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ESCOLARIZAÇÃO E PROCESSOS PSICOLÓGICOS:

REFLEXÕES À LUZ DA PSICOLOGIA


HISTÓRICO-CULTURAL

Cândida Maria Farias Câmara (UFC)1


Luiza Eridan Elmiro Martins de Sousa (UECE)2

Resumo

Este trabalho faz uma reflexão acerca dos processos psicológicos envolvidos no
contexto da escolarização, analisados à luz dos pressupostos da Psicologia Histórico-
Cultural. Para tanto, realizou-se uma revisão de literatura na área, tomando-se o trabalho
dos autores: Vygotsky (1989, 1991, 2000), Rego (1995, 2004), Oliveira, (2003), Góis
(2005), Luria (1987, 1990, 2004), Toassa (2006) e Leontiev (1978). Como foco de
estudo abordaram-se as categorias de análise: desenvolvimento e aprendizagem,
pensamento e linguagem, formação de conceitos, consciência, autoconsciência e
socialização. Concluiu-se que a escolarização é um processo de potencialização das
relações entre desenvolvimento e aprendizado, pensamento e linguagem e, a cada
situação ou conteúdo aprendido, ampliam-se o desenvolvimento e as capacidades do
sujeito.
Palavras-chave: Escolarização. Processos psicológicos. Psicologia histórico-cultural.

Abstract
The present work reflects on the psychological processes involved in the context of
schooling analyzed in light of the assumptions of Historical-Cultural Psychology. In
order to do so, a literature review was carried out in the area, taking the work of the
authors: Vygotsky (1989, 1991, 2000), Rego (1995, 2004), Oliveira, (2003), Góis 1987,
1990, 2004), Toassa (2006), Leontiev (1978). The categories of analysis: development
and learning, thought and language, formation of concepts, consciousness, self-
awareness and socialization were taken as the focus of study. From the readings it has
been that the schooling is a process of potentialization of the relations between
development and learning, thought and language and, to each situation or content

1
Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Graduada em Psicologia pela mesma
instituição. Professora da Faculdade Católica Rainha do Sertão (UNICATÓLICA, Quixadá – CE).
Psicóloga Escolar e Educacional. Contato: candidapsicologia@gmail.com
2
Mestre em Políticas Públicas e Sociedade pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Graduada em
Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Contato: luizaeridan@htomail.com
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Educação, Gestão e Sociedade: revista da Faculdade Eça de Queirós, ISSN 2179-9636, Ano 7, número
25, fevereiro de 2017. www.faceq.edu.br/regs
learned, the development and capacities of the subject are amplified.
Keywords: Schooling. Psychological processes. Historical-cultural psychology.

Introdução

Não é sem razão que se elegeu a escolarização como um elemento-chave


dentro da discussão atual sobre o papel da escola na formação cidadã e humana. O
processo de escolarização é um fenômeno complexo que envolve visão de mundo,
projeto político de sociedade, orientação pedagógica, mediação de processos de
aprendizagem e moral, socialização, dentre outros. Buscar compreender o
desenvolvimento e os processos psicológicos envolvidos no processo de escolarização é
a intenção deste artigo, na tentativa de descrever os processos psíquicos centrais nele
envolvidos, de acordo com as categorias definidas pela Psicologia Histórico-Cultural:
desenvolvimento e aprendizagem; pensamento e linguagem; formação de conceitos;
consciência, autoconsciência e socialização.
Para iniciar, retoma-se um estudo importante e referência para essa discussão, a
pesquisa de Luria (1990) que buscou compreender as diferenças entre a formação do
pensamento entre distintos grupos, aqueles que se apresentavam escolarizados e não
escolarizados. Esse autor investigou cientificamente como a estruturação das funções
psicológicas superiores3 (que envolvem os processos cognitivos básicos de pensamento)
depende do contexto histórico-cultural no qual o sujeito se encontra imerso. Luria (op.
cit.) deteve seus estudos principalmente na percepção, generalização e abstração,
dedução e inferência, raciocínio e solução de problemas, imaginação e autoanálise e
autoconsciência.
A inovação de sua pesquisa decorreu do vínculo estreito que estabeleceu entre
o desenvolvimento dos processos de pensamento e as transformações sociais ocorridas
nas regiões da antiga União Soviética, entre o final da década de 1920 e início dos anos

