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Ata Crítica e Dialética, 26/01/2021

Realismo Capitalista, capítulos 7─9.

Capítulo 7: “Se pudéssemos observar a sobreposição de realidades distintas”: o realismo


capitalista como trabalho onírico e distúrbio de memória.

Nesse capítulo, Fisher aponta para um modelo de funcionamento do sujeito no realismo


capitalista, reunida sob a noção de dreamwork ou trabalho onírico (conceito cunhado por
Wendy Brown para lidar com a conjuntura política estadunidense após a crise de 2008), e o
limite, ou curto circuito, desse modelo como exemplificado nos distúrbios de memória.

“Quando sonhamos, esquecemos – mas imediatamente esquecemos que esquecemos. Como


as falhas e lacunas em nossa memória foram ”Photoshopadas”, não nos perturbam ou
atormentam. O que o trabalho onírico faz é produzir uma consistência confabulada,
fantasiosa, que encobre anomalias e contradições.” (p. 66)

O trabalho onírico é, portanto, um procedimento de aplainar as contradições da vida desperta


que ressurgirão como os distúrbios de memória. No realismo capitalista vigora um
esquecimento constante das contradições que aparecem na mudança das formas sociais e
econômicas tomadas na sua configuração burocrática. Assim, o bom funcionamento do
trabalho onírico é o de revisão das disposições subjetivas anteriores para dar continuidade ao
comportamento exteriorizado do trabalhador.

Se o trabalho onírico enquanto mecanismo de defesa contra a “precarização ontológica”


utiliza do esquecimento como meio de garantia, os distúrbios de memória retratados pelos
filmes da trilogia Bourne e Amnésia ilustram a antinomia da temporalidade que Jameson
identifica na pós-modernidade. A busca pela identidade da personagem Jason Bourne é
barrada por uma limitação formal (dos tiques e práticas que foram retidos na memória) que
impede a descoberta ou realização da memória narrativa. Essa condição espelha a antinomia
de Jameson onde as formas culturais que fazem alguma referência futurista quanto ao
conteúdo em realidade dependem de modelos formais retrógrados. Há, contudo, ao mesmo
tempo uma busca nostálgica incessante à medida que o surgimento do novo está sempre
atrelado ao eterno e imediato presente que apaga tanto o passado quanto futuro, mas nos
impele à constante retrospecção, em vista a estagnação do agora.
A pós-modernidade pode ser compreendida como uma incapacidade de formular novas
memórias, como exemplificado na amnésia anterógrada da personagem Leonard Shelby em
Amnésia. A impossibilidade de fixar novos eventos na memória de longo prazo torna o novo
hostil, incapaz de ser compreendido ou manejado, ocasionando um retorno, ou
reterritorialização na linguagem de Deleuze e Guattari, às formas cômodas e inofensivas do
passado.

A contradição que Wendy Brown identificou entre o neoliberalismo e o neoconservadorismo


estadunidense é resolvido por esse mesmo processo de trabalho onírico que ela identificou e
que Fisher extrapola: não há alternativa para o conluio entre Estado e mercado, não há um
novo modelo justamente por existir esse processo de esquecimento que é fulcral no trabalho
onírico. A diferença entre a posição neoliberal de horizontalização do desejo que se projeta no
mercado que fornece os objetos de comprazimento e a neoconservadora que dita as formas de
vida não são contrárias ao Estado, somente a um uso específico, identificado como
excrescência da atual conjuntura: o assim chamado Estado Babá. Todo conflito é apaziguado
na identificação desse inimigo.

Capítulo 8: “Não há operadora central”


“O espectro do governo forte desempenha uma função libidinal essencial para o realismo
capitalista.” (p. 70)

Nesse capítulo Fisher argumenta que a função do Estado Babá é de expiar os erros e exageros
do setor privado que tomou conta de funções governamentais. O que ocorre é a denegação da
responsabilidade para a figura negativa do Estado Babá: não somos capazes de admitir a
ausência de algum sujeito responsável pelas intransigências ocorridas no campo social. A
culpabilização do Estado Babá como bode expiatório serve de referência à insatisfação que a
estrutura difusa de poder do Capital exerce sobre nós. O centro de poder está foracluído do
nosso pensamento e, assim, se desvela como um limite no realismo capitalista, um limite de
circundar ou pontuar a causa real dos efeitos nefastos que o neoliberalismo ocasiona.

Fisher denota que o call center ou a experiência do call center é um exemplo paradigmático
do centro impensável do inconsciente político atual.
“Esta experiência de um sistema que não responde, que é impessoal, sem centro, abstrato e
fragmentário, é a experiência mais próxima de um encontro com a estupidez artificial do
capital em si mesmo.” (p. 72)

A ineficiência e impossibilidade de resolução dos problemas apresentados na experiência do


call center resultam da inadequação que temos ao projetarmos uma ética individualizada na
estrutura que em si não pode ser identificada a uma pessoa. Pensamos que “deve haver
alguém que seja responsável por isso tudo, alguém que saiba do que está ocorrendo!”, mas o
call center evidencia esse nonsense do mapeamento da responsabilidade individual em algo
meramente estrutural: a repetição de instruções para os atendentes que simplesmente reiteram
o que lhes foi dito, a raiva sem objeto que decorre da incessante deferência a outros
indivíduos que, também, não sabem o que fazer e nem podem ser responsabilizados, etc.

