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Ifá: Um Nomadismo Ôntico em Tempo de Calamidade

Bàbáláwo Ifáyómi Adèlóna Sàngówále Isóla Isénbáyé1

São tempos catastróficos estes que vivemos, enquanto a vida urge, o capitalismo segue
detonando com tudo. No cerne do nossa discussão hoje está as calamidades, as catástrofes do nosso
tempo. A partir disso gostaria de começar falando de Ifá, dando continuidade ao tema da aula
inaugural que fizemos em junho por ocasião do primeiro módulo do nosso curso sobre Odulogia.
Naquela ocasião compartilhei sobre a crise da humanidade e a inserção do Ifá nisso tudo. Desta vez
proponho abordar o tema da calamidade e a perspectiva nômade de Ifá neste mundo outro que
vivemos.
Quero fazer também um inventário do que foi o primeiro módulo do curso Odulogia. Insisto
em dizer: não gosto do termo Odulogia. Obsta pensar uma outra maneira de nominar isso que
estamos fazendo. Por hora gosto de chamar de Coletivo / Egbe Faraimará. O termo Faraimará no
iorubá oferta uma dimensão de festa da alegria, mas se reporta a organização da festa coletiva com
todo mundo junto. Faraimará quer dizer o grande abraço da festa e da alegria. Nos abraçamos
porque entendemos que somente no abraço, juntos podemos mudar, ofertar outros rumos diante dos
desafios que estão por vir. O Coletivo Faraimará é um Egbe onde diferenças se abraçam,
congregam, rumo a um novo tempo que desejamos para todos nós.
Em síntese um curso de Odu serviu de mote para uma coisa maior, possibilitar que
sacerdotes e sacerdotisas das Tradições de Ifá e Orisa pensasse o léxico da tradição de uma outra
maneira. Dispensado o colonialismo, a branquitude, o machismo, a homofobia, a lesbofobia, a
transfobia, o patriarcado, a xenofobia, entre outras coisas que se impõe. Na gênese disso tudo está o
homem branco o artífice de um capitalismo dilacerante que arruina qualquer possibilidade de vida
outra. O primeiro módulo do curso serviu para colocar estes disparates em evidências. As pessoas
precisam antes de tudo tomar consciência de que estamos praticando uma Tradição ou Tradições
encharcadas de pressupostos coloniais e colonizantes. Ainda bem que Ifá, Orisa, Vodun, Nkice, os
Encantados e Entidades etc., não tem nada a ver com isso. Eles continuam operando sua força, sua
missão para além das questões dos homens. Mas há uma outra evidência: quando o aparato se cerca

1Bàbáláwo Ifáyómi Adèlóna Sàngówále Isóla Isénbáyé (Patrick Olivera) é Psicólogo e Antropólogo. Possui Mestrado e Doutorado em
Antropologia Social pelo PPGAS/UFG. É o Olori Egbe da Casa de Ifá, Sàngó e Osún em Senador Canedo-Go, Oloye Olori do Egbe
Isénbáyé em Itu - SP, Mogbá Sàngó do Ilé Asé Oba Alaa n Aganju Jetioka em Carazinho - RS e Oloye Olori do Egbe Faraimará um
Coletivo de ativistas, sacerdotes, sacerdotisas e adeptos das Tradições de Ifá e Orisa no Brasil.