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Temos as chamadas funções psicológicas elementares, que surgem junto com o nascimento da criança e
também se apresentam nos outros animais mais desenvolvidos, como os reflexos e atenção involuntária.
As funções psicológicas superiores, no entanto, se apresentam como transformações em algumas dessas
funções básicas e são fruto da aprendizagem cultural e elaboração humana da relação homem-mundo,
como atenção voluntária, planejamento, generalização, memória lógica, formação de conceitos,
capacidade de comparar e de diferenciar.
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1930, haja vista sua reestruturação cultural, social e econômica decorrente da Revolução
Russa. Para o autor, a consciência é compreendida como “existência consciente” (das
bewusste sein), uma forma de reflexo psíquico (consciente e intencional) da realidade,
originada a partir do modo de organização histórico-cultural.
A função da consciência não se restringe a adaptar-se ao ambiente, mas
apropriar-se e reestruturar-se nessa interação, servindo como sistema orientador e
organizador do comportamento humano. Assim, ao apropriar-se do mundo agindo sobre
ele, os processos psicológicos do homem seguem ancorados nas atividades constituídas
no seio da dinâmica das práticas sociais, tornando possível a análise histórico-científica
da consciência humana, ou seja, como as formas apropriadas da vida humana em uma
sociedade favorecem o desenvolvimento dos processos de ampliação dos limites da
consciência e da criação de códigos.
A consciência deixa, portanto, de ser uma ‘qualidade intrínseca do espírito
humano’, sem história e inacessível à análise causal. Começamos a entendê-
la como a forma mais elevada da realidade criada pelo desenvolvimento
sócio-histórico: um sistema de agentes que existe objetivamente produz a
consciência humana, e a análise histórica se torna acessível. (LURIA, 1990,
p. 25)
Com efeito, a noção de sujeito ganha sentido somente quando investigadas as
condições em que se insere, compreendendo-o como fruto da aprendizagem, da
atividade e da apropriação do mundo mediado por grupos culturais. O indivíduo
internaliza4 de forma ativa e singular os códigos sociais, sofrendo múltiplas influências
no decorrer de seu desenvolvimento, seja através da família, da classe social à qual
pertence, seja de sua história educativa, dentre outras (REGO, 2004).
No caso deste estudo, inseridos numa sociedade escolarizada, a valorização da
orientação pedagógica escolar ganha papel importante no âmbito de articulação entre
atividades sociais, processos reflexivo-conscientes, apropriação de uma cultura,
socialização, inserção nos códigos sociais, interação e mediação, refletindo uma noção
de desenvolvimento humano, próprio dessa sociedade. Nesse sentido, entendemos que a
escola faz diferença quando nos referimos ao desenvolvimento do sujeito.

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Tendo como base a operação com signos, o processo de internalização se constitui como uma
reestruturação interna de uma operação externa, a reconstrução de uma atividade psicológica a partir de
formas culturais de comportamento. Uma reconfiguração do plano interpessoal (interpsicológico) para o
plano intrapessoal (intrapsicológico) (VYGOTSKY, 1989).
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Em termos das relações entre escolarização e desenvolvimento psicológico,
podemos afirmar que nas sociedades escolarizadas a passagem pela escola é
uma forma primordial de atividade da criança e jovens e a escola é central
nas concepções sobre a periodização do desenvolvimento. (OLIVEIRA,
2003, p. 4)

A partir daí é pertinente esclarecer a relação entre desenvolvimento e


aprendizagem, de acordo com a teoria sócio-histórica, no sentido de aprofundar a
influência escolar nos processos psicológicos e vice-versa. Como Vygotsky (1989, p.
94) afirma, há dois pontos fundamentais nessa discussão: “[...] primeiro, a relação geral
entre aprendizado e desenvolvimento; e, segundo, os aspectos específicos dessa relação
quando a criança atinge a idade escolar”. A elaboração sobre essas questões é
importante para se compreender as mudanças ocorridas no desenvolvimento humano a
partir da inserção do sujeito na escola.

