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Carta 52 de Freud a Fliess

06/12/1896

6 de dezembro de 1896

Querido Wiihelm,

Hoje, depois de ter desfrutado, por uma vez na vida, da dose integral de trabalho e honorários
de que preciso para meu bem-estar (dez horas e cem florins), estou morto de cansaço e
mentalmente revigorado; tentarei fazer-lhe um relato simples da última especulação. Como
você sabe, estou trabalhando com a hipótese de que nosso mecanismo psíquico tenha-se
formado por um processo de estratificação: o material presente sob a forma de traços
mnêmicos fica sujeito, de tempos em lempo, a um rearranjo, de acordo com as novas
circunstâncias — a uma retranscrição. Assim, o que há de essencialmente novo em minha
teoria 6 a tese de que a memória não se faz presente de só uma vez, e sim ao longo de
diversas vezes, je| que é registrada em vários tipos de indicações. Postulei a existência-de uma
espécie semelhante de rearranjo algum tempo iilrás (Aphasia), com respeito às vias que
provêm da periferia |do corpo até o córtex|. Não sei quantos desses registros existem — pelo
menos três, provavelemente mais. Isso pode ser visto no diagrama esquemático abaixo, que
pressupõeem os diferentes registros também sejam separados (não necessariamente em
termos topográficos) de acordo com os neurônios que suo seus veículos. É possível que essa
pressuposição não seja necessária é a mais simples e é provisoriamente admissível.

W I Wz 11 Ub III Vb BewW

xxXXX—XXXXXXXXXXXX

W \Wahrnehmungen (percepções)| são os neurônios em que se originam as percepções, às


quais a consciência se liga, mas que, em si mesmas, não retêm nenhum traço do que
aconteceu. E isso porque a consciência o a memória são mutuamente exclusivas. Wz
\Wahrnehmungszeichen (indicação da percepção)| é o primeiro registro das percepções; é
totalmente inacessível à consciência e se organiza de acordo com associações por
simultaneidade. Ub \Unbewusstsein (inconsciência)| é o segundo registro, disposto de acordo
com outras relações, talvez causais. Os traços do Ub talvez correspondam a lembranças
conceituais; é igualmente inacessível à consciência. Vb j Vorbewusstsein (pré-consciência) | é o
terceiro registro, ligado í\ representação da palavra e corresponde a nosso ego oficial. As
catexias provenientes de Vb tornam-se conscientes de acordo com certas regras; e essa
consciência secundária do pensamento é posterior no tempo e, provavelmente, está ligada à
ativação alucinatória das representações da palavra, de modo que os neurônios da consciência
sejam também neurônios perceptivos e desprovidos de memória em si mesmos. Se eu
pudesse fornecer uma explicação completa das característicus psicológicas da percepção e dos
três registros, teria descrito uma nova psicologia. Disponho de algum material para isso, mas
esta não é minha intenção atual. Gostaria de enfatizar o fato de que os registros sucessivos
represen tam conquistas psíquicas de fases sucessivas da vida. Na fronteira entre duas dessas
fases é preciso que ocorra uma tradução do material psíquico. Explico as peculiaridades das
psiconeuroses através da suposição de que essa tradução não se tenha dado no tocante a uma
parte do material, o que acarreta certas conseqüências. E isso porque nos atemos firmemente
à crença numa tendência ao ajustamento cjuantitativo. Cada transcrição posterior inibe sua
predecessora e esgota seu processo excitatório. Quando falta uma transcrição posterior, a
excitação é tratada de acordo com as Ic I n psicológicas vigentes no período psíquico
precedente e seguindo as vias abertas naquela época. Assim, persiste um anacronismo: numa
determina da província, ainda vigoram os fueros(2); estamos na presença de "»obrevivências”.
Uma falha de tradução — eis o que se conhece clinicamente como “recalcamento”. O motivo
disso é sempre a liberação do desprazer, qllt seria gerado por uma tradução; é como se esse
desprazer provocasse um distúrbio do pensamento que não permitisse o trabalho de tradução.
Dentro de uma mesma fase psíquica e entre registros da mesma espécie, uma defesa normal
se faz sentir graças à geração de desprazer. Mus a defesa patológica só ocorre contra traços
mnêmicos de uma fase anterior que uinda não tenham sido traduzidos. Não pode ser pela
magnitude da descarga de desprazer que u defesa logra êxito em promover o recalcamento.
Muitas vezes, lutamos em vão precisamente contra as lembranças que envolvem o mais agudo
desprazer. Portanto, chegamos à seguinte explicação. Se um evento A, na ocasião em que foi
atual, despertou uma certa quantidade de desprazer, seu registro mnêmico, AI ou AII, tem
meios de inibir a descarga de desprazer quando a lembrança é reativada. Quanto maior a
freqüência com que a lembrança volta a ocorrer, mais inibida se torna a descarga, finalmente.
Entretanto, existe um caso em que a inibição é insuficiente. Se A, na ocasião em que era atual,
liberou um determinado desprazer, e se, ao ser reativado, libera um novo desprazer, este
último não pode ser inibido. Nesse caso, a lembrança se porta como se fosse um evento atual.
Esse caso só pode ocorrer com os eventos sexuais, porque as magnitudes das excitações que
eles liberam aumentam por si só com o correr do tempo (com o desenvolvimento sexual).
Portanto, um evento sexual de uma fase atua na fase seguinte como se fosse um evento atual
e, por conseguinte, não é passível de inibição. O que determina a defesa patológica
(recalcamento), portanto, é a natureza sexual cio evento e sua ocorrência numa fase anterior.
Nem todas as experiências sexuais liberam desprazer; a maioria delas libera prazer. Assim, a
reprodução da, maioria delas está ligada a um prazer impossível de inibir. Esse tipo de prazer
não-inibível constitui uma compulsão. Portanto, somos levados às seguintes teses: quando
uma experiência sexual é recordada numa fase diferente, a descarga de prazer é acompanhada
pela compulsão, e a descarga de desprazer, pelo recalcamento. Em ambos os casos, a tradução
para as indicações da nova fase parece ser inibida (?). Ora, a experiência clínica nos familiariza
com três grupos de psiconeuroses sexuais ■— a histeria, a neurose obsessiva e a paranóia; e
ela nos ensina que as lembranças recalcadas se relacionam com o que foi atual: — no caso da
histeria, entre 1 ano e meio e 4 anos de idade; — no da neurose obsessiva, entre 4 e 8 anos; —
e, no da paranóia, entre 8 e 14 anos. Antes dos 4 anos de idade, porém, ainda não há
recalcamento; portanto, os períodos psíquicos do desenvolvimento e as fases sexuais não
coincidem.

