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ENTREVISTA

Roswitha Scholz*

Nascida em 1959, em Nuremberg, Roswitha Scholz faz parte, desde


o início dos anos 1990, do círculo de autores que desenvolveram a
corrente de pensamento alemã denominada crítica do valor (Wertkritik).
Essa abordagem deu seus primeiros passos em 1984, com a criação
da Initiative Marxistische Kritik, ou Iniciativa Crítica Marxista (ICM),
e, dois anos depois, com o primeiro número da revista Marxistische
Kritik. Fora do âmbito universitário e próxima das formas associativas
da esquerda alternativa, a ICM partia de uma interpretação original da
obra de Marx que retirava a ênfase marxista tradicional no primado
da política e nas formas imediatas e subjetivas de dominação para
se concentrar nas relações de base do capitalismo, isto é, na socia-
lização pelo valor e nas relações mercadoria-dinheiro. Insistia-se,
<
sobretudo, em que tanto a análise da "política revolucionária" quanto o
a da dominação direta têm de ser mediadas pelas formas abstratas
"
e impessoais de dominação do sistema do capital. Outro aspecto
dessa abordagem é a tese de que a dinâmica cega e contraditória da
valorização, na sequência da Terceira Revolução Industrial, conduz a o
uma crise fundamental do capitalismo e que, quanto a isso, as teorias
w
marxistas tradicionais não têm como reagir de modo adequado, pois
permanecem presas a uma teoria positiva do valor e a uma errônea
ontologia do trabalho. A "crítica fundamental do valor", como então
era chamada, visava, a partir desse quadro de crise sistêmica, uma l?

"
<
* Entrevista traduzida do alemão por Luiz Felipe Osório, com revisão técnica de Marcos Barreira. :,::

ROSWITHA SCHOLZ 11
redefinição do objetivo socialista, em contraste com a velha visão de
mundo do marxismo doutrinário e com um neomarxismo acadêmico
cada vez mais reformista e que recusa a priori qualquer teoria da crise*.
Em 1992, com "O valor é o homem: teses sobre a socialização pelo
valor e as relações de gênero", Roswitha Scholz dá uma contribuição
fundamental para o debate feminista da crítica do valor na revista Krisis,
que substituiu o periódico anterior. Suas "teses" foram publicadas no
número 12, dedicado às relações de gênero na sociedade produtora
de mercadorias. Até então, as contribuições da revista se limitavam
(não sem o mérito de desbravar novos caminhos e superar velhas
posições) a estabelecer a relação entre o desenvolvimento do valor
como fundamento da socialização capitalista e os conceitos burgueses
de "igualdade" e "democracia". Estes representavam não a antítese
do capitalismo, mas a sua realização. A "questão da mulher", porém,
permanecia subordinada a uma estrutura sistêmica geral, e, conse-
quentemente, reproduzia-se na crítica do valor, com uma constelação
teórica diferente, o mesmo tratamento de "contradição secundária" que
o marxismo tradicional dava às relações de gênero. De acordo com
Scholz, o valor não é uma totalidade fechada. Ainda que a sua lógica
tenda à universalização por meio do impulso fetichista de subordinação
dos seres humanos e da natureza, a socialização pelo valor, baseada
no "trabalho abstrato", nunca abrange o conjunto da reprodução so-
cial. Há sempre uma parte cindida do valor, na qual se desenvolvem
atividades de reprodução social (no ambiente privado-doméstico) que
não se relacionam com a totalidade social por meio do trabalho. Tais
atividades, por sua vez, são conotadas como femininas e, na maioria
das vezes, são delegadas às mulheres. O mesmo ocorre com as di-
ferentes atividades de "cuidado", que permanecem, em geral, como
profissões economicamente secundárias, ocupadas pelas mulheres. A
compreensão dessa cisão estrntural do valor, portanto, faz com que
as modernas relações de produção já não sejam vistas como neutras
em termos de gênero, mas como um princípio masculino, e isso abre
<(
caminho para uma redefinição fundamental da relação entre capi-
talismo e patriarcado. Essa posição não se contrapõe apenas a uma
deficiência da crítica do valor anterior; ela também parte de uma crítica
> ao feminismo marxista, que reivindica para as atividades femininas
a:
"cindidas" um reconhecimento da sua condição como "trabalho" e

z * Ver o dossiê "Crítica do valor", organizado por Maurílio Lima Botelho, para a edição n. 35 desta
w revista. Margem Esquerda: revista da Boitempo, n. 35, São P'aulo, 2º semestre de 2020. (N. E.)

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como atividade produtiva em um sentido ontológico-afirmativo. Reen-
contramos, então, em um nível de mediação mais elaborado, a recusa
de uma crítica do capitalismo que, de modo contraditório, almeja a
realização dos ideais de igualdade da sociedade burguesa. Em vez
disso, a crítica do valor adotou uma posição de crítica ao trabalho e
de seu domínio patricarcal*.
Em 2004, após a divisão do contexto teórico da Krisis, Roswitha
Scholz, Robert Kurz e outros integrantes da antiga redação criaram
uma nova associação e a revista Exit!, na qual a elaboração teórica de
Scholz assumiria um papel cada vez mais central. A crítica do valor
apresenta-se, a partir de então, como crítica do valor-cisão (Wert-
-Abspaltungs-Kritik). Mais do que uma mudança de rótulo para fins de
construção identitária (de grupo) ou uma simples "acentuação" pessoal,
essa mudança revelou, em muitos aspectos, uma reorientação e uma
abertura para novos temas para além do feminismo. Os numerosos
ensaios de Scholz na revista Exit! expressam essa reorientação e o
seu ambicioso programa teórico-crítico, com ênfase na tensão entre
o geral e o particular, entre a lógica do valor-cisão e o problema das
diferenças, recusando tanto um conceito de valor que permanece
geral e neutro em termos de gênero/"raça" quanto o fetichismo das
diferenças, que perde a mediação com a totalidade social. Essa relação
entre o contexto de socialização geral do valor-cisão e as "diferenças"
segue em sua crítica do aprisionamento da compreensão das mudan-
ças recentes do capitalismo - que a autora interpreta em termos de
pós-modernidade, globalização e individualização - nas categorias
sociológicas modernas (incluindo as do marxismo tradicional). Ela
sugere, então, que as disparidades e hierarquias sociais, bem como as
atuais dinâmicas de conflito social, assumem uma configuração intei- <(

o
ramente nova, que diz respeito a uma época marcada não mais pela
ascensão das formas e categorias da modernidade, mas pelo processo
de "colapso da modernização" (Robert Kurz). Seus escritos** tentam
a
* Ver, Grupo Krisis, Manifesto contra o trabalho (trad. )avier Blank e Marcos Barreira, Rio de
Janeiro, Krisis/lgra Kniga, 2020). (N. E.) w

** As principais obras de Roswitha Scholz permanecem inéditas em língua portuguesa. Seus


I:
livros Das Geschlecht des Kapitalismus: feministische Theorien und die postmoderne Metamorphose
des Kapitals [O sexo do capitalismo: teorias feministas e a metamorfose pós-moderna do capital] e
l'.)
Differenzen der Krise - Krise der Differenzen: die neue Gesellschaftskritik im globalen Zeitalter und
der Zusammenhong von ,. Rasse ", Klasse, Geschlecht und postmoderner lndividualisierung [Diferenças
da crise e crise dos diferenças: a nova crítica social em tempos globais e o nexo entre "raça", classe, <(

gênero e individualização pós-moderna] foram publicados na Alemanha pela editora Horlemann,

ROSWITHA SCHOLZ 13
apreender as múltiplas facetas dessas dinâmicas em um plano catego-
rial e sistemático, corno se pode ver nesta entrevista; eles oferecem,
assim, a possibilidade de pensar a crítica do patriarcado capitalista,
com todas as suas tensões e conflitos cada vez mais explosivos, à luz
do atual processo de crise fundamental, o que também implica dizer
para além das velhas identidades tradicionais da esquerda.
Nesta longa entrevista à Margem Esquerda, Scholz aborda momen-
tos-chave de sua trajetória intelectual, desde a militância de juventude
até a criação dos grupos Krisis e Exit! e a publicação de alguns de seus
ensaios mais importantes. Além de reconstituir as origens e elaborações
da crítica do valor-cisão, ela demonstra o poder analítico dessa teoria
diante de fenôrnenos contemporâneos corno a intensificação do antis-
semitismo, do racismo e do machismo no contexto da corrosão interna
do patriarcado capitalista indissociável do colapso da modernização.
Sem poupar críticas aos discursos e práticas da esquerda contemporâ-
nea, das correntes mais ortodoxas às tendências identitárias recentes, a
pensadora oferece urna interpretação original da ascensão do fascismo e
da extrema direita no mundo, bem corno das implicações da pandemia
de covid-19. Scholz conversou com a revista via e-mail respondendo às
questões formuladas pelos professores Marcos Barreira e Taylisi Leite,
leitores e interlocutores de sua obra no Brasil.

Margem Esquerda - Gostaríamos de começar falando um pouco da sua


trajetória intelectual. Você conta* que, desde a adolescência, tem sido uma
leitora voraz, principalmente de textos existencialistas, e que seus primeiros
contatos com o marxismo se deram por meio de leituras de autores do leste
europeu, que não lhe pareciam convincentes. Naquele período, quando

respectivamente em 2000 e 2005. Também em 2005 foi lançada a coletânea Der Alptroum der
<( Freiheit: Perspektiven radikoler Gesellschoftskritik [O pesadelo da liberdade: perspectivas da critico social
>-- radico~. em parceria com Robert Kurz e Jõrg Ulrich. Em português, a editora Antígona (Lisboa)
publicou em 20 14 o ensaio Homo Socer e os ciganos: o anticiganismo - reflexões sobre uma variante
moderna e por isso esquecido do racismo moderno, que apareceu originalmente na revista Exit! (n. 3,
> 2006). No Brasil está prevista para este ano a publicação da coletânea O valor é o homem: escritos
sobre relações de gênero e capitalismo pela editora Consequência, na qual serão reunidos os ensaios
de Rosvvitha Scholz publicados na revista Krisis ao longo da década de 1990. (N. E.)
>-- * Clara Navarro Ruiz, "Escisión dei valor, género y crisis dei capitalismo: entrevista con Roswitha
z Scholz", Conste/aciones: Revista de Teoría Crítico [online]. v. 1, n. 8/9, Madrid, 2017, p. 475-502.
L.U (N. E.)