1 Metodologia

A metodologia utilizada para a realização deste trabalho foi a revisão de


literatura acerca da teoria da Psicologia Histórico-Cultural, para a qual se tomou como
referência as obras dos criadores e de estudiosos da área: Vygotsky (1989, 1991, 2000),
Rego (1995, 2004), Oliveira, (2003), Góis (2005), Luria (1987, 1990, 2004), Toassa
(2006) e Leontiev (1978).
À luz das teorias desses autores, buscou-se compreender como a Psicologia
Histórico-cultural descreve e compreende os processos psicológicos que estão
envolvidos e são desenvolvidos durante a escolarização. Dos autores, tomou-se como
principais categorias de análise: desenvolvimento e aprendizagem, pensamento e
linguagem, formação de conceitos, consciência, autoconsciência e socialização.
Integrando o material teórico levantado, incluíram-se observações empíricas das
experiências das autoras enquanto psicólogas educacionais, unindo teoria e prática.

2 Processos psicológicos envolvidos no processo de escolarização

2.1 Desenvolvimento e aprendizagem

Segundo Vygotsky (1991), a aprendizagem (também relativa ao ensino) é a

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fonte que orienta, estimula e ativa o desenvolvimento, deflagrando diversos processos
que não poderiam se constituir, caso não houvesse o ato de aprender. Ou seja, o
desenvolvimento não é natural ou espontâneo, muito menos um conjunto de hábitos e
reflexos condicionados, mas se constitui enquanto fruto da aprendizagem obtida nas
interações sociais. Nesse sentido, aprendizado e desenvolvimento são fenômenos que
não coincidem e, no entanto, estão inter-relacionados desde o primeiro dia de vida
humano.
A criança, mesmo antes de ingressar na escola, já possui formas de
compreensão do mundo, processos de aprendizagem e noções sobre quantidade e
matemática, por exemplo, adquiridas através de seu contato com outras pessoas
significativas, pais, amigos, etc. Esse conhecimento pré-escolar é aprendido em seu
cotidiano e elaborado através da própria experiência de forma não sistematizada,
enquanto o aprendizado escolar possui outras características, dentre elas, a
sistematização do conhecimento elaborado cientificamente. O papel da escolarização,
entretanto, não se restringe somente a esse fato, segundo Vygotsky (1989, p. 95) “o
aprendizado escolar produz algo fundamentalmente novo no desenvolvimento da
criança”.
Em sua concepção, o autor distingue dois níveis de desenvolvimento: o nível
de desenvolvimento real e o nível de desenvolvimento potencial. O primeiro se
caracteriza pelo resultado de ciclos de desenvolvimento já adquiridos e resulta na
aquisição real de funções psicológicas, podendo ser observado através daquilo que o
indivíduo consegue fazer por si mesmo, de modo independente. O segundo define-se
pelas funções que se apresentam em estado latente, em processo de amadurecimento, o
limite de desenvolvimento permitido em dado momento. A distância entre o primeiro e
o segundo determina a zona de desenvolvimento proximal, que é a “diferença entre o
nível das tarefas realizáveis com o auxílio de adultos e o nível das tarefas que podem
desenvolver-se com uma atividade independente” (VYGOTSKY, 1991, p. 12).
Essa zona caracteriza-se pela capacidade do indivíduo resolver problemas
através da orientação ou colaboração de companheiros ou adultos mais capazes; trata-se
de um desenvolvimento prospectivo, enquanto a zona de desenvolvimento real
apresenta-se como desenvolvimento retrospectivo. Ela nos permite acesso aos processos
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já atingidos, além daqueles em vias de amadurecimento, possibilitando visualizar um
futuro próximo e, assim, transformar o potencial em real e, a partir do que já foi
desenvolvido, também alargar novas potencialidades.
Uma das principais consequências desse entendimento é a reavaliação do
processo de aprendizagem. Com efeito, o que é aprendido engendra e cria a zona de
desenvolvimento potencial, um aspecto necessário e universal do processamento das
funções psicológicas culturalmente organizadas e tipicamente humanas. Ele ancora o
progressivo desenvolvimento, favorecendo o domínio de operações e tornando base
para outros processos internos de pensamento.
Propomos que um aspecto essencial do aprendizado é o fato de ele criar a
zona de desenvolvimento proximal; ou seja, o aprendizado desperta vários
processos internos de desenvolvimento, que são capazes de operar somente
quando a criança interage com pessoas em seu ambiente e quando em
cooperação com seus companheiros. Uma vez internalizados, esses processos
tornam-se parte das aquisições do desenvolvimento independente da criança.
(VYGOTSKY, 1989, p. 101)

