r a

412
A PSI CANÁ L I S E :-.IA C IV IL IZAÇÃO

d i s c retamente paran o iza n t e , q u e c o n s t i t u i uma grande parte da tra­


g i comédia do casal. É qu e com a verdade, venha ela de o n de v i e r,
n ã o há senão uma úni ca relação segura: a castração.
Eu conheci o c a s o de um homem l] U e , p o r trinta anos, todos
o s dias, a n o tava em s u a s agendas o q u e e l a h av i a dito, c o m o s e seu
se r a l i es tivesse e m jogo! Po r o u t ro l a d o conhecemos, em casos
m e n o s ex t re m o s , o s fenômenos de fis c alização conjugal que certos
homens exerc em s o b re aquela que não é fo rçosamente s u a e s p o s a ,
m a s e n fi m que é a " u m a " em q u e s t ã o . Conhecemos essas m u l h e res
cons ignadas à re s i dência no l a r, porqu e é p re c i s o a o menos c i r c u n s ­
c reve r o perigo - é um m ecan i s m o e q u i v a l e n t e ao q u e s e p ro d u z
n a fo b i a . N e s t a , l oc a l i zamos u m a a m e a ç a s o b um s ig n i fi c a n t e e
e s tamos t ram1 ü i l o s em todo l u g a r o n de e l e não estiv e r. Po is b e m ,
p a r a alguns, quando a mulher es tá em c a s a , o homem pode aplicar-se,
dedi ca r- s e tran q ü i l a m e n t e à s suas ocupações do l ado de fora. M a s
s e ela chega a s e move r e a s e pron u n c i a r em p ú b l i c o , i s s o p o d e se
tornar m a is perigoso. H á também o t i po do homem i n q u i s i d o r : ele
g o s t a r i a d e ter dela s u a ú l t i m a palavra ! Po r que não evocar ;i i n da o
fe n ô m e n o d a s m u l h e re s e s p a n c a d a s : e l e é s e m d ú v i da s o b re ­
de term i nado, mas aqui também evocarei u m caso. E l a não é
espanc ada quando a b re a boca para falar c o i s a s e l o i s a s , m a s <.] U a n d o
q u e r d i ze r a l g u m a c o i s a sobre eles do i s . A í o tempo fec h a .
Considerando esta estrutura, poderíamos repensar a dep rec iaçã o
da v i d a a m o rosa rec o n h e c i da p o r Fre u d .
Comenta-se com j u s t a razão essa c l ivagem en tre o a m o r e o
desej o , a s s im como a a m b ivalência para c o m a m u lher amada, e s s a
m i s tura de idealização, de agressiv i dade noc iva, de propens ã o a ator­
m e n t a r o obj e t o , pe l a impl icação da cas tração n o amor. D e fa t o , se
a m a r é c o n fessar s u a fa l ta e poder amá-la p o r aqu ilo que ela n ão
tem, concebemos q u e o amo r p o s s a provocar, es p ecialmente n o
h o m e m , alguma coisa c o m o u ma defesa, u ma espécie d e p ro t e s tação
viril contra o amor. A mulher r ica e a mulher pobre, não devemos
pensar que isso tenha a ver apenas n o nível do porta-níq u e i s , p o i s
e s t e pode v a l e r c o m o m e t o n ím i a da c a s t r a ç ã o . H á u m t i p o de

