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Departamento de Filosofia
Índice:
Eu gostaria de começar esse curso discutindo o que devemos compreender por “modelo
crítico”. E se gostaria de começar assim é por defender que chegamos a um momento
histórico no qual nos faltam modelos críticos, ou ao menos, nos falta um modelo que
possa efetivamente ter aquilo que esperamos de um pensamento crítico a altura de
nosso tempo, a saber, fornecer as coordenadas para a crítica do existente a partir da
escuta do sofrimento produzido por nossas formas hegemônicas de vida e sustentar a
possibilidade de transformação revolucionária do presente, ou seja, uma transformação
que seja capaz de modificar os três eixos do que compreendemos como “forma de vida”,
a saber, a experiência social do desejo, do trabalho e da linguagem. Nesse contexto,
“sustentar” significa: ser capaz de traçar estratégias, encontrar e sublinhar as
possibilidades, mesmo que elas sejam ainda fracas, mesmo que quase tudo indique que
elas serão, ainda por um tempo, derrotadas.
Há uma frase de Marx em uma carta a seu amigo Kugelmann, à ocasião da
Comuna de Paris. Nela, Marx escreve: “Seria muito cômodo fazermos a história universal
se nos engajássemos nas lutas apenas à condição de nos sabermos vitoriosos”. A frase
merece ser lembrada principalmente agora, quando muitos desconfiam da própria
possibilidade de uma história universal. Marx sabe que a probabilidade da Comuna
fracassar é enorme, que não houve a preparação necessária, que a reação será violenta.
Ela já vira a revolução que ele e Engels anunciaram no Manifesto Comunista fracassar
em 1848. Mas mesmo assim ele se engaja. Sua capacidade crítica não lhe deixa enganar,
ela lhe incomoda, mas mesmo assim ele encontra forças para sustentar lutas que
sabemos da probabilidade imensa das suas derrotas. Porque ele sabe que, em certas
circunstâncias, uma derrota não é exatamente uma derrota. Quando é possível enunciar
que há algo como a história universal em marcha, pouco importa se estamos diante de
uma derrota ou de uma vitória.
Lembrei dessa carta para vocês a fim de sinalizar o que efetivamente
compreendo por “pensamento crítico”, a saber, essa mistura inusitada e paradoxal
entre crueldade analítica e engajamento real em processos de transformação. Mas seria
o caso de se perguntar o que significa esse tipo de engajamento que faz de derrotas
aparentemente certas prenúncios de vitórias futuras. Alguns falariam que ele pressupõe
uma visão teleológica e necessitarista da história no limite do delírio, algo que não
poucas vezes foi atribuído à dialética. Mas poderíamos, ao contrário, falar da confiança
de que a teoria se endereça a setores significativos da sociedade capazes de retificação
contínua e auto-crítica. O engajamento do pensamento crítico fundamenta-se na
confiança na capacidade crítica de seus destinatários. Por isso, ele se vê com a tarefa de
resgatar derrotas históricas, de operar tal resgate mesmo no momento em que tais lutas
se desdobram no presente, sabendo que tão importante quanto as lutas é a
possibilidade de seu resgate histórico, de sua ressonância contínua.
Eu dissera anteriormente que uma das funções do pensamento crítico consiste
em fornecer as coordenadas para a crítica do existente. Mas isso ainda significa dizer
muito pouco. Um modelo crítico não é apenas um operador de denúncia e de
explicitação. Ele precisa ser ainda algo a mais, a saber, o ato de pensar contra si mesmo,
contra seus próprios pressupostos, isso devido a desconfiança de que o próprio
pensamento, de que suas próprias soluções momentâneas, façam parte dos sistemas de
paralisias e impasses que caracterizam o presente. Essa auto-retificação do pensamento
pressupõe que ele seja capaz de ouvir o que lhe nega, ser sensível às marcas do que a
ele resistiu, sem que isso signifique necessariamente seu próprio colapso e sua própria
destruição. Ou seja, o pensamento crítico traz em si mesmo a potencialidade de seu
próprio desdobramento, ele faz de sua auto-retificação contínua o motor de seu
desenvolvimento.
É nesse horizonte que gostaria de desdobrar com vocês a tarefa de pensar, em
2023, o sentido da dialética como modelo crítico. A dialética é uma estratégia de
pensamento e ação que parte da necessidade de compreender julgamentos como
processos reflexivos de auto-retificação, como um movimento complexo de integração
de negações. Ou seja, ela não apenas reconhece operar em um mundo em crise, no qual
faz-se necessário explicitar crises e seus sistemas de contradições. De certa forma, ela é
um pensamento que parte da crise do próprio pensamento, de suas próprias aspirações
normativas, e que está disposto a ir até o ponto mais dramático da crise antes de
fornecer qualquer solução possível.
Escapar de Hegel
Mas poderíamos nos perguntar pela razão de fazer tal tentativa de resgate da
dialética. É certo que ela foi uma das operações filosóficas mais decisivas e
controvertidas dos séculos XIX e XX, mas parece de certa forma ter ficado em algum
lugar distante do século passado. Sua consolidação como dispositivo crítico modificou
não apenas as configurações da teoria, mas abriu possibilidades reais no campo das
práticas de transformação social. Parte considerável da história das revoluções sociais
no século XX foi descrita, pelos seus próprios agentes, através da mobilização da
dialética. Seja na Rússia, seja no Vietnã, seja na Alemanha, seja no Brasil, não foram
poucos aqueles que mobilizaram a dialética para organizar, para si mesmos, durante os
séculos XIX e XX, a possibilidade de transformação efetiva de suas sociedades. No
entanto, muitas vezes reduzida a um ‘método’ burocrático, outras vezes denunciada
como a expressão das aspirações da razão moderna à identidade sem restos, a dialética
foi, nas últimas décadas, desacreditada por pretensamente ser figura de um
pensamento incapaz de se relacionar à diferença e à singularidade. Lembremos, por
exemplo, do que nos fala Michel Foucault:
Toda nossa época, seja pela lógica ou pela epistemologia, seja por Marx ou
Nietzsche, tenta fugir de Hegel (...) Mas escapar realmente de Hegel supõe
apreciar exatamente o quanto custa separar-se dele; supõe saber até que ponto
Hegel, insidiosamente talvez, se aproximou de nós; supõe saber, no que nos
permite pensar contra Hegel, o que ainda é hegeliano; e medir de que forma
nosso recurso contra ele ainda é talvez uma astúcia que ele nos opõe e no final
do qual ele nos espera, imóvel e em um além1 .
1
FOUCAULT, Michel; A Ordem do Discurso
Esse é um trecho do discurso de Michel Foucault por ocasião de sua nomeação como
professor no Collège de France. Ao dizer que "todo o nosso tempo" procurou "escapar"
de Hegel, Foucault não poupou esforços para dar um tom dramático a tal movimento.
O presente, ou pelo menos a tarefa filosófica que o definiria, era medida pela distância
em relação a um projeto filosófico específico. Um projeto insidioso que parecia querer
totalizar até mesmo suas oposições, impedindo-nos de escapar dele. Nesse sentido, se
toda nossa época procurava fugir de Hegel, era porque o pensamento crítico deveria
aprender a desconfiar da dialética, a explorar outras matrizes epistêmicas, ou mesmo a
desconfiar que a filosofia teria uma posição assim tão privilegiada, a ponto de ignorar
uma pretensa democracia necessária de saberes e práticas que viriam de todos os lados.
Daí essa advertência de que seria necessária uma astúcia dupla para lidar com um
pensamento marcado exatamente pela astúcia de parecer integrar, em seu próprio
movimento, as críticas a ele endereçadas. O presente só poderia começar, isso no
sentido de uma época que inauguraria a dinâmica de outras lutas e transformações, se
parasse de vez de ser atormentado pela sombra da dialética, com suas pretensas
superações, com suas contradições, com suas preservações. Esta recusa ocorreu ao
mesmo tempo em que outra experiência de dialética estava sendo gerada em outro país,
não muito distante de onde se encontrava Michel Foucault, a saber, a Alemanha. No
mesmo momento em que Foucault fazia sua advertência, Theodor Adorno procurava
dar mais uma volta no parafuso sintetizando o que naquele momento foi conhecido
como "dialética negativa". Uma experiência que também seria criticada e desqualificada
anos mais tarde dentro da própria Escola de Frankfurt, como se mais uma vez a dialética
mostrasse não estar a altura das exigências do presente. Estas duas rejeições, na França
e na Alemanha, não são idênticas e são o resultado de contextos sócio-históricos
diferentes. Veremos isso com calma em nosso curso. Entretanto, elas marcaram a
compreensão do presente como o nome dado às linhas de fuga a partir da dialética.
Mas, bem, o mundo não é feito apenas de França e Alemanha. No mesmo
momento em que Foucault conclamava o presente a saber fugir melhor de Hegel e que
os frankfurtianos procuravam despedir-se de mais uma versão da dialética, países como
o Brasil viam seu pensamento crítico mobilizar a dialética por todos os lados. Como se
fosse o caso de tentar compreender as polaridades entre ordem e desordem, atraso e
progresso, desenvolvimento e desenvolvimento, ideia e efetividade, centro e periferia,
lei e anomia, mobilizando ou uma dialética conciliatória que veria nesse descompasso
as marcas de um país capaz de produzir superações sem conflitos ou uma dialética sem
síntese que mostrava como estávamos fadados a girar em falso por muito tempo, talvez
mesmo por todo o tempo que ainda restasse no mundo antes de seu fim. Andando na
contramão, a dialética (ou algo parecido a ela) parecia fazer sentido na periferia do
sistema capitalista, enquanto ela perdia aderência nos países centrais. O que poderia
nos levar a se perguntar porque a dialética ganha força inaudita exatamente em países
periféricos, o que os países periféricos em relação à inserção capitalista mostram.
Mas mesmo essa defesa da dialética a partir da periferia não parece mais dar
conta do presente. Pois, em uma operação extensa de reconfiguração de matrizes
críticas, acabamos em larga medida por integrar uma agenda acadêmica que, em larga
medida, compreende a dialética como um operador incapaz de produzir o
descentramento epistêmico exigido pela dita sensibilidade pós-colonial. Vindo dos
campi anglo-saxões, essa matriz epistêmica descolonial se viu por bem recursar as
tradições dialéticas, mesmo quando elas forneciam as bases para as experiência do
pensamento crítico em países do dito Sul Global. Mesmo que a luta anti-colonial mais
bem sucedida do século XX, a saber, essa que ocorreu no Vietnã, tenha sido levada a
cabo por quem percebia na dialética uma arma de combate, isso não parece ser fato
relevante para quem exige a descolonização de nossas formas de pensar. Seria o caso
de nos perguntar a razão para tanto.
Forneço esse quadro analítico para que vocês possam melhor compreender o
sentido de procurar recuperar a dialética como modelo crítico. Se vocês me permitirem,
eu gostaria de dizer que a defesa contemporânea da dialética como modelo crítico
privilegiado para o presente visa colocar em questão o tipo de força negativa que o
pensamento precisa para operar com as limitações da atualidade. E creio que essa
questão é fundamental para termos uma resposta adequada a respeito das formas de
articulação entre teoria e práxis. Ela é enunciada de forma nem sempre adequada em
outros modelos críticos.
Uma das características fundamentais da dialética como modelo crítico é sua
maneira de determinar como o pensamento se move, como ele nega, como ele procura
retificar-se a partir dos movimentos das próprias coisas. Em seu cerne, pulsa uma aposta
realista que hoje em dia poderia soar despropositada, a saber, a aposta de que os
movimentos do conceito são impulsionados pelo movimento das coisas, que o conceito
não é uma construção indiferente ao que é sua referência, mas que é um movimento
tenso de integração das resistências que vem das coisas. Ou seja, conceitos não são
representações, não são definições, eles são uma forma específica de movimento que
se desdobra em um tempo prenhe de acontecimentos, um tempo plástico que pode
modificar continuamente passado, presente e futuro. Esse movimento é feito de
negações brutais, de rupturas, de antinomias, de antagonismos e reconfigurações
profundas, ele é feito de contingências e acidentes que se tornam necessários,
necessidade retroativas. Se vocês me permitem, eu diria que a dialética é a filosofia em
seu ponto mais extremo de violência contra a aparência de estaticidade das coisas e de
identidade dos seres. É verdade que durante os últimos cinquenta anos nos ensinaram
a ver exatamente o contrário disso. Mas gostaria de mostrar que aqueles que pensaram
assim erraram, mesmo que, como um pensamento em movimento, foi necessário que
a dialética fosse objeto implacável de crítica para que ela pudesse se realizar como
modelo crítico. E diria que o momento para essa realização é agora, mais uma vez.
Mas o que haveria de específico em nosso tempo e que chama novamente pela
dialética? O tempo que nos é próprio se caracteriza não apenas pela conjunção de várias
crises simultâneas: crise ecológica, crise econômica, crise social, crise demográfica, crise
política, crise psíquica, crise epistêmica. Podemos dizer que a característica de nosso
tempo é que tais crises não tem como passar, elas não tem como serem resolvidas no
quadro de acumulação e valorização da sociedade capitalista e sua racionalidade
econômica. Ou seja, não temos ainda gramática para superar a situação na qual nos
encontramos. Tais crises exigem não apenas uma modificação estrutural dos modos de
produção, mas uma modificação nos modos de determinação social, de constituição
subjetiva e epistêmica. Nesse contexto, a dialética aparece como um modo de sustentar
as contradições reais da sociedade, explicitar as antinomias a fim de compreender que
toda e qualquer transformação efetiva passa por demorar-se diante desse “trabalho do
negativo”, forçar a decomposição de nossas categorias analíticas pela força da exposição
dos antagonismos reais, dos movimentos aporéticos. Sei que, nesse estágio,
considerações dessa natureza soam ainda abstratas. Mas espero que isso mudará com
o correr de nosso curso.
Mas antes de começar realmente nosso curso, gostaria de deixar claro algumas opções
de interpretação que tomei. Primeiro, vocês poderiam me acusar de produzir uma
espécie de confusão generalizada, ao falar de "dialética" para reunir experiências
marcadas por relações críticas profundas, como é o caso de Hegel. Marx e Adorno: os
três autores que servirão de base a esse curso. Pois se pode perguntar de que adianta
falar de "dialética" desta forma, ou seja, como se estivéssemos analisando um processo
de pensamento semelhante em Hegel, Adorno e, como veremos, também em Marx. Pois
de que forma a "dialética" conhecida no início do século XIX, meados do século XIX e
meados do século XX participa de um movimento tenso e produtivo de compartilhar a
mesma experiência de pensamento? Como essa dialética é articulada, de que adianta
insistir em tais proximidades? Por que não seria melhor selar o diagnóstico de
descontinuidade e distanciamento?
Haveria muitas maneiras de tentar responder a esta pergunta justa,
especialmente lembrando a forma crítica e dura com que autores como Marx e Adorno
respondem a Hegel. Mas, pelo menos neste caso, eu gostaria de usar a suspeita de
Foucault, que abriu nossa aula, e perguntar o que é ainda hegeliano nestas críticas a
Hegel. Vamos dar um exemplo entre muitos possíveis. Recordemos, por exemplo, esta
conhecida passagem do pós-palavra para a segunda edição do Capital:
2
MARX, Karl; O Capital- volume I, São Paulo: Boitempo, p. 91
Estas palavras de Marx fornecem um topos clássico para julgar a dialética
hegeliana. Entretanto, elas são mais ambíguas do que aparentam à primeira vista.
Primeiramente, como eu gostaria de mostrar em nossas próximas sessões, a descrição
dada da relação entre a ideia e a realidade em Hegel não é totalmente correta. Em Hegel,
a Ideia não é, como Marx parece nos fazer acreditar no limite, uma determinação
transcendental que produz o processo de efetividade, como alguém que subsume a
diversidade da experiência sensível à generalidade de uma normatividade previamente
assegurada. A ideia é antes a rememoração do processo de efetividade, ou seja, sua
relação com a efetividade é necessariamente retroativa, daí sua posteridade tão bem
descrita quando Hegel afirma que a filosofia funciona como a coruja de Minerva. Pois a
ideia produz uma totalização que não é uma simples narrativa, uma nova descrição do
que aconteceu, mas uma construção performativa do que, até então, não existia. De
fato, a Ideia produz, mas integrando as contingências ocorridas no campo da efetividade
em uma construção retroativa da necessidade. A filosofia hegeliana não é, portanto, um
necessitarismo espinozista para o qual a efetividade seria a expressão imanente de uma
substância que se apresenta como: "uma totalidade infinita imóvel de coisas singulares
em movimento"3 . Este seria o caso apenas se se aceitasse que a rememoração operada
pela Ideia não acrescenta nada, isto é, que a passagem à existência, que a posição, não
acrescentaria nada à determinação categorial; como se da determinação à existência
não tivesse havido processo.
Mas é verdade que podemos derivar várias perguntas a partir desta posição. Pois
esta posição da coruja Minerva não daria necessariamente à filosofia a função indelével
de "glorificar o existente", de "divinizar o que é", como diria Adorno? Como se a filosofia
fosse alguém que vai aos campos de batalha para usar uma teoria do fato consumado e
justificar o curso atual do mundo como uma expressão ontológica da necessidade.
Devido à aceitação de tal leitura, vários comentaristas, como Vittorio Hösle, insistirão
no que alguns chamarão de "passadismo" de Hegel. Este passadismo mostraria como :
Parece que a crítica a Marx tornou-se uma escola de pensamento mesmo entre
autores que dificilmente chamaríamos de marxistas.
Discutir a correção ou não de tais leituras exigirá que abordemos
sistematicamente questões como: a performatividade do conceito, a relação da
dialética com a contingência, assim como as relações de negação determinada entre
conceito e objeto, o que faremos em outras sessões. Por enquanto, devemos insistir em
como, mesmo ao fazer tal crítica, Marx é obrigado a reconhecer uma profunda relação
de filiação e transmissão. Ele dirá: a dialética hegeliana deve ser derrubada, mas
devemos reconhecer que as formas gerais de movimento responsáveis pela correta
3
BADIOU, Alain; L'être et l'évènement, Paris: Seuil, 1982, p. 135
4
HÖSLE, Vittorio; O sistema de Hegel: O idealismo da subjetividade e o problema da intersubjetividade,
Belo Horizonte: Loyola, 2006, p. 468
compreensão da processualidade do existente já estão todas configuradas em Hegel.
Mas como todos sabem, dar a volta é uma forma segura de permanecer no mesmo
lugar. Note, por exemplo, como a dialética marxista nunca abandonará uma certa
concepção de movimento que a orientará na crítica e compreensão dos processos
históricos. Será sempre sobre contradições, modos instáveis de produção, conflitos
como operadores de movimento, reversões e interversões, a mutação da quantidade
em qualidade. Mas o que é isto, se não uma ontologia, sim, uma ontologia que se
expressa de uma certa maneira de entender processos e movimentos, já que a ontologia
hegeliana é, de fato, uma ontologia do movimento e do devir?
Ontologia em situação
Discutiremos estes pontos em nosso curso. Mas eu gostaria de apresentar uma hipótese
de trabalho. Pois é possível assumir linhas de continuidade entre a dialética hegeliana,
a dialética negativa e, como eu gostaria de mostrar, até mesmo a dialética marxista, por
uma razão fundamental, a saber, que a dialética hegeliana é a dialética necessária para
as possibilidades da experiência social no início do século XIX, assim como a dialética
marxista é para o final do século XIX e a dialética adorniana para meados do século XX.
Como uma ontologia cujo sistema de posições e pressupostos muda de acordo com
certas configurações históricas, sem modificar sua compreensão estrutural da
processsualidade contínua do que existe, ou seja, como uma "ontologia em situação", a
dialética se reorienta periodicamente em um movimento que leva em conta as
transformações das situações históricas. Não poderia ser de outra forma para um
pensamento que, sem nunca aceitar distinções estritas entre o ontológico e o ôntico,
nunca renunciou à potencialidade crítica da verdade em relação ao campo da
experiência identificada pelo senso comum. A crítica é medida a partir da configuração
de bloqueios historicamente determinados. Em resumo, gostaria de partir deste ponto:
a dialética como figura do pensamento crítico é uma ontologia em situação.
Sei que à primeira vista tal sentença soa como a própria forma de um paradoxo.
A ontologia como discurso do ser como ser é uma modalidade de reflexão filosófica
caracterizada pela aparente estática da definição nocional de suas categorias, assim
como de suas modalidades de força normativa. Pode-se dizer que a ontologia se
caracteriza por ser um discurso sobre aquilo que permite a outros discursos definir sua
coerência lógica e, conseqüentemente, sua validade. Mas, em primeira instância, uma
ontologia situacional seria aquela que mostra como situações sócio-históricas geram
sistemas de idéias que procuram se fazer passar por uma necessidade intemporal. Neste
sentido, seria apenas uma forma de mostrar como as particularidades, impasses e
tensões da dinâmica de uma situação são, por assim dizer, sublimadas em sistemas de
idéias com aspirações universais. A força normativa de tais sistemas daria então origem
a uma reflexão crítica sobre a gênese material das normas. Assim, uma ontologia em
situação seria necessariamente uma reflexão crítica sobre a própria ontologia. Isto é
algo semelhante ao que Marx e Engels fazem, na ideologia alemã, quando dizem:
5
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; A ideologia alemã, p. 75
6
THEUNISSEN, Michael. Sein und Schein: die kritische Funktion der Hegelschen Logik. Frankfurt:
Surhkamp, 1994. p. 16.
Estou ciente de que isto ainda pode soar muito abstrato e programático. Mas eu
gostaria de explicar algumas estratégias já em nossa primeira aula. Em todo caso,
gostaria de terminar fornecendo um ponto de partida mais claro. Porque em um curso
como este, pode-se perguntar sobre o que, de fato, se está falando quando se fala de
"dialética". Eu gostaria de fornecer um ponto de partida.
Conhecemos este caminho pelo qual a dialética tem o sentido inicial do diálogo
baseado na oposição de opiniões contrárias, tão evidente na maiêutica socrática e que
justificará sua presença no trivium medieval. A este respeito, recordemos como
"dialética" vem de "dialegesthai", que significa algo como a arte da discussão através do
diálogo e nos remete ao verbo "dialegein", no qual encontramos "legein", ou seja,
"falar"/"aderir", e o prefixo "dia", que se refere ao relacionamento ou à troca. "Legein"
também estará na base de "logos". Pensando neste horizonte, Platão define o praticante
da dialética como: "aquele que sabe questionar e responder"7 até chegar ao
esclarecimento dos princípios gerais. A dialética de Platão, tão claramente presente na
maiêutica socrática, é assim uma espécie de ascese crítica para a intelectualização do
caráter generativo da Idéia. Lembre-se desta definição canônica da República:
Aprende então o que quero dizer com o outro segmento do inteligível, daquele
que a razão (logos) atinge pelo poder da dialética, fazendo das hipóteses não
princípios, mas hipóteses de fato, um espécie de degraus e de pontos de apoio,
para ir até aquilo que não admite hipóteses, que é o princípio de tudo, atingindo
o qual desce, fixando-se em todas as consequências que daí decorrem, até
chegar à conclusão, sem se servir em nada de qualquer dado sensível, mas
passando das ideias uma às outras, e terminando em ideias8.
Através da dialética, o que é uma hipótese é destruído até chegarmos à Ideia como um
princípio que nos permite construir silogismos sem fazer uso de nenhum dado sensível.
Algo que, como já vimos, Marx tende a encontrar em Hegel quando fala da Ideia como
o demiurgo do processo real. Deve-se notar também que este diálogo de ascese crítica
apela para os pressupostos já presentes nas proposições dos interlocutores (o que
permitiu a Sócrates, por exemplo, mostrar, em Menon, que o escravo não sabia o que
sabia). É por isso: "no debate oratório, semelhante a um julgamento, terceiros decidem;
na discussão dialética, terceiros podem ser evitados graças a um acordo sobre uma
verdade revelada aos interlocutores por sua razão comum"9 . Tendo a razão comum
como pressuposto, a dialética, neste ponto, funde-se com a própria definição de
argumentação filosófica.
Por sua natureza como técnica de diálogo, baseada principalmente no
esclarecimento de paralogismos, contradições e na redução de teses opostas ao
absurdo (um método inicialmente utilizado, ao que parece, por Zenão), o destino da
dialética estará mais ligado à retórica do que à lógica, mesmo que fosse: "o primeiro
termo técnico a ser utilizado para o que hoje chamamos de lógica"10 . É assim que
entrará no trivium medieval, juntamente com a gramática e a retórica.
7
PLATÃO, Crátilo, 390c
8
PLATÃO; A República, Lisboa: Calouste Gulbenkian, 511 bc
9
PERELMAN, Chaim; Retóricas, São Paulo: Martins Fontes, p. 8
10
KNEALE e KNEALE; The development of logic, Oxford University Press, 1962, p. 7
O declínio da filosofia medieval parece levar consigo o prestígio da dialética.
Recordemos como Descartes, por exemplo, associa a dialética e a retórica para, no
mesmo movimento, separar os campos da filosofia e da retórica. Para Descartes, a
dialética é uma "arte do raciocínio" meramente formal, pois está ligada à análise das
qualidades formais do discurso. Daí suas críticas aos dialéticos que acreditam estar
dirigindo a razão humana:
Esta desqualificação da dialética como mero raciocínio formal, incapaz de integrar o que
é da ordem da contingência do empírico, será uma das figuras clássicas da crítica e
alcançará Kant. Kant descreverá a dialética como a "lógica da aparência" que visava
revelar as ilusões produzidas quando as Ideias da razão procuram ser tomadas como
determinações objetivas da própria coisa, produzindo contradições intransponíveis. Tais
ideias, no entanto:
11
DESCARTES, Regras para a Direção da Mente, Regra X
12
KANT, Crítica da razão pura, A 306
13
Ibid, A328
composta é composta de partes simples; Há causalidade para a liberdade/Todas as
coisas acontecem por causa das leis da natureza; Ao mundo pertence um ser
absolutamente necessário/Não há nenhum ser absolutamente necessário que seja a
causa do mundo.
É neste contexto de desqualificação que Hegel aparece com a tarefa filosófica
de fazer da dialética algo cuja melhor definição talvez seja dada por Adorno, mais de um
século depois:
Dialética não significa nem um mero procedimento do Espírito, pelo qual ele foge
do caráter obrigatório de seu objeto - em Hegel produz literalmente o oposto, o
confronto permanente do objeto com seu próprio conceito - nem uma visão do
mundo [Weltanschauung] na qual um esquema poderia ser imposto à realidade.
Assim como a dialética não se presta a uma definição isolada, tampouco fornece
uma definição. É o esforço destemido de combinar a consciência crítica da razão
sobre si mesma com a experiência crítica dos objetos14 .
O verdadeiro é assim o delírio báquico, onde não há membro que não esteja
ébrio; e porque cada membro, ao separar-se, também imediatamente se
dissolve, esse delírio é ao mesmo tempo repouso translúcido e simples. Perante
o tribunal desse movimento não se sustêm nem as figuras singulares do espírito,
nem os pensamentos determinados; pois aí tanto são momentos positivos
necessários; quanto são negativos e evanescentes.15
15
HEGEL, G.W.F.; Fenomenologia do Espírito, par. 47
Aula 2
Não somente está perdida para o Espírito sua vida essencial; está também
consciente dessa perda e da finitude que é seu conteúdo. [Como o filho pródigo],
rejeitando os restos da comida, confessando sua abjeção e maldizendo-a, o
espírito agora exige da filosofia não tanto o saber do que ele é, quanto resgatar,
por meio dela, aquela substancialidade e densidade do ser [que tinha perdido]17
.
Em outras palavras, diante de uma crise na qual o horizonte normativo de nossa "vida
essencial" parece estar perdido, uma crise que afeta nossos modos de vida e suas
estruturas de legitimidade, uma crise política na qual os reis perderam a cabeça, na qual
lugares naturais foram postos em questão, geralmente se espera que a filosofia
proporcione alguma forma de "restauração da substancialidade", de reconstrução das
condições para alguma segurança ontológica que nos permitiria distinguir claramente
entre o céu da verdade e as nuvens de erro. Mas quem inicia uma reflexão filosófica
16
HEGEL, G.W.F.; Fenomenologia do Espírito, p. 63
17
Ibid, p. 24
problematizando o que é um começo, entenderá que a função da filosofia não é dar
respostas às crises, mas aprofundá-las. Sua função será dizer: só mais um esforço,
porque esta crise não pode deixar intactos os próprios fundamentos sobre os quais o
discurso filosófico acreditava descansar. A crise social será também uma crise de
linguagem filosófica.
A partir daí, Hegel dirá num tom claramente irônico: tornou-se uma
representação natural que a filosofia deve avaliar sua maneira de saber antes de
procurar saber, como se seu discurso fosse algo como um instrumento a ser ajustado
antes de passar ao que nos move. Como se tal operação fosse possível: separar o
discurso e as coisas que ele descreve. Separar o discurso e as coisas que o afetam para
mesmo assim, após esta separação, analisar sua objetividade e coerência. Como se esta
operação nos permitisse ter acesso aos pressupostos seguros de todo conhecimento,
pressupostos já determinados antes de termos contato com as coisas a serem
conhecidas. Esta seria a maior segurança que a filosofia poderia oferecer: garantir que
a linguagem que temos à nossa disposição para agir e descrever estados de coisas nos
permite realmente agir e descrever estados de coisas. Sua objetividade estaria, desde o
início, assegurada; bastando-nos começar por esclarecê-la. Neste sentido, não será
estranho que uma estratégia filosófica desta natureza afirme coisas como :
Pode reconhecer-se que a lógica, desde remotos tempos, seguiu a via segura,
pelo fato de, desde Aristóteles, não ter dado um passo atrás, e não ser que se
leve à conta de aperfeiçoamento a abolição de algumas sutilizas desnecessárias
ou a determinação mais nítida do seu conteúdo, coisa que mais diz respeito à
elegância que à certeza da ciência. Também é digno de nota que não tenha até
hoje progredido, parecendo, por conseguinte, acabada e perfeita, tanto quanto
se nos pode afigurar (...) Que a lógica tenha sido tão bem sucedida deve-se ao
seu caráter limitado, que a autoriza e mesmo a obriga a abstrair de todos os
objetos de conhecimento e suas diferenças, tendo nela, o entendimento que se
ocupar apenas consigo próprio e com a sua forma18 .