fi

de pressupostos outros o que estamos fazendo com o nosso sagrado se serve disso e assume tal
roupagem.
As roupagens que assumimos com o nosso sagrado determina nossas formas de lidar com o
mesmo. Ou seja, traduzimos e ofertamos aos outros nossos entendimentos acerca do que é Ifá, Orisa
e isso vale para Vodun, Nkice, Entidades e Encantados. Não se trata de desfazer as tradições que
nossos antigos nos legaram, mas trata-se de colocá-las em um outro patamar e ler elas sobre um
outro léxico. O que estou chamado de outro léxico? Um léxico, pode ser entendido como formas de
entender as coisas, um dicionário. Este outro léxico necessita ser despossuído de colonialismo,
branquitude e outros pressupostos do mundo ocidental De certa forma, a ocidentalização
transformou nossas tradições em uma outra coisa, ou melhor, tem feito a gente ler e vivê-la sobre
uma outra lógica, bio-lógica como bem explicou a socióloga iorubana Oyérónke Oyéwúmi. Essa
bio-lógica está incorporada de não - vida, de vida vazia que não é nossa vida. Nossa vida é
possuidora de uma outra vida, a vida feita de Asé (força vital). É o Asé que nos move sobremaneira.
E essa maneira de viver no Asé é uma outra maneira.
O Asé é uma tecnologia de vida é diferente da bio-lógica. Não é a lógica que determina
nossos feitos, nossa maneira de ser, e sim uma cosmopercepção da vida que passa por outros
ditames. Vejamos: a modernidade ou melhor o que chamamos de modernidade e sua filha a pós -
modernidade, se reúne em torno de uma série de dissabores de não - vida que temos que aprender a
lidar com eles como povos tradicionais praticantes do Culto de Ifá, Orisá, Nkice, Vodun, Umbanda,
Quimbanda ou outro. Para além disso a pergunta é como se apropriar das nossas próprias
tecnologias para sobreviver e enfrentar o capitalismo que nos dilacera sobremaneira. Neste interim
indago se essa busca por atualização das nossas práticas e saberes não seja o primeiro esboço de
uma politica de enfrentamento contra aquilo mesmo que deseja nos derrotar.
É sabido, não há lugar para nós neste mundo, ele não está pensado para que possamos existir
nele. Do jeito que as coisas vão, todo o aparato deste mundo está montado para nos dizimar, nos
destruir e fazer com que desaparecemos. Por isso, as Igrejas Pentecostais e Cristãs em geral, bem
como outras práticas religiosas capitalistas tem crescido absurdamente. O crescimento do Islã no
mundo também corresponde a isso, exceto o Islã Xiita que tem uma proposta mais de
comunalidade, porém eles são a minoria. O Islã Sunita sobretudo a vertente fundamentalista
conhecida como Wahabismo / Salafismo cresce absurdamente e corresponde duas demandas desse
mundo moderno: uma o capitalismo, outra o fundamentalismo. Neste novo tempo capitalismo e
fundamentalismo se uniram para salvaguardar a primazia de um mundo alicerçado no macho branco
e no patriarcado. O fundamentalismo entra em cena com o apoio do capitalismo porque ele torna



sólido a força do homem branco, do machismo, do patriarcado enquanto mantém mulheres


