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A IMPORTÂNCIA DA MEDIAÇAO PARA O DESENVOLVIMENTO DAS


FUNÇÕES PSICOLÓGICAS SUPERIORES DE ALUNOS DA EDUCAÇÂO
ESPECIAL: CONTRIBUIÇÔES DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL1

Marilda Gonçalves Dias Facci2 – UEM/PR


Silvia Helena Altoé Brandão3 – SEED/PR

Resumo
Este trabalho é resultado de estudos realizados no Plano de
Desenvolvimento Educacional (PDE) da Secretaria de Estado da Educação
do Paraná, no período de abril de 2007 a abril de 2008. O objetivo deste
artigo é realizar uma reflexão a respeito da importância da mediação para
a aprendizagem e o desenvolvimento de alunos com necessidades
educacionais especiais, mais especificamente com deficiência mental,
com base nos pressupostos da Psicologia Histórico Cultural. O uso
funcional dos mediadores culturais consiste em um processo muito
importante no desenvolvimento mental do ser humano, por promover a
transformação das funções psicológicas elementares em funções
psicológicas superiores. Ao discorrermos a respeito da educação da
criança com deficiência mental, que se constitui objeto de análise neste
texto, apresentamos como ocorre o desenvolvimento da memória e da
abstração, assim como destacamos alguns elementos da apropriação da
escrita, que apontam indicadores a respeito da importância fundamental
da mediação do professor nesse processo. Outras funções psicológicas
estão presentes no processo de aprendizagem e desenvolvimento do ser
humano, no entanto, a título de exemplificação, deter-nos-emos somente
na memória e abstração, evidenciando que a questão da fala e da escrita
permeia o processo de superação de funções elementares em superiores.
Concluímos enfatizando que cabe ao professor ajudar o aluno com
deficiência mental a superar as limitações biológicas, auxiliando-o a
utilizar os mediadores culturais disponíveis no ambiente. Somente desta
forma suas funções psicológicas passarão de elementares a superiores.

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Com o objetivo de elaborar o artigo final do PDE, buscou-se expandir o texto elaborado
no material didático, entregue em fevereiro de 2008 e apresentado no XIV Encontro
Nacional de Didática e Prática de Ensino (ENDIPE), no dia 30 de abril de 2008 em Porto
Alegre/RS.
2
Doutora em Educação Escolar pela UNESP-Araraquara; professora do Departamento de
Psicologia da Universidade Estadual de Maringá-UEM; coordenadora do Programa de Pós-
Graduação em Psicologia da UEM.
3
Mestre em Educação pela UEM; professora de Psicologia da Educação da Secretaria de
Estado da Educação do Paraná-SEED/PR.
2

Palavras-chave: Mediação; Educação especial; Funções psicológicas


superiores; Psicologia Histórico-Cultural.

The importance of mediation for the development of special


education students’ higher psychological functions: contributions
from
Historical and Cultural Psychology.

Abstract
Current essay deals with results from research within the Educational
Development Plan of the Education Secretary of the state of Paraná,
Brazil, comprising April 2007 and April 2008. The importance of mediation
for students’ learning and development, with specifically mental
deficiency, based on the presuppositions of Cultural and Historical
Psychology is provided. The functional employment of cultural mediators
is an important process in human mental development since they upgrade
the transformation of elementary psychological functions into higher
psychological ones. When schooling of mentally deficient children is
analyzed, the development of memory and abstraction is given, coupled
to elements in the appropriation of writing. This fact indicates the
fundamental importance of the teacher’s mediation in the process.
Although other psychological functions are also present in the learning
process and in the development of the human being, memory and
abstract solely shall be focused. This evidences that the speaking and
writing issues pervade the process that transform the elementary function
into the higher ones. Results show that it is up to the teacher to help the
mentally deficient students to overcome their biological limitations and
help them to use the cultural mediators available in their milieu. Their
psychological functions will consequently change from elementary to
higher ones.

Key words: mediation; special education; higher psychological functions;


Historical and Cultural Psychology.
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Introdução

O objetivo deste artigo é discutir a importância da mediação nas


atividades educativas, necessárias para promover o desenvolvimento das
funções psicológicas superiores dos alunos que apresentam necessidades
educacionais especiais, mais especificamente alunos com deficiência
mental, orientando-se pelos pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural.
Essa teoria psicológica, com base no marxismo, foi elaborada,
inicialmente, por L. S. Vigotski (1896-1934), mas continuada por outros
autores russos, tais como A. N. Leontiev (1903-1979) e A. R. Luria (1902-
1977). Estes pesquisadores preocuparam-se com a compreensão e a
gênese dos processos psicológicos que originam o comportamento
consciente do homem, considerando-o como um ser social e histórico.
Enfatizaram a importância da cultura, das relações sociais e do modo de
produção da vida, com seus códigos lingüísticos e instrumentos físicos,
como mediadores no processo de formação e desenvolvimento da mente
humana. Deste modo, o contexto social influencia o processo de
desenvolvimento humano, determinando a forma como o indivíduo se
constitui como sujeito. O mundo dos objetos e fenômenos que rodeia o
homem, criado pelo trabalho, fornece as condições para que se
desenvolva o que ele tem de verdadeiramente humano. Para Lenontiev
(1978, p. 257), “as propriedades biologicamente herdadas do homem não
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determinam as suas aptidões psíquicas”, apenas lhe conferem as


condições para sua formação. Em suas palavras:

O processo de apropriação do mundo dos objetos e dos


fenômenos criados pelos homens no decurso do
desenvolvimento histórico da sociedade é o processo durante
o qual teve lugar a formação, no indivíduo, de faculdades e
de funções especificamente humanas. [...] O processo de
apropriação efetua-se no desenvolvimento de relações reais
do sujeito com o mundo. Relações que não dependem nem
do sujeito nem da sua consciência, mas são determinadas
pelas condições históricas concretas, sociais, nas quais ele
vive e pela maneira como a sua vida se forma nestas
condições. (LEONTIEV, 1978, p. 257).

As mudanças nas condições de vida ao longo do desenvolvimento


histórico e social da existência da humanidade, advindas de novas
necessidades, exerceram grande influência no curso da evolução humana,
muito mais do que os fatores que dirigem o processo de evolução
biológico. De acordo com Vygotsky (1930, p. 2),
A luta pela sobrevivência e a seleção natural, as duas forças
motrizes da evolução biológica no mundo animal, perdem a
sua importância decisiva assim que passamos a considerar o
desenvolvimento histórico do homem. As novas leis que
regulam o curso da história humana e que regem o processo
de desenvolvimento material e mental da sociedade humana,
agora tomam seus lugares.