1 -X- 4 8 14— 15 Psíq. Ia Ib II III Sex. I 1 11 III

O seguinte pequeno diagrama deve ser incluído neste ponto:

Wz Até 4 Wz Ub Até 8 Wz Ub Vb Até 14-15 Idem


Histeria atual Compulsão Recalcada em Wz
Neurose obsessiva Atual Recalcada nas
indicações de Ub
Paranóia Atual Recalcada nas
indicações de Vb
Perversao atual Atual Compulsão (atual) Recalcamento
impossível ou não
tentado

Outra conseqüência das experiências sexuais prematuras é a perversão, cujo determinante


parece ser o fato de que a defesa não ocorre antOU de o aparelho psíquico estar completo, ou
então não ocorre nunca. Basta da superestrutura. Vamos agora a uma tentativa de posicioná
In sobre suas bases orgânicas. O que tem que ser explicado é porque iin experiências sexuais,
que geraram prazer na época em que foram u U iiiím , passam, ao serem recordadas numa
fase diferente, a gerar desprazer cm algumas pessoas, persistindo em outras como uma
compulsão. No primeiro caso é evidente que devem estar liberando, numa época posterior,
um desprazer que não foi liberado a princípio. Deve-se também investigar a derivação das
diferentes fases, as psieo lógicas e as sexuais. Você me ensinou a reconhecer estas últimas
como múltiplos especiais do ciclo feminino de 28 dias/3-* 1007T = 7-jr anos, somados a 20n =
1 ano e 6- 5- meses 20Ü7T = 15 anos 507r = 3 anos e 10 meses Sc eu presumir que todos os
períodos observados são múltiplos desse tipo, ocorrerá que, de um lado, o período de 23 dias
continuará sem utiliza çõo e, de outro, faltará explicar porque as fases psíquicas e sexuais nflo
coincidem (4 anos) e porque, algumas vezes, surge a perversão, e, cm outras, a neurose.
Assim, estou tentando introduzir a idéia de que há uma subutftncla masculina de 23 dias cuja
descarga produz prazer cm ambos os sexo», r uma substflncia de 28 dias cuja descarga é
experimentada como desprazei .