enjauladas, minorias sufocadas, pobres, negros, gays, etc., sucumbidos. O capitalismo se mantém
forte de duas formas: o homem branco no poder e as minorias empobrecidas. Minorias aqui é
significante para um contingente volumoso de excluídos, subalternos, os trabalhadores e os não -
trabalhadores de um sistema que sustenta e se mantém dessa maneira.
Diante dessa calamidade toda de mundo, nossas Tradições se impõe como saída outra.
Primeiro como saída contra a morte, a necropolítica. É fundamental ajudar os nossos a não morrer.
A morte para nós é celebração somente quando chegamos no ápice da vida. Então podemos
atravessar a massa cósmica e encontrar com os nossos no Intula (a morada dos antepassados).
Qualquer morte fora está que se dá em tenra vida é morte contra a vida dos nossos. Nossas
tecnologias também livram as pessoas da morte que pode ser causadas pelo ajoogun Iku. Mas a
morte causada pelo o Estado assassino não temos domínio sobre ela. A única forma de vencermos a
politica de morte e de não-vida do Estado é nos constituindo como um território civilizatório forte,
uma sociedade com um Estado outro frente ao Estado que nos mata. Precisamos tensionar e dizer
não a este Estado da morte que tem criado necrópoles por toda parte. Necrópoles habitadas por
mortos de corpos negros, índigenas, pobres, trans-, etc.
Uma das perspectivas mais interessantes de Ifá é que ele anda. Não dá mais para sustentar
uma falsa crença de que Ifá essa tecnologia poderosa pertence a este povo ou aquele. Ifá se
manifestou em todos os cantos do mundo, em vários povos, etnias e grupos culturais. Ifá é nômade
e não pertence a ninguém, somente ao Céu. Ifá é a tecnologia que veio do Céu. Ele mesmo é a boca
por onde Olodumare fala. A única forma de Olodumare falar com a humanidade é através de Ifá. No
Ifá humanos e não humanos tem vida própria. Vocês já devem ter ouvido Esé (estórias de Ifá) que a
tartaruga foi consultar Ifá. As folhas também vão consultar Ifá. E a disputa do grilo por espaço
porque estava sendo incomodada pelo pirilampo. E quando o bode atrevido resolve enganar o awo
colocando ele em seu lugar no sacrifício (ebo). A água, os rios, as montanhas, todos os seres
possuem vida em Ifá. Ifá desde sempre resolveu o dilema entre natureza e cultura, humanos e não
humanos, objetos e coisas. Porque para o Ifá tudo possui vida, em tudo está o hálito, o emi (sopro
divino) de Olodumare ofertado a tudo e a todos por Obatala.
O nomadismo ôntico do qual propõe o titulo deste texto traz a tona essa possibilidade de
andanças. É sobre andanças, sobre tornar Ifá um andarilho da vida, torná-lo acessível caminhante e
possível a vida das pessoas. As pessoas não precisam passar por ritos secretos, complexos para
praticar Ifá. É preciso fazer entender através da consulta oracular quem é que precisa de Ifá dessa
maneira mais complexa. Há uma via sempre em mão dupla: um pertencimento que é sempre ôntico,



as pessoas já veio do Orun (Céu) com essa dimensão de pertencialidade. E há também uma
dimensão de participação coletiva, de adesão, de desejo e vontade. Vontade de pertencer a Ifá e/ou
ao Orisa. Essa vontade de participação também é uma vontade de pertença e ela também é ôntico
neste sentido porque Ifá já está por antecipação no DNA de todas as pessoas, de todo ser criado
humano ou não humano. Neste sentido, o próprio Ifá é principio de existência plena da vida, ou
seja, saímos do Orun (Céu) já impregnado da sua presença. Somos feitos de Odu e é Odu que rege
nossa existência aqui agora e também desde sempre.
Essa compreensão ôntica do que é Ifá e seu nomadismo andante não fixado a nenhuma
cultura e nem tão pouco a ninguém torna possível uma liberdade de acesso ao Ifá que se dá antes de
tudo pela via do aprendizado. Veja bem: não é que a cultura do Povo Iorubá não nos sirva de nada,
essa cultura sobretudo seu pressuposto antigo, suas estórias, provérbios e todo acervo cultural que
ela tem e que está imensamente presente e vivo no Brasil é a base da própria vivencia disso que
chamamos de Tradição de Ifá e Orisa. Quando refiro-me Tradição de Ifá e Orisa inclui o Candomblé
e desde isso incorpora a Macumba e os Cultos oriundos dela a Umbanda, a Quimbanda, a Jurema, a
Encantaria. Tudo isso que se traduz como Tradição Africana e Afro-Brasileira nos interessa
sobremaneira e desde este lugar um nomadismo ôntico precisa advir para reontologizarmos nossas
práticas, pensá-las desde suas origens e traduzi-las e vivência-las no nosso tempo de hoje aqui e
agora.
A calamidade que nos toma, ela toma o mundo todo. Estou preocupado pelo o menos é isso
que tem me tomado nos últimos sete anos: como tornar a Tradição de Ifá e Orisa que praticamos em
uma ferramenta, em uma tecnologia capaz de contribuir com a mudança desse mundo. O Ifá e o
Orisa como um epistemologia e uma ontologia. Orúnmila como um grande Ontólogo e Esú como
um grande Epistemólogo. Neste sentido, Orúnmila Ifá como aquele que produz uma Ciência acerca
do ser. Mas a produção de uma ciência do ser para além de qualquer essencialismo e qualquer
reducionismo e desocupado do relativismo. A Ontologia que é Ifá Orúnmila é antes de tudo uma
possibilidade de fluidez, ela é fluida, heteromórfica, obedecendo alternâncias de corpos, de vidas e
de todos os seres, ou seja acolhendo o próprio ciclo natural da natureza. Ifá é a natureza na sua
plenitude. Neste sentido, também pensar Ifá como uma Ontologia que impera sobre a confusão dos
limites, que ultrapassa fronteiras, que controla as estratégias pós-modernas, que enaltece as
condições e as interfaces limítrofes, por fim, pela proporção de questões que cruza os limites, pelo
desenho de objetos e formas sociais pós-modernas. Uma Ontologia não - dilacerante mas que
promova a vida sobre as formas. Que instaura a própria condição na liberdade que essa condição
requer. E Esú como o grande teórico do conhecimento, o epistemólogo que melhor entendeu e saber