Leontiev (1978, p. 262) afirma que, “a hominização resultou da


passagem à vida numa sociedade organizada na base do trabalho”,
diferenciando a vida do homem da vida animal. A sociedade atual,
diferentemente da primitiva, é formada por uma estrutura de classes
complexa, por isso, a influência social sobre a formação psicológica do
homem não ocorre de forma direta, mas mediada por vários fatores
materiais (objetos, instrumentos, equipamentos) e não materiais (signos)
também complexos.
Para Luria (1991, p. 73, grifo do autor),
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Diferentemente do animal, cujo comportamento tem apenas


duas fontes: 1) os programas hereditários de
comportamento, subjacentes no genótipo e 2) os resultados
da experiência individual, a atividade consciente do homem
possui ainda uma terceira fonte: a grande maioria dos
conhecimentos e habilidades do homem se forma por meio
da assimilação da experiência de toda a humanidade,
acumulada no processo da história social e transmissível no
processo de aprendizagem. [...] A grande maioria de
conhecimentos, habilidades e procedimentos do
comportamento de que dispõe o homem não são o resultado
de sua experiência própria, mas adquiridos pela assimilação
da experiência histórico-social de gerações. Este traço
diferencia radicalmente a atividade consciente do homem do
comportamento animal.

O método de investigação que fornece as bases desta concepção


teórica é o materialismo histórico e dialético. Este método possibilita a
análise histórica dos fatos, averiguando suas causas, perspectivas,
conflitos, contradições e superações, e a respectiva correspondência com
a realidade material, concreta da vida em sociedade. Vigotski e seus
colaboradores envolveram-se intensamente nas questões críticas que
permeavam a sociedade em sua época. Para problematizar os fatos
decorrentes da sociedade em transformação, de um regime capitalista
para socialista, buscaram entender a vida humana e o seu
desenvolvimento, mediante as implicações socioculturais que a
influenciavam, tomando como referência os postulados marxistas.
De acordo com Facci, Tuleski e Barroco (2006), os referidos autores
soviéticos afirmaram com propriedade que os fenômenos ou eventos
psicológicos não se explicam por si mesmos, antes, seu desenvolvimento
e manifestação expressam muitos processos imbricados uns aos outros,
de modo dinâmico e nem sempre previsível e envolto em contradições,
pois, para Vigotski, o desenvolvimento humano consiste num processo
revolucionário.
Sendo seu objeto de estudo a compreensão da atividade consciente
do homem, o caminho investigativo percorreu a constituição dos
processos psíquicos no desenvolvimento humano, ao longo da vida, desde
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a infância, destacando a relevância das interações sociais, da cultura, da


linguagem e dos instrumentos físicos como elementos mediadores
primordiais. Para o psicólogo russo, a formação dos processos
psicológicos superiores tem como característica ocorrer por meio da
utilização de mediadores e necessitar de outros seres humanos para que
se efetive.
A utilização que o ser humano faz de objetos, instrumentos físicos e
da linguagem é, inicialmente, prática e simples, mas vai adquirindo
complexidade gradativa ao longo do desenvolvimento. As operações
psicológicas internas vão tomando contornos mais definidos à medida que
a execução de atos torna-se mais eficiente e produtiva. Assim, observa-se
que os atos externos, práticos, que requerem a manipulação de objetos
do mundo exterior, vão sendo substituídos pela utilização de funções
psicológicas internas, um modo cultural que conta com determinados
recursos instrumentais, auxiliares. Por exemplo, em vez de visualizar
grandes quantidades, utiliza o sistema auxiliar de contagem; no lugar de
memorizar muitas informações, passa a anotá-las por escrito. A utilização
de objetos, aparelhos, instrumentos ou sistema de signos (como é o caso
da escrita) auxiliares, possibilita um desempenho funcional mais eficiente.
Nas palavras de Vigotskii, Luria e Leontiev (2001, p. 146),

A escrita é uma dessas técnicas auxiliares usadas para fins


psicológicos; a escrita constitui o uso funcional de linhas,
pontos e outros signos para recordar e transmitir idéias e
conceitos. Exemplos de escritas floreadas, enfeitadas,
pictográficas mostram quão variados podem ser os itens
arrolados como auxílios para a retenção e transmissão de
idéias, conceitos e relações.

Assim, a linguagem apresenta-se como essencial, nesta


perspectiva, para a interação social e, na escola, a transmissão de
conhecimentos se efetiva por intermédio desta, via mediação. O modo
como a mediação se configura na prática pedagógica e a forma como se
processa a transmissão do conhecimento é que definem as possibilidades
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e os limites da aprendizagem e do desenvolvimento humano. A


transmissão cultural dos conhecimentos acumulados pela humanidade
decorre da utilização destes elementos e implica sua apropriação. Este
processo impulsiona o desenvolvimento das funções psíquicas superiores,
no entanto, a promoção do desenvolvimento pressupõe o acesso a esses
objetos.
O uso de mediadores culturais possibilita para todas as pessoas,
com ou sem deficiência, o desenvolvimento dos processos psicológicos
internos e da habilidade de organizar funcionalmente o próprio
comportamento. Partindo da concepção de deficiência, esta teoria
possibilita verificar a importância da ação pedagógica – a mediação, o
papel do professor e a organização do ensino – no contexto da educação
especial.

A deficiência mental na perspectiva vygotskiana

A criança considerada deficiente é vista, geralmente, como alguém


que apresenta déficits, passando, no decorrer de sua vida, por momentos
significativos em que é avaliada pelas suas dificuldades. Vygotsky e Luria
(1996) compreendem que essa seria uma concepção limitada às
características negativas da criança deficiente, em detrimento ao mais
essencial, suas características positivas, que se manifestam na
capacidade de compensar as dificuldades, por meio do desenvolvimento
de caminhos novos e diferentes. Dessa maneira, “o comportamento
cultural compensatório sobrepõe-se ao comportamento natural
defeituoso” (VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 221), visto que a criança, ao se
defrontar com as dificuldades resultantes das suas limitações biológicas,
cria formas alternativas para conviver com os outros homens.
A Psicologia Histórico-Cultural possibilita o deslocamento do olhar
dos impedimentos ou impossibilidades da pessoa com deficiência para o
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olhar que abre a perspectiva de reconhecimento das potencialidades,


capacidades e superação. Este princípio indica que todo ser humano pode
aprender e desenvolver suas capacidades psicológicas, ainda que
apresente condições físicas, mentais, sensoriais, neurológicas ou
emocionais significativamente diferenciadas.
No caso da criança com deficiência mental, Vygotsky e Luria (1996)
colocam que esta pode ter os mesmos talentos naturais de uma criança
normal, no entanto, não sabe como utilizá-los. “A diferença está apenas
no fato de que uma criança normal utiliza racionalmente suas funções
naturais e, quanto mais progride, mais é capaz de imaginar dispositivos
culturais apropriados para ajudar a sua memória” (p. 228). Para esses
autores, portanto, o que diferencia a criança com deficiência mental da
criança normal é a capacidade de utilizar os mediadores culturais criados
pelos homens.