A estrutura subjacente da experiência difusa do call center está em posição análoga à


responsabilização do colapso ecológico e o abuso de poder exercido pelas instituições estatais,
tais como ocorreu nos casos de Jean Charles de Menezes e Ian Tomlinson. O fato dos “vilões
individuais” não serem responsabilizados é efeito dessa deferência à estrutura da rede
corporativa, burocrática. Quando se pensa que o culpado foi identificado a estrutura aparece,
implícita ou explicitamente, diluindo as relações no vasto oceano das relações ou da
instituição. O imperativo de reciclagem, por exemplo, deve pressupor que a estrutura que
causa a necessidade da reciclagem para os indivíduos se mantém intocada: são as corporações
que produzem quantidades incontáveis de detrito, mas elas se esquivam de qualquer denúncia
por estarem sempre já imiscuídas na rede global de produção, onde não se sabe por onde
começar a acusar.

A essa estrutura difusa e conspiratória que evade a imputação dos reveses do realismo
capitalista, faz-se necessário a criação de um sujeito coletivo que seja capaz de atestar aos
crimes cometidos e que a ele se dê um nome próprio suficiente para abarcar o seu aspecto
estrutural e particularizado nas formas do stalinismo de mercado: Capital.

“E não é que as corporações sejam os agentes de nível mais profundo, por trás de tudo – são
elas mesmas expressões da (condicionada pela) causa-que-não-é-um-sujeito fundamental: o
próprio capital.” (p. 76)
Capítulo 9: Supernanny Marxista

O último capítulo é o momento mais propositivo da obra, onde Fisher colocará caminhos
possíveis para pensarmos para além do paradigma do realismo capitalista. A primeira figura
para ajudar nessa crítica é a figura de uma Supernanny Marxista.

“Assim como muitos professores (ou outros trabalhadores do que costumava ser chamado de
‘serviço público’), a Supernanny se vê obrigada a resolver problemas de socialização que a
família não consegue mais dar conta. Uma Supernanny marxista, claro, deveria se concentrar
menos em remediar uma família por vez para focar mais nas causas estruturais que produzem
o mesmo efeito repetidamente.” (p. 79)

A Supernanny Marxista é um sujeito coletivo capaz de barrar o imperativo do gozo endossado


pela ideologia hedônica neoliberal ao mostrar, como Espinosa, que estamos condicionados a
repetir as mesmas filiações que produzem em nós a dependência tirânica do nosso desejo ao
mercado. É a instauração de um limite para o nosso desejo, que se encontra, segundo o autor,
sem a cisão exercida pela função paterna. “Não sabemos o que desejamos de fato” é a
proposição fundacional dessa Supernanny Marxista “e devemos saber as causas reais desse
desejo aparente”. E, aqui, novamente o nome do Capital deve fulgurar.

A quebra com a função paterna, a suposta libertação do desejo, criou estagnação e


infantilização dos produtos e formas culturais, como é argumentado pelo autor com ajuda dos
comentários do documentarista Adam Curtis. Observando as mudanças sofridas pela emissora
BBC, a modificação da proposição moral da mídia nas décadas após a Segunda Guerra para
uma proposição afetiva marca a captura do desejo no circuito das relações públicas que
outrora foram discutidas. O estranhamento que o documentarista identifica como a tarefa
positiva da emissora, de entregar ao público algo de novo, algo que os interesse e os retire da
monotonia dos produtos anódinos do mercado, também é tarefa dessa nova Supernanny. É
uma tarefa de tomar riscos, uma empreitada que não ocorre no suposto locus privilegiado do
risco que é o neoliberalismo.

“O efeito da instabilidade estrutural permanente, o ‘cancelamento do longo prazo’, é


invariavelmente estagnação e conservadorismo – não inovação. Não se trata de um
paradoxo.” (p. 84)
Aqui, finalmente, podemos ver o aspecto positivo ou ao menos o horizonte possível de
combate ao realismo capitalista. A nova esquerda deve tomar as crises, e principalmente a
crise bancária de 2008, como uma força especulativa. O neoliberalismo não foi capaz de
cumprir suas promessas. A aliança do estado com o projeto neoliberal trouxe mais insatisfação
e desequilíbrio à vontade geral, noção que deve ser reativada para o êxito da esquerda, do que
consegue amenizar.

À estagnação do realismo capitalista, a esquerda deve formular uma nova alternativa que é
posicionada nas brechas do neoliberalismo. A redução da burocracia, por exemplo, é uma das
pautas que pode servir de plataforma para uma vitória da esquerda, se um novo sujeito
político for criado. Esse novo sujeito político está, contudo, aberto à possibilidade de sua
articulação: pode ser o caso que os sindicatos e os antigos modos de organização política
consigam operar e possibilitar esse novo sujeito, ou a criação de novos modos de organização
também pode ser necessária.

Outra parte dessa (re)politização é a retomada dos projetos de politizar a esfera afetiva, isto é,
dos distúrbios mentais, na esteira de autores como Foucault e Deleuze e Guattari (indicados
anteriormente no livro). A politização das questões relativas à saúde mental deve, também, ser
computada por esse novo sujeito político, como sintoma interno dos malogros do Capital.

“A longa e escura noite do fim da história deve ser encarada como uma enorme oportunidade.
A própria generalidade opressiva do realismo capitalista significa que mesmo tênues
vislumbres de possibilidades políticas e econômicas alternativas são capazes de gerar um
efeito desproporcionalmente grande. O menor dos eventos pode abrir um buraco na cinzenta
cortina reacionária que encurtou os horizontes de possibilidade sob o realismo capitalista. De
uma situação em que nada pode acontecer, de repente tudo é possível de novo.” (p. 88)

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