traduzir o conhecimento que é Ifá. Se Orúnmila é o Ontólogo que produz uma ciência acerca do ser,
Esú é o Epistemólogo que melhor coloca essa teoria, esse conhecimento em movimento. Sem Esú o
conhecimento não ganha vida. Esú é Olufó, o senhor do ofó, ofó aqui é palavra - conhecimento que
delibera as coisas, ou que as fazem produzir e acontecer. Esú é a comunicação acerca de tudo que
há. É Esú quem ensina os demais orixás a arte de pensar e usar o conhecimento que é Ifá. É Esú o
grande epistemólogo que se encarrega de fazer que o conhecimento circule e chegue em todos os
cantos e lugares.
A produção ontologica da vida requer o exercício de elaborar também uma outra
mentalidade. É necessário desocupar - se da mentalidade branca, eurocentrica, judaico-cristã e
colonial. O pensamento colonial imbuído de todas essas facetas citadas anteriormente, é o
dilacerado e também o que impede cada um de nós de uma vida devotada a uma práxis na
Orisalidade que rima vida de orisa/Ifá e vida que a gente mesmo produz. Essa produção da vida
necessita se encharca desse nosso conhecimento e não de crenças falsas em relação aquilo mesmo
que o Orisá. Voltemos a isso: o que é a vida no Orisa? Ou o que essa vida na orisalidade? Faz
necessário pensar o que entendemos por vida e que vida é essa que se compõe daquilo mesmo que
acreditamos por vida. A vida na Orisalidade é a vida que a gente vive enquanto caminhamos com
Ifa e Orisá. É a vida que a gente escolhe, aceita e compreende a partir de uma cosmopercepção e
não de uma bio-lógica, que engloba nossos sentidos por inteiro e não somente a razão. É preciso
compreender que o Orisá é vivo, isso é fundamental. É necessário também aceitar essa dimensão da
vida que coloca Ifá e Orisa como dimensionalidade da nossa práxis espiritual. Essa práxis espiritual
nada religiosa, ocupa-se de uma espiritualidade devotada ao bem-viver (iwa pele), seu, dos seus e
dos outros. É assumir uma completude de vida que assume suas próprias causas e as causas dos
outros. Isso é orisalidade, uma espiritualidade devotada a Ifá e ao orisa.
Ifá precisa se ocupar de uma outra maneira na mente / mentalidade das pessoas, precisa
tornar uma imagem condensada de imaginação e realidade material. As pessoas deparam com o Ifá
como algo mítico, distante e me soa meio santo católico. Ifá não é santo católico e nenhum orisa
trata-se disso. Ifá é uma imagem, a própria imagem de Olodumare estampada através de uma
palavra viva, de um conhecimento vivo carregado de força e poder (asé). Essa imagem tem suas
peculiaridades, vejamos isso um pouco: o que queremos dizer quando afirmo que Ifá é a imagem de
Olodumare? Olodumare não tem forma alguma, não tem imagem, não tem ícone, nem grafia. Sua
imagem é Ifá que presentifica - se através da imaginação um compêndio de estórias chamado Lése
Lésé Ifá e de uma realidade material. Sobre essa realidade material quero dizer que Ifá como força -
palavra de Olodumare incide diretamente na vida das pessoas. Ifá pode ser a própria metáfora