Ao estabelecer os princípios da defectologia, Vygotski (1997) afirma


que o desenvolvimento das crianças com deficiência é semelhante ao
desenvolvimento das demais crianças, com alterações na estrutura que
se estabelece no curso de seu desenvolvimento. Ele considerou
imprescindível tomar as leis gerais que orientam o desenvolvimento da
criança e o seu comportamento para a compreensão das peculiaridades
que a criança deficiente apresenta. Descaracterizou as classificações
psicométricas obtidas por meio de testes de inteligência e as
categorizações baseadas na clínica médica e propôs a concepção de que
estas crianças precisam ser consideradas como sujeitos singulares,
concretos, influenciados pelo contexto de relações sociais e de condições
materiais onde nasceram, vivem e são constituídas. A ênfase recai no
processo histórico e cultural e nas relações sociais que constituem o ser
humano e não mais na sua deficiência. Esta perspectiva indica que a ação
voltada ao incentivo do desenvolvimento está pautada no potencial e nas
capacidades a serem adquiridas por meio da mediação nas relações
sociais. Pois, conforme Vygotsky e Luria (1996), a capacidade de fazer uso
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de instrumentos é indicadora do nível de desenvolvimento cultural da


mente da criança. A diferença entre uma criança com e outra sem
deficiência mental, para estes autores, está no fato de que a criança sem
deficiência utiliza racionalmente suas funções naturais, consegue realizar
associações, memorizar e aproveitar a experiência vivida de modo mais
efetivo. Quanto mais avança no seu processo de desenvolvimento e
aquisições cognitivas, mais facilidade tem de imaginar dispositivos
culturais que a auxiliem na memorização, raciocínio e solução de
problemas (VYGOTSKY e LURIA, 1996, p. 228).
Partindo dessa premissa, Facci, Tuleski e Barroco (2006) chamam a
atenção para o uso dos mediadores culturais no enfrentamento da
deficiência, apontando a necessidade de que a educação escolar da
criança com deficiência atue devidamente instrumentalizada, de modo
que possa realizar as mediações necessárias à promoção do
desenvolvimento das funções psicológicas superiores.
Para Vygotski (1997), o campo primordial que possibilita a
compensação da deficiência é o desenvolvimento cultural, visto que,
mediante as impossibilidades impostas no desenvolvimento orgânico
sucessivo, existe um espaço ilimitado e imprevisível para o
desenvolvimento cultural.
Como afirma Vygotski (1997), a aquisição formalizada de
conhecimentos é responsabilidade da educação escolar e a Educação
Especial deve ter o mesmo objetivo do ensino comum, no sentido de ter
como foco a aprendizagem dos conteúdos científicos do currículo regular.
Considera que os princípios de ensino e aprendizagem são os mesmos,
particularmente no que se refere à importância da mediação, por meio da
utilização dos instrumentos físicos e da linguagem, no âmbito da
coletividade. Nas palavras do autor:
A ninguém ocorre sequer negar a necessidade da pedagogia
especial. Não se pode afirmar que não existem
conhecimentos especiais para os cegos, para os surdos e os
mentalmente atrasados. Porém esses conhecimentos e essas
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aprendizagens especiais há que se subordiná-los à educação


comum, à aprendizagem comum. A pedagogia especial deve
estar diluída na atividade geral da criança (VYGOTSKI, 1997,
p. 65).

O destaque à importância das práticas educacionais na constituição


dos processos psicológicos superiores e na aprendizagem de
conhecimentos científicos, apontados por Facci (2004), indica que a
apropriação de conhecimentos, valores e conceitos não existem a priori,
mas são apreendidos por meio das práticas sociais.
As idéias que compõem o pensamento humano são interiorizadas
durante a atividade social e seu conteúdo depende do momento histórico,
da condição material de produção da vida e da cultura vigente. Aqui,
estaria a especificidade de toda educação escolar, cuja ênfase é a
proposição de práticas pedagógicas que busquem o desenvolvimento da
formação social da mente, independentemente do aluno ter ou não uma
deficiência.
Neste contexto, faz-se necessário dimensionar a concepção de
mediação proposta pela Psicologia Histórico-Cultural.

A mediação na educação escolar

A mediação, fundamentada nas idéias vigotskianas, é definida como


uma categoria que norteia a atividade educativa. As bases
epistemológicas para o entendimento deste princípio estão pautadas na
concepção de mediação de Hegel e Marx.
Almeida, Arnoni e Oliveira (2006) afirmam que o ser humano é um
ser social e utiliza a mediação para elevar seus níveis de
desenvolvimento. A mediação é uma característica essencialmente
humana e se manifesta mediante a negação de um posicionamento,
configurando-se na modificação, em direção à superação do plano
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imediato, cotidiano, para o plano mediato, constituído por elementos


advindos do conhecimento sócio-cultural. A mediação ocorre entre os
homens por meio da atividade produtiva e depende da maneira como o
homem, pela interação, transforma a natureza e transforma a si mesmo.
Consiste num processo pautado na tensão e no movimento contínuo, cuja
ordem se estabelece por meio da negação entre as partes que se
relacionam mutuamente. Permite, “[...] pela negação, que o imediato seja
superado no mediato” (p. 3).
Na educação escolar, especificamente nos processos de ensinar e
aprender, a mediação tem se caracterizado de várias maneiras. Não
podemos considerar a mediação simplesmente como uma atribuição
daquele professor que se apresenta como uma ponte entre o que é
ensinado e quem aprende. Para Almeida, Arnoni e Oliveira (2006), a
constituição dialética da mediação vai além dessa interpretação,
atribuindo-lhe uma conceituação mais complexa, baseada na contradição,
que consiste num caráter reflexivo entre as partes envolvidas.
O conhecimento é o objeto do trabalho da prática docente e, para
compreendê-lo na sua totalidade, Almeida, Arnoni e Oliveira (2007)
destacam a necessidade de que o professor saiba a teoria do
conhecimento que ensina – lógica da ciência – organize o processo de
ensino – conteúdos, conceitos – e compreenda as questões que norteiam
e orientam seu trabalho educativo como os limites, possibilidades,
validação e meios de acesso ao referido conhecimento.
Os processos de ensino e aprendizagem expressam a tensão entre o
professor, pessoa que detém o conhecimento a respeito do conteúdo da
sua disciplina ou área, e os alunos, compreendidos como indivíduos que
possuem diversos tipos e níveis de conhecimento advindos de suas
experiências cotidianas e estudos. A mediação, no processo de ensino e
de aprendizagem, processa-se entre forças opostas e com níveis
diferenciados. Cabe ao professor ajudar o aluno a conhecer o que ele
conhece, partindo dos conhecimentos espontâneos do educando, os quais
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são superados pouco a pouco pela apropriação do conhecimento


científico.
Os três autores conceituam as abordagens epistemológica e
ontológica do conhecimento, considerando os princípios filosóficos e
contextuais em que ambas fornecem explicações a respeito da realidade.
A abordagem epistemológica do ensino é concebida como aquela em que
o professor utiliza como principal referencial os princípios lógicos que
norteiam a produção do conhecimento científico, segundo os princípios da
lógica formal clássica, sem levar em consideração o contexto sócio-
histórico. Preocupa-se com a operacionalização e a neutralidade
científicas, eliminando qualquer dimensão de valor. Já a abordagem
ontológica do ensino é concebida por meio da ontologia de base
materialista, inclui as dimensões sociais, políticas, econômicas e culturais,
operando com variáveis valorativas presentes nestas dimensões.
O destaque à importância das práticas educacionais na constituição
dos processos psicológicos superiores, mediante a aprendizagem da
leitura e escrita e na aquisição de conhecimentos científicos, indica que a
apropriação de conhecimentos, valores e conceitos não existem a priori,
mas são apreendidos por meio das práticas sociais.
A utilização e aplicação de dispositivos culturais favorecem o
desenvolvimento das habilidades e funções mentais superiores e a
educação escolar, particularmente na pessoa do professor, tem uma
grande responsabilidade neste processo. O conhecimento adquirido na
escola, “[...] transforma e desenvolve os processos cognitivos das
pessoas, fazendo tais processos ultrapassarem os limites da experiência
dos indivíduos” (FACCI, 2004, p. 192).
Para Vygotsky e Luria (1996), o desenvolvimento cultural pode gerar
desenvolvimento humano, já que,