Em outras palavras, para uma perspectiva como esta, que teria uma figura maior
em Kant, o início da filosofia está assegurado porque ela sabe onde encontrar uma
fundação imutável, segura, "acabada e perfeita". Ela a encontra na lógica. A lógica, pelo
menos até o final do século XVIII, tinha aparentemente preservado os princípios
descritos por Aristóteles, o que permitiria definir as estruturas de toda uma gramática
filosófica, como os conceitos de: identidade, diferença, contradição, oposição, unidade,
entre outros. Isto faria dela uma forte candidata para garantir que a filosofia tivesse um
começo seguro. Uma vez que tais princípios para orientar o pensamento estavam
garantidos, a filosofia poderia analisar as reivindicações de outros discursos como
alguém que analisa um instrumento a partir de sua adequação à funções e
possibilidades. Ela poderia identificar a fonte de erros, ilusões, loucura. A lógica
proporcionaria uma gramática dentro da qual a linguagem filosófica poderia começar.
Esta gramática não está muito distante da linguagem natural, se aceitarmos, como faz
Hegel, que: "as formas de pensamento são primeiramente expostas e depositadas na
linguagem do ser humano"19.
18
KANT, Crítica da Razão Pura, B VIII/B XI
19
HEGEL, Ciência da Lógica I, p. 31
Mas esta estratégia tem um preço. O preço é que "o entendimento se ocupa
apenas consigo próprio e com suas formas". Assim, o conhecimento e o próprio em-si
das coisas parecem irredutivelmente separados. Hegel chamará esta separação de
"psicologia subjetivista". O termo alude ao fato de que tudo acontece como se a filosofia
acreditasse ser capaz de responder à crise de seu tempo com uma estranha defesa da
autonomia de seu discurso. Uma autonomia que a levará a reconhecer o choque
categorial causado pela tentativa de abordar o que seria o em si das coisas. Mas este
reconhecimento serviria apenas para exigir que o conhecimento pare diante deste
choque. É como se a filosofia fosse transformada em um sistema de sinais de pare. Este
será o preço para que ela traga uma certa segurança ontológica: parar onde encontra o
que lhe aparece como erro, ilusão e loucura.
A estratégia Hegeliana será bem diferente. O que não é estranho para alguém
que dirá:
Sua estratégia será tratar a linguagem filosófica de seu tempo como "folhas
murchas que são repelidas pelos novos brotos". E esta metáfora é mais apropriada do
que parece. De fato, será uma questão de mostrar a insuficiência da linguagem
filosófica, seu esgotamento, o que leva ao esgotamento do fundamento que ela
acreditava preservar em seu aspecto "acabado e perfeito", ou seja, a lógica e sua
gramática. A filosofia se tornará assim a exposição paradoxal da insuficiência da própria
linguagem filosófica, a crítica da lógica. A ideia é clara e suas conseqüências são
significativas: não é possível começar a filosofia sem partir de uma linguagem defeituosa
e inadequada. Ou seja, o exercício da filosofia é inseparável da crítica da própria
linguagem filosófica. De certa forma, podemos dizer que quem entra na filosofia entra
sem uma linguagem própria. Em filosofia, sempre se começa mal. Portanto, o início da
filosofia é inseparável de um colapso, se vocês quiserem, seu início é inseparável de um
colapso gramatical.
Esta quebra não é, no entanto, uma simples negação. Ela não leva a uma forma
de exaustão da própria filosofia ou a seu abandono. Por mais paradoxal que possa
parecer no início, a filosofia é de fato realizada onde ela mesma é capaz de expor a crise
de sua própria linguagem, onde se volta contra o que nos parece ser uma
"representação natural" e que nada mais é do que uma metafísica naturalizada, uma
imagem de pensamento a ser destruída. Pensar filosoficamente é sempre pensar contra
a própria filosofia. Para isso, haverá apenas um pressuposto a ser aceito, a saber, o
pressuposto de que o esgotamento dos conceitos filosóficos segue uma lógica imanente,
que sua crítica é uma crítica imanente. Não é, portanto, uma simples exaustão, mas um
processo. O nome desta exaustão dos conceitos filosóficos que, paradoxalmente, é a
realização de seu significado efetivo, deste colapso que é um processo, não será outra
coisa senão "dialético".
Afirmações como estas, que podem desesperar mais de um, são, no entanto,
claras em seu propósito. Observem o movimento dialético em marcha. Primeiro, a ideia
de progresso, como uma consciência do caráter produtivo da liberdade humana, é
constituída em oposição à natureza como um sistema fechado e estático de leis. Esta é
sua matriz 'anti-mitológica'. Mas ao criar tal oposição, o progresso "passa no seu
oposto", aliena-se e adquire o mesmo caráter coercitivo e brutal que a sociedade havia
encontrado na natureza. Pois a crença no progresso é paga com a explicitação da relação
com a natureza como uma relação de dominação. As relações de dominação,
entretanto, são regressões e não progresso. Assim, se no século XVIII o progresso pode
aparecer contra o encantamento da natureza, agora que as consequências
problemáticas da completa submissão da natureza à técnica são óbvias e redutoras, ele
não pode ter mais lugar. Assim, ser fiel ao espírito anti-mitológico do progresso requer
uma crítica da mitologia do progresso. A reversão é possível, pois a atualização do
conceito em uma dada situação sócio-histórica nunca equivale ao seu completo
esgotamento. Devemos nos perguntar, e esta é uma questão dialética por excelência, o
que permanece latente quando o conceito é trazido à luz em uma situação. A dialética
aqui consiste em afirmar que a realização do progresso não consiste simplesmente na
melhor consolidação dos ideais normativos em funcionamento em nossas atuais formas
sociais, formas que se constituem em nome do progresso. Ela consiste na destituição de
tais formas por uma crítica capaz de produzir uma transformação estrutural de tais
ideais. Esta transformação, realizada em nome da crítica do progresso, é a realização do
progresso. Se o progresso real só começa onde ele termina, é porque a consciência do
fracasso do que foi o progresso até agora é a condição para dar substância ao que foi
impossível até agora, ou seja, a emancipação social prometida pelo progresso.
O ser e o nada
Estas afirmações podem nos ajudar a entender por que a Ciência da Lógica de
Hegel começa descrevendo o colapso do início. Ela começa criticando o conceito que
normalmente aparece como o começo de toda filosofia, ou seja, o conceito de ser. Ser
pode aparecer como um fundamento porque é o termo comum a todos os outros
aspirantes ao primeiro fundamento (o Um, o absoluto, o divino, o Eu). Para ser um
22
ADORNO, Theodor; Palavras e sinais, p. 47
fundamento, o Um, Deus, o Absoluto, o Eu devem ser. Neste sentido, nada é mais
natural do que partir desta categoria que parece estabelecer o campo no qual o
fundamento pode aparecer de uma forma mais elaborada. Tanto assim que Hegel afirma
que a história da filosofia começaria verdadeiramente com a compreensão do absoluto
como ser, através de Parmênides e sua proposição: "o ser é, o não ser não é".
Comecemos então com a primeira afirmação da Ciência da Lógica:
É assim que Hegel tenta mostrar o erro de fundar a ontologia na categoria do ser. Trata-
se, antes de tudo, de afirmar que o ser é o nome que damos, de fato, à pura
indeterminação. Qualquer filosofia que entenda sua tarefa como recuperar o ser, como
pensar sua univocidade, tomará de fato uma pura abstração como a base mais sólida do
pensamento.
Esta posição de indeterminação aparece a Hegel porque ser, como um começo,
não pode se referir a nada além de si mesmo, senão não seria um começo, isto no
sentido da categoria mais imediata de conhecimento. O ser é uma auto-referência
imediata e incondicional. Mas, como a determinação é um processo relacional, algo é
determinado apenas em relação a algo outro posto ao mesmo tempo, portanto, esta
auto-referência imediata do ser só pode equivaler a uma absoluta indeterminação:
A reflexão deve, em vista disso, procurar uma firme determinação de ser, pela
qual seria diferente do nada. Por exemplo, tomamos o ser como aquilo que
persiste em toda mudança, a matéria infinitamente determinável, etc., ou,
mesmo sem reflexão, como qualquer existência singular, a coisa mais próxima,
sensível ou espiritual. Mas todas as determinações posteriores e mais concretas
como estas não deixam mais o ser como puro ser; tal como ele é imediatamente,
no início24 .
Puro ser e puro nada são, portanto, o mesmo. O que é a verdade não é nem o
ser nem o nada, mas que o ser não passa, mas passou para o nada e o nada não
passa, mas passou para o ser. Igualmente, porém, a verdade não é sua
indiferencialidade, mas que eles não são o mesmo, que são absolutamente
25
KANT, Crítica da Razão Pura, B 347/A 291
diferentes, mas igualmente inseparados e inseparáveis e cada um desaparece
em seu oposto imediatamente. Sua verdade é, então, este desaparecer imediato
de um no outro; o devir; um movimento no qual ambos são diferentes, porém,
através de uma diferença que igualmente se dissolveu imediatamente26 .
Este pequeno parágrafo resume o que Hegel entende por movimento e identidade
dialética. Não se trata exatamente de dizer que "ser" e "nada" são termos que designam
a mesma coisa, assim como "Vênus" e "Estrela d’Alva" designam a mesma coisa. Trata-
se de dizer que eles adquirem uma identidade que é o resultado de um movimento.
Entretanto, trata-se de um "movimento imediato", ou seja, um movimento que ocorre
imediatamente a partir do momento em que um termo é posto, pois não é possível po-
lo sem que ele passe no seu oposto (uma passagem que Hegel chama de Verkehrung -
inversão). Esta é uma forma de dizer que o conceito de ser não tem realidade. Da mesma
forma, o conceito de nada não tem realidade. Entretanto, a passagem do conceito de
ser para o conceito de nada tem uma realidade. Esta passagem não é uma forma de
unificação do ser, mas um reconhecimento da insuficiência de seu significado. O
significado do ser demonstra sua inanidade quando ele é posto. De certa forma, pode-
se dizer que "ser" não é o nome de uma substância idêntica a si mesmo. "Ser" é o nome
de um processo de desaparecimento. "Ser" é o que está passando para o nada a todo
momento. Este processo de desaparecimento é o verdadeiro início da dialética. Caberá
à reflexão filosófica pensar este processo a partir das categorias mais apropriadas. E para
tanto será necessário apelar a primeira categoria concreta, a saber, o devir. Ou seja, a
dialética coloca em funcionamento uma ontologia paradoxal, baseada exatamente na
decomposição da categoria de ser.
Estas estratégias hegelianas serão criticadas na filosofia do século XX. A mais conhecida
dessas críticas vem de Heidegger. Este debate expõe estratégias fundamentais relativas
à configuração do pensamento crítico, a sua relação com a origem, com a história e a
ação. A rejeição da dialética por Heidegger é um momento importante de clarificação
do horizonte normativo de uma crítica filosófica e social que visa criticar a reificação das
sociedades capitalistas através de uma recomposição da força normativa da origem. No
caso de Heidegger, trata-se de uma origem esquecida por uma era histórica submetida
ao desenvolvimento da técnica, ao tempo da técnica e à sua dominação do mundo. A
partir daí, tal desenvolvimento da técnica seria inseparável de uma articulação entre
racionalidade e dominação cujo fundamento é o primado do sujeito. Para Heidegger, o
sujeito é fundamentalmente o nome de um esquecimento: o esquecimento do ser. Um
esquecimento que, pelo menos para Heidegger, atinge o seu apogeu com Hegel.
Neste sentido, partamos de um dos eixos da crítica heideggeriana dirigida à
dialética hegeliana do ser e do nada. Nos a encontramos em afirmações como: "O ser,
como primeira e simples objetividade dos objetos, é pensado a partir do ponto de vista
da referência ao sujeito a ser pensado, como sua pura abstração"27. A ideia é clara. Para
Hegel, o ser seria sempre pensado a partir do sujeito, ele é o que resta quando
26
HEGEL, Science of Logic vol I, p. 86
27
HEIDEGGER; Hegel e os gregos
suspendemos a capacidade de determinação do sujeito. Daí porque só seria possível
confundi-lo com o nada.
Heidegger diz isto porque acredita que o sujeito moderno teria uma relação
projetiva e instrumental com o mundo. Podemos falar de uma "relação projetiva"
porque, como verdadeiro fundamento do conhecimento, o sujeito organizaria o mundo
sob a forma de objetos representáveis, construídos a partir de condições subjetivas de
intuição no espaço e no tempo, de condições subjetivas de categorização e
determinação. O sujeito dominaria através da representação. O mundo, por sua vez,
seria aquilo que está sujeito a condições de possibilidade de experiência definidas pela
estrutura cognitiva do sujeito. Em outras palavras, o mundo seria exatamente o que
pode ser representado por um sujeito. Dentro deste horizonte, o ser, compreendido
como primeira e simples objetividade dos objetos ainda não sujeitos à representação,
só pode aparecer ao sujeito como puramente indeterminado, mas não porque ele seja
em si indeterminado, e sim porque ele aparece como inapreensível pelo pensamento
representativo.
Esta forma de entender o ser explica porque Heidegger diz, ainda sobre Hegel:
“O ser e, por conseguinte, aquilo que é representado nas palavras fundamentais, não é
ainda determinado e não é ainda mediado através e para o interior do movimento
dialético da subjetividade absoluta”.28 Pois é o sujeito com suas estruturas de reflexão
que determina o que há a ser pensado e ele o determina necessariamente sob a forma
de “entes”. “O que não é um ente”, dirá Heidegger a respeito de Hegel, “é nada”,29 o
que nos deixa com a questão de compreender o que pode significar determinar algo sob
a forma de um ente.
Para compreender esse modo de produtividade da subjetividade, devemos
insistir que a interpretação de Heidegger deve partir de um pressuposto fundamental, a
saber, desde Descartes, “sujeito” é o que se fala da mesma maneira. Hegel chegaria
apenas lá onde Descartes já havia definido a meta, a saber, compreender a essência do
que é como objeto disponível ao entendimento calculador de um sujeito, o mesmo
sujeito que diante de um pedaço de cera só verá res extensa. A terra firme que, segundo
Hegel, Descartes descobre é a compreensão do saber como “certeza de si do sujeito
sabendo-se incondicionalmente”.30 Compreensão que Hegel levaria ao extremo através
de seu idealismo absoluto.
Em uma passagem célebre de seus cursos sobre Nietzsche, Heidegger insiste que
a estrutura da reflexão que nasce com o princípio moderno de subjetividade é
fundamentalmente posicional. Refletir é pôr diante de si no interior da representação,
como se colocássemos algo diante de um “olho da mente”. Seguindo os rastros de um
texto cartesiano, ele nos lembra que, em várias passagens, Descartes usa cogitare e
percipere como termos correlatos. Um uso necessariamente prenhe de consequências.
De fato, Heidegger deve pensar aqui, primeiro, na maneira peculiar com que Descartes
utiliza o termo em latim percipere. Ele raramente é utilizado para designar processos
sensoriais, como visão e audição (nestes casos, Descartes prefere utilizar o termo
sentire). Percipere designa, normalmente, a apreensão puramente mental do intelecto,
já que, em Descartes, é a inspeção intelectual que apreende os objetos, e não as
sensações. Assim, por exemplo, na meditação terceira, ao falar daquilo que aparece ao
28
Idem, p. 446.
29
HEIDEGGER, Martin. Hegel, Gesamtausgabe band 68, Vittorio Klostermann, 2009, p. 44.
30
HEIDEGGER, Caminhos da floresta, p. 163.
pensamento de maneira clara e distinta, Descartes afirma: “todas as vezes que volto
para as coisas que penso conceber mui claramente, sou de tal modo persuadido delas
[...]”.31 Mas, de fato, “penso conceber” é a tradução não muito fiel de percipere.32 Da
mesma forma, Descartes, mais à frente, falará de “tudo aquilo que concebo clara e
distintamente”33 pelo pensamento. Mas, novamente, o termo “conceber” é uma
tradução aproximada de percipere, já que o texto latim diz: “illa omnia quae clare
percipio”. De onde se vê como percipere serve, nestes casos, para descrever o próprio
ato mental do pensamento. Heidegger é sensível a este uso peculiar de percipere por
Descartes, pois a reconstrução etimológica do termo nos mostra que ele significa:
Só assim, ele poderia “libertar o ser no sentido grego, o ει ναι, da referência ao sujeito,
para, então, entregá-lo à liberdade de sua própria essência”.39 Assim, contra uma
concepção correspondencialista de verdade como adequação (ou contra seu
complemento hegeliano através de uma verdadeira ontologização da inadequação),
Heidegger se propõe a recuperar o conceito grego de aletheia (verdade como
desvelamento, a-lethe: não-esquecimento). Uma verdade que apenas eclode lá onde a
38
HEIDEGGER, Marcas do caminho, p. 332.
39
Idem, p. 449.
atividade subjetiva de determinação não é mais sentida. Nessas condições, “a liberdade
revela-se como o deixar-ser (Gelassenheit) do ente”.40 Daí uma afirmação como:
Uma abertura que é deixar ser o que aparece à racionalidade instrumental como
acontecimento: “imprevisível e inconcebível”42 ou, como dirá Heidegger, como Ereignis
(acontecimento, evento, ocorrência). Acontecimento que é, antes, a abertura a uma
temporalidade originária que teria a força de expor: “a mais íntima indigência do homem
histórico”.43
40
Idem, p. 200.
41
Idem, p. 200.
42
Idem, p. 205.
43
HEIDEGGER, Martin. Contribuições à filosofia: do acontecimento apropriador. Rio de Janeiro: Via Vérita,
2014, p. 35.
Aula 3
Isso é ternura demais para com o mundo: afastar dele a contradição , pelo
contrário, transferi-la à razão, ao espírito e, nisso, deixá-la subsistir não
dissolvida. De fato, é o espírito que é tão forte para poder suportar a contradição,
mas ele é também aquele que a sabe dissolver. Mas o assim chamado mundo
(queira ele dizer mundo objetivo, real, ou, conforme o idealismo transcendental,
intuir subjetivo e sensibilidade determinada pela categoria do entendimento) em
44
ARISTÓTELES. Metaphysics (Biblioteca Clássica Loeb), Harvard University Press, 1933, IV, 3, 1005b, 19.
45
ARISTOTELES, Metafísica, IV, 4, 15-20. Este recurso às experiências ordinárias do senso comum para
invalidar proposições filosóficas é uma constante. Ele está claramente presente nas estratégias de
desqualificação do ceticismo (e, não por acaso, Hegel estabelece certas proximidades entre ceticismo e
dialética) e de todo pensar que insiste no caráter precário da dimensão dos fenômenos.
nenhuma parte está dispensado, por causa disto, da contradição, mas não é
capaz de suporta-la e por causa disto está exposto ao surgir e ao perecer46. .
Por mais que passagens como esta tenham sido usadas para ilustrar
erroneamente o movimento dialético, é claro que aqui não há dialética alguma. Há
apenas uma bela descrição da passagem da potência ao ato. Hegel diz claramente: não
há contradição neste movimento, mas nem todo mundo prestou atenção nisso. Não há
nada de contraditório no fato do botão desaparecer quando a flor desabrocha. Há um
movimento aqui, mas tal movimento não faz apelo a forma alguma de contradição.
Haveria contradição se a flor não fosse uma possibilidade imanente ao botão, mas fosse
uma atualidade completamente exterior ao campo de possibilidades do botão. Ou seja,
haveria contradição se a passagem de A a B, longe de ser uma possibilidade inicial de A,
fosse algo como uma impossibilidade inicial de A, algo como uma figura de não-A. A ideia
de Hegel é que movimentos dessa natureza ocorrem. O que significa dizer que o
movimento dialético não é mera modificação, mas é a destruição da identidade
inicialmente posta. Hegel fala em contradição para sublinhar um processos de negação
da totalidade da identidade inicial através do movimento da identidade realizar-se como
exceção de si, da totalidade encarnar-se em um termo que a nega e que, inicialmente,
lhe parece absolutamente exterior, o que não poderia ser diferente para alguém que
46
HEGEL, Ciência da Lógica – vol I, p. 254
define o movimento da essência como uma autonegação.
Esse é um ponto central da dialética e mostra como Hegel está a procura de outra
definição do que significa “movimento” e não entenderemos nada da dialética se não
tivermos uma compreensão rigorosa do que significa realmente “entrar em
movimento”. Se a essência é uma auto-negação e se, para Hegel, a essência é a
expressão de uma estrutura relacional e reflexiva, então a destruição da identidade
inicial não é fruto de um acidente. Ela é a realização da essência, ou ainda, a realização
da essência através da integração do que aparecera inicialmente como acidente. Se
estivéssemos a falar de um acidente meramente exterior, não haveria contradição.
Nesse sentido, podemos dizer que o que se move move-se por destruição de si e por
inscrição dessa destruição em um movimento de “retorno a si” (Rückkehr in sich selbst)
que modifica retroativamente a situação inicial finita e limitada, em vez de assegurá-la
em sua identidade inicial.
Antígona
Tomemos um exemplo do mundo social para entender melhor o que Hegel tem em
mente. Neste caso, vamos retomar sua leitura de Antígona, de Sófocles. Hegel descreve
a tragédia grega como uma espécie de fato histórico, como uma figura histórica de
consciência. Ela a compreende como uma descrição do núcleo da crise em que o mundo
grego se encontra e que irá lhe destruir. Esta crise não pode ser resolvida sem o
desaparecimento deste mundo, o desaparecimento da figura espiritual que ele encarna.
A força da tragédia vem do fato dela anunciar esse fim, dando substância a uma crise
que se expressa precisamente na forma de uma contradição, de um antagonismo ao
qual este mundo não pode resistir porque lhe é constitutivo, está inscrito em seu
interior. A contradição então irá se realizar levando à passagem a uma outra figura
social, destruindo o mundo grego a partir de sua instabilidade interior. A essência do
mundo grego é uma auto-negação que lhe leva, necessariamente, a algo que sequer era
uma possibilidade no interior desse mundo.
Hegel analisa a tragédia grega em duas ocasiões. A primeira, na Fenomenologia
do Espírito, seção Espírito. A outra, em seus Cursos de Estética. Vamos retomar sua
análise na Fenomenologia. Antes de tudo, temos que lembrar o que Hegel chama
exatamente de "Espírito" (Geist), o que pode nos ajudar a entender o que ele realmente
espera através do comentário sobre Antígona.
Em primeiro lugar, « Espírito » é uma entidade dotada de ação, ou seja, uma
categoria de agência. Se quisermos, podemos dizer que “Espírito” é uma forma de ação.
Mas esta agência não é pensada com base nas deliberações e decisões de uma
consciência individual. Ao contrário, ela é pensada como um processo social
corporificado em práticas e instituições reflexivamente apreendidas pelos sujeitos. Ou
seja, tais práticas e instituições não são experimentadas por sujeitos como estruturas de
coerção e sujeição, mas são vistas como a própria substância ética da vida social. É por
isso que Hegel define o Espírito como: "a vida ética de um povo". De certa forma, ao
constituir a categoria 'Espírito', Hegel está dizendo que a verdadeira ação social é trans-
individual. Os indivíduos agem, mas raramente estão cientes do que realmente fazem.
Suas ações excedem constantemente suas intenções, como se algo estivesse agindo nos
sujeitos.
Alguns poderiam imaginar que ao falar em Espírito, Hegel estaria lidando com
uma espécie de providência agindo às costas dos sujeitos. Mas na realidade, o que ele
está descrevendo é como as contradições sociais encarnadas nas práticas e instituições
atuam nos sujeitos, como as contradições se incorporam neles. Isso explica porque, ao
descrever o processo histórico da constituição do Espírito, Hegel privilegie
continuamente os momentos históricos de crise. Como não poderia ser de outra forma,
o que interessa a Hegel é como as contradições movem o Espírito, como os
antagonismos o reconfiguram, abrindo o caminho para um processo que então
chamaremos de "história".
A primeira destas crises analisadas por Hegel está no mundo grego. Observe o
que ele realmente faz: ele descreverá o mundo grego como a forma de uma crise, ou,
para ser mais preciso, a forma de uma contradição social. A forma como ele apresenta
suas elaborações é significativa. O subtítulo da seção na qual se encontra seu
comentário de Antígona na Fenomenologia do Espírito é: "O mundo ético, a lei humana
e a lei divina, o homem e a mulher". Mas não se enganem: o "e" neste caso não é uma
partícula de conjunção, mas a indicação de um campo de conflito. Hegel vai tentar
mostrar como a tragédia de Sófocles é a descrição da colisão de um mundo dividido em
dois: entre o humano e o divino, entre o masculino e o feminino. Mas esta divisão não
é simplesmente uma divisão: é uma contradição. Pois tantos as leis humana quanto
divina, tanto o masculino quanto o feminino, seguem o mesmo princípio e se chocam.
Como se estivéssemos diante de duas séries contraditórias a partir do mesmo princípio.
Como se existisse um antagonismo dentro da própria substância ética.
Sabemos que a tragédia de Sófocles é a história de uma colisão. Antígona tem
dois irmãos lutando por Tebas. Um defende a cidade, o outro une forças com o poder
estrangeiro para invadi-la. Ambos morrem e, no momento de sua morte, Creonte, rei de
Tebas, decide operar uma partilha. Eteocles, o irmão que defendeu Tebas, será
enterrado como um herói. Polinicies, o irmão invasor, simplesmente não será enterrado,
seu corpo apodrecerá ao ar livre. Isto significa: ele será expulso da humanidade,
voltando à condição de puro animal. Ele será despojado de sua humanidade, jogado em
um estado inumano. Antigona é quem acolherá o inumano, enterrando seu irmão
contra as ordens da polis. Isto será pago com a pena de morte.
Observemos qual é o verdadeiro conflito. Primeiro, não se trata de um conflito
entre a suposta particularidade da lei da família, o que teria levado Antigona a se
vincular a seu irmão de sangue e ignorar o edital real, e a universalidade da lei da polis,
que legisla no interesse do Estado e de sua preservação. Se este fosse o caso, não haveria
contradição neste conflito. Cada lei opera em seu horizonte próprio e segue suas
expectativas. Para que haja uma contradição, as duas leis devem expressar a mesma
coisa, devem dizer a mesma coisa.
No caso, as duas expressam a universalidade. Uma expressa da universalidade a
partir da lei humana, a outra a partir da lei divina. Ou seja, Hegel compreender que a
vida ética e a formação para o universal é objeto tanto da pólis quanto da família. No
caso da família, isso se realiza da maneira mais acabada no rito funerário, no cuidado
com o morto. Pois o morto é: "aquele que, da longa série de sua existência dispersa, se
retirou para uma figuração completa [a figura venerada pela memória] e subiu da
inquietação da vida contingente para a imobilidade da universalidade". Ou seja, a família
prepara para a universalidade através do cuidado com a memória, pois o acolhimento
pela memória equivale a uma simbolização. Sujeitos devem ser acolhidos pela memória
não por aquilo que fizeram, mas por serem seres humanos. Eles tem o direito ao ritual
fúnebre independente de quem foram, como se fosse o caso do reconhecimento de uma
humanidade genérica em cada vida. Esta é a lei divina, que é guardada pela família. Por
sua vez, a pólis é impulsionada por uma aspiração universalista através da figura do
cidadão, do membro da comunidade. Ela compreende a universalização como a
uniformidade da lei, capaz de criar certa noção de “todos”.
Neste sentido, a comunidade deve seguir uma lei dupla: a lei divina que encontra
seu seio na família e a lei da polis. Ao seguir esta lei dupla, a comunidade deve sustentar
a linha tênue do que não agrava nenhuma das duas. Entretanto, esta é uma tarefa que
se revelará impossível, pois a posição de uma implica a redução da outra ao nível de
particularidade, a menos que a polis seja capaz de se organizar institucionalmente com
base em exigências para o reconhecimento de uma universalidade geral que seja o
fundamento universal da consciência singular e da essência do direito preservado pela
família. Esse não é o caso da polis grega, pois ela ainda ignora a ideia de que o sujeito é
realizado em um estado desprovido de características comunitárias e identitárias. Em
outras palavras, não se trata de anular o que se aferra ao mundo subterrâneo da família,
mas de mostrar como ela coloca, ainda que imperfeitamente, exigências de
incondicionalidade que a polis ainda não é capaz de administrar.