A aprendizagem escolar, nesse sentido, se diferencia da aprendizagem que


ocorre fora da escola, pois opera intencionalmente na facilitação do desenvolvimento de
formas psicológicas mais desconectadas da situação concreta imediata, trabalha com
conteúdos e propicia o surgimento de novas características de pensamento. Para o
desenvolvimento de sujeitos dentro de uma sociedade escolarizada, apresenta-se um
modo de elaborar conceitos sobre si e sobre os fenômenos da realidade de forma
sofisticada, através de análises, generalizações e abstrações cada vez mais complexas.
Vygotsky (2000) destaca um ponto em sua teoria que integra essas principais
teses sobre desenvolvimento, aprendizagem, pensamento, linguagem, mediação e
internalização e que remete ao processo de formação de conceitos pelos sujeitos, a
aquisição de modos diferentes de pensar, categorizar e conceituar, atribuindo
importância particular ao contexto escolar. Segundo Rego (2004, p. 86):
[...] ele postula que a escola, por oferecer conteúdos e desenvolver
modalidades de pensamento bastante específicas, tem um papel diferente e
insubstituível na apropriação, pelo sujeito, da experiência culturalmente
acumulada. Justamente por isso ela representa o elemento imprescindível
para a realização plena do desenvolvimento dos indivíduos [...], já que
promove um modo mais sofisticado de analisar e generalizar os elementos da
realidade: o pensamento conceitual. É por essa razão que o estudo dos
processos de formação de conceitos e a diferença entre conceitos cotidianos e
científicos ocupam lugar de destaque em seus trabalhos.

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2.2 O processo de formação de conceitos

Os conceitos se referem a um conjunto ou sistema de relações e generalizações


contido nas palavras, originado e perpassado por processos históricos e culturais
(REGO, 1995). Constituem-se na interação entre a assimilação da informação externa e
o processamento da atividade psicológica do sujeito, não podendo, portanto, se formar
através da simples repetição de palavras e de informações, mas com o acompanhamento
da organização e atividade individual com tais informações. Tem início na infância;
porém, é na puberdade que ganha maior consistência, amadurecimento e se reconfigura
de modo mais complexo.
Como já foi dito, a passagem pela escola estabelece novos modos de conceituar
e conhecer, por isso pode-se afirmar que há uma diferenciação entre conceitos
espontâneos cotidianos e conceitos não-espontâneos científicos (VYGOTSKY, 2000).
O primeiro se refere ao conhecimento construído na experiência vivida e diária, a partir
da concretude das relações, e liga-se à elaboração pessoal de situações concretas e
atividades práticas, sendo normalmente adquirido fora do contexto escolar. O segundo
diz respeito à interação em sala de aula, obtido pela elaboração de forma sistematizada
e, ainda, se “relaciona com aqueles eventos não diretamente acessíveis à observação ou
a ação imediata” (REGO, 1995, p. 76). Por exemplo, o conceito “pássaro”: num
primeiro momento ele sintetiza e generaliza características que o distinguem de outros
conceitos, mas com o processo de sistematização e nas interações escolarizadas, o
conceito passa a figurar características mais abrangentes, abstratas e complexas, com
variações de intensidade e graus diferentes de generalização.
O pensamento teórico significa o salto da percepção ao conceito, e do plano
concreto, sensorial ao plano abstrato, imaginável, se refere ao conhecimento cada vez
mais distanciado da situação imediata, e ainda que:
[...] a investigação acerca da natureza mesma dos conceitos e do domínio dos
próprios processos de comportamento e pensamento promove um novo
afastamento do sujeito com relação ao mundo da experiência. Essa terceira
mudança está relacionada a práticas culturais específicas e pode ser associada
à alfabetização, à escolarização e ao desenvolvimento científico (OLIVEIRA,
2003, p. 9).