daquilo que nós habitantes do mundo pós-moderno estamos tornando ou podemos nos tornar. É que
Ifá não é em hipótese alguma uma religião, embora alguns possa fazer de Ifá religião. Ifá é um
estilo de vida, uma forma de ser, um jeito de ser e de habitar o mundo.
Essa forma de ser que é Ifá vai na contra mão do capitalismo patriarcal e racista, é neste
sentido, que as mulheres, pessoas negras, pessoas trans-, homoafetivos, minorias em geral não pode
ser banido em hipótese alguma do Ifá. Se Ifá é o contrário do capitalismo patriarcal e racista, tudo
aquilo que o capitalismo aborta e exclui deve ser acolhido e ter lugar no Ifá. Ifá transcende ao
capitalismo. Ele também ultrapassa a ideia de Homem criado / constituído no mundo moderno, o
homem racional . O Homo Sapiens não tem nada a ver com Ifá. Ifá não coloca o Homem (os
humanos) no centro. Ifá entende que todos os seres se compõe da unidade que é a vida no Aiye
(mundo) neste espaço habitado chamado Ile (Terra). A Terra (Ilé) onde se encontra o espaço -
mundo (Aiye) é habitat igual para todos os seres. Para tudo aquilo que foi criado e gerado por
Olodumare.
Ifá é o contrário disso que chamamos de pós-moderno. O pós - moderno nada mais é do que
marcas bonitas do moderno, uma argamassa bem feita do que é o próprio moderno. Ifá e anti-
moderno, anti-colonial e nada pós-moderno. Ifá é Ôntico, cíclico, ele está sempre no mundo, em
todos tempos, lugares, ele está sempre indo e vindo. Suas estórias (Lésé-Lésé) serve para todas as
épocas, todas Eras e todos os tempos. Urge atualizar ou melhor ler essas estórias e entendê-las a luz
do nosso tempo. Traduzi-las em nosso tempo de hoje. De tempo em tempo os bàbáláwos e as
iyálawos, os sábios de Ifá tem feito este aggiornamento, essa atualização. A Tradição permanece
viva enquanto seus detentores as atualiza de tempo em tempo, de acordo com o tempo de mundo e
da vida.
As calamidades do nosso tempo nos deixa surdo e mudo, retira de nós nossa capacidade
sensitiva e perceptiva de compreender as outras coisas do mundo. Os portais entre o Orún (Céu) e
Aiye (mundo) se fecharam aos nossos olhos porque paramos de dimensionar o acesso. Nossa senso-
percepcão foi deturpada e tem sido aniquilada por uma visão de mundo contrária as nossas
tecnologias e aos legados herdados pelos nossos antepassados. A questão que nos convoca é: o que
fazer para aprendermos a ouvir a sabedoria desses outros habitantes do mundo? Os humanos não
são o centro de nada, a vida acontece para além do humano. Os seres de outros planos, de outras
dimensões tais como os orisás existem e querem seguir comunicando com a gente. Ifá é a sabedoria
divina, universal disponível para toda humanidade. Não se acessa Ifá pela via da razão. Ifá não é
racional. Ifá é uma cosmopercepção acerca de tudo que é a vida. Ifá é também sobre aprender
habitar outros mundos escondidos dentro do mundo que vivemos. Os humanos aprisionados na