Neste sentido, se Hegel vincula a lei da família ao feminino, não é porque o
feminino ignora os propósitos sociais da cidadania, não é porque as mulheres
colocariam o particularismo do cuidado com a família na frente das obrigações do
cidadão. Lembremos como Hegel define o feminino enquanto "a eterna ironia da
comunidade", que : "transforma por intriga o propósito universal do governo em um
propósito privado, transforma a atividade universal do referido governo em uma obra
deste indivíduo em particular, e inverte a propriedade universal do Estado em uma
posse e ornamento da família"47 . A força da ironia é expressão do feminino porque é a
perspectiva que expõe o particular sob o discurso universalista, ou seja, o feminino é
uma forma de crítica que anuncia as reversões próprias da dialética, que a seu modo é
um "espírito organizado de ironia". Nesse sentido, lembremos o que faz Antígona.
Quando Creonte lhe pergunta por que ela não havia respeitado seu decreto, ela
responde:
"Mas Zeus não foi para mim o seu arauto [as leis declaradas de Creonte], nem
essas leis são ditadas aos homens pela justiça, habitando companheiro dos
deuses subterrâneos ; e não me pareceu que suas determinações tivessem a
força de impor aos mortais a obrigação de transgredir as leis não escritas e
imutáveis dos deuses; elas não são nem de hoje nem de ontem, elas existem
desde os tempos mais remotos, sem que ninguém possa dizer quando elas
apareceram.
Essa é uma expressão da ironia do feminino. Pois Antígona afirma: “sua lei se
coloca como universal, mas ela é particular. Ela ignora leis que não foram feitas por
comunidade alguma, que são incondicionais e estabelecem um princípio genérico de
reconhecimento de todo e qualquer sujeito”. Polinices devem ser enterradas não
precisamente porque ele é "meu irmão", mas porque a lei divina reconhece o direito de
47
HEGEL; Fenomenologia do Espírito, p. 491
memória para todos, qualquer que seja o contexto de sua ação, estabelecendo assim
uma universalidade que explode os limites do pertencimento.
Mas é interessante que isso seja enunciado no interior da pólis grega, através da
palavra do drama. E poderíamos dizer que uma das funções da tragédia grega é abrir
espaço ao reconhecimento de uma universalidade que vai, em muitas situações, contra
os limites da determinação normativa dos membros da polis. Haja vista Ajax, Édipo em
Colona, Os Persas, entre tantas outras tragédias cujo fundamento é o reconhecimento
da moralidade do inimigo, da humanidade do exilado.
Percebamos assim o movimento dialético de Antígona. Ao se contrapor à pólis,
ela eleva a particularidade de Polinices à condição de uma universalidade concreta. Mas
essa universalidade não tem lugar na forma social do mundo grego. Por isso, ela só pode
levar à destruição da polis, uma destruição feita tendo em vista a procura do Espírito em
constituir formas mais concretas de realização efetiva da liberdade. O reconhecimento
do direito de memória do criminoso de estado aparece como motor dialética de
transformação social e realização de condições alargadas de liberdade.
Deleuze e a dialética
Vimos até aqui como a contradição real pode aparecer como horizonte de enunciação
da diferença em condições sociais nas quais tal diferença não pode ser reconhecida na
gramática social de conflitos vigente. Agora, gostaria de apresentar para vocês uma
crítica à contradição dialética. Ela vem de Gilles Deleuze.
A crítica de Deleuze à Hegel é uma das peças-chave da desqualificação
contemporânea da dialética. Sua estratégia consiste em mobilizar uma crítica que se
desdobra nos domínios da moral e da ontologia para, no final, fornecer a figura de um
pensamento preso nos limites da representação, obrigado a reduzir a produtividade da
diferença à figura inadequada da negatividade e da contradição. Um pensamento que
seria apenas a expressão de uma dinâmica moral caracterizada pelo ressentimento.
Aqui, gostaria de tentar sistematizar alguns momentos fundamentais desta crítica a fim
de levantar a questão da atualidade da dialética como figura do pensamento crítico.
Recordemos primeiro o contexto histórico desta crítica. É inegável que um dos
principais eixos de caracterização do pensamento francês contemporâneo foi sua
aversão à dialética. No estruturalismo de Lévi-Strauss, Althusser e o primeiro Foucault,
a dialética apareceria como o pensamento que se desdobra dentro de uma antropologia
humanista profundamente normativa e conservadora, dentro de uma concepção
teleológica e necessária da história, um movimento de integração sem rupturas efetivas.
Todos eles parecem convergir no diagnóstico da dialética como uma teoria do falso
movimento, do processo de anulação da diferença e das transformações. Como
sabemos, este horizonte não mudará com a ascensão da experiência intelectual da
próxima geração, a saber, Derrida, Lyotard, Deleuze, Guattari e os desenvolvimentos de
Foucault. E entre esta aversão comum, talvez ninguém se oponha mais claramente à
dialética do que Gilles Deleuze, ao ponto de não ter medo de definir sua filosofia da
diferença como fruto de um "anti-Hegelianismo generalizado".
Note que tal questão não é simplesmente um problema filosófico, mas uma
discussão claramente política. O surgimento da centralidade da diferença como
operador filosófico na Europa do pós-guerra é inseparável da premonição do colapso do
Estado bem-estar social e de seus modelos de integração econômica e psicocultural.
Diante deste horizonte de colapso iminente, a insistência na diferença foi uma forma de
desafiar modelos hegemônicos de luta social que traduziam a multiplicidade de lutas na
centralidade de uma contradição global principal pretensamente capaz de nos levar a
alguma redenção histórica. Neste cenário, tudo o que a dialética parecia ser capaz de
oferecer era a redução do potencial de produção da diferença a modalidades de
integração baseadas na realidade existente.
Podemos falar de um pensamento de integração, já que na França do pós-guerra,
a "dialética" era vista de três maneiras. Primeiro, como o que animava a política oficial
do Partido Comunista Francês e suas banalidades humanistas alinhadas com Diamat. Em
segundo lugar, como o que podia ser encontrado na recuperação fenomenológica da
filosofia da consciência (Sartre, Merleau-Ponty) e seu horizonte de compromisso com a
figura filosófica do sujeito. Finalmente, a "dialética" era o que encontrávamos em
Kojève, Bataille, Lacan, sob um aspecto heterodoxo que representará um conjunto de
potencialidades nunca efetivamente exploradas em suas reais conseqüências políticas.
Mas como Deleuze realiza seu anti-Hegelianismo generalizado? Os dois
principais textos desta operação são Nietzsche e Filosofia e Diferença e Repetição. No
primeiro, encontramos acima de tudo a redução da dialética a uma visão moral do
mundo. No segundo, a crítica da ontologia hegeliana se concentra na crítica da
contradição como figura da diferença. Eu gostaria de me restringir à segunda crítica.
"Hegel, como Aristóteles, determina a diferença pela oposição de extremos ou
opostos"48 . Essa é a meu ver a síntese da crítica deleuzeana à Hegel, ou seja, sua ideia
de contradição seria apenas uma maneira astuta de determinar a diferença a partir da
oposição dos extremos ou de atributos contrários. No fundo, ela seria uma figura da
contrariedade. Essa redução da dialética à figura da oposição ou da contrariedade é
uma forma de dizer que, na verdade, a dialética é incapaz de pensar a diferença "em si-
mesma", em sua própria força geradora. Se ela é apenas uma mera oposição dos
extremos, a diferença aparece como o desmembramento interno de uma substância,
como uma atualização de seu oposto. Essa diferença pecaria por ser uma espécie de
passagem simples da pressuposição à posição, como se estivéssemos diante de uma
atualização do vinculo a opostos que já estariam pressupostos em toda determinação
de existência. Ou seja, essa diferença não seria diferença alguma, só a maneira com que
algo atualiza o "seu outro".
Lembremos os passos da crítica de Deleuze. Ele lembra como Aristóteles afirma
que diferente é o que difere do outro com base em um elemento particular, exigindo a
existência de um elemento idêntico que constrói um campo de equivalência. Este
elemento comum pode ser gênero ou espécie. Duas coisas são diferentes em espécie
quando não há matéria comum ou geração recíproca. Elas são distintas em espécie
quando são idênticas de acordo com o gênero.
Sabemos como Aristóteles opera as determinações de uma certa hierarquia na
qual encontramos gêneros, espécies e indivíduos. Este sistema de diferenciação é como
uma árvore que vai desde a determinação mais essencial até aquela que difere de outra
apenas acidentalmente, como a diferença entre Sócrates (o filósofo) e Sócrates (o
melhor jogador de futebol do mundo depois de Pelé). Vai de predicados mais gerais a
predicados cada vez mais específicos.
É a diferença que organiza este sistema arbóreo de determinação dos seres. Mas
no nível dos indivíduos, a diferença é apenas acidental, ou seja, define a diferenciação
48
DELEUZE, Diferença e Repetição, p. 64
por acidente. No nível dos gêneros, a diferença não tem nenhum papel para Aristóteles,
pois os gêneros não têm nenhum elemento em comum para se diferenciarem. Não há
gênero de gêneros, porque ser para Aristóteles "é o que se diz de várias maneiras". Se
fosse um gênero dos gêneros, então o ser seria atributo de um gênero, da mesma forma
que um gênero é atribuído a uma espécie. Mas há uma diferença estrutural em dizer,
por exemplo, "o humano é animal" e "o animal é ser". No primeiro caso, há uma
operação de diferenciação. No segundo caso, a predicação produz uma indiferenciação.
No primeiro caso, a predicação produz uma determinação, pois permite ao sujeito se
opor ao que ele não é. No segundo caso, ele produz indeterminação, pois não há nada
que se oponha ao que o sujeito é.
Neste sentido, a diferença é gerada pelo gênero, ela expressa o poder de
diferenciação inerente ao gênero e suas divisões. Quando diferencio o gênero dos
animais em pedestre e alado, por exemplo, encontramos um princípio gerativo da
diferença, pois ela produz espécies. Neste sentido, tal diferenciação preserva uma certa
organicidade, e é por isso que Deleuze a chamará de "orgânica". Isto significa que a
diferenciação não implica na modificação do que é diferenciado, neste caso o gênero. É
por isso que Aristóteles verá a contrariedade a "diferença perfeita", pois só ela pode
expressar o poder de um sujeito de receber predicados opostos e de permanecer
substancialmente o mesmo. Ele preserva o gênero e estabiliza organicamente os lugares
que dele derivam. Por esta razão, Deleuze pode dizer: "a determinação de um conceito
próprio de diferença é confundida com a inscrição da diferença no conceito em geral"49.
O pensamento arbóreo que assim nasce implica que, em todos os níveis, as
determinações de gênero acompanharão e unificarão as diferenciações sem nunca
mudar.
Esta forma de pensar e de circular a diferença continuaria em Hegel, mas com
uma distinção fundamental. Esta distinção é o que leva Deleuze a falar de um regime
que não é mais "orgânico" de representação, mas "orgiástico". Tudo acontece como se
Hegel trouxesse a necessidade de uma relação com um elemento que parece
desestabilizar continuamente as determinações. Ele traz algo que as perturba, mas esta
perturbação não transforma as determinações, permitindo-nos passar para outra
ordem. Por exemplo, Deleuze reconhece que em Hegel a noção de limites muda:
Ela não designa mais os limites da representação finita, mas a matriz na qual a
determinação finita desaparece incessantemente e nasce, é absorvida e
desdobrada na representação orgiástica50 .
49
idem, p. 48
50
DELEUZE, idem, p. 62.
determinação finita (representação) nunca deixa de desaparecer (pois é
constantemente confrontada com o que nega) e de nascer (pois continuaria sendo a
única forma dos modos de orientação do pensamento). Isto é o que Deleuze pensa
quando insiste que a dialética só pode descobrir o infinito deixando a determinação
permanecer51 . Esta é uma crítica que já encontramos no jovem Marx. Basta lembrar
declarações como estas:
O jovem Marx diz que a superação, como uma negação que conserva, não é nada
mais que a possível forma de reconciliação própria de uma consciência teórica que deixa
objetos em vigor em vez de produzir uma ação capaz de negar a realidade concreta.
Deleuze diz que a "contradição", segundo Hegel, se resolve por si mesma e, resolvendo-
se, resolve a diferença relacionando-a a um fundamento. Ela é a forma da determinação
de interiorizar o fundamento que a nega, de passar ao seu oposto, tornando-se
momentos de um movimento que nunca passa porque não é o movimento algum.
Deleuze entende que esta forma de definir a diferença ocorre em Hegel porque
ele estaria ligado a uma antropologia, e assim encontramos uma crítica que já tinha
aparecido em Heidegger. Hegel ainda estaria ligado à antropologia da consciência, ou
seja, aos limites cognitivos da consciência psicológica. Ou seja, haveria um certo
"psicologismo" em Hegel.
Em Nietzsche e Filosofia, Deleuze explicou isto acusando a dialética de ser "uma
mistura bizarra de ontologia e antropologia, de metafísica e humanismo". Esta
insistência na dialética hegeliana como um pensamento dependente dos limites de uma
antropologia vem da compreensão da consciência-de-si como consciência vinculada às
determinações representacionais de uma consciência empírica. Pois seria apenas para
uma consciência ainda apegada à representação que qualquer coisa que não se submeta
à representação só pode ser uma contradição, ou seja, uma impossibilidade lógica de
pensamento. É por isso que Deleuze precisa afirmar que a fenomenologia hegeliana é,
no fundo, uma fenomenologia de consciência infeliz, um tema que ele encontra em Jean
Wahl.
Vamos entender melhor esta denúncia de uma antropologia no coração da
dialética:
O ser hegeliano é puro e simples nada; e o devir que este ser se forma com o
nada, ou seja, consigo mesmo, é um devir perfeitamente niilista; e a afirmação
aqui passa pela negação porque é apenas a afirmação do negativo e de seus
produtos53 .
Tal perspectiva, aberta por Deleuze, que consiste em submeter a dialética a uma crítica
moral, foi desenvolvida de forma mais sistemática por Gérard Lebrun em L'envers de la
dialectique: Hegel à la lumière de Nietzsche. Lebrun insiste que a opção hegeliana da
negatividade tem uma matriz teológica, na qual "ganhar uma determinação equivale
sempre a renunciar a uma diferença que me individualizou, tornando-se um pouco mais
meu verdadeiro ser, na medida em que eu sou um pouco menos meu ego".54 Nesta
desqualificação teológica das formas de individuação, a dialética hegeliana tentaria um
truque de mãos em que a inoculação de um certo sentimento de fraqueza no indivíduo
agarrado à existência se tornaria uma estratégia fenomenológica de elevar a dor à
condição de abertura ontológica. Assim, "em troca de seu sofrimento, é o gozo do
universal que é oferecido à consciência - um belo presente [...]". Não estamos longe de
Deleuze que vê na dialética hegeliana "a ideia do valor do sofrimento e da tristeza,
valorizando as 'paixões tristes' como um princípio prático que se manifesta na cisão, no
rasgamento".
Como podemos responder a tais acusações?
52
DELEUZE, Nietzsche et la philosophie, p.223
53
Idem, p. 210
54
LEBRUN, L’envers de la dialectique, p. 100
Aula 4
Na aula de hoje, gostaria de discutir a maneira com que a dialética mobiliza a história
como horizonte de fundamentação da crítica. Essa mobilização da história, como
gostaria de mostrar, exige uma articulação complexa entre crítica e totalidade. Pois a
história é forma de atualização de totalidades no interior do campo de experiência dos
sujeitos. A função desse recurso à totalidade no pensamento crítico está vinculada à
compreensão de que nenhum elemento, nenhum fato, nenhum dado, pode ser
analisado sem a apreensão do conjunto de relações que o determina e do qual ele faz
parte. A “história” é o nome que damos a esse conjunto de relações temporalmente
distendido e em perpétua possibilidade de atualização. A apreensão não muda apenas
a estrutura cognitiva da consciência, ela muda também seu modo de agência. Ela muda
a determinação do sujeito que age, muda a resposta para a pergunta: “quem age?” pois
faz emergir uma outra estrutura de sujeitos.
Importante lembrar isso porque, durante o século XIX, a história aparecerá para
Hegel e Marx como a destinação necessária da consciência não apenas por ela ser o
campo no qual se dá a compreensão do sentido das ações dos indivíduos. Sobretudo,
ela impedirá o isolamento da consciência na figura do indivíduo atomizado, isto ao
mostrar como a essência da consciência encontrava-se na reconciliação de seu ser com
um tempo social rememorado. Através da história, ser e tempo se reconciliariam no
interior da uma memória que deveria ser assumida reflexivamente por todo sujeito em
suas ações. Deste momento em diante, a consciência não podia mais ser, como ela era
para Descartes, simplesmente o nome deste ato de reflexão através do qual posso
apreender as operações de meu próprio pensamento. Ato através do qual poderia
encontrar as operações de meu pensar quando me volto para mim mesmo no interior
de um tempo sem história, tempo instantâneo que dura o momento de uma
enunciação, como vemos na segunda meditação cartesiana55. A partir de então, a
consciência será fundamentalmente o nome de um modo de apropriação do tempo. O
nome de tal apropriação será, exatamente, “história”. O que pode nos explicar porque
a verdadeira consciência só poderia ser uma consciência histórica.
Mas essa consciência histórica não é exatamente uma consciência que apreende
reflexivamente a história, que tudo sabe sobre o processo histórico, compreendendo a
mecânica de sua necessidade. Como disse em outras aulas, o conceito central de Hegel
não é exatamente “consciência histórica”, mas “Espírito” e é importante não
compreender Espírito como uma consciência universal hipostasiada. Há uma
transformação categorial do sujeito nessa passagem a respeito da qual devemos
entender melhor. Nesse contexto, seria o caso de lembrar que a noção de Espírito
implica três características fundamentais.
Primeiro, que a totalidade é processual, ou seja, ela está em contínua
modificação. Ela não é um conjunto estático de relações que possa ser previamente
acessado e determinado. Ela é a processualidade contínua do tempo, para frente e para
trás. Isso significa que “totalidade” será o nome que daremos para o nexo de relações
que podem ser atualizadas na determinação do sentido do presente, mas também no
redimensionamento constante do passado e na abertura do futuro.
55
Ver, a este propósito, WAHL, Jean; Du rôle de l’idée d’instant dans la philosophie de Descartes, Paris:
Alcan, 1920.,
Segundo, o Espírito implica uma operação de descentramento em relação à
consciência, o que nos obriga a melhor compreender o que pode significa auto-reflexão
nesse contexto. Por fim, essas discussões nos levam em direção a problematização da
relação entre necessidade e contingência como uma operação central da perspectiva
crítica dialética. Não é possível entender a natureza da totalidade dialética, sua
processualidade imanente sem entendermos a profunda modificação operada na noção
de contingência. Vamos analisar cada um desses pontos em nossa aula de hoje.
56
NIETZSCHE, Friedrich; Segunda consideração intempestiva, Rio de Janeiro: Relume Dumará, p. 32
57
Idem, p. 15
natureza que aparece todas as vezes que Nietzsche fala de “vida”). Em seu texto,
Nietzsche chega a lembrar como a felicidade animal está ligada à capacidade de viver,
em larga medida, de maneira a-histórica, ou seja, exercendo a força soberana do
esquecimento. O homem que lembra demais é doente: “é possível viver quase sem
lembrança e viver feliz assim, como mostra o animal; mas é absolutamente impossível
viver, em geral, sem esquecimento”58. Alguns poderiam ver nestas palavras uma
profissão de fé irracionalista e uma hipóstase da irreflexão. No entanto, Nietzsche visa
outra coisa. A seu ver, a consciência histórica é aquela que submete a vida a uma
narrativa. A guerra nem bem acabou, dirá Nietzsche, e já se transformou em cem mil
páginas impressas. Isto é um problema porque submeter a vida a uma narrativa é, ao
mesmo tempo, tomar posse dela e perdê-la.
Tomar posse da vida pois organizar a dispersão dos acontecimentos em uma
rede contínua de relações causais. Rede que chamamos normalmente de “causalidade
histórica”. A ideia de que a história contém relações causais necessárias entre fatos, que
poderiam então ser objeto de alguma forma de previsão, não aparece apenas como
garantia para que ela seja vista como uma espécie de ciência. Ela é também a base do
que entendemos por “progresso”.
Perder a vida por, aparentemente, não sermos mais capazes de pensar o que se
dá sob a forma da descontinuidade e da contingência. Não sabemos ouvir a radicalidade
da contingência em sua força de suspender e reorientar a uniformidade da continuidade
histórica. Não sabemos ouvir acontecimentos que suspendem a forma que até então foi
usada para pensar o que já ocorreu. Aparece assim uma história da qual nada surge, a
não ser histórias, mas nenhum acontecimento, no sentido que Nietzsche quer dar a esta
palavra. Talvez seja por isto que ele deva afirmar que erra: “quem quer compreender,
calcular, conceber, no instante em que deveria manter em longo abalo o
incompreensível como sublime”.59
Ou seja, através de um conceito como “vida”. Nietzsche traz a imagem de um
processo sem telos, já que a vida é, para o filósofo alemão, um contínuo jogo de forças
sem direção. Jogo cujas configurações são marcadas pela contingência e pelo acaso.
Longe da noção de natureza como sistema fechado de leis causais, Nietzsche insiste na
natureza como afirmação da crueldade da imprevisibilidade e do acontecimento. É isto
que perde, a seu ver, a submissão da vida à narrativa, operação feita pela história.
Tais perspectivas talvez sirvam para explicar porque o diagnóstico de Nietzsche
parece animar a crítica que alguns de seus leitores, como Foucault e Lyotard, farão da
história e da centralidade da noção de consciência histórica. Eles atualizarão o
desconforto de Nietzsche em relação à história, isto a fim de dar conta de um certo
desencanto contemporâneo com as promessas enunciadas pela modernidade. É de
Foucault, por exemplo, uma afirmação que simplesmente desdobra as conseqüências
da perspectiva nietzscheana:
58
Idem, p. 10
59
Idem, p. 41
diferença, restaurar seu domínio sobre elas e encontrar o que se pode chamar
sua morada60.
60
FOUCAULT, Michel; Arqueologia do saber, Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 14
61
LYOTARD, Jean-François ; La condition pos-moderne,Paris : Minuit, 1988, p. 31
em inexorabilidade daquilo que aconteceu”62. Ou seja, a filosofia hegeliana da história
seria, no fundo, a secularização da crença teológica na providência divina. Uma
providência disposta mesmo a transfigurar catástrofes em momentos necessários da
realização do espírito. Para esta filosofia, o futuro seria algo que não poderíamos perder
em hipótese alguma, mesmo que tenhamos de nos cegar para a irracionalidade do real.
A narrativa histórica fornecida por Hegel seria a figura mais bem acabada desta certeza
descrita por Foucault como “a certeza de que o tempo nada dispensará sem reconstituí-
lo em uma unidade recomposta”.
No entanto, gostaria de propor uma leitura alternativa. Ela visa mostrar como
não seria o caso de continuar esta tendência contemporânea de desqualificação da
história. Principalmente, ela visa quebrar o medo de que a história seja o nome de uma
forma insidiosa de esquecimento do acontecimento, de crença em um futuro que não
seria outra coisa que o mero decalque das expectativas depositadas no presente.
Podemos fazer isto relendo, de forma diferente, o que estava em jogo na filosofia
hegeliana da história.
Totalidade
Lukàcs não poderia ser mais claro: a atualização da totalidade como chave
explicativa dos fenômenos permitiria a dedução da figura necessária dos particulares,
caso estes realmente estivessem à altura de sua posição em uma situação dada. No
ponto de vista político-social, tal totalidade atualizada pela consciência de classe seria,
por sua vez, a condição para a transformação revolucionária da história e para a crítica
da falsa consciência imersa em seus particularismos e parcialidades. Ou seja, atualizar a
totalidade é recompor um sistema metaestável no qual todos seus lugares são
transparentes e ordenados.
No entanto, podemos encontrar em Hegel uma noção relativamente distinta de
totalidade, a saber, algo que deve ser descrito como uma processualidade em contínua
reordenação de séries de elementos anteriormente postos em relação. Neste caso, as
relações entre os elementos e momentos continuam necessárias, mas tal necessidade
62
ADORNO, Theodor; Dialética negativa,Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2008, p. 254
63
LUKÀCS, Gyorg. História e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 141.
não obedece a uma lógica determinista. Tal transfiguração exige pensar a totalidade
como um sistema aberto ao desequilíbrio periódico e infinito, pois a integração contínua
de novos elementos inicialmente experimentados como contingentes e indeterminados
reconfigura o sentido dos demais.
Isso nos permite compreender melhor a função da noção de negação
determinada, que vimos anteriormente. A negação determinada não aparece apenas
como passagem de um conteúdo a outro que visaria mostrar o caráter limitado dos
momentos parciais da experiência. Ela é principalmente a reconfiguração posterior de
conteúdos já postos tomados como conjunto. O movimento que a negação determinada
produz é um movimento de mutação para frente, mas também para trás. Adorno insiste
neste ponto ao afirmar que aquilo que Hegel denomina como síntese:
64
ADORNO, Dialética negativa, p. 276.
65
HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito II. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 139.
66
Idem, p. 140. (Tradução adaptada).
67
LEBRUN, Gérard. L’envers de la dialectique, Paris: Seuil, 2006. p. 34-6.
68
Cf. ZIZEK, Slavoj. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético. São Paulo:
Boitempo, 2013. p. 59.
apareceu como indeterminado e contingente. Pois há, no interior mesmo da ontologia
hegeliana, um risco de indeterminação que sempre devemos inicialmente assumir para
poder após integrar.
Notemos que tal processualidade contínua define a natureza infinita da
totalidade. Ela é infinita porque, por estar em processualidade contínua, suas partes
estão em reconfiguração incessante, em reversão contínua de suas posições. Ela não é
infinita por ser inumerável, mas por estar em regime de autotransformação, de negação
contínua dos limites próprios às determinações nas quais elas provisoriamente se
encarnaram. Ela é infinita por sua atualização ser, ao mesmo tempo, sua alteração. Por
sua vez, ela é totalidade porque todos os seus termos estão em relação, e todos os
termos em relação estão também em relação com o que aparece inicialmente como
não-relacionado.
Isso traz consequências importantes para pensarmos a história e seus sujeitos.
Se a processualidade é contínua, então, de certa forma, os múltiplos instantes do tempo
estão em contínua implicação. O tempo não é como uma linha reta, mas um sistema de
reinscrição contínua. Tomemos, por exemplo, uma afirmação como: “A eternidade não
está nem antes nem depois do tempo, nem antes da criação do mundo, nem depois do
mundo passar. A eternidade é o presente absoluto, o agora sem antes e depois”69. Esse
presente absoluto do qual fala Hegel e que é próprio do conceito só pode ser
compreendido se não o entendermos como uma presença absoluta. Presente absoluto
é tempo sem expectativa, sem medo nem esperança por não ter mais elevado a
contingência a processo que pode quebrar a imanência com a eternidade. Presente
absoluto não é tempo da pura presença, que implicaria absorção integral do instante
sobre si mesmo. Podemos procurar compreender sua estrutura se partimos de uma
importante afirmação de Hegel, segundo a qual
69
HEGEL, G.W.F.; Enzyklopädie, op. cit., par. 247
70
HEGEL, G.W.F.’ Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, op. cit., p. `104
Nesta sua força de colocar em simultaneidade o que até então era radicalmente
disjunto, de criar a contemporaneidade do não-contemporâneo, o conceito pode
instaurar o tempo de um presente absoluto no qual não há mais nada a esperar. É isto
que devemos ter em mente ao ler afirmações segundo as quais:
Mas o fato de não haver nada mais a esperar não significa que, a partir de agora,
acontecimentos serão desprovidos de história ou a história será desprovida de
acontecimentos. Não há nada mais a esperar porque os impossíveis podem agora se
tornar possíveis, já que relações contraditórias foram reconstruídas no interior de um
mesmo processo em curso. Neste sentido, podemos lembrar do que está pressuposto
na própria construção hegeliana do conceito de “história universal”, desta história que
é o progresso na consciência da liberdade.
A aceitação de algo como uma “história universal” parece implicar que a
multiplicidade de experiências históricas e temporais deva se submeter a uma medida
única de tempo. Como dirá Koselleck, trata-se da consequência necessária da definição
da história como “coletivo singular”. Definição que teria permitido que “se atribuísse à
história aquela força que reside no interior de cada acontecimento que afeta a
humanidade, aquele poder que a tudo reúne e impulsiona por meio de um plano, oculto
ou manifesto, um poder frente ao qual o homem pôde acreditar-se responsável ou
mesmo em cujo nome pôde acreditar estar agindo”72. Parece ser de fato algo desta
natureza que Hegel teria em mente ao falar do espírito do mundo como “alma interior
de todos os indivíduos”, como um corpo social unificado na multiplicidade de seus
espaços nacionais pela força da Providência.
No entanto, a figura do círculo de degraus, ao mesmo tempo simultâneos e
passados, não permite pensar unificações temporais redutíveis a um plano geral unívoco
a partir do qual todos os devires se extrairiam. Melhor pensar no advento de um tempo
definido como a relação entre tempos que são incomensuráveis sem serem indiferentes
entre si. Tal concepção de tempo não é sem relação com o fato dos espaços nacionais
animados pelo espírito do mundo não poderem, segundo Hegel, ser submetidos a um
plano comum de paz eterna, já que o campo das relações entre os espaços nacionais
está sempre sujeito a decisões soberanas marcadas pela contingência. Os espaços
nacionais que compõem a história universal entram em relação sem garantia alguma de
paz e estabilidade73.