41 3
CO LETTE S O LE R

necessidade para que ela seja desej ada, a fim de que volte a ser pobre.
A de pre c i ação o favorece, pois depreciar o obj eto é lhe dar o sentido
da cast ração. É u m a estra tégia do suj e i t o homem para fazer oscilar
- o termo é de Lacan em "A s u bversão do suj e i t o na dialética do
desej o " ( I 9 6 0b) - a castração imaginária de um termo a outro do
casal.
Esse primeiro desenvolv imento pode ser c ompletado obser­
vando q u e " nela cre r " não se s i tua ao nível do ter, mas do ser: crer
em s u a mulher é crer que o q u e ela p rofere não fala a p enas dela, mas
de você. É c laro, há a palavra de amor, da qual a mulher é suposta
deter o requ i n tado manej o , e que ... embeleza aquele a quem ela se
endereça . S ó qu e h ;í também a palavra de verdade, a que nos inte­
ressa aqu i e esta é sempre ou tra coisa.
A palavra d e verd a d e n u n ca é u m a palavra de amor - isso não
tJUCr dizer ()UC o amor não sej a verdade, de p ode sê-lo, porém q u ando
u m sujeito diz a verdade, parecia ti u e o a m o r m entia. Não é e s t a
uma d a s m ú l t iplas razões p e l a s t)u a i s a s m u l heres são t ã o a c usadas
de men t i r ? Elas tJUC manejam pre fe renc ialmente a palavra de amor,
tJ Uando vem a palavra de verd a de o engano explode. A l ín g ua traz o
ves tíg i o de tJUe verdade e amor não fazem um tão bom ménage:
" Dizer a algu ém suas quatro verdades " , isso está mais relacionado
com uma mensa g em de castração. Isso s e parece m u i t o ao (J U e
S c h rcbcr escuta de s u a s vozes : " Tu n ã o és um h o m e m " , não o b a s ­
tan t e ! Res u l tado: c re r em u m a m ulher é não apenas instalá-la no
l u gar de um s upereu feroz, mas também c olocá-la em competição
c o m a articulação do inconsciente. Muitas coisas s e deduzem disso:
p rimeiro, que uma mulher em quem s e crê não é um s i n t o m a
analisável; q u e a fiscal ização exe rcida por c e r t a s mulheres sobre a
análise de seu homem tem sua lógica, exatamente como o s es tra­
nhos s i l ê n c i o s q u e às vezes o b s e rvamos nos testem u n h o s dos
p assan tes a respeito de uma mulher que, a olhos vistos, conta, e da
qual nada se diz.

414
A PSICANÁLI S E NA CIVI LIZAÇÃO

Um amor ateu?

O que dizer então da identificação ao sintoma q u ando o sin­


toma é u m a mulher? A questão da incidência de uma a n á l i se con­
clu ída sobre o cas a l homem - m u lher aí está em jogo. S eria por de­
m ais simples autorizar-se do " n ão há relação sex u a l " para nos fa_
zerm os u m desti no de um vago "isso n unc a v a i bem " (?) , q u ando a
a n a l i s e bu sca dizer não apenas o porquê que vale para todos , mas
também o de que modo próprio a cada um.
Identificar-s e ao s i ntoma é, nesse c a s o como em q u a l q u e r ou­
t ro , cessar de crer nisso e após tê-lo reduzido ao in decifrável, c o l o ­
c a r u m a suspensão d e fin itiva à ll ues tão q u e e l e s u s citava. Para u m a
A
m u ll1 e r, s era, cessar d e mterro
. gar: " Por q u e e l a? .. . V e - s e o b cne f'1 c 1. 0
cm relação à dúvida d o neurótico. Isso não a repele fo rço samente
de seu luga r, mas isso faz passar a escolha do suj eito à certeza e . . . ao
silêncio. Qu em pe rde a í? O amor sem d úvida aí deixará s e u s pontos
de suspensfo; ele será assim menos tagarela , mas nem po r isso menos
real. Em contrapartida, o dis c urso a m oroso aí d eixará as plu m a s ,
i s s o n f o deixa dúvid a s !
T1lvez u m a m o r ateu separa do da fa la. Pois p a r a o que é d o
ne la crer, é certo q u e o tra balho de an,íli s e faz s u a t1ueda. Ele não
pode senão operar uma separação para com o oráculo da fala Outra.
Inq u ieta m o -nos com os efei tos, isso é conhecido. Mas q u er i s s o
dizer q u e ao cessar d e tomá-la p el o O utro, o s u j eito s u bstituirá
p o r um desenvolto: "Continue ta g arelando " ? Pode haver disso , mas
não s erá obrigato riamente para o pior, pois não é necess,í.rio e star
separado da fa la do O utro para poder escutar a di ferença?

415

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