calamidade que assola o mundo não conseguem entrar na mata e escutar /apreender sua sabedoria,
sua mística, as vozes que chegam de todos os cantos.
É preciso re-aprender a escutar e seguir o canto dos pássaros, o rastro da cobra e de outros
animais, as pegadas que nos levam a mundos desconhecidos capazes de nos revelar uma outra
ciência. Faz necessário re-aprender a conversar com as folhas, as plantas, os animais, os rios, a
terra, as árvores e com tudo que existe. A natureza é plena de saberes, precisamos ir ao encontro
daqueles que não se perderam dela, os matutos, os mateiros, os indígenas, os aborígenes de todos os
lugares. Faz necessário re-encontrar com o indígena - aborígene que mora dentro de nós, trazê-lo de
volta pra fora nesta vida na floresta que ocupou a cidade. Ifá nos convoca a construir e a destruir, o
caminho se faz pela desconstrução do colonialismo em nós para lançarmos mão de uma construção
outra desde nossa Tradição no aqui agora do nosso tempo.
Nossos orisas precisam desocupar a categoria de santo, deuses e seres divinos distantes, para
retomar seu devido lugar originário. O Orisá são ancestrais possuidores de tecnologias diversas. São
seres profundamente vivos de uma outra galáxia chamada Orún. Eles vieram em um tempo para o
que se chamou de Aiye (mundo) para fundá-lo e povoá-lo. A partir da nossa cosmopercepção
descendemos desses seres dotados de inteligência e tecnologias que bem utilizadas ou utilizadas
com sabedoria e conhecimento pode ajudar a humanidade de várias formas. A questão é que
transformaram os orisas em gesso, em imagens engessadas, sem vida e vazia. Estão perdendo a
dimensão corporal do orisa que transfigura no corpo dos seus eleguns como uma epifania
(manifetação) da própria expansão e presença de Olodumare. Os corpos são preparados, feitos para
devir orisá para comunidade, para tornar o orisa vivo e presente na comunidade e para a
comunidade. A existência do orisa só tem sentido nessa comunalidade. Ninguém deveria fazer orisa
porque se acha seu, porque é bonito e/ou apoteótico. O orisa vive para que a comunidade viva.
Logo, o corpo do elegun, daquele que foi feito para o orisá é a própria materialização da vida do
orisa em nós e entre nós.
Ifá assume a própria relação da ciência e da tecnologia. Embora não queiram acreditar Ifá é
ciência e é também tecnologia. A tecnologia Ifá pode dialogar com a tecnologia do nosso tempo e
favorecer a humanidade de tal maneira para que o mundo seja um habitat melhor para todos os
seres. Os bàbáláwos e as iyálawos do nosso tempo necessitam ser seres tecnológicos e científicos
capazes de fazer Ifá funcionar para além dos limites que o impõe. Os bàbáláwos e as iyálawos
operadores da máquina tecnológica que é Ifá precisa operar para além dos muros que eles estão
acostumados, precisam ser nômades e ocupar outros mundos. Ser presença de Ifá em outros
mundos, fazendo pontes e conexões com tudo que existe. Eles precisam abraçar a habilidosa tarefa



de reconstruir as fronteiras da vida cotidiana, em conexão parcial com os outros, em comunicação