Da mesma forma, tempos incomensuráveis mas não indiferentes interpenetram-
se em um processo contínuo de mutação. Algo muito diferente da universalidade
produzida pelo primado do tempo homogêneo, mensurável e abstrato da produção
71
HEGEL, G.W.F.; Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte – Band 1: Die Vernunft in der
Geschichte, Hamburgo : Felix Meiner, 1994, p. 33
72
KOSELLECK, idem, p. 52
73
Cf. a conhecida crítica de Hegel à paz perpétua de Kant em HEGEL, G.W.F.; Grundlinien der Philosophie
des Recht, Frankfurt: Suhrkamp, 1986, par. 333
capitalista global, tão bem descrita por Marx. Neste sentido, falar em “história universal”
implica simplesmente defender que temporalidades incomensuráveis não são
indiferentes. Tal interpenetração de temporalidades incomensuráveis significa abertura
constante àquilo que não se submete à forma previamente estabilizada do tempo, o que
faz da totalidade representada pela história universal, do presente absoluto que ela
instaura, uma processualidade em contínua reordenação, por acontecimentos
contingentes, da forma das séries de elementos anteriormente postos em relação. Daí
sua plasticidade cambiante.
Esta plasticidade é incompreensível do ponto de vista da consciência e dos
indivíduos. Lembremos, por exemplo, de uma afirmação decisiva de Hegel como:
Na história mundial, através das ações dos homens, é produzido em geral algo
outro do que visam e alcançam, do que imediatamente sabem e querem. Eles
realizam seus interesses, mas com isto é produzido algo outro que permanece
no interior, algo não presente em sua consciência e em sua intenção74.
Ou seja, a história é feita por ações nas quais os sujeitos não se enxergam, nas
quais eles não se compreendem. Há uma dimensão aparentemente involuntária que
constitui o campo da história. Ou, melhor dizendo, há um motor da história que para a
consciência individual aparecerá necessariamente como algo da ordem do inconsciente.
É a confiança neste involuntário, neste inconsciente que constitui os “homens
históricos”. Ao invés de uma “consciência histórica”, seria o caso de talvez falar de um
“inconsciente histórico”. Algo no mínimo estranho se continuarmos aceitando que há
uma espécie de reconciliação entre consciência e tempo rememorado no interior da
história. Mas isso perde seu estranhamento se lembrarmos como se trata de uma
reconciliação peculiar na qual a consciência deve se reconhecer na dimensão daquilo
que ela mesma não enxerga, pois se trata de reconciliação com aquilo com o qual ela
não saberia como dispor, não saberia como colocar diante de si em um regime de
disponibilidade. De certa forma, sujeitos históricos não estão sob a jurisdição de si
mesmos, pois estão continuamente despossuídos por suas próprias ações (e, a sua
maneira, poderíamos dizer que Hegel leva ao extremo esta contradição: ser despossuído
pelo que me é próprio). Ao levarmos isto em conta, podemos compreender, entre outras
coisas, porque não são os indivíduos, aferrados na finitude de seus sistemas particulares
de interesses, aqueles que fazem a história. Por isto, não são eles que podem narrá-la.
Para Hegel, quem narra a história não são os homens, mas o Espírito
Contingência
75
HEGEL, G.W.F. ; Wissenschaft der Logik II, Frankfurt : Suhrkamp, 1986, p. 230
inessenciais. Hegel não pode, portanto, aceitar a distinção estrita entre contingência e
necessidade. Na verdade, ele tem que descrever como estas duas categorias se
dissolvem, como uma passa para a outra. Não é correto dizer que tudo é contingente,
nem dizer que tudo é necessário, nem dizer que há o que é contingente e há o que é
necessário. Mais uma vez, a dialética insiste que nossa gramática filosófica é ruim na
descrição de processos concretos. Simplesmente não podemos descrever movimentos
e transformações. Pois teríamos que descrever como a contingência passa em
necessidade e como a necessidade passa em contingência. Contingência e necessidade
são momentos do mesmo movimento.
Hegel determina então inicialmente a contingência como uma "necessidade
exterior"76, uma vez que é um acontecimento que parece ser causado por algo outro
que si mesmo, não estando integrado na imanência de uma "necessidade interior" que
estabelece suas próprias circunstâncias. Em outras palavras, o "fundamento de seu ser
não está em si mesmo, mas em outro"77, confundindo-se assim com a possibilidade
pura, com o poder dser sempre outro, como diria Hegel. No entanto, esta exterioridade
não é um erro que devemos negar abstratamente, mas um momento necessário
resultante do fato da imanência não ser imediatamente posta, e sim construída
retroativamente a partir da liberalidade da razão em procurar integrar retroativamente
o que ocorreu a partir de eventos contingentes. Assim, é necessário compreender, e
esta é a questão fundamental para Hegel, como a "efetividade imediata" aqui
representada pela contingência pode ser transformada em um pressuposto
(Voraussetzung) para o surgimento de uma "nova efetividade", fazendo da contingência
um momento de "auto-movimento da forma". Esta liberalidade exige, no final, pensar a
totalidade como um sistema aberto onde a integração contínua de novos eventos
experimentados inicialmente como contingentes e indeterminados reconfigura o
significado de outros eventos previamente arranjados. E isto é a história.
76
HEGEL, Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte – Band 1: Die Vernunft in der Geschichte,
op. cit., p. 29
77
HEGEL, Encyclopédie, op. cit., par. 145
Aula 6
Então as correntes caem; o louco é libertado. E, nesse instante, ele recupera sua
razão. Ou melhor, não: não é a razão que reaparece em si mesma e para si
mesma; é o tipo social que há muito adormeceu sob a loucura, e que se ergue
inteiro, em perfeita conformidade com o que representa, sem alteração ou
mágoa. É como se o louco, livre da animalidade a que as correntes o
constrangiam, se unisse à humanidade apenas no tipo social.80
Pois a liberdade está aqui ligada à assunção de tipos sociais endossados pelo
discurso médico. A cura não seria outra coisa senão: "a reedição de uma sociedade sobre
o tema da conformidade aos tipos". Isto explica por que Foucault dirá que na realidade
esta liberdade é a internalização da alienação. É um mito que se faz passar: "por
libertação de uma verdade o que é a reconstituição de uma moral, por cura espontânea
da loucura o que é talvez uma inserção secreta em uma realidade artificial". Mas não
existiria mito maior que a crença na natureza normativa de uma unidade funcional de
personalidade, um mito que Hegel parece compartilhar ao falar da contradição entre a
particularidade da determinação corporal e a totalidade da consciência.
Esta não é exatamente a minha leitura de Hegel. Pois se a experiência social não
pode deixar de entender a loucura como um poder nela inscrito, é porque haverá um
movimento necessário no qual a razão deve, em algum momento, ser indistinguível da
loucura. No caminho para o conhecimento da verdade, a consciência deve se
desesperar, e não por acaso, Hegel dirá que, no caminho para o absoluto, a consciência
deve encontrar-se no "dilaceramento absoluto" [Zerrissenheit]. O termo não é usado
aqui por acaso; "Zerrissenheit" será usado em vários pontos em que Hegel descrever
loucura e doença. Da mesma forma, a consciência deve se alienar e se tornar outra
(Hegel até fala de estar fora de si mesmo). Mais uma vez, o termo não deixa de ter
ressonâncias clínicas.
80
FOUCAULT; Histoire de la folie, p. 594
Estes processos indicam que existe um ponto de distinção entre razão e loucura
cujo reconhecimento é uma condição para a crítica do senso comum e das
representações naturais que servem como motor da dialética. A dialética hegeliana, a
seu modo, será constituída por uma "escuta da loucura". Uma escuta que produz uma
transformação nas estruturas do pensamento. Como se a dialética fosse uma espécie de
resposta, talvez a única resposta possível, ao que a loucura expõe. A dialética está muito
próxima da loucura para ser seu simples silenciamento.
É possível dizer isto porque desde a constituição da categorias psiquiátricas de
esquizofrenia e demência precoce, a contradição é entendida como um sintoma
importante de dissociação. Neste sentido, a psiquiatria manteve a proibição aristotélica
de pensar a existência de objetos a partir de proposições contraditórias. A contradição
só pode indicar um objeto vazio dentro do qual a loucura aparece como "ausência de
obra".
No entanto, o renascimento da dialética a partir de Hegel foi baseado, entre
outras coisas, em uma junção entre contradição e infinito que poderia levar o
pensamento além dos limites da representação. Nesta estratégia, há uma reavaliação
da relação entre a razão e a loucura. Se, como Hegel disse, a dialética é "o espírito da
contradição organizada", então esta organização da contradição dá à loucura um lugar
interno no movimento do conceito. Uma internalização da loucura que não é
simplesmente a integração da alteridade, mas sobretudo uma estratégia singular para
quebrar a finitude e a representação. Como se a dialética fosse constituída por uma
passagem para a loucura, como se fosse uma "cura" cujo processo é também uma
dissolução tanto da própria existência da "doença" quanto da "cura".
Hegel fala aqui de uma crise que viveu antes de escrever a Fenomenologia do Espírito.
A descrição de suas formas de sofrimento, seu caos, seu ponto de contração noturno,
seus abismos e luzes que projetam apenas reflexos enganosos, será retomada em vários
81
HEGEL, Correspondência I, p. 281
pontos quando ele discutir as formas de loucura na Fenomenologia e na Enciclopédia.
Há pelo menos dois momentos explícitos onde a loucura irrompe na Fenomenologia: o
primeiro é uma das figuras da razão ativa, a saber, "a lei do coração e o delírio da
presunção". O segundo está na seção do Espírito e é chamado de "a bela alma".
Antes de mais nada, enfatizemos como estas duas figuras são representações
do colapso da ação devido à incapacidade do sujeito orientar socialmente sua revolta.
São figuras de posições de revolta em relação ao curso do mundo, mas de revoltas
estéreis. Como se a loucura fosse, no sentido mais profundo da palavra, não uma
categoria psicológica, mas uma categoria de ação. Isto pode explicar porque as
discussões sobre a loucura na Enciclopédia são encontradas na seção "antropologia",
não na seção "psicologia".
O que caracteriza a loucura não é o caos, o ponto de contração noturna do ser,
luzes enganosas ou desgosto do coração. Em certo sentido, todos estes processos estão
presentes no movimento formativo da consciência. O que diferencia Bildung e
Verrückheit, é de certa forma uma simples questão de fixação, da impossibilidade de
mediação, da paralisia do movimento que produz uma profunda incapacidade prática,
impossibilitada de operar através de metamorfoses.
Eu gostaria de insistir neste ponto. Pois há uma dimensão fundamental da
revolta no interior do sofrimento que está na raiz da loucura. Uma revolta que se
expressa nas três dimensões do que geralmente entendemos por forma de vida, ou seja,
desejo, linguagem e trabalho. Por esta razão, desde o início, a expressão do desejo, da
linguagem e da ação na loucura sempre será marcada pela contradição. Como se a
própria forma da inexistência de um objeto (ou seja, a contradição) proporcionasse a
imagem dessa existência que não aceita sua inscrição nas formas sociais atuais. Neste
sentido, não será por acaso que a loucura e o desejo de reforma social estarão tão
interligados em nossa imaginação.
Observem, por exemplo, o que Hegel diz sobre a "lei do coração". Ele está
claramente pensando nas figuras literárias de reformadores como Karl Moor,
personagem de Os bandoleiros, de Schiller, e que passam por uma inversão que é a
própria forma de sua inação. Moor quer realizar o projeto romântico de unir a lei ao
coração, para que a comunidade encontre seu fundamento na autenticidade dos
sentimentos. Ele quer falar ao coração dos homens, os mesmos corações que são
partidos pelas convenções sociais. Entretanto, sua ação, como abstração de toda
diferença, como expressão imediata da certeza da autotransparência, verá fracassar
toda tentativa de transformação, verá seu desejo de reforma rejeitado por todos. Hegel
afirma assim que a lei do coração, na verdade, acaba por projetar a subversão que ela
mesma é. Na medida em que a consciência tem o racional dentro de si mesma, ela tem
a rede de relações sociais dentro de si mesma. Isto não poderia ser de outra forma, uma
vez que esta rede é constitutiva dela. A consciência-de-si é, para Hegel, um conceito
relacional desde sua origem, não um conceito mentalista.
Por causa disso, a consciência que age pode tocar outros corações. Se isto não
acontece, é porque ela está realmente lutando contra si mesma sem ser capaz de
interiorizar esta luta. Ela está dividida entre a consciência geral e a determinação
privada, e esta divisão é sua insensatez e a base de seu comportamento inefetivo. O que
ela recebe do Outro, seu isolamento, é a prova da inessencialidade de sua posição. Ela
recebe sua própria mensagem do Outro de forma invertida. Por esta razão, ela faz de
seu isolamento a fonte de sua violência. Hegel chega ao ponto de dizer que sua fúria
contra o mundo é uma fúria para se preservar de sua própria destruição. A loucura da
consciência não está no fato de estar enganada, mas na impossibilidade de
compreender que o caminho do erro é o caminho da verdade:
De fato, a verdade é, antes de tudo, para o coração, a lei do coração - isto é, algo
apenas destinado, que, ao contrário da ordem constituída, não sustentou a luz
do dia, mas que imediatamente exposta a essa luz desmorona. Esta lei do
coração deveria ter realidade efetiva; então a lei como realidade efetiva, como
ordem válida, é realmente seu objetivo e essência, mas imediatamente, por
outro lado, a realidade efetiva, ou seja, propriamente a lei como ordem válida,
se apresenta a este coração como o nada82 .
Falta-lhe a força para se alienar, a força para se fazer uma coisa e para suportar
o ser. A consciência vive na angústia de manchar o esplendor de sua
interioridade pela ação e pelo ser, e para preservar a pureza de seu coração foge
do contato da eficácia e persiste na impotência teimosa (...) nesta pureza
transparente de seus momentos ela se torna uma bela alma infeliz, como é
chamada, sua luz se extingue gradualmente em si mesma, e se desvanece como
um vapor sem forma que se dissolve no ar83 .
82
HEGEL, Fenomenologia, p. 236 (p. 310)
83
Idem, p. 189
(Spaltung). Em seu Lehrbuch der Psychatrie, organizado por seu filho Manfred Bleuler,
encontramos definições de esquizofrenia como sendo relacionadas a uma perturbação
elementar de "unidade enfraquecida, fragmentação e dissociação de pensamento,
sentimento e vontade, bem como do sentimento subjetivo de personalidade". Desta
forma, a esquizofrenia indicava a falta de unidade e ordem de todos os processos
psíquicos, o que necessariamente levava a isso: "uma imagem do mundo construída pela
essência contraditória e pelos desejos e medos contraditórios do paciente". Esta
estrutura contraditória da vida psíquica, expressa na afetividade, no pensamento e na
identidade pessoal, foi a principal expressão da quebra da normatividade que define o
comportamento normal, assim como do enfraquecimento da capacidade de síntese do
Eu.
Neste sentido, é importante entender como uma estrutura tão contraditória
marcou, na maioria dos casos, a perda da unidade funcional da pessoa e as expectativas
de autonomia. Em 1919, o psicanalista Victor Tausk comparou a esquizofrenia à
presença de uma "máquina influenciadora" (Beeinflussungsparte), como se o sujeito
fosse guiado em suas ações e emoções por uma máquina dissociada de si mesmo e capaz
de produzir uma imposição de pensamentos, sugestões, sensações que expressam a
presença de uma alteridade profunda no sujeito. Ao mesmo tempo, psiquiatras como
Gaetan de Clerambaud insistiram em associar a esquizofrenia ao "automatismo
mental", enfatizando novamente a dissociação dentro da unidade sintética do Eu. Já
encontramos esta compreensão da centralidade do problema da alienação na definição
Kraepeliana de demência precoce. Recordo esta história de categorias clínicas para
enfatizar a particularidade da estratégia de Hegel. Isto envolve uma mudança radical no
que entendemos por formas normais de pensamento.
No começo dos anos setenta, em meio à lutas contra o poder psiquiátrico e pela auto-
gestão dos próprios pacientes, surge na Alemanha o Coletivo Socialista de Pacientes
(SPK). Tal experiência ocorreu na Clínica da Universidade de Heidelberg e chegou a
contar com 500 pacientes. O Coletivo será desalojado das dependências da
Universidade através de uma ação da polícia que terminará em batalha campal com os
pacientes e médicos. A ação policial temia relações entre o Coletivo e o grupo de ação
direta Baader-Meinhof: grupo armado que se desenvolveu a partir da radicalização do
movimento estudantil. Ao que tudo indica, as relações não existiam. Os responsáveis do
SPK acabarão presos por acusações de atividades de suporte à ação direta.
O Coletivo Socialista de Pacientes procurou desenvolver um tipo de abordagem
clínica onde a referência à dialética hegeliana era muito presente, mostrando com isso
um uso profundo da dialética como arma de combate. Suas elaborações partem de
afirmações como:
Se eles podem afirmar que a doença seria o modo de existência capitalista é porque ela
aparece como a única forma de vida possível no interior do capitalismo. O SPK procurava
levar às últimas consequências a compreensão de que o capitalismo é indissociável da
produção de modalidades de sofrimento social. Já em Marx encontramos uma relação
indissolúvel entre capitalismo e uma modalidade de sofrimento social descrita como
alienação. Alienação esta que não toca apenas a dimensão do mundo do trabalho, mas
também do desejo, do corpo, da linguagem.
Há outra forma de sofrimento social que aparecerá nos textos de Marx. Nós a
encontraremos em suas descrições sobre o fetichismo como característica fundamental
das relações intersubjetivas no capitalismo. Fetichismo este que produz uma
“reificação”, ou seja, a coisificação dos sujeitos, sua submissão a padrões de
comportamento e medida derivado das coisas, assim como a naturalização de processos
que são frutos de relações sociais. O psiquiatra Joseph Gabel chegará mesmo a utilizar
o conceito de reificação para descrever algumas características fundamentais das
relações aos objetos, ao espaço e ao tempo na esquizofrenia.
Mas se a doença, sob suas formas de alienação, fetichismo e reificação, é a única
forma de vida sob o capitalismo, então há de se tirar as consequências efetivas dessa
proposição e assumir que também o psiquiatra é um doente como todo mundo. A lógica
da cura da qual ele é o veículo também é parte constitutiva da doença. Pois a cura tal
como pensada até agora seria apenas a capacidade de continuar produzindo mesmo
estando doente, mesmo naturalizando a alienação imanente a nossas sociedades. Daí a
noção de que o sistema de saúde simplesmente define como doente aquele que não
dispõe mais de sua mercadoria força-de-trabalho. Aquele que perdeu sua última
propriedade deixa de ser sujeito de direito. Como se ser saudável significasse, no final
das contas, ser explorável. Isto leva o SPK a lembrar que: “as relações capitalistas de
produção implicam a transformação do trabalho vivo em matéria morta (mercadoria,
capital)”. Voltar a tal cadeia de produção só pode implicar assumir uma espécie de
mortificação. Por isto que eles podem chegar a afirmar que a saúde não seria outra coisa
que uma “quimera biológico-fascista”. Só aqueles completamente adaptados à doença
podem ser saudáveis no interior de uma sociedade cujo funcionamento normal é a
perpetuação de formas de sofrimento social. Daí afirmações como:
Através da doença e do status de paciente, o indivíduo tem a experiência urgente
e focalizada do seu papel de total objeto desamparado, isolado e sem direitos.
Sua incapacidade de agir torna-se certeza sensível quando surge a necessidade
de tratamento. Na situação terapêutica, uma tarefa essencial do médico em seu
papel de agente das relações sociais existentes é determinar de modo constante
e sem brechas a relação médico-paciente ao constituir no paciente a necessidade
de tratamento. O modo como a relação médico-paciente está institucionalmente
enraizada e organizada garante, portanto, a repressão permanente do protesto
contido no momento progressista da doença e da sua materialização sob a forma
de resistência. Isso garante a conservação do papel de objeto patogênico no
estado agudo da doença. Isso significa, portanto, que a relação médico-paciente
característica de todo o sistema de saúde é um instrumento de repressão de
primeira ordem para o capital e o Estado.
Mas, se o SPK poderá afirmar que a doença é a vida que se quebrou, a vida que
contradiz a si mesma é porque: “A doença entendida como momento contraditório da
vida porta em si o germe e a energia da sua própria negação, a vontade de viver”. Ela é
uma negação determinada no sentido mais claramente dialético do termo. Sua negação
da vida é forma de superação dessa configuração determinada de vida. Há algo de
revolta profunda na doença e por isto faz-se necessária falar de “momento
progressista” da doença. Isto implica admitir que os pacientes, em sua revolta,
reivindicam obscuramente outra sociedade. O que explica que mesmo o sintoma será
definido como a manifestação da essência da doença como protesto e inibição do
protesto. Esta contradição posta é a definição mesma da doença. O tratamento, neste
sentido, não visa resolver a contradição, eliminando um dos seus polos, mas fazer dessa
contradição um processo de transformação, como poderíamos pensar se formos
consequentes com a noção dialética de movimento. Ou seja, o único tratamento
possível será a criação das condições para que um processo efetivo de transformação
das causas sociais da doença mental possa ocorrer. Tais coletivos, como o Coletivo
Socialista de Pacientes, não visam curar, já que a cura é compreendida como uma forma
de reintegração. Trata-se, na verdade, e este será o principal lema de suas ações, de
transformar a doença em uma arma. Fazer da doença mental uma força revolucionária.
Eles chegam a falar do abandono do desejo ilusório de “saúde” em nome da consciência
da necessidade coletiva de transformação.
Para tanto, é necessário inicialmente que tais pacientes estejam juntos,
constituindo-se em coletivos para que tal reivindicação expressa através da doença
deixe de ser obscura. Pois a condição de indivíduo implica isolamento, implica aceitar os
modos alienantes de individuação que fazem parte constitutiva da sociedade capitalista,
significa aceitar as formas de visibilidade e existência que aparecem como as únicas
possíveis entre nós, como a forma efetiva do nosso sofrimento. Por isto, só uma ação
coletiva pode abrir o espaço para uma transformação efetiva da doença em arma.
Por outro lado, constituir-se em coletivo implica em uma modificação de
estrutura bastante concreta. Significa, por exemplo, assumir o controle da própria
assistência médica dispensada, tomar posse do dinheiro da clínica, medicar a si mesmo.
Em um sentido absolutamente concreto, os pacientes se transformam nos
administradores do hospital. Esta mudança de posição dos pacientes, de pacientes
passivos a sujeitos ativos, visava realizar aquilo que o SPK descrevia como o resultado
de um processo efetivo de transformação, a saber: emancipação, cooperação,
solidariedade e identidade política (compreendida como unidade entre necessidade e
luta política). Para tanto, a unidade de trabalho terapêutico será definida como
“agitação”, que pode se dar como agitação individual ou agitação em grupo.
Tal agitação obedece ao que eles descreviam como “expansionismo multi-focal”.
Na verdade, o termo visa dar conta de duas dimensões de tal processo. O paciente pode
se transformar em ponto focal que expressa as contradições sociais presentes nos
horizontes institucionais da vida social (na família, na residência, no local de trabalho,
entre outros). Ele também pode se tornar um foco não só no sentido ótico do que amplia
uma dimensão normalmente não vista, mas no sentido de um foco de incêndio da
consciência revolucionária e da atividade revolucionária. Pois a distinção entre
“problemas privados” e “vida política” não pode ser sustentada. O que significa, neste
caso, compreensão da dimensão política do sofrimento psíquico. Foco de incêndio esse
que se produz através da compreensão de que:
Na aula de hoje, iniciaremos nossa discussão sobre a dialética em Marx. Como vocês
sabem, a discussão sobre a natureza da relação entre a dialética em Hegel e Marx é uma
das questões mais controversas na história da filosofia do século XX. Durante as
primeiras décadas do século XX, a relação entre Marx e Hegel foi percebida como
marcada por uma profunda ruptura. Essa leitura muda principalmente a partir de 1932,
data da primeira publicação dos Manuscritos de 1844, um texto da juventude de Marx
no qual encontramos os fundamentos hegelianos da crítica marxista da alienação e seu
papel central na estruturação do projeto crítico de Marx. Já antes da edição dos
Manuscritos, Gyorg Lukacs havia publicado, em 1923, História e consciência de classe:
um livro que sistematiza uma leitura de Marx na qual ele aparece como a realização
crítica da filosofia hegeliana, ou seja, não uma continuação, mas uma conservação crítica
da dialética. A leitura de Lukacs terá uma influência considerável sobre o que
tenderemos a chamar de "marxismo ocidental", em especial a Escola de Frankfurt. Essa
noção de uma relação orgânica entre Hegel e Marx seria encontrada em outros leitores,
como Lênin, e estará presente no Brasil em autores como Ruy Fausto, José Arthur
Giannoti e Paulo Arantes. Podemos dizer que ela é a base de certa tradição marxista
brasileira.
Entretanto, várias leituras defenderão uma ruptura estrita entre a dialética de
Hegel e a dialética de Marx. Essas leituras podem admitir, por exemplo, a defesa de um
verdadeiro corte epistemológico entre Hegel e Marx, como vemos em Louis Althusser.
Uma ruptura que percorreria os próprios textos de Marx, estabelecendo uma distinção
radical entre o jovem Marx (aquele que se estende até A Ideologia Alemã e que ainda
se supõe marcado por um historicismo humanista) e o Marx maduro, cujo paradigma
maior é O Capital. A leitura de Althusser foi, por sua vez, extremamente influente na
França. A ideia de um antihegelianismo estrutural em Marx chegará a não
althusserianos, como os marxistas ligados ao autonomismo, como Antonio Negri. No
entanto, o operatismo de Mario Tronti será fiel ao pensamento da articulação entre
Hegel e Marx.
Althusser insiste que Marx teria desenvolvido um anti-humanismo teórico que
estaria em desacordo com seu humanismo inicial, marcado principalmente por
Feuerbach e certa noção de essência humana como condição para a crítica da alienação.
Essa noção de essência humana universal estaria em conceitos como Gattungswesen, o
ser genérico. De acordo com Althusser, tal essência será "o atributo dos indivíduos
tomados isoladamente que são seus verdadeiros sujeitos". Althusser dirá que uma
ruptura epistemológica divide o materialismo histórico dos primeiros textos de um
materialismo dialético em que o sujeito são as formas sociais, em que a história não é
mais a história de um espírito que tenta retornar de sua alienação de si.
O que eu gostaria de fazer nesta parte do curso é reavaliar alguns aspectos dessa
relação entre Marx e Hegel, a fim de desenvolver a tese de que a dialética muda de
acordo com a configuração histórica na qual se encontra e de acordo com as
possibilidades práticas abertas por tal configuração histórica. Para fazer isso,
começaremos com o jovem Marx. Começaremos com as próprias críticas de Marx a
Hegel, a fim de avaliar posteriormente como o jovem Marx tenta pensar a relação entre
crítica social e a dialética. Nossos dois textos básicos serão os Manuscritos de 1844 e A
Ideologia Alemã. Isso nos permitirá entender como a dialética se mostra claramente em
Marx como um diagnóstico das modalidades do sofrimento social. Sua base, e isso ficará
claro com Marx, é a compreensão da alienação como fundamento para a crítica. A crítica
parte de diagnósticos de sofrimento social, diagnósticos de uma sociedade em crise e
que faz dessa crise uma condição normal de seu funcionamento. Uma crise que se
manifesta no sofrimento social que marca a trajetória de todos os sujeitos.
Superar tem na língua alemã o sentido duplo pelo qual significa tanto guardar,
conservar, quanto, ao mesmo tempo, cessar, por fim. O guardar mesmo já
encerra em si o negativo, que algo é subtraído a sua imediatidade e, com isso, a
um ser aí aberto a influências externas, a fim de conserva-lo. Assim, o superado
é, ao mesmo tempo, um guardado, que apenas perdeu sua imediatidade, mas,
por isso, não é aniquilado84 .
Marx diz que a Aufhebung hegeliana, aquela negação que conserva, nada mais é do que
a possível forma de reconciliação própria de uma consciência teórica que deixa os
objetos em vigor em vez de produzir uma ação capaz de negar sua realidade concreta.
O direito privado, a moral, a família permanecem em vigor, mas sob a forma de
espectros cuja realidade é proporcionada por sua possível remissão ao conceito. A
moral, a família, a sociedade civil e o direito privado não terão realidade em si mesmos,
embora permaneçam em vigor. Eles serão apenas momentos da ideia, serão figurações
incompletas da ideia e sua realidade só será vista sob o signo da incompletude. Mas, e
esse é o ponto mais importante, essa incompletude não levará a uma mudança na
ordem do existente. No máximo, levará a uma mudança na forma como a existência é
interpretada, mas essa mudança na interpretação não produzirá uma mudança nas
condições reais de reprodução das realidades anteriormente criticadas.
Vamos tentar entender melhor o contexto histórico da crítica de Marx. Marx
afirma que essa superação hegeliana seria, ao mesmo tempo, um ato de desrealização
das relações concretas, porque exporia essas relações em sua parcialidade e não-
verdade. Mas ela seria também a confirmação de uma existência reduzida à condição
de alegoria, de aparência, uma vez que a superação não tem o poder de produzir outra
realidade. No máximo, ela pode ressignificá-las. Mas como a Ideia é apenas a força da
negatividade, a reinscrição produzida pela consciência é apenas a elevação do existente
à condição de corporificação das negações, estaríamos vendo a criação de um mundo
não muito diferente daquele que Marx encontrava quando se deparava com a realidade
alemã do século XIX e seus complexos sistemas de compensação da paralisia social e seu
desenvolvimento tardio.
