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Marxismo, Economia Política & Desenvolvimento

No redemoinho da grande crise capitalista global


A. Sérgio Barroso
Apresentação
Persiste até hoje, em grandes áreas da interpretação da teoria marxista, a ideia
de que o desenvolvimento econômico-social é apartado da perspectiva
socialista. Ou que a epistemologia marxiana resulta na luta de classes e
somente sobre esta ótica a teoria revolucionária deveria ser validada.
Nada mais falso. Cada vez mais fundamental, por isso mesmo, recordar a
enorme contribuição dos poloneses Michal Kalecki (1899-1970) e Oscar Lange
(1904-1965), que desde jovens voltaram-se às grandes questões da crítica
marxista do capitalismo, orientando suas pesquisas exatamente para a
transformação da natureza perversa de seu desenvolvimento. Mas não só: os
dois, aliás, deram pioneiros aportes para uma teoria da construção econômica
do socialismo especialmente após o final da 2ª Guerra Mundial.
Desse tronco, entretanto, ninguém foi tão longe - tão audacioso – como o
economista russo Nikolai Kondratiev (1892-1938). A problemática do
desenvolvimento do capitalismo aparece em toda a sua plenitude em suas
famosas teorias dos “ciclos longos”. Nos marcos de 50 anos, Kondratiev
observou uma regularidade da coexistência entre ascenso de cerca de 25
anos, e descensos do crescimento econômico em outros 25, advinda a
incontornável crise.
Não à toa, outro grande pensador marxista, o historiador Eric Hobsbawm
(1917-2012), examinou com atenção as teses muito influentes de Kondratiev.
Para Hobsbawm não se conseguiu até hoje explicar tal regularidade – “sua
existência foi negada por estatísticos e outros cientistas” [1] - inobstante se
reconheça que há periodicidade em mudanças de longo prazo na economia e
na sociedade.
O fato é que os “Ciclos de longa duração” do economista russo - que sofreu
novos desdobramentos com o austríaco Joseph Schumpeter nomeando-o
como “Ciclo de Kondratiev” - teve no brasileiro Ignácio Rangel (1914 -1994) sua
defesa mais contundente. Para Rangel, a assertiva (fulminante) de Kondratiev,
de que a “Grande Depressão” dos anos 1930 se reverteria com o término da
fase b do ciclo, e a reanimação econômica mundial (fase a), pode ter implicado
em sua morte “em circunstâncias pouco claras”. [2] Rangel alude aqui do modo
preciso à questão do dogmatismo do pensamento econômico soviético de
Estado, cujo voluntarismo decretava então a impossibilidade de recuperação
pós-depressão – o oposto de Kondratiev e seus ciclos longos.
Ademais, considere-se que os ícones e pioneiros da Teoria do
Desenvolvimento (décadas de 1940 e 1950), incluem, em abordagens
diversificadas e pelo viés centro-periferia, o polonês da Escola Austríaca Paul
Narciyz Rosenstein-Rodan, o sueco Gunnar Myrdal, o húngaro Nicholas

1
Kaldor, os norte-americanos Paul Baran e Albert Hirshman, o estoniano Ragnar
Nurkse, o britânico Maurice Dobb, o chileno Raúl Presbich, o brasileiro Celso
Furtado. Além de Rangel, a influência de Marx no pensamento econômico
brasileiro, aparece peculiarmente em João M. Cardoso de Mello, Luiz Gonzaga
Belluzzo, Maria da Conceição Tavares, Sérgio Silva, Paul Singer, entre outros.
Esse pequeno registro acima revela a importância crucial que alguns dos
maiores pesquisadores da economia política crítica marxista davam à
problemática do desenvolvimento. Porque de nada serviria o poderoso
instrumental científico elaborado por Marx, Engels, Lênin e seus discípulos
autênticos, se a lei do desenvolvimento das forças produtivas não exigisse - e
não estivesse - no centro da luta por uma nova sociabilidade, por sua feita
somente alcançada a partir do próprio revolucionamento da sociedade
capitalista.
Ora, possuem papel determinante as forças produtivas no desenvolvimento das
sociedades, seus vínculos entre o processo da revolução social, e o estágio de
desenvolvimento das forças produtivas e as relações sociais de produção. São
questões centrais da concepção materialista da história.
Certamente problemática vasta e candente nos dias que correm, por sua feita
merecedora de brilhante (e recentíssima) interpretação do atual líder comunista
chinês Xi Jinping:
“Para aprender Marx, é necessário estudar e praticar o
pensamento marxista sobre as leis do desenvolvimento das
sociedades humanas. A ciência de Marx revela a tendência
inevitável da sociedade humana que impreterivelmente se moverá
em direção ao comunismo. Marx e Engels acreditam firmemente
que a sociedade futura, "em que o livre desenvolvimento de cada
um é a condição para o livre desenvolvimento de todos”, “os
proletários nada têm a perder a não ser as suas cadeias. Têm um
mundo a ganhar”. [3]

Ora, eis que, a partir da grande crise global iniciada em 2007-8, as reflexões de
pensadores do campo do marxismo se voltaram tanto sobre as questões
simbolizadas teoricamente por Nikolai Kondratiev - e os estudiosos do “ciclo
longos” ou “ondas longas” -, quanto sobre as perspectivas sombrias que o
capitalismo financeirizado anunciara. Vale dizer: sobre o presente e o futuro
deste capitalismo, suas transfigurações e a luta anticapitalista numa visão
estratégica de desenvolvimento.
Assim, os artigos e ensaios deste livro buscam apresentar uma visão
francamente inspirada no marxismo, que se concentra em três temas que se
inter-relacionam: a) o alcance contemporâneo da teoria de Marx; b) problemas
da atualidade do marxismo para a análise da grande crise capitalista iniciada
em 2007-8, à época do declínio da imperialismo norte-americano; c) aspectos
dos dilemas do desenvolvimento brasileiro, agravados especialmente a partir
do golpe parlamentar-judicial-midiático desde abril de 2016.
PS: A ordem dos textos é agrupada por temas. Há alguma repetição de
referências de autores, sem prejuízo da argumentação histórico-conjuntural
apresentada.
2
São Paulo, Setembro de 2018

NOTAS
[1] Ver: “A história e a previsão do Futuro”, em: Sobre história, São Paulo,
Companhia de Bolso, 2013, p. 79.
[2] Ver: “O quarto ciclo de Kondratiev”, Revista de Economia Política, São
Paulo, 1992. p.31.
[3] Ver: “Discurso em comemoração aos 200 anos de Marx”, Xi Jinping,
presidente da República Popular da China e secretário-geral do Partido
Comunista Chinês. Traduzido para Princípios por Gaio Doria. Em: Revista
Princípios, nº 154, maio\junho 2018.

3
I
MARX E AS DIMENSÕES DE SUA
TEORIA
Nosso Marx – e a velha esquerda*

Neste 5 de maio o mundo, necessariamente, terá que relembrar de uma ou de


outra maneira os 200 anos do nascimento de Karl Heinrich Marx. Em verdade já
se vem recordando, sempre com diversos “olhares” [1].

Trata-se de uma efeméride especialíssima, de um pensador de estatura sem


igual, nascido e falecido no século XIX, cujas ideias inspiraram abalar as
estruturas da exploração burguesa moderna, em todas as grandes revoluções
anticapitalistas, anticolonialistas e anti-imperialistas, que de lá para cá já
alcançaram o início deste novo século [2].

Breves, essas observações que seguem inserem-se aí, e baseiam-se, também,


no registro da excelente contribuição da Fundação Maurício Grabois/Editora
Anita Garibaldi, pela publicação da obra coletiva “Karl Marx: Desbravar um
mundo novo no século XXI” (520 páginas, 28 autores; prelo).

O nosso Marx, não o deles

Certa feita, em conversa solta com J. Quartim de Moraes, comentei sobre uma
resenha crítica que fiz à Revista Princípios, de um livro intitulado “Os marxismos
do novo século” [3]. Quartim entrecortou de imediato: “Marxismo mesmo, só há
um!”.

Concordava e concordo plenamente. O marxismo se funda no materialismo


dialético, que desenvolve uma nova e revolucionária interpretação da história a
partir daí. O marxismo de Marx (de Engels e de Lênin), sua teoria, opera
extremos esforços da inteligibilidade humana perseguindo não se separar do
sempre rebelde movimento da matéria. Este, caminha (estagna ou retrocede)
conforme a dinâmica material das conexões internas do fenômeno: as
contradições. Ou, como iluminou Marx ao posfácio da 2ª edição alemã de “O
capital”, distinguindo – indelevelmente - o “oposto” de seu método, ao de G.
Hegel:

“A investigação tem que apoderar-se da matéria, em seus pormenores, de


analisar suas diferentes formas de desenvolvimento, e de perquirir a conexão
íntima que há entre elas. Só depois de concluído esse trabalho, é que se pode
descrever, adequadamente, o movimento real. Se isto se consegue, ficará
espelhado, no plano ideal, a vida da realidade pesquisada, o que pode dar a
impressão de uma construção a priori” [4].

4
“Devastador”, o método do qual irradia a configuração teórica de Marx não se
presta a servir a devaneios subjetivistas e anticientíficos. Sim, Marx não só
construiu a façanha de produzir uma síntese da economia política inglesa, da
filosofia clássica alemã e do socialismo francês a cimentar os alicerces de sua
obra - um constructo de poderosa ruptura epistemológica.

A propósito, como diz muito bem o brilhante epistemólogo e filósofo da ciência


Larry Laudan, usamos “teoria” muitas vezes para caracterizar um conjunto
específico de doutrinas que se relacionam (“hipóteses, “axiomas” ou
“princípios”), utilizadas para previsões experimentais também específicas ou
explicar fenômenos naturais. E compara, relativamente:

“Como exemplos desse tipo de teoria podemos citar a do eletromagnetismo de


Maxwell, a da estrutura atômica de Bohor-Kramers-Slater, a do efeito fotoelétrico
de Einstein, a do valor-trabalho de Marx, a da deriva continental de Wagner e a
freudiana do complexo de Édipo” [5].

Outro grande físico, filósofo e historiador da ciência – entre nós, assim como
Laudan –, Michel Paty, numa penetrante observação teórica acerca do processo
de assimilação do conhecimento científico, pergunta se nós - tal como na
formulação de Marx (“Contribuição à crítica da economia política”, 1959) onde
“toda produção é apropriação da natureza pelo individuo no quadro e por
intermédio de uma forma de sociedade determinada” - não deveríamos
(“poderíamos”) então propor que “toda produção de conhecimento científico é
apropriação da matéria pelo pensamento, no quadro e por intermédio de um
conjunto de formas teóricas, mas também filosóficas, ideológicas e sociais
dadas” [6].

Noutra esfera, escutemos um dos maiores economistas de todos os tempos, o


burguês progressista e austríaco Joseph A. Schumpeter, cuja obra cada vez
mais é estudada e sua teoria original do desenvolvimento econômico aplicadas à
dinâmica dos sistemas de inovação tecnológicas. Interpreta ele, em
“Capitalismo, socialismo e democracia” [7], publicado pouco antes do final da 2ª
Guerra Mundial:

“Para Marx, o socialismo não era uma obsessão que obliterava todas as demais
facetas da vida e criava um ódio e um desprezo doentios e tolos pelas outras
civilizações. E, em mais de um sentido, há justificação para o título reivindicado
para o seu tipo de pensamento e volição socialistas, unidos graças à sua
posição fundamental: socialismo científico”.

Assim, nosso marxismo, o marxismo de Marx, é ciência social muito avançada e


neste terreno até agora inalcançável, eis o inegável – o absoluto, no sentido que
lhe emprestou o (insuspeito) marxista V. Lênin, o primeiro estadista do
socialismo no planeta:

“A única conclusão a tirar da opinião, partilhada pelos marxistas, de que a teoria


de Marx é uma verdade objetiva, consiste no seguinte: seguindo pelo caminho
da teoria de Marx, aproximar-nos-emos cada vez mais da verdade objetiva (sem

5
nunca a esgotar); mas, seguindo por qualquer outro caminho, não podemos
chegar senão à confusão e à mentira” [8].

“Confusão e mentira”. Desde a derrota - “estratégica”, disse João Amazonas -


das experiências da construção do socialismo no Leste da Europa, e na URSS,
a cada semana aparecia um “renovador” de Marx, um “retomador da obra de
Marx”, chegando-se inclusive, no Brasil, à criação de um “marxismo sem utopia”.

A pretensão e o caráter paupérrimo dos novos (e velhos) críticos sempre foram


de dar constrangimentos e pena. A acusação perene feita, particularmente aos
comunistas, de esquerda “velha” vinha prosperando em nome de uma regressão
ideológica e civilizatória à pré-modernidade.

Para o mesmo Lênin, a essência revolucionária e grandeza da dialética marxista,


como ciência, enfoca as leis gerais do movimento do mundo, do pensamento
humano. Acentuando ele que esta dialética e o materialismo filosófico fusionam-
se e interpenetram-se como duas características de uma mesma doutrina
filosófica: o marxismo.

Sobre a referida concepção materialista da história, para Lênin, a grande


descoberta de Marx foi adequar (amoldar; aplicar) as teses do materialismo
dialético à esfera dos fenômenos sociais. Segundo dissertou, em “Karl Marx” [9]
(1914),

“O caráter notavelmente coerente e integral das suas ideias, reconhecidos pelos


próprios adversários — e que, no seu conjunto, constituem o materialismo
moderno e o socialismo científico moderno, como teoria e programa do
movimento operário de todos os países civilizados — obriga-nos a fazer
preceder a exposição do conteúdo essencial do marxismo, a doutrina econômica
de Marx, um breve resumo de sua concepção do mundo em geral”.

Socialismo científico moderno, que é essencial compreender o sentido que lhe


designou Engels, em seu magistral “O desenvolvimento do socialismo da utopia
à ciência”, pequeno livro consagrado mundialmente como “Do socialismo utópico
ao socialismo científico” [10]. Para Engels, Marx fora responsável por dois
passos decisivos no desvelamento dos caminhos dos programas estratégicos do
movimento operário internacional. Asseverou ele em definitivo:

“Estas duas grandes descobertas: a concepção materialista da história e a


revelação do segredo da produção capitalista por meio da mais-valia, devemo-
las a Marx. Com elas o socialismo tornou-se uma ciência, e trata-se agora antes
do mais de continuar a elaborá-la em todos os seus pormenores e conexões”
(Engels, idem, p. 149).

Enxotando espantalhos da “esquerda velha”

Por todas as razões acima assinaladas, é o livro “Desbravar um mundo novo no


século XXI. Artigos acerca da atualidade e vitalidade da teoria marxista”,

6
organizado por Adalberto Monteiro e Augusto Buonicore, arrojada contribuição
do pensamento marxista.

Destacaria aqui – reitero, apenas para registro - a presença de teóricos


internacionais consagrados e responsáveis pelo desenvolvimento
contemporâneo da teoria marxista, filósofos como Domenico Losurdo (“O
individualismo e seus críticos”) e de José Barata-Moura (“Da utopia dos mundos
sonhados à transformação prática das realidades”), que na obra coletiva
comparecem com textos de grande escopo.

No terreno nevrálgico da economia (política), em particular pela centralidade


espraiada mundo afora desde a grande crise capitalista iniciada em 2007-8,
sublinharia as contribuições de Luiz G. Belluzzo (“Capital fixo, o general intellect
e a contradição em processo”) e de Renildo Souza (“O capitalismo financeirizado
e a seção V do Livro III d’O capital”).

Demerval Saviani (“Marx 200 anos: o autor cuja obra mudou definitivamente
nossa consciência do mundo”) e J. Quartim de Moraes (“O marxismo na
evolução do pensamento político”) desfecham contra-ataques fecundos às
misérias da política burguesa e suas formas violentamente regressivas que
acompanham a degradação capitalista.

Além de inúmeras outros importantes aportes teóricos, ressaltaria uma presença


marcante de pesquisadoras do marxismo no Brasil, como Marly Vianna
(“Materialismo histórico e atualidade”), de Ligia Osório Silva (“Marx e a Gazeta
Renana”), de Maryse Farhi (“Progresso técnico e limites do capitalismo”), de
Julia Vieira (“O Marx republicano”), de Nereide Saviani (“Repercussões autuais
do pensamento de Marx em educação”), de Andreia Galvão (“Marxismo e
movimentos sociais”), e de Maria Ligia Q. de Moraes (“Marxistas e feministas”).

A vasta temática em torno de Marx, fruto dessa empreitada “pesada” desafiada


pelos(as) autores(as) é reveladora da força avassaladora e fértil de uma
ideologia, a serviço das classes trabalhadoras subalternizadas e exploradas, e
embandeirada de um projeto societário libertador não-utópico.

De outra parte, que ressoe forte e cristalino o “recado” aos espantalhos (“de
esquerda”) e bonecos de ventríloquos da decadente ordem burguesa mundial:
Marx, suas ideias revolucionárias e sonhos generosos pulsam como nunca:
sonhos que não envelhecem!

*Publicado em Porta da Fundação Mauricio Grabois, 04.05.2018

NOTAS:

[1] Exemplifico no artigo bem recente do experiente jornalista Cyro Andrade,


que vai nessa linha e, apesar do “retrato plural” que ele sempre advoga existir no
“Valor Econômico” – onde em geral isto quer dizer salada de inutilidades
preconceituosas -, o essencial de Marx cabe na moldura. Em:
http://www.valor.com.br/ cultura/5486599/marx-ontem- hoje-e-amanha

7
[2] É preciso não esquecer que, Evo Morales, eleito na Bolívia, em 2005, após
movimentos de massas e insurrecionais, com enfrentamos armados e colapsos
institucionais, discursara: “O pior inimigo da humanidade é o capitalismo. Isso é
o que provoca levantes como o nosso, uma rebelião contra o sistema, contra o
modelo neoliberal, que é a representação de um capitalismo selvagem. Se o
mundo inteiro não tomar conhecimento dessa realidade, que os estados
nacionais não estão provendo nem mesmo o mínimo para a saúde, educação e
o desenvolvimento, então a cada dia direitos humanos fundamentais estão
sendo violados”. Disse ainda: "…os princípios ideológicos da organização, anti-
imperialista e contrária ao neoliberalismo, são claras e firmes, mas seus
membros ainda devem transformá-los em uma realidade programática”.
Sicofantas de todos os quadrantes viviam gargalhando e a jurar o enterro secular
das revoluções falsamente feitas em nome de Marx. Tomando a todos de
surpresa, esses processos passaram a misturar luta de massas, rebeliões e voto
popular, como antes, na Venezuela de Chávez.

[3] De Cesar Altamira, da editora Civilização Brasileira, 2008, 459 pp. O estudo
tem relevância por realiza ampla e substantiva análise de diversas escolas de
pensamento que se apresentam sob o guarda-chuva de Marx. Numa frase
identificativa: “Ao contrário, o marxismo tradicional sempre tentou separar os
espaços econômicos dos políticos; aborda o espaço político se si mesmo, como
um sujeito especial entre outros e particularmente distinto do campo econômico,
e de alguma maneira oculto na chamada superestrutura política, Durante muitos
anos o marxismo reduziu sua crítica da crítica da hegemonia capitalista e suas
leis de funcionamento. É que a fascinação gerada pelo despotismo fabril
capitalista aos olhos marxistas, com mecanismos de dominação cultural e a
instrumentalização das lutas operárias, impediu de ver a atividade e a
emergência do outro sujeito antagônico” (Altamira, idem, p.62).

[4] Ver: “O capital (Crítica da economia política) Livro 1, v.1: O processo de


produção capitalista”, Rio de janeiro, Civilização Brasileira, 1968, p. 16.

[5] Ver: “O progresso e seus problemas – rumo a uma teoria do crescimento


científico”, L. Laudan, São Paulo, Unesp, 2011, pp. 100-1. Para Laudan, “Na
economia, Karl Marx tomou elementos do idealismo de Hegel, do materialismo
de Feuerbach e do capitalismo de Adam Smith e seus seguidores ingleses”
(idem, p. 148).

[6] Ver: “A matéria roubada. A apropriação crítica do objeto da física


contemporânea”, M. Paty, São Paulo, Edusp, pp. 287-8.

[7] Editora Unesp, 2017, capítulo Sugestivamente denominado “Marx, o profeta”,


p. 23.

[8] Ver: “Materialismo e empiriocriticismo. Notas crítica sobre uma filosofia


reacionária”, V. Lenine, Lisboa/Moscou, Avante/Progresso!, 1982, p. 108. Antes,
esclarecera Lênin: “Se aquilo que a nossa prática confirma é a única e última
verdade objetiva, daí decorre o reconhecimento de que o único caminho para
esta verdade é o caminho da ciência assente no ponto de vista materialista”
(p.107).

8
[9] Editora Avante!/Progresso, V. I. Lenine, Obras Escolhidas, V. 2,
Lisboa/Moscou, 1984, pp. 181-2.

[10] Ver a nota explicativa dos tradutores da Avante!, no V. 3, Obras Escolhidas


Marx-Engels, Lisboa/Moscou, 1985, pp. 104-168.

9
Nosso Marx, mil vezes mais uma vez!*

“Falar de uma fase filosófica juvenil de Marx como algo contraposto à sua
imersão mais tardia na ‘ciência’ e na economia política é uma representação
grosseiramente equivocada, por trás da qual oculta-se uma singular ignorância
ou distorção dos fatos mais elementares” (I. Mészáros, 1980). [1]
O artigo*, de alcance mais teórico, reafirma a defesa do “tesouro”
epistemológico de Karl Marx, contra imputações fictícias e marcantemente
distorcidas do processo de elaboração de seu pensamento científico. Recorda
que, desde os escritos da juventude até os da maturidade, como teórico
inovador das ciências sociais, o legado das obras de Marx revela rupturas e
continuidades como características centrais da tessitura do conhecimento
científico universal.

Como previsto, as comemorações do bicentenário do nascimento de Karl Marx


correram milhares de léguas mundo afora. Sua cidade natal, Trier (Tréveris, no
Renânia-Palatinado da Alemanha) imprimiu notas de euros com sua foto, em
homenagem. Emblemática esfinge!

A chamada grande imprensa global teve que “clonar” a matéria de “The


Economist” rogando aos capitalistas do mundo inteiro que lessem Marx. A
revista, uma campeã da dissimulação – Marx a lia regularmente e dela fazia
anotações – advertira ainda aos “liberais reformadores”:

“Eles deveriam usar o 200º aniversário do nascimento de Marx para se


familiarizarem com o grande homem – não apenas para entenderem as falhas
sérias que ele identificou brilhantemente no sistema, mas para se lembrarem
do desastre que os espera se não conseguir confrontá-lo”. [2]

Ainda antes, em abril, em discurso na “Cúpula do Crescimento”, no Foro de


Políticas Públicas em Toronto (Canadá), Mark Carney, [3] presidente do Banco
da Inglaterra, insinuou-se como um provocador e declarou que o marxismo
poderá voltar a converter-se numa força política importante no Ocidente. E
argumentou ele:

“Os lucros, desde a perspectiva de um trabalhador, a partir da primeira


revolução industrial, que começou na segunda metade do século XVIII, não se
sentiu plenamente na produtividade e os salários até a segunda metade do
século XIX. Se se substituem fábricas têxteis por plataformas, máquinas a
vapor por máquinas inteligentes, o telégrafo pelo Twitter, tem-se exatamente a
mesma dinâmica que existia há 150 anos, quando Karl Marx escreveu o
Manifesto Comunista”.

Criticismo pretensioso

No importante Seminário “Bicentenário Karl Marx: desvendar um mundo novo

10
no século XXI” (19 de maio, São Paulo), organizado pela Fundação Maurício
Grabois, uma boa polêmica se estabeleceu acerca das dimensões e etapas do
pensamento daquele genial revolucionário alemão. E opiniões à base do
criticismo.

En passant, estranha-se um repeteco troncho dessa retórica, exatamente em


meio às efusivas comemorações do bicentenário de Marx, pensador
sabidamente revisitado à exaustão, a partir da explosão da grande crise
capitalista global de 2007-8, destacando-se notadamente as inúmeras novas
traduções de O Capital, sua obra magna.

Aqui, não vou dar opinião, porquanto inspirado na formulação gnosiológica do


cientista e epistemólogo francês Gaston Bachelard: “Opinião não é ciência”.
Vou argumentar que são absolutamente irrelevantes as afirmações que Marx
foi “utópico”, e “voluntarista” ao tratar do Socialismo; que foi também
“teleológico”; que Marx teria condicionado erros graves de marxistas e
revolucionários - ex ante (a partir de suposição ou prognóstico); ou ainda que a
tradição iluminista o aprisionava a uma “razão libertária”. São críticas que
misturam pretenciosismo e ingenuidade.

É como se Marx tivesse que ter sido “desumano, demasiado desumano”, pois
omite-se o processo dialético de formação do pensamento científico – e, mais
ainda, os termos teóricos do processo de desenvolvimento da teoria do
conhecimento.

Em “Ensaio sobre o conhecimento aproximado”, a exemplo, Bachelard afirma


que:

“O conhecimento em movimento é um modo de criação contínua; o antigo


explica o novo e o assimila; e vice-versa, o novo reforça o antigo e o
reorganiza. (...) Por princípio, o espírito que conhece tem de ter um passado.
(...) Essa inflexão do espírito, em direção ao passado, para responder à
solicitação de um real inesgotável constitui o elemento dinâmico do
conhecimento”. [4]

Noutro ângulo, a decisiva problemática do relativismo, ou seja, do princípio da


relatividade dos nossos conhecimentos é assim brilhantemente sintetizada por
V. Lênin,

“A dialética – como Hegel explicava – contém um elemento de relativismo, de


negação, de ceticismo, mas não se reduz ao relativismo. A dialética
materialista de Marx e de Engels contém certamente, mas não se reduz a ele,
isto é, reconhece a relatividade de todos os nossos conhecimentos, não no
sentido da negação da verdade objetiva, mas no sentido da condicionalidade
histórica dos limites da aproximação dos nossos conhecimentos em relação a
esta verdade”. [5]

A propósito, nesse estudo, Lênin insiste vigorosamente em que o

11
enquadramento epistemológico da teoria de Marx e Engels tem como
pressupostos centrais: a) a ideia de que trata-se de “escolasticismo” saber se
ao pensamento humano pertence a verdade objetiva fora da prática, pois do
ponto de vista da vida, da prática, deve ser o ponto de vista primeiro e
fundamental da teoria do conhecimento; b) que o desenvolvimento da
consciência social reflete o ser social e seu desenvolvimento, “eis em que
consiste a doutrina de Marx”, onde o reflexo pode ser “uma cópia
aproximadamente fiel” do objeto refletido, sendo entretanto “absurdo falar aqui
em identidade”. (Lénine, idem, pp. 103-4 e 107, e 245 respectivamente).

Não sem razões, Bachelard, ao tratar do que denomina “obstáculos


epistemológicos”, [6] assevera que o “conhecimento do real é uma luz que
sempre projeta algures umas sombras. Nunca é imediato e pleno”; onde as
revelações do real são sempre recorrentes; o real nunca é “aquilo que se
poderia crer”, porém sempre aquilo que se deveria ter pensado.

Ademais, desviacionistas da profunda ruptura epistemológica que realizaram


Marx e Engels, as anotadas afirmações criticistas, em verdade, carregam ainda
o viés ideológico de um velho idealismo sob as vestes de preocupações com o
cultivo do pensamento antidogmático e “renovador”. À medida em que seus
subjetivismos reclamam uma ruptura de paradigmas, sem continuidades. Isto é,
Marx deveria forjar a criação de uma teoria “inteiramente nova”, sem qualquer
sombra de influências anteriores, portanto completa, perfeita e não infensa a
defeitos, erros. Ou, como apresenta a questão, em outro estudo, Bachelard: [7]

“É um erro conferir ao conhecimento real um único sentido” (Op. cit., p. 15). Por
isso, também, é que “O idealismo, por princípio, não consegue seguir e explicar
o aspecto contínuo e progressivo do conhecimento científico” (Op. cit., p. 16);
ademais porque nesse tipo de concepção “o conhecimento será sempre inteiro,
mas fechado a qualquer acréscimo. Só se moverá diante de cataclismos” (Op.
cit., idem, ibidem).

Aliás, duplamente, a propósito da temática instigante das rupturas e


continuidades epistemológicas, assinalemos que Henri Poincaré, humanista
francês genial (1854-1912, matemático, filósofo, engenheiro, físico, astrônomo,
poliglota, inventor) não escondia traços marcantes em suas concepções
idealistas. [8] Pouco conhecido fora do âmbito dos especialistas, Poincaré,
inobstante, indiscutivelmente “formulou igualmente uma teoria relativista da
eletrodinâmica próxima em certos aspectos da relatividade restrita de Einstein”,
escreveu recentemente o físico e historiador da ciência Michel Paty. [9]

Pois bem e ao que nos interessa, segundo o formidável Poincaré:

“Não devemos comparar a marcha da ciência com as transformações de uma


cidade, onde os edifícios envelhecidos são impiedosamente demolidos para
dar lugar às novas construções, e sim com a evolução contínua dos tipos
zoológicos que se desenvolvem sem cessar e acabam por se tornar
irreconhecíveis aos olhares comuns, mas onde um olho experimentado

12
reencontra sempre os vestígios do trabalho anterior dos séculos passados. Não
se deve crer, pois, que as teorias antiquadas são estéreis e vãs” (Op. cit.,1995,
p. 9).