com todas as nossas partes. Não pode ser mais fragmentada, é preciso ser unificado, e o diálogo do
Ifá precisa se estender a todos lugares e por todos os cantos.
Este Ifá nômade tal como proponho aqui neste tempo de mundo que vivemos sugere uma
saída do labirinto e dos dualismos enfadonhos, que encarcerou os humanos na biologia e na
episteme biologizante. A própria relação com os corpos em toda sua amplitude e amplidão precisa
tomar um outro lugar, o dos corpos livres e libertos. Ninguém pode morrer na feitura do orisa. A não
compreensão das diferenças corporais, dos processos de corporeidades outros assassina e dilacera a
própria vida. Nossos corpo não podem mais ser explicados de forma enfadonha e antiquada,
encerrada no dualismo ocidental que é por demais corrosivo e desumano. A prática do Ifá, nessa
dinâmica nômade que se impõe tem a ver com o poder de sobrevier, não com base em uma
inocência original, mas com base na tomada de posse dos mesmos instrumentos para marcar o
mundo que os marcou como outros. Nossos antepassados orisás não vieram do Orún disseminando
um inocência original e paradisíaca. Pelo contrário, a vida precisa ser feita, nos conflitos e nos
confrontos, ultrapassados os limites e as fronteiras. Estamos bifurcados de limites e fronteiras nos
impedindo de ir além, mais além, precisamos romper todos esses limites, essas fronteiras e instaurar
o novo. O novo em um espaço-mundo habitado por mundos, por uma multiplicidade de vidas.
Ifá se compõe de um eu pessoal e de um grande eu coletivo, todos e tudo está presente nele.
Trata-se de uma máquina tecnológica que monta e desmonta. Ifá não é estático, ele não é o mesmo
desde que desceu do Orún para o Aiye. Seus tecnólogos / cientistas bàbáláwos e iyálawos tem de
tempo em tempo atualizado essa máquina tecnológica. Ifá é atemporal porque suas estórias, seus
fundamentos, seus aparatos podem ser utilizados de forma atualizada de tempo em tempo. Ifá
acompanha o ciclo da vida e das coisas. Ele não está paralizado desde a sua primeira hora no Aiye
Ifá tem sido dinâmico e acompanhado a dinamicidade da vida. A medida que os mundos dão voltas,
de ciclo em ciclo, de tempo em tempo suas estórias ganham novos sentidos na boca dos bàbáláwos
e das iyálawos que devem ser o próprio oráculo vivo de Ifá no mundo.
O primado hierarquizantes, pressupostos biologizante, o patriarcado, o machismo, a
homofobia, a lesbofobia, o racismo e todo tipo de efeito-capitalístico de mundo precisa se
desocupar das nossas formas de ler e traduzir Ifá para as pessoas. A dádiva ou as relações de troca
que devem existir entre nós precisa se ocupar de vínculos humanizados, humanizadores no sentido
mesmo de tornar possível nossas relações, elas mesma uma dádiva e não uma mercadológica. O
pressuposto mercadológico das relações são modelos capitalista de uma vida que se alicerça na
exploração e na subjugação do outro. Um esquema de alienação porque aprisiona o outro em torno



do capital. Precisamos forjar essas trocas de outras formas. A troca precisa acontecer, mas elas não
podem se dá fundada sob a lógica do capital pelo capital. Ou pela bio-lógica que imprime sobre o
outro o primado da morte e da subjugação.
Ifá no nomadismo que se aponta precisa tensionar as fronteiras nos possibilitando forjar
outros modelos de relação, de inclusão, de emancipação e de libertação. É preciso favorecer o
conflito e a confusão das fronteiras e dos limites em favor da responsabilidade, da liberdade e de
construções outras, outras alternativas de vida e de possibilidade de vida. O Ifá nômade erradica as
lógica de repressão, de opressão, de terrorismo e de subjugação dos outros. Ninguém deve ouvir que
vai morrer se não iniciar no Ifá, isso é o contrário do que é Ifá. Ifá é a vida plena, abundante. Ifá
deve existir para trazer o que há de melhor para a vida das pessoas. Se as pessoas não podem fazer
iniciação porque assim Ifá pediu, é Ifá quem vai ter que esperar e dá condições da pessoas realizar o
destino dela. E não as pessoas sair vendendo suas conquistas para fazer Ifá as pressas sem
necessidade alguma. A iniciação em Ifá é uma garantia de vida apenas. Como assim garantia de
vida? Ifá serve para tornar as pessoas mais conscientes da sua estadia no mundo enquanto
compreende seu destino e vivenciam sua destinação. Para a morte, a doença, o infortúnio etc., há
uma série de outras tecnologias no Ifá que podem solucionar isso sem precisar passar diretamente
pela iniciação.
Ifá não tem nenhum compromisso com essa totalidade orgânica tal como tem sido vendida
pelo capitalismo, pela ciência moderna e pela própria medicina. Ifá não se compõe disso, sua
medicina dimensiona para todos os lados, se compõe também de corpos sem órgãos e de corpos
diversos. Ifá pensa a vida no primado da multiespécie e do próprio dimensionamento de uma vida
para além do humano. As cobras são tão importante para o Ifá como os humanos. Para o Ifá a
palmeira Igi Ope é tão importante como os seres humanos. Por que isso? Porque Ifá é a vida que
pulsa em tudo que existe. Se você mata o Igi Ope, você mata Ifá. Se você poluiu o rio você adoece
Osún. Se você joga lixo químico na mata você intoxica Ossain, Ogun, Osoosi entre outros odes. A
poluição do ar adoece profundamente Obatala. As questões do efeito estufa incide diretamente sobre
Oya e Sàngó. Tudo em nossa volta está habitado por natureza viva, que é viva tanto como nós
humanos.
Ifá não conta uma História, a História tem como autor o homem branco másculo. Ifá possui
o Lésé Lésé que são as estórias contadas por todos os seres: homens, mulheres, animais, plantas,
etc. As estórias que Ifá conta está impregnada de uma metáfora da vida que serve a todo tempo em
qualquer lugar e circunstâncias. Essas estórias nômades precisam se compor desse enxerto de vida
plena que amplia horizontes e acolhe tudo e todos. Ifá não está preso nas fixações. Ifá flui e é fluido