Nesse ponto, devemos nos lembrar da importância do diagnóstico histórico do
atraso da situação alemã e de sua dificuldade de transformação social, que é a base da
crítica marxista a Hegel. O jovem Marx insistia que, após a crítica da religião, era tarefa
da filosofia expor a autoalienação humana em suas formas não sagradas, ligadas aos
modos de reprodução material da vida: "a crítica do céu se torna a crítica da terra, a
crítica da religião se torna a crítica do direito, a crítica da teologia se torna a crítica da
85
Idem, p. 130
política"
Essa é uma forma de radicalização da proposição kantiana sobre a era moderna
como uma era da crítica. No entanto, em uma Alemanha atrasada em relação aos
processos de integração na dinâmica do liberalismo econômico e da sociedade burguesa
de livre mercado, assombrada pela lacuna entre a ideia e a realidade nacional, isso não
poderia acontecer. No caso alemão, a filosofia não teria se movido para a crítica da terra,
não teria produzido uma revolução como no caso francês, onde a filosofia do Iluminismo
é uma das bases dos processos revolucionários. De fato, ela serviu para construir uma
mitologia cuja verdadeira função era justificar intelectualmente a natureza do atraso
social, bloqueando assim a imaginação política. Os alemães seriam filósofos
contemporâneos do presente sem serem contemporâneos históricos da realidade atual.
Pois os alemães simplesmente teriam pensado o que os outros pensaram e, por essa
razão, sempre foram obrigados a tentar resolver a lacuna entre a ideia e a realidade com
base em reconciliações puramente formais.
É esse diagnóstico histórico que leva Marx a entender a negatividade hegeliana
simplesmente como uma força de abstração cuja função estaria ligada a uma dinâmica
compensatória de paralisia social. Essa negatividade seria a forma pela qual as
determinações abstratas são fixadas como o verdadeiro conteúdo das efetividades
postuladas, preservando as efetividades em crise. Nesse sentido, é uma forma de
criação de abstrações concretas. A dialética hegeliana seria a estilização intelectual de
uma crise perpétua.
Contra isso, o jovem Marx quer produzir uma reorientação da dialética, sem de fato
abandoná-la. Ele acredita que a dialética pode nos ajudar a entender os processos
revolucionários que estão por vir (e que de fato virão em 1848 e, inesperadamente, em
1871), mas, para isso, será necessário primeiro defender a irredutibilidade das
transformações que funcionam por indução material da sensibilidade. Podemos falar
em indução material da sensibilidade porque haveria uma síntese entre o sujeito e o
objeto que passa pela sensibilidade e que só pode ser transformada pela sensibilidade,
transformada pela indução material que opera no nível da sensibilidade. Nesse sentido,
falaremos da indução material da sensibilidade, porque tudo se passa como se apenas
a modificação das configurações materiais pudesse de fato mudar o modo como a
experiência é determinada, permitindo a emancipação.
Trata-se, portanto, de defender a necessidade de refletir sobre as
transformações provenientes do mundo material e suas formas de reprodução, que
liberam a sensibilidade de sua submissão à abstração. Será necessário, portanto, colocar
o problema do trabalho alienado no centro da crítica. Pois o trabalho será a forma
fundamental de sujeição da sensibilidade devido a submissão da atividade humana à
abstração da troca, condição fundamental para a produção de valor. Assim, a liberação
do trabalho alienado não só provocará uma reorientação do processo de produção de
riqueza, mas permitirá a reconstrução do que realmente significa "riqueza". Uma
riqueza que não será a medida contábil do valor que busca produzir mais valor, mas será
a possibilidade de prazer descrita pelo jovem Marx em passagens como:
O capitalista industrial também goza, sem dúvida. De modo algum ele volta à
simplicidade da necessidade, mas o seu gozo é coisa acessória, repouso,
subordinado à produção, e com isto gozo calculado, e assim ele mesmo
econômico, pois ele lança o seu gozo nos custos do capital, e seu gozo só pode
lhe custar tanto, que o que ele lhe consumiu venha a ser reposto com lucro
através da reprodução do capital. O gozo é assim subordinado ao capital, o
indivíduo que goza ao indivíduo que capitaliza, enquanto antes havia o
contrário87.
Esse gozo de acordo com a economia política, o gozo subordinado ao capital é, de fato,
a figura do processo de alienação do humano no capitalista. Em outras palavras, todas
as figuras possíveis do humano em nossas sociedades de trabalho (trabalhador,
capitalista) estarão sujeitas à alienação.
Nesse contexto, Marx parte da tentativa de Feuerbach de recuperar a
centralidade da sensibilidade, "de colocar a receptividade sensorial novamente no início
da filosofia", embora, contra Feuerbach, ele nos lembre que a sensibilidade e suas
formas são o resultado da sedimentação de experiências sócio-históricas. Mas essa
dimensão não pode ser modificada simplesmente apelando à reflexão e à historicização.
Ela exige uma modificação material. De fato, essa é uma consequência da compreensão
do que "materialismo" significa: reconhecer que a própria sensibilidade, em seus
regimes de relação e afeto, produz formas de pensamento. Não é apenas a recepção da
matéria inerte que toma forma por meio da espontaneidade do entendimento e sua
submissão categorial. Portanto, uma mudança na estrutura da sensibilidade é uma
revolução em relação à natureza, ao mundo dos homens e a si mesmo. Isso nos leva a
argumentar que a transformação social também deve ser vista como uma "revolução
total nos modos de sensação", como disse Schiller. Mais do que qualquer outra coisa,
esse ponto define a distância entre Hegel e Marx.
É nesse espírito que os Manuscritos de 1844 devem ser lidos. Como veremos,
Marx entendeu que uma virada materialista da dialética deve começar com uma
reflexão sobre as estruturas materiais da alienação e as condições de sua superação. O
86
MARX, Karl; Manuscripts of 1844, p. 151
87
MARX, Karl; Manuscritos, p. 148 [tradução completamente modificada, já que o original é
imprestável]
ponto de partida era a relação entre o sofrimento social e as condições concretas de
trabalho. Em outras palavras, a filosofia deve colocar a negação do trabalho, ou seja, a
liberação da atividade humana das formas de produção de valor inerentes ao trabalho,
no centro de suas estratégias críticas. É com esse espírito que Marx inicia seus
Manuscritos com uma crítica ao trabalho assalariado.
A esse respeito, lembremos como, na filosofia social moderna, o trabalho nunca
foi apenas uma questão de produção de riqueza e valor. Pelo menos desde Hegel, ele
tem sido entendido como uma estrutura fundamental de reconhecimento social. Em sua
Dialética do Mestre e do Escravo, Hegel descreve como a existência social depende do
reconhecimento, ou seja, do fato de que o ser do sujeito é socialmente reconhecido.
Esse processo começou com o reconhecimento do desejo e foi realizado como uma
externalização do Eu por meio do trabalho, por meio da capacidade que Eu teria de dar
forma objetiva ao que me determina.
Marx parte dessa centralidade do paradigma do trabalho para perguntar se suas
condições sociais concretas podem permitir que ele realize seu próprio conceito, ou
seja, ser a exteriorização (Entäusserung) do sujeito na forma de um objeto capaz de
circulação social. Isso levará, como veremos, a uma crítica não apenas do trabalho
alienado, mas do que até agora entendemos por trabalho. Pois temos três níveis de
crítica em Marx que não devem ser confundidos:
A primeira crítica diz respeito à relação entre o trabalhador e o produto de seu trabalho.
Esse produto não é dele, mas pertence a outra pessoa que lhe paga um salário em troca
do tempo trabalhado em sua produção. O produto do trabalhador é propriedade
privada daqueles que pagaram pelo uso de sua força de trabalho, que trocaram o
produto por um salário que perpetua o trabalhador em sua condição de pobreza,
fazendo um "trabalho de autossacrifício, de mortificação"88 . Essa crítica exige uma
teoria de justiça social ligada a uma reflexão sobre as causas da desigualdade e da
miséria da classe trabalhadora.
A segunda crítica diz respeito ao descompasso entre o processo de produção de
mercadorias e o processo de circulação de mercadorias. Essa incompatibilidade se
reflete na diferença entre o valor imanente ao processo de produção e o valor produzido
pela circulação de mercadorias para a autovalorização do capital. Essa crítica também
exige uma teoria da justiça social e da expropriação da mais-valia.
A terceira crítica diz respeito à relação entre o trabalhador e sua atividade
entendida como trabalho. Ela aponta que a estrutura do próprio trabalho como um
processo de produção de valor, a produção de mercadorias subordinada à
autovalorização do valor. Ele implica a impossibilidade de a atividade humana se colocar
como uma exteriorização de seu Gattungswesen, seu ser de gênero.
Os dois primeiros níveis nos levam a defender a redistribuição igualitária de bens
e renda e a enquadrar o problema da alienação em uma teoria da miséria da classe
trabalhadora. Entretanto, o terceiro nível nos coloca em um eixo diferente de discussão.
88
Idem, p. 112
Marx não se contenta em dizer que o sujeito se priva do objeto trabalhado, o resultado
do trabalho. Ele nos lembra de que o próprio ato de produção, a estrutura teleológica
do trabalho, é uma forma de alienação, porque exige uma compreensão do que pode
ser chamado de matriz disciplinar do trabalho, com sua relação com a propriedade
privada e a elevação das "relações por possessão" à condição de um modelo
fundamental de determinação social. Os dois primeiros níveis são mais classicamente
absorvidos pela crítica social, que vê em Marx, acima de tudo, uma teoria de justiça
social. Entretanto, o terceiro nível é certamente o mais polêmico e original. Um leitor de
Marx, Moishe Postone, entendeu bem esse ponto quando disse:
Espoliação e monopólio
89
Postone, Moishe, Temps, travail et domination sociale, Editions Mille et une nuits, Paris, 2009, p. 331
90
MARX, Manuscripts of 1844 Paris, Flammarion, p. 108
Na verdade, o fato do salário ser uma expressão de despossessão econômica é algo que
Marx defende quando lembra como o processo de valorização do capital pressupõe um
salário normal compatível com uma simples existência animal, como cavalos que
recebem apenas o suficiente para trabalhar. A produção de riqueza econômica não
resulta em um aumento progressivo e constante dos salários. Para entender o raciocínio
marxista do enriquecimento da sociedade como miséria estacionária para os
trabalhadores, é preciso lembrar a diferença entre pobreza absoluta e relativa. Quando
a produção total aumenta, as necessidades, demandas e exigências também aumentam,
o que significa que a pobreza absoluta pode diminuir enquanto a pobreza relativa
aumenta:
O samoiedo, com seu óleo de fígado de bacalhau e peixes rançosos, não é pobre
porque na sua sociedade fechada todos tem as mesmas necessidades. Mas num
Estado que avança, que no decorrer de mais ou menos uma década aumenta a
sua produção total relativamente à sociedade em um terço, o trabalhador que
antes ou depois destes dez anos ganha a mesma quantia, não ficou tão abastado
quanto antes, mas tornou-se um terço mais carente91.
Isso explica por que quanto mais o trabalhador produz, menos ele pode
consumir. A pobreza relativa implica uma redução progressiva do que posso consumir
de acordo com as demandas renovadas de meu sistema de interesse. Assim, podemos
ver como Marx entende a figura do trabalho assalariado como a perpetuação de uma
forma de despossessão. Nesse sentido, parece que uma saída seria adotar políticas de
aumentos salariais substanciais, como queria Proudhom com sua tentativa de organizar
lutas sociais com base na agenda de aumentos salariais ou mesmo de igualdade salarial.
Para Marx, o problema central não são apenas os baixos salários, mas a redução do
trabalho à forma de uma mercadoria que pode ser vendida, com uma qualidade
abstrata. Em outras palavras, sua crítica não se refere apenas à desapropriação
econômica, mas é uma crítica ao trabalho assalariado como tal, ou seja, uma crítica à
ideia do trabalho como uma das principais formas de alienação nas sociedades
modernas. Isso fica claro quando Marx diz: "o trabalho - não apenas nas condições
atuais, mas também na medida em que, em geral, seu objetivo é a mera expansão da
riqueza - é pernicioso, desastroso".
Essa declaração é importante porque nos lembra que a dominação no trabalho
não está ligada apenas à impossibilidade de os produtores imediatos terem sua própria
produção e os produtos que geram. Não se trata apenas de uma questão de apropriação
por meio da "cooperação histórico-universal dos indivíduos"; apropriação daqueles
"poderes que, nascidos da ação de alguns homens sobre outros, até agora se impuseram
a eles e os dominaram no estado de poderes absolutamente estranhos". Pois, se não
nos perguntarmos sobre a extensão real de tal domínio, corremos o risco de deixar de
fora dois problemas, a saber, o fato de que a produção de valor (a "mera expansão da
riqueza"), como forma de riqueza e determinação de objetos, permanece no centro das
estruturas de dominação abstrata e, acima de tudo, o fato de que o sujeito da produção
de valor é o sujeito da dominação abstrata, acima de tudo, o fato de que a relação
sujeito/objeto continua a ser pensada na forma do próprio (como uma expressão da
91
MARX, Karl; Manuscritos …, p. 31
consciência, seja ela falsa ou histórico-universal) e da propriedade (seja ela individual ou
coletiva, injusta ou justamente distribuída).
O problema ligado à reflexão do trabalho acaba sendo definido como um
problema de "redistribuição da propriedade", redistribuição do que está disponível para
mim como aquilo que tem, em sua identidade para mim, sua verdadeira essência. Nesse
sentido, é difícil não admitir que o sujeito histórico seria, nesse caso, uma versão coletiva
do sujeito burguês, constituindo e constituindo o mundo por meio do 'trabalho'. Por
essa razão, pelo menos nessa perspectiva, não faria sentido falar do trabalho como
categoria de oposição ao capitalismo, pois ele estaria organicamente ligado às
estruturas disciplinares de formação do caráter utilitário das relações próprias da
individualidade liberal. e seus direitos de propriedade, expressando simplesmente
vastos processos de reificação.
Entretanto, ainda não tocamos no eixo central da crítica de Marx, a saber, o que
permite compreender essas modalidades de inserção social como “alienantes”. Quem
diz alienação, diz perda de algo, diz tomar a si como um outro. Mas de onde a crítica
parte então? Há algo como uma natureza humana prévia no jovem Marx? Isso nos
obriga a entender melhor a "antropologia filosófica implícita" nas obras do jovem Marx.
Para entender esse ponto, vamos partir da definição de trabalho como um modelo de
externalização (Entäusserung) do sujeito como um objeto. Vamos nos lembrar, a esse
respeito, da famosa comparação de Karl Marx em O Capital:
Como nos lembra Habermas, por meio dessas afirmações, Marx eleva o trabalho
não apenas a uma categoria antropológica fundamental, mas a uma categoria da teoria
do conhecimento, uma vez que a compreensão dos objetos como objetos trabalhados
torna possível desvelar a natureza histórico-social das estruturas normativas da
experiência. Marx compartilha com Hegel a ideia de que a modalidade de síntese
responsável pela constituição dos objetos da experiência não seria a produção de uma
subjetividade transcendental, mas de uma subjetividade empírica que lida com os
modos de reprodução material da vida. Essa extensão da função da categoria de
trabalho justifica uma distinção ontológica entre expressão subjetiva e comportamento
natural. Habermas resume bem essa distinção quando afirma que "Marx não apreende
a natureza sob a categoria de outro sujeito, mas apreende o sujeito sob a categoria de
92
MARX, Karl; O Capital, vol. I, São Paulo: Boitempo, 2013, p. 327
outra natureza". A definição de Marx de que "toda produção é a apropriação
(Aneignung) da natureza pelo indivíduo dentro de uma determinada forma de sociedade
e mediada por ela" é clara em suas distinções ontológicas. Apropriar-se é relativo ao que
não é meu, e mesmo que as formas sociais definam modalidades historicamente
determinadas de apropriação com suas consequências específicas, ainda é preciso
enfatizar que a dinâmica da apropriação pressupõe um pensamento de produção como
absorção do que é inicialmente estranho, uma redução do estranho ao familiar, o que
já tem consequências decisivas para a orientação normativa da crítica social. Mas, como
veremos, na próxima aula, nem toda apropriação é uma possessão.
Como vimos, Marx parece dizer que o trabalho se distingue de qualquer outra
atividade por ser a exteriorização de um ideal, mas o que se entende por "ideal" nesse
contexto precisa ser melhor definido. Pois se "ideal" significa simplesmente a
transformação da natureza a partir de uma ação dirigida por um objetivo
predeterminado ou a conformação da natureza a uma forma previamente apresentada
como uma representação ideal, como o texto de Marx parece nos levar a acreditar,
então será difícil não ver nessa atividade algo que dificilmente pode ser chamado de
"processo". A passagem do possível ao real, operada pelo trabalho social, seria uma
simples externalização de uma finalidade abstrata.
Se fosse esse o caso, essa forma de determinar o trabalho nos impediria de
distingui-lo do comportamento natural. Todo organismo biológico tem a capacidade de
se orientar e fazer escolhas de acordo com uma norma que serve como padrão de
avaliação. O filósofo Georges Canguilhem está correto a esse respeito. Como a vida é
uma "atividade de oposição à inércia e à indiferença", cada individualidade biológica se
diferencia e escolhe de acordo com normas. Toda individualidade biológica age com
base em um "ideal" com um forte potencial normativo, avaliativo e, não se deve
esquecer, transformador para o ambiente.
Se quisermos dar realidade à dicotomia afirmada por Marx, talvez devêssemos
voltar a uma importante declaração nos Manuscritos:
94
MARX, Karl; Manuscritos econômico-filosóficos, op. cit., p. 85 [trad. modificada]
Aula 8
Vivendo no universal
95
SAITO, Kohei; O ecossocialismo de Marx, p. 155
O homem é um ser do gênero, não somente quando prática e teoricamente faz
do gênero, tanto do seu próprio quanto do restante das coisas, o seu objeto, mas
também – e isto é somente uma outra expressão da mesma coisa – quando se
relaciona consigo mesmo como com o gênero vivo, presente, quando se
relaciona consigo mesmo como com um ser universal, e por isso livre96.
O humano é abertamente caracterizado como um "ser sem espécie definida", "ser sem
medida adequada", do que decorre sua possibilidade de produzir de acordo com a
medida de qualquer espécie, de ser uma espécie de expressão genérica das
96
MARX, Karl; Manuscritos …, pp. 83-84
97
FAUSTO, Ruy; Marx: lógica e política, Actes Sud,
98
MARX, Karl; Manuscritos econômico-filosóficos, op. cit., p. 85 [trad. modificada]
potencialidades múltiplas da natureza. Como se ele fosse uma espécie de instância
antipredicativa. Ele pode ter o predicado de qualquer espécie porque é uma figura
antipredicativa. Isso abre a possibilidade de uma indiferença genérica à determinação
própria de qualquer espécie em suas relações de transformação do ambiente, o que a
leva a encontrar a medida inerente a todo objeto. Livre da condição de ser apenas um
objeto para outro, o objeto pode ser uma expressão daquilo que, no sujeito, não se
reduz à condição de um ser-para-outro. Disso decorre que encontrar a medida inerente
ao objeto é, ao mesmo tempo, superar a alienação do sujeito. E o que, no sujeito, não
se reduz a essa condição de ser-para-outro, é o que nele não se configura na forma de
nenhuma espécie, não tem a imagem de nenhuma espécie, porque é a sua "vida do
gênero" (Gattungsleben) que é objetivada no objeto trabalhado.
O termo vem de Feuerbach que, ao tentar distinguir entre humanidade e
animalidade, dirá que :
De fato é o animal objeto para si mesmo como indivíduo – por isto ele tem
sentimento de si – mas não como gênero – por isto, falta-lhe a consciência, cujo
nome deriva de saber. Onde existe consciência existe também a faculdade para
a ciência. A ciência é a consciência dos gêneros. Na vida, lidamos com indivíduos,
na ciência com gêneros. Mas somente um ser para o qual seu próprio gênero,
sua quididade, torna-se objeto , pode ter por objeto outras coisas ou seres de
acordo com a natureza essencial deles99 .
Mas a afirmação de Feuerbach não é exatamente igual à de Marx. Feuerbach diz que o
animal não se conhece como espécie. E como não se conhece como espécie, não pode
ter conhecimento da diferença específica, de sua diferença em relação à espécie
humana. Mas Marx diz outra coisa. Ele diz que o ser humano pode produzir até o ponto
de qualquer espécie. Ele passa para qualquer espécie.
Diferentemente do que encontramos em Aristóteles, o gênero ao qual o ser
humano pertence é desprovido de toda e qualquer arkhe. Por essa razão, ele não pode
constituir uma "natureza humana" como um sistema de normas que define a orientação
da práxis. Um gênero desprovido de arkhe, sem origem ou destino. Mas, e isso deve ser
enfatizado com força, essa monstruosidade de um gênero que se objetiva sem ser
nenhuma espécie definida, um gênero que imediatamente se determina e anuncia a
produção própria dos "indivíduos histórico-universais" de A ideologia alemã, não é
simplesmente a afirmação de que o ser humano age de forma não alienada apenas
quando age conscientemente como um "ser social", ou seja, ao reconhecer que sua
essência é seu "ser social" genérico e historicamente determinado. Se fosse assim, a
afirmação da vida de gênero nada mais seria do que uma apropriação reflexiva da
universalidade situada de minhas condições históricas, bem como da substância comum
às relações intersubjetivas que me constituíram e que se expressa silenciosamente nos
objetos com os quais trabalho. Isso nos levaria a uma especulatividade que Feuerbach,
sem querer, descreveu muito bem quando falou, não por acaso, da especificidade do
Gattungsleben humano:
99
FEUERBACH, Ludwig; A essência do cristianismo, Petrópolis: Vozes, 2007, p. 35
A bela imagem é contente de si mesma, tem necessariamente alegria de si
mesma, reflete-se necessariamente em si mesma. Vaidade é apenas quando o
homem namora sua própria forma individual, mas não quando ele admira a
forma humana. Ele deve admirá-la; não pode conceber nenhuma forma mais
bela, mais sublime que a humana. Certamente, todo ser ama a si mesmo, a sua
essência, e deve amá-la”100.
A vida do gênero é, nessa leitura, o que permitiria ao ser humano olhar para si
mesmo diante do espelho e não ver sua forma individual, mas descobrir ali a beleza
universal da forma humana, a substancialidade da forma. A analogia é sugestiva e seria
difícil não completá-la com a pergunta: e se insistirmos que, ao contrário, o ser humano
é exatamente aquele ser que se perde diante do espelho, surpreendido por sua imagem
como se visse algo pronto para ser deformado, que não reconhece sua própria imagem
porque ela não tem uma forma essencial própria? O que podemos dizer se aceitarmos
que a experiência do espelho é um confronto com algo de que não nos apropriamos
completamente, mas que passa por nós produzindo a sensação de uma profunda
impropriedade?
Ou seja, podemos dizer que essa antropologia filosófica que parte das pretensas
distinções entre humano e outros animais não insiste no fato de que apenas os humanos
teriam pensamento, de que apenas os humanos seriam capazes de consciência. Ele
afirma que a verdadeira diferença estaria na profunda indeterminação do ser humano
e na sua capacidade reflexiva de, a partir disso, agir como um outro a fim de ressoar a
natureza inteira.
Vamos enfatizar como Marx continua seu argumento. Ele dirá que a vida de gênero
aparece, antes de tudo, como a expressão de uma certa universalidade humana que faz
de "toda a natureza seu corpo inorgânico" . É nesse sentido que Marx afirma que, ao
alienar o ser humano da natureza, o trabalho aliena o homem de sua própria função
ativa, aliena-o do gênero.
Entendemos inicialmente um ponto importante concernente a uma relação
entre capital e natureza. As dinâmicas de trabalho visando a produção de excedente e
valorização do valor implicam necessariamente subordinação da natureza às
necessidades de acumulação capitalista. Ao operar essa subordinação, o Capital destrói
as próprias condições materiais que permitem o processo de produção, pois ele precisa
se sustentar na ilusão do caráter pretensamente infinito e inesgotável da terra e do
trabalho humano, na possibilidade de, cada vez mais, aprofundar o processo de
exploração da terra e do trabalho. Destrói o trabalho ao levar as populações cada vez
mais ao sofrimento social, psicológico e físico. Sofrimento que Marx descreve a partir da
100
FEUERBACH, Ludwig; A essência do cristianismo, op. cit., p. 39. Neste sentido, devemos assumir a
crítica de Zizek, para quem “o sujeito tem de reconhecer em sua alienação da substância a separação da
substância de si mesmo. Essa sobreposição é o que se perdeu na lógica feuerbachiano-marxiana da
desalienação na qual o sujeito supera sua alienação reconhecendo-se como o agente ativo que pôs o
que aparece para ele como seu pressuposto substancial” (ZIZEK, Slavoj; Menos de que nada, op. cit., p.
101).
tripla categorização da alienação, da reificação e do fetichismo. Ele destrói a terra ao
submetê-la à condição para a produção exponencial do valor.
Marx disse que, na dominação feudal, ainda há uma "relação afetiva" com a
terra, embora haja certa unidade entre os produtores e a terra, e as relações de
produção não estão sujeitas à extração máxima do excedente, de modo que parte da
independência dos produtores pode ser alcançada. A apropriação dos frutos do
trabalho, sob certa margem, pode sempre ocorrer. Mas isso muda radicalmente quando
o capital submerge a terra nas condições de um mercado. Mas isso muda radicalmente
quando o capital subjuga a terra às condições do mercado, e "os trabalhadores
modernos perdem qualquer conexão direta com a terra. Por um lado, estão livres da
dominação pessoal, por outro, também estão livres dos meios de produção e, portanto,
não podem mais se relacionar com a natureza como seu próprio 'corpo inorgânico'"101 .
Pois o capitalismo precisa produzir a dissociação da unidade original entre humanos e
terra e coloca-la em seu lugar a relação capital e trabalho assalariado. Feito isso, é
possível que a relação à natureza seja submetida a um comportamento instrumental,
que ela se torne o espaço de exploração brutal de suas forças gratuitas, que seus custos
não sejam contabilizados. "O capital ignora os custos necessários à recuperação das
forças naturais após cada uso. Os custos que as forças naturais requerem devido a suas
características materiais não se refletem no valor de uma mercadoria porque o valor
apenas expressa o dispêndio de trabalho humano abstrato"102 .
Mas, nesse contexto, o que significa dizer que toda a natureza se torna o corpo
inorgânico do ser humano? Como se o ser humano tivesse dois corpos: um corpo
orgânico, marcado pela estrutura de seus órgãos e limites que lhe separam da natureza,
e um corpo inorgânico, que é o espaço natural no qual ele habita e circula. É evidente
que temos a ideia de um processo de metabolismo (Stoffwechsel) no qual os seres
humanos e a natureza aparecem como um corpo de envolvimento mútuo. Por
metabolismo, compreendemos um processo de troca orgânica que permite a síntese de
novos materiais e a produção de energia. Esse modo de interação pode nos explicar
porque Marx afirma, entre outros, que: "Dizer que a vida física e intelectual do homem
está indissoluvelmente ligada à natureza não significa outra coisa senão que a natureza
está ligada a si mesma, pois o homem é uma parte da natureza"103 . Notem o tom dessa
afirmação: não há defesa de um excepcionalismo humano, há a defesa de uma relação
indissolúvel entre humano e natureza. Fora do domínio do Capital, as modificações
humanas na natureza são modificações da própria natureza. Todos os animais
modificam a estrutura de seu ambiente, mas os seres humanos impõem uma
modificação global devido às demandas da produção e da valorização capitalista. Se
Marx tivesse escrito hoje, ele diria: não há antropoceno, há capitaloceno.
Mas vamos tentar entender melhor a natureza da implicação entre o ser humano
e a natureza para Marx. Ele não implica que a natureza é aquilo que os humanos
poderiam se apropriar ao infinito. Como se a natureza fosse um tipo de estoque virtual
da produção humana, um tipo de coisa que está totalmente disponível para confirmar a
forma humana.
Contra essa leitura, acho que é importante lembrar o potencial transformador
desse metabolismo tanto para a natureza quanto para os seres humanos. Esse
101
SAITO, Kohei; O ecossocialismo de Marx, p. 59
102
Idem, 172
103
Marx, p. 114
metabolismo é um processo pelo qual "a totalidade da natureza é socialmente mediada
e, inversamente, a sociedade é mediada pela natureza pensada como um componente
da realidade total"104 . Ao partir dele, as modificações ocorrem a partir da passagem da
potência ao ato, na qual o trabalhador “desenvolve as potências que na natureza jazem
latentes”105. Esta ideia de potências latentes na natureza expressa claramente como a
atividade humana, quando exterioriza a vida do gênero, é produção de formas que não
podem ser imediatamente vistas como potências latentes na determinação atual do
humano. Pois de nada adianta afirmar que a objetivação da vida do gênero ocorre
quando: “o homem se duplica não apenas na consciência, intelectualmente, mas
operativa, efetivamente, contemplando-se a si mesmo em um mundo criado por
ele”106.A questão central é: quem é esse homem que pode criar um mundo que realiza
poderes latentes na natureza, que são poderes da natureza?
Marx descreve uma dinâmica reflexiva simétrica ao afirmar, por exemplo, que
"só posso me relacionar praticamente com a coisa se a coisa se relacionar humanamente
com o homem"107 . Mas perderemos completamente o horizonte do pensamento de
Marx se não entendermos como proposições dessa natureza pressupõem a modificação
qualitativa da noção de "humano". A coisa se relaciona humanamente com o ser
humano não apenas porque se revelou como consciência, não apenas porque era
apenas uma consciência reificada que velava o significado especificamente humano de
sua existência humanamente produzida. Um mundo dessa natureza só poderia ser um
mundo de fetichismo generalizado.