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A formação de conceitos, além de integrada ao modo de conhecer, vincula-se
ao tipo de atividade realizada, ou seja, existem diferenças nas atividades cotidianas e
nas atividades educativas. Estas estimulam e desafiam os sujeitos a conhecer e
estabelecer operações mais complexas de processamento psicológico. Ambos os
processos, entretanto, dirigidos pela linguagem, unem-se por fazerem parte de um único
processo, a formação de conceitos. Mesmo diferentes, os dois se relacionam e se
influenciam, pois o conceito sistematizado ainda desconhecido é aproximado,
elaborado, internalizado e enraizado na experiência concreta.
Dessa maneira, compreende-se que os processos psicológicos dependem,
fundamentalmente, de interações sociais e mediações de grupos sociais que interferem
no modo de pensar; assim, é que se afirma não ser qualquer escola que atua na direção
do desenvolvimento potencial dos sujeitos. Ao mesmo tempo, sabemos que além da
escola outros espaços podem estimular e propiciar o desenvolvimento dessas funções
cognitivas, como os espaços de participação comunitários (GÓIS, 2005). De tal modo,
podemos dizer que os conceitos se concretizam na inter-relação do processo psicológico
subjetivo e singular de cada sujeito com o desafiar ou não do ambiente, propiciando o
surgimento de formas de lidar consigo e com o mundo.
Sintetizando, afirmamos que a intenção do ato pedagógico como ação
mediadora é legítima e necessária, pois favorece, em nossa cultura, um modo de pensar
privilegiado que coincide com sua concepção de desenvolvimento. A escola opera, no
âmbito do novo e do desconhecido, uma atividade social peculiar, sendo esse seu
motivo de existir. Dessa forma, tem-se que a escolarização interfere no
desenvolvimento e no pensamento dos indivíduos, no aprofundamento dos nexos
sociais, como, por exemplo, nas formas de conceituar, sendo essa uma das funções
primordiais da escola.

2.3 Pensamento e linguagem

Na pretensão de se discutir as diferentes formas de pensar, é necessário remeter


às relações estabelecidas entre linguagem e pensamento durante o desenvolvimento
humano. Luria (1987) desenvolveu um amplo estudo sobre a estruturação psicológica

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da linguagem e qual seu papel na formação da consciência. Para ele, o desenvolvimento
de processos psicológicos é um produto das formas sociais, interativas e cooperativas da
vida humana e se dá ao mesmo tempo em que as ações humanas mudam e renovam as
atividades que se manifestam nas práticas sociais. Logo, a linguagem e a fala são
essenciais para a atividade consciente e caracterizam uma organização semiótica da
consciência: “a consciência é o reflexo da realidade refratada através do prisma das
significações e dos conceitos linguísticos, elaborados socialmente” (LEONTIEV, 1978,
p. 88).
[...] a construção de formas complexas de reflexão da realidade e de atividade
se dá juntamente com as mudanças radicais nos processos mentais que
afetam essas formas de reflexão e constituem o substrato do comportamento.
Vygotsky chamou essa proposição de estrutura semântica e sistêmica da
consciência. (LURIA, 1990, p. 26)