como ja afirmei acima. Ifá é tal como a vida, está sempre deliberando para que a vida aconteça de
forma livre. Ifá não impõe nada a ninguém. Mas ele vai sugerir sobre uma prática do bem viver (iwa
pele) que pode ser muito boa pra sua vida e para vida dos seus. Ifá também deixa a vida livre, se
ocupa do livre arbítrio, deixando cada um com as escolhas que lhe cabe. Mas Ifá vai dizer o que é
melhor, o que pode te ajudar a tornar isso ou aquilo mais fácil, como chegar nisso ou naquilo com
qualidade etc. Ifá existe para promover a vida da melhor forma possível.
Ifá precisa se a ver com as tecnologias do nosso tempo, precisamos prestar atenção no que
tornou os humanos do final do século XX e começo de século XXI. Homens bombas, homens
maquinas, quimeras, híbridos, corpos fabricados, corpos robóticos, corpos de toda espécie. Ifá não
pode fechar os olhos para o acontecimento de mundo que está ocorrendo diante dos nossos olhos.
Há também corpos mutilados, zumbis, vampiros, sanguessugas e outras espécie. O que fazer com
isso? Animais domesticados, animais humanizados, humanos animalizados, assassinatos em massa,
fim da era édipica, morte do homem, fim da família, corpo efeito pharmakon, fracasso do
patriarcado, espancamento de mulheres e feminicídio. O que Ifá tem a ver com isso? O Ifá nômade
atravessa limites e fronteiras e chega em todos lugares se ocupa de todos lugares. Aonde o desprezo,
a exclusão, o vilipêndio, a dor etc., reina, Ifá chega para se alento. Ifá deve ser frescor para as
pessoas em meio a vida despedaçada.
Ifá não deve recusar nenhuma aliança para atravessar limites e fronteiras, deve- se fazer
alianças. Os bàbáláwos e as iyálawos entre outros sacerdotes não podem suprimir o uso
medicamentoso dos seus iniciados e discípulos. Não deve subestimar as tecnologias do nosso
tempo, uso das medicações. Ifá precisa fazer aliança com tudo isso para salvar as vidas e tensionar
um diálogo bio-ético acerca da vida e do viver. Esse diálogo buo-ético desde o Ifá é a própria
condição de iwa pele, o bem viver na vida das pessoas e de todos os seres. Ser nômade é saber
transitar por limites e fronteiras. Este Ifá nômade se apropria do diálogo com o mundo do nosso
tempo para se fazer presente nele. De igual maneira Ifá abre mão da sua faceta obscura/secreta para
ocupar as rodas de conversas nas universidades, nos meios científicos, nos hospitais, nos presídios,
nas comunidades de bairro. É necessário se retirar de um purismo, de um puritanismo para captar o
mundo, os mundos por dentro e entendê-lo sobremaneira. Ifá chegará em todos lugares ser
soubermos ser nômades e nos ocuparmos das fronteiras e dos limites que nos impõe. Toda barreira
deve ser desobstruídas para que nossa ciência e nossa tecnologia que é Ifá chegue em todos lugares
e contribua para que a humanidade, os mundos, seja um lugar melhor de vida e para se viver.

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