De fato, a coisa se relaciona humanamente com o ser humano porque há uma
mudança no significado do termo "humano", no qual ele perde seu caráter exclusivo (o
humano como aquilo que é diferente do animal, como aquilo que é diferente do natural,
da coisa, entre outras coisas) e descreve um campo de envolvimento mútuo, de
metabolismo contínuo entre o humano e aquilo que, até então, estava aquém do
humano. Não apenas a natureza é humanizada, mas o humano, por assim dizer,
"desumaniza-se", ampliando e integrando aquilo que, até então, não se enquadrava na
definição de "humano".
Esse ponto é fundamental se não quisermos retornar a uma noção de
subjetividade constitutiva, simplesmente acrescida de sua dimensão social e
profundidade histórica. A esse respeito, é verdade que Marx critica qualquer empirismo
que busque ignorar a natureza sócio-histórica de nossos sentidos: "O cultivo dos cinco
sentidos é o trabalho de toda a história passada"108 . Esse é, inclusive, um dos eixos de
seu distanciamento de Feuerbach. Mas essa história do mundo não pode ser apreendida
sem que tenha um momento de "história natural", de história cristalizada na
exterioridade das formas naturais: "A história é ela mesma uma parte real da história
natural, do devir da natureza em relação ao homem"109 , tanto que o jovem Marx insiste
na necessidade de unificar as ciências naturais e a ciência do homem. A formação dos
cinco sentidos é o resultado histórico do desenvolvimento humano em seu contato com
o mundo, da transformação da sensibilidade a partir do contato historicamente
104
SCHMIDT, Alfred; The concept of nature in Marx (O conceito de natureza em Marx), Londres: Verso,
2014, p. 79
105
MARX, Karl; Grundrisse, p. 129
106
MARX, Karl, Manuscritos …, p. 85
107
Idem, p. 149
108
Idem, p. 151
109
Idem, p. 154
prolongado com o mundo. Caso contrário, seria difícil distinguir as formas atuais de
percepção de uma simples ilusão socialmente compartilhada. Isso é, de certa forma, o
que leva Adorno, ao confrontar o conceito de história natural, a afirmar:
É tarefa do pensamento ver toda a natureza - e tudo o que pode tomar o lugar
da natureza - como história e toda a história como natureza; entender o ser
histórico em sua extrema determinação histórica, onde ele é mais histórico,
como um ser natural, ou entender a natureza onde, como natureza, ela parece
persistir mais profundamente em si mesma, como um ser histórico110 .
Comunismo e natureza
Marx insistirá que esse metabolismo, que permite que a natureza apareça como
o corpo inorgânico do humano, ocorre no comunismo. Isso significa que é a figura de
um humanismo que se negou a si mesmo, pois assume que as figuras atuais do humano
estão a serviço da reprodução material de uma ordem anti-humana. Como bem
entendeu Ruy Fusto: "Enquanto o comunismo não for alcançado, o homem não é, ou
melhor, ele é, mas como um significado mudo, ainda não posto"111 . Somente no
comunismo o homem não seria um trabalhador, um cidadão romano, um senhor feudal,
ou seja, não seria seus predicados, mas humano. No capitalismo, o humano aparece
apenas como seus predicados. O único que de fato ocupa a posição de sujeito é o
Capital, que não por acaso será descrito por Marx como um "sujeito automático". O
humano, no capitalismo, é de fato o predicado do Capital. Defender o humano em um
110
ADORNO, Dialética negativa, p. 346
111
FAUSTO, Ruy; Marx: lógica e política I, p. 29
mundo anti-humano é negar o humano, é ser cúmplice da perpetuação de uma situação
anti-humana. O comunismo faz uma Aufhebung do humanismo, mesmo que Althusser
não queira aceitar isso.
Mas há um fato que não podemos perder de vista: há uma negação do humano
que realiza seu verdadeiro conceito. Essa negação é encontrada nessa realização da
natureza como o corpo inorgânico do ser humano. Mas, para isso, a relação com os
objetos não pode ser pensada como propriedade privada.
A esse respeito, vamos nos lembrar de uma importante distinção feita pelo jovem Marx
sobre duas formas de comunismo. O primeiro é o comunismo primitivo, que Marx
chama de “comunismo rude” e se aproxima das estruturas arcaicas de propriedade
comunal. O segundo é: “a figuração necessária e o princípio enérgico do futuro
próximo”112 capaz de fornecer aquilo que Marx chama de uma superação positiva da
propriedade privada.
Com relação à primeira, Marx o descreve como uma generalização de todas as
relações sociais em relações de propriedade: "a dominação da propriedade material é
tão grande em relação a ela que ela quer aniquilar tudo o que não é capaz de ser
possuído por todos como propriedade privada"113 . De fato, a relação de propriedade
continua sendo a relação da comunidade com o mundo das coisas, mesmo que no lugar
da propriedade privada tenhamos agora a propriedade comum. Uma propriedade
comum que pressupõe um certo retorno à simplicidade que, para Marx, é apenas a
expressão da negação abstrata de todo o mundo da cultura. Ou seja, Marx tende a
entender todas as figuras comunais antes do capitalismo como figuras degradadas do
potencial comunista. Ele compartilha com Hegel a recusa de um fundamento de crítica
social em uma recuperação do potencial emancipatório de outras realidades
antropológicas.
Marx chega ao ponto de afirmar que a comunidade de mulheres, na qual as
mulheres se tornam um bem comum, seria o segredo desse comunismo bruto:
Assim, podemos ver como, para Marx, não se trata de passar da propriedade
privada para a coletiva, mas de abandonar os modelos de relação (intersubjetiva, entre
sujeito e objeto, na forma de posse. Assim, surge uma importante distinção entre
apropriação (Aneignung) e possuidor (besitzen), que abre a compreensão da real
superação da propriedade produzida pelo comunismo. No comunismo, as apropriações
não são posses e acredito que esse seja um ponto fundamental, ou seja, entender o que
são apropriações que não podem ser pensadas como posses.
112
MARX, Karl; Manuscritos…, p. 114
113
Idem, p. 141
114
MARX, Karl; Manuscrito …, p. 104
Assim, se no comunismo é possível falar da "verdadeira ressurreição da natureza,
do naturalismo realizado do homem e do humanismo realizado da natureza"115 , é
porque no comunismo do jovem Marx a natureza não é mais entendida como aquilo
que se submete às relações de posse, nem mesmo à posse coletiva. No comunismo,
circulam objetos que não são a confirmação de um individualismo possessivo, são
objetos que não são o resultado de um interesse individual, que não são marcados pelo
sentido do ter e pela submissão do objeto à funcionalidade da utilidade. Lembremos, a
esse respeito, como o "interesse" é a realização de uma síntese entre paixões e cálculo,
é a submissão da esfera das paixões à forma do que pode ser calculado, do que pode ser
pensado pelo prisma utilitarista. Falando dessa apropriação que não é posse, que não é
submissão a princípios utilitaristas, Marx diz:
115
Idem, p. 147
116
MARX, Karl; idem, p. 108
Essa suposta unidade implica tanto uma modificação do que é natural quanto uma
modificação do que é humano
Dialética como modelo crítico
Aula 9
Sabemos como a dialética, em Marx, busca se realizar como uma teoria da revolução.
Eu gostaria, na aula de hoje, discutir alguns aspectos centrais de sua noção de revolução
a partir do problema da emergência de sujeitos revolucionários. Ou seja, uma teoria
crítica precisa saber identificar em quais condições sujeitos com força revolucionário
emergem como agentes políticos. Por isso, ela não é apenas uma teoria que visa
identificar situações de injustiça e condições institucionais para a realização de
demandas de justiça. Ela é uma teoria sobre processos de rupturas históricas tendo em
vista a realização de exigências de reconhecimento e liberdade que ainda não puderam
se realizar historicamente. Ou seja, a teoria crítica procura entender como é possível a
passagem do sofrimento social à ação revolucionária. Ela não é apenas uma operação
negativa que visa identificar os déficits no interior das normatividades vigentes. Ela é o
exercício do pensamento desperto que procura nomear sujeitos históricos capazes de
abrir novos horizontes históricos.
Para tanto, gostaria de usar nossa aula de hoje para falar do conceito marxista
de proletariado, seu enraizamento filosófico e seu modo de ação. Ou seja, por um lado,
gostaria de defender com vocês que há um enraizamento filosófico do conceito de
proletariado. Por isso, comecei com as discussões do jovem Marx a respeito do ser do
gênero. Gostaria de mostrar como esse conceito é o preâmbulo para a transformação
do proletariado, de um conceito sociológico que descreve as trabalhadoras e
trabalhadores que nada tem a não ser sua força de trabalho, que descreve o ponto
extremo da pobreza, a um conceito político. Mas gostaria também de mostrar como
Marx entende, de forma concreta, a ação política do proletariado. Isso nos exige
recuperarmos certas elaborações feitas por ele diante da Comuna de Paris: o primeiro
governo proletário que a Europa irá conhecer.
117
Rancière, Jacques, "Politics, identification and subjectivation", em Rajchman, John, The identity in
question, Routledge, Nova York, 1995, p. 67.
com base na necessidade básica de autopreservação, fossem eles camponeses ou
trabalhadores, e que precisavam ser objeto de ação política em nome da justiça social.
Nesse sentido, proletários ainda não são o nome de um sujeito político emergente, mas
o nome de um ponto de sofrimento social intolerável, um "significante central do
espetáculo passivo da pobreza"118. O uso do termo por Saint-Simon é um exemplo claro.
É entre os saint-simonianos que a dicotomia entre proletários e burgueses será descrita
pela primeira vez, embora sempre em um horizonte de possível reconciliação de
interesses.
Nesse sentido, mais do que inventar o uso social do termo, a façanha de Marx é
a de ligar o conceito de proletariado a uma teoria da revolução, ou melhor, a uma teoria
das lutas de classes, que é a expressão da “história da guerra civil mais ou menos oculta
na sociedade existente”119. É por isso que Marx dirá, sobre os saint-simonianos e outros
socialistas "crítico-utópicos": “Os fundadores desses sistemas compreendem bem o
antagonismo de classes, assim como a ação dos elementos dissolventes na própria
sociedade dominante. Mas não percebem no proletariado nenhuma iniciativa histórica,
nenhum movimento político que lhes seja peculiar”120.
À sua maneira, Marx compartilha com Hobbes a compreensão da vida social
como uma guerra civil imanente. Entretanto, como não se trata de pensar as condições
para a formação da sociedade como uma associação de indivíduos, mas de deixar de
pensar a vida social a partir da elevação do indivíduo como célula elementar, essa guerra
não será a expressão da dinâmica competitiva entre indivíduos desprovidos de relações
naturais entre si. Será uma guerra de classes na qual uma das classes aparece como o
grupo daqueles que não têm mais nada. O que não poderia ser diferente já que o
processo de acumulação primitiva próprio ao capitalismo é uma guerra civil generalizada
que visa a produção de uma massa pauperizada por salários e de outra massa submetida
ao trabalho gratuito (seja ele trabalho doméstico ou trabalho escravo). Há de se lembrar
que o lugar clássico desse processo bélico de acumulação encontra-se, por um lado, nos
séculos XV e XVI quando: “os senhores de terras e a burguesia nascente desencadearam
uma guerra civil na Inglaterra contra os camponeses, os artesãos, os diaristas pela
privatização das terras comuns”121. Isso implicará a destruição dos locais de produção
doméstica, a expropriação de terras e a pauperização extrema que obrigará as
populações a aceitarem o trabalho assalariado. Para termos uma ideia da natureza de
guerra que esse processo implicou, lembremos do ato promulgado em 1547 em nome
de Eduardo VI: todo homem que ficar três dias sem trabalhar será considerado em delito
de vagabundagem. Nesse caso: “os juízes devem marcar, imediatamente, na fronte do
dito ocioso, com ferro em brasa, a letra V e encaminhar a referida pessoa àquele que o
denunciou, do qual se tornará escrava, para que dela tome posse e a tenha à sua
disposição, durante um período de dois anos”122. Para além dessa guerra civil contra as
populações locais, a acumulação primitiva terá ainda como outro eixo, a saber, a invasão
colonial. Como dirá claramente Marx:
118
Stallybrass, Peter, "Marx and heterogeneity: thinking the lumpemproletariat", em Representations,
Vol. 0, n. 31, p. 84.
119
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; Manifesto Comunista, São Paulo: Boitempo, p. 50
120
Idem, p. 66
121
ALLIEZ, Eric e LAZZARATTO, Maurizio; Guerras e capital, p. 49
122
GEREMEK, BORISLAW; Truands et misérables dans l’Europe moderne, pp. 98-99
Os diferentes momentos da acumulação primitiva repartem-se numa sequência
mais ou menos cronológica, principalmente entre Espanha, Portugal, Holanda,
França e Inglaterra. Na Inglaterra, no fim do século XVII, esses momentos foram
combinados de modo sistêmico, dando origem ao sistema colonial, ao sistema
da dívida pública, ao moderno sistema tributário e ao sistema protecionista. Tais
métodos, como, por exemplo, o sistema colonial, baseiam-se, em parte na
violência mais brutal. Todos eles, porém, lançaram mão do poder do Estado, da
violência concentrada e organizada da sociedade, para impulsionar
artificialmente o processo de transformação do modo de produção feudal em
capitalista e abreviar a transição de um para o outro. A violência é a parteira de
toda sociedade velha que está prenhe de uma sociedade nova. Ela mesma é uma
potência econômica123.
123
MARX, Karl; O Capital, Livro I, Capítulo VIII
124
Tronti, Mario, Operários e capital, Entremonde, 2016, p. 257
125
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; A ideologia alemã, op. cit., p. 98
126
Idem, Manifesto Comunista, p. 43
127
Ibid, p. 45
próprios coveiros"128. Em outras palavras, sua ação é contraditória porque, no processo
de autorrealização, a burguesia produz uma figura que se oporá a ela e a destruirá.
Assim, a burguesia é o lugar onde ocorre uma surpreendente operação de autonegação,
que não é apenas a autonegação dos interesses de uma classe, mas a própria
autonegação da produção da vida em vigor até agora.
Essa autonegação é impulsionada pela produção do excedente. A burguesia
produz crises descritas como "epidemias de superprodução" que destroem grande parte
das forças produtivas já criadas: "A sociedade tem civilização demais, meios de
subsistência demais, indústrias demais e comércio demais". Um excesso que "leva toda
a sociedade à desordem e ameaça a existência da propriedade burguesa". Pois esse
excesso de produção, comércio e civilização leva a uma tendência de desvalorização da
produção, que só pode ser superada pela destruição violenta de grandes quantidades
de forças produtivas ou pela conquista de novos mercados, pela exploração cada vez
mais intensa dos antigos, ou seja, pela mobilização da dinâmica da guerra. Isso leva a
extensão de uma estrutura monopolista que só pode significar a abolição da
propriedade privada "para nove décimos da sociedade". No entanto, essa desordem
produzida pela burguesia e sua escalada global não é apenas o anúncio da destruição. É
a produção involuntária de novas relações que têm em seu germe a forma de outro
mundo:
Isso demonstra como, de acordo com Marx, a revolução só pode ser feita pela classe
dos despossuídos de predicado e profundamente despossuídos de identidade. 130Uma
classe formada por " indivíduos histórico-universais, empiricamente universais, em vez
de indivíduos locais". Para que esses indivíduos histórico-universais apareçam, é
necessária uma certa experiência de negatividade, que, desde Hegel, é a condição para
128
Ibid, p. 51.
129
Idem, A ideologia alemã, p. 58
130
Ibid.
a fundação da verdadeira universalidade. O proletariado passa por essa experiência por
meio da completa despossessão de si mesmo, descrita por Marx nesses termos:
O proletariado é, portanto, definido não apenas pela pobreza extrema, mas pelo
cancelamento completo dos vínculos com as formas tradicionais de vida. Esses vínculos
não são recuperados em um processo político de reafirmação de si, porque não se trata
de permitir que os proletários tenham uma nação, uma família burguesa, uma
moralidade ou uma religião. Essas normatividades são negadas em uma negação sem
retorno. No entanto, essa negação não leva o proletariado a aparecer como “essa massa
indefinida, desestruturada e jogada de um lado para outro, que os franceses
denominam la bohème”132 e que Marx define como lumpenproletariado. É importante
insistir nesse ponto, pois muitos tentaram fazer do conceito de lumpenproletariado o
verdadeiro conceito de força revolucionária desde Bakunin.
O conceito de lumpenproletariado, assim como o de proletariado, não descreve
imediatamente um agente econômico, mas um tipo de sujeito político. Lembremos a
estranha extensão que o termo assume no 18 Brumário:
É difícil não ler essa série descrita por Marx com seus escritores e tocadores de órgão
sem se lembrar da Enciclopédia Fantástica de Borges. Pois o que torna essa série
completa não é a suposta analogia entre seus elementos baseada no desenraizamento
social. A esse respeito, lembremo-nos de como, em Luta de classes na França, Marx
descreve a aristocracia financeira nestes termos: "A aristocracia financeira, tanto em seu
modo de ganho quanto em seu gozo, nada mais é do que a ressurreição do
lumpenproletariado nas alturas da sociedade burguesa". Há um lumpenproletariado de
baixo nível nos estratos sociais mais baixos e um lumpenproletariado nos estratos sociais
131
MARK, Karl; Manifest der Kommunistischen Partei in http://www.marxists.org/deutsch/archiv/marx-
engels/1848/manifest/1-bourprol.htm
132
MARX, Karl; O 18 brumário de Luis Bonaparte, São Paulo: Boitempo, 2011, p. 91
133
MARX, Karl; O 18 do brumário, op. cit., p. 91
mais altos, este último perfeitamente enraizado na escroqueria do capitalismo
financeiro.
De fato, o que reúne os elementos é uma certa concepção de improdutividade,
uma diferenciação entre trabalho produtivo e improdutivo, mas uma diferenciação
concebida do ponto de vista da produtividade dialética da história. Pois o
lumpenproletariado é uma massa desestruturada cuja negatividade não é colocada
como uma contradição às condições do atual estado de vida. Nesse sentido, ele é a
representação social da categoria de negatividade improdutiva. Por esse motivo, é uma
massa heterogênea que pode ganhar homogeneidade a partir do momento em que
encontrar um termo unificador que lhe dê estabilidade na situação política existente.
Esse termo, em O 18 Brumário, não é outro senão Napoleão III, "o líder do
lumpenproletariado". Aquele que dá homogeneidade social à história, mesmo quando
ela é repetida como uma farsa, e que precisa confessar que é uma farsa para se manter.
No entanto, é preciso enfatizar que o modelo de estabilização produzido por
Napoleão III é um tipo de estabilização na anomia. Por meio de Napoleão III, a
heterogeneidade do lumpemproletariado permanece radicalmente passiva, permanece
uma ação antipolítica, pois se acomoda ao gerenciamento do desenraizamento social,
seus crimes romantizados não são ação transformadora. Na verdade, essa
desestruturação e indefinição anômica do lumpenproletariado é peculiar àqueles que
ainda esperam um retorno à ordem, ou que não são capazes de conceber nada fora de
uma ordem que eles mesmos sabem condenada. Isso torna suas ações políticas meras
"paródias" de transformações, "comédias" ou "máscaras": todos os termos usados por
Marx em O 18 Brumário para falar de revoluções que são, de fato, apenas tentativas de
se estabilizar no caos. O lumpenproletariado representa uma negatividade que não pode
ser integrada ao processo dialético porque representa a fixação da negatividade em um
tipo de cinismo social.
O caso do proletariado, por outro lado, é marcado pela ausência de qualquer
expectativa de retorno. O proletariado é uma heterogeneidade social que simplesmente
não pode ser integrada sem que sua condição passiva seja transformada em uma atitude
revolucionária. Por essa razão, por ser desprovido de propriedade, nacionalidade,
vínculos com modos de vida tradicionais e confiança nas normatividades sociais
estabelecidas, ele pode transformar sua angústia em uma força política para a
transformação radical das formas de vida. Para tanto, é preciso entender que a
afirmação da condição proletária não se confunde com qualquer forma de exigência de
reconhecimento de formas de vida desrespeitadas, claramente organizadas em suas
particularidades. Ao contrário, a afirmação dessa condição proletária produz a classe
daqueles sujeitos sem predicados que, como se diz em A ideologia alemã :
Comunas
Seria o caso de se perguntar como esse proletariado age então quando governa
a si mesmo, o que essa negatividade é capaz de produzir. Para tanto, voltemos os olhos
para as considerações de Marx sobre a Comuna de Paris, já é a comuna era, para Marx,
a realização mais acabada desse princípio de auto-gestão da classe trabalhadora.
A Comuna nasce de um processo de tomada revolucionária do poder. Durante
meses, Paris será gerida pelo proletariado. Nesse momento, eles formarão estruturas
de deliberação marcadas pela igualdade radical. Como se a negatividade proletária se
expressasse principalmente na abolição das hierarquias. A comuna será então formada
por conselheiros municipais, escolhidos por sufrágio universal nos diversos distritos de
Paris, com mandato revogável a qualquer momento e mandat imperatif, ou seja,
instruções formais de seus eleitores que deveriam ser seguidas a risca. Sem ser um corpo
parlamentar, a comuna era um órgão de trabalho, executivo e legislativo ao mesmo
tempo. Ela ainda tinha uma característica profundamente internacionalista, integrando
estrangeiros. Um de seus lemas será: “a bandeira da Comuna é a bandeira da República
universal”. Neste sentido, podemos dizer que a Comuna de Paris é o primeiro governo
revolucionário que compreende sujeitos políticos fora do quadro nacional. Ela é o
embrião de uma política pós-nacional. Notemos como a comuna era vista por Marx, ao
mesmo tempo, como a realização das revoluções burguesas e sua superação. Por um
lado:
135
Badiou, Alain, Le siècle, Seuil, Paris, 2005, p. 100.
136
Balibar, Etienne, Citoyen sujet et autres essais d'anthropologie philosophique, op. cit, p. 260.
137
MARX, Karl; A guerra civil na França, p. 59
Ou seja, o eixo próprio da Comuna consiste em combater o estado em seus dois
polos: como gestor da vida social e como gestor do medo social através da criação de
um corpo contínuo de defesa externa e de intervenção interna. Notemos dois elementos
fundamentais aqui. A forma de organização de uma sociedade emancipada passa pelo
retorno do governo à imanência da vida social. Isto implica não apenas a absorção das
funções do funcionalismo estatal pela dinâmica imanente da sociedade. Isto passa
também pela decomposição do exército, pela quebra da relação orgânica entre governo
e criação de corpos de defesa do Estado. O Estado como aparato de segurança e
violência desapareceria.
Notemos ainda como Marx compreende o advento da Comuna como a
possibilidade de uma forma de imanência entre vontade e ação que sequer poderia ser
chamada de realização do autogoverno, como entendeu-se esta palavra até agora:
Esta formulação, povo agindo para si mesmo e por si mesmo chama a atenção.
Ela indica um “si mesmo” como horizonte de reconciliação que exige a constituição do
povo como sujeito que pertence a si mesmo. As metáforas são sempre muito claras
neste contexto. Marx fala, por exemplo, em “quebrar a máquina do Estado”, como se
houvesse algo a impedir o movimento vivo, como uma máquina. Esta figura de uma
relação pura da sociedade a si mesma é um eixo fundamental e prenhe de questões
políticos. O que significa afinal esse retorno de uma autonomia como auto-identidade
imanente? É fato que tal figura expressa a pregnância política de considerar a autonomia
como “auto-engendramento” (Selbsterzeugung), como “vida engendrando vida”139,
como “auto-atividade” (Selbstbestätigung)140, como ação coordenada por um “plano
comum” que exprime a condição do “povo agindo para si mesmo, por si mesmo”141.
Essas são questões que gostaria de preservar, já que sua resposta não será simples.
De toda forma, é ela que nos leva à compreensão marxista do perecimento do
Estado no interior de um processo revolucionário. Lembremos, por exemplo, do que diz
Engels:
Não sendo o Estado mais do que uma instituição transitória, da qual alguém se
serve na luta, na revolução, para submeter violentamente seus adversários,
então é puro absurdo falar de um Estado popular livre: enquanto o proletariado
ainda faz uso do Estado, ele o usa não no interesse da liberdade, mas para
138
MARX, Karl, A guerra civil na França, p. 108
139
MARX, Manuscritos, p. 90
140
MARX, Ideologia alemã,
141
MARX, Luta de classes na França, p. 108
submeter seus adversários e, a partir do momento em que se pode falar em
liberdade, o Estado deixa de existir como tal. Por isto, nossa proposta seria
substituir por toda parte a palavra Estado por Gemeinwesen, uma boa e velha
palavra alemã, que pode muito bem servir como equivalente do francês
commune142.
142
Carta de Engels a August Bebel, 28 de março de 1875, p. 56
143
MARX, Karl; Crítica do programa de Gotha, p. 43
144
Idem, p. 29
a seu trabalho. A mesma quantidade de trabalho que ele deu à sociedade em
uma forma, agora ele a obtém de volta em outra forma145.
Mas esta justiça inicial que consiste em liberar o trabalho da condição de produção de
valor porta ainda uma injustiça. Indivíduos desiguais, com talentos e capacidades
desiguais só podem ser medidos segundo um padrão igual quando observados apenas
por um aspecto determinado. Outros aspectos são desconsiderados: um trabalhador é
casado, outro não; um tem mais filhos, um supera outro física e mentalmente, etc. Por
isto, essas “medidas de urgência” ainda giram em torno do “estreito horizonte jurídico
burguês”. Só em uma situação social na qual o trabalho deixar de ser meio de vida e se
transformar em atividade que permite o desenvolvimento multifacetado dos sujeitos,
na qual a carência não ser mais o fantasma que assombra todo consumo, na qual as
condições materiais de produção forem propriedade coletiva dos próprios
trabalhadores, será possível estabelecer o princípio fundamental de justiça: “cada um
segundo suas capacidades, cada um segundo suas necessidades”.
Marx justifica muitas vezes a ditadura do proletariado e o uso do estado porque,
enquanto houver uma luta de classes, o proletariado tem que aplicar meios violentos,
ou seja, meios de governo:
enquanto ele próprio ainda for classe e as condições econômicas sobre as quais
repousa a luta de classes e a existência das classes ainda não tiverem
desaparecido e tiverem de ser violentamente extirpadas do caminho ou
transformadas, seu processo de transformação será acelerado por meios
violentos146.
Para Marx, só desta forma, ou seja, só através de uma ditadura dos despossuídos
tendo em vista o fim da possessão como forma geral de existência social, seria possível
uma mudança real das formas de produção e das bases materiais da vida social. Ao invés
de “esperar o dia do juízo final”, Marx insiste que o proletariado começará por se mover
por formas políticas que mais ou menos pertenciam à sociedade burguesa. Isso não
deixará de criar problemas. Primeiro, você se serve de um modelo de relação
intersubjetiva
145
Idem, p. 30
146
MARX, Karl; Resumo crítico de Estatismo e anarquismo, de Bakhunin, p. 111
Aula 10
148
LENIN, Cadernos filosóficos, p. 332
149
Idem, p. 123
Lenin admite a compreensão dialética da contradição como automovimento e
compreende isso como condição para uma outra intelecção do campo político.
Mas a questão que temos que responder é : como Lenin pensa a realização desse
processo de instauração do novo, como ele compreende as condições para a efetivação
dos processos revolucionários?
A forma-partido
É claro que esse uso da ditadura do proletariado trafega entre duas vias de
conciliação praticamente impossível. Por um lado, ela se inspira na estrutura das
comunas. De onde se segue os chamados de uma república de sovietes presentes, por
exemplo, nas Teses de Abril. É a partir do fortalecimento dos sovietes que os
bolcheviques saem de sua posição minoritária e é mobilizando os sovietes que eles
conseguem liderar a insurreição de outubro. No entanto, é contra os sovietes que o
processo se desdobrará até a consolidação do comunismo de partido-estado nacional.
Um comunismo que trará, para dentro da lógica normal de governo, a lógica da guerra
permanente. Nesse momento, o processo revolucionário se tornará inicialmente a
figura de um implacável e violento estado personalizado sob a figura do stalinismo,
repetindo aquilo que um dia Marx chamou de despotismo oriental. Em um segundo
momento, ele se estabilizará como a figura de uma sociedade de casta burocrática cínica
que, quando enfim ruir, fornecerá as bases para o transformismo da casta burocrática
em grupo de comando de um capitalismo monopolista de estado.
O que esse processo leninista nos mostra? Por um lado, a extrema dificuldade
em passar da insurreição vitoriosa ao governo revolucionário, os riscos de militarização
da sociedade, da transformação da vanguarda do partido em casta burocrática. Por
outro, a criatividade e imaginação política que esses momentos de procura em realizar
estruturas de igualdade radical produzem. Qualquer crítica ao processo soviético deve
levar em conta a extrema criatividade institucional que atravessam os primeiros anos
do processo revolucionário. Eles demonstram um embate, no interior da Revolução
soviética.
Tomemos um exemplo entre muitos possíveis para darmos conta dessa dinâmica
de reconstrução dos processos materiais da vida. Logo após sua vitória a Revolução
Soviética aprova o Código de leis referentes ao registro civil de mortes, nascimentos e
casamentos, de outubro de 1918. Fruto de intensa discussão que mobilizou juristas,
ativistas, representantes de trabalhadoras, camponesas e camponeses, o código trazia
inovações até então nunca presentes em legislação alguma.