Observo então que me é possível explicar todos os períodos psíquicos como múltiplos de
períodos de 23 dias (n), se eu incluir no cálculo o período da gestação (276 dias = Í2n). 3 X 127T
= 14- anos 6 X \2n — 3-f- anos 12 X 127T = 8 anos 18 X 12tt= 12-|- anos 21 X 12?r = 14-^- anos
24 X 12?r= 17 anos Isso significaria que o desenvolvimento psíquico ocorre segundo períodos
de 23 |dias|,.o que somaria múltiplos de 3, 6, 12, . . 24, caso em que o sistema duodecimal se
tornaria eficaz. A unidade seria, em cada caso, o período de gestação, que é igual a \0n ou
127T (aproximadamente). O único resultado é que o desenvolvimento psíquico progrediria de
acordo com múltiplos de 3, 6, 12 dessa unidade, enquanto o período de gestação é igual a
12tt; já o desenvolvimento sexual seria processado de acordo com múltiplos de 5, 10, 20, ao
passo que esse período é igual a 10n. Há duas coisas dignas de nota: (1) que, no tocante ao
desenvolvimento psíquico, o período intra-uterino deve ser incluído no cálculo, caso contrário,
não funcionará; já no tocante ao desenvolvimento sexual, o cálculo só pode começar no
nascimento. Isso faz lembrar o fato de que, durante a gestação, ocorre um acúmulo de um
pouco da substância de 28 dias, que só é liberada no parto; (2) que os períodos de 28 dias
somam-se mais raramente e mais altamente que os de 23 dias, como se o desenvolvimento
superior dos seres humanos dependesse dessa característica (vergonha, moral). Assim, os dois
tipos de fases se entrelaçariam da seguinte maneira:W 1 3 8 12 14 17 Psíq. 3T 6T 12T 18T 21T
24T 1 Sex. IOOtt 10T 2007T 20T O fato de haver mais fases psíquicas se enquadraria
perfeitamente em minha pressuposição de haver ainda mais outras traduções e inovações do
aparelho psíquico. Também se pode observar que a soma, no decorrer da vida, abrange
unidades de tempo cada vez maiores. Para explicar porque o efeito |da experiência sexual
prematura | 6, ora a perversão, ora a neurose, valho-me da bissexualidade de todos o* seres
humanos. Num ser puramente masculino, haveria um excesso do descarga masculina também
nas duas fronteiras sexuais — isto é, haveria geração de prazer e, por conseguinte, perversão;
em seres puramente íc mínimos, haveria nessas ocasiões um excesso de substância
desprazerosa. Nas primeiras fases, as descargas seriam paralelas: em oütras palavras,
produziriam um excesso normal de prazer. Isso explicaria a preferência das mulheres
verdadeiramente femininas pelas neuroses de defesa. Desse modo, a natureza intelectual dos
homens ficaria confirmado, com base em sua teoria. Por fim, não posso reprimir a conjectura
de que a distinção entro a neurastenia e a neurose de angústia, que identifiquei clinicamente,
estrt ligada à existência das duas substâncias, de 23 dias e de 28 dias. Além das duas que
postulo aqui, poderia haver diversas substância» de cada espécie. Parece-me cada vez mais
que o aspecto essencial da histeria é que ela decorre da perversão por parte do sedutor, e |
parece| cada vez mais quo a hereditariedade é a sedução pelo pai. Assim, surge uma
alternância entre as gerações: 1 * geração — perversão 2.a geração — histeria e conseqüente
esterilidade. Ocasionalmente, há uma metamorfose num mesmo indivíduo: perverso durante
a idade do vigor e, depois, passado um período de angústia, Iiín térico. Por conseguinte, a
histeria não é a sexualidade repudiada, c sim a perversão repudiada. Além do mais, por trás
disso está a idéia das zonas erógenas abandonadas. Em outras palavras, durante a infância, a
descarga sexual parece ser obtenível a partir de inúmeras partes do corpo, as quais, em
época» posteriores, só conseguem liberar a substância da angústia de 28 |clias|. e não as
outras. Nessa diferenciação e limitação residiriam, portanto , o progresso da cultura e também
o desenvolvimento moral e individual. O ataque histérico não é uma descarga, e sim uma ação,
c preserva a característica original de todas as ações — a de ser um meio do re produção do
prazer. Isso, pelo menos, é o que ele é, fundamentalmente! à parte isso, ele propõe toda sorte
de outras razões ao pré-consclonte, Assim, os pacientes a quem foi feita alguma coisa sexual
durante 0 sono tém ataques de sono. Adormecem novamente a fim de experimentar a mesma
coisa, e amiúde provocam desmaios histéricos dessa maneira. Todos os ataques de tonteiras e
acessos de choro visam a uma outra pessoa — mas, basicamente, visam àquela outro pessoa