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floresciam os feminismos de terceira onda e a nova esquerda alemã, você
se engajou na militância, mas recentemente disse que se sentia uma figura
completamente marginal. Como foram essas experiências iniciais com o
marxismo e o feminismo?
Roswitha Scholz - Naquela época eu considerava o marxismo dogmá-
tico e me via como uma feminista de esquerda autônoma dentro dos
antiautoritários círculos espontaneístas [Sponti]*. O marxismo soviético e
os Grupos K** significavam para mim razão e disciplina partidárias: você
não é nada e o partido e sua correspondente ideologia marxista são tudo.
Desde o início, isso sempre me afastou. Por isso, não dei muita atenção
à literatura pertinente da época.
Minha experiência com o movimento feminista autônomo e com a es-
querda não dogmática, entretanto, também acabou por me decepcionar.
Aqui era o exato oposto: para eles, um eu abstrato deveria chegar a seu
pleno desenvolvimento (por meio de grupos de autoajuda, terapia, orga-
nização conjunta em projetos alternativos sem chefes etc.), o que equi-
vale a querer antecipar uma sociedade diferente já no aqui e agora. Mais
tarde se descobriu que eles elaboravam um "eu empreendedor" (Ulrich
Brõckling) e um "novo espírito do capitalismo" (Boltanski e Chiapello)
dentro do neoliberalismo. Muitas facetas da ima-
gem do homem na nova esquerda estão atreladas
a ideologias empresariais. A ditadura do eu
da nova esquerda
Em retrospectiva, vejo que a ditadura do eu da
não foi menos
nova esquerda não foi menos repressiva que o
repressiva que o
marxismo dogmático tradicional. É importante
marxismo dogmático
desembarcar de ambos para poder atingir no-
tradicional.
vas margens emancipatórias. Aliás, ambos têm
certa repulsa à abstração, sendo-lhes particular <(

um "falso imediatismo"; não há nenhum metanível, mesmo no que o


diz respeito à própria ação. Algo disso aparece hoje no discurso de
certa esquerda antiautoritária (economia solidária, economia do bem
comum etc.), que sente falta do próprio eu, da própria emoção e da
própria experiência, que não podem ser apreendidas em abstrato. Esses a
temas e bandeiras são presas facilmente "capturáveis" pela ideologia
w

* Os Sponti ou espontaneístas foram, dos anos 1970 até os anos 1980, grupos de ativistas que
se colocavam como sucessores da oposição extraparlamentar (também uma frente política que
atuava na Alemanha) e do movimento de 1968. (N. T.) ..,
** Os Grupos K eram pequenas frações e partidos políticos, de orientação predominantemente
<(
maoista, oriundos dos movimentos estudantis da Alemanha com atuação por volta dos anos
1970. (N. T.)

ROSWITHA S C H O L Z 15
capitalista. Por causa dessa situação incômoda, eu me voltei finalmente
para a teoria crítica, que rejeitava tanto o marxismo tradicional quanto
um falso imediatismo.

ME - Como foi a aproximação com Robert Kurz e a Iniciativa Crítica


Marxista, e como tem sido desde então a sua relação com a prática dos
movimentos feministas?
RS - Conheci Robert Kurz nesse momento da minha trajetória. Estava
claro para mim que os escritos da Escola de Frankfurt não podiam ser
compreendidos sem um conhecimento fundamental de Marx. Kurz e
a Iniciativa Crítica Marxista, da qual ele fora fundador, ofereciam, na
primeira metade dos anos 1980, alguns cursos de introdução a Marx, o
que era uma raridade à época, visto que os novos movimentos sociais
de orientação marxista, que se tornaram hegemônicos e que, desde "68"
até os anos 1970 ainda estavam em alta, foram progressivamente defi-
nhando. Nesse ínterim, assim como eu, Kurz
estava - ainda que pelo lado dos Grupos K
Às mulheres, em geral, (ele deixou tais grupos em litígio porque
não são atribuídas as ele, como um "intelectual", deveria fazer
capacidades de teorização uma autocrítica) - farto da falta de teoria,
e abstração. Assim também bem como do falso imediatismo (também no
o era no Krisis. Não era sentido da agitação da classe operária e de
possível conviver por lá sem um "culto proletário") e da rejeição à teoria
luta e discussão. A crítica do
e à reflexão. Seus artigos passaram assim a
valor-cisão é (também) uma
denunciar os dois lados, tanto a esquerda
síntese de tudo isso.
tradicional quanto a nova esquerda.
Mesmo antes de conhecer Kurz eu já era
bem cética quanto à prática do feminismo. Na "prática", mesmo no grupo
Krisis, não era possível deixar de lidar com o comportamento sexista. Às
mulheres, em geral, não são atribuídas as capacidades de teorização e
abstração. Assim também o era no Krisis. Não era possível conviver por
lá sem luta e discussão. A crítica do valor-cisão é (também) uma síntese
de tudo isso, tratando sempre de incluir o que é essencial, a totalidade
<(
concreta e a experiência, como dimensões indispensáveis da crítica so-
f--
cial. Por isso, eu nunca afirmaria que algo que digo é verdade porque
sou mulher; digo algo porque isso é verdade, como dissera em outro
> momento Simone de Beauvoir.

ME - Você também relata que, no começo de seu relacionamento com


f-- Robert, vocês travavam muitas disputas em torno das questões de gênero,
z mas que, para sua surpresa, com o passar do tempo, você o convenceu
w

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acerca da "cisão do valor" (Wert-Abspaltung). Como foi esse processo?
Conte-nos um pouco sobre a relação de vocês.
RS - Você já pode imaginar como fiquei aliviada quando ele concordou
com a minha ideia de que "o valor é o homem". Quando apresentei pela
primeira vez essa tese ao Kurz, ele a criticou duramente, retratando-a
como "estúpida" (palavras dele). Mas percebi que ele estava ficando
sem argumentos, e em certo momento a ficha caiu. Passado um tempo,
enquanto comíamos no "Grego", ele se manifestou, por iniciativa pró-
pria, dizendo que era boa a ideia de pensar que à sociabilidade do valor
necessariamente pertence uma "dissociação da mulher". Sugeriu, assim,
que eu elaborasse um texto sobre isso. Daí
veio o artigo "O valor é o homem", o qual, Quando publiquei "O valor
aliás, as pessoas do Krisis pensavam que é o homem", muita gente do
tivesse sido escrito pelo próprio Kurz. Krisis pensou que quem tinha
Da mesma forma, alguns integrantes do escrito o artigo era o próprio
Krisis atribuíam a mudança de perspectiva Kurz. Outros atribuíam a
mudança de perspectiva
de Kurz sobre o feminismo ao medo que
dele sobre o feminismo a um
ele teria de que nossa relação terminasse,
medo que ele teria de que
caso ele mantivesse uma postura mais dura
nossa relação terminasse.
em relação às reivindicações feministas
conduzidas por mim. Ou seja, segundo o
lema de que as mulheres não seriam capazes de argumentos convincen-
tes, por trás do fato de Kurz ter reorientado sua opinião só poderia estar
um elemento de outra ordem, como o psicológico. Quando ele enfim
defendeu abertamente a tese do valor-cisão como "líder do grupo" no
ambiente do Krisis, a resistência foi muito maior em comparação com
outras inovações que ele havia proposto até então.

ME - O ensaio "O valor é o homem", de 1992, está na origem de uma


o
nova orientação na então chamada "crítica do valor". Na revista Krisis,
essa crítica ainda se contentava em estabelecer uma relação entre os
conceitos de "igualdade" e de 'forma do valor". Suas teses, pelo contrário,
colocaram a diferença (de gêneros) num plano estrntural. Quais são as Cf
ideias centrais desse ensaio?
UJ
RS - Hoje eu não escreveria mais esse ensaio da mesma forma, como
indiquei na página eletrônica do Exit *. Eu resumiria a teoria e a crítica

* Em uma nota prévia acrescida ao referido ensaio em junho de 2017, Scholz afirma: "Este
texto foi publicado em 1992. Ele foi a primeira abordagem da teoria do valor-cisão. Desde
sua publicação, eu desenvolvi ainda mais essa teoria no livro O sexo do capitalismo: teorias
feministas e a metamorfose pós-moderna do patriarcado e em diversos artigos do periódico