Na perspectiva do desenvolvimento ontogenético, a criança ao nascer já se


encontra inserida em um ambiente, fruto da história social do trabalho humano, que irá
ser compreendido por ela a partir de seu contato com o mundo adulto, através das
comunicações estabelecidas. A língua é, assim, o meio de comunicação mais eficiente e
constituinte das relações humanas, pois permite que ocorra intercâmbio social.
Além disso, a linguagem, constituída historicamente e refletindo uma
determinada cultura, é utilizada pela criança como mediadora de sua percepção, meio
pelo qual pode nomear objetos, enquadrando-os em categorias e estabelecendo nexos
entre essas e outras. Através dela, a criança analisa, generaliza e codifica suas
experiências vividas.
Como unidades linguísticas básicas, as palavras carregam significados,
garantindo a perpetuação de informações de geração a geração. Além disso, constituem
“unidades fundamentais da consciência que refletem o mundo exterior” (LURIA, 1990,
p. 24), sendo assim o instrumento básico do pensamento. É por meio da criação de
sistemas de códigos que se formulam construções verbais e lógicas entre palavras de
uma sentença, o aparecimento da linguagem possibilita ao homem gerar pensamentos e
opiniões, atribuir um sentido particular ao mundo e a si mesmo.

Os homens podem mesmo lidar com objetos ‘ausentes’ e assim ‘duplicar o


mundo’ através de palavras que mantêm significados, esteja ou não a pessoa
em contato direto com os objetos referidos pelas palavras. Dessa forma surge
uma nova fonte de imaginação produtiva: fonte que pode tanto reproduzir
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objetos como reordenar as relações entre esses objetos, servindo assim como
base para processos criativos altamente complexos. (LURIA, 1990, p. 24)

Com efeito, linguagem e pensamento se encontram intimamente ligados.


Portanto, podemos dizer, definitivamente, que são influenciados pela mediação feita
pela escola em seu desenvolvimento. Ao passar pela escola, a linguagem infantil torna-
se mais elaborada e complexa, junto com formas de pensar que garantem seu
distanciamento do modo concreto e imediato de pensamento. O aprimoramento da
linguagem diante da realidade possibilita construir um mundo simbólico, de
significação e de criação, características de uma atividade sinsemântica (LURIA, 1987).
Assim, a elaboração do sistema linguístico e dos códigos lógicos cria as condições do
“homem saltar do sensorial ao racional: para os fundadores da filosofia materialistas; tal
transição é tão importante quanto a da matéria inanimada para a matéria viva” (LURIA,
1990, p. 25).

2.4 Pensamento gráfico-funcional e pensamento categorial

Diante do exposto, é possível afirmar que o pensamento se encontra


entrelaçado ao uso que se faz da linguagem e de seus códigos. As características dos
processos psicológicos dependem diretamente de como as pessoas refletem a realidade
em sua consciência. Tal fato é percebido quando se aborda o processo de formação de
conceitos, cotidianos ou científicos e a influência da escola. No entanto, é sabido,
também, que a conceituação se liga ao modo de funcionamento do pensar e que,
consequentemente, as diferenças no pensamento se fazem ligadas à passagem pela
escola.
[...] pessoas cujo processo de reflexão da realidade fosse primariamente
gráfico-funcional mostrariam um sistema de processos mentais distinto
daquele encontrado em pessoas cuja abordagem da realidade fosse
predominantemente abstrata, verbal e lógica. Quaisquer alterações nos
processos de codificação deveriam, invariavelmente, aparecer na organização
dos processos mentais subjacentes a essas atividades. (LURIA, 1990, p. 33)

Segundo a Teoria Histórico-Cultural, existem duas formas de organização do


pensamento; são eles: o pensamento gráfico-funcional e o pensamento categorial. O
primeiro ocorre em nível concreto, ao contrário do segundo, que funciona em nível