O Código de leis de 1918, assim como a versão seguinte aprovada em 1926 eram
vistos como sistemas provisórios de leis próprios a uma sociedade de transição em
direção a ao definhamento final da família, à união livre e à igualdade radical entre
homens e mulheres. Ao menos entre 1917 e 1924, a revolução soviética irá questionar
os sistemas de trabalhos e exploração no interior da família burguesa, fazendo de
tarefas privadas tarefas que deveriam ser de responsabilidade do poder público. A União
Soviética irá proliferar creches, restaurantes e lavanderias públicas para liberar as
mulheres do trabalho doméstico, modificar a estrutura das relações de gênero,
compreendendo que a igualdade social exige fortalecimento do reconhecimento da
plasticidade libidinal dos sujeitos. Ela irá facilitar os divórcios (sendo que um divórcio
poderia ser feito a pedido de qualquer um dos membros do casal), fazendo com a União
Soviética se tornasse o país no mundo com o maior número de divórcios e casamentos
durante dos anos vinte. Ela irá ainda legalizar o aborto, fazendo da URSS o primeiro país
no mundo a adotar o direito de aborto em estruturas públicas e gratuitas,
descriminalizar relações homoafetivas, criar pensões mesmo para os ditos filhos
ilegítimos, discutir invenções jurídicas para formas não-monogânicas de relações
afetivas como a “paternidade coletiva”, ou seja, paternidade reconhecida por mais de
um homem. Alexandra Kollontai, por exemplo, era uma daquelas que lutavam para que,
no comunismo: “o ato sexual seja algo tão simples quanto beber um copo d’água”. O
código trazia outras inovações. Por exemplo, quando casado um casal poderia adotar o
sobrenome do marido, o sobrenome da esposa ou ambos o sobrenome dos dois. Esta
possibilidade só entrou na legislação brasileira em na mudança do código civil de 2002.
A tópica do processo autoritário desde seu início não dá conta das dinâmicas concretas
que ocorreram no interior da história.
O sindicato, a luta sindical não podem por si mesmos sair do sistema capitalista;
eles são destinados a inevitavelmente fazer parte de seu desenvolvimento. Os
interesses do capital não são corporatistas. Só o são os interesses do trabalho
fora do capital. Um sindicato que pretende enquanto tal, ou seja, sem partido,
sem organização política de classe, ser autônomo em relação ao plano do capital
só conseguirá se constituir como a forma a mais perfeita de integração da classe
operária no capitalismo154.
152
Idem, p. 78
153
Idem, p. 103
154
Idem, p. 110
155
TRONTI, Le demon du politique, p. 78
capitalismo, mas sobre o próprio destino da classe operária. Isso talvez explique porque
Tronti insistirá que o espontaneísmo dos movimentos e das insubordinações nunca
colocaram realmente em perigo os sistemas de poder na sociedade capitalista, que
conseguiram sempre se fortalecer.
Tronti dirá que o século XX conheceu duas revoluções: a operária e a
conservadora, fascista. Todas as duas são atos teológico-políticos. O que não poderia
nos surpreender, já que o conceito vem de Carl Schmitt. Ele aponta para a estrutura
autônoma do poder soberano, sua força de decisão, sua concepção agonística do
político que mobiliza a imaginação social e o horizonte de saberes em direção a
projeções de futuro. Nesse sentido, ele recupera uma compreensão de Walter
Benjamin, que associava a capacidade revolucionária a instauração de um estado de
exceção vinculado à soberania popular. No interior dessa discussão, aparece um
cruzamento importante: a força ofensiva do proletariado, para ser efetivamente
destituinte, precisa assumir alguma espécie de horizonte messiânico. Isso não é uma
regressão teológica, mas uma força política. Nada estranho se lembrarmos que, para
Engels, a primeira revolução social do ocidente foi a revolta dos anabatistas de 1525.
Aula 11
Na aula de hoje, vamos terminar nosso módulo sobre a dialética em Marx através de
algumas considerações sobre seu projeto mais complexo e influente, a saber, O Capital;
crítica da economia política. E eu gostaria de começar por discutir o sentido desta
centralidade dada a Marx para a crítica da economia política. O que significa e por que
centralizar a crítica na ideia de uma crítica da economia política? E, principalmente, o
que significa fazer desse campo o espaço privilegiado de exercício da dialética como
modelo crítico?
O problema da relação entre dialética hegeliana e dialética marxista em O Capital
é uma das questões mais recorrentes de certa tradição da reflexão filosófica
contemporânea. É principalmente no Capital que aqueles que recusam qualquer
continuidade entre Hegel e Marx encontram seus principais argumentos. A antropologia
filosófica presente no fundamento da crítica da alienação no jovem Marx daria lugar a
uma análise das formas de produção e suas estruturas, principalmente de suas crises
imanentes. Essa análise está vinculada ao reconhecimento daquilo que à época se
chamava de “economia política”, ou seja, a análise das relações sociais de produção e
circulação de bens e riquezas no interior de sistemas políticos. Seu desenvolvimento
está vinculado a análise da administração das riquezas no interior dos estados-nação,
como podemos ver em uma das obras clássicas da economia política, a saber, A riqueza
das nações, de Adam Smith.
A importância da economia política já pode ser encontrada em Hegel através
das considerações sobre a estrutura da sociedade civil, sobre seu sistema de
necessidades e as relações sociais de interdependência que ele implica. Mas, em Hegel,
a economia política serve para o desdobramento da saída da filosofia dos limites de uma
filosofia da consciência. Não temos ainda uma crítica da economia política, como ela se
desenvolve em Marx. Os postulados da economia política tendem, com isso, a serem
aceitos como expressões de uma ciência da sociedade e seus processos necessários de
produção. Nesse sentido, o passo de Marx consiste em compreender como esse discurso
científico é a naturalização de uma política, de um sistema de poder e sujeição.
Lembremos, por exemplo, de uma afirmação como:
Por ser burguesa, isto é, por entender a ordem capitalista como a forma última
e absoluta da produção social, em vez de um estágio historicamente transitório
de desenvolvimento, a economia política só pode continuar a ser uma ciência
enquanto a luta de classes permanecer latente ou manifestar-se apenas
isoladamente156.
Marx não fala da riqueza em geral, mas da maneira como ela aparece em um modo de
produção específico, a saber, o nosso. Ela aparece como a acumulação de mercadorias.
A redução das trocas a trocas de mercadorias é o ponto de partida da crítica da
economia política, além de ser o dado mais “natural” para os sujeitos submetidos ao
modo de produção capitalista. Mas trata-se de mostrar como: “uma mercadoria
aparenta ser, à primeira vista, uma coisa óbvia, trivial. Sua análise resulta em que ela é
uma coisa muito intricada, plena de sutilezas metafísicas e melindres teológicos”158. Essa
colocação é interessante por lembrar que os processos sociais de troca no capitalismo
devem se submeter a um modo de crítica idêntico àquele que mobilizamos para
explicitar produções teológicas e pressupostos metafísicos.
Veremos então como as trocas entre mercadorias pressupõem a naturalização
de processos de abstração que tocam tanto o mundo dos objetos quanto os próprios
sujeitos produtores de mercadorias, os trabalhadores e trabalhadoras. Pois a economia
política já havia compreendido como o valor das mercadorias estava vinculada ao
trabalho, mas ela não se preocupou sobre as consequências de tal articulação entre
valor e trabalho. E as consequências é o desvelamento das formas abstratas de
dominação, assim como a extensão do processo de alienação social. Ou seja, não é
possível compreender o projeto do Capital retirando do horizonte a crítica da alienação
que funda o pensamento marxista, como faziam os althusserianos.
Essas formas abstratas de dominação irão mostrar como o dispositivo central da
produção capitalista foi a transformação do trabalho em força de trabalho. O trabalho
deve se tornar uma mercadoria, mercadoria essa que ao ser utilizada poderá produzir
mais-valor. Daí afirmações como:
Marx tenta explicar o que é exatamente o capital através de uma fórmula geral
descrita como D - M – D: conversão do dinheiro em mercadoria e reconversão da
mercadoria em dinheiro. Mas é claro que entre o começo e o fim da fórmula algo deve
157
Idem, p. 113
158
Idem, p. 146
159
Idem, p. 242
acontecer. Não faz sentido trocar uma quantidade X de dinheiro por uma quantidade Y
de mercadoria e depois receber a mesma quantidade X de dinheiro. O dinheiro investido
deve crescer e isto só pode ocorrer se houver, dentre as mercadorias usadas no processo
de produção de outras mercadorias, uma mercadoria específica cujo uso consegue
produzir mais-valor. Essa mercadoria é exatamente a força de trabalho. Ou seja, não há
Capital sem trabalho, sem uso de trabalho vivo. Capital é, no fundo, o nome que damos
para um certo tipo de uso social do trabalho.
Esse uso é marcado por uma forma de defasagem entre o valor da força de
trabalho e o valor que a força de trabalho é capaz de produzir. O valor da força de
trabalho está vinculado ao custo da manutenção e reprodução dos sujeitos portadores
da força de trabalho. O valor que a força de trabalho produz está ligada à quantidade de
tempo que consigo emprega-la e à intensificação dos regimes de produção e de seus
processos tecnológicos. Essa defasagem é o que Marx chama de mais-valia, seja em seu
regime absoluto, seja em seu regime relativo.
Mas para a força de trabalho aparecer como mercadoria, algo deve ocorrer na
sociedade. Os sujeitos devem ser arrancados de suas terras, de seus espaços de
trabalho, de seus territórios e devem ser despossuídos de tudo, a fim de se constituírem
como mercado de trabalho. E aqui aparece as reflexões de Marx a respeito da
acumulação primitiva. Para existir capitalismo, faz-se necessária uma acumulação prévia
de capital. Essa acumulação pressupõe uma separação, na sociedade, entre detentores
de capital e vendedores de trabalho. Acumular, nesse caso, é ter capital que, por sua
vez, pressupõe a separação entre os trabalhadores, as trabalhadoras e a propriedade
das condições da realização do trabalho.
A mitologia do desenvolvimento capitalista conta a história de pessoas que
desenvolveram técnicas, que inovaram e assim tiraram as sociedades da letargia e
começaram o irresistível processo de desenvolvimento, crescimento e riqueza. Mas a
crítica da economia política procura voltar à origem e mostrar, na cena originária de
produção do capital, a verdadeira violência que lhe marca. Na origem, encontra-se uma
violência originária, encontra-se as marcas de uma guerra civil contra as populações
pobres. Por isso, a produção da riqueza sob o capitalismo só pode a gestão de uma feroz
melancolia social:
161
Idem, p. 832
De fato, a maneira com que Marx utiliza o termo “fetichismo” aproxima-se, logo
de entrada, de um dos sentidos fornecidos por seu uso antropológico. Pois Marx quer
mostrar como no interior da economia das sociedades capitalistas industriais: “produtos
do cérebro humano parecem figuras autônomas, adquirindo vida própria,
estabelecendo relações uns com os outros e com os homens”162, isto desde o momento
que tais produtos são produzidos como mercadorias. Como se a esfera desencantada
das trocas econômicas fosse, no fundo, espaço de construções e processos similares
àqueles que encontramos na esfera do encantamento religioso.
Uma das múltiplas maneiras possíveis de abordagem deste problema consiste
em dizer que, ao produzirem mercadorias no interior do processo capitalista de
acumulação, os sujeitos necessariamente projetariam, isto no sentido de não poderem
mais se reconhecer naquilo que eles mesmos fazem e produzem. No entanto, devemos
nos colocar uma pergunta que apenas em aparência é simples, a saber: o que fazem
exatamente os sujeitos quando produzem mercadorias?
Como disse, não devemos compreender “mercadoria”, neste contexto, como
todo e qualquer produto humano que possa ser trocado. A mercadoria a respeito da
qual Marx se refere é aquele objeto cuja única finalidade econômica é permitir um
processo de auto-valorização do Capital (este processo através do qual uma quantidade
D de dinheiro produz um quantidade D´ maior de dinheiro). Ela é produto que, ao ser
trocado por dinheiro, permite ao dinheiro anteriormente aplicado se valorizar. Neste
sentido, a característica fundamental do capitalismo, para Marx, é organizar toda a
economia e a vida social tendo em vista tal processo incessante de valorização. Um
pouco como se, no capitalismo, o processo produtivo fosse, no fundo, uma espécie de
momento do processo especulativo. É a isto que Marx alude ao afirmar que, na
mercadoria, o valor de troca é o modo de expressão ou a forma fenomenal necessária
do valor, isto a despeito do valor de uso, ou seja, do caráter útil da coisa para o seu
comprador.
Podemos então dizer que, ao produzirem mercadorias, os sujeitos produzem
necessariamente valores de troca. Mas o que afinal eles fazem ao produzirem valores
de troca? Marx diz inicialmente que eles devem agir como quem dissolve todas as
características sensíveis dos objetos trabalhados. Mas chega a falar que: “o próprio
corpo da mercadoria é um valor de uso ou um bem”163. Tudo se passa como se o corpo
(Körper) do objeto fosse abstraído, isto para se tornar puro suporte de valores abstratos
de troca. Desta forma, o corpo da mercadoria se conforma a uma “objetividade
fantasmática” (gespenstige Gegenständlichkeit) representada pela pura quantidade do
valor de troca. Este corpo advém expressão daquilo que Marx chama de “forma-
equivalente”, o que nada mais é do que a possibilidade de todo corpo equivaler a outro,
de todo corpo passar no outro ou, se quisermos, de todo corpo dissolver-se no outro.
Esta reversibilidade absoluta dos corpos pode ser vista como uma espécie de resultado
ideal do fetichismo. Assim, o corpo dos objetos, suas características sensíveis devem ser
negadas para que um determinado valor possa ser, não apenas atribuído, mas
“encarnado”. Esta encarnação é conformação a uma idealidade (o fetiche) que se
transforma, como dizia Marx, em uma “coisa sensível suprasensível”.
Giorgio Agamben, em texto recente, mostrou como esta negação do corpo da
mercadoria seria a manifestação mais bem acabada de uma situação fundamental dos
162
MARX, Karl; O capital ...
163
Idem, p. 114
objetos no capitalismo : eles estão separados de si mesmos; “todas as coisas são exibidas
na sua separação de si mesmas”. Dizer que as coisas estão separadas de si mesmas
significa, neste contexto, dizer que elas estão submetidas a um princípio que lhes é
estranho, como vemos em afirmações como:
a mercadoria é valor de uso: trigo, linho, diamante, máquina etc., mas como
mercadoria ela não é, ao mesmo tempo, valor de uso. Fosse ela valor de uso para
seu possuidor, isto é, fosse ela imediatamente meio para a satisfação de suas
próprias necessidades, não seria mercadoria (...) Toda mercadoria deve obter sua
existência como valor de troca através de alienação de seu valor de uso, isto é,
de sua existência originária164.
Proposição arriscada pois parece nos colocar à procura de uma bizarra naturalidade
essencial das coisas.
No entanto, esta não é, como poderíamos esperar, a perspectiva de Agamben.
Tentemos, por exemplo, compreender o que está por trás da afirmação segundo a qual,
com a transformação dos objetos em suportes de valores de troca, “todo uso se torna
duravelmente impossível” pois no lugar do uso possível (que Agamben aproxima do
“livre jogo com as coisas”) só teríamos o usufruto, o consumo, ou seja, o uso submetido
a uma função utilitária ou ao mero consumo de valores de troca165. Esta dicotomia entre
uso e consumo ou, ainda, esta maneira peculiar de reordenar a dicotomia entre “valor
de uso” e mero consumo de “valor de troca” tem ao menos o mérito de nos livrar de um
certo discurso que vincula o valor de uso à pretensa esfera das necessidades naturais do
homem. A ideia fundamental parece ser aqui insistir que o “uso”, em Marx, “uso”
pensado fundamentalmente como modo de relação entre sujeito e objeto, deveria ser
idealmente aproximado de noções como “livre jogo”, “meios sem fim”, ou seja, não
redução instrumental de objetos e processos. Só através da mobilização de tais
experiências, os sujeito poderiam se reconhecer nos objetos produzidos, satisfazendo
algo que não é mera necessidade bruta, mas um desejo mais elaborado de
reconhecimento social. Não é mero acaso o fato de que a categoria do “uso” seja
reconstruída através do recurso a experiências mais próximas do campo da fruição
estética. Tal recurso parece procurar recuperar algo do paradigma do trabalho presente
no jovem Marx dos Manuscritos econômico-filosóficos, com sua constituição a partir da
expressão estética166.
Neste sentido, se voltarmos à discussão de Agamben, diremos que “consumo”
só poderá significar uma conformação instrumental de tal ordem guiando a relação
sujeito/objeto que qualquer possibilidade de reconhecimento, no objeto, da
singularidade dos sujeitos consumidores e produtores estaria bloqueada. Pois o
consumo sempre será direcionado a um valor “imaterial” que só se realiza quando o
sujeito é capaz de passar por e anular todas as determinações singulares (o que nos
remete à idéia hegeliana do consumo como infinito ruim). Neste sentido, no consumo,
fetichizamos não os objetos, mas o processo “fantasmagórico” que nos permite destruir
a materialidade de todo objeto singular e de todo sensível em geral. Neste sentido,
164
MARX, Karl; Para uma crítica da economia política, p. 40
165
AGAMBEN, Giorgio; Profanações, São Paulo: Boitempo, 2007, p. 71.
166
Sobre o conceito de trabalho no jovem Marx, ver, por exemplo, HABERMAS; Jürgen; Conhecimento e
interesse, Rio de Janeiro: Zahar, 1982
podemos mesmo dizer que a crítica iluminista do fetichismo: “implica uma nova
definição do que significava ser europeu: isto é, um sujeito livre da fixação em objetos,
um sujeito que, tendo reconhecido o verdadeiro valor (isto é, de mercado) do objeto
como mercadoria, se fixava, em vez disso, nos valores transcendentais que
transformavam o ouro em navio, os navios em armas, as armas em tabaco, o tabaco em
açúcar, o açúcar em ouro, e tudo isto em um lucro que podia ser contabilizado”. 167.
A partir disto, podemos pensar algumas conseqüências da afirmação de Marx
segundo a qual, ao agirem como quem vê na mercadoria o puro suporte de valores de
troca, os sujeitos, ao mesmo tempo, agem como se acreditassem que todos os trabalhos
singulares pressupostos pelos objetos produzidos são também equivalentes. O que
vemos em uma afirmação como:
Para medir os valores de troca das mercadorias pelo tempo de trabalho contido
nelas, os diversos trabalhos devem estar reduzidos a trabalho sem diferenças,
uniforme, simples, em suma, a trabalho que é qualitativamente o mesmo e, por
isso, se diferencia apenas quantitativamente168.
167
STALLYBRASS, Peter; O casaco de Marx : roupas, memória, dor, Belo Horizonte : Autêntica, 2008, p.
45
168
MARX, Karl; Para uma crítica da economia política, p. 33
169
MARX, Karl; O Capital, p. 116
170
De fato, a leitura que proponho não segue de maneira estrita a divisão entre a “antropologia” própria
às temáticas da alienação do trabalho no jovem Marx e o “estruturalismo” das temáticas do fetichismo
no Marx de maturidade. Divisão que ficou canonizada em ALTHUSSER, Louis; Lire le Capital, Paris : PUF,
1996. Pois seguir de maneira estrita tal divisão implica perder a capacidade de compreender como o
fetichismo da mercadoria é também: “uma forma alienada de vínculo afetivo a um objeto do desejo”
(BÖHME, Hartmut; ibidem, p. 315)
171
FAUSTO, Ruy; Dialética marxista, dialética hegeliana: a produção capitalista como circulação simples,
São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 168
Notemos ainda que o fetichismo da mercadoria expressa uma forma específica
de dominação própria ao capitalismo. Nela, os seres humanos são dominados não
exatamente por outros seres humanos, mas pela própria estrutura de determinação do
valor. Por isto, a relação social de dominação ganha a forma de uma relação entre coisas.
Isto significa que a maneira com que as “coisas” se determinam, a maneira com que elas
se relacionam, impondo um dinâmica de abstração real, irá dominar seres humanos
“livres” (pois vendedores livres de sua própria força de trabalho), pois transformará o
sentido de seus trabalhos, a forma de suas sensibilidades e percepções, fazendo a
atividade de cada indivíduo a mera expressão de um processo de autovalorização do
capital. Daí porque Marx lembrará que não haverá tal fetichismo nas relações medievais
entre vassalos e suseranos pois, neste caso, as relações de dominação já estão explícitas
no nível das relações entre pessoas: “Mas é justamente porque as relações pessoais de
dependência constituem a base social dada que os trabalhos e seus produtos não
precisam assumir uma forma fantástica distinta da realidade”172.
172
MARX, Karl; O capital, p. 152
Aula 12
173
ADORNO, Theodor. Spätkapitalismus oder Industriegessellschaft? In: Soziologische Schriften I.
Frankfurt: Suhrkamp, 1972 , p. 363-364.
174
MARX, Karl; O Capital- volume I, São Paulo: Boitempo, p. 91
Portanto, será uma questão de refletir sobre as estruturas da dialética no campo
das lutas reais pela transformação social. Se Marx insistiu, por exemplo, que
abandonássemos o modelo hegeliano de síntese por rememoração e operássemos com
uma noção historicamente configurada de trabalho social, foi porque ele viu
potencialidades revolucionárias diante de si. Potencialidades que seriam perdidas se
negligenciássemos a maneira pela qual as transformações reais ocorrem por meio do
que poderíamos chamar de "indução material da sensibilidade".
Para serem reais, essas transformações exigem a constituição de um sujeito
revolucionário capaz de modificar a estrutura material global da sensibilidade por meio
de uma crítica da sociedade do trabalho e de suas formas de submissão da atividade
humana às estruturas capitalistas de produção de valor. Esse sujeito revolucionário será
o proletariado. Dessa forma, a dialética nas mãos de Marx se torna uma teoria da
revolução social e do surgimento de um sujeito revolucionário. Mais do que uma teoria
do capital, de suas crises e de seus processos de acumulação capitalista, a filosofia de
Marx é uma teoria da revolução, da alienação como sofrimento social que impulsiona o
surgimento da ação política do proletariado. A noção dialética de conflito ganha assim
sua figura de combate.
Vimos como o surgimento do proletariado como agente político não está ligado
apenas à expectativa de uma redistribuição justa da riqueza. Ele não é motivado apenas
pela luta por justiça social. Tentei levantar a hipótese do conceito de proletariado, assim
como sua ação revolucionária, apontar para o surgimento de formas de possibilidade de
reconhecimento social que transformam radicalmente os modos de afeto e
sensibilidade, a única condição para superar a alienação da atividade humana na forma
de trabalho produtor de valor. A crítica da propriedade realizada pela teoria marxista da
revolução não é apenas uma crítica de uma forma de organização social, mas também
de uma organização das relações do sujeito consigo mesmo, com os outros e com os
objetos. A despossessão do proletariado não é apenas uma descrição de uma condição
material, mas uma declaração política de desconexão em relação à reprodução material
da forma de vida burguesa.
É por isso que, ao discutir o conceito de proletariado, insisti em vinculá-lo aos
conceitos do jovem Marx, como ser do gênero e vida do gênero. Essa era uma forma de
indicar o tipo de humanidade que Marx estava a buscar como horizonte de redenção
política. Por outro lado, insisti no fato de que essa concepção do proletariado pressupor
uma noção de negatividade e estrutura antipredicativa que tem suas raízes na dialética
hegeliana. É a transposição, para o campo político, do princípio hegeliano de uma
atividade cuja estrutura é eminentemente negativa. Essa estrutura é a condição para
romper com a adesão a qualquer representação natural e para a transformação efetiva
dos modos de conhecimento e ação.
É nesse sentido que proponho abordar nosso último tópico: a dialética negativa
de Theodor Adorno. Gostaria de enfatizar que a dialética negativa é o reflexo
historicamente situado da necessidade da dialética pensar os processos de surgimento
de transformações sociais. No entanto, ela precisa enfrentar um horizonte histórico
reconfigurado, marcado pelo recuo revolucionário e pela crescente complexidade da
constituição do proletariado, não apenas como uma classe social, não apenas como uma
força de trabalho, mas como uma "força ofensiva" contra o capital, como diria Marx.
Pois a dialética negativa deve se desdobrar em uma realidade histórica marcada:
A natureza que não se purificou nos canais da ordem conceitual para se tornar
algo dotado de finalidade; o som estridente do lápis riscando a lousa e
penetrando até a medula dos ossos, o haut goût que lembra a sujeira e a
putrefação; o suor que poreja a testa da pessoa atarefada; tudo o que não se
ajustou inteiramente ou que fira os interditos em que se sedimentou o progresso
secular tem um efeito irritante e provoca uma repugnância compulsiva175.
É ainda mais fácil para a burguesia provar, usando sua própria linguagem, a
identidade das relações mercantis e individuais, ou das relações humanas em
geral, porque essa linguagem é, ela própria, um produto da burguesia e porque,
consequentemente, na linguagem como na realidade, as relações do
comerciante se tornaram a base de todas as outras relações humanas. Por
exemplo, propriedade significa tanto Eigentum quanto Eigenschaft,
propriedade: Eigentum e Eigentümlichkeit, "propre" no sentido comercial e no
sentido individual, avaliador, valor, Wert - comércio, Verkehr - échange,
Austausch, etc., termos que são usados tanto para traduzir relações comerciais
quanto para expressar as qualidades e relações dos indivíduos como tais. Em
outros idiomas modernos, é exatamente o mesmo176 .
À sua maneira, Engels e Marx dizem que o capitalismo constrói a linguagem, que ele é
uma gramática social, que nunca abandonaremos o capitalismo enquanto acreditarmos
na gramática. Mas é aí que os problemas da dialética negativa realmente começam,
porque é possível que não tenhamos outra gramática. Isso torna a experiência crítica
175
Idem, p. 168
176
ENGELS, Friedrich e MARX, Karl, German Ideology, p. 263
uma autocrítica da própria razão, embora não esteja claro o que essa autocrítica pode
realmente significar. Como a razão pode criticar a si mesma sem perder seu próprio
fundamento normativo?
Eu gostaria de começar com esse problema, porque ele pode nos explicar em que
sentido a dialética de Adorno é "negativa", que significa "negativa" nesse contexto. E eu
gostaria de mostrar que ela deve ser uma dialética negativa, que insiste na força da
irreconciliação e da não-identidade, por causa de sua fidelidade a um horizonte
propriamente revolucionário. Um horizonte que seria abandonado pelos
desenvolvimentos posteriores da Escola de Frankfurt. Portanto, a leitura que estou
propondo é uma tentativa de evitar o que poderia ser chamado de "domesticação" da
crítica por meio de um recuo dos horizontes revolucionários e do abandono da dialética
que teria ocorrido a partir do que convencionamos chamar de “Segunda geração da
Escola de Frankfurt”.
Portanto, gostaria de organizar nossas sessões seguintes dando prioridade em
cada uma delas a uma operação central da dialética negativa. Na aula de hoje, gostaria
de discutir o projeto de uma autocrítica da razão. Na aula seguinte, veremos como o
recurso de Adorno a uma antropologia psicanalítica fornece um eixo importante para a
constituição do horizonte normativo da crítica. Por fim, examinaremos o conceito de
não-identidade e seus usos políticos.
Vamos começar com uma crítica que tem sido feita com frequência a Adorno, a
saber, que uma autocrítica da razão seria apenas uma aporia niilista. Assim, a crítica se
tornaria uma espécie de "prática ad hoc de negação determinada", como diria
Habermas, nos levando necessariamente à aporia de uma crítica totalizante da razão
incapaz de se orientar a partir de um horizonte concreto de reconciliação.
Nesse contexto, prática ad hoc da negação determinada significa o exercício
desorientado e contínuo de expressar a insuficiência, a inadequação entre a coisa e seu
conceito. Como se se tratasse de uma crítica imanente que não mais funcionasse, como
ainda funcionava com Hegel, como a denúncia da parcialidade das figuras da consciência
tendo em vista à sua reconciliação em uma totalidade verdadeira fornecida pelo
Espírito. Pois não haveria mais razão na história, não haveria mais nenhum processo de
totalização possível, uma vez que a razão retirou de seus pés o fundamento normativo
da crítica. Nesse sentido, a dialética "negativa" seria a descrição de uma forma de
"amputação". Como se a dialética negativa fosse uma dialética amputada do momento
da síntese positivo-racional. Uma amputação resultante principalmente da suposta
liberação da negação determinada de sua função estruturante dentro da noção
hegeliana de totalidade. Em outras palavras, a dialética negativa seria um tipo de
negação determinada generalizada sem um horizonte efetivo de reconciliação.
Pensem, por exemplo, no que Habermas disse sobre o projeto por trás da crítica
da racionalidade instrumental na Dialética do Esclarecimento. Para Habermas, o
objetivo de Adorno e Horkheimer com esse livro era dizer que :
178
ADORNO e HORKHEIMER, p. 40
Aula 13
Na última sessão, começamos a discutir o projeto de uma dialética negativa. Para tanto,
partimos dos problemas postos por uma crítica totalizante da razão. Foi importante para
nós entendermos melhor porque essa era uma dialética "negativa". De fato, a dialética
será negativa não porque se torna uma prática ad hoc da negação determinada, não
porque ela estaria cortada do momento de síntese. Ela é negativa por entender que as
figuras de síntese e totalização historicamente disponíveis são insuficientes, pois elas
estão envolvidas em formas sociais de dominação. É por isso que Adorno dirá:
A dialética não deveria temer a crítica de ser obcecada ela ideia fixa do conflito
objetivo em uma coisa já pacificada; nenhuma coisa está em paz no todo não
pacificado. Os conceitos aporéticos da filosofia são a marca do que é
objetivamente, e não apenas do ponto de vista cognitivo, não resolvido179 .