Irrelevantes e também criticistas, as aludidas opiniões desaguam – isto sim -


numa tautológica visão finalística, como se Marx não se distinguisse
nitidamente de Kant e de sua “Crítica da razão pura” ou de seu
transcendentalismo imanente. Ou como se Marx não tivesse rompido com o
próprio “hegelianismo de esquerda”, já crítico de Hegel. Ou como se ele e
Engels não tivessem superado os grandes pensadores do socialismo utópico
(Owen, Fourier, Saint-Simon, Proudhon), num esforço de teorização
prospectivamente novo e avançado para as condicionalidades do
desenvolvimento da filosofia materialista e suas bases históricas reais: o
incipiente processo de configuração da grande indústria capitalista, as recentes
descobertas científicas etc.

Vulgata idealista: a reinvenção do utopismo [10]

A acusação de existir um Marx teoricamente portador de “utopias” não se eleva


nem a uma piada de mal gosto. Exala, além, um requentado amargor, hoje
visivelmente professado por correntes do pós-modernismo – niilistas e à última
instância negacionistas do marxismo e da teoria que quer se configurar
totalizante. [11] Desde logo, porque sequer se situa no significado do termo
historicamente plasmado. Isto é, a incursão de Thomas More e seu celebrado
estudo (“Utopia”, 1516), que se dá nos albores da modernidade; formatando-se
paulatinamente o conceito a partir do impulso desenvolvido através da grande
indústria.

Com efeito, os socialistas utópicos acima referidos já eram pensadores críticos


fundamentados do processo de emergência da modernidade societária
burguesa. Críticos e teóricos de elevada cultura. Conforme escreve Engels, em
seu conhecido livro “Do socialismo utópico ao socialismo científico” (1880),
Robert Owen, por exemplo, era o homem mais popular da Europa, sendo
ouvido por empresários, estadistas e príncipes, evidentemente antes de expor
“em público suas teorias comunistas”. Mas Owen permaneceu 30 anos
trabalhando entre a classe operária, sendo que todos os movimentos sociais,
todos os progressos efetivos que no interesse dos operários se verificaram em
Inglaterra estão ligados ao nome dele – testemunhou literalmente o
companheiro de Marx. [12]

Generalizando o papel dessa corrente, atesta Engels nessa obra fundamental:

“O modo de ver dos utopistas dominou, durante muito tempo, as


representações socialistas do século XIX, e em parte ainda as domina.
Cultivavam-no, até muito pouco tempo todos os socialistas franceses e
ingleses...também o comunismo mais antigo...”. (Engels, idem, p.141).

De outra parte, recorde-se que é Marx, ainda em 1847 (“Miséria da Filosofia”) e

13
precisamente na sua crítica demolidora a Pierre Proudhon, quem assenta a
base concreta e histórica do pensamento dos socialistas utópicos, como
representação de um estágio de elaboração teórica. Afirmou então Marx, ali:

“Enquanto o proletariado não está ainda suficientemente desenvolvido para se


constituir em classe; enquanto a própria luta do proletariado com a burguesia
não tem ainda um caráter político; e enquanto as forças produtivas não se
desenvolveram ainda suficientemente...não são senão os utopistas que, para
obviar às precisões das classes oprimidas, improvisam sistemas e correm atrás
de uma ciência regeneradora”. [13]

Essas duas obras referidas foram escritas num intervalo de 33 anos. O que
elas atestam são uma incrível coerência de Marx e Engels quanto aos
fundamentos epistemológicos que sustentam a construção da teoria dialética e
materialista por eles desenvolvida, onde abriram um novo caminho de
interpretação e transformação da história da sociedade capitalista.

Como diz Barata-Moura, eles dispuseram-nos a partir daí de “um balcão de


perspectiva enriquecido para uma transformação do mundo que nos incumbe
levar a cabo” (Op. cit., p. 50). Noutras palavras, abriram-se clareiras imensas à
compreensão da realidade em movimento, largas veredas condutoras aos
combates mudancistas. Mas não só: uma questão crucial da grandeza teórica
de Marx e Engels no desvelamento das limitações reformistas dos utopistas é a
demonstração que realizam: a) no sentido de desnudar a gênese e o caráter
classista do capitalismo; b) em argumentar, mais uma vez inovadoramente, que
a sociedade burguesa corresponde a um estágio transitório na história (Idem,
p.63).

Marx teleológico: “tautologias vazias”

O excelente “Novo Dicionário da Filosofia e das Ciências Humanas”, de Louis-


Marie (Grandes Écoles) e Jean Lefranc (honorário Paris-Sorbonne) define
epistemologicamente “teleologia” como sendo “Doutrina da finalidade”. Quer
dizer, uma explicação geral dos fenômenos pela consideração dos fins divinos
ou humanos. Por isso, também, I. Kant falava em “prova físico-teleológica” da
existência de Deus. [14]

A questão é que, definitivamente, essa matéria seguramente não é para


principiantes, muito menos prosa afeita à leviandades ou acusações ignorantes
a Marx. G. Lukács, em “Para uma ontologia do ser social”, seu estudo mais
badalado, discorre de modo claro sobre a temática, a partir da crítica de Marx a
ele mesmo: ao poderoso filósofo (idealista) I. Kant. Porque ao tratar
insistentemente do transcendentalismo divino, um problema central é que Kant
encerra seu aparato teórico analítico de “teleologia” do plano cognitivo, e não
no ontológico, onde deveria estar situado. Noutras palavras, mesmo que ele
consiga desmontar a crítica da “teleologia superficial da teodiceia de seus
predecessores” [15] - onde bastaria uma coisa beneficiar outra para a
realização de uma teleologia transcendente -, Kant, entretanto, “fecha o

14
caminho” no plano metodológico imediato, ao substituir cognição por ontologia.
Aqui, conforme Lukács:

“(...) em última instância, o problema ontológico continua não resolvido e o


pensamento é bloqueado dentro de um determinado limite ‘crítico’ do seu
campo operativo, sem que a questão possa receber, no quadro da objetividade,
uma resposta positiva ou negativa. (...) Dessa forma, o problema da
causalidade e da teleologia se apresenta, do mesmo modo, na forma de um –
para nós – incognoscível. Kant pode repelir o quanto quiser as pretensões da
teleologia: essa negação se limita ao ‘nosso’ conhecimento, pois a teleologia
aparece como pretensão de ser ciência e por isso, na medida de tal pretensão,
fica sujeita à autoridade da crítica do conhecimento”. [Lukács, 2013, idem, pp.
50-51).

Em direção contrária, Lukács lembra ainda que Marx nega a existência de


qualquer teleologia exceto aquela concertada pela práxis humana: a do
trabalho. Dito de outra maneira por Lukács, para Marx, o trabalho não é uma
das muitas formas fenomênicas da teleologia em geral, mas “o único ponto
onde se pode demonstrar ontologicamente um pôr teleológico como momento
real da realidade material” (Idem, p.51).

Marx “teleológico”? Ora, acusadores de Marx, deliberadamente ou não,


ignoram aspectos fundamentais de sua tese doutoral “Diferenças entre a
filosofia da natureza de Demócrito e Epicuro”, [16] escrita em 1841, quando
Marx tinha somente 23 anos – isto é, na fase alcunhada de “o jovem Marx”.

Repondo questões relevantes, Ana Albinati discorre sobre a pesquisa de Marx,


encontrada incompleta, onde, apresentando bem além uma interpretação
original da filosofia de pós-aristotélica, ressalta haver nela as inquietações
percucientes diante do influente pensamento da era pós-hegeliana. “Notável
escavação de princípios” observa Albinati, [17] onde, a) as distintas visões
atomistas dos dois filósofos gregos; e, b) e a nova problemática da
“autoconsciência, assumida então por Marx, o fazem discorrer analiticamente
“dois blocos filosóficos diferentes sistemáticos e coerentes”.

De outra parte, chama a atenção de que, já em “O jovem Marx e outros escritos


de filosofia”, Lukács enxergando ali um embrião das teses sobre Feuerbach,
considera ademais que há na dissertação de Marx uma vinculação da filosofia
à oposição liberal sugerindo nexos a um “programa político” [18]. Isto já
significa – afirma Albinati (Op. cit., p. 13) - que Marx, ao escolher a filosofia
antiga como base de sua crítica, passa a pensar os fenômenos de seu próprio
tempo, referindo-se inclusive à cisão entre os discípulos de G. Hegel como
sendo também uma batalha entre duas tendências opostas, a liberal e a
positiva:

“(...) [a primeira] retém como determinação principal o conceito e o princípio da


filosofia, enquanto a outra retém como tal o seu não conceito, o fator da
realidade. (...) O ato da primeira é a crítica e, portanto, exatamente o voltar

15
para fora da filosofia, sendo o ato da segunda a tentativa de filosofar, e,
portanto, o voltar-se para dentro de si da filosofia...” (Marx, 2017, op. cit., p. 59).

Enfim, como bem reforça Albinati, estudiosos da obra de Marx veem nesse
pioneiro estudo de Marx o ponto de partida para o materialismo (Denis Collin);
J. Bellamy Foster sustenta a crítica materialista de Marx a Hegel, naquela tese
doutoral; o intento de descobrir e superar as insuficiências do hegelianismo
também é assinalado por Lukács em sua obra sobre o jovem Marx. [19]

Marx “teleológico”? Observe-se como desfecha seu estudo, repita-se, aos 23


anos:

“Ou as provas da existência de Deus não passam de tautologias vazias – por


exemplo, a prova ontológica nada diz além disto: ‘O que represento como real
(realiter) é para mim uma representação real’ que atua sobre mim, e nesse
sentido todos os deuses, tanto os pagãos como os cristãos, tiveram existência
real. O velho Moloque [Moloch] [20] não reinou? O Apolo de Delfos [21] não
constituiu um poder real na vida dos gregos? Nesse ponto, tampouco a crítica
de Kant significa algo” (Marx, 2017, idem, p.133; grifos de Marx)

(...) Nesse sentido, todas as provas da existência de Deus são provas de sua
não existência, refutações de todas as representações de um deus”. (Marx,
2017, idem, p. 134; grifos de Marx).

Gramsci: “Karl Marx... É um vasto e sereno cérebro humano”

Antonio Gramsci, a quem se dispensa apresentação, sabe-se bem hoje, foi dos
teóricos revolucionários marxistas mais criativos. A frase da epígrafe encontra-
se no final do artigo “O nosso Marx” [22], onde Gramsci sumariza uma
interpretação do papel e da significância histórica do pensador alemão, de
grande densidade e alcance. Marx – escreve o italiano - não escreveu “uma
doutrinazinha, não é um Messias”, tampouco nos legou “normas indiscutíveis,
absolutas, fora das categorias de tempo e espaço”. Sarcasticamente
parafraseando a “teleologia” do dogmatismo religioso kantista, declara, ser para
Marx, o “Único imperativo categórico, única norma: ‘Proletários de todos os
países, unam-se!”

Enfatizando que Marx foi homem de pensamento e ação, grande e fecundo nas
duas esferas, Gramsci abordava então uma questão crucial, ainda hoje
utilizada por adversários e críticos de um suposto “voluntarismo” em sua
construção da prática política de sua teoria:

“(...) sua ação foi fecunda, não porque inventou a partir do nada, não porque
extraiu de sua fantasia uma visão original da história, mas porque nele o
fragmentário, o incompleto e o imaturo se tornaram maturidade, sistema e
tomada de consciência. (...) seus livros transformaram o mundo, assim como
transformaram o pensamento. Marx significa ingresso da inteligência na história
da humanidade, advento da consciência”. (Op. cit., p.66).

16
Mas, voluntarismo na análise e ação políticas, em Marx? Segundo discerne
Gramsci, a temática da ação política em Marx origina-se e relaciona-se à
formação do partido político independente de classe, sua organização, por isso
mesmo, distinção, diferenciação classista, organização compacta e
disciplinada, visando finalidades próprias e específicas. Noutras palavras,

“Vontade, do ponto de vista marxista, significa consciência da finalidade, o que,


por sua vez, significa noção exata do próprio poder e dos meios para expressa-
lo na ação. (Karl Marx é para nós mestre da vida espiritual e moral, não um
pastor brandindo seu cajado” (Idem, p. 68).

As considerações de Gramsci vêm bem a propósito das “críticas” da análise de


Marx acerca da “Comuna de Paris”, num exemplo. Diz-se por aí que, um
balanço “voluntarista”, muito simplificado sobre a questão do Estado, a partir
das lições retiradas por Marx da insurreição comunarda teria influenciado
erroneamente, inclusive, até a posterior forma de organização do poder político
na URSS de Lênin. São críticas completamente despropositadas e claramente
esquemáticas. Por que?

1. É preciso repor a verdade dos fatos, vez que, Marx, que desde 1870
advertira, em nome da Primeira Internacional, ao proletariado parisiense
“contra qualquer insurreição prematura”. Logo a seguir, não só organizou
ativamente a solidariedade quando do massacre da Comuna, como não se
ateve “apenas aos aspectos mais salientes dessa primeira experiência
meteórica de poder operário” - e da democracia direta ali praticada. Marx:
“analisou-a profunda e detalhadamente extraindo dela inferências (em especial
relativas à questão do Estado)”, avaliando-a “como decisiva para o projeto
revolucionário”. [23]

2. Especialmente esclarecedor da formidável visão de Marx, Eugene Schulkind,


no indispensável “Dicionário do Pensamento Marxista”, [24] considera que
Marx afirmou não só serem as medidas tomadas pelos comunardos notáveis
pela sua sagacidade e moderação, bem como especiais, mas que elas “não
poderiam senão indicar a tendência” de um governo do povo e pelo povo. E
complementa Schulkind:

“Longe de dever ser vista como um modelo dogmático, ou como fórmula para
governos revolucionários do futuro, a Comuna de Paris foi, para Marx, ‘uma
forma política totalmente expansiva ao passo que todas as outras formas
anteriores de governo haviam sido enfaticamente repressivas’”.

3. São amplamente conhecidas as observações, textos e estudos de V. Lênin


analisando as relações da experiência da Comuna de 1871, a revolução e o
Estado, notadamente sua célebre obra “O Estado e a revolução” (1917). Mas é
pouco conhecido seu artigo, bem anterior, para o jornal “Proletari” (nº 8, de 17
[4] de julho de 1905). Seguindo observações dialéticas de Marx, é
precisamente nesse texto que Lênin afasta qualquer vestígio de interpretação

17
mecanicista ou dogmática, já anunciando que não se poderia repetir tal
processo nas condições históricas e sociais da velha Rússia. Não se repetir,
tampouco copiá-la. Conclui, ali, Lênin:

“Por último,(...) ao tirarmos ensinamentos da Comuna de Paris, não devemos


repetir os seus erros (não tomaram o Banco de França, não empreenderam a
ofensiva contra Versalhes, não elaboraram um programa claro, etc.), mas os
seus passes práticos que tiveram êxito e que apontaram o caminho certo. (...)
nem repetir cegamente todas as suas diretivas; pelo contrário, devemos fazer
por que ressaltem as diretivas programáticas e práticas correspondentes ao
estado de coisas existente na Rússia (...)”. [25]

À guisa de conclusão

O constructo teórico-epistemológico de Karl Marx se funda no materialismo


dialético, que desenvolve uma nova e revolucionária interpretação da história a
partir daí. O marxismo de Marx (de Engels e de Lênin), sua teoria, operam
extremos esforços da inteligibilidade humana perseguindo não se separar do
sempre rebelde movimento da matéria. Só o interpreta como dogma quem
subjetivamente o deseja. Entronizado na práxis política, orienta e organiza a
ação transformadora. Esta teoria do conhecimento caminha (estagna ou
retrocede) conforme a dinâmica material das conexões internas do fenômeno:
as contradições. Ou, como iluminou Marx ao posfácio da 2ª edição alemã de “O
capital”, [26] distinguindo – indelevelmente - o “oposto” de seu método, ao de
G. Hegel:

“A investigação tem que apoderar-se da matéria, em seus pormenores, de


analisar suas diferentes formas de desenvolvimento, e de perquirir a conexão
íntima que há entre elas. Só depois de concluído esse trabalho, é que se pode
descrever, adequadamente, o movimento real. Se isto se consegue, ficará
espelhado, no plano ideal, a vida da realidade pesquisada, o que pode dar a
impressão de uma construção a priori”.

Devastador, o método do qual irradia a configuração teórica de Marx não se


presta a servir a devaneios subjetivistas e anticientíficos. Sim, Marx não só
construiu a façanha de produzir uma síntese da economia política inglesa, da
filosofia clássica alemã e do socialismo francês a cimentar os alicerces de sua
obra, simultaneamente a uma fecunda e poderosa ruptura epistemológica.

Não à toa, o destacado pesquisador da Mega2 [27], Rolf Hecker, afirma que
uma coisa são os escritos de Karl Marx, mais recentemente complementados –
esta é a palavra – por manuscritos em grande parte inéditos; outra, são os que
professam ter Marx espraiado “utopias”, “teleologias”, ou que erros graves
foram cometidos e responsabilizados em nome de sua teoria.

Ora, segundo assevera ipsis verbis o professor Hecker, gigantes do


pensamento como Marx não podem ser apagados da memória simplesmente
por mudanças sociais, independentemente da maneira como elas sejam

18
julgadas. Afinal, diz por exemplo Hecker:

“O próprio Marx dizia não ser nenhum marxista, preferindo para sua teoria o
termo ‘socialismo científico’. Dessa forma, ele se delimitava de outros projetos
estatais e sociais, classificados por ele como ‘socialismo utópico’ ou
‘anarquismo’”. [28]

Pouco antes escrevera Hecker uma espécie de (esclarecedor) paradoxo,


afirmando que, sobre o capitalismo, Marx escreveu muito, ainda que pouco
tenha experimentado dele; todavia sobre o socialismo, “Marx não escreveu
quase nada, apesar de ter sido responsável por ele” (op. cit., p.13).

De outra parte, são consagrados os estudos de Nicola Badaloni [29]


relacionando as concepções de Marx sobre socialismo e liberdade, exatamente
sem que esta relação não se oriente pela luta política. Badaloni considera usar
Marx “o método das abstrações transitórias”, onde: a) o desenvolvimento da
produtividade do trabalho é compreendido na “luta pela libertação das massas”;
b) libertação que se afirma pela luta de classes num processo histórico, na
difusão cultural, na redução do poder e da propriedade das camadas
superiores; c) o que pode ser possível se a compreensão do capitalismo
enxergue blocos analíticos desta sociedade como um conjunto, isto é, onde os
fenômenos sejam processo transitórios, e não “em estado puro”.

Numa mesma angular, é no excelente estudo “Os caminhos da liberdade no


jovem Marx. Da emancipação política à emancipação social”, [30] que Julia
Vieira procede a uma interpretação (dialética) crucial acerca do entendimento
avançado de Marx dessa mesma temática - sepultando as tolices dos que
julgam Marx portador de uma “razão libertária” caudatária do iluminismo.
Porque - escreve ela -, se ainda entre 1837 e 1842 a finalidade da
emancipação dos homens passa pela desconstrução da alienação da razão via
“desenvolvimento do sufrágio universal e da educação” da consciência humana
no bojo da emancipação política,

“Entre o jovem Marx republicano e o jovem Marx comunista há assim um


mesmo horizonte de dissolução das cadeias dos homens entendidas como
alienações: a autonomia como princípio do humanismo. A dissolução do poder
de determinação da ordem social permanece como condição para ao
desenvolvimento da liberdade no sentido da dissolução do poder público
formal, o que mantém irrealizadas a justiça, a igualdade e a liberdade
declarada no direito positivo”.

Marx condenado pelos erros dos “marxistas”?

Escoimando o falso veredito, outro pesquisador - “L’ultimo Marx” -, Marcello


Musto, quando narra os ataques de Marx ao uso de “certa fraseologia
ultrarrevolucionária” entre seus partidários, recorda que ele considerava vazia,
e assim posições perfeitamente delegadas aos anarquistas, estes “os pilares
da ordem existente, não criadores da desordem”. [29] E adverte: Karl Marx,

19
igualmente ficava furioso com os que se declaravam seguidor de suas ideias
sem as conhecer: “Tudo o que sei é que não sou marxista” (Op. cit., p. 129).

Marx respondia assim às “opiniões” fantasiosas de que a sua teoria revelar-se-


ia responsável por falcatruas e desastres em seu nome.

* Publicado no Portal Vermelho ( 22/07/2018), em grabois.org.br e no blog


do Renato Rabelo

NOTAS
[1] Ver: “Marx ‘filósofo’”, I. Mészaros, em: “História do marxismo 1. O marxismo
no tempo de Marx”, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980, pp. 160-1.
[2] Em: https://jornalistaslivres.org/the-economist-implora-um-reformador-pelo-
amor-de-deus/
[3] Citado por Michael Roberts, em: http://www.sinpermiso.info/textos/marx-
200-carney-bowles-y-varoufakis
[4] Em: Editora Contraponto, Rio de Janeiro, 2004, p.19.
[5] Ver: “Materialismo e empiriocriticismo. Notas críticas sobre uma filosofia
reacionária”, V. I. Lénine, Lisboa/Moscou, Avante!, 1985, p.103.
[6] Ver: “A epistemologia”, G. Bachelard, Lisboa, Edições 70, 2006, p.165.
Também Cf. Vincent Bontems, “Bachelard”, São Paulo, Estação Liberdade,
2017, p. 33: “[Em Bachelard] “o espírito científico progride sempre por uma
retificação de seus conhecimentos que permitem sua extensão”.
[7] Ver: G. Bachelard, Op. cit., Rio de Janeiro, Contraponto, 2004.
[8] “Essa harmonia que a inteligência humana crê descobrir na natureza existirá
fora dessa inteligência? Não, sem dúvida é impossível uma realidade
completamente independente do espírito que a concebe, vê ou sente”. Ver: H.
Poincaré, “O valor da ciência”, Rio de Janeiro, Contraponto, 1995, p. 9, 4ª
reimpressão.
[9] Ver: “A física do século XX”, M. Paty, São Paulo, Ideias & Letras, 2009,
p.31.
[10] A discussão desse ponto baseia-se amplamente em: “Da utopia dos
mundos sonhados à transformação prática das realidades”, de J. Barata-
Moura, e não à toa publicado exatamente na obra coletiva “Karl Marx:
desbravando um mundo novo no século XXI” (2018), apresentada no referido
seminário da Fundação Maurício Grabois.
[11] Ver: “Pós-modernismo e a atualidade da teoria marxista”, Madalena G.
Peixoto, Revista Princípios, nº 150, São Paulo, Anita Garibaldi, 2017, pp. 58-
67. Peixoto distingue bem as contribuições de Frederic Jameson e David
Harvey, das alinhadas com o “fim do marxismo” de F. Lyotard e J. Braudillard.
[12] Ver: “Do socialismo utópico ao socialismo científico”, F. Engels, Obras
Escolhidas Marx-Engels, V. III, Lisboa/Moscou, Avante!/Progresso, 1985,
pp.140-1.
[13] Marx, Apud: Barata-Moura, 2018, op. cit. p. 57.
[14] Em: Editora Instituto Piaget, Lisboa, 2005, p. 616.
[15] Ver: Lukács, op. cit, pp. 49-50, V. II, São Paulo, Boitempo, 2013.Teodiceia:
do grego= justiça, processo, justificação. Em sentido estrito, teodiceia é

20
colocada a todo filósofo e a todo teólogo que concebe um mundo governado ou
criado pelo Bem (Platão, santo Agostinho, Malebranche. “O sistema dialético
de Hegel, em seu conjunto, pode ser considerado como uma forma de
teodiceia”. Ver: “Novo Dicionário da Filosofia e das Ciências Humanas”, op. cit.,
p.623.
[16] Em: Editora Boitempo, São Paulo, 2017.
[17] Marx, 2017, op.cit., Apresentação de A. Albinati, p.10.
[18] Ver: “Cadernos de Paris & Manuscritos econômicos-filosóficos de 1844”,
Karl Marx, Apresentação de J. Paulo Netto, São Paulo, Expressão Popular,
2015, notas 18-19, pp. 114-115.
[19] Embora Albinati referencie-se em Aguste Cornu para considerar “idealista”
a análise de Marx sobre o materialismo de Epicuro (pp. 15-16).
[20] Moloch, na referência bíblica, era o nome do deus ao qual os amonitas
(etnia de Canaã ou de povos presentes na península arábica e na região do
Oriente Médio) cultuavam. Também é o nome de um demônio na tradição
cristã e cabalística, e, nos rituais de adoração, havia atos sexuais e sacrifícios
de crianças, jogando-os em uma fogueira.
[21] Delfos refere-se a uma atual moderna cidade grega e ao local que, na
antiguidade servia de oráculo ao Deus Apolo. Delfos era considerada pelo
mundo grego “o centro do universo”.
[22] Em: “O leitor de Gramsci. Escritos escolhidos 1919-1935”, C. Nelson
Coutinho (org.), Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2011.
[23] Ver: “O leitor de Marx”, J. Paulo Netto (org.), “Introdução”, Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 2012, pp. 32-33.
[24] Em: Jorge Zahar Editor, Verbete Comuna de Paris, editado por Tom
Bottomore, Lawrence Harris, V. G. Kierna, Ralph Miliband coeditores, Rio de
Janeiro, 1988, pp.70-71.
[25] Ver: “A Comuna de Paris e as tarefas da ditadura democrática”, V. I.
Lénine, 1905. Em:
https://www.marxists.org/portugues/lenin/1905/07/17.htm#topp
[26] Ver: “O capital (Crítica da economia política) Livro 1, v.1 : O processo de
produção capitalista”, Rio de janeiro, Civilização Brasileira, 1968, p. 16.
[27] Entre 1975 a 1989, organizada para ter 165 volumes, o projeto, então, de
Moscou-Berlim, da MEGA2 sumariava: I) Obras, Artigos, Rascunhos (35
volumes); II) O capital e os escritos preparatórios (15 volumes) III);
Correspondência, agora completa, com as cartas dirigidas a Marx e Engels (40
volumes); IV) Notas, material manuscrito adicional e apontamentos de livros
(75 volumes). Mais de 40 volumes publicados, a sabotagem e desagregação
do socialismo real do Leste europeu interrompeu e quase liquida a nova
empreitada. Pesquisadores da “Fundação Internacional Marx-Engels” (IMS) de
Amsterdam e a Academia de Ciências de Brandemburgo (Berlim) retomaram a
iniciativa. Sediada em Berlim, redefiniu-se para 114 volumes, nas mesmas
seções indicadas, e até 2013 mais 20 volumes foram publicados. Detalhes em:
“Da política à filologia: a Marx-Engels Gesamtausgabe”, de Gerald Hubmann,
Crítica Marxista nº34, 2012; também “‘O capital e seus escritos preparatórios’:
sobre o lançamento do volume 4.3 da MEGA’”, de Jorge Grenspan, Crítica
Marxista nº 37, 2013.
[28] Ver: “Marx como pensador. Novos resultados do trabalho de pesquisa

21
sobre sua obra e biografia”, R. Hecker, São Paulo, Fundação Maurício
Grabois/Anita Garibaldi, p.15.
[29] Ver: “Marx e a busca da liberdade comunista”, N. Badaloni, “História do
marxismo”, vol 1, E. Hobsbawm (org.), Rio de janeiro Paz e Terra, 1979, p. 251.
[30] Em: Anita Garibaldi/Fundação Mauricio Grabois, São Paulo, 2017, pp. 317-
319.
[31] Ver: “O velho Marx”, M. Musto, São Paulo, Boitempo, 2018, pp.126-9.
Óbvio que “último” não quer dizer “velho”, portanto distorcida a tradução do
original italiano de 2016.

22
Os Manuscritos, de 1861-1863, de Karl Marx: notas históricas e teóricas*

O artigo1 informa aspectos notáveis dos ainda pouco conhecidos Manuscritos


de 1861-63. Neles, o exame minucioso da técnica e dinâmica da produção do
capitalismo originário percorre caminhos dialéticos de uma nova construção
categorial e conceitual dos processos de desenvolvimento das forças
produtivas típicas do regime do capital. Espécie de ponte entre os 10 anos que
marcam a elaboração dos Grundrisse (1857-1858), e o Livro 1 de O Capital
(1867), esses Manuscritos são marcados pela evolução do revolucionário
método de Marx em desvelar as relações entre aparência imediata
(fenomênica) e a essência, problema fundamental a emoldurar até hoje a
fetichização emanada da economia política da sociedade burguesa.

Entre agosto de 1861 e julho de 1863, na redação dos Manuscritos, no seu


exílio em Londres, Marx compilou 23 cadernos, os quais inicialmente serviriam
para compor um Capítulo III de sua obra O Capital. Esse plano foi abandonado,
também, dado o volumoso material escrito, completamente descomunal para
aquele objetivo: 1.472 manuscritos, correspondentes a 2.380 páginas
impressas.