O grau de desenvolvimento cultural de uma pessoa se


expressa não só pelo conhecimento por ela adquirido,
mas também por sua capacidade de usar objetos em seu
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mundo externo e, acima de tudo, usar racionalmente seus


próprios processos psicológicos [...] o talento cultural
significa, antes de mais nada, usar racionalmente as
capacidades de que se é dotado (VYGOTSKY; LURIA, 1996, p.
237).

Nessa perspectiva, cabe ao professor a tarefa de transmitir para a


criança o que ela não tem condições de aprender sozinha, valorizando o
ensino de conteúdos produzidos e acumulados ao longo da história da
humanidade e socialmente necessários para a coletividade.
Assim, a mediação do professor, no caso da Educação Especial, é
fundamental justamente para levar o aluno a negar o imediato, o que está
presente naquele momento, levando-o a superação de um pensamento
primitivo, para um pensamento superior, no sentido de saber utilizar os
instrumentos mediadores disponíveis no ambiente.

O desenvolvimento das funções psicológicas superiores: a


superação do desenvolvimento biológico pela apropriação da
cultura

O desenvolvimento do ser humano compreende três principais


trajetórias evolutivas a serem percorridas: a biológica (dos animais aos
seres humanos), a histórico-cultural (do homem primitivo ao homem
cultural moderno) e a subjetiva (desenvolvimento individual do bebê e da
criança, que passam por vários estágios, transformando-se num escolar
até a idade adulta, o homem cultural). Os estudos de Vygotsky e Luria
(1996, p.153) a respeito do desenvolvimento da criança e do seu
comportamento indicam que “a criança pensa de modo diferente,
percebendo o mundo de maneira diversa da do adulto [...]” quanto à
lógica, às estruturas e funções orgânicas.
As estruturas que permitem ao adulto relacionar-se com o
ambiente, a visão, audição e outros sentidos, são completamente
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diferentes no bebê. No início da vida, estas estruturas não são funcionais,


vão adquirindo funcionalidade gradativa ao longo do tempo, conforme o
bebê se relaciona com as outras pessoas do seu ambiente e se apropria
da cultura. O primeiro princípio da existência é orgânico, biológico, mas
logo começa a ser substituído pelo segundo, que é o princípio da
realidade externa, social. A ligação inicial com o mundo ocorre pela boca,
a sensação de fome e a saciedade possibilitam os primeiros fenômenos
psicológicos vivenciados pelo bebê. Com o passar do tempo, por meio da
interação que a criança estabelece com as outras pessoas do seu entorno
social, o princípio das sensações orgânicas de existência começa a ser
substituído pelo princípio da realidade externa, social e cultural. Para
Vygotsky e Luria (1996), em todos os órgãos do sentido, os aspectos
biológicos vão sendo superados, em sua funcionalidade, pela apropriação
da cultura.
Ao longo do processo histórico de evolução e transição para
estágios cada vez mais evoluídos, o homem inventou ferramentas e
signos e criou um ambiente cultural e industrial que alterou o
desenvolvimento do próprio homem. Por meio do trabalho,
filogeneticamente, o homem, ao transformar a natureza, criou vários
instrumentos e signos que transformaram a humanidade como um todo.
Ao transformar a natureza, o homem produziu transformações em si
mesmo, nas suas funções psicológicas. Como afirma Leontiev (1978, p.
70),

O aparecimento e o desenvolvimento do trabalho,


condição primeira e fundamental da existência do
homem, acarretaram a transformação e a
humanização do cérebro, dos órgãos de atividade
externa e dos órgãos do sentido.

As capacidades naturais foram aprimoradas – visão, audição, olfato,


memória – e passaram a ser usadas racionalmente. O comportamento
passou a ser social e cultural no conteúdo, nos mecanismos e nos meios.
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Isso acontece também, no desenvolvimento de cada indivíduo, que pela


interação com os outros, vai se apropriando da cultura e transformando
suas estruturas mentais.
Na ontogenia, o homem está, a todo o momento, transformando os
seus órgãos dos sentidos e suas funções psicológicas elementares em
funções psicológicas superiores, tais como a capacidade de abstração,
raciocínio lógico, memória, planejamento, entre outras funções, por meio
da apropriação da cultura. As funções psíquicas superiores são
desenvolvidas singularmente no ser humano e são erigidas a partir das
funções psicológicas elementares, que são involuntárias e possuem uma
relação imediata e direta com o mundo real. As funções elementares
permanecem por um curto período de tempo na vida de uma pessoa. O
uso de signos, símbolos e instrumentos modificam a relação do bebê com
o mundo, expressando indícios de desenvolvimento das funções
psicológicas superiores, mediadas e intencionais, representadas por
operações, inicialmente externas, que passam a ser interpsíquicas.
Vigotski (2000) enfatiza que as funções psicológicas superiores são
desenvolvidas por meio da interação com os outros homens; primeiro,
desenvolvem-se interpsicologicamente e, depois, tornam-se
intrapsicológicas.
Facci e Tuleski (2006), pautadas em estudos de Luria, afirmam que a
estrutura da atividade cerebral atua a partir de sistemas funcionais, com
uma estrutura sistêmica que não pode ser localizada em áreas estritas do
cérebro. O uso funcional dos mediadores culturais representa um
momento de extrema importância no desenvolvimento mental do ser
humano, provocando a transformação das funções psicológicas
elementares.
Ao tratarmos da educação da criança com deficiência mental, que
se constitui objeto de análise neste texto, consideramos importante
discutir como ocorre o desenvolvimento da memória e da abstração,
assim como trazer alguns elementos da apropriação da escrita, que vão
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indicar como a mediação do professor é fundamental nesse processo.