ROSWITHA 5CHOLZ 17
do valor-cisão da seguinte maneira: eu defendo que
Hoje eu não
não se pode considerar o valor um mero sujeito au-
escreveria mais o
tomático constituído pela totalidade, mas, sim, que
ensaio "O valor
éo homem" da
se deve igualmente levar em conta a "circunstância"
mesma forma
de que, no capitalismo, também aparecem atividades
reprodutivas que são, principalmente, realizadas por
mulheres. Por isso, "valor-cisão" significa que o cerne
de atividades de reprodução determinadas como femininas e também os
sentimentos, particularidades e comportamentos a elas vinculados (sensua-
lidade, emotividade e carinho, entre outros) são, da mesma forma, dissocia-
dos do valor/mais-valor. As atividades de reprodução determinadas como
femininas no capitalismo têm um caráter diferente do trabalho abstrato.
Portanto, elas também não podem ser subsumidas incondicionalmente
nesse conceito. Isto é, elas envolvem um lado da sociedade capitalista que
não pode ser compreendido por meio do sistema marxiano de conceitos.
Esse lado está atrelado ao valor/mais-valor, pertence necessariamente a
ele, mas de uma maneira particular: encontra-se fora dele e, no entanto,
é seu pressuposto. Isto é, o (mais-)valor e a cisão estão em uma relação
dialética um com o outro. Um não pode ser derivado do outro, ambos
emergem um do outro. Essa lógica dá origem também a uma "heterosse-
xualidade compulsória" (Adrienne Rich), uma vez que outras formas de
comportamento sexual são excluídas per se e perseguidas como desviantes.
Nesse aspecto, o valor-cisão também pode ser conceituado como uma
metalógica, que abarca as categorias econômicas internas.
As categorias da economia política também se mostram insuficientes
em outra perspectiva: o valor-cisão precisa ser entendido também como
uma relação sociopsíquica específica. Determinadas características me-
nos valorizadas (sensualidade, emotividade e fraqueza, entre outras) são
dissociadas do sujeito masculino e projetadas na mulher. Tais atribuições
específicas de gênero caracterizam essencialmente a ordem simbólica

científico Exit! Crise e crítica da sociedade das mercadorias. Da minha perspectiva atual, esse
< artigo tem deficiências. Por exemplo, eu não colocaria mais hoje como algo central a separação
>- das esferas em público e privado como uma lógica estrutural. Ao contrário, a separação do
valor é que deve ser apontada como a base do patriarcado capitalista, pela qual a separação
das esferas se apresenta apenas como um nível concreto da análise. A referência de tempo
> naquele momento também deve ser levada em conta. Portanto, a compreensão do cerne
da teoria do valor-cisão não se basta por aquele texto. Essa teoria é muito mais complexa
"' e, para entendê-la, o referido livro e as outras contribuições publicadas posteriormente em
>- artigos são incontornáveis". Roswitha Scholz, "Vorbemerkung zum 'Der Wert ist der Mann
z Thesen zu Wertvergesellschaftung und Geschlechterverhãltnis'[ 1992]", Exit! Krise und Kritik
LlJ der Warengesellscha~ [online], jun. 2017. (N. E.)

18 MARGEM ESQUERDA 38
do patriarcado capitalista. Nas relações de gênero
As atividades
capitalistas, há que se considerar, para além do mo-
de reprodução
mento da reprodução material, tanto a dimensão
determinadas
sociopsicológica quanto a cultural-simbólica. É jus- como femininas no
tamente nesses níveis que o patriarcado capitalista capitalismo têm um
se revela uma totalidade social. Na dissociação do caráter diferente do
valor, que é entendida como a base da sociedade, trabalho abstrato.
é fundamental que ela não seja tratada como uma
estrutura rígida, como em alguns modelos socio-
lógicos estruturalistas, mas, sim, como um processo.
Disso é possível afirmar que uma contradição entre matéria (produtos) e
forma (valor), do ponto de vista da teoria da crise é, de certo modo, a lei
que, em última instância, conduz às crises de reprodução e à destruição/
colapso do capitalismo. Em termos esquemáticos, a massa de valor por
produto individual está ficando cada vez menor. A consequência é uma
riqueza de produtos, pelos quais a massa de valor para a sociedade como
um todo se derrete. O fator determinante aqui é o desenvolvimento das
forças produtivas, que, por sua vez, depende da formação e da aplicação
das ciências (naturais). Com a revolução microeletrônica (que hoje cul-
minou na "indústria 4.0"), o trabalho abstrato está se tornando obsoleto
(em contraposição à era do fordismo, no qual a produção de mais-valor
relativo era compensada pela necessidade adicional de força de trabalho
para a realização do mais-valor). Isso leva a uma desvalorização do valor
e a um colapso da relação de (mais-)valor. Esse colapso, como assina-
lou Robert Kurz ainda em 1986, não deveria ser entendido como um
ato pontual - mesmo que haja quebras repentinas, como a de bancos,
uma vez que as grandes falências são uma característica inerente ao seu
funcionamento - mas, sim, como um processo histórico, uma época de
talvez muitas décadas, nas quais a economia mundial capitalista não <(

poderá mais sair da espiral de crise e de processos de desvalorização, o

bem como do crescente desemprego em massa etc. Hoje está ficando


cada vez mais claro que a impossibilidade, mediada por esse processo, ::,
de geração de renda pela extração de mais-valor, levou não apenas ao
o
deslocamento para o campo da especulação mas também à dinâmica
conectada a ele de declínio do capitalismo. w
Essa estrutura e essa dinâmica devem, no entanto, ser modificadas de
acordo com a crítica do valor-cisão. A cisão não é nenhuma grandeza
estática, enquanto a lógica do valor representaria o momento dinâmico.
Ela mesma está situada dialeticamente à frente disso, ao mesmo tempo
a'.
que possibilita a contradição em processo; em razão disso também se <(

deve assumir uma lógica do valor-cisão em processo. A cisão está, assim,

ROSWITHA ScHOLZ 19
profundamente envolvida na eliminação do trabalho vivo. Com isso, ela
também modifica a si mesma dentro desse processo.
Especialmente nas ciências da natureza, que no capitalismo condicionam o
desenvolvimento das forças produtivas, mas também na formação da ciência
do trabalho, com sua racionalização do processo de produção (palavra-
-chave taylorismo), a separação do feminino e da correspondente imagem da
mulher constituem praticamente os pressupostos sociopsíquicos silenciosos
de sua existência. É o que também se exprime no plano simbólico-cultural,
por exemplo, nas ideias de que as mulheres são menos racionais e levam
menos jeito para exatas. Desde o início da modernidade essa separação
do feminino passa a marcar o discurso não só das ciências naturais, como
também o filosófico e o teológico. Essa atribuição foi realizada e materiali-
zada na própria fase fordista, na qual o homem foi colocado na posição de
provedor ideal da fanu1ia e a mulher na de dona
de casa no núcleo familiar estabelecido. Quanto
Quanto mais as relações mais as relações sociais se objetificam, mais se
sociais se objetificam, consolida na realidade a hierarquia da dicotomia
mais se consolida na de gênero. Logo, essa separação específica do
realidade a hierarquia feminino é pressuposto do desenvolvimento das
da dicotomia de forças produtivas (que o patriarcado capitalista
gênero. Essa separação justifica com sua "contradição em processo" e,
específica do feminino
como tal, cria seu desenvolvimento). Ou seja, é
é pressuposto do
uma condição determinante para a produção de
desenvolvimento das
mais-valor relativo e para que o descolamento
forças produtivas.
entre riqueza material e forma valor, ao fim, se
aprofunde cada vez mais. A objetivação e o de-
senvolvimento das relações hierárquicas de gênero são histórica e proces-
sualmente interdependentes, não estando em oposição entre si. Essa cisão
do feminino como pressuposto do desenvolvimento das forças produtivas
foi dar, em última instância, na revolução microeletrônica, que reduziu ao
absurdo não apenas o trabalho abstrato como também o modelo clássico-
-moderno de gênero e a figura da dona de casa.
A expansão das atividades reprodutivas, assistenciais e de cuidado, que,
<
anteriormente privadas, agora foram transferidas para o setor profissio-
nal, é, do ponto de vista econômico, um componente da crise, uma vez
que a massa de mais-valor deveria ser distribuída para financiá-la. No
> entanto, ante o contexto da contradição em processo e de um capitalis-
mo que atingiu seus limites, já não existe essa possibilidade. Junto a isso
a:
há um déficit reprodutivo pelo fato de as mulheres não poderem mais
realizar tais atividades, pois estão duplamente sobrecarregadas, ou seja,
z
são igualmente responsáveis pela família e pelo trabalho. As atividades
LU

20 MARGEM ESQUERDA 38
de assistência e cuidado realizadas profissionalmente também encontram
limites qualitativos, uma vez que são constantemente bloqueadas pelos
imperativos da eficiência gestionária. Atualmente, as mulheres têm de
aceitar qualquer tipo de trabalho, mesmo aqueles até então com conotação
masculina, não obstante na prática ainda serem elas as responsáveis, na
vida privada, pelo cuidado familiar.
Nem por isso a cisão desapareceu. Pelo contrário, como se vê pelos ganhos
mais baixos e pelas possibilidades restritas de ascensão profissional das
mulheres. Além disso, é fundamental enfatizar que o valor-cisão não se
situa na separação entre as esferas do público e do privado (em que
se atribui às mulheres a primeira, e aos homens a segunda). Ao contrário,
a cisão do valor atravessa todos os níveis e áreas, inclusive no espaço
público; ela determina a base da sociedade como um todo. Isso se mos-
tra, entre outros aspectos, no fato de que as mulheres frequentemente
ganham menos do que os homens, mesmo exercendo função idêntica à
deles e, em média, sendo mais bem capacitadas do que eles atualmente.
Ao mesmo tempo, quando o trabalho abstrato se toma obsoleto, emergem
as tendências do homem passar a também desempenhar funções de dona
de casa. O patriarcado se revira à medida que as instituições da família
e do trabalho assalariado são erodidas pelas crescentes crises e tendências
ao empobrecimento, sem que suas estruturas e hierarquias fundamen-
tais desapareçam. Hoje, as mulheres são forçadas a trabalhar por uma
questão de sobrevivência. São as mulheres das
favelas do assim chamado Terceiro Mundo que
organizam grupos de autoajuda e se transfor- Hoje, as mulheres são
mam em gestoras de crises. Simultaneamente, forçadas a trabalhar
elas devem, também nos centros ocidentais, por uma questão de
assumir funções de reparo nos altos comandos sobrevivência. São as
da economia e da política, quando a carroça mulheres das favelas do <
assim chamado Terceiro o
estiver atolada na lama em uma crise colossal.
Mundo que organizam a::
A cisão do valor como base histórico-dinâmica grupos de autoajuda
ligada ao desenvolvimento das forças produ- e se transformam em
tivas solapa seu próprio fundamento, as ativi- gestoras de crises. (Y

dades de cuidado realizadas na esfera privada.