Sendo mais conhecida, a história inconclusa da MEGA 1 (Marx-Engels Obras


Completas ou Marx-Engels Gesamtausgabe), dirigida pelo destacado
intelectual da revolução russa, o bolchevique David Riazanov,2 na verdade, os
Manuscritos 61-63 só vieram à luz muito recentemente, entre 1976 e 1982, em

1
Esse artigo baseia-se principalmente em: “Hacia un Marx desconocido. Um comentário de los
Manuscritos del 61-63”, de Enrique Dussel, México, Siglo XXI, 1988; “A produção teórica de Marx.
Um comentário aos Grundrisse”, Enrique Dussel, São Paulo, Expressão Popular, 2012; “Para a crítica
da economia política. Manuscrito de 1861-1863 (Cadernos I a V). Terceiro Capítulo - O capital em
geral”, Belo Horizonte, Autêntica, 2010, tradução e Apresentação de Leonardo de Deus; “Maquinaria e
trabalho vivo (Os efeitos da mecanização sobre o trabalhador)”, K. Marx, Revista Crítica Marxista, nº1,
São Paulo, Brasiliense, pp. 103-110, tradução de Jesus Ranieri; “Capítulo inédito D’O capital. Resultado
do processo de produção imediato, Karl Marx”, Introdução à edição italiana, de Bruno Maffi, Lisboa,
Escorpião, 1975, pp. 5-23; “Lições sobre o capítulo sexto (inédito) de Marx”, de Claudio Napoleoni”,
São Paulo, Ciências Humanas, 1981;“Karl Marx. Biografia”, Moscou-Lisboa, Edições
Progresso/Avante!, 1983; “Karl Marx ou o espírito do mundo”, Jacques Attali, Rio de Janeiro, Record,
2007, Caps. IV e V; “Karl Marx: grandeza e ilusão”, Gareth S. Jones, São Paulo, Companhia das Letras,
2017, Caps. 9 e 10; “Teoria das mais-valia. História crítica do pensamento econômico. V. II, Livro 4 de O
capital”, de K. Marx, São Paulo, Difel, 1980.
2
Descreve Rolf Hecker, pesquisador alemão da MEGA 2, que o tradutor e colaborador de Riazanov, o
judeu russo Paul Veller (primeiro tradutor dos “Grundrisse”) fez descrição detalhada de “todos os 23
cadernos do manuscrito de 1861-1863”, ainda por volta de 1926. Ver: “A história desconhecida da
primeira publicação dos Grundrisse sob o estalinismo”, em: “O ensaio geral: Marx e a crítica da
economia política (1857-1858)”, Paula de, J.(org.) Belo Horizonte, Autêntica, 2011, p. 53.

23
seis volumes, conformando materiais inéditos que pesquisadores da MEGA 23
perseveraram em vasculhar e traduzir.

Noutro enfoque, L. de Deus (2010, op, cit., p.10-11) interpreta que, na divisão
tradicional da obra de Marx acerca da economia política, incluindo seu famoso
“Contribuição à crítica da economia política” (1859), os manuscritos de 1861-
1863 seriam chamados de o “segundo esboço”, onde os Grundrisse, o
“primeiro esboço”, e outros manuscritos de 1863-1865, o “terceiro esboço”
(versão integral dos livros segundo e terceiro de O Capital; ainda uma outra
versão do livro primeiro, da qual sobrou apenas o conhecido “Capítulo sexto:
Resultado do processo de produção imediato”).4 O material escrito por Marx
depois de 1867, base para edições trabalhadas por Engels, representariam
então o “quarto esboço”.
A propósito, é espantoso notar que essa imensa “biblioteca” de estudos de
investigação econômica de Marx, notadamente no período de 1861-1863,
encontra-o, juntamente com a família, numa situação verdadeiramente de
desespero e miséria, em sua vida de um alemão exilado em Londres. Numa
carta a Engels, datada de 25 de fevereiro 1962, diz ele que, “se bem
consideradas as coisas, uma vida tão miserável não vale a pena ser vivida”.
Noutra, em junho, Marx escrevia explicitamente: “Minha mulher [Jenny] disse-
me que desejaria estar numa tumba com as crianças; e eu não posso criticá-la,
porque as humilhações, os sofrimentos e os horrores de nossa situação são
verdadeiramente indescritíveis”.5
Em sua famosa biografia de Marx, Isaiah Berlin também anota que, por volta de
1860,
“O próprio Marx começava quase a adquirir um interesse de figura
histórica, a ter sido por temível teórico e agitador de uma geração
anterior, agora exilado e indigente, a viver de um jornalismo ocasional
num obscuro recanto de Londres”.6
3
De após 1975 a 1989, organizada para ter 165 volumes, o projeto, então, de Moscou-Berlim, da MEGA2
sumariava: I) Obras, Artigos, Rascunhos (35 volumes); II) O capital e os escritos preparatórios (15
volumes) III); Correspondência, agora completa, com as cartas dirigidas a Marx e Engels (40 volumes);
IV) Notas, material manuscrito adicional e apontamentos de livros (75 volumes). Mais de 40 volumes
publicados, a sabotagem e desagregação do socialismo real do Leste europeu interrompeu e quase liquida
a nova empreitada. Pesquisadores da “Fundação Internacional Marx-Engels” (IMS) de Amsterdam e a
Academia de Ciências de Brandemburgo (Berlim) retomaram a iniciativa. Sediada em Berlim, redefiniu-
se para 114 volumes, nas mesmas seções indicadas, e até 2013 mais 20 volumes foram publicados.
Detalhes em: “Da política à filologia: a Marx-Engels Gesamtausgabe”, de Gerald Hubmann, Crítica
Marxista nº34, 2012; também “‘O capital e seus escritos preparatórios’: sobre o lançamento do volume
4.3 da MEGA’”, de Jorge Grenspan, Crítica Marxista nº 37, 2013.
4
O citado estudo de Claudio Napoleoni (Nota 1) constitui até hoje uma poderosa interpretação (1972,
edição italiana) do desenvolvimento do pensamento econômico de Marx, que acompanha notadamente os
vínculos entre os “Grundrisse” e a redação, por volta de 1865, do “Capítulo VI”, não incluído no texto
magno de 1867.
5
Ver: E. Dussel, 1988, op. cit., “Palavras preliminares”.
6
Ver: “Karl Marx. Introdução de Alan Ryan”, de I. Berlin, Lisboa, Edições 70, 195. Berlin, assim como
G. Jones (2017, op. cit., principalmente pp. 329 e 354) referem-se a longa e culta presença jornalística de
Marx, especialmente no “New York Daily Tribune”. De 1852 a 1860, a convite do editor Charles Dana,
Marx passou a receber por seus artigos, o que fazia para ajudar a sobrevivência. Jones relata que Marx
escreveu 457 artigos para o jornal, 350 de punho próprio, 125 escritos por Engels e 12 por ele e Engels (p.
369). O jornal atingira a tiragem de 200 mil exemplares, segundo Jones, na década de 1850 “a maior

24
Por conseguinte, é imerso nesse quadro social de pauperismo e sofrimento que
Marx desenvolve sua impressionante capacidade de trabalho: a) entre agosto
de 1861 e março de 1862 redige os Cadernos I a V, que envolve o material do
futuro Livro 1 de O Capital, até a exposição do conceito de mais-valia relativa;
b) entre março-novembro de 1862 escreve os Cadernos VI a XV, com quase
1000 páginas manuscritas. Aí, Marx avança para a construção de nova
categoria, aprofundando-se em torno da significação da mais-valia, do ponto de
vista histórico, denominando esta densa parte dos Manuscritos de “Teorias da
mais-valia”; c) entre novembro de 1862 e julho de 1863, nos Cadernos XV a
XXIII, Marx aborda temas variados que se encontram nos livros 2 e 3 de “O
capital”, volta aos Cadernos I a V, mas discute ainda sobre a reprodução do
capital, lucro, preços de produção e outros assuntos.7

Por isso também, Dussel (1988, p. 20) considera que o conteúdo do plano de
trabalho de Marx, que aparece nos Cadernos I a V do Manuscrito revela os
vínculos entre o texto de 1859 (“Contribuição à crítica da economia política”),
havendo passado pelos “Grundrisse”, ainda que sofra pequenas alterações –
que, entretanto, sofisticam-se (há “algum amadurecimento”). Diz ele,
exemplarmente:

“Mas o problema de fundo não é somente ir alcançando clareza quanto


aos planos, mas ao que diz respeito ao desenvolvimento do conceito e
constituição das categorias com as quais se deveria articular o discurso
dialético da crítica da economia política burguesa. Eram necessárias
novas categorias e um novo sistema como condição de possibilidade
de uma nova ordem do conceito (que se manifesta nos planos). Desta
maneira, considerando o trabalho de ‘laboratório’ teórico que contém
esses Manuscritos de 61-63, podemos indicar de maneira geral que é
um estudo muito mais avançado que os Grundrisse (e haverá que
demonstrá-lo), mas, todavia, não tão desenvolvido como em O Capital
(e haverá que indicá-lo também)”.

O Plano evoluído, então, assim aparece:

“I – O processo da produção capitalista

1. Transformação do dinheiro em capital


a) Transição
b) Intercâmbio entre capital e capacidade de trabalho
c) O processo de valorização8
2. A mais-valia absoluta
3. A mais-valia relativa
tiragem do mundo”!
7
Ver: Dussel, 1988, op. cit., “Palavras preliminares”.
8
Dussel (2012, op. cit., p.157) assinala que Marx já “intui” o problema da mais-valia desde os “Cadernos
de Paris” (1844), entretanto, ele só sofre a elaboração primeira nos “Grundrisse”, “embora se realiza
progressos na década seguinte”, para a elucidação da categoria mais-valia.

25
a) Cooperação simples
b) Divisão do trabalho
c) Maquinaria
4. A acumulação primitiva
5. Trabalho assalariado e capital

Manifestação da lei de apropriação na circulação simples de


mercadorias. Inversão desta lei”.

Com efeito, os Manuscritos de 61-63 elevam a grandiosidade do pensamento


teórico de Marx, na medida em que a relação entre tecnologia/capital,
subsunção formal/real, acumulação/acumulação originária, transformação de
dinheiro em capital, mais-valia, o capital portador de juros, especialmente, sofre
criteriosa fundamentação a partir da abrangente exegese realizada na
interpretação histórico-crítica das teorias econômicas9 do mainstream, do
século XIX.10

Como recorda J. Paulo Netto,11 nesse período, Marx enfrentara


simultaneamente às suas privações pessoais e familiares, problemas como a
de sua posição acerca da guerra civil nos EUA, o da abolição da Servidão na
Rússia, ou mesmo a iniciativa que se propôs da defesa do revolucionário
francês Louis Blanc, perseguido por L. Bonaparte (1861). Demonstração de
sua “genialidade teórica”, “o apogeu intelectual de Marx” – enfatiza
acertadamente Netto - que se desdobram às novas elaborações de 1863 a
1865, estando esses manuscritos presentes em vários livros de O capital.

Ademais, em 1860, Marx foi obrigado a ter que responder longamente - com
um livro, em verdade -, às calúnias do cientista Carl Vogt, um dos mais
famosos especialistas em ciências naturais daquela época, professor de
zoologia, fisiologia e geologia da Universidade de Genebra. Vogt tinha sido
deputado à Assembleia Nacional de Frankfurt (1848-49), e era um
“bonapartista” radical, tendo defendido a posição francesa em relação à Itália,
assim como escrito que Bonaparte deveria inspirar “a maior sensação de
segurança na Alemanha”, que este “respeitava plenamente a unidade nacional
alemã”.12 “Herr Vogt”, o livro de Marx, tem cerca de 300 páginas e consumiu
dele imensa energia e tempo.
9
Note-se, num exemplo clássico, a crítica a uma lei da economia política em Marx, omitida por David
Ricardo, e que responde por uma das questões centrais da dinâmica do regime do capital, até hoje:
“Assim, Ricardo também não pode admitir que o modo de produção burguês contenha limite para o
desenvolvimento das forças produtivas, limite que vem à tona nas crises e em outras manifestações como
a superprodução – o fenômeno fundamental das crises” (“Teoria da mais-valia. História crítica do
pensamento econômico, v. II, Livro 4 de O capital”, op. cit., p. 962).
10
Cabe aqui registrar que nas pesquisas MEGA2, encontram-se vários cadernos em que Marx examinou
detalhadamente as crises capitalistas de 1848, 1857, 1866 e 1872. Quer dizer, crises capitalistas que
ocorreram exatamente no período que antecedeu a passagem da primeira revolução industrial para a
segunda.
11
Ver: “O leitor de Marx”, Introdução de J.P. Netto, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2012, p. 25.

26
Assim, ainda de acordo com Dussel: (i) os Cadernos de I a V foram redigidos
entre agosto de 1861 a março de 1862; (ii) deste março a novembro de 1862,
foram os cadernos VI a XV, o fundamental para a escritura das “Teorias da
mais-valia”;13 (iii) entre janeiro e julho de 1863, nos Cadernos XVI a XVII
encontram-se materiais específicos dos Livro 2 e 3 de “O capital”; (iv) entre
janeiro e julho de 1863 Marx redige os cinco últimos Cadernos, revisando
principalmente neles a discussão feita no V Caderno (Acumulação Primitiva,
Trabalho Produtivo, Subsunção Formal/Real) (Dussel, 1988, p. 21).

Passagens dos Cadernos I a V dos Manuscritos. [No início]


Importa sublinhar que os Manuscritos de 1861 a 1863 representam um
desenvolvimento da crítica à economia política burguesa contida nos anteriores
e formidáveis “Grundrisse”. E. Dussel e L. Deus consideram mesmo haver
neles uma interpretação superior, em relação aos famosos textos de 1857-
1858.
Conforme Dussel - estudioso detalhista e profundo da obra de Marx -, nos
Manuscritos 61-63 há novos conceitos para novos nomes e categorias, na
crítica às falsidades e conceitos confusos da economia vulgar, isto é, “uma
contínua atenção epistemológica” ou uma “evolução genética na constituição
das categorias em Marx”; um novo estágio categorial que “necessita de novos
instrumentos hermenêuticos”, afirma (Dussel, 1988, pp.23-24).

Para L. Deus, nos “Grundrisse”, Marx ainda não se debruçara sobre a


necessidade de uma sistemática articulação categorial, como nos Manuscritos
de 61-63. Vez que não era imperiosa a exposição de forma adequada nos
textos de 1857-1858 - e seria “impossível naquele momento, já que a lógica da
exposição é dada pelo próprio objeto” em pesquisa -, a questão tivera que
começar a ser enfrentada já nos estudos de 1959 (Deus, 2010, p. 11).

Esclarece também Maurice Dobb, que os “Grundrisse” não foram escritos para
publicação, mas para esclarecer e explicitar as ideias de Marx, quem busca
enfrentar naqueles “rascunhos” problemas anteriormente levantados por
economistas vários, notadamente questões que diziam respeito à troca
monetária e ao valor de troca. Marx critica-os, procurando “libertar-se do
condicionamento deles”, mas aproveitando “tudo o que de positivo podia ser
encontrado” neles – afirma Dobb.14

12
Relata G. Jones que, Marx se envolveu contra Vogt, não só por suas posições políticas contrárias as
condutas belicistas de Napoleão Bonaparte, mas porque Vogt, em parte, falsificara como sendo de Marx a
responsabilidade por intrigas contra seu companheiro Karl Liebknecht e o editor do jornal “Das Volk”
(“O Povo”), que denunciara anonimamente as opiniões e tendências anti-alemãs de Vogt (Jones, 2017,
pp.392-395).
13
Como ressalta G. Jones, a maior parte dos Manuscritos, “de longe”, dedicava-se a essa história crítica
da economia política, por isso os capítulos referentes “A transformação do dinheiro em capital”, “Mais-
valia absoluta e Mais-valia relativa” somavam cerca de 350 páginas, enquanto às correspondentes as
“Teorias da mais-valia” ultrapassavam 1200 páginas (Jones, 2017, p. 440).

27
Assim, três blocos de passagens aqui escolhidas dão uma ideia geral da
clareza, articulação categorial e evolução conceitual que Marx realiza nos
Manuscritos 1861-1863.

1. Em “O processo da produção do capital”,15 Marx arremata uma espécie


de conclusão de seus estudos, da seguinte (e peremptória) maneira:
“A pesquisa sobre como o mais-valor [mais-valia] se origina constitui a
questão mais importante da economia política, desde os fisiocratas até
a época mais recente. Na verdade, trata-se da questão de como o
dinheiro (ou mercadoria, pois dinheiro é apenas a forma transformada
da mercadoria), uma quantia de valor em geral, se transforma em
capital ou então: como se origina o capital?” (2010, op., cit., p. 40).

Marx avança, desde logo conceituando o capital portador de juros,


exaustivamente exposto posteriormente no Livro 3 de “O capital”:
“Outra forma de capital, igualmente muito antiga, e a partir da qual a
concepção popular compôs seu conceito de capital, é aquela do
dinheiro que é emprestado a juros, a forma do capital monetário
portador de juro. Nela não vemos o movimento D-M-D, na qual o
dinheiro é trocado por mercadoria, e esta, então, é trocada por mais
dinheiro, mas somente o resultado do movimento D-D, no qual o
dinheiro é trocado por mais. Ele retorna a seu ponto de partida, mas
aumentado. (...) Quase todos os países e épocas históricas, por mais
baixo que seja o modo de produção da sociedade e pouco
desenvolvida seja sua estrutura econômica, encontramos dinheiro
portador de juro, dinheiro que põe dinheiro, portanto, capital
formalmente. (...) Aqui, portanto, o capital monetário, portador de juros,
é evidentemente não apenas uma forma derivada do capital – o capital
numa função particular – mas sim o capital já completamente
desenvolvido, de forma que uma quantia de valor – seja na forma de
dinheiro ou mercadoria – não pode ser emprestada como dinheiro ou
mercadoria, mas como capital, ou seja, que o capital mesmo pode ser
lançado na circulação como uma mercadoria sui generis. (...) A relação
tem que estar pronta antes de o capital poder aparecer nessa forma
particular” (2010, op. cit., p. 42).

Marx segue desvelando o trânsito para o conceito de capital:

“Para se desenvolver o conceito de capital, é necessário partir não do


trabalho, mas do valor; mais precisamente, do valor de troca já
desenvolvido no movimento da circulação. É igualmente impossível
passar diretamente do trabalho ao capital, assim como das raças
humanas diretamente ao banqueiro ou da natureza à máquina a vapor.

A partir do momento em que o dinheiro é posto como valor de troca, o


qual não apenas se autonomiza frente à circulação (como no
entesouramento), mas nela se conserva, ele, não é mais dinheiro, pois

14
Ver: “A crítica da economia política”, de M. Dobb, em “História do marxismo. O marxismo no tempo
de Marx”, v. 1, Hobsbawm, E. (org.), Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980, p.128.
15
Todas as notas que seguem estão em: “Para a crítica da economia política. Manuscrito de 1861-1863/
Caderno I a V. Terceiro capítulo – O capital em geral. Karl Marx”, Belo Horizonte, Autêntica, 2010.

28
como tal não ultrapassa a sua determinação negativa, mas é, agora,
capital” (2010, op. cit., pp.45-45).

2. Na terceira seção do Manuscrito, “O mais-valor [mais-valia] relativo”, em


“Maquinaria, utilização das forças naturais e ciência (Vapor, eletricidade,
agentes químicos e mecânicos)”, Marx apresenta uma interpretação
visionária16 acerca das transformações revolucionárias advindas da 1ª
revolução industrial e a ascensão da grande indústria.17

Argumenta Marx – assombrosamente contemporâneo! - sobre a relação entre a


mais-valia relativa e o tempo de trabalho socialmente necessário:

“Falando muito em geral, a finalidade da maquinaria é diminuir o valor


das mercadorias, Ergo [Logo] seu preço, barateá-la, isto é, encurtar o
tempo de trabalho necessário à produção de uma mercadoria, mas, de
modo algum, encurtar o tempo de trabalho enquanto o trabalhador é
ocupado na produção dessa mercadoria mais barata. Em verdade, não
se trata, assim, de encurtar a jornada de trabalho, mas antes, como em
todo o desenvolvimento da força produtiva sobre a base capitalista, de
encurtar o tempo de trabalho de que o trabalhador necessita para a
reprodução de sua capacidade de trabalho, em outras palavras, para a
produção de seu salário, portanto trata-se de diminuir a parte da
jornada que ele trabalha para si mesmo, a parte paga de seu tempo de
trabalho e, por meio de sua redução, de prolongar a outra parte da
jornada que ele trabalha gratuitamente para o capital, a parte não paga
da jornada de trabalho, de seu tempo de sobretrabalho. Que em toda
parte, com a introdução da maquinaria, cresce a avidez de devorara o
tempo de trabalho alheio e que a jornada de trabalho – até que a
legislação tenha de intervir -, em lugar de ser reduzida, é antes
prolongada além de seus limites naturais...” (2010, op. cit., pp. 367-
368).

Marx prossegue desvendando os segredos da jornada de trabalho imposta pela


maquinaria capitalista, sugando o tempo socialmente necessário que remunera
as condições de reprodução de vida do operariado;

“A introdução da maquinaria, seja que ele a substitua a indústria


artesanal (como, por exemplo, na fiação), de modo que um ramo
industrial em geral se submeta, pela primeira, ao modo de produção
capitalista; seja que ela revolucione uma manufatura antes baseada na

16
Chama a nossa atenção que Marx já identifica, no início dos nos 1860, elementos que desenvolvem
enorme impacto (eletricidade e química) somente na segunda revolução industrial. Isto é, a partir da
década de 1870 é que o processo denominado segunda revolução industrial, dando lugar a novos ramos de
produção, vai sendo gestado por um novo padrão tecnológico: do aço, do petróleo, da eletricidade, do
motor a combustão interna, da química pesada, do telégrafo sem fio, do telefone etc. Essa nova
tecnologia já não era produzida e difundida por homens práticos, mas resultava da aplicação consciente
de conhecimentos científicos nos processos produtivos.

17
Op. cit., 2010, pp. 367-417. Marx amplia a discussão sobre a maquinaria no Caderno XX, o que
veremos a seguir.

29
mera divisão do trabalho (como na fábrica de máquinas); seja, por fim,
que ela supere a maquinaria antiga com maquinaria aperfeiçoada ou
estenda o emprego da maquinaria a um ateliê cujas operações parciais
ela ainda não havia tomado em todos os casos ele prolonga, como
observado acima, o tempo de trabalho necessário para o trabalhador
ainda subsumido sob o antigo modo de produção e prolonga sua
jornada de trabalho total. Porém, por outro lado, ela diminui
relativamente o tempo de Trabalho necessário no ateliê em que é
introduzida pela primeira vez” (p. 679).

Passagens do Caderno XX dos Manuscritos. [No final]


Nesse Caderno,18 Marx volta a analisar o sistema de máquinas na produção
capitalista e suas consequências para os operários. Desta feita bem mais
enfático, combate com enorme clareza a fetichização das relações sociais de
produção pensada e publicizada pela economia política clássica.
3. Para Marx, aos trabalhadores são impostas as condições objetivadas
pela maquinaria do “salto” da subsunção formal para a real.
Cabe, portanto, o desvelar da relação que contrapõe “o homem de ferro [e] o
homem de carne e osso” (Marx), do trabalhador vivo e concreto, a fonte
criadora de todo o valor:
“Com a maquinaria - e com a oficina mecanizada nela fundada –
consolida-se a predominância do trabalho passado sobre o trabalho
vivo, não apenas do ponto de vista social, expresso na relação entre
capitalista e trabalhador, mas também como sendo uma verdade
tecnológica” (1994, p.109).

A ideia perseverante é de que são relações sociais que se estabelecem na


emergência e dinâmica da sociedade capitalista - e não relação entre coisas -,
engendradas por capital constante por sobre capital variável:
“É a forma social de toda combinação do trabalho o fator característico
geral do desenvolvimento da produção capitalista; característica que
abrevia o tempo necessário para a produção de mercadorias, ao
mesmo tempo em que diminui a massa de trabalhadores (assim como
da mais-valia) para um quantum determinado de mercadorias
produzidas” (1994, p.103).

Ou ainda,
“O trabalho passado surge aqui como meio para substituir o trabalho
vivo ou como aquele meio de fazer diminuir o número de trabalhadores.
Esta diminuição do trabalho humano aparece como especulação
capitalista, como meio para aumentar a mais-valia” (1994, p.104).
Isto porque,
“A oposição entre capital e trabalho assalariado desenvolve-se, assim,
até sua plena contradição. É no interior desta que o capital aparece

18
As citações de Marx estão todas em: “Maquinaria e trabalho vivo (os efeitos da mecanização sobre o
trabalhador), 1994, op.cit., nota 1.

30
como meio não somente de depreciação da capacidade viva de
trabalho, mas também como meio de tomá-la supérflua.p.106).

Escreve, enfim, Marx, no Caderno XX do Manuscrito de 61-63, antecipando


uma lei do desenvolvimento das bases técnicas do capitalismo, cujo curso das
consecutivas revoluções industriais só fizeram ratificá-las, em escala e
profundidade cada vez maior:
“Vimos ao mesmo tempo que o modo de produção capitalista não se
modifica formalmente apenas, mas revoluciona a totalidade das
condições sociais e tecnológicas do processo de trabalho, e também
como o capital não aparece agora somente como aquelas condições
materiais do trabalho não pertencentes ao trabalhador - matéria-prima
e meios de trabalho -, mas como ele se apresenta como a essência das
formas e potências sociais do trabalho em geral, contraposta a cada
trabalhador tomado isoladamente” (1994, p. 108).

Epílogo
1) Indispensável hoje relembrar que Karl Marx assim se referiu,
posteriormente, aos Manuscritos de 1861-1863,19 no processo da
primeira revolução industrial (1760-1840), enfatizando então que o ponto
de partida fora a transformação da ferramenta em máquina-ferramenta,
ou seja, caracterizado pelo estágio em que se retira a ferramenta das
mãos do trabalhador e a torna elemento de um mecanismo. Noutras
palavras,
“É desta parte da máquina, da máquina ferramenta, que parte a
revolução industrial do século XVIII”.

2) Hoje, o capital portador de juros, a mais completa fetichização,


examinado por ele (na parte final de “Capítulo do capital”) nos
“Grundrisse”, em minúcias e crescentemente nos “Manuscritos de 1861-
1863”, e especialmente no Livro 3 de “O capital”, tornou-se a peça
decisiva na configuração do capitalismo da “época gloriosa das finanças
especulativas internacionais”, nas palavras de E. Hobsbawm.20

3) Hoje, estamos diante da chamada quarta revolução industrial (ou a era


da indústria 4.0), cujo centro passa a ser a “inteligência artificial”,
entendendo-se que tal conceito não se limita à aplicação combinada de
várias tecnologias advindas das revoluções anteriores. A indústria 4.0
cria e articula as denominadas “fábricas inteligentes”, num sistema
produtivo e de comercialização substancialmente diferentes21. Para
pesquisadores do MIT (Massachussets Institute of Tecnology), entramos

19
Ver: “O capital”, livro 1, V.I, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968, p. 426.
20
Ver: “Globalização, terrorismo e democracia”, E. Hobsbawm, São Paulo, Companhia das Letras, 2007,
p. 18.
21
Em: “Indústria 4.0: desafios e oportunidades para o Brasil”, IEDI (Instituto de Estudos para o
Desenvolvimento Industrial), 2017. http://www.iedi.org.br/cartas/carta_iedi_n_797.html

31
na “2ª era da máquina”, onde seu traço principal é a fusão dessas
tecnologias e a interação entre os domínios físico, digital e biológico.

4) À época de Marx, a pesquisa tecnológica começava a ser desenvolvida


no próprio interior das grandes empresas que surgiam, e o capital
passara a assalariar cientistas e técnicos; e buscava deliberadamente as
inovações. Dessa forma, a inovação tecnológica passava a ser resultado
do planejamento e de pesquisas, e não mais produto da ação individual.
Sendo mais uma vez espetacular, Marx, na reconfiguração de seus
estudos geniais acerca da natureza do modo de produção capitalista,22
assim se pronunciou sobre a relação entre ciência, tecnologia, trabalho e
desenvolvimento das forças produtivas:
“No entanto, à medida em que a grande indústria se desenvolve, a
criação de riqueza efetiva passa a depender menos do tempo de
trabalho e do quantum de trabalho empregado que do poder dos
agentes postos em movimento durante o tempo de trabalho, poder que
– sua ‘poderosa efetividade’ -, por sua vez, não tem nenhuma relação
como o tempo de trabalho imediato que custa sua produção, mas que
depende, ao contrário, do nível geral da ciência e do progresso da
tecnologia, ou da aplicação dessa ciência à produção. (Por seu lado, o
próprio desenvolvimento dessa ciência, especialmente da ciência
natural e, com esta, todas as demais, está relacionado ao
desenvolvimento da produção material”).

