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O Bem Viver

Robson Max de Oliveira Souza

Os povos nativos das Américas, África e Ásia, principalmente, não sofreram só um massacre
genocida nos corpos e lugares. Viveram e vivem um epistemicídio, há uma colonização da alma,
que mata saberes e modos de viver e de ser.
Nesse contexto a colonização se refaz como uma fênix, ou melhor dizendo, como um
aparelho eletrônico com versões mais potentes que se renovam de tempos em tempos. O
capitalismo colonizante se alimenta das desigualdades construídas a partir da hierarquização dos
saberes e dos corpos. A perda da humanidade é uma marca profunda desse sistema. Assim como as
coletividade e a ética do cuidado são fortes marcas dos povos indígenas e africanos. Movimentos
indígenas, movimentos de homens e mulheres negras, movimentos sociais diversos vêm se
empoderando dos conceitos da sabedoria ancestral milenar, traduzindo como "Buen Vivir", o bom
viver, o viver bem, a vida boa de ser vivida. Esse bem viver não é aquele ditado pelo marketing
capitalista que dita a felicidade pelos bens de consumo e a hierarquização de classes e destinos. Os
socialistas, envolvidos em lutas políticas de esquerda, religiosos da libertação, sacerdotes e
cuidadores de toda cultura e fé religiosa, somos chamados a sentir dentro, primeiramente, a
sabedoria proposta pelo "Sumak Kawsay". Segundo Albert Acosta, o "Bem Viver" é uma
oportunidade para imaginar outros mundos. O conceito do "Bem Viver" aponta novas concepções
de vida, de gestão do individual e do coletivo, reconhecendo o lugar dos direitos da terra, como
organismo vivo e também sujeito de direitos. A continuidade desse sistema vivo e orgânico é a
garantia da continuidade da própria humanidade. Os últimos eventos da pandemia do COVID-19
falou isso eloquentemente. Poderio econômico pode amenizar as dores de alguns e maquiar as
tragédias, mas a morte nos iguala a todos, além dos funerais de 1a ou da terra nua de uma vala
comum.
É sobre uma outra dinâmica de vida que grita a sabedoria ancestral. Pois uma sociedade
balizada pela ideologia da "supremacia branca, imperialista, capitalista e patriarcal" não pode
chegar a bom termo. Muito menos a um bom viver. Urvemos as estruturas contrárias às concepções
dos povos originários. Nesse processo, o que mais adoece é a nossa capacidade de empatia com o
outro. Essa falta de identificação são as bases da intolerância que vivemos, a fobia contra toda a
diferença.
A ideia desenvolvimentista e pós-colonial transforma diferenças em desigualdades.
"Aprendemos a cuspir no espelho", repito essa frase de Eduardo Galeano pelos 30 anos de vida da
Vila Esperança, e me parece que ainda será válida por muito tempo.
Os valores civilizatórios indígenas e africanos ainda não foram descobertos pelas esquerdas -
de um lado um materialismo histórico restrito e do outro um catolicismo romano da libertação. A
feminista e intelectual negra, Lélia Gonzáles (1988), cunha uma categoria que nos une em nossas
vivências de colonialidade e resistência na América Latina - a "amerifricanidade". O encontro aqui
das diferentes identidades indígenas africanas afirmam suas cosmovivências na construção de um
outro mundo para todas e todos. A base das práticas e saberes ancestrais é o valor comunitário, a
ética do cuidado como espiritualidade vivida no chão da vida. Entendemos que não somos
separados da natureza, e nem o centro dela. Somos parte dela. Os tempos da natureza, não são os
tempos da produção desenvolvimentista infinita. Os tempos dos seres também são outros. Sumak
Kawsay do Equador, Suma Qamaña da Bolívia, o ..... do Senegal, o Ubuntu Sul Africano, o Teko
Porã dos Tupi Guarani brasileiros, é um conceito filosófico e profundamente pragmático em re-
construção. Tem ideias e ideais comuns a vários povos da Terra. "Terra é doce para se viver nela",
(Ayedun) é o Igbádun, o "bem viver" Iorubá. Na concepção da Tradição dos Orixás, a vida deve ser
longa, pois é boa de ser vivida. Nela o ser humano se realiza na grande sinfonia dos seres.
Honrando com cuidado e respeito gentil a memória e os espaços dos antepassados. Celebra-se com
os vivos, os "mortos", o visível e o invisível. Pela boca dos seres humanos são alimentados os seres
espirituais e divindades d cosmo. É um pensamento complexo e sofisticado no sentido da
consciência da multidimensionalidade de tudo, pessoas, lugares, tempos, seres naturais e divindades
que os habitam. A figura da Pachamama indígena e da Iya Mi Oxorongá Iorubá, afirmam uma visão
holística e sistêmica da vida, da Mãe Natureza, que coloca o homem no seu lugar na roda. Os
debates sobre os estados plurinacionais, começados com as constituições do Equador e da Bolívia 1,
quiçá cheguem ao Brasil, afirmando a importância dos saberes, epistemologias do Sul Global. Que
esses conceptos virem políticas públicas para mudarem a realidade das relações humanas, as
sociais, as políticas e as econômicas.
A espiritualidade dos povos originários não prescinde da natureza e da relação com ela. Nós
que vivenciamos aqui no "Egbe Omodua Opô Odé Arolé Osungbemi" a tradição dos Orixás e a
ligação visceral com a natureza vemos ano após ano em três décadas de trabalho comunitário, que a
noção de felicidade pode ser particular e pessoal, mas de maneira alguma desvincula-se do bem
viver comunitário e coletivo. Vejo nisso, nessa espiritualidade da ética, do cuidado e do vínculo a
contribuição mais concreta das religiões de matriz africana.

1
as Constituintes do Equador de 2008, e da Bolívia em 2009, reconhecem a Natureza/Mãe Terra como sujeito de
Direitos, para "uma nova forma de convivência cidadã, em diversidade e harmonia com a natureza"

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