O ponto central aqui é que as transformações LU

- não apenas nas relações de gênero como também nas relações sociais
:r:
como um todo - devem ser entendidas a partir dos mecanismos e es-
truturas da cisão do valor em sua própria dinâmica histórico-processual,
não apenas a partir do "valor". A crítica do valor-cisão não assume a::
apenas a forma de uma mera crítica do valor. Ela eleva essa crítica a <
um patamar qualitativo completamente novo. L

ROSWITHA 5CHOLZ 21
Em termos teóricos, a relação hierárquica de
A crítica do valor-cisão
gênero é específica à modernidade e à pós-
não assume apenas a
-modernidade. Isso não significa dizer que essa
forma de uma mera
relação não tenha uma história pré-moderna. O
crítica do valor. Ela
ponto é que, no capitalismo, ela ganha um con-
eleva essa crítica a um
patamar qualitativo
teúdo inteiramente novo: as mulheres deveriam
completamente novo.
ser responsáveis fundamentalmente pelas funções
menos valorizadas da esfera privada; os homens,
pela esfera da produção capitalista e pela esfera
pública. Ora, na medida em que o núcleo familiar apareceu apenas no
século XVIII, e as esferas pública e privada, como nós as conhecemos, só
se constituíram na modernidade, isso já contradiz as perspectivas que vêem
a relação capitalista-patriarcal de gênero como um resquício pré-capitalista.

ME - Nesse mesmo texto, fala-se também de "um profundo mal-estar no


tocante ao trabalho teórico na chamada 'questão da mulher"'. Qual foi
a reação, no interior do Krisis, à tese do valor-cisão?
RS - A resistência foi muito grande. Até hoje as questões feministas não
desempenham grande papel no Krisis, aparecendo apenas ocasionalmente
- normalmente como comentários secundários - ou raramente em um
ou outro artigo perdido. Nesse sentido, é revelador que Lohoff e Galow-
-Bergemann vejam somente a crise do clima, a questão habitacional e
a questão da redução da jornada de trabalho como novos campos que
precisam ser explorados. Com isso eles não vêem que esses campos es-
tão cobertos por todos os lados pela área de reprodução com conotação
feminina. Para eles, o recentemente fortalecido movimento feminista e o
movimento Black Lives Matter não têm grande relevância. A questão do
clima, em particular, está estreitamente ligada à questão da dominação da
natureza e esta, por sua vez, está vinculada ao fato de que as mulheres,
desde o advento da modernidade, foram equiparadas à natureza, devendo
ser dominadas. Em certa ocasião, nos anos 1990, um reconhecido membro
do Krisis chegou a me desferir um tapa na cara. Fiquei atônita. A mim
ficou parecendo que ele fez aquilo em nome do grupo todo. Ademais,
<( as reflexões sobre uma "sociabilidade associa!" (Norbert Trenkle) são
problemáticas, na medida em que, de maneira usual, aqui um indivíduo
masculino-abstrato é tomado como padrão de referência."'
>

a::
* Ver Norbert Trenkle, "Ungesellschaftliche Gesellschaftlichkeit. Der Widerspruch zwischen
lndividuum und Gesellschaft ais Kernpunkt gesellschaftskritischer Theorie" [Sociabilidade associai.
z a contradição entre indivíduo e sociedade como núcleo da teoria social crítica], Krisis: Kritik der
L.U Worengesef/schafr [online], 27 mai.2019. (N. E.)

22 MARGEM ESQUERDA 38
ME - Ao contrário das tendências marxistas que
Um reconhecido
tentam incorporar progressivamente a "questão
membro do Krisis
da mulher" no seu discurso sobre a "sociedade chegou a me desferir
de classes" e a "luta de classes", você afirma que um tapa na cara.
essa questão só pôde emergir quando o desenvol- Fiquei atônita. A mim
vimento da "socialização pelo valor" fez recuar ficou parecendo que
o tema das classes. Como isso se deu? ele fez aquilo em
RS - As classes em Marx eram determinadas nome do grupo todo.
essencialmente por sua posição no processo de
produção. Eu penso que, hoje, os conceitos
de classe e de luta de classes estão obsoletos do ponto de vista da críti-
ca do valor-cisão. No curso do desenvolvimento das forças produtivas e da
ciência do trabalho, o "trabalhador" constitui-se em um contexto fordista-
-taylorista, em um quadro social total. Essas tendências foram acompa-
nhadas já naquela época pelo surgimento de novas camadas médias em
áreas como a administração, direito, saúde e a mídia, em contraposição
às velhas ocupações (comerciantes e artesãos, entre outros). Educação e
conhecimento (não a posse do capital) passaram a ser as fontes centrais
dessas novas camadas que cresceram no decorrer do século XX. O mo-
vimento de 1968 foi resultado desse desenvolvimento na transição para
o pós-fordismo. Esse processo culminou primeiramente na revolução
microeletrônica e, depois, na indústria 4.0. Hoje, as atividades na esfera
da produção estão sendo largamente dizimadas. O que ainda existe, por
exemplo, é deslocado para a China ou então frequentemente feito
por migrantes - os mesmos que, aliás, se colocam também à disposição
do setor de serviços (restauração, limpeza etc.).
Esse desenvolvimento tem essencialmente a ver com o que Marx chama
de "contradição em processo". Com a racionalização dos processos, o <(

aumento da produtividade passa a conviver com uma produção cada vez o


menor de (mais-)valor. Essa tendência leva, em última instância, a um
colapso do capitalismo e à obsolescência do trabalho abstrato, com seus
fenômenos correlatos de financeirização, criação e estouro de bolhas, :::,

e assim por diante. Ao mesmo tempo, em razão da crise financeira de o


2008, os bancos "relevantes para o sistema" têm de ser resgatados por
pacotes governamentais. Esse processo leva a um colapso ainda maior LJ.J

das camadas médias, que surgiram principalmente por meio do subsídio


estatal, como se deu na criação do setor social. O Estado agora está per-
seguindo outros caminhos, mas suas fontes estão secando. A pandemia
do coronavírus acentuou a crise, elevando ainda mais a dívida pública.
Estão ficando para trás especialmente as novas camadas médias e o <(

empreendedorismo individual na área social e cultural. Ou seja, todos

ROSWITHA 5 C H O L Z 23
aqueles que, nos tempos do neoliberalismo, foram incentivados ou mesmo
forçados a empreenderem e fundarem empresas individuais estão agora,
apesar dos subsídios estatais, à beira do colapso.
Em vez de colocar no centro da análise as tendências de degradação,
desclassificação e produção da superfluidade e de ver que o atual pro-
cesso de decadência e ruína da estrutura clássica de estratificação do
capitalismo têm consequências globais ainda mais dramáticas que aquelas
"normais" da estrutura de classe fordista nos centros, grande parcela das
esquerdas recorre a velhas fórmulas marxistas requentadas para explicar
essa situação. Todos os assalariados são rapidamente transformados em
trabalhadores, sem levar em conta a obsolescência do trabalho abstrato.
No mesmo balaio estão migrantes, homossexuais, mulheres etc., que não
raramente são incluídos, sem nenhuma mediação, na classe trabalhadora.
Da mesma forma, racismo, sexismo e homofobia são novamente reduzi-
dos ao fundamento de classe - o que, no fundo, equivale a considerá-los
contradições secundárias, no lugar de levar em conta a lógica própria
das diferentes dimensões das desigualdades apontadas. Hoje em dia, a
sociedade de classes está irremediavelmente aca-
bada. Querer apreender as desigualdades sociais
A sociedade atuais com um velho conceito de classe é quase
de classes está tão descabido quanto seria simplesmente adicio-
irremediavelmente nar a burguesia à antiga sociedade estamental e
acabada. Hoje, o defini-la a partir dela, em vez de perceber que ela
"proletariado" se deveria ser colocada no novo contexto social de
torna tanto mais uma sociedade de classes. Hoje, o "proletariado"
obsoleto quanto se torna mais obsoleto quanto maior for o fosso
maior for o fosso
entre pobres e ricos.
entre pobres e ricos.
No entanto, não basta culpar o valor e a contra-
dição em processo por esse desenvolvimento e
pelo colapso das camadas médias, como fiz até agora por razões de ex-
posição. É preciso entender como esse desenvolvimento e a contradição
em processo são eles mesmos induzidos pela cisão do valor.
<( ME - No número 15 da Krisis, apareceu um diálogo crítico seu com o
movimento feminista e com as tendências de esquerda*. Sua abordagem
lida menos com o conteúdo discursivo dessas tendências "pós-modernas"
>
do que com o nexo entre discurso e contexto social. Nesse sentido, como

o::

* Roswitha Scholz, "Die Maske des roten Todes. Kasinokapitalísmus, Frauenbewegung und
z Dekonstruktion" [A máscara da morte vermelha: capitalismo de casino, movimento feminista e
L.U desconstrução], Krisis 15, 1995. (N. E.)