*Publicado em “Marx: desbravar um mundo novo no século XXI. Artigos de


atualidade e vitalidade da teoria marxista”, São Paulo, Anita
Garibaldi/Fundação Maurício Grabois, 2018, pp. 261-274.

22
Ver: “Elementos fundamentales para la crítica de la economía política (borrador) 1857-1858, v.2”, ou
os “Grundrisse”, de K. Marx, Buenos Ayres, 1972, pp. 227-228, 3ª edição.

32
Lênin: notas teóricas sobre crítica e crise do capitalismo*

O artigo argumenta e polemiza: passados 100 anos, “O imperialismo, fase


superior do capitalismo” consagra a genialidade de Vladimir LÊNIN. Antecipa-
se ali o teórico russo em décadas à crítica da “estagnação” como modo de ser
(ontológico) da dinâmica do capitalismo monopolista (BARAN & SWEEZY,
1978). Avulta a tese de Lênin de que, “no seu conjunto, o capitalismo cresce
com uma rapidez incomparavelmente maior que antes” [1]. Crucial, tal questão
permanece no centro das indagações sobre as perspectivas do capitalismo
contemporâneo, a partir da visão marxista da finitude e superação
revolucionária dos sistemas de produção.

Evidenciamos assim que, até a evolução da grande crise capitalista global


iniciada em 2007-8, essa conclusão persiste como linha de demarcação entre o
marxismo e as fantasias do esquerdismo na economia política crítica. Ademais,
a formulação revelou-se das mais fecundas contribuições ao desenvolvimento
teórico da doutrina revolucionária do nosso tempo; e antídoto à compulsão da
“estagnação” capitalista – faça chuva ou faça sol. Pois atalha-se fato de que se
o capitalismo congenitamente estivesse fadado à marcha batida da
“estagnação” seria igualmente inexorável a sua implosão. Aliás, esse “colapso”
já deveria ter ocorrido, e sistemicamente não sobrevivido a nada menos que
duas guerras mundiais, bem como a pelo menos três grandes depressões
sistêmicas (1872-96, 1930-1933, 2007-8...).

Do ponto de vista da dinâmica do capitalismo monopolista, as consequências


práticas dessa visão escatológica têm sido nefastas à conduta política do
marxismo revolucionário. Porque negar-se a existência sistêmica do ciclo e da
crise capitalistas ou negar o dinamismo cíclico do capitalismo é, em última
instância, negar o desenvolvimento das forças produtivas. Como aprendemos,
elas podem ser travadas, ou redirecionadas a um novo poder de classes - mas
até hoje têm seguido o horizonte geral da marcha do desenvolvimento
histórico.

Por isso mesmo, se há uma notícia que agita o mundo - pelo menos desde
1848 -, essa foi “espalhada” por Karl MARX: a sociedade burguesa só será
transformada ipsis verbis através da revolução social - jamais ela cairá por
implosão. E são amplamente conhecidas suas inúmeras opiniões que
conceituam o “papel sumamente revolucionário” da burguesia no seu processo
de ascensão, recorda J. BARATA-MOURA (2003). Também nos
desenvolvimentos bem mais complexos em torno da reestruturação das bases
técnicas do capitalismo e seus processos de metamorfoses, escreveu MARX,
nos Grundrisse:

“Na medida em que, sem embargo, a grande indústria se desenvolve, a


criação real de riqueza se torna menos dependente do tempo de
trabalho e da quantidade de trabalho empregados, que do poder dos
agentes postos em movimento durante o tempo de trabalho, poder que,
por sua poderosa eficácia não guarda relação alguma com o tempo de
trabalho imediato que custa sua produção, mas depende mais do
estado geral da ciência e do progresso da tecnologia, ou da aplicação

33
desta ciência à produção. (...) O capital mesmo é a contradição em
processo”. [2]

Refúgios do marxismo vulgar

Sob outro ângulo, notemos então que militantes do marxismo vulgar utilizam de
subterfúgios ao acusar os críticos do estagnacionismo permanente de fazerem
“apologia” do capitalismo; ou mesmo desses serem adeptos do “revisionismo”.

Mas supondo que, visto por Marx, isso era da época em que ao capitalismo se
desenvolvia, não teria sido o próprio Vladimir Lênin um “apologista” do
capitalismo, por afirmar, após a Revolução Socialista na Rússia, não sem
causar espanto ainda hoje, que:

“Acontece que exatamente o alemão encarna, agora junto com um


imperialismo feroz, também os princípios da disciplina, da organização,
da colaboração harmônica com base na indústria moderna
mecanizada, do inventário e do controle mais rigoroso. É isso
exatamente que nos falta. Exatamente o que devemos aprender”. [3]

Ou seria também um apologista o teórico marxista A. GRAMSCI, onde, após


analisar ser o caso do desenvolvimento capitalista nos EUA, uma ausência do
passado feudal como a causa da não existência de “classes absolutamente
parasitárias” como as da velha Europa (embora não faltando “novos parasitas”
ligados à especulação e a Bolsa de Valores), escreve estarem os EUA
introduzindo “uma forma moderníssima de produção”. Esta seria gerada “por
um novo mecanismo de acumulação e distribuição do capital financeiro
originário imediatamente da produção industrial”. Sobre esta questão, com
justeza assegura Losurdo que, assim, Gramsci “impressiona pela capacidade,
de um lado de descrever sem indulgência a situação de um país considerado
imperialista, e, de outro, de perceber a capacidade de resistência e de futuro do
modelo norte-americano” (LOSURDO, idem, p.194). Emblematicamente, a
discussão encontra-se no capítulo denominado “Gramsci e o distanciamento da
tese da ‘putrefação’ e da ‘ruína’ do imperialismo” (idem, p. 190). Veremos essa
questão mais adiante.

Trata-se, assim, de não recusarmos a luta de ideias contra “um certo


marxismo”, fossilizado e incapaz, de apreender as duas categorias centrais da
dialética: totalidade e contradição. Claro, a crítica das concepções dogmáticas
é indispensável ao leninismo, especialmente para se contrapor às ideias
extremamente prejudiciais à formação dos jovens progressistas, militantes,
trabalhadores ou interessados no compreender as bases doutrinárias
comunistas.

E importa registrar aqui que, pouco antes de escrever sua formidável obra em
1916, sobre o capitalismo da era dos monopólios, LÊNIN (fins de 1915) se
debruçara também sobre o desenvolvimento na agricultura dos EUA. Abrindo
sua excelente pesquisa baseada nos censos agrícolas (de 1900,1910 e o
resumo de 1911) daquele país, com a seguinte “apologia” ao imperialismo
norte-americano:

34
“Estados Unidos não possuem concorrentes que os iguale, nem pela
rapidez do desenvolvimento do capitalismo no final do século XIX e
início do XX, nem pelo nível extremamente elevado já atingido por este
desenvolvimento... território sobre o qual se aplica uma técnica que
representa a última palavra da ciência... nem pela liberdade política e o
nível cultural das massas da população”. Portanto, sob vários aspectos,
este país constitui o modelo e o ideal de nossa civilização burguesa”
(LÊNIN, 1980, grifos nossos).

Lênin desenvolve o marxismo

Foi LÊNIN, em “A propósito do chamado problema dos mercados”, escrevendo


ainda aos 23 anos de idade (1893), quem enfatizou que, "a única dedução
correta que se pode extrair destas investigações de Marx [sobre a tendência do
maior crescimento do capital constante frente ao variável] é que na sociedade
capitalista a produção de meios de produção aumenta mais rapidamente que a
produção de meios de consumo”. O que é consequência direta – continua
Lênin – da “conhecidíssima tese de que a produção capitalista cria uma técnica
incomensuravelmente mais avançada que a dos tempos anteriores” (1974, p.
17).

Fixemos outro estudo, desta feita, “Observação sobre o problema da teoria dos
mercados (Por motivo da polêmica entre os senhores Tugán-Baraovski e
Bulgákov”), escrito cinco anos depois (1898). Lênin ali amplia de maneira
notável a explicação marxista sobre a tendência preponderante
de desenvolvimento no capitalismo, inclusive, uma vez possuidor de suas
forças produtivas específicas e formado seu mercado interno, podendo
“dispensar” o comércio exterior. Diz ele: “a produção capitalista, ao
desenvolver-se, cria seu próprio mercado às expensas fundamentalmente dos
meios de produção e não dos meios de consumo; que a realização da
produção em geral e da mais-valia em particular pode perfeitamente explicar-se
sem recorrer ao mercado exterior” (LÊNIN, 1974, p. 208).

Prosseguindo este estudo, examinando a fundo uma determinada passagem


onde Tugán-Baranóvski (citando Marx) afirma poder ocorrer situações em que
os produtos não encontrem mercado, apesar de ter havido uma distribuição
proporcional entre os departamentos, observa mais adiante Lênin que “Não há
nenhuma razão para ver nessas palavras uma correção à teoria da realização
exposta no Tomo II [Livro II]. Marx se limita a manifestar aqui uma contradição
do capitalismo assinalada já em outras passagens de O Capital, a saber: a
contradição entre a tendência à ampliação ilimitada da produção e necessidade
de um consumo limitado (a consequência da situação proletária das massas do
povo)” (Lênin, idem, p. 210).

Um ano após (1899), “Algo mais sobre o problema da teoria da realização”,


constitui-se numa resposta de Lênin à crítica de seu livro sobre o problema dos
mercados, pelo famoso populista russo P. B. Struve. Numa elaboração teórica
permeada por ensinamentos da dialética, segundo LÊNIN interpreta, "a teoria
da realização de Marx é uma teoria abstrata que demonstra como se realiza a
reprodução e a circulação de todo o capital social, o que deve ter como
premissa a abstração do comércio exterior ou dos mercados externos" –
“embora jamais existiu ou pôde existir uma sociedade capitalista sem comércio
35
exterior” (1974, p. 224). Sendo ao mesmo tempo uma arma contra a apologia e
a crítica pequeno-burguesa do capitalismo, a teoria da realização:

“conduz inevitavelmente ao reconhecimento do caráter historicamente


progressista do capitalismo (desenvolvimento dos meios de produção
e, por conseguinte, das forças produtivas da sociedade), mostrando,
em lugar de ocultar, a transitoriedade histórica do capitalismo” (Lênin,
idem, p. 236).

Diz Lênin, sempre coerentemente com sua formação marxiana profunda, em


passagem de “O desenvolvimento do capitalismo na Rússia” (1899), contra as
concepções dos populistas russos, que, “Ademais, não há nada mais absurdo
que das contradições do capitalismo deduzir a sua impossibilidade, seu caráter
não-progressista etc., o que implica nas celestes regiões dos devaneios
românticos refúgio contra uma realidade desagradável, porém indiscutível”
(LÊNIN, 1983, p. 26).

Leninismo e controvérsias sobre a ''teoria do colapso''

Sim, o leninismo é oposição ao catastrofismo monocórdio. Os que insistem o


fazem sobretudo por injustificada ignorância (ou má fé) sobre uma enorme
quantidade de material teórico acumulado acerca do pensamento de Lênin e da
problemática das marchas e contramarchas do capitalismo.

Não é à toa que exatamente sobre este assunto o historiador marxista E.


HOBSBAWM afirmou, sobre a grande contribuição de Lênin:

“A Era dos Impérios ou, como Lênin a chamou, o imperialismo, não foi,
evidentemente, “a etapa final” do capitalismo; mas, à época, Lênin
nunca afirmou realmente que fosse. Simplesmente a denominou, na
primeira versão de seu influente escrito, “a última etapa do capitalismo”
(2003, p. 27). Até porque – enfatiza o historiador – todas as tentativas
de isolar a explicação do imperialismo do “desenvolvimento específico
do capitalismo no fim do século XIX” não passam de “exercícios
ideológicos” (idem, p. 110). [4]

Também F. ANDREUCCI, em “A questão colonial e o imperialismo”, interpreta


ser, no livro de Lênin, a palavra-chave o adjetivo russo novejsij, que significa
“última”, no sentido de a “mais recente”: a tradução exata seria “imperialismo,
etapa mais recente do capitalismo”. Como e quando teriam se modificadas as
palavras, “não é simples” – diz Andreucci. [5]

Alternativamente, tem certa razão G. MARRAMAO quando do vasto exame do


debate marxista, dos anos 1920-30, sobre as “vicissitudes da ‘teoria do
colapso’”, destaca o erro grosseiro dos que não distinguiam e faziam
referências indevidas entre o “plano lógico” e o “plano histórico” (exposição
científica das leis tendenciais e movimento real), tanto na defesa como na
crítica da análise marxiana do capitalismo (1990, p.102). Sob outro ângulo, esta
análise do sistema capitalista

“é científica não porque reflete a história real do modo de produção,


mas porque define suas prerrogativas estruturais através do estudo das

36
formas em que se reproduz a relação contraditória fundamental” –
forças produtivas e relações de produção, passagem da reprodução
simples para a ampliada (idem, p. 109). [6]

De acordo ainda com C. NAPOLEONI, ao merecer particular atenção entre


marxistas, entre o fim do século XIX e o XX, a questão “del derrumbe del
capitalismo” tinha uma segunda posição que postulava a impossibilidade da
realização em geral, podendo adotar da premissa necessária “para a tese de
um desenlace catastrófico, pelo progressivo agravamento da crise conectada
justamente com tal dificuldade de realização” (1978, p. 40) [7]. Noutras
palavras, a superprodução na época dos monopólios. A “dificuldade de
realização” assim levaria à estagnação e ao subsequente colapso.

Esticando mais a controvérsia, em pontos específicos, podemos dizer que a


interpretação do citado pensador LOSURDO é no mínimo instigante. Para D.
Losurdo, em meio à barbárie da Primeira Guerra - quando se parecia confirmar
uma burguesia moribunda política, ideológica e culturalmente -, deve-se
compreender a configuração do imperialismo realizada por Lênin como sendo
“fase de putrefação radical e irreversível, no âmbito da qual a burguesia resulta
incapaz de desenvolvimento no plano propriamente econômico e de iniciativa
no plano, ideológico e político”. Prosseguindo, aponta Losurdo que:

“Relendo o célebre opúsculo do dirigente revolucionário sobre o tema, nos ocorre que,
enquanto continua a conservar uma clara atualidade no que diz respeito à análise e do
imperialismo como tendência das grandes potências à hegemonia, à rivalidade e ao
confronto, se apresenta totalmente obsoleto na definição do capitalismo monopolista
como simples podridão” (idem, p. 185).

Definitivamente, esta não é bem a interpretação de F. MAZZUCCHELLI. Assim,


quando Lênin qualificava o imperialismo de “capitalismo parasitário” ou em
“estado de decomposição”, isso significava que o caráter progressista deste
regime de produção “se torna problematizada com o advento do monopólio, o
que resulta da predominância da 'oligarquia financeira', do controle dos
mercados, e da possibilidade econômica de ‘conter artificialmente o progresso
técnico’”.

Em nossa opinião, com acerto, interpreta ainda Mazzucchelli: a


“decomposição” que Lênin caracteriza não significa “um juízo moral sobre a
ordem capitalista”; trata-se – citando Lênin - de relações econômicas e de
propriedades privadas constituindo “uma envoltura que não mais corresponde
ao conteúdo (social da produção) ”. O que, dessa forma, expressaria uma crise
de estrutura própria de uma etapa de transição – conclui (2004, pp. 153-154).
[8]

Por outro lado, há quem, inclusive, pense não haver, na época da “globalização
financeira”, sequer sombra de uma “crise estrutural”. Analisando os aspectos
que consideram com compondo “uma nova fase do capitalismo”
contemporâneo, os pesquisadores marxistas franceses G. DUMÉNIL e D.
LÉVY na verdade enfatizam que há mesmo “superação da crise estrutural”. O
que não quer dizer – afirmam – “que o mundo capitalista esteja em seu melhor
momento; essa é uma realidade distante” (2003, p. 40). [9]

37
Lênin, dialética e economia política

“Lênin era na prática, assim como por profissão, um revolucionário otimista. (...) Mas a
sua vasta perspectiva teórica não excluía uma luta muito mais prolongada entre
socialismo e capitalismo, envolvendo um declínio e queda do sistema capitalista que se
estenderia bastante no futuro” (MONTHLY REVIEW, Editorial, 01/2004). [10]

No epicentro da nossa discussão está o marxismo de Lênin. Com inevitáveis


apelos às citações de variadas obras clássicas, acerca da dinâmica capitalista;
e, porventura, certas analogias de seus vínculos com fenômenos econômico-
sociais à época da globalização neoliberal-financeira. Tratamos agora de
“estagnação”, “crise” e “expansão”. Preliminarmente vistos por nós desde o
marco da antinomia capitalista estrutural: ciclo e crise. “Ciclo e tendência”
(trend), aduzira em variante M. KALECKI, destacado marxista polonês.

Nesse impositivo debate, uma vista d’olhos nas oficinas de dogmatismo verifica
que concorre para os chavões escatológicos uma deliberada elegia do
desconhecimento. Propagandistas da miséria da ciência?

Concretamente: trata-se de devaneio extrair da ciência social marxiana um


capitalismo em marcha batida às catacumbas. Igualmente e como já vimos, é
unilateralidade deletéria imputar ao marxismo o anátema de uma “estagnação”
capitalista ontológica. Ora, o movimento do capital, definitivamente, é
valorização e desvalorização. O capital é o afã de valorização máxima, o que
implica em negação máxima do trabalho necessário, o que só se atinge a partir
da frenética produção, pela própria produção. Originariamente emanam
precisamente destas características particulares do capitalismo as suas crises -
e não da cabeça de voluntaristas amargurados.

Aliás, Marx é por demais enfático ao repisar nos Grundrisse que a tendência do
capital é conferir à produção um caráter científico, onde o exame mais rigoroso
do desenvolvimento do capital demonstra que, de uma parte, ele pressupõe
determinado desenvolvimento das forças produtivas - “dentre essas forças
produtivas também a ciência” -, de outra parte, força e impulsiona essas forças
produtivas. [11]

Mais ainda, Marx [12], parecendo ter perdido a paciência contra os


catastrofistas, sublinha: se existe uma sobredeterminação no modo de
produção capitalista, uma lei, esta,

“A autovalorização do capital – a criação de mais-valia – é pois objetivo determinante,


predominante e avassalador do capitalista, impulso e conteúdo absoluto de suas
ações”.

Os argumentos contra a fraseologia do oportunismo de esquerda, por exemplo,


em cujo bordão o essencial é tentar entranhar cientificidade numa “ideologia”
do colapso do capitalismo – alhures ou algures, procuram demonstrar que é
bem outra a perspectiva teórica de Marx e do leninismo sobre a destinação
histórica da sociedade burguesa moderna ou hodierna. O que nada – zero
mesmo - tem a ver com uma suposta circularidade histórica do movimento do

38
capital, um raciocínio primário. Pois é fundante e explícito o corpo (dialético) de
ideias em Marx para quem, o capital:

“Opera destrutivamente contra tudo isto [barreiras e prejuízos nacionais, divinização da


natureza, necessidades existentes e a reprodução do velho modo de vida], é
constantemente revolucionário, derruba todas as barreiras que obstaculizam o
desenvolvimento das forças produtivas, a ampliação das necessidades, a diversidade
da produção e a exploração e intercâmbio das forças naturais e espirituais”. [13]

Deformações siamesas: “subconsumismo” e “estagnacionismo”

Idêntica a trilha seguida por LÊNIN (1897), desta feita aludindo ao primeiro
aspecto dessa formulação de Marx - após poderosa interpretação em rechaço
à visão “subconsumista” com produtora das crises capitalistas, pelo
“romanticismo” econômico russo -, e pondo os pingos nos is sobre a
configuração contraditória da produção capitalista:

“Pelo contrário, se explicamos as crises pela contradição entre o caráter social da


produção e o caráter individual da apropriação, reconhecemos com isso a realidade e o
caráter progressivo do caminho capitalista (...)”. [14]

Insistindo neste ponto crucial, pensamos que a explicação de Lênin, a partir de


Marx, sobre o caráter essencialmente endógeno das crises capitalistas
originárias, sobrepassa em clareza às formulações do próprio fundador da
teoria revolucionária. Segundo ilumina o marxista russo, ao invés de crise
motivada pelo “subconsumo”:

“Esta teoria explica as crises mediante outra contradição, a saber: a contradição entre o
caráter social da produção (socializada pelo capitalismo, e o caráter privado, individual
da apropriação) ”. Isto significa dizer – afirma a seguir Lênin – que a versão
subconsumista das crises “vê a raiz do fenômeno fora da produção”; a teoria de Marx
“a vê precisamente nas condições da produção” (LÊNIN, idem, 1974, p. 98).

Todavia, como cientista revolucionário que era, Lênin dá os contornos gerais


da caracterização marxista das crises da época, ao perguntar se a nossa teoria
nega a existência de uma contradição entre a produção e o consumo. Enfático,
responde Lênin:

“Evidentemente, não. Reconhece plenamente este fato, mas assinala o lugar


subalterno que lhe corresponde, como um fato concernente a um setor da produção
capitalista” (idem, p. 99; grifo nosso).

Relacionar-se-iam, desse modo, teorias que professam crises por


“subconsumo” e a “estagnação” capitalista? Claro que sim. E não são
pequenos os prejuízos teóricos causados pelos nexos de tais teses, ontem e
hoje. Vejamos aspectos centrais da problemática e alguma correlação com o
debate sobre questões hodiernas e enquadradas no enfoque leninista.

Pioneiro na matéria, P. SWEEZY, destacado marxista norte-americano, partiu


do “subconsumismo” como razão para a crise na dinâmica capitalista, e chegou
às últimas consequências do grosseiro equívoco em sentenciar que, na medida
em que na fase do capitalismo monopolista o excedente “não pode ser

39
absorvido”, segue que “o estado normal da economia capitalista é a
estagnação” (BARAN E SWEEZY, 1978, p.113).

É que para Sweezy, desde a “Teoria do desenvolvimento capitalista” (1942),


a característica central do estágio atual da dinâmica do capitalismo é a
desproporção crescente entre a capacidade de produção e a capacidade de
consumo, jogadas no meio de outras “numerosas contradições”. Escreveu ali
Sweezy, por exemplo, que seria absurdo dizer que a causa da crise é [o
processo da] a superprodução, “pelo contrário, é evidente que ele é resultado
da crise. (...) Se pudéssemos descobrir – prossegue ele – por que A [alguém]
vendeu e deixou de comprar, teremos então a causa, pelo menos no sentido
aproximado, da crise” (SWEEZY, 1973, p. 165). [15]

Não é nada do que afirmou Sweezy - e continuam a afirmar seus discípulos. Na


medida em que é o investimento que permite a reprodução de capital e dos
lucros (KALECKI) [16], quer dizer, em máquinas, equipamentos, instalações,
ativos financeiros, etc. Que é a acumulação de capital – não o consumo – que
impulsiona o processo contínuo, “dinâmico e inexorável de geração ampliada
dos lucros”, ou seja, o processo contínuo de valorização do capital, torna-se
risível, para não dizer ridícula, qualquer versão que enxergue principalidade no
“subconsumismo” como indutor da crise capitalista.

LÊNIN, em sua obra clássica “O desenvolvimento do capitalismo na Rússia”


(1899), referindo-se a variadas passagens do texto magno de Marx, enfatiza
que:

“Nada seria mais absurdo que, partindo das passagens de O Capital, chegar à
conclusão de que Marx põe em dúvida a possibilidade de realizar a mais-valia dentro
da sociedade capitalista, de que explica as crises como consequência da falta de
consumo etc.” (apud MAZZUCCHELLI, 2004, p. 58).

Crise por “subconsumo”, interpretação aliás certeiramente criticada por


Mazzucchelli, que compreende tratar-se de crise por superacumulação de
capital, integrada em seu interior também por “excesso de capital” nos setores
que produzem bens de consumo (capitalista e popular). No entanto, a crise de
superacumulação somente assume “caráter geral” quando irrompe uma crise
de realização interna “às relações interindustriais e setoriais”. Ademais, sua
propagação se efetiva quando há sobreacumulação de capital em setores
produtores de meios de produção, nestes destinados à produção de meios de
produção e naqueles voltados à produção de meios de produção de bens de
consumo (idem, p. 60).

Afirmamos aqui: em direção oposta ao discurso linear da “tendência à


estagnação”, na vigência do capitalismo monopolizado, isto é, na fase
imperialista do capitalismo, o que se apresenta é a exacerbação das suas
tendências imanentes. Onde não só o desenvolvimento das forças produtivas –
“progressos da era capitalista” -, apontado inúmeras vezes por Marx (e Lênin),
se amplifica, como igualmente exacerbam-se suas contradições e
antagonismos. Isto mais que sugere ser esta a interpretação que se deve
depreender do pensamento clássico do marxismo e dos desenvolvimentos da
economia política crítica. Ou seja,

40
1) no monopólio, o que se reafirma é a tendência à superacumulação,
bem como surgem novas determinações que “terminam por agravar a
instabilidade própria da economia capitalista” (MAZZUCCHELLI, 2004, p.
99); nesse capitalismo há “instabilidades permanentes” (BRAGA, 1983,
p. 37) [17].

2) O capitalismo monopolista caracteriza-se, dominantemente, como


uma economia financeiro-monetária, que dizer, é esta a razão estrutural
de sua dinâmica de valorização do capital (Braga, idem, p. 36).

3) Da concentração do grande poder do monopólio em determinado


setor poderia ocorrer o “represamento” de excedentes de capitais,
levando a uma queda da rentabilidade, depressão e até a uma crise
disruptiva; todavia isso não ocorre: tais obstáculos são superados “por
uma nova forma de imobilização que se consubstancia no surgimento de
uma nova órbita: a financeira. É necessário, portanto, que o capital
assuma de novo sua forma mais abstrata e portanto mais desenvolvida
para que a acumulação possa de novo fluir livremente” (CARDOSO DE
MELLO, 1977).

Crescimento-crise. Mutações do capital monopolista financeiro

“A oligarquia financeira, que tece uma densa rede de relações de dependência entre
todas as instituições econômicas e políticas da sociedade burguesa contemporânea
sem exceção: tal é a manifestação mais evidente deste monopólio” (LÊNIN, 1981, p.
667; itálico nosso).

Hodiernamente, se cotejadas com as referidas formulações teóricas de


extraordinário alcance, de Lênin, o exame de novos fenômenos do capitalismo
contemporâneo talvez seja suficiente para indagarmos se seus estudos
clássicos sobre o imperialismo permaneceriam atuais. Tais fenômenos
convergem para o significado da gigantesca “financeirização” da riqueza
capitalista, num quadro geral de desequilíbrios econômicos estruturais,
reiterada instabilidade financeira sistêmica global e crises menos espaçadas e
prolongadas.

Consideramos, no entanto, que os desdobramentos do desenvolvimento da


fase imperialista numa era de absolutismo do capital financeiro autorizam a
essência do pensamento de Lênin - sabidamente datado, mas notavelmente
prospectivo. Prospectivo em que sentido?

Na catástrofe do pós 1ª Guerra Mundial, segundo estudo de MAZZUCCHELLI,


a economia dos EUA ingressou em um “ciclo de crescimento virtuoso”: entre
1921 e 1929, o PIB (Produto Interno Bruto) cresceu 45% e a produção
industrial, 88% (idem, 2009). Analisando as determinações deste ciclo – diz
Mazzucchelli -, ele se sustentou em dois pilares fundamentais: a expansão do
crédito; e na articulação efetiva de uma rede de investimentos interindustriais:
automobilística, malha rodoviária, petróleo, construção residencial e comercial,
bens duráveis domésticos, geração e distribuição de energia elétrica e demais
setores associados a estes. [18]

41
Olhando então os anos do início deste novo século, desde o desborde da
carnificina e trágica destruição da 2ª Guerra Mundial, não havia ocorrido no
capitalismo global, em termos de crescimento econômico médio da economia
mundial, taxas tão elevadas. São hoje conhecidas as razões do crescimento da
economia mundial, em particular a do capitalismo central, a partir dos acordos
de Bretton Woods (1944) - e seus denominados “compromissos keynesianos”.
Um novo ciclo de desenvolvimento que vai até 1973, aproximadamente, ficou
conhecido como a chamada “era de ouro”, ou os “trinta gloriosos” da história do
capitalismo moderno. Nesse longo e “atípico” período, as taxas médias de
crescimento da economia mundial alcançaram 4,9% a.a.

Relevantíssimo aqui destacar que, em seu consagrado estudo “A era dos


extremos” (1995), o marxista Hobsbawm chama a atenção que a história da
economia mundial, a partir da 1ª Revolução Industrial, vem sendo de acelerado
progresso técnico, e contínuo, mas irregular crescimento econômico. Além de
“crescente globalização” (divisão mundial do trabalho cada vez mais elaborada
e complexa), assevera que mesmo na Era da catástrofe, iniciada com a Grande
Depressão de 1929-1933, “o crescimento econômico não cessou nessas
décadas” (HOBSBAWM, 1995, p. 92; itálico nosso).

Mais adiante, mesmo após a grande crise 1981-3, também iniciada com forte
recessão nos EUA, mas irradiada pelo impacto da abrupta subida da taxa
básica de juros em 1979, a economia dos países centrais voltou a crescer,
como mostra o quadro abaixo com a variação real do PNB/PIB.