Assim, essa dialética usará a negatividade para forçar a produção de formas de síntese
e totalidade que, nas condições atuais, só podem ser entendidas como impossíveis. Ela
será fiel à ideia de que o que poderia ser diferente ainda não começou, porque: "a
antecipação filosófica da reconciliação é um ataque à reconciliação real".
Mas se a antecipação filosófica da reconciliação é um ataque à reconciliação real,
é porque a filosofia não tem a gramática de um pensamento reconciliado com a
diferença e a singularidade. A dominação social inerente ao capitalismo como modo de
vida é a realização destinal da própria razão ocidental. Vimos isso ao tentarmos
entender o sentido da submissão da crítica da economia política à crítica da razão
instrumental. Era a maneira de dizer que a dominação social não está ligada apenas às
formas sociais de despossessão do trabalho. Ela está ligada à maneira com que
definimos as condições de possibilidade da experiência, a maneira que naturalizamos as
formas de pensamento.
Mas também vimos como essa autocrítica da razão inerente à dialética negativa
foi criticada por alguns. Para seus detratores, não haveria lugar para alguém que
buscasse criticar a razão ocidental a não ser o irracionalismo. Atualmente, não é difícil
ouvir a dimensão colonial de tal argumento. Pois, de acordo com ele, fora da razão
ocidental, não haveria outra forma de racionalidade, haveria apenas mito. Terminamos
nossa última sessão enfatizando que uma das operações fundamentais da Dialética do
Esclarecimento foi justamente suspender as distinções estritas entre mito e razão a fim
de mostrar como o mito habita a razão e como a razão habita o mito, como há uma
passagem contínua de uma na outra. Era uma forma de mostrar como a distinção entre
a razão e seu outro interna à própria razão. A todo momento, o mito e a razão se voltam
contra si mesmos, em um movimento contínuo de autocrítica.
Mas eu disse que há ainda outra dimensão se quisermos entender como a
dialética negativa fundamenta seu horizonte crítico. Pois devemos estar cientes de que
a fundamentação da dialética negativa requer tirarmos as consequências da articulação
necessária entre crítica e sofrimento. Como disse anteriormente, o pensamento crítico
baseia seu horizonte na escuta do sofrimento e de suas produções. Dessa forma, o mal-
estar, os sintomas, as ansiedades e as inibições são compreendidos não apenas como
179
ADORNO, Dialética negativa, p. 23
falhas no processo de socialização, mas como marcas de uma vida mutilada que se volta
contra sua própria mutilação. Foi com isso em mente que Adorno se voltou à psicanálise.
Pois a psicanálise lhe forneceria uma teoria materialista da constituição do Eu e da
personalidade capaz de explicar como o processo de socialização e individuação
produziria um sistema de cicatrizes e feridas, bem como um aparelho psíquico marcado
pela irredutibilidade do conflito e da clivagem.
Tais considerações são importantes para as estratégias autocríticas da razão
porque o "Eu" em questão não deve ser entendido simplesmente como uma entidade
psicológica, mas como um princípio transcendental da unidade sintética da percepção.
A sua maneira, Adorno não admite distinções estritas entre psicológico e
transcendental. Esse é um ponto importante já que, como havia lembrado a vocês, para
a dialética “toda determinação transcendental é uma instituição social”. Essa submissão
do transcendental ao esclarecimento das condições históricas de sua emergência toca
principalmente o Eu, o sujeito transcendental. E tal esclarecimento histórico da gênese
do Eu é fornecido pela psicanálise, devido a sua maneira de submeter a constituição do
Eu às dinâmicas sociais de identificação.
Sabemos que a razão moderna entenderá o sujeito como o fundamento da
razão. Elevar o sujeito à condição de fundamento implica afirmar que o sujeito fornece
a medida de tudo o que pode ser submetido à razão, sua capacidade de determinação
e de representação fornece as condições gerais do pensável, do que há a reconhecer. O
sujeito é a medida que torna possível a constituição, que determina as condições do que
pode ser o objeto da experiência. Por isso, ele é uma instância constituinte. A estratégia
de Adorno e Horkheimer consistirá em expor a gênese desse sujeito moderno e as
condições reais que contribuíram para seu surgimento. Daí afirmações como :
180
ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 41
psíquico que tal exclusão produz, que tal segregação constitui, é possível recompor a
história material do que foi perdido para se tornar um Eu.
Essa passagem é possível porque a psicanálise tem uma especificidade importante para
Adorno. Ela não é apenas uma forma de ouvir o sofrimento psíquico. Há de se lembrar
que a experiência freudiana se baseia no entendimento de que tais clivagens e conflitos
não são deficiências a serem remediadas por um processo mais bem-sucedido de
adaptação social e capacitação individual. Eles são a expressão da natureza violenta da
dinâmica mutiladora da socialização e da constituição de estruturas de síntese psíquica.
Pensemos, por exemplo, na especificidade da categoria de mal-estar
(Unbehagen) em Freud. Mal-estar é o conceito freudiano central para entender as
formas de sofrimento social. Ele descreve a existência de um sofrimento relativo não à
desregulação das normas sociais, ao fato do processo civilizacional estar desregulado.
Ele é o resultado do funcionamento normal dos processos de individuação e de
personalização, tais como desenvolvidos na dinâmica civilizatória ocidental moderna. O
mal-estar indica como o modelo de normatividade social hegemônico em nossas formas
de vida é indissociável da produção neurótica do sentimento de culpa. Neste sentido, se
Freud afirma que o sentimento de culpa é o problema fundamental do processo
civilizatório é, entre outras coisas, por não haver socialização, não haver produção de
sujeitos sem a internalização de um princípio de controle que usa a culpa como seu
dispositivo central. Pois ele transforma toda revolta contra as limitações da ordem, toda
restrição pulsional, toda violência exterior em culpa pela contraviolência que
procuramos mobilizar. Essa culpa é forma de internalizar a violência social através da
constituição de uma instância moral de observação chamada por Freud de “supereu”.
Dessa forma, o conflito social se torna conflito psíquico.
Mas o dado importante de Freud consiste em insistir que tais conflitos psíquicos
mostram como os sujeitos aspiram não exatamente a uma unidade restaurada dentro
de uma vida social reconciliada. Eles aspiram, mesmo que de forma inconsciente, o
surgimento de novas formas de síntese capazes de libertá-los da primazia da identidade
e da unidade, daquela "autoidentidade que não pode ser perdida na identificação com
o outro, mas que se apodera definitivamente de si mesmo como uma máscara
impenetrável". Os sintomas são formas de mensagem em direção ao Outro, por isso são
expectativas, mesmo que distorcidas, de outra forma de relação ao Outro.
É nesse sentido que o recurso de Adorno a Freud o ajudará a definir o horizonte
de uma "vida correta". Freud fornecerá a base material para a existência de um desejo
de não-identidade capaz de levar os sujeitos ao reconhecimento de uma alteridade real;
ele fornecerá a base pulsional para tal conceito, que será decisivo para a reorientação
da dialética e de seu poder crítico. Há uma existência pulsional da não-identidade.
Assim, a realização de tal horizonte não estará simplesmente ligada a uma crítica da
repressão exigida pela vida social, mas à constituição de novas formas de síntese
psíquica que não são simplesmente traçadas a partir de um Eu, como vemos em
afirmações como :
Os homens só são humanos quando não agem e não se põem (setzen) mais como
pessoas; esta parte difusa da natureza na qual os homens não são pessoas
assemelha-se ao delineamento de uma essência (Wesen) inteligível, a um Si que
seria desprovido de eu (jenes Selbst, das vom Ich erlöst wäre). A arte
contemporânea sugere algo disto181.
A dialética do Eu
Mas vamos tentar entender melhor esse recurso a Freud na renovação da crítica
dialética. A psicanálise permite a Adorno entender como a relação com o que foi
separado do sujeito para que ele possa se constituir como um Eu preserva o potencial
de liberdade na não-identidade. Adorno é claro nesse sentido quando diz:
181
ADORNO, Negative Dialektik, Frankfurt, Suhrkamp, 1975, p. 274
182
Cf. ADORNO, Dialética negativa, p. 214.
183
Idem, p. 221.
A colocação é clara. A possibilidade concreta da liberdade está ligada, entre
outras coisas, a uma dinâmica pulsional não repressiva. Sem a rememoração do que
precisa ser esquecido no processo de socialização das pulsões, a liberdade não pode ser
criada, a emancipação não pode se realizar. Não só porque o sujeito não precisaria mais
pagar o saldo de violência vindo do processo civilizacional, mas porque essa mudança
na relação a si implica mudança na relação ao objeto, ao mundo e a outros sujeitos.
Mas notemos como todo o esforço de Adorno está em dar ao Eu uma dinâmica
dialética que ele não tem. Tal como ele se desenvolveu, o Eu é uma instância rígida,
segregacionista, agressiva. Fazer do Eu uma instância dialética consiste em recuperar as
pulsões pré-egoicas parciais sem que isso implique em regressão. Por outro lado, falar
de uma "dialética" do Eu implica aceitar um movimento que não é uma operação de
retorno a proposições do tipo Eu=Eu. O retorno ao Eu dentro de uma dialética não pode
significar o restabelecimento da representação inicial, mas a decomposição do caráter
natural da primeira representação e a constituição de relações em um nível que não
existia até então. Caso contrário, seria inútil falar de dialética.
Normalmente, vinculamos o surgimento do Eu moderno às exigências da
realização dos princípios da autonomia e da autodeterminação da própria identidade.
Adorno e Horkheimer insistem, no entanto, que o impulso para criar o Eu moderno está
ligado a fatores psicológicos como: medo do que não posso controlar ou prever (por não
se submeter à imagem de mim mesmo) e, consequentemente, a dominação como a
pedra angular dos processos de autopreservação. Pois a faculdade fundamental que
constrói o campo no qual o Eu pode se afirmar é aquela determinada pelo impulso de
autocontrole, que tem dois operadores principais: o controle da multiplicidade de
conteúdos por meio da unidade da forma e o controle da diferença por meio da
identidade. Esse controle é autocontrole porque a experiência da multiplicidade e da
diferença que resistem à submissão por meio da forma e da identidade é algo que se
manifesta inicialmente na relação à si mesmo. Vamos nos lembrar de uma afirmação
como :
A razão tem um terror mítico do mito. Ela descobre sua presença não apenas em
conceitos e palavras que permaneceram obscuros, como acredita a linguística
semântica, mas em qualquer afirmação humana que não se enquadre na
estrutura teleológica da autopreservação184 .
Ao menos algo negativo pode ser dito sobre o conceito de homem correto
(richtigen Menschen). Ele não seria nem mera função de um todo que o afetasse
tão profundamente que já não poderia distinguir-se dele, nem consolidação em
sua pura ipseidade (Selbstheit); essa, precisamente, é a estrutura do mau
naturalismo que ainda perdura. Se fosse um homem correto, já não seria uma
personalidade, mas tampouco algo que estivesse abaixo de uma personalidade;
não seria um mero feixe de reflexos, senão algo distinto de ambos. É o que
resplandece na visão hölderliniana do poeta: “Prossegue, pois, desarmado/
Avante pela vida e nada temas!”.
Esta é a nossa última sessão. Vocês ainda devem se lembrar que comecei esse curso
dizendo que, do ponto de vista filosófico, não seria exagero afirmar que o presente era
o nome que dávamos às linhas de fuga em relação à dialética. Em outras palavras,
estamos atualmente em um horizonte histórico-filosófico marcado por certas figuras do
próprio pensamento crítico que veem, na dialética, um inimigo a ser combatido e um
erro a ser evitado. Para eles, precisamos nos distanciar da dialética se quisermos que o
pensamento esteja à altura das exigências de transformação a que nossa época aspira.
Nesse sentido, o curso que propus tinha duas funções. A primeira era abordar a
dialética como uma tradição de pensamento. Em outras palavras, eu queria mostrar
como é possível entender uma tradição, como é possível estudar uma tradição, com
toda a tensão interna que isso implica. Uma tradição é formada por autores que não
estão necessariamente em uma relação de filiação, mas que estão necessariamente em
uma relação de transmissão. A filiação ocorreria se nossos autores se vissem como
continuadores e revisores dos autores que os precederam. Eles discutiriam sobre o
significado real dos textos deixados pelos autores do passado, porque veriam o presente
como um tempo em continuidade com o passado.
Mas a relação entre Hegel, Marx e Adorno era tensa, marcada por críticas e
rejeições contundentes. Vimos isso na relação entre Hegel e Marx. Poderíamos mostrar
o mesmo para Adorno. No entanto, essa tensão nunca questiona a dialética, ou o que
na dialética a determina como um regime tanto de crítica social quanto de crítica da
razão e de abertura a horizontes de ação de transformação estrutural. Isso nos lembra
como a transmissão implica rupturas e revisões. Eu poderia explorar outro caminho, ou
seja, insistir nos pontos internos de divergência, que não são raros. Mas se eu preferi
outra direção, era para mostrar como a recuperação do sistema de transmissão entre
Hegel, Marx e Adorno pode nos informar sobre as tarefas filosóficas do pensamento
crítico contemporâneo. Pois esse sistema de transmissão mostrava que o exercício do
pensamento crítico não é indiferente à especificidade de contextos. Não se trata de
simplesmente esclarecer disposições de pensamento e imaginar que elas terão efeitos
similares em contextos sócio-históricos distintos. Nesse sentido, a verdadeira
transmissão exige uma intelecção precisa sobre as configurações temporais das crises
contra as quais o pensamento se bate.
Essa consideração é importante para nos perguntarmos sobre o que podemos
esperar da dialética hoje. E creio que seria o caso de partir da sua última configuração
histórica, a saber, a dialética negativa. Durante todo esse curso eu apresentei a vocês
alguns dispositivos de crítica desenvolvidos no interior da história contemporânea da
dialética. Eu quis mostrar como tais dispositivos continuavam operando, mas com
produtividades próprias vinculadas ao sistema de tarefas postas ao pensamento e à ação
em contextos históricos determinados. E quis também mostrar como a dialética desde
seu início era solidária da compreensão de que os sistemas de crises aos quais ela se
confrontava se desdobrava também como crise da linguagem filosófica, alguns dentre
nós, como Paulo Arantes, chegaram a entender isso como a necessidade de certa forma
de retração que nos faria operarmos, no máximo, com uma filosofia implícita, que não
encontra mais as condições para sua própria enunciação como tal. Uma decisão como
essa é indissociável da compreensão do sistema conexo entre crise social e crise da
própria linguagem filosófica enquanto horizonte pretensamente privilegiado para a
junção entre crítica e reflexão sobre as condições para a ação.
Mas eu gostaria de defender com vocês a tese de que nosso presente, em certa
medida, continua o diagnóstico social que originou a dialética negativa nos anos
sessenta, mas em outro ponto se diferencia dele por explicitar um horizonte de baixa
integração econômica e de alta integração psico-cultural. Isso consolida potencialidades
e problemas não completamente simétricos àqueles apontados pela dialética negativa,
embora o horizonte traçado por Adorno ainda seja, em larga medida, fundamental para
a orientação do pensamento e de seus desafios presentes. Nesse sentido, as pretensas
deficiências da dialética negativa apontadas pelas gerações posteriores da Escola de
Frankfurt são frutos de uma má-compreensão a respeito do horizonte potencial de crise
impulsionado pelas sociedades do capitalismo avançado. Ou seja, Adorno compreendeu
melhor do que seus “sucessores” o sentido Por isso, o diagnóstico adorniano guarda
atualidade extrema.
Um exemplo do que tenho em mente pode ser encontrado em Axel Honneth.
Pois exemplar, neste sentido, é a defesa, feita por Axel Honneth, da social-democracia:
“Como uma fase do desenvolvimento das sociedades capitalistas que se caracteriza por
um número excepcional de progressos normativos”, isso a ponto de falar dos
“progressos morais da era social-democrata”185. A temática da regulação da crítica social
através de certa teoria do “progresso moral” estará presente nos desdobramentos
posteriores da Escola de Frankfurt. Entre outros, ela pressupõe que possamos falar em
“progresso” por acreditar que os modos de existência na sociedade capitalista, sob o
governo preferencial da social-democracia, estariam a realizar paulatinamente
exigências históricas de reconhecimento e emancipação. Uma proposição desta
natureza chega a assumir a necessidade de reconhecer “demandas de solidariedade
inerentes ao mercado” que constituiriam um horizonte regulador das relações
mercantis, já que estas não pressuporiam apenas o reconhecimento dos indivíduos
como parceiros em relações contratuais, mas também como: “participantes de uma
comunidade de cooperação (kooperierenden Gemeinwesens)”186.
É claro que tais proposições estão a anos-luz de distância do horizonte crítico de
Adorno e soariam para ele como a capitulação final diante da crença no caráter
intransponível da sociedade de mercado com suas dinâmicas imanentes de reificação. É
verdade que posições como essas, de certa forma, desdobram uma guinada feita por
Horkheimer ao final de sua vida, ao fazer afirmações como:
Nossa teoria crítica mais atual não defende mais a revolução, pois depois da
queda do nacional-socialismo nos países ocidentais a revolução conduziu
novamente a um terrorismo, um estado aterrador. Trata-se, na verdade, de
conservar o que é positivo, como por exemplo a autonomia da pessoa individual,
o significado dos indivíduos, suas psicologias diferenciais, certos momentos da
cultura, sem suspender o progresso187.
.
185
HONNETH, Axel. Les paradoxes du capitalisme: un programme de recherche. In: La société du mépris.
Paris: La Découverte, 2006
186
HONNETH, Axel. Das Recht der Freiheit. Frankfurt: Suhrkamp, 2013, p. 328
187
HORKHEIMER, Max. Kritische Theorie gestern und heute. In: Gesammelte Schriften, v. 8. Frankfurt:
Suhrkamp, 2003, p. 341
Eu insistiria que essa, em definitivo, não é a posição de Adorno, e posso garantir
a vocês que não há nada de estranho em você paulatinamente se dissociar, sem fazer
muito alarde, de posições próprias a pessoas com as quais você trabalha
sistematicamente. E não poderia ser diferente para alguém que afirmará, de maneira
muito clara
188
ADORNO, Theodor. Mensagens numa garrafa. In: ZIZEK, Slavoj (Org.). Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2007, p. 50
Lukacs em História e consciência de classe com sua compreensão da forma-mercadoria
como uma forma geral de objetividade social. Em outras palavras, a mercadoria não é
um objeto, ela é uma forma, uma abstração que define estruturas de equivalência,
relações de troca que tendencialmente moldam todos os sistemas de relações das
sociedades capitalistas. Pense, por exemplo, em declarações como :
189
ADORNO, Dialética negativa, p. 17
refira ao capital. Da mesma forma, não há forma de pensamento que não esteja situada
em uma totalidade antagônica. Alguns podem acreditar ser possível e necessário
desenvolver práticas contra-hegemônicas e pensamento contra-hegemônico. Isso
porque, em um período histórico como o nosso, a emergência da diferença apareceria
preferencialmente na forma de experiências silenciadas e reprimidas por matrizes
hegemônicas de pensamento, ou na forma de multiplicidades antropológicas de
experiências epistêmicas que são irredutíveis aos postulados da racionalidade ocidental
moderna.
Mas as práticas contra-hegemônicas pressupõem a existência estratégica de um
senso comum, no sentido kantiano de um sensus communis. É no interior desse senso
comum, ocorrerá a luta pela hegemonia. Contra hegemonia significa reconhecer a
hegemonia como campo de combate e de luta. Adorno não pode aceitar essa estratégia,
insistindo que a própria defesa do senso comum é a maneira pela qual a dominação
social opera, a maneira pela qual ela nos força a transcrever nossas lutas em sua
gramática, forçando-nos a aceitar a gramática daqueles contra quem estamos lutando.
Por essa razão, vimos na última sessão como Adorno foi levado a "romper, com
a força do sujeito, o engano da subjetividade constitutiva", como ele diria no prefácio
da Dialética Negativa. a sedução de uma subjetividade constituinte mascarava o caráter
projetivo das categorizações do pensamento. Essas projeções foram feitas como um
mecanismo de defesa para uma subjetividade centrada na preservação do Eu como uma
unidade sintética de percepções. Assim, um de seus objetivos era mostrar como as
experiências de sofrimento do sujeito tornam explícitas as marcas da violência da razão.
Mostrar como o que está alojado no sujeito como não-identidade carrega a base da não-
integração. O sujeito não aparece como uma entidade substancial, mas como o próprio
local de uma clivagem, uma divisão, um descentramento, uma violência. Daí afirmações
como :
Lá onde o pensamento se projeta para além daquilo a que, resistindo, ele está
ligado, acha-se a sua liberdade. Essa segue o ímpeto expressivo do sujeito. A
necessidade de dar voz ao sofrimento é condição de toda verdade. Pois
sofrimento é objetividade que pesa sobre o sujeito; aquilo que ele experimenta
como seu elemento mais subjetivo, sua expressão, é objetivamente mediado190
.
O problema do fascismo
191
ADORNO, Theodor; Educação e emancipação, São Paulo: Paz e Terra, p. 30
192
ADORNO et ali; Estudos sobre a personalidade autoritária, São Paulo: Unesp, 2021, p. 79
quantidade tão grande de variáveis para descrever a passagem ao ato autoritário,
muitas delas não exatamente vinculadas a uma estrutura de personalidade, que se torna
uma quimera. Por outro lado, a noção de “predisposição”, de “suscetibilidade” é
epistemologicamente frágil porque não podemos definir, com precisão, as condições
externas que, caso presentes, irão necessariamente atualizar uma possibilidade. Isso
seria cair em uma perspectiva necessitarista, mas agora de uma espécie de
“necessitarismo psicológico”.
No entanto, os Estudos talvez acabem por preencher outra função. Em dado
momento, o texto reconhece que padrões de personalidade que foram desprezados
como ‘patológicos’ podem se revelar como “nada mais que exageros daquilo que era
quase universal sob a superfície daquela sociedade”193. Essa colocação, se tomada de
maneira enfática nos coloca diante do que pode ser a verdade contribuição de uma
discussão dessa natureza. Ser fiel a tal compreensão poderia nos levar a questionar o
sentido de singularizar um “tipo” de personalidade que definiria padrões gerais de
comportamento autoritário. O que podemos chamar de “personalidade autoritária” é,
na verdade, a explicitação do saldo normal dos processos de socialização e individuação
em nossa sociedade. O que é uma tese ainda mais significativa.
Tomemos um dentre vários pontos possíveis dessa discussão. Se admitirmos que
um dos principais sistemas de socialização nas sociedades capitalistas contemporâneas
é a indústria cultural, então não deveria nos surpreender perceber como narrativas
paranoicas e complotistas, estruturas de estereotipia e funcionalização, são o elemento
natural de seus produtos, são as narrativas normais dos discursos que a compõe. Da
mesma forma, a lógica da personalidade como “tipologia” é um dado objetivo no
interior de tais sistemas de socialização.
Se assim for, devemos tirar as consequências de vivermos em uma era de colapso
de gramáticas políticas alternativas, ou seja, era na qual a comunicação política se
organiza a partir dos ditames gerais e dos modos de determinação próprios dos setores
mais fetichizados da indústria cultural. Em uma era dessa natureza até mesmo a
esquerda se comunica sem colocar em questão os modos de visibilidade e organização
de discursos próprios à indústria cultural. Estamos na era da “esquerda instagram” e isso
tem consequências. Uma delas é a generalização de estruturas de personalidade que se
organizam a partir das características de discurso da indústria cultural. Personalidades
estereotipadas, funcionais e que atuam lógicas paranoicas. E não será um acaso lembrar
que alguns dos principais líderes da extrema-direita vieram do entretenimento (Trump,
Berlusconi). Bolsonaro, por exemplo, ficou conhecido nacionalmente graças a sua
participação em programas televisivos de ... humor. O humor é aqui uma peça central,
pois se trata de operar a identificação com tais lideranças de forma “cínica”., isso no
sentido de identificações que se colocam como “mera aparência” e que, dessa forma,
permitem que os discursos mais violentos circulem, produzam efeitos, sem que os
agentes se auto-descrevam como efetivamente implicados. Algo fundamental para
sustentar as estruturas violentas da personalidade sem exigir o preço próprio a uma
ética da convicção. Tudo isto nos mostra como a indústria cultural é a linguagem natural
da extrema-direita e talvez não seja mero acaso que ela volte a crescer exatamente no
momento em que a crítica cultural não parece mais fazer sentido para setores
hegemônicos da esquerda.
193
Idem, p. 82
Nesse sentido, o fato realmente digno de pesquisa não seria a existência de uma
“personalidade autoritária”, mas de subjetividades com forte potencial crítico em
relação a seu próprio autoritarismo. Ou seja, o ponto de partida dos Estudos sobre a
personalidade autoritária está, de certa forma, “de cabeça para baixo” se aceitarmos
várias elaborações dos próprios frankfurtianos. Mais do que especificar um certo tipo
de personalidade, seria o caso de generalizar os traços autoritários a toda e qualquer
personalidade. E seria também o caso de descrevermos as coordenadas sócio-históricas
que produzem as condições para a expressão do autoritarismo inerente à personalidade
em fascismo, isso a fim de chegar no caso efetivamente específico, a saber, de um
sujeito sensível ao autoritarismo de sua própria personalidade.
Se aceitarmos esse ponto, será o caso de afirmar que, longe de ser alguma forma
de explosão de irracionalidade e de regressão social, o fascismo seria a realização de
uma estrutura psicológica que nascera como se fosse a condição subjetiva para a
implementação de exigências normativas de liberdade social e maturação, mas que se
invertera necessariamente em seu contrário. Um capítulo da história das inversões da
razão em princípio de dominação social.
O problema legado
Esse ponto ajuda bastante a explicar a dimensão "negativa" da dialética negativa. Trata-
se de compreender a inseparabilidade entre razão e dominação social para insistir no
fato de que aquilo que decompõe a lógica com base nas exigências do objeto carrega o
conteúdo da verdade.
Isso tem consequências fundamentais para o horizonte das lutas sociais às quais
a dialética está ligada. A dialética é uma forma de pensamento que insiste na força crítica
das contradições, porque em todas as suas versões ela nos lembra da importância dos
mecanismos críticos da totalidade. Para a dialética, não há transformações locais,
apenas transformações globais. Isso significa que as transformações locais que não
estão organizadas em uma contradição global perdem sua realidade e têm uma
sobrevivência momentânea; elas serão frágeis e completamente efêmeras. As
transformações locais devem ser gerenciadas como modos de contradição em relação à
estrutura genérica de nossa situação atual. A contingência de suas formas locais de
produção deve ser transubstanciada em ressonância genérica. E esse é um ponto
central: os mecanismos de crítica da totalidade dependem necessariamente da
possibilidade do surgimento de um campo de implicação genérica, do reconhecimento
de singularidades além de todo contexto e limitação. Pois as singularidades requerem
uma existência que não dependa de solidariedades situadas em territorialidades
específicas.
Ao não falar do destino da contradição para além do capitalismo, ao reconhecer
tacitamente a possibilidade do surgimento "pela primeira vez da pluralidade do diverso
sobre o qual a dialética não teria mais nenhum poder", ao lembrar a possibilidade de
ver o surgimento de uma "situação justa" que não seria nem sistema nem contradição,
Adorno insiste no fato de que a única maneira de sair deste mundo é elevar ao
impossível a força da revolta contra sua monotonia abstrata, contra sua administração
axiológica. O sacrifício amargo da multiplicidade é apenas a radicalização da consciência
de que, em todas as dimensões da existência, em seus recessos mais profundos, a
abstração da circulação do capital está presente, sua totalização não deixa nada intacto,
a constituição da subjetividade é expressão do autoritarismo inerente ao capitalismo e
sua maneira de destruir singularidades. Tudo o que resta é colocar-se no ponto de
inexistência lógica para fazer com que esse mundo entre em colapso. Resta colocar-se
no ponto de inexistência lógica para fazer esse mundo entrar em colapso. A diferença
pode assumir outras formas, mas é fundamental para o pensamento dizer: "mas não
agora". Quem fala hoje em nome da diferença está destruindo-a. Portanto, a outra
forma de pensamento que aparece em Adorno, além da identificação, está ligada a uma
certa dimensão da dialética hegeliana:
Pensar é negar, mas uma negação que é atividade, que é ouvir o que parece ao
pensamento como "divergente, dissonante", que desintegra conceitos. Adorno até
mesmo define a dialética negativa como a "lógica da desintegração" (Logik des Zerfall).
Ele quer nos lembrar de como a dialética não se trata inicialmente de integrar processos
dentro das determinações representacionais do conceito e de seu poder de
rememoração, mas de desintegrar esse impulso inicial de unificação, lembrando-nos de
que "o que poderia ser diferente ainda não começou". Daí a necessidade de especificar:
194
ADORNO; DN, p. 14.
O movimento da dialética não tende à identidade na diferença de cada objeto
em relação ao seu conceito; ao contrário, ele lança suspeitas sobre o idêntico.
Sua lógica é uma lógica da desintegração: desintegração da figura primitiva e
objetivada dos conceitos, com a qual o sujeito cognitivo se confronta
imediatamente.195
195
Idem, p. 144