24 MARGEM ESQUERDA 38
analisa essa viragem da teoria feminista para a teoria do discurso e para
o desconstrntivismo?
RS- Naturalmente, o referido artigo "A máscara da morte vermelha" já tem
26 anos. Nele, aventei várias perspectivas que se contrapunham à posição
de Butler. O ensaio criticava a exclusão do corpo e o descaso com o material
(econômico), além da falta de outras dimensões
importantes naquele discurso, e o vinculava com Tanto a desconstrução
o "capitalismo de cassino" (Susan George), uma de Butler quanto
vez que, tanto a desconstrução de Butler quanto o capitalismo
o capitalismo especulativo assumem, no nível especulativo assumem
fenomênico, um domínio dos signos e da relação um domínio dos
monetária sem substância e abstrata, suprimindo signos e da relação
a materialidade e a substância. monetária abstrata,
sem substância,
Foi só mais tarde que formulei uma dimensão suprimindo a
importante do contexto da totalidade social em materialidade e a
que o desconstrutivismo se tornou hegemônico substância.
a partir de 1990: o capitalismo/patriarcado pós-
-moderno já não podia mais se valer de modelos
tradicionais (de gênero) e passara a depender de identidades flexíveis. Isso
tem a ver principalmente com a flexibilização das relações de trabalho e
com a obsolescência do trabalho abstrato. A mulher como dona de casa
e o homem como o provedor da família não estão mais de acordo com
seu tempo. O papel das mulheres se diversifica, e as mulheres passaram
a ser responsáveis pela fanu1ia e pelo emprego, em um deslocamento
biográfico, como já foi mencionado acima. É nesse momento que vem
a calhar uma teoria que se debruçava sobre uma ontologia do gênero
difuso. Isso foi associado ao fortalecimento (superficial) da tolerância
perante pessoas LGBTQIA+. <(

Há que se lembrar também que, nesse período, o bloco oriental havia o


colapsado e com isso os marxismos de todos os tipos amargaram uma
situação difícil. Veio o discurso de "fim da história" (Fukuyama), quando
a liberdade sob o neoliberalismo parecia se alastrar ilimitadamente. O
discurso era o de uma sociedade de diversão, e o festejo era quase como a
uma condição social primordial - essa era a atmosfera geral da época.
L.U
Encaixava perfeitamente no clima social predominante uma teoria des-
construtivista que admite que a masculinidade e a feminilidade podem
ser radicalmente e incrivelmente formadas por meio da reiteração de atos
performativos em um show travesti.
Junto a isso se corria o risco de que os homossexuais, em particular,
fossem imaginados pelo público em geral como frequentadores de um <(

ROSWITHA SCHOLZ 25
meio festivo obscuro, ainda que essa não
Após um período de
fosse a intenção de Butler e eia., que que-
desconstrução, teve
riam inclusive desconstruir o ser gay e o
início uma espécie de
"reconstrução" na qual cada
ser lésbica.
indivíduo podia reivindicar No entanto, isso veio como tinha de vir.
diferentes injustiças para Já a partir de 2005, especialmente após a
a sua identidade concreta. crise financeira de 2008, a realidade se fez
Da negação da identidade mais e mais perceptível, o que se exprimia
voltou-se para a afirmação em bordões como o "Mulheres, pensem
da identidade em nova também na economia!", de Nancy Fraser.
roupagem. Foi nessa época que, após um período de
desconstrução, teve início uma espécie de
reconstrução. Agora, contudo, cada indiví-
duo podia reclamar de diferentes injustiças para a sua identidade concreta,
no curso de uma virada interseccional no feminismo que começou a tomar
como ponto de partida raça, classe, gênero, faixa etária e deficiência,
exigindo que tais condições fossem consideradas no debate público.
Da negação da identidade voltou-se para a afirmação da identidade em
nova roupagem. Nesse contexto, há na Alemanha, dentro da própria
cena queer, um debate sobre em que medida as tendências autoritárias
estão se espalhando, o que se manifesta em algo como a formação de
tribunais de exceção para o caso de alguém não se comportar conforme
as regras de linguagem e um determinado código de conduta. Por outro
lado, desde então houve também no feminismo uma reação rumo à re-
tomada das premissas marxistas vulgares que querem colocar a "classe"
no centro da análise, relegando a segundo plano o racismo, a homofobia
etc. Pode-se dizer então que o marxismo da luta de classes experimentou
um renascimento nas esquerdas após a crise financeira de 2008, o que
também se aplica aos feminismos depois de uma fase desconstrutivista,
associada principalmente ao nome de Judith Butler.
Todavia, é preciso deixar uma coisa clara: se eu critiquei teorias descons-
trutivistas como a de Butler, isso não significa que a teoria do discurso
de Foucault seja completamente descartável para a crítica do valor-cisão.
Em minha opinião, ela constitui um momento importante que revela
t--
como a masculinidade e a feminilidade, mas também a "raça" e outras
disparidades sociais, são "produzidas" pelo discurso. A questão é que
> ela não deve ser o fundamento absoluto da teoria feminista, mas, sim,
em uma dialética negativa, pode ser frutífera na sua particularidade para
a crítica do valor-cisão. O mesmo vale para a psicanálise, devendo-se
t--
analisar tanto a mediação dessas teorias entre si quanto também a sua
z
existência em separado, porque elas tratam de objetos, níveis e conteúdos
w

26 MARGEM ESQUERDA 38
diferentes. Com um ferramental de conceitos exclusivamente marxista,
não se consegue mais hoje em dia atingir a totalidade fragmentada da
socialização do valor-cisão.

ME - O teorema do valor-cisão foi usado recentemente para analisar a


discriminação da velhice.* Alguns dos seus textos analisam o racismo
a partir do anticiganismo e também do antissemitismo. No Brasil, a ques-
tão racial é central, por conta da escravização de pessoas negras. Seu
teorema pretende explicar outros processos de opressão na sociedade das
mercadorias, como o racismo?
RS - Para explicar isso, é preciso saber que a crítica do valor-cisão está
intimamente vinculada à "dialética negativa" e à crítica adorniana da
metafísica da identidade. Um pensamento identificador, ou seja, a des-
consideração do particular, do individual, do diferente, entre outros, está
teoricamente relacionado à separação do femini-
no do valor, não à relação de troca, como dizia
O pensamento
Adorno. O valor-cisão é, por um lado, a base da
identificador não
sociedade capitalista patriarcal. Por outro lado,
está teoricamente
ele não pode simplesmente se definir assim; nem relacionado à relação
tudo pode ser dele derivado, como é o caso da de troca, corno
crítica androcêntrica do valor que quer explicar pensava Adorno, mas
tudo a partir do valor (a crítica do valor-cisão sim à separação do
aqui formulada diferencia-se fundamentalmente feminino do valor.
da crítica do valor do Krisis, ainda que essa hoje,
por exemplo, afirme que o indivíduo não pode
ser simplesmente derivado do valor. Ela permanece androcêntrica e não
reconhece nada de não idêntico).
Em outras palavras, se nem a cisão pode ser derivada do valor, muito me-
nos todo o resto pode ser derivado da cisão do valor. Ao forçar o sujeito <
o
(epistemológico), que se baseia precisamente na cisão do feminino, a se
reconhecer como não autônomo, ela não pode simplesmente agir como
esse sujeito, mas é obrigada a aceitar as particularidades, individualidades, ::,
diferenças, não contemporaneidades etc. em sua própria qualidade, assim a
como em suas contradições e rupturas, sem conceder ao conceito geral a
mais elevada supremacia. O fundamental aqui é a necessidade de trazer LLJ

a relação hierárquica de gênero para o conceito - e isso é absolutamen-


te necessário, uma vez que as mulheres e o feminino são tidos como o
não conceitua! - e simultaneamente levar em conta o que não aparece

"'
* Andreas Urban, "Velhice (envelhecimento) e dissociação-valor", Revista Exit!: crise e crítica da <

sociedade das mercadorias [online], Lisboa, 2000, não paginado. (N. E.)

RüSWITHA 5 C H O L Z 27
no conceito. A crítica do valor-cisão coloca em
A crítica do valor-cisão
primeiro plano o conteúdo e a qualidade, não
coloca em primeiro
o formal e o quantitativo, como no pensamento
plano o conteúdo
e a qualidade,
identificador, sem que isso seja simplesmente
não o formal e o
rejeitado em abstrato.
quantitativo, como Assim, de acordo com a teoria do valor-cisão,
faz o pensamento cada forma de discriminação deve ser estudada
identificador. em sua particularidade, a partir de sua própria
lógica: o se:xismo, o racismo, o antissemitismo e
o anticiganismo, mas também o capacitismo e
a homofobia, entre outras. É verdade que a crítica do valor-cisão ainda
não dedicou a devida atenção ao capacitismo e à homofobia, mas essas
problemáticas deverão ser enfrentadas no futuro.
Ainda que se possa definir categoricamente que, por exemplo, no caso
do racismo, as características biológicas ganham uma conotação negativa
específica, isso no fundo não diz muito. Essa determinação é fundamen-
talmente abstrata e vazia. É preciso considerar que existem diferentes
formas de racismo e de conteúdo racista. No caso do antissemitismo,
ele é direcionado contra o supercivilizado super-homem, sendo os
judeus associados ao poder, à metrópole, ao capital (financeiro) e a uma
conspiração mundial, entre outros aspectos, razão pela qual ele também
não pode ser simplesmente intitulado "racismo". Já o racismo contra os
"negros" é caracterizado pelo fato de eles serem vistos como instintivos,
irracionais e portanto abaixo da civilização ocidental. O racismo contra
os poloneses na Alemanha ou contra os chineses tem uma forma bastante
distinta. No anticiganismo, por sua vez, o que está em jogo é o medo do
'antissocial', da decadência do sujeito burguês em sua própria cultura, na
sociedade em que vive. Não posso entrar em detalhes quanto ao conteúdo
de todas as definições, o que seria objeto de uma pesquisa mais concreta.
A crítica do pensamento identificador também deve necessariamente levar
em conta as mudanças históricas, como, por exemplo, o fato de hoje em
dia o racismo cultural ter substituído o racismo biológico.
<(
Do mesmo modo, também é preciso diferenciar contextos nacionais
específicos. A tradição racista na França, que está relacionada com sua
história colonial, é distinta da existente na Alemanha. Em razão do Holo-
causto, a situação da Alemanha é muito peculiar. E, naturalmente, também
> devem ser analisadas as particularidades das discriminações racistas de
outros países, que embasaram os processos de colonização, como, por
exemplo, a história da escravidão no Brasil, com sua história específica
z
de modernização. Nesse sentido, a crítica do valor-cisão como teoria do
L.U
princípio da forma do patriarcado capitalista, se não quiser proceder em

28 MARGEM ESQUERDA 38
termos lógico-identitários, deve reconhecer também que o desenvolvimen-
to patriarcal-capitalista ocorreu de maneira desigual nas variadas regiões
do globo, inclusive nas sociedades de simetria de gênero (do passado),
nas quais as concepções moderno-ocidentais de gênero não foram com-
pletamente adotadas até hoje.
No entanto, essas disparidades, diferenças e particularidades não podem
ser simplesmente colocadas abstratamente uma ao lado da outra, mas
devem estar "essencialmente" relacionadas umas às outras desde o início.
A teoria do valor-cisão sabe de suas limitações. Logo, ela não se coloca
em um pedestal absoluto, inatingível; conhece sua própria verdade a partir
de níveis e momentos particulares, tornando-se consciente da diferença
entre conceito e coisa.