1984 1985 198 1987 1988 1989


EUA 6,8 3,4 2,8 3,4 3,9 3,0
Japão 5,1 4,9 2,5 4,5 5,7 4,9
RFA 3,3 1,8 2,3 1,8 3,4 2,7
ReinoUnido 2,2 3,5 3,2 4,6 3,7 2,3
França 1,3 1,9 2,3 1,9 3,4 2,7
Itália 3,0 2,6 2,3 3,0 3,9 3,3
Fonte: OCDE/NEIT-Unicamp 1981,1984,1986 e 1989; dados selecionados. [19]

Com efeito, na fase precedente de consolidação da hegemonia neoliberal - que


registra exatamente a partir de 1987 e na década de 1990 a antinomia
estrutural da dinâmica capitalista expansão-crise -, entre 2002-2006 se
registrou: a) um crescimento econômico médio global de 4,7% do PIB; b) um
crescimento médio do comércio internacional de 7%; c) um expressivo
aumento dos fluxos de IED (Investimento Estrangeiro Direto) da ordem de 28%;
d) uma alta na valorização de commodities de 60% (Banco de Compensações
Internacionais – BIS, 2007). Impressiona igualmente que países do leste
europeu tenham obtido crescimento excepcional (2006), entre eles: Letônia
(11,6%), Bulgária (6,0%), Estônia (11,5%), Lituânia (7,4%), Romênia (7,8%),
Eslováquia (7,0%) (“Leste europeu cresce, mas sob muitas incertezas”, Valor
Econômico, 13/3/2007).

42
Dessa maneira, a análise mais profunda das transformações operadas na
economia mundial desde a assunção da chamada “globalização financeira”,
tornou-se problema fundamental notadamente porque, qual fantasma, porta-
vozes do marxismo vulgar ressuscitam de escuridão teórica. Costumeiramente
negam sem desfaçatez os fatos, as conexões concretas emanadas pelo real;
ou eludem facciosamente ensinamentos e formulações cruciais da teoria
revolucionária. Um exemplo em matéria de economia política marxista e
leninista: no movimento marxista não faltaram os discursos radicalizados sobre
o “colapso iminente do padrão dólar” a percorrer toda a década de 1990 e
2000. Fenômeno esse jamais ocorrido.

Relativamente aos novos fenômenos na esfera da alta finança, opinamos que,


resguardado o excepcional alcance fundacional e prospectivo de “O
imperialismo, fase superior do capitalismo” (1916), seria, todavia, reducionismo
teórico querer enquadrar a categoria “financeirização” da riqueza
contemporânea, contida em formulações teóricas de Lênin. Dito de outro modo,
é uma categoria lógico-histórica concreta; integra a evolução de determinada
fase do imperialismo – a contemporânea – e nomeadamente de seu programa
de economia política neoclássica, o neoliberalismo. Configura um padrão de
acumulação em uma nova fase da etapa imperialista. [20]

Mas é claríssimo o conceito teórico de LÊNIN da nova situação criada com a já


avassaladora hegemonia financeira na época dos monopólios.
Compreendendo o capital financeiro e a formação da “oligarquia financeira”,
revejamos de modo completo a interpretação essencial do marxista russo:

“O imperialismo, ou domínio do capital financeiro, é o capitalismo no seu grau superior,


em que essa separação [do capital aplicado à produção e o capital-dinheiro do rentista]
adquire proporções imensas. O predomínio do capital financeiro sobre todas as demais
formas implica o predomínio do rentier e da oligarquia financeira, a situação destacada
de uns Estados de ‘poder’ financeiro em relação a todos os restantes” (1981, p. 619).

Enfim, para Lênin, o capitalismo monopolista (surgido “dos bancos”, que de


modestas empresas “intermediárias se transformaram em monopolistas do
capital financeiro”, ibidem, ibidem) leva à agudização de “todas as
contradições” ou “a força motriz mais poderosa do período histórico de
transição iniciado com a vitória definitiva do capital financeiro mundial” (idem, p.
668). Explicita-se assim o caráter instável do capitalismo conduzido pelas
finanças.

Para BRAGA, tal instabilidade, “perversa” e contemporaneamente existente


pelo menos desde o fim da conversibilidade do dólar (1971), combina alta
especulação financeira com crescimento “capaz de evitar colapso, garantir todo
o tipo de lucros”. A financeirização, argumenta Braga (1997), na atualidade é
modo de ser sistêmico do capitalismo contemporâneo – “nem colapso, nem
desenvolvimento” -, por conseguinte “padrão de riqueza econômica, social e
historicamente limitado”.

Assim, insuflando crises, há hoje um padrão determinado de gestão


institucional da riqueza “financeirizada”, evidente e quantitativamente distinto
daquele operado na dinâmica do imperialismo das primeiras décadas do século

43
XX. Agora, a canalização do enorme paroxismo do capital financeiro forja,
reproduz e amplifica ficticiamente e de maneira constante novos circuitos da
valorização do valor, capital originariamente produzido no “chão da fábrica”.

O que significa dizer, além, que os processos reais de estagnação que


acompanham certas grandes crises sistêmicas do capitalismo são imersas nas
circunstâncias históricas distintas e nas próprias características evolutivas
desse capitalismo. Desse modo, aspectos atuais das ideias de Lênin acerca do
predomínio (e transformações) do capital financeiro situam-se nesse universo
da referida “financeirização” da riqueza.

“Estagnação” de inspiração neoclássica x leninismo

Nesse propósito, são iníquas as manobras argumentativas de vários discípulos


“estagnacionistas” radicais da escola sweezyana. Por exemplo, F. MAGDOFF,
em “A explosão da dívida e a especulação” (Monthly Review, 11/2006), não se
inibe em afirmar que, “A estagnação, naturalmente, não significa que não haja
crescimento de todo. Significa que a economia funciona abaixo de seu
potencial – com apreciável capacidade produtiva não realizada e desemprego
significativo e subemprego”.

Sofisticador do assunto, o professor J. B. FOSTER (“The financialization of


capitalism”), um dos editores da citada tradicional revista marxista, remenda
bijuterias na tentativa de “atualizar” o estagnacionismo. Diz ele, tentando
resumir a coisa que, “Em vez de avançar em uma direção fundamental, o
capital está preso na armadilha de um aparentemente interminável ciclo de
estagnação e explosão financeira” [21].

Ora, tal “armadilha” é outra invenção dos “estagnacionistas”. Como já se viu, o


movimento estrutural do capitalismo monopolista contemporâneo é
instabilidade-crise-expansão-instabilidade; ou se se quiser, assincronia global
entre crescimento e estagnação. E enquanto este capitalismo assim for, não
vai avançar em “outra direção”, até porque não existe “armadilha” nenhuma.
Qual direção deveria ser? A de um crescimento saudável, duradouro, que leve
seu dinamismo “potencial” ao limite, como (sugerindo) inventou Magdoff?
Alternativamente, a marcha batida da “estagnação” leva o capitalismo à rota
dos funerais, é óbvio. Ah, então não se trata de “armadilha”: é beco sem saída
por consequência de ficção teórica? Sim.

Pior ainda: há burla intelectual da parte de Foster. Quem, no mesmo texto


(p.2), imputa às teses estagnacionistas de SWEEZY E BARAN – desde o
“Capitalismo monopolista”, dizem estes -, a influência do “arcabouço (ou
arquitetura) teórico” (“theoretical framework”) do polonês KALECKI, e do
respeitado economista austríaco Josef STEINDL – que seriam seus
inspiradores da tese da “estagnação” capitalista. Aqui é simplesmente o que se
chama de duas mentiras cabeludas, na medida em que omitem e distorcem
deliberadamente a evolução do pensamento desses autores. Vejamos isto
agora.

44
1) Analisando um conjunto de estudos seus desenvolvidos, Kalecki (1968),
debate a questão central de que o ciclo econômico não poderia ser separado
da tendência (trend), apresentando a seguinte compreensão:

“Eu mesmo abordei esse problema em minha ‘Teoria do Desenvolvimento Econômico’


[1952] e minhas ‘Observações sobre a Teoria do Crescimento’ [1962] de um modo que
agora não considero inteiramente satisfatório: comecei desenvolvendo uma ‘teoria do
ciclo econômico puro’ numa economia estacionária e modifiquei as respectivas
equações para introduzir a tendência. Com essa separação das influências de curto e
longo prazo, deixei de levar em conta certas repercussões do progresso técnico que
afetam o processo dinâmico como um todo” (KALECKI, 1977, pp. 105-106).

E ainda, explicitando sua visão de que a ‘tendência’ tanto pode ser para o ciclo
quanto para a flutuação, diz KALECKI noutro estudo:

“De fato, a tendência de longo prazo nada mais é do que um componente


vagarosamente mutável de uma cadeia de situações de curto prazo; ela não tem uma
existência independente e as duas relações básicas... devem ser formuladas de modo
a dar como resultado o fenômeno da tendência junta com o ciclo econômico”
(KALECKI, Apud Braga, 1983, p. 25). [22]

2) Sobre a principal obra de STEINDL - a propósito da acusação leviana feita


por Foster -, Luciano Coutinho, no minucioso estudo que fez de “Maturidade e
estagnação no capitalismo americano” (1952), destaca a “autocrítica” radical e
pública do autor pelo dito “estagnacionismo”. Na nova Introdução de Steindl à
sua obra (1976) - portanto havia muito conhecida – sintetiza Coutinho que se
encontra no texto, dito pelo austríaco:

a) o papel do progresso técnico como criador de novas fronteiras de


investimento; b) que sua hipótese de existência de obstáculos à
intermediação financeira é descabida e desnecessária; c) o necessário
relevo à internacionalização do oligopólio como fator de expansão; d) a
importância da forte expansão do gato público agregado para a
sustentação do crescimento nas economias capitalistas (COUTINHO,
1986, p. XVI). [23]

Ou seja, as teorizações do marxista Foster são baseadas em pressupostos


falsos, na preguiça intelectual que omite deliberadamente teorizações datadas
ainda dos anos 50 e 60, ou de quem olha categorias e formulações de um
autor da importância de Kalecki de maneira facciosa, forçando a mão para ali
encontrar uma pretensa “estagnação” do capitalismo enquanto “estado normal”
da estrutura monopolista - isto sim, vulgata do marxismo inventada
especialmente por Sweezy e seus discípulos; alhures e aqui. Em 2007, nada
justificaria essa ignorância teórica e persistência no erro.

Insistamos. Tal visão da dinâmica capitalista é errática, falsa. O capitalismo, em


seu móvel de acumular por acumular, jamais se interessará pelas
“necessidades sociais” das massas trabalhadoras. Por isso que desemprego e
subemprego lhe é sempre condição de funcionalidade, coisa “natural”. Sua
missão é, segundo Marx, produzir em larguíssima escala até superproduzir
capital, em excesso e em todas as suas formas, a “uma dada taxa de lucro”.

45
Dito de modo mais sistemático: do ponto de vista do marxismo, sobre a base
da superprodução ou superacumulação de capitais (máquinas, equipamentos,
instalações, matérias-primas, ativos financeiros), a crise se instala quando da
parada súbita que interrompe o ciclo da realização capitalista, quer dizer, a
dinâmica cíclica do investimento. Noutras palavras, as crises no capitalismo
não podem ser separadas da regularidade de sua dinâmica expansiva. O
capitalismo, segundo Marx, objetiva produzir em larguíssima escala, até
superproduzir capital. Quer dizer, sobreinvestir para fazer crescer a
produtividade social do trabalho e suplantar a concorrência; superproduzir para
superlucrar, superacumulando capital em excesso e em todas as suas formas,
referenciando-se numa dada taxa média de lucro.

Algumas conclusões

1. Os gráficos atualizados acima - demonstração empírica e projeções da


economia global - revelam a franca evolução do crescimento do
PIB/PPC, notadamente da China frente ao mundo. E aponta estagnação
continuada nos países da zona do euro e Japão, assim como baixo
crescimento nos EUA e Reino Unido.
2. Ideólogos do pensamento econômico do mainstream alardeiam, como
Mohamed El-Erian (2011), para quem o crescimento econômico mundial
passa a viver “um novo normal”; como por Larry Summers, ex-secretário
do Tesouro dos EUA, onde, a partir do fracasso da economia americana
alcunhou de “estagnação secular” o atual estágio do afundamento da
economia global (2013); e, no final de 2014, Cristine Lagarde, diretora-
gerente do FMI dissertou estarmos vivenciando “uma nova mediocridade”.
Essa nova onda de aparente “catastrofismo”, advinda desses
credenciados porta-vozes dos paradigmas neoliberais somente aparece
após a devastação resultante da grande crise – uma depressão - iniciada
em 2007-8. Trata-se do consentimento cínico do fracasso neoliberal, nada
mais.

46
3. A persistência do processo de financeirização capitalista global, da
desigualdade social galopante e agravamento do desemprego estrutural
entrecruzam-se com a passagem a uma nova revolução industrial.
Alterações estruturais na dinâmica da acumulação do capitalismo
neoliberal sugerem a reconfiguração de uma nova fase da etapa
imperialista.
4. Dos últimos estudos de E. Hobsbawm devemos extrair a seguinte lição:
“Mas duas coisas, com certeza, nunca perderam a relevância para os
nossos dias: a visão que Marx tinha do capitalismo como sistema
historicamente temporário e a análise que fez de seu modus operandi –
continuamente expansionista e concentrador, gerador de crises e
autotransformador” (Hobsbawm, 2011, p. 20).
Sim, essencialmente esta era a visão de Lênin.
*Publicado em “Lênin: presença da revolução”, BARROSO, A. Sérgio (org.),São
Paulo, Anita Garibaldi\Fundação Mauricio Grabois, Sociedade do amigos de
Lênin, 2017, pp. 51-78.
NOTAS

[1] Lênin refere-se concretamente ao crescimento de certos ramos industriais,


certos setores da burguesia, certos países, a) nos Estados rentistas
espoliadores via exportação de capitais e o colonialismo; b) ao caráter
parasitário e desigual desse crescimento que alcança os países centrais, e os
periféricos (“O imperialismo, fase superior do capitalismo”, capítulo X, “O Lugar
do imperialismo na história”, p. 668, Lisboa, Edições Avante! 1981; os negritos
são nossos). Evidente que se só houvesse estagnação, jamais haveria
crescimento. Simultaneamente, no capítulo VIII, “O parasitismo e a
decomposição do capitalismo”, afirmara Lênin: “Mas não obstante, como todo
monopólio, o monopólio capitalista gera inevitavelmente uma tendência para a
estagnação e para a decomposição” (idem, p.649). Afirmam Baran e Sweezy:
“Como o excedente que não pode ser absorvido não será produzido, segue-se
que o estado normal da economia capitalista é a estagnação” (p.113)

[2] Ver: ''Elementos fundamentales para la crítica de la economía política


(borrador) 1857-1858'', vol. 2, p. 227-229, Buenos Aires, Siglo Veinteuno
editores, 1972.

[3] Apud: D. Losurdo, idem, p. 188, capítulo ''Decadência ideológica da


burguesia e putrefação do imperialismo em Lênin''. Um “paradoxo”, afirma o
pensador marxista italiano, diante da firme disposição de Lênin em enfrentar as
vicissitudes do desenvolvimento econômico na Rússia revolucionária.

[4] Ver: “A Era dos Impérios (1875-1914)”, de E. Hobsbawm, Rio de Janeiro,


Paz e Terra, 2003, 8ª edição.

47
[5] In: “História do Marxismo IV. O marxismo da época da II Internacional
(Terceira parte)”, Hobsbawm, E. (org.), p. 274, Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1984, 2ª edição.

[6] Ver: “O político e as transformações. Crítica do capitalismo e ideologias da


crise entre os anos vinte e trinta”, de G. Marramao, Belo Horizonte, Oficina de
livros, 1990.

[7] Ver: “El futuro del capitalismo”, de C. Napoleoni, México, Siglo Veintiuno
Editores, 1978.

[8] Ver: “A contradição em processo. O capitalismo e suas crises”, de F.


Mazzuchelli, Campinas, Instituto de Economia/Unicamp, 2004, 2ª edição.

[9] Ver: “Superação da crise, ameaças de crises e novo capitalismo” de G.


Duménil e D. Lévy, in: “Uma nova fase do capitalismo”, de François Chesnais,
G. Duménil, D. Lévy e Immanuel Wallerstein, São Paulo, Xamã, 2003.

[10] Então subscrito pelos dois marxistas norte-americanos e editorialistas Paul


Sweezy e Harry Magdoff (“estagnacionistas” e “subconsumistas”), o instrutivo e
recente texto prossegue: “Lênin não previu uma sequência histórica definida de
eventos conduzindo à rápida e inevitável morte do capitalismo em todas as
suas formas. Não havia nenhum determinismo absoluto no seu pensamento”. E
mais à frente, convincentemente: “Não pode haver maior distorção do
materialismo histórico do que concebê-lo como conduzindo a um estrito
determinismo que, então, torna-se uma base pseudocientífica para profetizar
desenvolvimentos históricos antes de eles acontecerem” (ver: “Da má tradução
à má interpretação”). Em: http://www.monthlyreview.org/nfte0104.htm

[11] Ver: “Grundisse. Manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboço da crítica


da economia política”, São Paulo, Boitempo, 2013, p. 583.

[12] Ver: “Capítulo inédito D’O Capital - resultados do processo de produção


imediato”, de K. Marx, Porto, Publicações Escorpião, dezembro de 1975, p. 45.

[13] Ver: “Elementos fundamentales para la crítica de la economía política


(borrador) 1857-1858”, vol. 1, México, Siglo Veinteuno editores s.a., 1971, p.
362.

[14] Complementa o pensamento Lênin, a respeito de como se move o


capitalismo diante das crises: “Com isso, reconhecemos que quanto mais se
desenvolve esta contradição, mais fácil [lhe] é encontrar uma saída, e que esta
saída está contida precisamente no desenvolvimento do regime estabelecido”
(ver: “Para una caraterización del romanticismo econômico. (Sismondi y
nuestros sismondistas nacionales”), de V. I. Lênin, p. 104, in: “Sobre el
problema de los mercados”, Escritos económicos, vol 3, Madrid, Siglo
Veinteuno editores s.a., 1974).

[15] Ver a relação feita por Sweezy entre a desproporção geral


produção/consumo; a afirmação sobre a inexistência de uma teoria explícita

48
sobre as crises capitalistas, em Marx; e sua interpretação sobre a irrelevância
de Lei da Tendência de queda da taxa de lucro, de Marx, em L. G. Belluzzo, no
estudo “Valor e capitalismo: um ensaio de economia política”, p.p.122-129
(Campinas, IE/Unicamp, 1998, 3ª edição).

[16] No estudo importante de Jorge MIGLIOLI, “Acumulação de capital e


demanda efetiva”, encontra-se que esta concepção de Kalecki sobre a
determinação dos lucros já havia sido “sugerida por Marx” (São Paulo, Hucitec,
p. 126, 2ª edição). A propósito, interessa observar que Miglioli também
considera que “Marx não apenas levantava o problema da realização (ou
demanda efetiva) no processo de reprodução como também lhe atribuía grande
importância” (idem, p. 31).

[17] Nas palavras de J.C.S. BRAGA (1983, p. 37-38), “um desenvolvimento


econômico vigoroso, e por isso marcado de instabilidades estruturais, no curso
das quais emerge uma crise que resulta numa trajetória estagnacionista, cuja
reversão não é automaticamente determinada pelo mercado (...), redunda em
mutações estruturais (...), em ‘revoluções tecnológicas’”, aonde vão se
alterando as propriedades fundamentais desse modo de produção. Também A.
C. Macedo e Silva, em exaustivo trabalho sobre as tendências da economia
mundial afirma: “Uma das poucas regras gerais que se aplicam à economia
global é esta: a economia global se expande; mais bens, mais serviços, mais
trabalho. (...). De lá [Grande Depressão de 1929-33] para cá, o mundo tem
crescido, ano após ano. O ritmo do crescimento, no entanto, varia de forma
importante. Além disso, nem sempre o que vale para o todo vale para suas
partes: economias nacionais estão sujeitas a períodos, às vezes prolongados,
de contração ou estagnação em termos de produto e emprego” (ver: “A
montanha em movimento: uma notícia sobre as transformações recentes da
economia global”, p. 42, in: Política Econômica em Foco - Boletim nº 07,
Campinas, CECON/Unicamp, nov.2005/abr.2006).

[18] Ver: “Os anos de chumbo. Economia e política internacional no


entreguerras”, F. Mazzucchelli, Campinas, 2009, pp. 190-192.

[19] Em “Desajuste global e modernização conservadora”, M.C. TAVARES e


J.L.FIORi,

[20] A definição atualizada do conceito encontra-se em “Qual conceito de


financeirização compreende o capitalismo contemporâneo? ”, J.C. Braga, em:
“A grande crise capitalista contemporânea: gênese, conexões e tendências”,
Barroso, A.S., Souza, R., São Paulo, Anita Garibaldi/Fundação Maurício
Grabois, 2013. François Chesnais apresenta um debate extenso dobre o que
chama de “A teoria do regime de acumulação financeirizado”, Revista
Economia e Sociedade, Campinas Unicamp/IE, janeiro/junho 2002.

[21] Em: Monthly Review, march 2007, p. 1, edição eletrônica. Sobre erros
crassos semelhantes, ver também “O capital monopolista-financeiro”, de J. B.
Foster (Monthly Review, 12/2006, pp. 1, 3, 5 e 10; numeração da tradução
Monthly Review, march 2007, p. 1, ed. eletrônica); em: www.resistir.info).

49
[22] E prosseguindo a explicar à questão anterior: “No argumento em que as
teorias do ciclo se baseavam certas grandezas eram tomadas como constantes
(isto estava parcialmente ligado com a inadequada consideração pelo
progresso técnico) mas que, numa economia em expansão, certamente devem
crescer. Assim – conclui a formulação Kalecki – é necessário tratar dessa
limitação – que amarra a teoria do ciclo a uma economia estacionária – e
chegara a um movimento que compreenda tanto a tendência como as
flutuações cíclicas” (Kalecki, Apud Braga, 1983, idem; grifos nossos).

[23] ]Em: “Apresentação à Maturidade e estagnação no capitalismo americano”,


de L. Coutinho, São Paulo, Nova Cultural, 1986. Ver também a carta de John
Maynard Keynes a John Hobson, dissertando seu princípio da “demanda
efetiva” (realização capitalista), como sendo independente, em qualquer
sentido, de uma suposta insuficiência de consumo, ou, ao revés, de um
hipotético “excesso” de poupança. (in: L. Belluzzo e M. C. Tavares, 1981, p.
110).

[6] Apud: Domenico Losurdo, ''Antonio Gramsci, do liberalismo ao


“comunismo”, p. 181, Rio de Janeiro, Revan, 2006. Losurdo se refere, no
elucidativo capítulo intitulado “Decadência ideológica, mecanicismo e
impaciência revolucionária”, às observações de Marx sobre a situação criada
no pós-revolução de 1848, na Europa.

Referências Bibliográficas

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Karl Marx. Separata da Sociedade Civil – Entre miragem e oportunidade”,
Lisboa, abril de 2003.

BRAGA, J.C.S. “Instabilidade capitalista e demanda efetiva (a razão de


Kalecki)”, Revista de Economia Política, Vol. 3, nº3, julho/setembro/1983.

BARAN, P., e SWEEZY, P. “Capitalismo monopolista. Ensaio sobre a ordem


econômica e social americana”. Rio de Janeiro, Zahar, 1978, 3ª edição, p

CARDOSO de MELLO, João. M. “O Estado brasileiro e os limites da


estatização”, Cadernos de Opinião, São Paulo, 1977.

HOBSBAWM, Eric. “A era dos extremos - O breve século XX: 1914-1991”. São
Paulo, Companhia das Letras, 1995.

KALECKI, Michal. “Crescimento e ciclo das economias capitalistas”, M. Kalecki

_______________. “Como mudar o mundo. Marx e o marxismo 1840-2011”.


São Paulo, Companhia das Letras, 2011.

LÊNIN, Vladimir. “Sobre el problema de los mercados”, Escritos económicos,


vol 3, Madrid, Siglo Veinteuno editores s.a., 1974).

50
_____________. “Capitalismo e agricultura nos Estados Unidos da América.
Novos dados sobre as leis de desenvolvimento do capitalismo na agricultura”.
São Paulo, Brasil Debates, 1980, p.1

____________. “O desenvolvimento do capitalismo na Rússia. O processo de


formação do mercado para a grande indústria”. O Economistas, São Paulo,
Nova Cultural, 1985.

____________. “O imperialismo, fase superior do capitalismo”, Lisboa, Edições


Avante! Tomo 1,1981, pp. 575-6

51
Três palavras sobre Lênin*
O grande amigo de Vladimir Ilitch Lênin, escritor Máximo Gorki, escreveu em
sua pequena biografia de Lênin:
Recordo-me de ter estado em casa dele com três membros da Academia de
Ciências... Quando se despediu deles, Lênin disse com satisfação: “Isto,
compreendo. São homens inteligentes. Neles, tudo é simples, formulado
rigorosamente. Vê-se imediatamente que esses homens sabem o que querem.
Trabalhar com pessoas assim é um prazer. Gostei sobretudo...[citou um dos
maiores nomes da ciência Russa e, dois dias depois, disse-me pelo telefone:]
“Pergunte a S. se ele está disposto a trabalhar conosco. E quando S. aceitou a
proposta, Lênin regozijou-se sinceramente; gracejava, esfregando as mãos:
“Deste modo levaremos pouco a pouco todos os Arquimedes russos e
europeus a estarem ao nosso lado; então o mundo voltar-se-á quer queira ou
não!”
Em: “Lénine. A arte e a revolução – ensaio sobre a estética marxista”, Jean
Michel Palmier situa o painel de fundo da grande literatura progressista da
Rússia (entre muitos outros, Gogol, Nekrassov, Turgueneiev, Chetchedrine,
Herzen, Tostoi, Gleb Uspenski - este o maior dos escritores populistas)
desenhava-se pela relação: aldeia russa e um mundo estreito, fechado, de vida
patriarcal, com divisão polar do campesinato, versus a devastação e a miséria
provocada pelo surgimento do capitalismo. Lênin passou a conhecer essas
obras –diz - “perfeitamente”; citava-as em seus trabalhos teóricos “para dar
vida a todas as estatísticas”; acrescentando que “o que ele diz da literatura só
pode ser compreendido a partir de uma práxis política”.
Nadeja Krupskaia, revolucionária e companheira do eminente líder russo até a
sua morte, chamava à atenção em seu livro “Lênin sua vida e sua doutrina”, de
comentários que ele fizera, em dezembro de 1916, numa conferência para
jovens operários, em Zurique, na Suíça. Lá para as tantas afirmara Lênin:
“Quem sabe nós, os da velha geração, não vivamos para ver estas batalhas
decisivas da próxima revolução” – manifestando tristeza ao concluir sua
dissertação, descreve ela. “E não obstante, Ilitch só pensava e trabalhava para
esta revolução”, arremata Krupskaya.
Lênin, um entusiasmado homem de ciência. Lênin, estudiosíssimo, um
profundo conhecedor das entranhas de seu país. Lênin, um destemido e
revolucionário apaixonado pela grande causa da Revolução Socialista.
Amigas, amigos, queridos camaradas, estimados convidados, é com esse
espírito que, convictamente, celebramos o Seminário Lênin. Para não esquecê-
lo jamais!
Muito obrigado.
*Apresentação de Abertura do Seminário “Pensar Lênin”, Fundação Mauricio
Grabois, São Paulo, maio de 2010.