pré-histórica o Inesquecível, que jamais é igualada por ninguém posteriormente. Ali'1 o
sintoma crônico do desejo patológico de ficar deitado na cama 6 explicado da mesma maneira.
Um de meus pacientes ainda choraminga durante o sono, tal como fazia há muito tempo (para
ser levado para a cama pela mãe, que morreu quando ele tinha 22 meses de idade). Os
ataques nunca parecem ocorrer como uma “expressão intensificada de emoção”. Eis um
fragmento de minha experiência cotidiana: uma de minhas pacientes, em cuja história seu pai
altamente perverso desempenha o papel principal, tem um irmão mais moço, que é tido como
um perfeito patife. Um belo dia, este aparece em meu consultório para declarar, com. lágrimas
nos olhos, que não é um patife, e sim um doente, com impulsos anormais e uma inibição da
vontade. Queixa-se também, num comentário inteiramente à parte, acerca do que certamente
são dores de cabeça nasais. Oriento-o a procurar a irmã e o cuhado, a quem ele efetivamente
vai visitar. Na mesma noite, a irmã vem me procurar, porque está agitada. No dia seguinte,
tomo conhecimento de que, depois da partida do irmão, ela teve um acesso de dores de
cabeça das mais pavorosas — um problema de que nunca sofre. Causa: o irmão lhe contou
que, quando ele tinha 12 anos, sua atividade sexual consistia em beijar (lamber) os pés das
irmãs quando elas se despiam à noite. Numa associação, ela resgatou do inconsciente a
recordação de uma cena em que (aos 4 anos) havia observado o pai, em plena excitação
sexual, lamber os pés de uma ama-de-leite. Assim, ela conjecturou que as preferências sexuais
do filho derivavam do pai; e que este fora também o sedutor do primeiro. Foi assim que ela se
permitiu identificar-se com ele e assumir suas dores de cabeça. Pôde fazê-lo, aliás, porque,
durante a mesma cena, o pai enfurecido havia batido com a bota na cabeça da menina
(escondida embaixo da cama). O irmão abomina todos os tipos de perversidade, muito embora
sofra de impulsos compulsivos. Em outras palavras, recalcou certos impulsos, que são
substituídos por outros com compulsões. Esse é, de modo geral, o segredo dos impulsos
compulsivos. Se ele conseguisse ser perverso, seria sadio, como o pai.(5) É curioso que o .
cálculo através de somas sucessivas não revela nada, quer se inclua ou não nos cálculos o
período intra-uterino. 12tt T = 276 dias (intra-uterino) + 3 X 127T = 3T = 2 anos 4- 3 meses
(extra-uterino) “1“ 6 X 12tt = 9T = 6 anos -1- 9 meses + 12 X 12* = 21T = 15 anos + 9 meses II.
12* = 9 meses 4- 3 X 12* = 4T = 3 anos +• 6 X 127T = 10T = 7 anos + 6 meses + 12 X 12* = 22T =
16-j- anos Só funciona quando os 12* intra-uterinos são incluídos no cálculo o na soma total,
como na última carta.(6) Isso deve ter algum significudu, não acha? Estou muito contente por
eles não terem visto mais nada em sim conferência. Assim se pode simplesmente continuar a
amaldiçoá-los ctu silêncio; eles são um bando muito imbecil que deveria nos deixar em pn/,
Agora, um assunto particular: Oscar e Melanie nos visitaram c cnu saram boa impressão. Não
consigo deixar de gostar dele novamente. Ntto quero perguntar-lhe explicitamente sobre a
veracidade de um boato quo vem ligando Marie B. a Robert Br., mas apenas indicar que tenho
conlir cimento dele. Desejo a todos eles o que há de melhor, só que tenho certo/,m absoluta
de que não quero me encontrar com o clã dos Breuer. Ando totalmente ocupado durante dez
a onze horas por dia e estou correspondentemente bem, mas quase sem voz. Será isso uma
tensão excessiva »olmas cordas vocais ou um aneurisma?^ Também não é preciso responder,
t) melhor é seguir o conselho do velho Candide: travailler san raisonittr |trabalhar sem
raciocinar|. Na verdade, não sei coisa alguma sobre a resolução espontânea «In paralisia
pupilar na tabes e duvido que se possa descobrir algo. fí claro que, a priori, é muito
improvável. Fósforo, certamente, não é? Acabo de enfeitar minha sala com cópias em gesso de
estátuas florentinas. Foi uma fonte de extraordinário revigoramento para mim; estou
pensando em ficar rico para poder repetir essas viagens. Ah, um congresso em solo italiano!
(Nápoles, Pompéia!) Minhas mais cordiais saudações a todos vocês.

Seu, Sigm

Fonte:

http://conexoesclinicas.com.br/wp-content/uploads/2019/06/Freud-Correspond%C3%AAncia-
Completa-com-Fliess.pdf p. 237

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