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abstrato, verbal e lógico.
O pensamento gráfico-funcional é também chamado de concreto, situacional
ou prático. Sua principal característica é o vínculo estreito que estabelece com a
experiência diária e prática, vivida pelos sujeitos de forma imediata. É denominado de
gráfico porque um fator determinante nessa forma de pensar são as configurações
visuais, a percepção gráfica ou a recordação gráfica de inter-relações entre objetos e
situações vinculadas às formas de classificá-los.
[...] o fator determinante na classificação em complexos é a operação gráfica
ou a recordação gráfica das várias inter-relações entre os objetos. A operação
intelectual fundamental para essa classificação ainda não adquiriu a
qualidade lógico-verbal do pensamento maduro, mas é, por natureza, gráfica
e baseada na memória. De acordo com Vygotsky tais processos de
pensamento são típicos de crianças pré-escolares mais velhas e de crianças da
escola elementar. (LURIA, 1990, p. 69)

Também considerado funcional devido às relações concretas estabelecidas


entre os objetos inseridos em um contexto prático de uso, liga-se à funcionalidade
dentro de uma situação, apresentando uma utilidade e valor práticos. Nesse sentido, as
palavras agem de forma peculiar, relacionadas às atividades cotidianas, e não
estabelecem esquemas conceituais nem formulam abstrações, mas reconstroem
situações gráficas para que possam agrupar objetos em que funcionem juntos. Não
necessitam utilizar-se de comparações ou subordinar coisas a categorias abstratas, sendo
este o motivo pelo qual essa forma de pensar ocorre com mais frequência em crianças
com pouco tempo de ensino escolar, além de jovens e adultos que não frequentaram a
escola. A partir de pesquisa com sujeitos escolarizados e não escolarizados, Luria
(2004, p. 9) aponta que “esta tendência em contar com operações usadas na vida prática
foi o fator controlador no caso de pessoas analfabetas e que não tinham recebido
qualquer educação”.
Já o pensamento categorial, denominado também de conceitual, taxionômico,
abstrato, teórico, verbal e lógico, refere-se ao modo de pensar a realidade de forma
abstrata, lidando com categorias desvinculadas da atividade prática imediata do sujeito e
com a capacidade de atribuir características genéricas a objetos de forma
descontextualizada. Assim, no processo de conceituação, é possível criar categorias
selecionando características de acordo com um conceito abstrato e transitar entre suas
características, generalizando e reagrupando de várias formas.
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Ela não generaliza já com base em suas impressões imediatas, mas isola
certos atributos distintos dos objetos como base de categorização; a essa
altura, faz inferências sobre os fenômenos, destinando cada objeto a uma
categoria específica (relacionando-o a um conceito abstrato). (LURIA, 1990,
p. 69)

No pensamento abstrato, as palavras são o principal instrumento de abstração e


generalização. As operações lógicas e psicológicas atuam sob a função generalizante da
linguagem, possibilitando o isolamento de atributos para construir uma categoria
abstrata e subordinar a ela elementos.
Nesse sentido, o pensamento conceitual é desenvolvido principalmente pelo
processo de escolarização e ensino formal, quando o sujeito tem acesso ao saber
sistematizado, à experiência compartilhada de uma sociedade transmitida de forma
conceitual e lógica através de seu sistema linguístico. De acordo com Luria (2004, p. 7),
“uma vez que toda atividade é, inicialmente, fixada nas operações gráficas e práticas,
acreditamos que o desenvolvimento do pensamento conceitual, taxionômico, articula-se
com as operações teóricas que uma criança aprende a executar na escola”.
A transição de uma forma de pensar a outra, provavelmente, é produzida pela
mudança gradual que ocorre em toda a esfera de atividade de uma criança quando ela
ingressa na escola ou quando jovens e adultos se envolvem em atividades que exigem
comunicação, planejamento de trabalho e discussões sobre temas importantes na vida
diária. Assim, ocorrem as mudanças necessárias nos processos psicológicos que
orientam o pensamento e as operações lógicas de ler a realidade e a si mesmo (LURIA,
1990, p. 132): “a instrução formal, que altera radicalmente a natureza da atividade
cognitiva, facilita enormemente a transição das operações práticas para as operações
concretas”.