52
Conhecimento e renovação da cultura marxista*

Dois instigantes fatos jogaram luzes de intenso brilho à cultura marxista no


Brasil, no último março.
Esteve conosco o pesquisador alemão Rolf Hecker [1], há 30 anos estudioso
da MEGA (Marx-Engels-Gesamtausgabe), um gigantesco compêndio de todos
os escritos até agora encontrados de Marx e Engels. Novos nexos da teoria
revolucionária, aprofundamentos e traduções revisadas certamente tornarão
mais vasta a fortuna editorial da ciência social mais avançada do nosso tempo.
Bem à ribalta, exibiu-se no Rio e em São Paulo a “Ópera dos vivos”, espetáculo
teatral escrito e dirigido por Sérgio de Carvalho. Trata-se duma estética das
forças e fraquezas humanas circundantes ao golpe de 1964, de franca
inspiração brechtiana [2]: se expulsa a ponta-pés a obesa alienação artística
contemporânea fabricada pelos “mercados”.
Pois bem, mais uma grata surpresa: esses dois “movimentos” aparecem
perfeitamente integrados em “Cultura, Arte e literatura. Textos escolhidos – Karl
Marx e Friedrich Engels”, coletânea organizada e traduzida com esmero pelos
pesquisadores José Paulo Netto e Miguel Yoshida. Porque, além das
maravilhosas passagens – inúmeras inéditas a leitores brasileiros – de dois
gigantes do pensamento revolucionário, a compilação traz, a meu juízo, um
enfoque introdutório de particular significado.
Notadamente no “Prólogo” do raramente conhecido marxista russo Mikhail
Lifschitz assoma uma desveladora interpretação das concepções teórico-
metodológicas de Marx e Engels cotejadas com o vagalhão das confluências
culturais [3].
Assinalando que aqueles dois não ignoravam ser as “tendências dogmáticas”
no movimento operário uma consequência da “invasão de literatos e
professores” que então surfavam no crescimento dos partidos revolucionários
de massas, Lifschitz identifica que a “concepção vulgar da teoria
revolucionária” termina por reduzi-la a um “somatório de conclusões abstratas”
(p.40). Bem como registra numa correspondência de Engels a Lafargue a
incômoda presença dum “motim de literatos” esquerdistas encharcados de
idéias revisionistas, depois reconhecidas pelos ditos como ideias “que oprimem
a individualidade criadora”, escreve Lifschitz (ibidem).
Curioso perceber a atualidade da angular em que o marxista russo buscava
captar o futuro do desenvolvimento da teoria: Marx e Engels “eram
implacáveis”, inclusive com companheiros de luta (como W. Liebknecht)
quando neles identificavam “a menor tendência a abordar dogmaticamente os
fenômenos da realidade” - enfatiza (p. 41).
Para Lifschitz, apesar da estatura de um Lafargue, F. Mehring ou G.
Plekhanov, o desaparecimento dos fundadores do socialismo científico coincide
o declínio do marxismo da época da II Internacional. Não à toa procederam-se

53
os “ataques dos revisionistas contra o método dialético, contra a teoria da
revolução social e outros pontos importantes da obra de Marx e Engels”
(ibidem); a problemática sofreu decidido enfrentamento por Lênin, afirma.
Ademais, nesta densa e inusual aproximação ensaística à estética marxista,
Mikhail Lifschitz deixa claro a visão histórica de Marx e Engels, avessa à
exploração do lamento sentimental “diante da decadência dos direitos
patriarcais e da poesia do passado”. Ao contrário, neles há uma nova estética
assentada nos impulsos das transformações econômicas revolucionárias da
sociedade mercantil capitalista, onde, numa perspectiva histórica abrangente,
”estes progressos são úteis também para o progresso artístico da humanidade”
(p.59). Assim, o tema nuclear de que o fim da propriedade privada traria o
desaparecimento do “maior obstáculo para o florescimento da criação artística”
constituiria "a ideia principal da estética histórica de Marx e Engels”, conclui
Lifschitz. (p. 61).
Conteúdos e conexões à criação artística
São incontáveis as referências dos pensadores comunistas a interlocutores e
grandes autores da criação artística e literária espalhados mundo afora - o que
empresta formidável riqueza à coletânea.
Breves exemplos: numa carta à Margaret Harkness (1888), Engels opina que
Balzac – “que considero um mestre do realismo maior que todos os Zola do
passado, do presente e do futuro” – apresenta em Comédia humana, a “mais
extraordinária história realista da sociedade francesa” (p. 69). Ou ainda,
novamente Engels no artigo “Como não [se] deve traduzir Marx”: para se
traduzir um livro como “O capital”, “não basta conhecer o alemão literário. Marx
recorre livremente às expressões da vida cotidiana e a giros idiomáticos de
dialetos provinciais. (...) suas citações são extraídas de uma dezena de
idiomas” (p 94).
Marx, onde em passagens dos “Manuscritos econômico-filosóficos de 1844”, já
anuncia que o dinheiro “é, pois, o objeto como possessão eminente”; assim
como a “universalidade de sua propriedade é a onipotência do seu ser” - então
funciona como ser todo-poderoso -, analisa que Shakespeare (em “Tímon de
Atenas”) “descreve de maneira excelente a verdadeira natureza do dinheiro”
(pp. 143-45) [4]. Num trecho de “A ideologia Alemã”, ao comparar a construção
artística de Rafael, Leonardo da Vinci e Tiziano, Marx encontra a influência de
Roma sobre Florença, em Rafael; as de da Vinci pela situação florentina; e
depois, as de Tiziano pelo “desenvolvimento, totalmente distinto de Veneza” (p.
167). Rafael – diz Marx -, tal como qualquer outro artista estava sobre
“influência do progresso técnico da arte... da organização da sociedade e da
divisão do trabalho em sua localidade” (ibidem).
Mas, em se tratando do essencial, “Cultura, arte e literatura” não poderia
esquecer uma contribuição de Engels ainda hoje desconhecida de muitos
seguidores da teoria marxista, no que tange às determinações econômicas de
“última instância” à ideologia. De fato, impossível explicar o florescimento
excepcional das filosofias francesa e alemã, (séculos XVIII-XIX), se comparado
ao desenvolvimento do capitalismo originário inglês. Porque o

54
“desenvolvimento político, jurídico, filosófico, religioso, literário, artístico etc. se
funda no desenvolvimento econômico. Mas esses elementos interagem entre si
e reatuam também sobre a base econômica” [5].
*Publicado em Revista Princípios, Nº 112 Abr/Mai 2011

NOTAS
1) Princípios entrevistou o professor Hecker para o número seguinte.
2) Como bem diz Fredric Jameson, “em Brecht é menos uma questão de
situar um dado indivíduo numa classe social preexistente, com seus
valores ideológicos e aparência específicos, do que transcender o duplo
padrão de eventos individuais e coletivos. É como se recontar eventos
individuais enquanto históricos não fosse uma técnica satírica mas
também um novo modo de autoconhecimento” (“O método Brecht”,
Vozes, 1999, p. 91).
3) O estudo traz ainda “Introdução aos escritos Estéticos de Marx e
Engels”, instrutivo ensaio de G. Lúkacs.
4) Marx transcreve do poema de Shakespeare: “Metal desgraçado, oh
ordinária meretriz do gênero humano, Que semeia discórdia entre os
povos” (p.144).
5) F. Engels, Carta a H. Starkenburg, 25 de janeiro de 1894. (“Cultura...”,
p. 104-5).

55
II
NEOLIBERALISMO, TEORIAS DAS
CRISES E DECADÊNCIA
IMPERIALISTA
Marx 130 anos: teorias e crises do capitalismo contemporâneo*
“Em outras palavras, as perdas dos capitalistas foram pagas com o patrimônio de toda a
sociedade, representada pelo governo. Este tipo de comunismo na qual a reciprocidade é
completamente unilateral, parece ser muito atrativo para os capitalistas europeus” (Marx,
“A crise financeira na Europa”, New York Daily Tribune, 22/12/1857)

A melhor maneira de relembrar o gênio Karl Marx é recuperar várias de suas


categorias e interpretações que se projetam no tempo, adquirindo novas formas
pelo movimento mesmo do regime do capital.

Revisamos notas anteriores neste artigo, acerca do debate sobre a interpretação


marxiana – e marxista – das crises capitalistas. Os objetivos principais são: a)
buscar contribuir para a compreensão do fenômeno, e parte integrante da
estrutura dinâmica do capitalismo – as crises –, segundo aspectos centrais da
teoria de Karl Marx [2]; b) situar criticamente interpretações anacrônicas do
marxismo, algumas na crise global de agora que ressuscitam a mania
escatológica [3]; c) aludir a novos fenômenos que “assaltaram” o capitalismo
movido pelas finanças.

Com efeito, tais questões aqui se entrelaçam buscando clarificar um panorama


marcado por grandes incertezas, o que dificulta horizontes mais claros para
combates mais consequentes. Noutras palavras, a crítica de análises
reducionistas das teorias de Marx e Lênin frente aos complexos (e singulares)
processos, como das grandes crises, não é problema acadêmico ou
exclusivamente teórico: possuem grave incidência política, na medida em que
por vezes resultam na substituição dum sistema tático de reforço das posições
revolucionárias, pelo discurso estratégico errático, esquemático.

Aspectos fundamentais inseparáveis: dinamismo e crises

A valorização do valor (da mais-valia) é objetivo central da produção capitalista,


o que resulta, do ponto de vista sistêmico, sempre em superacumulação de
capital - que também são ativos financeiros. Fenômenos que se manifestaram
na origem e no desenrolar da crise global que ora presenciamos.

1. Certamente que as crises no capitalismo não podem ser separadas da


sua dinâmica própria, intrínseca. O capitalismo, em seu móvel de

56
acumular por acumular, jamais se interessará pelas “necessidades
sociais” das massas trabalhadoras. Isto diz respeito à sua “missão”, a
qual, segundo Marx, é produzir em larguíssima escala, até superproduzir
capital. Quer dizer, sobreinvestir para fazer crescer a produtividade social
do trabalho e suplantar a concorrência, superproduzir para superlucrar, e
superacumular capital em excesso e em todas as suas formas,
referenciando-se numa dada taxa média de lucro.

Portanto, a superprodução de capital – essencialmente de máquinas,


equipamentos, instalações, matérias-primas, e ativos financeiros – é uma
“novidade” do século XIX, então anunciada por Marx contra as teorias de
Smith e Ricardo. Mais além, constitui imenso equívoco borrar as formas
que redesenham as crises mimetizadas no desenvolvimento do
capitalismo.

Exemplifico. Trata-se sim - a atual - de uma crise gestada num padrão de


acumulação capitalista francamente voltado para a acumulação financeira, onde
a “financeirização” dos mercados de riqueza se fez institucional. Repetindo: o
capital nunca foi somente máquinas, equipamentos e instalações, tampouco
mercadorias: é também ativos financeiros que rendem juros e dinheiro.
Manipulado por capitalistas, o dinheiro produz mais dinheiro por ser reserva de
valor, por agir como capital a juros (capital-dinheiro), por potencialmente atrair
mais crédito. O capital procura valorizar-se sempre - sinuosamente tal qual uma
serpente - movimentando-se entre o dinheiro, os ativos financeiros, as
mercadorias ampliando sua base de valorização. Na operação crédito/capital a
juros o capital converte-se em mercadoria e exprime-se “cada vez mais como
puro capital”, no capital por ações, e outros títulos financeiros que representam o
direito de apropriação da riqueza [4]. É uma dimensão do movimento de suas
formas, que o gênio Karl Marx denominou de “As três figuras do ciclo”:

“Sempre mudando de forma e se reproduzindo, parte do capital existe como


capital-mercadoria que se converte em dinheiro; outra, como capital-dinheiro que se
transforma em capital produtivo; uma terceira, como capital produtivo que se torna
capital-mercadoria. A existência contínua dessas três formas decorre de o ciclo do capital
global passar por essas três fases” [5].

Para R. Guttmann, “A crise atual, todavia, é diferente. Não apenas emanou do


centro, em vez de surgir de algum ponto da periferia, como também revelou
falhas estruturais profundas na arquitetura institucional de contratos, fundos e
mercados que compunham o sistema financeiro novo e desregulamentado.
Estamos diante de uma crise sistêmica, que é sempre um evento de proporções
épicas e efeitos duradouros. Claras são as distinções da preponderância
esmagadora da finança, nesta crise”.[6]

O que quer dizer também: as crises não são sempre estruturais desde priscas
eras.

Valorização, superacumulação e crises

57
2. Conforme Marx: “a força motriz da produção capitalista é a valorização do
capital, ou seja, a criação de mais-valia, sem nenhuma consideração para
com o trabalhador” [7]. Crescimento, recessão, recuperação, expansão e
instabilidade - também estagnação - são as categorias principais do
capitalismo, portanto historicamente datadas, e seu vetor de acumulação
é projetado pela hegemonia da haute finance (Karl Polanyi).

Pelo seu caráter incontornavelmente expansivo [8], de outra parte não


seria possível a “financeirização” - um padrão que passou a ser
imprescindível às determinações da grande finança especulativa e
concorrencial -, “brotar” da estagnação (veremos adiante mais sobre
isso). Nas grandes fases expansivas antecedem a dinâmica das crises,
geralmente: monopolização + “financeirização” + superacumulação
(também de riqueza financeira fictícia) + crises [podendo haver ou não
estagnação].

Está em Marx que o desenvolvimento do moderno sistema de crédito


decorre da imperiosa necessidade de centralização de massas de
capitais, o que coincide com o processo de autonomização do capital a
juros, configurando um circuito financeiro que mobiliza, utiliza e centraliza
capital monetário e valoriza capital fictício. É assim que: a) a proliferação
de títulos financeiros passa “a ter uma circulação e valorização próprias”;
b) as variadas formas de ativos “passam a ser disputadas pelas massas
centralizadas de capital”, onde o investimento busca todos os espaços de
valorização; onde a sistemática “transformação dos lucros em excedentes
financeiros” se submetem “a uma lógica particular de valorização” [9].

Importa aqui destacar é que o monopólio não apenas reafirma a


tendência à superacumulação, como introduz novas determinações que
terminam por agravar a instabilidade e a incerteza do cálculo capitalista,
próprias desse regime de produção; muito mais ainda na época da
“globalização financeira”. E que a teorização dos processos mais recentes
que catapultam as crises via circuitos da “finança mundializada”
(Chesnais) são similares aos mecanismos originários das crises desse
regime de produção. O que, mais uma vez, na presente crise global, pode
ser constatado cabalmente na decomposição de vários dos maiores
bancos de “investimento”, gigantescos bancos e coração do sistema
financeiro dos EUA.

Aliás, além de superacumulação-superprodução, devemos insistir em que


a desproporção entre os departamentos e a lei de tendência de queda da
taxa de lucro são igualmente fenômenos que se expressam da dinâmica
da crise. Crises que, conforme Marx, em última instância têm como
determinação originária o antagonismo irresoluto: apropriação cada vez
mais privada x produção cada vez mais expansivamente social.

“Financeirização” e crise

“Essa mudança é chamada de financeirização. A crescente integração dos


mercados financeiros em cada país e a interligação global entre as praças

58
financeiras são necessárias às operações da gigantesca riqueza financeira atual.
(...) Aumentaram os episódios das crises financeiras, como os anos de 1990 e
2000 demonstraram (R. Souza, 2008) [10].

Trazendo à luz das passagens referidas, chamemos atenção a três fenômenos


centrais da dinâmica do regime do capital do nosso tempo: a) a fixação da
categoria “financeirização” da riqueza capitalista; b) a ideia de uma interligação
sistêmica dos “mercados financeiros nacionais e internacionais” [11]; c) o visível
aumento da frequência das crises (detonadas nas esferas) financeiras,
notadamente desde os fins dos anos 1980 tipificando assim uma particularidade
dessa dinâmica.

Como assinalamos, encontra-se no centro das perspectivas do capitalismo, a


problemática da financeirização, quer dizer, da predominância avassaladora da
valorização financeira no atual padrão contemporâneo de acumulação capitalista
mundial, impulsionado pela liberalização e desregulamentação financeiras
expandidas desde os anos 1980. Singularidades que se explicitam na marcha da
grande crise atual.

Assim, a dominância sistêmica do capital financeiro e da finança em geral é fato


amplamente comprovado. Simplesmente porque justifica determinações rígidas,
estáticas das leis de movimento do capital - e especialmente apontadas no Livro
3 de O Capital -, recusando o movimento do real: “revoltar-se” contra uma
“suposta” financeirização é pretender que passemos a andar em círculos na
crise do marxismo.

Não se trata de artificializar discrepâncias intelectuais, muito menos transformá-


las em rivalidades. A obra de economia política de Karl Marx não só é complexa
como necessita de uma visão do conjunto de suas teses essenciais. Num
exemplo teórico notável de formulações centrais do estatuto científico do
marxismo, escreve o epistemólogo português Armando Castro:

“A totalidade teórica organiza e enuncia um sistema de relações entre


representações (cujo centro são as leis), permitindo chegar à explicação de um
conjunto de relações com propriedades próprias e diferentes das que se
reconhecem nos seus elementos interligados” [12]. Mas expliquemos isso com
vagar.

O histórico e o lógico. Desconhecimento e negação da teoria de Marx

1. Numa dimensão histórica, consistem em fatos reconhecidos e fartamente


analisados a regulamentação do comércio e das finanças internacionais,
institucionalizada pelo sistema de Bretton Woods (1944), através das
limitações aduaneiras protetivas na periferia e no centro capitalista e
também por restrições ao livre movimento de capitais. O que foi sucedido
pelo móvel da globalização neoliberal: essencialmente
desregulamentação da produção e da circulação de mercadorias em nível
internacional e dos mercados financeiros internacionais. No que se seguiu
uma forte valorização da riqueza financeira, impulsionada pelos novos
instrumentos (inovações financeiras) e seus mercados. A propósito,

59
recorde-se aqui: em 2007-8 completaram-se dez anos da crise iniciada na
Ásia, inicialmente na Tailândia, detonada por uma onda de sucessivos
ataques especulativos a várias moedas da região, fazendo desabar
países (produto e emprego) que particularmente desregulamentaram e
liberalizaram a configuração de seus mercados financeiros.
2. Noutra dimensão, do ponto de vista teórico, as ideias de Marx, do final do
século XIX, sobre o caráter das crises do capitalismo, demonstraram não
só ser de uma força histórica tremenda. Elas abrigam duas questões
cruciais à compreensão da dinâmica sistêmica do capitalismo: a)
assinalam a ruptura do ciclo ascensional, por “parada” ou bloqueio dos
investimentos, com desdobramento inexorável em “queima de capital”; b)
reafirmam o imperativo estrutural de funcionamento no movimento
constitutivo e contraditório de expansão-instabilidade-crise.

Dito de outra maneira, não se trata apenas de acusar “problemas


relevantes” na esfera financeira. Essa é uma visão que simplesmente
“descola” produção de circulação. Para Marx, o próprio desenvolvimento
do capital e do sistema de crédito sofre, nas crises, interrupção em:

“inúmeros pontos da cadeia de obrigações de pagamento em prazos


determinados, e se agravam com o consequente desmoronamento do
sistema de crédito que se desenvolve junto com o capital. Assim
redundam em crises violentas, agudas, em depreciações bruscas, brutais,
estagnação e perturbação física do processo de reprodução e, por
conseguinte em decréscimo real da produção” (Marx, “O Capital”, Livro 3,
v. 4, p. 292, Civilização Brasileira, s/ data).

Hodiernamente, na medida em que o “capital portador de juros” (Marx)


passou a ser o motor das operações financeiras na ascensão do
neoliberalismo, assim como foi promotor de uma época crônica de
instabilidade e crises financeiras mais frequentes, deve-se acentuar que:

“Sob o aspecto qualitativo, o juro é mais-valia, proporcionada pela nua


propriedade do capital, pelo capital em si, embora o proprietário esteja
fora do processo de reprodução; é mais-valia que o capital rende,
dissociado de seu processo” (Marx, Livro 3, v. 5, Cap. XXIII, p. 434) [7].
Como assim, “dissociado”? É que, no processo de valorização do capital
portador de juros,
“O ciclo D...D’ entrelaça-se com a circulação geral de mercadorias, sai
dela e nela entra e é parte dela. Entretanto, constitui, para o capitalista
individual, movimento próprio autônomo do valor-capital, movimento que
se efetua parte na esfera da circulação geral de mercadorias e parte fora
dela, mas conservando sempre seu caráter autônomo” (Marx, “O Capital”,
Livro 2, v. 3, p. 57).

Não deixando dúvidas, mais enfaticamente diz ele ainda sobre a


especificidade do capital portador de juros e sua relação com a tendência
à superacumulação capitalista:

60
“Assim, o ciclo do capital-dinheiro é a forma mais exclusiva, mais
contundente e mais característica de manifestar-se o ciclo do capital
industrial. O objetivo e o motivo propulsor deste, nele saltam aos olhos:
expandir o valor, fazer dinheiro e acumular (comprar, para vender mais
caro)” (Marx, idem, p. 60).

No entanto, recordando a interpretação dialética de Marx (“As três figuras


do ciclo”) do movimento do capital-dinheiro, capital-mercadoria e capital
produtivo, referidas no artigo anterior, é imprescindível que assim
compreendamos a totalidade desse movimento:

“Mas, cada parte ininterrupta e sucessivamente de uma fase, [pode passar] de uma forma
funcional para outra. As formas são portanto fluidas e sua simultaneidade decorre de sua
sucessão”. “(...) Só na unidade dos três ciclos se realiza a continuidade do processo global... O
capital global da sociedade possui sempre essa continuidade e seu processo possui sempre a
unidade dos três ciclos” (Marx, idem, p. 107).

3. Na evolução do capitalismo contemporâneo, a manipulação do capital-


dinheiro assim aparece formulada: a) F. Chesnais [13], insistindo, diz que o
“predomínio financeiro puro” do ressurgimento das formas do “capital-dinheiro
concentrado”, a manejar as alavancas de controle do sistema capitalista mundial,
“acentuou o processo de financeirização crescente dos grupos industriais”; b)
segundo P. Gowan, a estratégia original do grande capital financeiro norte-
americano e britânico, impunha a inflação baixa para manter a função da moeda
“como um padrão fixo de valor de acordo com os interesses do capital-dinheiro”,
tendo sido esta a “verdadeira base para a inauguração do neoliberalismo do
Atlântico” [14]; c) porém, em sua dinâmica concreta, ou seja, na macroestrutura
financeira desse capitalismo do nosso tempo, realizam-se operações monetário-
financeiras e patrimoniais de um conjunto de instituições (bancos centrais
relevantes, pelos bancos privados, por diversas organizações financeiras, pelas
grandes corporações e pelos proprietários de grandes fortunas); operando em
várias praças financeiras a valorização e desvalorização das moedas, dos ativos,
gerindo os mercados interligados de crédito e de capitais, ampliando “as
transações cambiais autonomizadas em relação ao comércio internacional,
direcionando a ‘poupança financeira’ e a liquidez internacional” – descreveu
Braga [15]; d) padrão sistêmico esse neoliberal que, por sua feita, determinou as
últimas décadas “como as mais tumultuosas da história monetária internacional,
em termos de número, escopo e gravidade das crises financeiras” – enfatizam
Kindlerberger e Aliber. [16]

Superacumulação e crises financeiras

Vê-se que a globalização financeira adveio da liberalização do movimento de


capitais e transposição de fronteiras econômicas, a par de decisões do Estado
norte-americano em catapultar a grande finança especulativa. Cada vez mais
intensa, a instabilidade do sistema tende a ser permanente, obstando a taxa de
investimento, o que pode reduzir o ritmo da acumulação e do crescimento
econômico no centro capitalista e em parte da periferia do sistema.

Assim, as crises canalizadas pelas esferas financeiras, desse estágio do


capitalismo monopolista, e fortemente oligopolizado do ponto de vista do poder
61
financeiro, mantêm a mesma lógica, numa vertente fortemente induzida pelo
caráter fictício da acumulação financeira, da crise de superprodução; refletindo o
excesso de valorização do capital em relação à determinada taxa de juros. Mas
se exacerbam alguns traços típicos dessas crises como a rapidez da
propagação e a recorrência.

O que significa dizer: as crises contemporâneas se tornam mais frequentes, por


expansão e aumento da especulação, e do volume na acumulação fictícia; o
que, por sua vez é decorrente da quantidade/velocidade das transações com
ativos financeiros, cada vez mais abrangentes, se propagando mais rapidamente
pelos mercados nacionais e alcançando facilmente regiões inteiras ou mesmo o
mundo.

Observe-se: divulgou-se em 2008 que a relação entre a riqueza (fictícia) nacional


financeira (aquela que é alavancada e derivativa e pode chegar a valer de
acordo com o que valha no futuro câmbio ou juros) seria de US$ 350 trilhões,
enquanto o PIB (Produto Interno Bruto) dos países do planeta alcançaria US$ 56
trilhões [números redondos e aproximados].

De outra parte, na direção oposta dos que ainda insistem na tese da


“estagnação” como produtora de “financeirização”, escreve Marx, desvelando já
então um aspecto estrutural (e contemporâneo!) que integra as crises
financeiras:

“Esse capital fictício reduz-se enormemente nas crises, e em consequência o


poder dos respectivos aos proprietários de obter com ele no mercado. A baixa
nominal desses valores mobiliários no boletim da Bolsa não tem relação com o
capital real que representam, mas tem muito que ver com a solvência do
proprietário” [17]. Em definições mais precisas, (i) Marx alude a dois tipos de
capital financeiro: o portador de juros e o fictício; (ii) o capital fictício consistindo
em títulos negociáveis no futuro (para ele composto por ações ordinárias das
Bolsas, títulos públicos e a própria moeda de crédito (bancária). Aliás,
indispensável o registro da formidável narrativa do norte-americano Guttmann:
[18]

“Já há um século atrás, Marx (1894) fazia distinção entre dois tipos de capital
financeiro, tais sejam capital de empréstimo portador de juros e o que
denominou capital fictício. Esse último consistia, segundo Marx, em títulos
negociáveis sobre compromissos de fluxo de caixa futuros (securities), cujo valor
era derivado unicamente da capitalização da renda antecipada, sem nenhuma
contrapartida em capital produtivo. Marx identificava, como fontes-chave de
capital fictício, ações ordinárias negociadas na bolsa de valores, títulos públicos
e a própria moeda-creditícia. Todos os três se tornaram muito mais importantes
hoje do que eram nos tempos de Marx. Desde então, a maioria das grandes
empresas transformaram-se em corporações controladas por acionistas, e a
bolsa de valores tornou-se um mecanismo fundamental para a expansão
empresarial e a reestruturação industrial. O mercado de títulos públicos, cuja
dramática expansão foi fruto de meio século de aumento nos déficits
orçamentários, na maioria dos países industrializados, oferece hoje aos

62
investidores um instrumento altamente líquido e relativamente livre de risco para
aplicar o dinheiro excessivo em caixa”.

Um parênteses pertinente. Trata-se de um exemplo recente de que não é a


estagnação que produz a financeirização, quando examinamos a experiência da
longa estagnação japonesa (1990-2002). 1) Conforme o especialista Ernani
Torres Filho, entre 1983 e 1991 - exatamente o período que antecede a grande
crise do país -, o crescimento médio da economia japonesa foi de 4,4%, bem
maior que o dos EUA (3,0%) ou da Alemanha (3,1%). O período que vai de 1992
a 1995 – exatamente no período que o Japão afundava na estagnação -, esse
crescimento foi de 0,7%, o dos EUA 3,2%, o da Alemanha 1,1% [20]. 2) Para se
ter ideia do custo fiscal do Japão para enfrentar a estagnação, deflagrada com a
desvalorização de riqueza e a deflação, posteriores à especulação da bolsa de
valores e de imóveis, ele foi estimado em 20% do PIB, contando apenas a partir
dos anos 1992 a 1995 [19].

Estamos afirmando então que, já em Marx, simultaneamente se processa: a) a


acumulação de capital à base da apropriação do trabalho excedente; b) a taxa
de lucro induzindo a taxa de juros; c) o capital portador de juros gestando capital
fictício. Isso conduz a um vetor que se relaciona com a busca incessante de
valorização do valor, para a qual a especulação passa a ser intrínseca ao
desenvolvimento do moderno sistema de crédito. Especulação, que, de acordo
com uma formulação de Marx é consequência do desenvolvimento do sistema
de crédito e lucro a partir dos juros, e:

“Reproduz nova aristocracia financeira, nova espécie de parasitas, na figura de


projetadores, fundadores e diretores puramente nominais; um sistema completo
de especulação e embuste no tocante à incorporação das sociedades,
lançamento e comércio de ações” [20].

Ademais, um processo especulativo (e cíclico) que Marx vincula também,


claramente, à deflagração de crises financeiras:

“Essa são crises cujo movimento se centra no capital monetário e, por isso,
bancos bolsas de valores e finanças são suas esferas imediatas”. [21]

Superacumulação e Lei da Tendência de Queda da Taxa de Lucro

Pensamos ter ficado (razoavelmente) compreensível a correlação anunciada


entre valorização do valor e superacumulação - desdobrando-se em valorização
financeira. À guisa de introdução, passemos então a outra correlação (inversa):
entre a superacumulação e a Lei de Tendência de Queda da Taxa de Lucro.

Não “apenas” porque, a) a tendência à queda da taxa de lucro é efetivamente,


segundo Marx, uma expressão típica desse modo de produção, na medida em
que o processo de acumulação capitalista necessita, obrigatoriamente, continuar
a expansão da produtividade social do trabalho. Mas notadamente porque, b) a
partir da segunda metade do século XX, a enorme expansão do sistema
internacional de crédito potencializa a superacumulação de capital.

63
Expansão essa que, de acordo com interpretação algo diferenciada de P.
Nakatani, acerca do que denomina “desenvolvimento da esfera financeira”,
terminou se manifestando na esfera financeira em escala mundial. De uma parte
– diz ele -, a expansão do sistema financeiro teria absorvido o excesso de capital
monetário da esfera produtiva; de outra parte, “gerou uma remuneração que
encobriu, pelo menos parcialmente e contraditoriamente, a tendência à queda na
taxa de lucro, gerando os períodos de euforia com as ‘bolhas financeiras’; enfim,
essa esfera passou a comandar o conjunto do sistema” [22].