ME - Você diz que o ódio às mulheres está aumentando novamente. A


que você atribui esse fenômeno? Você acredita que os movimentos ultra-
centrados na estetização, como os feminismos voltados para a liberação
do corpo e as tendências queer, além de não romperem com as opressões,
de fato, acabam por acirrar ainda mais a sanha fascista?
RS- Devo admitir que "O ódio às mulheres está aumentando novamente"
é uma chamada que o jornal que me entrevistou escolheu sem antes me
consultar*. Provavelmente seja verdade que a violência contra as mulheres
voltou a aumentar (nos relacionamentos, na fanu1ia, em shitstorms etc.) até
chegar ao feminicídio. Isso tem a ver com o fato de que as mulheres são
mais notadas em público, além de terem alcançado os homens em termos
de capacitação profissional e de terem aumentado sua empregabilidade nas
últimas décadas, mesmo que tenham ficado responsáveis simultaneamente
pela família e pelo trabalho e ainda escolham frequentemente empregos
tipicamente "femininos" (enfermagem, pedagogia etc.). Os homens, por
outro lado, agora estão ameaçados pelas cada vez mais precárias relações
o
de trabalho e não são mais necessariamente os provedores e chefes da
família. As insatisfações decorrentes dessa mudança de cenário podem
expressar-se em violência contra a mulher. Isso pode ter relação com o
fortalecimento da direita, mas também com o crescimento das relações o
anômicas na decadência do patriarcado capitalista (expresso no aumento da
estrutura de poder informal, como o domínio de máfias, crime organizado L.U

e prostituição forçada). Na crise pandêmica, cresce a violência contra a


mulher devido ao efeito estufa causado pelas restrições de contato social L

e o confinamento na esfera familiar.

* "Der Hass auf Frauen nimmt wieder zu - lnterview mit Roswitha Scholz über Queer- und
a'.

Gendertheorie und die Notwendigkeit eines materialistischen Feminismus", Konkret: Politik &
Kultur, Hamburgo, n. 3, mar. 2017. (N. E.)

RoSWITHA ScHOLZ 29
É preciso dizer que a violência contra a mulher não era uma pauta mobi-
lizadora antes. Ela nem era problematizada nos anos 1990, por exemplo.
Com a queda do bloco oriental, o neoliberalismo e o capitalismo de cassino
triunfantes promoviam o mito do individualismo ilimitado. Muito se falava
de uma "sociedade de múltiplas opções", o que envolvia também o gênero,
sendo amplamente difundida uma confusão de gêneros. O espírito do tempo
daquela época não queria mais saber de opressão e de relacionamentos
abusivos. Não surpreende que o desconstrutivismo tenha florescido nessa
atmosfera, sugerindo ele - em uma interpretação superficial - a arbitrariedade
de passar de um gênero a outro. Os queers estavam, sobretudo, preocupados
com o reconhecimento das sexualidades "desviantes". Hoje se vê novamente
que é preciso recorrer não só a Marx mas também a Freud para analisar e
explicar camadas sociopsíquicas profundas, visto que a desordem dos gê-
neros, afinal, não é tão grande quanto se pensava e porque certas atitudes
e comportamentos persistem, ainda que de forma modificada.
Para mim, o discurso sobre a violência no feminismo é, todavia, muito
superficial. Ele não atenta para mecanismos subjacentes da dominação
patriarcal. Eu vi mais de uma vez os chamados softies se revelarem
machões em ambientes de esquerda; da mesma forma que o homem
metrossexual (heterossexual) que também se insinua gay ou bissexual,
talvez tenha sido possivelmente apenas um estágio de transição para a
barbárie patriarcal mais além da pós-modernidade, como uma espécie
de lubrificante. Quem sabe isso valesse ser investigado da mesma forma
como o fenômeno dos incels-misóginos, bastante comentado hoje em dia.
Talvez falte psicanálise à crítica da heterossexualidade forçada (a própria
Judith Butler fez esse movimento de retorno a Freud e Lacan). A refe-
rência à linguagem, ao discurso, à cultura e ao queer na economia, na
ciência, na mídia, na política, no direito etc. não
Muitas vezes parece é suficiente, pois permanece dentro dos limites
que os defensores do de uma sociabilidade heteropatriarcal.
queer não são tanto Muitas vezes tem-se a impressão de que os
as pessoas afetadas, defensores do queer não são tanto as pes-
mas membros de uma soas afetadas, mas, de fato, os membros de
<
cultura dominante uma cultura dominante heterossexual que
heterossexual aproveitam para justificar ideologicamente
que aproveitam a relações forçosamente flexíveis contra aquelas
> teoria para justificar
pessoas. Não interessa falar sobre aqueles que
ideologicamente
realmente sofrem em função das situações de
a: relações forçosamente
heterossexualidade forçada e de imposições
>- flexíveis contra aquelas
de gênero. Isso é visível na atenção dada pela
z pessoas.
L.U
grande mídia ao queer.

30 MARGEM ESQUERDA 38
Nesse contexto, deveria haver uma escandalização ainda mais estridente
da heterossexualidade compulsória (ou "heteronormatividade", como
é tão aridamente chamada no jargão científico queer). Dessa forma, eu
não acredito que a política e a teoria queer sejam, de certa maneira, cor-
responsáveis pelo fortalecimento da direita. Pelo contrário, a política e a
teoria queer eram muito dóceis, muito brincalhonas, muito inofensivas e
apaixonadas pelas particularidades para realmente balançar as estruturas
da "heteronormatividade". Elas também deveriam ter refletido sobre o seu
caráter ideológico e sua adaptabilidade ao contexto neoliberal de modo
a poder se distanciar criticamente de si próprias.
Se nos anos 1970 e 1980 o corpo foi a referência central em setores do mo-
vimento das mulheres - inclusive no que se refere ao discurso ecológico
(com tendências questionáveis de fato à naturalização da problemática do
gênero)-, nos anos 1990, houve quase uma descorporização da mulher
ou a descorporização geral. O corpo era considerado primordialmente
um produto do discurso e passou a ser visto como constituído por signos
e significados. Não é à toa que o desconstrutivismo feminista ou queer
também tenha feito sucesso na cultura pop. Por exemplo, Madonna, com
seus jogos de significados, foi considerada por um longo tempo um ícone
do feminismo desconstrutivista.
Hoje, em minha opinião, diante da catástrofe ecológica que se torna
cada vez mais visível, é mais do que hora de voltar a incluir os corpos
sexuais na análise social, mas não de um modo biologicamente naturali-
zado na forma de um falso imediatismo. Em meio a toda a confusão dos
gêneros e de sua construção, há sempre ainda um substrato corpóreo
natural, que não desaparece simplesmente na indefinição ou arbitra-
riedade de gênero e que ainda influencia as sexualidades "desviantes"
e as percepções de gênero, mesmo que ele se submeta a condições
<(
sociais e sócio-históricas, das quais, evidentemente, não se segue que
o
seja possível produzir uma unidade a partir desse substrato estereotipado
em termos de gênero. Sem a pressuposição
de tal substrato corpóreo, que não se incor- Diante da catástrofe ::,
pora simplesmente na "construção", várias ecológica que se torna a
outras concepções e percepções de gênero cada vez mais visível,
não teriam sentido algum. Nesse aspecto, é é mais do que hora w
preciso pensar uma nova dialética do sexo, de voltar a incluir os
do gênero, da natureza e da cultura (que corpos sexuais na análise
a pós-modernidade dissolveu totalmente social, mas não de um
na cultura), de modo a permitir enxergar modo biologicamente l')

a transexualidade e a intersexualidade sob naturalizado na forma de "'


novas luzes, e reconhecê-las, mais do que um falso imediatismo. <(

ROSWITHA 5CHOLZ 31
como "normais", como "não idênticas". A
É preciso pensar uma partir daqui, certa fluidez de gênero de-
nova dialética do sexo, da
veria ser tomada em consideração. Assim,
natureza e da cultura, de
também as considerações teóricas sobre a
modo a permitir enxergar
a transexualidade e a
pulsão deveriam ser incluídas na crítica social
intersexualidade não
(obviamente, sabendo-se que a "pulsão" é
simplesmente como algo plástico, que se submete a condições
"normais", mas como históricas e sociais).
"não idênticas". Mesmo que o fortalecimento das direitas não
guarde relação direta com a teoria e a crítica
queer, considerando objetivamente e do ponto
de vista da totalidade social, os dois fenômenos não deixam de estar inter-
-relacionados e não chegam a efetivamente constituir um par de opostos;
na verdade, fazem parte de um mesmo contínuo pós-moderno em meio
à decadência do patriarcado capitalista, representando, respectivamente,
uma busca por estabilidade e segurança, e uma celebração da suposta
liberdade do indivíduo flexível. Uma teoria social emancipatória teria de
refletir hoje também sobre a decadência avançada dos critérios e atribuições
mais utilizados, o que se comprova, por exemplo, quando lésbicas, gays,
migrantes e judeus podem integrar a AfD (Altemative für Deutschland), ou
mesmo em movimentos transversais em geral, cujas orientações de direita
e de esquerda formam um amálgama. Essas distorções já existiram, por
exemplo, na República de Weimar na Alemanha, mas há que se refletir
se essas distorções hoje estão ganhando um novo conteúdo e um caráter
muito mais generalizado. Logo, também é importante romper com posições
confortáveis nas esquerdas e com seu respectivo feminismo interseccional.