Sabemos que outras funções psicológicas estão presentes no processo de
aprendizagem e desenvolvimento, no entanto, a título de exemplificação,
deter-nos-emos somente na memória e abstração, demonstrando que a
questão da fala permeia a superação de funções elementares em
superiores.
No caso do desenvolvimento da memória, por exemplo, é possível
ver quanto o processo educativo contribui para que, de elementar, essa
função se torne superior. A memória é definida, por Vygotsky e Luria
(1996) e Luria (1991), como um fenômeno que envolve a plasticidade
natural do aparelho neuropsicológico e possibilita a fixação e o
armazenamento de informações, que podem se deteriorar com o
envelhecimento, stress ou nervosismo. O desenvolvimento da memória na
criança se inicia no período da educação infantil, caracterizando-se como
uma memória imediata, natural. No período do ensino fundamental, a
criança passa a utilizar grande número de técnicas para memorizar,
relaciona o novo material com a experiência anterior por meio de
associação, fazendo registros.
A criança nasce num mundo com história e cultura já estabelecidas,
apropria-se de sistemas já prontos e aprende como usá-los. Ao aprender,
transforma seus processos naturais com a utilização desses sistemas
culturais, elevando sua capacidade de memorização. O uso de
equipamentos, ferramentas, instrumentos, objetos, elementos, signos,
enfim, de meios artificiais, ajuda na lembrança de informações. A
aquisição dos novos dispositivos culturais (mediadores externos) melhora,
consideravelmente, a capacidade de memorização e transforma os
processos psicológicos superiores (internos). Assim, a memória “natural”
passa a ser memória “cultural”.
O uso de certas marcas resulta num aumento significativo da
eficiência da memória (desenvolvimento artificial). Fazer bom uso da
memória implica em saber organizar seu repertório psicológico, ser capaz
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de criar boas estruturas auxiliares. No caso do Ensino Especial, o


professor precisa fazer mediações para que essa função psicológica se
desenvolva, já que as crianças que apresentam dificuldades na aquisição
de conhecimentos transmitidos na educação formal necessitam de apoio
no estabelecimento de conexões associativas. Quando a criança começa a
utilizar meios auxiliares intermediários e associativos para memorizar,
como o corpo, objetos como pedaços de madeira, pedras, lápis, palitos,
nós em cordas, inicia o processo de evolução de funções psicológicas
superiores de forma indireta. Isso lhe proporciona maior liberdade para
pensar e agir, vai além do que é possível pelo aparato biológico imediato.
Ocorre o início do processo de sistematização do conhecimento via
aquisição de conceitos.
No aprendizado obtido no contexto da educação escolar, observa-se
o avanço significativo no pensamento mediado por conceitos científicos,
que superam o pensamento orientado pelo conhecimento cotidiano,
empírico, da vida prática. Consequentemente, a memória intencional
adquire caráter lógico e organizado, e orienta o pensamento em direção à
abstração e à generalização. O caráter mecânico, externo da
memorização, transforma-se em memorização lógica. Como resultado,
ocorre o aumento considerável da capacidade de memorização. Assim, as
formas imediatas de memorização se convertem em “processos
psicológicos superiores”, sociais por sua origem e mediados em sua
estruturação. No início do desenvolvimento, a memória se apresenta
como uma continuação da percepção passa a ser mediada e liga-se ao
processo de pensamento. No adulto, o pensamento discursivo incorpora a
atividade mnemônica.
De acordo com Vygotsky e Luria (1996), a fala representa um
recurso do pensamento extremamente importante. No início do
desenvolvimento, a criança emite sons inarticulados, choro,
posteriormente balbucio. Gradativamente, começa a perceber que os sons
podem tomar lugar de certos objetos, desejos e objetivos a serem
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alcançados. Descobre o uso funcional da palavra que possui sentido. Com


aproximadamente um ano, a criança inicia o processo de imitação,
período em que expressa sentenças de uma só palavra. Aos poucos,
processa-se o enriquecimento do vocabulário com a produção de palavras
novas, que lhe permitem dominar novos conceitos. Por exemplo, para a
palavra todos, fala todista, para a profissão de quem ajuda, ajudador,
quem arruma máquina, é o maquineiro.
A criança, ao começar a apresentar novas formulações, evidencia
nuances do pensamento. Por meio da oralidade, integra processos
perceptivos das diversas vias sensoriais (visual, auditiva, sinestésica),
elevando o nível de atividade psíquica. Começa a discriminar os indícios,
detalhes, características essenciais das não-essenciais, adquirindo
conhecimentos que lhe possibilitam nomear, conceituar, categorizar,
generalizar e abstrair.
Segundo os autores, a fala internalizada consiste na função
psicológica mais importante do ser humano. Representa o mundo externo
no mundo interno, estruturando o pensamento. Consideram que a
abstração, outra função psicológica, é parte integrante e necessária a
todo tipo de processo de pensamento.
Inicialmente, o pensamento da criança é empírico, rudimentar,
visual. O desenvolvimento do pensamento empírico (que parte do
conhecimento prático, comumente tomado da realidade concreta) para o
abstrato depende, no começo, do uso de ferramentas externas e da
prática de técnicas complexas de comportamento. As crianças pequenas
manipulam objetos pautadas no princípio da forma (representação visual):
empilham, montam torres e comparam para dizer qual tem mais
(comparação de somas divididas), uso primitivo do processo de percepção
visual. A forma substitui a contagem, como recurso de comparação,
quando a criança ainda não domina a contagem. Crianças que já sabem
contar: contam os objetos arranjados em fileiras, mas a forma ainda
influencia a contagem quando são posicionados de modo sobreposto.
19

Por volta de nove ou dez anos, o processo visual é substituído pelo


processo cultural de contagem. A realização numérica desenvolve-se sob
influência da escolarização e do ambiente cultural. A educação escolar
proporciona intensa estimulação para o desenvolvimento da fala, bem
como mudanças essenciais no pensamento. A fala possibilita o
aparecimento de novas lógicas de pensamento, a memória visual evolui
para a memória verbal, as palavras e as formas lógicas passam a
desempenhar o papel de ferramentas decisivas para a rememoração e a
fala interior transforma-se no instrumento essencial do pensamento.
Assim, o uso de mediadores culturais possibilita o desenvolvimento
dos processos psicológicos internos e a habilidade de organizar,
funcionalmente, o próprio comportamento, aspectos que são
fundamentais no caso da Educação Especial. Se considerarmos, por
exemplo a escrita, constatamos que o desenvolvimento das funções
psicológicas superiores, ao mesmo tempo em que necessárias para a
aquisição da escrita, também são provocadas pelo aprendizado dos
signos, numa relação dialética entre desenvolvimento e aprendizagem.