Importa, então, aqui, relembrar simplificadamente que, para Marx, assim se deve
equacionar a Taxa de Lucro: Taxa de Lucro: l= m/(c+v)

Sabemos que m é a Taxa de Mais-Valia, c o capital constante e v o valor da


força de trabalho (salários). Como afirmamos, para o capitalista é decisivo o
investimento em c (máquinas, equipamentos, instalações, matérias-primas), no
sentido de aumentar a produtividade do trabalho (força produtiva social). Na
mesma medida em que ele mesmo descarta ou até “aniquila” (Belluzzo) a força
de trabalho. Ou seja, fica evidente que a tendência (de longo prazo) da taxa de
lucro é cair. E por que afirmo no “longo prazo”?

Porque se deve apreendê-lo em duas dimensões:

1) Nas palavras de Marx, cujo idêntico raciocínio crucial persiste


especialmente nos Capítulos XII, XIV e XV do Livro 3, v. 4 (também no
livro 1):

“Assim, ao progredir o modo capitalista de produção, o desenvolvimento da


produtividade social do trabalho se configura na tendência à baixa
progressiva da taxa de lucro e, além disso, no aumento absoluto da massa
de mais-valia ou lucro extraído” (“O Capital”, Livro 3, v. 4, p. 255).

2) Entretanto, há muito se discute que é o próprio Marx – e sua


extraordinária profundidade intelectual - quem apresenta fatores que
contrariariam esta tendência de queda, encarando-a como sendo lei de
longo prazo. Diz ele que esses fatores seriam: a) o aumento do grau de
exploração do trabalho; b) a redução dos salários; c) a baixa no preço dos
elementos que compõem o capital constante; d) a superpopulação
relativa (o exército industrial de reserva da Lei Geral da acumulação
capitalista); e) o comércio exterior; f) o aumento do capital por ações
(juros+rentismo).

Sistema de crédito, especulação e crises

“Se o sistema de crédito é o propulsor principal da superprodução e da


especulação excessiva... (...) acelera o desenvolvimento material das forças
produtivas e a formação do mercado mundial... (...) Ao mesmo tempo, o crédito
acelera as erupções violentas dessa contradição, as crises... (...) levando a um
sistema puro e gigantesco de especulação e jogo” (Marx, O Capital, Livro 3, v. 5,
p. 510).

64
Prosseguindo no enfoque mais teórico, vimos que, segundo Marx, a) mutantes, o
capital-dinheiro, o capital-mercadoria e o capital-produtivo formam as “três
figuras do ciclo”, isto querendo dizer que são distintas as formas que o capital
assume, mantendo-se a unidade do ciclo; b) nas crises do capitalismo – (que se
expressam regularmente nos fenômenos de superprodução/superacumulção, lei
da tendência de queda da taxa de lucros e desproporção entre os
departamentos), a manifestação em uma de suas esferas (como em 2007,
iniciada na financeira) é inseparável da dinâmica do ciclo global do capital.

Quer dizer, não há sentido algum apartar a esfera financeira da produtiva


(circulação e produção), ou falar-se que “a crise não é só financeira, é
econômica”, do ponto de vista do modo de produção capitalista. Dito de outro
modo, a existência contínua das três formas referidas decorre de o ciclo do
capital global passar por essas três fases. Mas o mesmo não se pode dizer da
“autonomização” que realiza o capital financeiro enquanto formas distintas: a) de
capital portador de juros; b) de capital fictício. Por que, como assim?

“Da totalidade do capital destaca-se e se torna autônoma determinada parte, na


forma de capital-dinheiro [como capital portador de juros], tendo a função
capitalista de efetuar com exclusividade essas operações para toda a classe dos
capitalistas industriais e comerciais” (Marx, idem, p. 363).

Notadamente hoje - analisa R. Guttmann -, “(...) o capitalismo dirigido pelas


finanças tem dado prioridade ao capital fictício, cujos novos condutos, com
derivativos ou valores mobiliários lastreados em ativos, estão a vários níveis de
distância e qualquer atividade econômica real de criação de valor. Nessa esfera,
o objetivo principal é negociar ativos de forma lucrativa para obter ganhos de
capital, uma atividade bem mais definida como especulação” [23].

“Financeirização”, crises e tipologias

Com a grande crise capitalista atual, não à toa a categoria “financeirização” da


riqueza capitalista, assim como sua mediatizada relação com as crises
financeiras mais recorrentes vêm assumindo um nível mais elevado de
teorização. Num artigo do economista J. C. Braga, as ideias centrais que
sustentam sua nova formulação em “Crise sistêmica da financeirização e a
incerteza das mudanças” [24], enfatizam não só ser a crise da natureza do
capital e do capitalismo desregulado. Para Braga não há “nenhuma deformação,
nenhum desvio da essência do processo de acumulação”, seja pela via da
acumulação produtiva, seja pela “articulação daquela com a acumulação
financeira e da autonomização dessa última”. Isto porque, em palavras mais
diretas e se referindo a crise das “hipotecas subprime”:

“A dinâmica da valorização imobiliária e seu fenecimento que está na origem da


crise atual expressou a extensão da globalização financeira e a intensificação da
financeirização das economias” (idem)

Sob ângulo similar, a temática comparece em entrevista com o destacado


economista cubano Oswaldo Martínez. Em sua opinião, uma das principais
características da economia capitalista contemporânea diz respeito a
65
“um nível de financeirização da economia mundial enormemente superior
também. (…) Hoje a especulação financeira alcança uma sofisticação imensa, e
essa sofisticação é por sua vez um dos pontos débeis, quer dizer, fazem
operações especulativas tão sofisticadas, arriscadas, irreais, e tão fraudulentas,
que se encontra na base da explosão financeira que tem ocorrido” [25].

O que significa que as formulações de Braga e Martínez convergem,


essencialmente, para uma outra conclusão de Guttmann, no ensaio acima
referido:

“Mas agora este sistema está em crise. É verdade, o capitalismo dirigido pelas
finanças sempre teve uma propensão a crises financeiras em momentos
fundamentais de sua expansão territorial ao trazer economias até então dirigidas
pelo Estado para a órbita da regulamentação do mercado...” [26].

É fundamental, no entanto, perceber que as características da dinâmica


capitalista, previstas na teoria de Marx, apontam a relação entre o
desenvolvimento das forças produtivas e do moderno sistema de crédito com as
formas assumidas pelas crises. Por exemplo, a crise atual, de excepcionais
dimensões e ainda em seu desenrolar de grandes perplexidades, chama a
atenção de Guttmann exatamente porque,

“(...) como sempre acontece com crises financeiras importantes, esta também
tem características únicas. Particularmente surpreendentes têm sido a
velocidade, o alcance e a ferocidade das rupturas... (...) Uma crise de tais
dimensões acontece muito raramente...” – prossegue ele ao acrescentar a
destruição do sistema bancário dos EUA, de atuação global (Guttmann, idem).

Altvater, Hobsbawm, Marramao e Roberts: críticas de teoria das crises e da


“teoria del derrumbe”

A esse respeito, análise dogmática - afirmo - de certa tipologia das crises do


capitalismo foi examinado num célebre ensaio do alemão E. Altvater [27]. Assim,
para ele, as “teorias das crises” existentes não seriam capazes de reproduzir
conceitualmente a complexidade dos processos de crise, tampouco servirem
para dar consequência a “projetos políticos adequados”. Ou seja: a) a teoria do
“desequilíbrio ou desproporção” dos departamentos não captaria a
“contraditoriedade social expressa na valorização do capital”; b) as teorias do
“subconsumo” seriam a representação de um modelo do ciclo capitalista
“bastante simplificado”, constituindo uma variante da “teoria do colapso ou da
impossibilidade” sistêmica de uma nova fase de acumulação; c) a do colapso de
H. Grossmann incapaz “absolutamente, de compreender o capitalismo como
sistema social”; d) a do russo E. Varga, uma teoria subconsumista “aperfeiçoada
com elementos extraídos da teoria da superacumulação”, que impossibilitaria –
imagina Altvater – igualmente “uma regeneração temporária com o auxílio da
crise”.

Concordando com as “teses” de Altvater, (mas não isolando a importância da


desproporção/desequilíbrio dos departamentos como retroalimentador da crise)
acrescento, que, seguindo a interpretação marxiana, Lênin (1897), após
66
implacável rechaço da visão “subconsumista” como produtora de crises
capitalistas, sublinha-se acerca da configuração contraditória da produção
capitalista:

“Pelo contrário, se explicamos as crises pela contradição entre o caráter social


da produção e o caráter individual da apropriação, reconhecemos com isso a
realidade e o caráter progressivo do caminho capitalista (...)”. [28] Isto significa
dizer – afirma a seguir Lênin – que a versão subconsumista das crises “vê a raiz
do fenômeno fora da produção”; a teoria de Marx “a vê precisamente nas
condições da produção” (idem, p. 98). Ora, sabemos bem que raiz é uma coisa,
frutas frescas e outras podres são bem distintivas; relacionam-se
mediatizadamente.

De outra parte, não é à toa que o historiador Hobsbawm foi buscar na grande
contribuição de Lênin a ideia de que é falsa a “teoria del derrumbe del
capitalismo”, a partir da correlação finalística “crise-catástrofe-colapso”, imputada
à teoria leninista. Dissertou ele:

“A Era dos Impérios ou, como Lênin a chamou, o imperialismo, não foi,
evidentemente, ‘a etapa final’ do capitalismo; mas, à época, Lênin nunca afirmou
realmente que fosse. Simplesmente a denominou, na primeira versão de seu
influente escrito, “a última etapa” do capitalismo” [29]. Até porque – enfatiza o
historiador – todas as tentativas de “isolar a explicação do imperialismo do
desenvolvimento específico do capitalismo no fim do século 19” não passam de
“exercícios ideológicos” (idem, p. 110).

Num ângulo similar, o marxista italiano G. Marramao, quando do vasto exame do


debate marxista dos anos 1920-30 sobre as “vicissitudes da ‘teoria do colapso’”,
destaca o erro grosseiro dos que não distinguiam e faziam “referências indevidas
entre o ‘plano lógico’ e o ‘plano histórico’ (exposição científica das leis
tendenciais e movimento real), tanto na defesa como na crítica da análise
marxiana do capitalismo” [30].

Bem mais recentemente, e se referindo à profundidade da crise atual, o


pesquisador marxista Michel Roberts, ao analisar as tese de R. Kurz e D.
Graeber, defensores da teoria do colapso, conclui sobre esses autores que:

“Tenho grande simpatia pela visão de Kurz e de Graeber, mas mantenho as


minhas reservas nesse entretempo. Se ao longo dessa depressão não ocorrer a
sua substituição por meio da política dos movimentos recém-energizados de
trabalhadores, é possível que o capitalismo emergente possa criar um novo
período de desenvolvimento. Também não é certo que o capitalismo maduro não
possa desenvolver e explorar novas tecnologias, mesmo se tem falhado em
áreas tais como robótica, inteligência artificial, impressão em 3D e
nanotecnologia. Na verdade, alguns argumentam que a tecnologia norte-
americana está desenvolvendo a técnica para extrair óleo e gás do xisto, de um
modo tal que trará o balanço do poder energético de volta para os Estados
Unidos da América do Norte, assim como para as economias maduras, em
detrimento da Ásia e do Oriente Médio”. [31]

67
Crise por “subconsumismo”: violação dogmática da teoria de Marx

No rastro da grande crise dos dias que correm, teóricos voltaram a ressuscitar a
tese de ser a crise atual gerada por “subconsumo das massas”; e por
“superprodução de mercadorias”. De saída, o não consumo dos chamados bens
salários seriam os responsáveis pelas crises de superprodução. Vejamos mais
uma vez sobre o assunto, de inegável importância, e questão representativa de
uma visão deveras falseada da essência da dinâmica do regime do capital,
conforme estudos de conjunto da obra marxiana.

Na interpretação de Marx: a) capital (máquinas, equipamentos, instalações,


matérias-primas, ativos financeiros) é valorização do valor que se expande; b)
expande-se a mais-valia a partir da extração do excedente do trabalhador
assalariado, subtraindo o valor do tempo de trabalho socialmente necessário,
vis-à-vis ao pagamento para reprodução de seus meios de subsistência, da
jornada de trabalho produtora de mais-valor; c) a concorrência intercapitalista
impõe a ampliação das escalas de produção e o aumento da produtividade
social do trabalho; d) para tal, tendência inexorável do capital é aumentar
investimentos no capital constante (C), o que representa inovação tecnológica
em bens de produção (bens de capital), em detrimento (ou no descarte) da força
de trabalho e seus salários (v); e) na lei geral da acumulação capitalista, as duas
alavancas decisivas são a concentração (e centralização) de capitais e o
moderno sistema de crédito; f) a concorrência, o crédito, a concentração-
centralização de capitais implicam nos fenômenos estruturais de
superacumulação e superprodução de capitais; g) a superprodução de capital
não indica em outra coisa senão superacumulação de capital, enquanto que o
subconsumo assalariado representa o dado de que se parte previamente.

A esse respeito, observe-se então como Lênin prossegue aclarando Marx, a


propósito da contradição entre a tendência à ampliação ilimitada da produção e a
necessidade de um consumo limitado (a consequência da situação proletária
das massas do povo): “Sem embargo, o capitalismo leva sempre implícita, de
uma parte, a tendência a ampliação ilimitada do consumo produtivo, a ampliação
ilimitada da acumulação e da produção e, de outra parte, a tendência à
proletarização das massas do povo, que traz limites bastante estreitos à
ampliação do consumo individual” (idem, 1974, p. 211-12).

Ou seja, as crises do capitalismo se expressam em superprodução de capital - e


também de mercadorias; superprodução que, para ser assim designadas,
envolve os vários ramos da economia e jamais serão deflagradas “por
subconsumo das massas”. Regime do capital onde nunca existiu “estagnação”
enquanto “modo de ser”, o que deveria ocorrer em função do “subconsumo das
massas”, na era dos monopólios, como imaginaram P. Baran e P. Sweezy em
seu estudo conceitual “O capitalismo monopolista” (1969).

Como bem explica J. Gorender, em sua conhecida “Apresentação” a “O Capital”,


o que acontece mesmo no desenlace do ciclo econômico não é que a crise
sucede a uma queda do consumo, bem ao contrário, ela sucede a uma alta de
mais acentuado consumo, uma elevação que não é a regra. [32] Quem
escrevera antes e enfaticamente: é “por demais incontestável que Marx recusou

68
a ideia de que a crise cíclica se desencadeasse por efeito da insuficiência de
demanda solvente (ou demanda efetiva)” (Gorender, idem).

Ainda sobre o assunto, importa notar que após escrever o exposto na epígrafe
deste artigo, Lênin, em sua obra clássica “O desenvolvimento do capitalismo na
Rússia” (1899), referindo-se a variadas passagens – objetivamente passagens
que induzem a erros crassos, na medida do não cotejamento delas com o
conjunto completo da obra de Marx sobre a temática ciclo-crise -, do texto
magno de Marx, enfatiza que:

“Marx se limita a por manifestamente aqui uma contradição do capitalismo


assinalada já em outras passagens de O Capital, a saber: a contradição entre a
tendência a ampliação ilimitada da produção e a necessidade de um consumo
limitado (a consequência da situação proletária das massas do povo)” (Lênin,
1899). [33]

Cumpre notar aqui: Karl Marx levava em absoluta consideração o caráter


revolucionário do seu Método, assentando nele boa parte dos êxitos de sua
poderosa interpretação teórica. Com efeito, a clara distinção entre investigação e
exposição significava exaustiva e a mais completa possível apropriação dos
dados da realidade em movimento. Vistas as fontes em sua maior completude
possível, a análise se voltava então para as conexões e as formas de
desenvolvimento da matéria anatomizada. Só então passar-se-ia à exposição
(interpretando) os resultados obtidos.

Voltemos, sob esse prisma, ao nosso tema. Hodiernamente, se o “subconsumo


as massas” é a razão central das crises desse padrão de acumulação do regime
do capital financeirizado, isto significa que:

1) se o “subconsumo das massas” é a razão central das crises, então quanto


maior o crescimento do PIB e do PIB per capita, mais se afastaria a possibilidade
das crises no capitalismo dos nossos dias, certo? Totalmente errado: a Suécia
sofreu em 2009 uma recessão grave, com queda de 4,2% no PIB (Produto
Interno Bruto), a maior desde o início da Segunda Guerra Mundial; retornará o
desemprego em massa ao patamar de 12% até 2011, de acordo com as
previsões do governo (Folha On Line, 01/04/2009 - 11h09). Ora, a Suécia
sempre foi exibida como exemplo paradisíaco da moderna sociedade burguesa,
vangloriando-se de uma renda per capita recentemente calculada em nada
menos que US$ 39,6 mil (janeiro/2009).

Bem, “subconsumo das massas” suecas como causa da crise? Isto é apenas
piada em graça.

2) A Índia, segundo dados oficiais, possui cerca de 700 milhões de pessoas em


condições pobreza, e pouco mais de 300 milhões incluídas entre as variadas
camadas médias e burguesas. Entre 1991-2008, sua taxa de crescimento foi
maior que 6%, alcançando em 2006-7, nada menos que 9,4% de avanço de seu
PIB. Por que a Índia, ao invés de ser submetida a crises econômicas de
“subconsumo das massas”, dadas especialmente as centenas de milhões de

69
pessoas (cerca de 2/3 de sua população) vivendo em condição de pobreza
crônica, cresce vertiginosamente sua economia a taxas tão elevadas? [34]

3) Finalmente, como se pode insinuar que a crise atual, objetivamente gerada a


partir da débâcle das hipotecas suprime nos EUA, ou seja, uma crise centrada
no capital portador de juros contidos nos título (hipotecas), auxiliada por
residências vendidas aos milhões a uma baixíssima taxa de juros - o grande
móvel de massas norte-americanas para, a partir das hipotecas, inflar
empréstimos para o hiper-consumo (2/3 do PIB dos EUA); movimento esse
revertido e “quebrado”, também pela inédita alavancagem do sistema bancário-
financeiro, reforçada pela especulação derivativa, quer dizer, pela manipulação
de títulos podres e impagáveis de famílias endividadas astronomicamente para
consumir, tudo isso originou uma crise nos EUA “de subconsumo das massas?”

Exatamente sobre a questão, num esclarecedor artigo, L. Belluzzo chama a


atenção para o fato de o consumo representar mais de 70% da demanda
agregada nos Estados Unidos. Conforme ele explica,

“A economia americana, nos últimos 20 anos, foi impulsionada, sobretudo, pelo


crescimento sem precedentes do consumo das famílias. Nos últimos três anos e
meio essa característica da economia americana exasperou-se: o crescimento
do consumo “descolou” [disparou] da evolução da renda, dos salários reais e do
emprego. Sua evolução depende cada vez mais do efeito-riqueza, concentrado,
nos últimos anos, na valorização dos imóveis residenciais”. [35]

Seguramente, é de Lênin – e do ucraniano Túgan-Baranovski - a ideia moderna


de que no capitalismo o que é preponderante é a demanda por meios de
produção (bens de capital; e + ativos financeiros, hoje).

As crises não são, portanto, deflagradas, criadas, originadas pelo “subconsumo


das massas” ou por “superprodução de mercadorias”. As condições de
realização da produção capitalista não são determinadas pelo nível de renda dos
trabalhadores ou consumo das massas. É o investimento capitalista a variante
independente e central na dinâmica capitalista, e por sua vez, é ele quem pode
deflagrar a superacumulação e a superprodução - e as crises concretas.

Duas catástrofes – e um sistema financeiro fantasmático

Na grande e grave crise capitalista que vivenciamos nestes dias – fortes


movimentos depressivos -, a grande catástrofe que se apresenta, até agora, é o
desemprego elevadíssimo e em massa que se espraia sobre as massas
trabalhadoras, especialmente no capitalismo central e havia pouco
“desenvolvido”. De resto, uma gigantesca queima de capital (Marx) e crescente
ampliação das desigualdades sociais. E intensa resistência do proletariado e
demais trabalhadores ao ataque brutal contra as conquistas do Welfare Estate,
particularmente na Europa, bem como grandes protestos nos EUA.

Repetindo Marx mais uma vez: “a força motriz da produção capitalista é a


valorização do capital, ou a seja a criação de mais-valia, sem nenhuma
consideração para com o trabalhador” [ver nota 7].
70
Condição humana perene, pois, do trabalho sob o capitalismo, desvendado na
mesma na direção da enorme importância que ele dava ao desenvolvimento do
moderno sistema de crédito: e se o dinheiro (então na forma de metais
preciosos) consistia no “fulcro” desse sistema de crédito, este “supõe o
monopólio” dos meios de produção sociais (capital + propriedade fundiária) em
mãos privadas, além de ser a “força motriz” dum desenvolvimento capitalista
superior. Essencialmente, segundo Marx,

“O sistema bancário é, pela forma de organização e pela centralização, o resultado mais


engenhoso e refinado a qual leva o modo capitalista de produção”, onde apenas o
desenvolvimento completo do sistema de crédito e do sistema bancário promove e
efetiva por inteiro esse caráter social do capital” [36].

“Caráter social do capital”? Sim, para Marx, o sistema bancário,


sofisticadamente, “retira das mãos capitalistas privados e dos usurários a
repartição, o negócio específico e a função social do sistema” (idem, p 396),
tornando-se (os bancos e os sistema de crédito) inclusive “um dos veículos mais
eficazes das crises e da especulação” (idem, ibidem).

Consideramos tais definições são de alcance impressionante. No curso da


grande crise de 2007-08, de epicentro nos EUA, acabou o mistério do que vem
se conhecendo por shadow banking system. Um sistema financeiro/bancário
sombra, denominado pela primeira vez por Paul McCulley (2007), diretor
executivo da maior gestora de recursos do mundo, a Pimco. Sua definição de
shadow banking system “inclui todos os agentes envolvidos em empréstimos
alavancados que não têm acesso aos seguros de depósitos e/ou às operações
de redesconto dos bancos centrais”. E, entre as medidas adotadas pelo Fed
(Banco Central dos EUA) e por outros bancos centrais, encontra-se a abertura
do acesso às operações de redesconto para essas diversas instituições que não
podiam utilizá-las como os bancos de investimentos e as GSE (ações
negociadas na bolsa, mas patrocinadas pelo governo) [37].

Quer dizer, do surgimento e desenvolvimento de produto financeiros de alto teor


especulativo - como por exemplo o Credit Default Swaps (CDS) [38] –, passando
pelo desabamento do mercado hipotecário norte-americano (crise das
“subprime”), ao colapso financeiro sistêmico provocado pela implosão do banco
Lehman Brothers (2008), desvelou-se a emergência de um sistema financeiro
sombra.

Não há nenhuma dúvida de que, no capitalismo da globalização neoliberal, o


sistema de crédito hodierno chegou perfeitamente “a um sistema puro e
gigantesco de especulação e jogo” (Marx, O Capital, Livro 3, v. 5, p. 510).

Nos 130 anos de seu desaparecimento, resgatar a teoria de Karl Marx também
significa não recusar a luta de ideias contra “um certo marxismo”. Aquele que
desinforma quando simplifica grosseiramente a interpretação da crise capitalista
atual resumindo-a a “crise de superprodução e do crédito”; ou, pior ainda,
creditar a Marx a ideia de que a crise do capitalismo ocorre quando “a
interrupção do processo de circulação do capital ocorre com a paralisação da
venda de mercadorias...”.

71
*Publicado em Portal da Fundação Mauricio Grabois, 18.03.2013

Notas

[1] Ver: Escritos Económicos Menores, México, Fondo de Cultura, p. 204, 1987.

[2] Para Marx: “As crises não são mais que soluções momentâneas e violentas
das contradições existentes, erupções bruscas que restauram transitoriamente o
equilíbrio desfeito”. Em: O Capital, Civilização Brasileira, Livro 3, v. 4, p. 292.
s/data.

[3] Os “adivinhadores de crise” são os mesmos que agora tergiversam sobre seu
longo passado diuturno militante em prol da “catástrofe iminente” do capitalismo,
da “decomposição iminente do padrão dólar”, e procuram confundir a análise das
grandes crises do capitalismo, como a que transcorre, inúmeras vezes
apontadas previamente como tendências que vinham se plasmando - dado o
visível grau de superacumulação geral de capital, expansão, especulação,
alavancagem e instabilidade.

[4] Ver: “Capitalismo e crise contemporânea – a razão novamente oculta”, de A.


S. Barroso, dissertação de Mestrado, Campinas, Unicamp/IE, 2003. A passagem
tem por base observações de Braga, J. C. S. (2000).

[5] Em: “O Capital” Livro 2, v. 3, Cap. IV, p. 106, Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, s/data.

[6] Antes, Guttmann argumentara em seu importante ensaio “Uma introdução ao


capitalismo dirigido pelas finanças”: “As finanças foram profundamente
transformadas por uma combinação de desregulamentação, globalização e
informatização. Este impulso triplo transformou um sistema financeiro
estritamente controlado, organizado em âmbito nacional e centrado em bancos
comerciais (que recebem depósitos e fazem empréstimos), em um sistema auto-
regulamentado, de âmbito global e centrado em bancos de investimento
(corretagem, negociações e underwriting [lançamento de ações com subscrição
pública com intermediário] de valores mobiliários). A preferência por mercados
financeiros em vez de finanças indiretas utilizando bancos comerciais foi em
grande parte facilitada pelo surgimento de fundos (fundos de pensão, fundos
mútuos e, mais recentemente, fundos de hedge e de participações) como
compradores chave nesses mercados (in: Revista Novos Estudos, CEBRAP,
nov. 2008).

[7] Em: “Capítulo inédito D’o Capital - resultado do processo de produção


imediato”, Marx, p. 20, Porto, Escorpião, 1975.

[8] Há sim limite estrutural irreversível na dinâmica estrutural do capitalismo:


enquanto investe perenemente em sua base técnica (desenvolvimento das
forças produtivas como determinante histórico do desenvolvimento), para alagá-
la, expandir a produção e suplantar a concorrência, Das Kapital tem que reduzir,
descartar, até mesmo destruir sua própria base de valorização: o trabalho

72
humano e o tempo social necessário à sua subsistência e o da extração da
mais-valia.

[9] Ver todo o Capitulo 2 (“O monopólio do capital”) do estudo que considero uma
pequena obra-prima, “A contradição em processo – o capitalismo e suas crises”,
de professor Frederico Mazzucchelli, especialmente as pp. 84-90 (Campinas,
Unicamp/IE, 2004, 2ª edição).

[10] “Dominação global, neoliberal e financeira”, Renildo Souza. E imediatamente


a seguir acresce com precisão Souza: “Ademais, as crises cíclicas periódicas
são fomentadas pela superprodução e superacumulação, sob o acicate da
globalização da concorrência”. In: “Capitalismo contemporâneo e a nova luta
pelo socialismo”, pp. 49 e 52, São Paulo, Anita Garibaldi, 2008.

[11] Luís Fernandes foi certamente pioneiro no Brasil a teorizar sobre uma
dimensão crucial das ideias revolucionárias de Marx e Engels, quais sejam, o
processo de gênese, consolidação e expansão global do capitalismo, contidas
no Manifesto do Partido Comunista: “A força dessa compreensão reside na
identificação de um impulso expansionista insaciável por parte do capital, que o
empurra incessantemente para a busca de novos mercados em todo o globo.
Em tempos da chamada ‘globalização’, a atualidade dessa leitura não poderia
ser mais evidente” (“O Manifesto Comunista e a dialética da globalização”, de L.
Fernandes, in: “O Manifesto comunista 150 anos depois”, Reis Filho, D. A. (org.),
pp. 109 e 114, Rio de janeiro, Contraponto, 1998.

[12] Ver: ”A contribuição de Marx à teoria e à metodologia das ciências sociais”,


de A. Castro, in: “Conhecer o conhecimento”, p. 95, Avante! 1989.

[13] Ver: “Da noção de imperialismo e da análise de Marx do capitalismo:


previsões da crise”, de F. Chesnais, in: “O Incontornável Marx”, p. 64, Nóvoa, J.
(org), Salvador/São Paulo, Unesp/Edufba, 2007.

[14] Ver: “A roleta global. Uma aposta faustiana de Washington para a


dominação do mundo”, p. 81, Rio de Janeiro, Record, 2003.

[15] Ver: “Temporalidade da Riqueza: teoria da dinâmica e financeirização do


capitalismo”, de J. C. S. Braga, Campinas, Unicamp/IE, 2000.

[16] Em: “A reconstrução do sistema financeiro global”, de Martin Wolf, Cap.


“Crises financeiras na era da globalização”, p. 31, Rio de Janeiro,
Elsevier/Campus, 2009.

[17] Ver: “O Capital”, Marx, Livro 3, v. 5, p. 50.

[18] Ver; “A transformação do capital financeiro”, de R. Guttmann, Economia e


Sociedade, nº7, Campinas, Unicamp/IE, dez.1996

[19] Ver: ”A crise da economia japonesa nos anos 90: impactos da bolha
especulativa”, de E. T. Filho, in: Revista de Economia Política, nº 65, São Paulo,

73
jan./mar 1997; sobre dados de Scott, B.; da OCDE, Economic Outlook, vários
anos.

[20] Antes, afirmara: “com o juro ascendente cai o preço deles [dos papéis]. O
que também provoca essa queda é a escassez geral de crédito, que força os
detentores a lançarem-se em massa no mercado para obter dinheiro” (O Capital,
Livro 3, volume 5, pp. 566-7).