ME- Conforme sua interpretação, o capitalismo passa por um processo de


crise de novo tipo, que compromete os fundamentos da sua reprodução.
Em que medida a pandemia de covid-19 vai acelerar esse processo? Há
espaço para que países centrais do capitalismo, como a Alemanha, ressus-
citem o Estado de bem-estar, que foi declarado morto pelo neoliberalismo?
RS - Desde 2008, ao menos, entra em ação um segundo impulso do
< colapso da modernização, distinto daquele em tomo da queda do bloco
1--
oriental; a crise do coronavírus, por sua vez, anuncia uma nova fase do
colapso. A atual pandemia é um componente do declínio do patriarcado
> capitalista, da socialização por meio da cisão do valor. Não se trata de
um fator exógeno ao colapso. Nem os defensores das medidas pseu-
"' dokeynesianas de contenção da crise do coronavírus nem seus opositores
1--
dentro das esquerdas estão fazendo uma verdadeira reflexão sobre essas
z
circunstâncias. As zoonoses também têm muito a ver com a superexplo-
LJ.J

32 MARGEM ESQUERDA 38
ração capitalista da natureza. O coronavírus é,
A pandemia é
portanto, tão natural quanto a mudança climática
um componente
causada pelo homem.
do declínio do
O fato é que na crise do coronavírus os governos patriarcado
continuam pegando empréstimos, que, por sua capitalista. Não se
vez, levam a bolhas financeiras que ameaçam trata de um fator
estourar; a emissão de notas foi acionada e os cho- exógeno ao colapso.
ques de desvalorização se anunciam. Eu acredito
que não haverá mais distribuição em abundância;
em vez disso, virão drásticas medidas de corte de gastos. Isso porque a
crise e as suas medidas correspondentes têm de ser pagas e, é claro, pelo
famoso e notório "contribuinte", ainda que essa quantia exorbitante da
dívida na prática nunca possa ser quitada. Nesse sentido, não acredito
que possa haver aqui um renascimento do Estado de bem-estar social no
futuro e que os mecanismos keynesianos possam vir a ser usados, como
o foram no finado fordismo. Essa fase está irremediavelmente terminada.
É mais provável que as atividades de cuidado sejam deslocadas para a
esfera privada e delegadas às mulheres. Pode acontecer ainda que a as-
sistência médica se torne pior e mais cara também nos países capitalistas
centrais, tendendo, inclusive, a colapsar por completo. Mesmo antes disso, a
economificação neoliberal já causara perdas maciças de qualidade do siste-
ma de saúde, uma vez que o foco passou a ser cada vez menos as pessoas
de carne e osso e cada vez mais o corte de gastos e o lucro empresarial.
Devido à pandemia e às medidas de contenção do vírus, muitos estão
indo à falência (comércio varejista, gastronomia, projetos de arte e cul-
turais etc.), principalmente as empresas-zumbis, que até agora somente
conseguiram sobreviver à base de empréstimos, o que, por sua vez, cau-
sam dificuldades para os bancos. Mesmo antes do coronavírus, alguns
economistas alertavam que uma grave crise econômica e financeira se
o
aproximava, a qual talvez não pudesse mais ser debelada dentro das
possibilidades da política. Especula-se que a economia mundial possa
ter colapsado em 2020 como nunca antes. :,

Tudo isso deve ser considerado em conjunto com a indústria 4.0. Mesmo a
que, em um primeiro momento, tenham sido criados postos de emprego
por meio de medidas de racionalização (algo como profissionais de tec- w

nologia da informação na indústria e no setor de serviços, entre outros),


esse processo acabou levando ao crescente desemprego em massa. Com
isso, menos tributos são arrecadados para financiar o Estado de bem-estar
social. A covid-19 é um acelerador do processo de digitalização (home-
"'
-office, principalmente o contato remoto via videoconferências, valendo
também para as relações privadas e assim por diante). Portanto, o corona-

ROSWITHA 5CHOLZ 33
vírus acentua o processo de crise e a desigualdade social; nem todos têm
recursos, como hardware e know-how, para se valer dessas inovações, o
que também reduz as possibilidades de se valer do homeschooling. O fosso
entre pobres e ricos se aprofundará ainda mais, elevando a tensão social.
O coronavírus aquece as já largamente difundidas teorias da conspiração:
Bill Gates, os conglomerados da alta tecnologia, Amazon e eia., bem como
as companhias aéreas, teriam tirado proveito da crise da covid-19 e criado
ou usado uma ideologia própria da pandemia para se capitalizar. Reaparece
a velha crença de uma conspiração mundial judaica. É, contudo, normal
que os capitais considerados individualmente e os conglomerados ten-
tem extrair lucro de toda e qualquer possibilidade que se apresente. Isso
pertence essencialmente à estrutura do capitalismo com seus mecanismos
de concorrência. Cabe, todavia, explicar o capitalismo e sua crise colossal
atual mais profundamente a partir de categorias como mercadoria, capital,
(mais-)valor, trabalho abstrato, cisão e seus processos histórico-sociais
associados que correspondem a uma dominação impessoal (ainda que
suas relações sejam estabelecidas pelos indivíduos, o fato de que eles as
encaram como independentes constitui o caráter fetichista do patriarcado
capitalista). Com isso, a contradição em processo da substância e da forma
(que, entretanto, deveria ser compreendida em termos da teoria do valor-
-cisão) é uma contradição fundamental da socialização capitalista-patriarcal.

ME - Comentando um texto de Kurz, você a.firma que ele "vira-se contra


a ideia de que a democracia e o fascismo/nacional-socialismo são opos-
tos"*. Assim, a democracia e o fascismo seriam duas etapas diferentes do
mesmo processo de modernização, que agora chega ao fim. Você acredita
que, na crise atual, potencializada pela pandemia, uma nova forma de
fascismo será o desenho estatal do século XXI, especialmente da periferia
do capitalismo, como é o caso do Brasil?
RS-É de esperar que medidas de contenção do coronavírus, feitas sob um
estado de emergência, sejam mantidas mesmo após a pandemia porque elas
se encaixam perfeitamente em uma administração de crise mais rigorosa. No
entanto, as condições sociais (mundiais) pendiam ao autoritarismo mesmo
antes da pandemia (vejam-se Trump, Bolsonaro, Duterte, Orban e outros,
ainda que se tenham voltado contra medidas restritivas do combate ao
coronavírus). Nestes tempos precários, cresce a demanda por lei e ordem.
> Mesmo com a saída de Trump, esse problema está longe de ser resolvido.

f-
* Roswitha Scholz, ''A democracia ainda devora seus filhos - hoje ainda mais!", Revista Exit!:
z crise e crítica da sociedade das mercadorias [online]. Lisboa, 20 19, não paginado.; Robert Kurz,
l.U A democracia devora seus filhos (Rio de Janeiro, Consequência, 2020). (N. E.)

34 MARGEM ESQUERDA 38
A democracia é a forma de governo/organização de uma sociedade
determinada pela mercadoria, pelo dinheiro, (mais-)valor, capital, tra-
balho abstrato e dissociação. As necessidades e relações humanas são,
com isso, coisas secundárias; mais especificamente, são subordinadas a
condicionantes capitalista-patriarcais. Assim, tudo deve satisfazer a lógica
do mercado, inclusive aquilo que a ele não cabe, como as atividades
de cuidado, amor, carinho etc. Disso emergem problemas específicos: a
assistência não pode ser racionalizada e racionada, como se tenta fazer
em lares para idosos. A liberdade democrático-burguesa é, por isso, a
liberdade do mercado, do dinheiro, e a liberdade de poder vender sua
própria força de trabalho, assim como de concordar
com a delegação de atividades cindidas às mulheres.
Essa relação formal é, em regra, pressuposta auto- A democracia
maticamente e leva a que as mulheres (mas também é a forma de
governo de
alguns homens), ainda que elas não correspondam
uma sociedade
a estereótipos de gênero, sejam a eles subsumidas.
determinada pela
Isso corresponde a uma forma jurídica. "Liberdade" mercadoria.
é, assim, sempre a liberdade dentro desse contexto
coercitivo fetichizado; o mesmo vale para igualdade
e fraternidade (ou solidariedade, se quiser). Seu fundamento é uma con-
traditória cisão do valor como base da socialização capitalista-patriarcal.
Por um lado, o Estado deve seguir as exigências do imperativo da valo-
rização/ cisão; por outro, deve satisfazer os desejos do eleitorado. Nesse
contexto contraditório, ele se ocupa principalmente da "administração
das pessoas", como afirmava certeiramente Robert Kurz. Disso advêm os
constantes contorcionismos verbais dos políticos.
Democracia e estado de exceção caminham juntos. Não são opostos, como
se costuma afirmar, ainda que, do ponto de vista fenomênico, naturalmente
<(
se diferenciem1 . Os dois estão em uma relação, por assim dizer, dialética,
o
no contínuo da modernização. A democracia foi na Europa, em um pri-
meiro momento, um progresso em oposição às relações personalizadas
do feudalismo. Hoje ela deve ser superada. O nacional-socialismo na ::,

Alemanha, com sua legislação "extrademocrática", também teve um lado (Y

"progressista" na medida em que impulsionou o capitalismo em uma fase


específica por meio de políticas keynesiano-tayloristas. O Holocausto w

' Diferenciam-se, por exemplo, no fato de que a liberdade de expressão na democracia é


amplamente permitida. No patriarcado capitalista, entretanto, ela está profundamente ligada à
l'.)
lógica da valorização e a uma forma de domínio/organização a ela associada chamada de demo-
cracia. Assim, as livres expressões de opinião caem sob medida, ou seja, elas são, em toda sua
<(
pluralidade, geralmente afirmativas. Com isso, a liberdade de expressão fica vazia, um talk show,
de onde nada sai.