2.5 Autoconsciência e socialização

Por fim, destacados os aspectos influenciáveis pela escolarização, passa-se a


discutir como a imersão do homem na atividade social e cultural de uma sociedade
interfere na percepção de si mesmo, visto que a base de uma consciência individual se
encontra, primeiramente, nas condições interativas externas, na consciência social,
sendo aos poucos internalizada. Nesse sentido, entende-se que a percepção de si mesmo
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nasce junto a esse processo, ao se perceber o outro.
Luria (1990, p. 34) afirma que “a percepção de si é resultado da percepção
clara dos outros, e os processos de autopercepção são construídos através da atividade
social, o que pressupõe colaboração com os outros, bem como uma análise dos padrões
de comportamento”. Ou seja, a autoconsciência não é de ordem primária, não nasce
intrinsecamente com o homem, sendo ela a base para refletir uma realidade externa.
Invertemos a lógica idealista, fruto do cogito cartesiano, de que sua origem se
encontraria no espírito humano, quando na verdade ela está nas condições interativas,
sociais e culturais: é o ambiente refletido no cérebro e nas operações psicológicas
humanas.
Nesta perspectiva, a escola constituir-se-ia como lócus importante para o
desenvolvimento de funções psicológicas e, também, para a construção de traços de
caráter e da capacidade de nos relacionar com as características de nossa personalidade.
Há, pois, no espaço escolar a interação social durante os momentos cruciais de
organização psicológica, com a elaboração imprescindível na direção do
desenvolvimento humano, da competência de analisar os outros e a si mesmo.
A importância da socialidade, as origens da autoconsciência nas relações
sociais e o caráter sistêmico deste sistema psicológico são algumas
características de suas primeiras ideias sobre consciência que se preservam
na sua conceituação mais madura do termo. (TOASSA, 2006, p. 78)

Assim, a autoconsciência e a socialização são elementos constitutivos do


processo pedagógico: não há autoconsciência sem socialização e vice-versa. A escola é
elemento necessário para apresentar, consolidar e aprofundar elementos em sua vivência
diária que fortaleçam uma percepção cada vez mais apurada que seus integrantes
possuem de si mesmos e dos outros que compartilham o mesmo espaço.

Considerações finais

A partir do estudo realizado, considerou-se que a intencionalidade do ato


pedagógico é fundamental numa sociedade escolarizada, tendo em vista as
transformações que ocorrem nos processos psicológicos e na organização da
consciência. Graças aos estímulos, à formalização e à sistematização do conhecimento,

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torna-se possível, por parte dos sujeitos, a construção e a transição de conceitos
cotidianos para concepções e formações conceituais, cada vez mais complexas e
científicas.
As relações entre pensamento e linguagem permitem saltos qualitativos no
estabelecimento de um vocabulário mais requintado, o que proporciona um pensar
abstrato com possibilidades infinitas de arranjos do próprio pensamento. A capacidade
de interação e socialização são intensificadas e socialmente mediadas pelos professores
e corpo pedagógico, assim como, é na escola, o espaço onde a criança apropria-se da
cultura, e no qual são introduzidas as regras, os jogos e as brincadeiras. Dessa forma,
aprende sobre si e reestrutura sua autoconsciência no contexto social em que se insere,
por meio das relações que estabelece.
A escolarização é um processo de potencialização das relações entre
desenvolvimento e aprendizado, entre pensamento e linguagem, a cada situação ou
conteúdo aprendido alarga-se o desenvolvimento e as capacidades do sujeito, um
processo incessante e infindável que exige paciência pedagógica no seu percurso.

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Recebido em: 20/12/2016


Aceito em 08/01/2017

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