A importância do ensino que possibilita aprendizagem e


impulsiona o desenvolvimento

De acordo com Vygotski (2000), o desenvolvimento das funções


psíquicas superiores da criança constitui dois grupos de fenômenos, os
processos de atenção voluntária, pensamento verbal, memória lógica,
formação de conceitos e o domínio dos meios que expressam o
desenvolvimento cultural do pensamento como a linguagem, a escrita, o
cálculo, o desenho.
A linguagem, como explica Vigotskii (1998), é o instrumento do
pensamento. A palavra forma, representa, organiza e comunica o
pensamento. O pensamento, por sua vez, é dinâmico, já que se elabora
20

por meio das mediações interpessoais e instrumentais. Transita do


particular para o geral e do geral para o específico na associação e
generalização, processo que permite compreender o objeto ou o conceito
como elemento particular de um sistema maior.
Ao relacionarem as palavras com o objeto, as crianças percebem o
seu papel funcional, utilizando-as como meios. Este desempenho recebe
grande influência dos conhecimentos adquiridos na escola, que é o
espaço social eleito para a transmissão e aquisição dos conhecimentos
científicos acumulados pelos homens ao longo da história da humanidade.
No início do desenvolvimento cultural, para Vygotsky e Luria (1996),
a criança pequena começa a utilizar funcionalmente os objetos como
ferramentas. Observa-se o desenvolvimento de novas formas e recursos
de comportamento que dão suporte a movimentos naturais e a outros
adquiridos, mais simples. A seguir, surgem processos mediados de
comportamento, por meio do uso de signos como estímulos. As aquisições
decorrentes da experiência cultural reconstroem as funções psicológicas
básicas, estabelecendo novas conexões neurais e equipando a criança
com novos recursos na via do desenvolvimento. Para esses autores, a
plasticidade do aparelho neuropsicológico permite a fixação de
impressões recebidas, a memorização.
O desenvolvimento da memória, da infância para a idade adulta,
implica na transição de formas naturais para formas culturais, aprendidas,
de memorização. A criança em desenvolvimento apropria-se de sistemas
já prontos que auxiliam a memorizar e no processo de desenvolvimento,
passa a relacionar o novo material aprendido com a experiência anterior,
valendo-se de sistemas de associação, mediação (como tomar nota,
grifar...). “A criança manipula objetos externos para conseguir o controle
do processo interno de memória” (VYGOTSKY E LURIA, 1996, p. 188). Ao
longo do seu crescimento, a criança passa a utilizar a memória de
maneira mais eficiente, por meio do aprendizado, apropriando-se de
21

novos sistemas e transformando seus processos naturais devido à


utilização deles.
A organização do pensamento também se modifica
qualitativamente. Luria (1990) apresenta uma classificação do
pensamento em dois tipos distintos: o pensamento concreto ou
situacional e o pensamento abstrato ou categorial. As pessoas que
tendem ao pensamento concreto ou situacional não realizam a separação
dos objetos em categorias lógicas elaboradas, mas os incorporam às
situações gráfico-funcionais, retiradas das experiências práticas, do
cotidiano, vividas e registradas na memória. O modo de organização
desse pensamento é rígido, depende da imagem visual o que dificulta
mudar para outro princípio de classificação. Já na classificação abstrata ou
categorial, a pessoa seleciona os objetos correspondentes a um conceito
abstrato, por categorias, independente de suas características de
apresentação (tamanho, cor, se geralmente aparecem juntos, por
exemplo: machado, serra, pá, lançadeira e agulha pertencem à categoria
ferramentas). Para Luria (1990, p. 65),

A classificação categorial implica pensamento verbal e lógico


complexo que explora o potencial de linguagem de formular
abstrações e generalizações para selecionar atributos e
subordinar objetos a uma categoria geral.

Caracteriza-se como um modo de pensar flexível, que permite a


passagem de um atributo a outro, construindo categorias apropriadas
pelo material (como: madeira, metal, vidro), cor (claro, escuro), tamanho
(pequeno, grande), entre outras.
Na teoria vigotskiana, segundo Luria (1990), a linguagem é o
instrumento decisivo na sistematização e formulação da percepção, pois,
por intermédio das palavras, que são instrumentos mediadores,
produzidos historicamente, ocorre a formulação de idéias abstratas e
22

generalizadas, que facilitam a transição reflexivo-sensorial de um fato em


pensamento racional.
Na aprendizagem escolar, durante a execução de atividades, o
pensamento conceitual depende das operações teóricas que a criança
aprende ao realizar os estudos programados e mediados pelo professor,
que resulta na formação de conceitos científicos e não-cotidianos. A
transição do pensamento gráfico, concreto, visual para o conceitual atinge
o uso das palavras e o seu significado, servindo para produzir abstrações
e generalizações. Um conceito pode ser definido pela classificação de um
objeto, fenômeno ou atividade específica numa categoria mais ampla:
operação mais elementar do pensamento abstrato.
Cabe à educação escolar atuar a favor do desenvolvimento da
capacidade de formular e relacionar conceitos científicos (teoria) e
cotidianos (prática). De acordo com Facci,

[...] Vigotski enfatiza que o traço fundamental da atividade


humana é a mediação de instrumentos técnicos e
psicológicos. Os instrumentos técnicos têm a função de
regular as ações sobre os objetos e os instrumentos
psicológicos regulam as ações sobre o psiquismo das
pessoas, como por exemplo: a linguagem, diferentes formas
de cálculo e numeração, os mapas, os desenhos e todos os
tipos de signos (FACCI, 2004, p. 154).

Assim, via educação escolar os conteúdos científicos são veiculados,


mas são, de fato, apropriados quando o aluno consegue expressar seu
pensamento sobre eles de forma generalizada, revelando a abrangência
de sua compreensão sobre determinado assunto ou tema, por meio da
expressão lingüística (oralmente ou por escrito) ou por meio de atividades
representativas (desenho, pintura, montagem construtiva, modelagem,
etc.). Podemos afirmar que são apropriados ao possibilitarem, por meio do
pensamento teórico, compreender a realidade de modo mais amplo,
podendo, com isso, provocar, junto com outros homens, na coletividade,
transformações na prática social.
23

A escrita consiste num processo mediado de grande importância


para o desenvolvimento do pensamento da criança. Representa um meio
para grafar, refletir, recordar, mediante o registro que imprime um
significado a uma mensagem que pode ser veiculada com diferentes
objetivos.
Luria (2001), no capítulo O desenvolvimento da escrita na criança,
argumenta que a criança pequena, que está iniciando no processo de
aquisição da escrita, ao brincar de escrever, dissocia a função do seu
significado cultural, bem como do mecanismo convencional de realização
dos movimentos que grafam os traçados. No entanto, conforme vai se
apropriando da escrita, vai se apropriando, paralelamente, da sua função
e começa a perceber que os signos utilizados em uma seqüência
específica, convencionalmente estabelecida pelos homens, servem para
registrar idéias e informações. Nas várias etapas do desenvolvimento da
escrita, os processos de percepção e o desenvolvimento do pensamento
estão em plena transformação e incluem componentes motores,
movimentos oculares, recepção e emissão de sons, reanimação dos
remanescentes de experiências anteriores, análise e criação de hipóteses.
Os experimentos de Luria (2001) confirmam que, quando a escrita
simbólica se estabelece, a criança passa a relacionar um símbolo
(expediente instrumental) ao conteúdo a ser registrado, dirigindo a sua
atenção e a constituição de suas idéias por meio da linguagem,
estruturando e reestruturando seu pensamento. “O desenvolvimento da
escrita na criança prossegue ao longo de um caminho que podemos
descrever como a transformação de um rabisco não-diferenciado para um
signo diferenciado” (LURIA, 2001, p. 161). Observa-se, nesse momento,
que a criança realiza uma síntese dos indícios e totalidades, toma
decisões e começa a formular concepções de generalização e abstração.
Expressa um salto qualitativo no desenvolvimento das formas complexas
de comportamento cultural.
24