ROSWITHA 5CHOLZ 35
deve ser visto como parte da história particular da modernização da Ale-
manha, contexto no qual também seria necessário analisar o que levou
os perpetradores a agir como agiram.
Hoje é possível observar por toda parte uma tensão entre o politicamente
correto e as orientações autoritárias. Tudo seria negociado e resolvido,
até a crise fundamental, dentro de um modo imanente e interno à demo-
cracia. Agora, depois de Trump, é a vez de Biden. Uma ilusão substitui
a outra, apesar de ninguém mais acreditar realmente que a crise pode
ser controlada. A suposição, difundida pela mídia, de que as teorias da
conspiração tenham posto a democracia em risco mostra tão somente
que exceção e democracia estão justapostas em uma relação puramente
externa para, em última instância, erguer a "democracia". Não se diz que a
democracia, para a qual as teorias da conspiração nunca foram estranhas
(nos Estados Unidos elas são tradicionalmente muito difundidas), destrói
a si mesma. Daí a inversão atual - ocasionada pelo coronavírus -, na qual
os democratas evocam o estado de exceção,
enquanto as direitas e os populistas insistem em
A ideia de que defender veementemente as liberdades civis.
Bolsonaro poderia
controlar toda a Por baixo da atuação (política) oficial e prova-
sociedade brasileira velmente também por dentro dela mesma, o
não passa de bravata. caos está se espalhando. Nada funciona mais,
O capitalismo vem dos trens aos correios até o sistema de saúde
gerando uma quantidade etc. É um processo que extende cada vez mais
cada vez maior de aos países ocidentais as condições que sem-
zonas e populações pre marcaram as chamadas nações periféricas.
ingovernáveis. Nesse contexto, valeria a pena investigar em
que medida as ditaduras (militares) do Tercei-
ro Mundo são comparáveis ao fascismo e ao
nacional-socialismo. Ainda que alicerçados em contextos distintos, são
fenômenos inseridos em um mesmo contínuo da modernização no qual
Estados periféricos, como o Brasil, se encontram em um processo de mo-
dernização retardatária, mesmo que hoje em dia essa modernização esteja
colapsando. O estado de exceção nunca foi alheio a esses países, uma vez
<(
que o desenvolvimento capitalista não se completou, como nos centros,
1--
e que há um ordenamento jurídico que nunca chega até as favelas, mas
que, ao mesmo tempo, não deixa de estar conectado com a ordem capi-
> talista, por exemplo, na forma dos serviços formais e informais e em redes
como a economia informal, a economia de resíduos e o trabalho exercido
"' pelas mulheres das favelas que são empregadas domésticas, entre outros.
1--

z
De certo modo, pode-se dizer que a democracia já devorou seus filhos.
L.U
A ideia de que Bolsonaro poderia controlar toda a sociedade brasileira,

36 MARGEM ESQUERDA 38
nesse sentido, não passa de uma bravata, dada a quantidade de áreas (fa-
velas etc.) e populações supérfluas que já se encontravam até certo ponto
fora da sociedade capitalista e ingovernáveis (mesmo que ainda vivam
da economia informal, ou seja, dos restos da oficial). Trata-se de uma
ilusão do fascismo achar que tudo pode ser controlado. O mais provável
é a desintegração de toda a ordem, que tenta se defender tornando-se
autoritária e, mesmo sem sucesso, vai pavimentando o caminho para o
surgimento de pequenos déspotas por baixo da "ordem" oficial junto com
seus aparentemente onipotentes apoiadores dentro
do Estado, que já se corromperam.
Trata-se de uma
Como dito, a crise do coronavírus acentua esse ce-
ilusão do fascismo
nário, que de forma alguma foi desencadeado por
achar que
ela, como poderia parecer. Logo, podemos afirmar
tudo pode ser
que a cisão do valor como um princípio contraditório
controlado.
da socialização não poupa ninguém no declínio do
patriarcado capitalista. Nesse contexto, as ideologias
fascistas e o suposto ordenamento associado a elas, que aprofundam a
barbárie pós-moderna, devem ser severamente combatidas.

ME - Como você avalia a atuação das esquerdas nesse combate? Se demo-


cracia efascismo são formas políticas complementares da modernização,
de que maneira a crítica do valor-cisão concebe os eeforços emancipatórios
nesse cenário de colapso?
RS - As demandas das esquerdas permanecem, em sua maioria, dentro
desse quadro da "democracia". Elas se movimentam frequentemente apenas
em vias social-democratas mais radicais. Do ponto de vista sociológico,
o controle dos meios de produção e a apropriação do mais-valor pelos
capitalistas são o foco de seu raciocínio, em vez de constatarem que tanto
o trabalhador (Arbeitnehmer) quanto os capitalistas são parte das relações <(

o
fetichizadas, nas quais também as instituições políticas se autonomizam
perante os indivíduos.
A emancipação deve, contudo, ser entendida de outra maneira. Em
mundo emancipado, por exemplo, seria possível produzir e viver sem o
a pressão da valorização. As pessoas, a natureza e as necessidades
materiais e de conteúdo seriam o foco, ou seja, haveria uma constitui- w

ção social em que pessoas poderiam ser simplesmente pessoas. Isso


!:
significaria também a abolição do trabalho remunerado e a socialização
das atividades de cuidado. Os padrões deveriam ser completamente
diferentes daqueles da racionalidade formal e da eficiência. "
"'
Em lugar disso, a democracia é sacrossanta entre boa parte das esquerdas <(

- na verdade, ela opera como pura ideologia. Essa ideologia esconde

ROSWITHA 5CHOLZ 37
a luta de todos contra todos e a concorrência
Não é coincidência
como princípios basilares da ordem vigente, a
que as mulheres
qual sugere que todos são iguais nos direitos de
só tenham sido
catapultadas para a
participação e nas tomadas de decisão. Assim, a
condição de livres democracia não é uma "associação de pessoas
e iguais nas últimas livres" (Marx), mas o domínio do imperativo da
décadas, ou seja, em valorização. Esse caráter de aparência é mais per-
uma fase em que ceptível hoje do que antes, uma vez que o Estado
a ordem do livre e de bem-estar social (ou também somente a ilusão
igual se esfarela cada que gerava), que deveria compensar e ocultar esse
vez mais no decurso dilema, se despedaça em razão dos processos já
do "colapso da aqui descritos.
modernização". Não é coincidência que as mulheres só tenham
sido catapultadas para as condições de livres e
iguais nas últimas décadas, ou seja, em uma fase
em que a ordem do livre e igual se esfarela cada vez mais no decurso do
"colapso da modernização", o que demonstra que elas nunca conseguirão
atingir o status almejado.
A esquerda e os feminismos precisam quebrar a cabeça para definir
o que fazer, em vez de mergulhar em pseudoconceitos ( open source,
economia solidária, economia comunitária, Novo Acordo Verde) caros
a um movimento romântico vinculado a Gramsci, Hardt/Negri e outros
nomes operaístas*. Deve-se refletir de uma maneira emancipatória sobre
o modo como todo o sistema e suas partes individuais podem daqui
em diante ser levados a uma relação adequada, tendo como pano de
fundo o desmonte do racismo, do sexismo, do antissemitismo, do anti-
ciganismo, do etarismo e do capacitismo, que representam a contraface
da igualdade e da liberdade.
Isso deveria acontecer no contexto de uma crítica do valor-cisão que
relativizasse a si mesma em sua totalidade, ou seja, em que valor, traba-
lho abstrato, trabalho doméstico, capital, política, democracia, o Estado
e sua correspondente forma de subjetividade fossem de vez abolidos (e
<(
não apenas suspensos, como uma dialética vulgar defenderia), a não ser
1--
que, antes, eles próprios se tornem obsoletos, como já vem acontecendo
hoje, ainda que de forma bárbara.
Em vez disso, opta-se pelo caminho mais fácil, por assim dizer, da utopia
>
vulgar (no sentido de uma "utopia concreta" de Bloch), e se tenta sair

1--

z * O operaísmo é uma corrente italiana dos anos 1960 que se reivindica marxista, heterodoxa
w e antiautoritária e com a qual a crítica do valor-cisão polemizou em diversas ocasiões. (N. T)

38 MARGEM ESQUERDA 38
da miséria, por exemplo, por meio da economia
Em mundo
do bem comum ou de um "novo acordo verde",
emancipado, seria
caminhos que, do ponto de vista da crítica do valor-
possível produzir e
-cisão, na prática, sempre se movimentam apenas
viver sem a pressão
nos limites do que já está dado. Nesse aspecto, não
da valorização.
se pode realizar a promessa burguesa de liberdade
e igualdade, pois ela depende estruturalmente do
racismo, do sexismo etc., ou seja, da subalternização do outro, inclusive
em outros continentes. Portanto, não se pode querer nada menos que a
superação da socialização em termos de cisão do valor como um todó
no sentido de um processo histórico e social abrangente que vá além dos
princípios e promessas democráticos.

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