Ao aprender a utilizar os mediadores culturais, a criança desenvolve


uma série de estratégias auxiliares internas (fixa em sua mente,
estabelecem-se conexões, memorização), derivando na reorganização dos
processos psicológicos superiores e na modificação do comportamento.
Quando o aluno não consegue estabelecer as relações auxiliares entre
diferentes elementos, como, por exemplo, uma dada palavra e uma
gravura, diferente da representação gráfica, mas que pode ter uma
relação com a mesma, e expressa uma palavra diferente da que foi
falada, demonstra que não conseguiu memorizar porque não estabeleceu
uma relação ao evocar uma palavra qualquer, ligando-a a imagem.
Revela, assim, o não estabelecimento de conexão com a palavra inicial.
Os alunos que não apresentam dificuldades estabelecem as relações com
êxito, até mesmo com criatividade. Já as crianças com atraso mental
demonstram a necessidade de mediação do adulto, com exemplos
concretos, pistas visuais e critérios comparativos que partam da
experiência prática, concreta.

Considerações finais

Na relação dialética entre desenvolvimento e aprendizagem, o


aluno, com deficiência ou não, pode galgar patamares superiores no
desenvolvimento psicológico, conforme vemos nos estudos de Vygotski,
Luria e Leontiev. Estes psicólogos russos, desenvolveram suas
investigações a respeito da constituição da linguagem, do
desenvolvimento e da aprendizagem do ser humano, no início do século
XX, tendo como finalidade a compreensão sobre o desenvolvimento de
processos psíquicos, quais sejam, a atenção, a memória, a abstração,
raciocínio lógico, planejamento, entre outras funções psicológicas. Neste
texto, enfocamos somente a memória, a abstração e a aquisição inicial da
escrita, a título de exemplificação.
25

Nas palavras de Vygotski e Luria (1996, p. 194), a escola “[...] cria


uma provisão de experiências, implanta grande número de métodos
auxiliares complexos e sofisticados e abre inúmeros novos potenciais para
a função humana natural”. Na Educação Especial, fica muito clara a
importância e a necessidade de que o professor utilize recursos
mediadores para auxiliar a criança a desenvolver sua capacidade de
pensar, de estabelecer associações numa relação dialética entre ensino e
aprendizagem. Partimos do pressuposto de que é possível ajudar uma
criança a descobrir o uso de elementos para auxiliar sua memorização
mediante a utilização e manipulação de objetos externos de modo a
realizar o controle do processo interno da memória, o que permite a
transição de um sistema de lembrança imediata para um sistema de
notação, registro gráfico por meio da escrita (dispositivo cultural,
artificial). A educação escolar possibilita que a criança reequipe sua
memória, utilizando novos sistemas e novas técnicas de rememoração.
Na escola, o processo de conhecimento dos conteúdos científicos é
organizado e sistematizado pelo professor de modo intencional e objetivo.
Cabe a ele o domínio do conhecimento deste conteúdo ao trabalhar os
conceitos com fundamentação científica, em atividades de ensino. Para
isto, utilizam-se instrumentos, tais como currículos, livros e outras
referências, avaliações, planejamentos, entre outros elementos, que
medeiam os processos de ensino e de aprendizagem.
Com a aquisição dos conteúdos escolares, o aluno aprende a
pensar, aprende até mesmo a pensar sobre o seu pensar, modificando-o
mediante a aquisição ou novas configurações mentais. O significado da
palavra é dinâmico e mutável, assim a relação do pensamento com a
palavra modifica-se, propiciando níveis elevados e diferenciados de
pensamento (novos patamares). O aluno, ao se apropriar dos conceitos
científicos, pela mediação do professor, tem mais elementos para fazer
generalizações, de modo que, quanto mais aprende, mais se desenvolve
26

e, conseqüentemente, tem maiores possibilidades de aprender. A relação


dialética entre aprendizagem e desenvolvimento se faz presente.
A linguagem (palavra), através da comunicação interpessoal e dos
instrumentos, organiza o pensamento generalizante (mais complexo),
possibilitando a compreensão de significados e estabelecendo redes de
associação. Este processo permite a liberdade de pensamento e a ênfase
passa a ser o próprio pensamento por conceitos e não mais o objeto
concreto apreendido pelas vias sensoriais.
No caso da abstração, os conteúdos curriculares devem propiciar o
desenvolvimento dessa função, saindo de atividades empíricas e trazendo
conteúdos que estimulem a capacidade de abstração. Por muito tempo, as
escolas especiais, particularmente no caso da deficiência mental, ficaram
restritas a atividades que não permitiam à criança ascender do concreto
para o abstrato, não provocando e nem utilizando o potencial que todos
os indivíduos têm para aprender. No entanto, conforme vimos
anteriormente, Vygotski era claro quando defendia a possibilidade de
todos os indivíduos se desenvolverem, enfatizando o quanto a limitação
biológica não deve se constituir em um entrave no desenvolvimento
social, uma vez que os próprios homens, ao transformarem a natureza,
criaram instrumentos que lhes possibilitam ir além do que a natureza
humana dispõe. Isto deve ocorrer também na Educação Especial por meio
da utilização de mediadores culturais diferenciados, que permitam aos
indivíduos com deficiência superarem suas limitações biológicas.
A concepção Histórico-Cultural defende a idéia de que a escola deve
exercer o papel de principal mediadora dos processos de desenvolvimento
humanos, de modo que, mediante apropriação de conteúdos escolares
sistematizados e representativos de sua cultura, o aluno seja capaz de
refletir, analisar, sintetizar, generalizar sobre os fenômenos do mundo, do
seu grupo social e de si mesmo. Facci (2004), neste aspecto, deixa muito
claro o quanto os conteúdos curriculares podem provocar o
desenvolvimento das funções psicológicas dos alunos, tornando-os aptos,
27

por meio do pensamento científico, a conhecer e a transformar a


realidade posta. A mediação do professor deve caminhar no sentido,
defendido por Almeida, Arnoni e Oliveira (2006), da superação do
imediato pelo mediato.
Para que tudo isso se efetive na ação pedagógica, vale lembrar o
que nos ensina Vygotski “o aprendizado adequadamente organizado
resulta em desenvolvimento mental e põe em movimento vários
processos de desenvolvimento” (VYGOTSKI, 1998, p. 101).
Assim, cabe ao professor organizar, adequadamente, o ensino que
promova tal aprendizado, planejando e elegendo conteúdos mediadores
para transmitir os conceitos científicos nas diversas áreas e disciplinas do
conhecimento, de modo que a educação escolar propicie o acesso aos
conteúdos científicos, experiências, socialização e democratização de
conhecimentos. Devido a sua grande importância para a constituição do
sujeito, cabe à escola e ao professor deixar de considerar apenas os
déficits dos alunos com deficiência mental e atuar nas potencialidades e
possibilidades do seu desenvolvimento.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, J. L. V.; ARNONI, M. E. B.; OLIVEIRA, E. M. Mediação dialética na


educação escolar: teoria e prática. São Paulo: Loyola, 2007.

______. Mediação pedagógica: dos limites da lógica formal à necessidade


da lógica dialética no processo ensino-aprendizagem. REUNIÃO ANUAL DA
ANPED, 21. Caxambu, 2006. Anais da 21a Reunião Anual da ANPEd.
Disponível em:
http://www.anped.org.br/reunioes/29ra/trabalhos/trabalho/GT04-1724--
Int.pdf. Acesso em: 1 dez. 2007.
28

FACCI, M. G. D. Valorização ou esvaziamento do trabalho do professor?


Um estudo crítico-comparativo da teoria do professor reflexivo, do
construtivismo e da psicologia vigotskiana. Campinas, SP: Autores
Associados, 2004.

______; TULESKI, S. C. Da apropriação da cultura ao processo de


humanização: o desenvolvimento das funções psicológicas superiores. In:
ENCONTRO BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO E MARXISMO, 2. Anais do II
Encontro brasileiro de educação e marxismo. Curitiba, 2006, CD.

______; BAROCO, S. M. S.; TULESKI, S. C. Psicologia Histórico-Cultural e


educação especial de crianças: do desenvolvimento biológico à
apropriação da cultura. Encontro: Revista de Psicologia, 10(13), p. 23-35,
2006.

LEONTIEV, A. N. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Livros


Horizonte, 1978.

LURIA, A. R. Desenvolvimento cognitivo. São Paulo: Ícone, 1990.

______. Curso de psicologia geral. v. 1 e 3. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 1991.

______. O desenvolvimento da escrita na criança. In: VIGOTSKII, L. S.;


LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e
aprendizagem. 9. ed. São Paulo: Ícone, 2001. p. 143-189.

VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo,


Martins Fontes, 2000.
29

VYGOTSKI, L. S. A transformação socialista do homem. URSS: Varnitso,


1930. Tradução Marxists Internet Archive, english version, Nilson Dória.
Disponível em: < http://www.marxists.org/>. Acesso em: 11 dez. 2006.

______. Obras escogidas. Tomo III. Madri: Centro de Publicaciones del MEC
y Visor Distribuciones, 1995.

______. Obras escogidas V. Madrid: Centro de Publicaciones del MEC y


Visor Distribuciones, 1997.

VYGOTSKY L. S.; LURIA, A. R. Estudos sobre a história do comportamento:


símios, homem primitivo e criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

VIGOTSKII, L. S.; LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem,


desenvolvimento e aprendizagem. 9. ed. São Paulo: Ícone, 2001.

Secretaria de Estado da Educação – SEED


Superintendência da Educação - SUED
Políticas e Programas Educacionais – DIPOL
Programa de Desenvolvimento Educacional - PDE

APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO PLANO DE TRABALHO


30

Breve análise circunstanciada do Orientador sobre os pontos


abaixo relacionados:
a) Adequação do Plano à Educação Básica e à área de
atuação
do proponente;
O tema desenvolvido pela professora PDE foi coerente com a área
de Educação Especial, uma vez que enfocou a influência da mediação do
professor no processo ensino e aprendizagem, destacando o
desenvolvimento das funções psicológicas superiores, com base na
Psicologia Vigotskiana, cujo expoente principal, o autor russo L.S.
Vigotski, assim como A . Leontiev e A . R. Lúria, tem contribuído muito
para a compreensão da Educação Especial.

b) Importância do estudo;
O estudo torna-se muito relevante, considerando a necessidade de
proporcionar uma fundamentação teórica consistente acerca da
aprendizagem o do desenvolvimento humano, focalizando,
principalmente, o quanto a aprendizagem dos conhecimentos científicos,
mediados pelo professor, contribui para o desenvolvimento das funções
psicológicas superiores. A temática que foi desenvolvida pela Professora
PDE contribuirá para o trabalho do professor na Educação Especial, assim
como para a proposição de atividades a serem desenvolvidas na prática
pedagógica com vistas ao maior desenvolvimento das funções
psicológicas dos alunos. O principal, na perspectiva vigotskiana, é que os
professores utilizem instrumentos mediadores diferenciados para levar o
aluno a se apropriar dos conhecimentos escolares.

c) Consistência da proposta;
A proposta teve consistência na medida em que a Professora PDE
se dispôs a fazer uma leitura cuidadosa dos clássicos da Psicologia
Histórico-Cultural com vistas ao maior entendimento da sua problemática
31

de estudo. A consistência também pode ser evidenciada na sua proposta


de continuidade da pesquisa desenvolvida no mestrado. A Professora
PDE pôde, nesse tempo de dedicação ao estudo, aprofundar alguns
estudos realizados na Escola de Vigotski, discutindo, com a orientadora,
dúvidas que forma surgindo no decorrer das leituras.

d) Viabilidade de execução do Plano na duração


estabelecida;
O plano foi executado dentro do proposto, no entanto,
consideramos que os vários cursos e atividades executadas pela
professora, proposta no PDE, durante os seus estudos, dificultaram, em
alguns momentos, a dedicação à elaboração e sistematização das
informações que estava apropriando. Uma sugestão é a de que o
professor-PDE tenha menos atividades e possa, realmente, se dedicar
mais às leituras e sistematização dos conhecimentos apropriados,
podendo ter mais tempo para a elaboração do material didático e artigo.
A escrita, por ser um conhecimento científico, demanda muito tempo de
elaboração, de formação de novos conceitos e, portanto, precisa de muita
concentração que só é obtida com uma dedicação exclusiva a essa tarefa.

PARECER FINAL:

A professora Silvia desenvolveu com eficiência o seu Plano de


Trabalho. Além dos estudos propostos, desenvolveu as seguintes
atividades:
a) participou do curso de Extensão promovido pela orientadora,
por meio da UEM, ministrando conteúdos da Psicologia Histórico-Cultural
para professores da rede estadual de Ensino;
b) apresentou e elaborou, juntamente com a orientadora, um
texto completo da sua pesquisa, divulgando esses conteúdos no XIV
Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino (ENDIPE), no dia 30 de
abril de 2008 em Porto Alegre/RS. Esse evento é considerado o mais
32

importante na discussão da formação de professores e o texto foi


publicado nos Anais do evento, o que garante uma socialização das
pesquisas desenvolvidas no PDE;
c) elaborou artigo que, devido à sua qualidade, pode ser enviado
para periódicos de Psicologia e Educação, garantido uma maior circulação
das idéias desenvolvidas junto aos educadores que atuam na Educação
Especial.
Os estudos desenvolvidos pela professora poderão contribuir para
a sua prática assim como para a atuação de outros profissionais da
educação.

Professor Orientador : PROF. DRA. MARILDA GONÇALVES DIAS FACCI

Área de atuação/concentração: EDUCAÇÃO ESPECIAL

Professor PDE: SILVIA HELENA ALTOÉ BRANDÃO

Área/Disciplina: PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO.

Universidade Estadual de Maringá, 30 de abril de 2008.

_______________________________________________________________
ORIENTADOR

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