[21] Em: “O Capital” volume I, p. 116, Nota 99 [à terceira edição alemã], Abril
Cultural, 1983.

[22] Ver: “A crise atual do sistema capitalista mundial”, de P. Nakatani, mimeo,


s/data. O texto foi indicação do professor Renildo Souza, como bibliografia
complementar à Escola Nacional do PCdoB, Núcleo de Economia Política &
Desenvolvimento.

[23] Completa adiante o raciocínio Guttmann: “Em outros termos, estamos diante
de uma crise sistêmica, que é sempre um evento de proporções épicas e efeitos
duradouros”.(Idem, 2008).

[24] “Revista Estudos Avançados da USP”, março de 2009.

[25] Ver: “Crisis económica global. ¿Hasta cuándo?, ¿hasta dónde?”, de O.


Martínez, in: rebelión.org (29/4/2009).

[26] Em: Guttmann, idem.

[27] Ver: “A crise de 1929 e o debate marxista sobre a teoria da crise”, de E.


Altvater, in: “História do marxismo”, Hobsbawm, E. (org.), v. 8, Paz e Terra, 1987,
2ª edição, especialmente pp. 95-133.

[28] Ver: “Para una caraterización del romanticismo econômico. (Sismondi y


nuestros sismondistas nacionales”), de V. I. Lênin, p. 104, in: “Sobre el problema
de los mercados”, Escritos económicos, vol 3, Madrid, Siglo Veinteuno editores
s.a., 1974.

[29] Ver: “A era dos impérios – 1871-1914”, de E. Hobsbawm, p. 27, Paz e Terra,
2003, 8ª edição.

[30] Ver: ''O político e as transformações. Crítica do capitalismo e ideologias da


crise entre os anos vinte e trinta'', de G. Marramao, p. 102, Oficina de livros,
1990.

[31] Ver: “Crise ou colapso?”, de M. Roberts, em: Economia e Complexidade,


Blog de Eleutério Prado, post 16/10/2012.

[32] Ver: Apresentação a “O Capital”, J. Gorender, v. 1, p. LX, Abril Cultural,


1983.

74
[33] Em: “O desenvolvimento do capitalismo na Rússia”, Apud Mazzucchelli, F.,
2004: 58: “A contradição em processo. O capitalismo e suas crises”, Unicamp,
2004.

[34] Acrescente-se: um informe governamental estima que 77% da população


trabalhadora da Índia vivem com menos de meio dólar por dia. Ver: “Índia: a
economia cresce, a fome também”, Anuradha Mittal, Portal Terra, 01/10/2008.

[35] Ver: “O consumo americano”, de L. Belluzzo, Portal Terra, 10/10/2008.

[36] Em: “O Capital”, Livro 3, v. 5, p.695.

[37] Ver: “A crise financeira e o global shadow banking system”, de Marcos


Cintra e Maryse Farhi, em: São Paulo, Novos Estudos CEBRAP, nº 82,
novembro 2008.

[38] Operação, financeira que consiste numa troca entre o vendedor de proteção
(fundo de pensões, as empresas de seguros) e um comprador de proteção
(bancos). Depois de ter recebido uma remuneração chamada de “prêmio de
risco”, os investidores institucionais cobrem ou “compram” o risco de crédito de
um banco (em decorrência a vendedora do risco). De modo geral, os fundos de
pensões aceitam cobrir o risco quando os crédito são bem notados pelas
agências de risco (a nota máxima é triplo A). Mas na realidade, o sistema é um
pouco mais complexo do que isso pois ele integra um mecanismo de
venda/revenda de crédito e um mecanismo de transferência do risco do crédito.
(Ver a explicação em “Uma análise da crise financeira americana e de suas
repercussões para a economia brasileira”, de R. Guttmann, ao II Encontro da
Associação Keynesiana Brasileira, setembro de 2009).

75
Marx, teorias das crises capitalistas e a posição dos comunistas
(conclusão)*
“Nada seria mais absurdo que, partindo das passagens de O Capital, chegar à
conclusão de que Marx põe em dúvida a possibilidade de realizar a mais-valia dentro
da sociedade capitalista, de que explica as crises como consequência da falta de
consumo etc” (Lênin, 1899). [1]

Buscando uma conclusão da série, primeiro recompõem-se aspectos centrais


da teoria da dinâmica e das crises do capitalismo de Marx (em crítica direta à
ideia-ficção da crise atual causada pela “paralisação da venda de mercadorias”,
ou pelo “subconsumo das massas”); segundo, reiterando as características das
crises do atual padrão financeirizado de acumulação capitalista (e definindo
como pré-capitalista a “tese” da “suposta financeirização” ou da crise
provocada por esse padrão ser “unilateral”); terceiro, defendendo a
necessidade de reforço e ampliação das mediações táticas, no enfrentamento
à grande crise atual do capitalismo (e em crítica às concepções do
estrategismo como “atalho” à saída).
Como veremos, questões que, por fundamentos gnosiológicos, não podem ser
desconectadas da tática e da estratégia revolucionária, motivadas por outras
mudanças fundamentais no quadro geopolítico mundial.
O dogmatismo ainda é erva daninha no movimento comunista
Os disfarces do dogmatismo [2] são perceptivelmente risíveis. Os mesmos que
(entre nós e alhures) alcunham-se “ortodoxos” e repetem que a financeirização
capitalista global é “suposta”; que insistem em que a débâcle da globalização
neoliberal não teve como nítida expressão uma forma financeira das crises do
regime do capital, esses, não só desconhecem o vetor resultante da verdadeira
inundação planetária do capital financeiro (seja o portador de juros, seja o
fictício), como fenômeno absolutamente real dos últimos 30 anos - e inédito
desde a constituição do modo de produção capitalista. Revelam também
solene desprezo à imensa legião de pesquisadores que se esforçam
sistematicamente para o desvendamento das singularidades do
desenvolvimento capitalista contemporâneo – e as maneiras e meios de
enfrentá-los. Por exemplo, neste esforço escreveu dias atrás o economista
cubano Oswaldo Martínez:
“A partir do verão de 2008 a crise econômica capitalista avançou com rapidez
desde uma crise setorial de valores imobiliários nos Estados Unidos, que
adveio pouco depois da crise financeira nesse país, para estender-se de
imediato a todo o mercado financeiro globalizado e por último, revelar-se como
a crise econômica global que hoje envolve a economia real e faz sentir seus
efeitos à escala mundial”. [3]
Aliás - capítulo à parte -, sabe-se lá se por coincidência, no plano da análise da
complexa situação internacional, são costumeiros seus hábitos em excluir
qualquer referência ao caráter socialista (socialismo de mercado) do regime da
República Popular da China. Já a marcha objetiva da multipolaridade
geopolítica mundial - e sua importância crucial para a reposição de tendências
revolucionárias mais profundas nas lutas dos povos – aparece assim

76
esmaecida para esses teóricos: “não significa necessariamente que esteja em
curso uma transformação democrática das relações internacionais”. Ora, onde
ocorreu, algum dia, em algum lugar, quem está imaginando transições
geopolíticas baseadas em declínio de impérios, como se fossem sinônimas de
convescotes acompanhados de chá?
Francamente: trata-se de um renitente dogmatismo: a) a experiência épica da
grande revolução chinesa teria que ser àquela que se enquadrasse
perfeitamente em rígidos esquemas mentais, num regresso ao apriorismo
kantiano e religioso: socialismo quase “puro”, de preferência sem
desigualdades sociais e regionais tout court! b) jogam-se no lixo as lições
estratégicas e militares do acervo leninista, que recomenda a exploração das
contradições no processo de acumulação de forças e no estabelecimento de
alianças com setores “inconsistentes, vacilantes” – caso explícito das brechas
da transição geopolítica atual.
Nas definitivas palavras de Lênin:
“Fazer guerra para derrotar a burguesia internacional, uma guerra cem vezes
mais difícil, prolongada e complexa que a mais encarniçada das guerras
comuns entre Estados, e renunciar de antemão a qualquer manobra, a explorar
os antagonismos de interesses (mesmo apenas temporários), que dividem
nossos inimigos, renunciar a acordos e compromissos com possíveis aliados
(ainda que provisórios, inconsistentes, vacilantes, condicionados), não é, por
acaso, qualquer coisa de extremamente ridículo?” [4].
Ademais, é óbvio que a marcha da multipolaridade geopolítica – similarmente
à grande estratégia chinesa de desenvolvimento - possibilita o recurso da
utilização “das reservas estratégicas” para a luta revolucionária. Como ensinou,
com brilho, J. Stálin, as reservas da revolução podem ser indiretas, como as:
“(...) contradições, conflitos e guerras (por exemplo, a guerra imperialista) entre
Estados burgueses hostis ao Estado proletário, que o proletariado pode utilizar em sua
defesa ou manobrar; caso se veja obrigado a bater-se em retirada”. [5]

Mas, sem mais arrodeios, voltemos então ao nosso tema central.


Crise por “subconsumismo”: violação dogmática da teoria de Marx
No rastro da grande crise dos dias que correm, os teóricos aludidos voltaram a
ressuscitar a tese de ser a crise atual gerada por “subconsumo das massas”; e
por “superprodução de mercadorias”. De saída, o não-consumo dos chamados
bens salários seriam os responsáveis pelas crises de superprodução. Vejamos
mais uma vez sobre o assunto, de inegável importância, e questão
representativa de uma visão deveras falseada da essência da dinâmica do
regime do capital, conforme pesquisas de conjunto da obra marxiana (e
marxista).
Na interpretação de Marx: a) capital (máquinas, equipamentos, instalações,
matérias-primas, ativos financeiros) é valorização do valor que se expande; b)
expande-se a mais-valia a partir da extração do excedente do trabalhador
assalariado, subtraindo o valor do tempo de trabalho socialmente necessário,
vis-à-vis ao pagamento para reprodução de seus meios de subsistência, da
77
jornada de trabalho produtora de mais-valor; c) a concorrência intercapitalista
impõe a ampliação das escalas de produção e o aumento da produtividade
social do trabalho; d) para tal, tendência inexorável do capital é aumentar
investimentos no capital constante (C), o que representa inovação tecnológica
em bens de produção (bens de capital), em detrimento (ou no descarte) da
força de trabalho e seus salários (v); e) na lei geral da acumulação capitalista,
as duas alavancas decisivas são a concentração (e centralização) de capitais e
o moderno sistema de crédito; f) a concorrência, o crédito, a concentração-
centralização de capitais implicam nos fenômenos estruturais de
superacumulação e superprodução de capitais; g) a superprodução de capital
não indica em outra coisa senão superacumulação de capital, enquanto que o
subconsumo assalariado representa o dado de que se parte previamente.
A esse respeito, observe-se então como Lênin prossegue aclarando o caráter
da aludida contradição da epígrafe (entre a tendência a ampliação ilimitada da
produção e a necessidade de um consumo limitado (a consequência da
situação proletária das massas do povo):
“Sem embargo, o capitalismo leva sempre implícita, de uma parte, a tendência a
ampliação ilimitada do consumo produtivo, a ampliação ilimitada da acumulação e da
produção e, de outra parte, a tendência à proletarização das massas do povo, que traz
limites bastantes estreitos à ampliação do consumo individual” (idem, 1974, p. 211 12).

Ou seja, as crises do capitalismo se expressam em superprodução de capital e


também (numa distante essencialidade), de mercadorias; superprodução que,
para ser assim designadas, envolve os vários ramos da economia e jamais
serão deflagradas “por subconsumo das massas”. Regime do capital onde
nunca existiu “estagnação” enquanto “modo de ser”, o que deveria ocorrer em
função do “subconsumo das massas”, na era dos monopólios, como
imaginaram P. Baran e P. Sweezy (ver: “O capitalismo monopolista”, 1969).
Como bem explica J. Gorender, em sua conhecida “Apresentação” a “O
Capital”, o que acontece mesmo no desenlace do ciclo econômico não é que a
crise sucede a uma queda do consumo, bem ao contrário, ela sucede a uma
alta de mais acentuado consumo, uma elevação que não é a regra. [6] Quem
afirmara antes e enfaticamente: é “por demais incontestável que Marx recusou
a ideia de que a crise cíclica se desencadeasse por efeito da insuficiência de
demanda solvente (ou demanda efetiva)”
Ainda sobre ao assunto, importa notar que após de escrever o exposto na
epígrafe deste artigo, Lênin, em sua obra clássica “O desenvolvimento do
capitalismo na Rússia” (1899), referindo-se a variadas passagens –
objetivamente passagens que induzem a erros crassos, na medida do não
cotejamento delas com o conjunto completo da obra de Marx sobre a temática
ciclo-crise -, do texto magno de Marx, enfatiza que:
“Marx se limita a por manifestamente aqui uma contradição do capitalismo assinalada
já em outras passagens de O Capital, a saber: a contradição entre a tendência a
ampliação ilimitada da produção e a necessidade de um consumo limitado (a
consequência da situação proletária das massas do povo)” (Lênin, 1898). [7]

78
Cumpre notar aqui: Karl Marx levava em absoluta consideração o caráter
revolucionário do seu Método, assentando nele boa parte dos êxitos de sua
poderosa interpretação teórica. Com efeito, a clara distinção entre investigação
e exposição significava exaustiva e a mais completa possível apropriação dos
dados da realidade em movimento. Vistas as fontes em sua maior completude
possível, a análise se voltava então para as conexões e as formas de
desenvolvimento da matéria anatomizada. Só então passar-se-ia à exposição
(interpretando) os resultados obtidos.
Voltemos, sob esse prisma, ao nosso tema. Hodiernamente, se o “subconsumo
as massas” é a razão central das crises desse padrão de acumulação do
regime do capital financeirizado, isto significa que: 1) se o “subconsumo as
massas” é a razão central das crises, então quanto maior o crescimento do PIB
e do PIB per capita, mais se afastaria a possibilidade das crises no capitalismo
dos nossos dias, certo? Totalmente errado: a Suécia sofrerá em 2009 uma
recessão grave, com queda de 4,2% no PIB (Produto Interno Bruto), a maior
desde o início da Segunda Guerra Mundial; retornará o desemprego em massa
ao patamar de 12% até 2011, de acordo com as previsões do governo (Folha
On Line, 01/04/2009 - 11h09). Ora, a Suécia sempre foi exibida como exemplo
paradisíaco da moderna sociedade burguesa, vangloriando-se de uma renda
per capita recentemente calculada em nada menos que US$ 39,6 mil
(janeiro/2009). Bem, “subconsumo das massas” suecas como causa da crise?
Isto é apenas piada em graça. 2) A Índia, segundo dados oficiais, possui cerca
de 700 milhões de pessoas em condições pobreza, e pouco mais de 300
milhões incluídas entre as variadas camadas médias e burguesas. Entre 1991-
2008, sua taxa de crescimento foi maior que 6%, alcançando em 2006-7, nada
menos que 9,4% de avanço de seu PIB. Por que a Índia, ao invés de ser
submetida a crises econômicas de “subconsumo das massas”, dadas
especialmente as centenas de milhões de pessoas (cerca de 2/3 de sua
população) vivendo em condição de pobreza crônica, cresce vertiginosamente
sua economia a taxas tão elevadas? [8]
3) Finalmente, como se pode insinuar que a crise atual, objetivamente gerada a
partir da débâcle das hipotecas suprime nos EUA, ou seja, uma crise centrada
no capital portador de juros contidos nos título (hipotecas), auxiliada por
residências vendidas aos milhões a uma baixíssima taxa de juros - o grande
móvel de massas norte-americanas para, a partir das hipotecas, inflar
empréstimos para o hiperconsumo (2/3 do PIB dos EUA); movimento esse
revertido e “quebrado”, também pela inédita alavancagem do sistema
bancário-financeiro, reforçada pela especulação derivativa, quer dizer, pela
manipulação de títulos podres e impagáveis de famílias endividadas
astronomicamente para consumir, tudo isso originou uma crise nos EUA “de
subconsumo das massas?”
Exatamente sobre a questão, num esclarecedor artigo, o professor L. Belluzzo
chama a atenção para o fato de o consumo representar mais de 70% da
demanda agregada nos Estados Unidos. Conforme ele explica,
“A economia americana, nos últimos 20 anos, foi impulsionada, sobretudo, pelo
crescimento sem precedentes do consumo das famílias. Nos últimos três anos e meio

79
essa característica da economia americana exasperou-se: o crescimento do consumo
“descolou” [disparou] da evolução da renda, dos salários reais e do emprego. Sua
evolução depende cada vez mais do efeito-riqueza, concentrado, nos últimos anos, na
valorização dos imóveis residenciais”. [9]

Seguramente, é de Lênin – e do ucraniano Túgan-Baranovski - a ideia moderna


de que no capitalismo o que é preponderante é a demanda por meios de
produção (bens de capital; e + ativos financeiros, hoje). As crises não são,
portanto, deflagrada, criadas, originadas pelo “subconsumo das massas” ou por
“superprodução de mercadorias”. As condições de realização da produção
capitalista não são determinadas pelo nível de renda dos trabalhadores ou
consumo das massas. É o investimento capitalista a variante independente e
central na dinâmica capitalista, e por sua vez, é ele quem pode deflagrar a
superacumulação e a superprodução - e as crises concretas.
Dogmatismo, bancarrota do padrão capitalista financeirizado e a posição
dos comunistas
“Deve-se distinguir bem a crise (...) do tipo especial que se chama também de
crise monetária. Estas são crises, cujo movimento se centra no capital
monetário e, por isso, bancos, bolsas de valores e finanças são sua esfera
imediata” (Marx, “O Capital”, Livro 1). [10]
As grandes depressões de 1873-96 e 19299-33 tiveram determinações e
circunstâncias históricas de cenários bastante diferentes da grande crise
capitalista irrompida em agosto de 2007. A nova marcha depressiva não se
imbrica agora com uma II Revolução Industrial, que impulsionou o sistema à
etapa monopolista e reforçou a posição do grande capital industrial e financeiro
no alvorecer do século XX. Até a Primeira Grande Guerra Mundial, expressou,
em resumo, a expansão da grande empresa industrial e bancária,
patrocinadora da voracidade imperialista.
Porém, note-se: depois de um boom no crescimento econômico norte-
americano (1921-28), que se desdobrou à Europa, veio a crise de 1929-33
[Galbraith insiste, com razão, que a periodização correta é 1929-39].
Combinou-se o violento crash financeiro em Wall Street à superacumulação e
superprodução subjacentes. A propósito, não foi também uma crise gestada
pelo “subconsumo das massas” coisíssima nenhuma, muito ao contrário.
Segundo excelente estudo de Frederico Mazzucchelli, a partir de 1922 a
economia americana ingressou em um “ciclo de crescimento virtuoso”: entre
1921 e 1929, o PIB (Produto Interno Bruto) cresceu 45% e a produção
industrial 88%. Analisando as determinações deste ciclo – diz Mazzucchelli -,
ele se sustentou em dois pilares fundamentais: a expansão do crédito; e na
articulação efetiva de uma rede de investimentos interindustriais:
automobilística, malha rodoviária, petróleo, construção residencial e comercial,
bens duráveis domésticos, geração e distribuição de energia elétrica e demais
setores associados a estes. [11]. Por demais evidente: superacumulação,
superprodução, superespeculação expressando-se num crash financeiro.
Reafirme-se então que não estavam dadas, nem à vista, do ponto de vista
sócio-político, as saídas do New Deal (EUA) e do Nazismo (Alemanha).

80
Somente a conflagração bélica mundial forçou a criação de uma nova ordem
global, com os EUA assumindo claramente a posição hegemônica no bloco
capitalista “ocidental” do planeta. Sabidamente, os EUA imperialistas saíram
fortalecidos enquanto potência capitalista, chancelaram a moeda-reserva
internacional e iniciaram a corrida armamentista nuclear - aniquilando
Hiroshima e Nagasaki.
Não é essa a situação circundante à crise atual. Os EUA são uma
superpotência militar, em decadência econômica, social, ideológica e moral,
vis-à-vis a contestação interna e externa que sofrem à sua dominação à base
de mísseis e ocupação neocolonial genocida; vis-à-vis ainda à bancarrota de
seu arsenal ideológico-doutrinário neoliberal: o receituário do comando da alta
finança sobre tudo e todos, em visível despedaçamento. O que não quer dizer,
por enquanto, o seu enterro – mas já se fabricam os caixões funerários
apropriados.
De outra parte, o sistema monetário internacional passou a conviver com o
declínio hegemônico do dono da moeda-reserva, o dólar. No entanto, se a
moeda sofria desvalorização expressiva há seis anos, na crise global viu
crescer nos últimos meses a demanda pelos papéis do governo americano,
que continuam a ser vistos pelos investidores como o refúgio mais seguro -
ainda que sua a taxa de juros tenha chegado próximo a zero! Segundo
informações de abril último do FMI, 64% das reservas internacionais
conhecidas estavam denominadas em dólar no fim de 2008. O governo da
China (com mais de US$ 2 trilhões em divisas), também preocupado com o
risco de que os títulos do Tesouro se desvalorizem (inflação futura,
endividamento público gigantesco), apresentou proposta para um sistema
monetário internacional mais estável e menos dependente do dólar, baseado
nos DES (Direito Especial de Saques. [12]
Em nossas suposições: a) a moeda dos EUA não conseguirá deter a marcha
interrompida de sua desvalorização, dada a deterioração geral de sua
economia e a longa reconstrução de seu sistema financeiro e bancos, em
bancarrota; b) o seu endividamento público, inédito desde a segunda Guerra
Mundial, poderá levar o país ao calote; c) nenhuma moeda, de longe, tem
condições de substituir o dólar, num horizonte presumível: a tendência –
reafirmemos – de médio-longo prazo é um sistema internacional plurimonetário,
com o dólar sendo uma das moedas importantes.
Sob outro ângulo, analistas burgueses passaram a falar agora que a crise
confluirá para uma “década perdida”, no que tange ao crescimento e ao
desenvolvimento econômico, desde o centro do capitalismo, a se espraiar pelo
mundo. Isso representaria, além da recessão, estagnação ou depressão global,
especialmente no “coração do capital”. Por que ainda não se sabe bem como
se soerguerão da tempestade a China e principalmente os chamados BRICs (+
Rússia, Índia e Brasil). Por enquanto, indícios de certa resistência à queda, aí;
mas a crise é profunda e se arrastará penosamente. A situação russa, por
exemplo, sofreu fulminante degradação econômica conjuntural, com intensa
fuga de capitais e esfrangalhamento do rublo; prevê-se acentuada negativação
de seu PIB em 2009.

81
Nesse ambiente, a posição consequente dos comunistas deve ser, no caso
brasileiro, aquela assinalada por Renato Rabelo, presidente do PCdoB,
compreendendo: 1) um movimento “emergencial”: a luta por um “novo pacto
político”, que rompa com a herança macroeconômica neoliberal dos governos
de Lula, e se volte contra a aliança rentista; em defesa do emprego, dos
salários e de investimento e gasto público. Acentue-se que serão dias difíceis,
os que nos esperam. Repõe-se o massacre social sobre os trabalhadores, o
que aponta ser imperioso a defesa do trabalho, em variadas suas formas de
luta, pelos comunistas.
Por outro lado, esse rentismo vem sendo cevado (e metamorfoseado) no
Brasil, na verdade, desde as reformas financeiras de Roberto Campos e
Octávio Bulhões. Agigantou-se desde F. H. Cardoso, a financeirização através
da liberalização financeira quase irrestrita, que veio se estabelecendo até
março de 2005. Eis aí o grande desafio a um autêntico Projeto Nacional de
Desenvolvimento. Sem absolutamente deixar de reconhecer os importantes
avanços em várias áreas, obtidas pelo seu governo, sua coalizão governista e
pela luta – ainda limitada - dos trabalhadores.
2) Vai ficando mais claro, aos olhos dos trabalhadores e dos povos submetidos
ao regime do capital, que esse sistema é não só obsoleto, como superado
historicamente. No plano internacional, as batalhas principais entre a grande
burguesia financeira (e em geral) e as massas proletárias, que já acontecem
deverão, de um lado configurar o grau de “reformas” que só serão impostas ao
capital em longos combates.
Simultaneamente, a ideia de uma crise de civilização da sociedade burguesa
vai se encorpando. O que significa maior proximidade nacional das tarefas que
entrelaçam o caminho da transição ao socialismo. Pois, resguardando-se
sempre as particularidades históricas das nações, vez que a grande crise atual
carrega fortes indícios de exasperação/esgotamento mundial desse processo
expansivo do capital, “a saída de fundo é o socialismo” – afirma Renato
Rabelo.
E noutro enfoque, argumenta Rabelo: “A partir desse pensamento
revolucionário atual, achamos que, no mundo de hoje, nos encontramos ainda
em uma realidade de defensiva estratégica. (...)
Acho que a atual crise do capitalismo, com sua profundidade e extensão, coloca essa
questão, afirmando e dando mais perspectivas à ideia do socialismo. Mas não quer
dizer que, automaticamente, o socialismo já entre nesse quadro de correlação de
forças em uma posição ofensiva. Não reunimos ainda forças para isso. Na realidade, o
nosso desafio, hoje, é acertar qual é o caminho para que possamos chegar a essa
situação de transição”. [13]

Vê-se que nada nessas formulações tem a ver com o “estrategismo”


substitutivo das manobras táticas, dogmatismo principista que persiste vendo o
mundo e a luta de classes sem mediações.
* Publicado em Revista Princípios, Edição Nº 126 Agosto & Setembro 2013
Notas

82
[1] Em: “O desenvolvimento do capitalismo na Rússia”, Apud Mazzucchelli, F.,
2004: 58: “A contradição em processo. O capitalismo e suas crises”, Unicamp,
2004.
[2] Refiro-me particularmente aquele marxismo vulgar sempre a esgrimir – para
aparecer sempre à esquerda - a retórica esquerdista. O que, inclusive,
mereceu de Eric Hobsbawm uma certa tipologia desse vulgarismo. No
excelente “O que os historiadores devem a Karl Marx?”, ele estiliza, a exemplo,
o determinismo econômico [que sustenta, lógico, a teoria da estagnação e “del
derrumbe do capital”]; a visão dos que nunca foram “muito além da primeira
página do Manifesto e da frase ‘a história [escrita] de todas as sociedades até
agora existentes é a história das lutas de classes’” [ou seja, tudo se determina
e se resume em luta de classes e na contradição capital/trabalho]; a
inevitabilidade histórica enquanto leis, eivada da “regularidade rígida e imposta”
etc. E ataca esse marxismo “positivista” que tenta “assimilar o estudo das
ciências sociais aos das ciências naturais”, ou em forçar predeterminações
analíticas que assimilam “o humano ao não-humano” (in: “Sobre história”,
Companhia das Letras, 1998).
[3] Ver: “Crisis económica global. ¿Hasta cuándo?, ¿hasta dónde?”, de O.
Martínez, in: rebelión.org (29/4/2009).
[4] “Esquerdismo, doença infantil do comunismo”, de V Lênin, pp. 84-85, Anita
Garibaldi, 2004.
[5] Ver: “Fundamentos do leninismo”, de J. Stálin, p. 93, Global Editora, s/data.
Mais adiante, Stálin exemplifica a questão na “importância gigantesca que teve
o fato da guerra de morte travada entre os principais grupos imperialista no
período da Revolução de Outubro... imperialistas a guerrear uns contra os
outros, não puderam concentrar suas forças no jovem poder soviético...
precisamente esta circunstância que permitiu ao proletariado erguer-se
inteiramente a organizar suas forças, a consolidar seu poder...” (idem, p. 95).
[6] Ver: Apresentação a “O Capital”, J. Gorender, v. 1., p.LX, Abril Cultural,
1983.
[7] “Observación sobre el problema de la teoria de los mercados”, (Con motivo
de La polémica entre los señores Túgán-Baranovski y Bulgakóv”), de V Lênin,
in: “Sobre el problema de los mercados”, Escritos económicos (1893-1899), p.
210, Madrid, Siglo veintiuno, 1974.
[8] Acrescente-se: um informe governamental estima que 77% da população
trabalhadora da Índia vivem com menos de meio dólar por dia. Ver: “Índia: a
economia cresce, a fome também”, Anuradha Mittal, Portal Terra, 01/10/2008.
[9] Ver: “O consumo americano”, de L. Belluzzo, Portal Terra, 10/10/2008
[10] Em: “O Capital” volume I, p. 116, Nota 99 [à terceira edição alemã], Abril
Cultural, 1983.
[11] Ver: ''Os passos de um gigante: notas sobre os EUA entre a Primeira
Guerra e a Grande Depressão'', de F. Mazzucchelli, in: ''Os anos de chumbo:

83
notas sobre a economia internacional no entre-guerras'', p. 165, 2007, edição
eletrônica.
[12] Considere-se a observação recente do estudioso e ex-consultor do FMI
Barry Eichengreen (Universidade da Califórnia em Berkeley): “Se quiserem
ampliar o uso desse instrumento, alguém terá que subsidiar a formação de um
mercado até que ele ganhe profundidade e liquidez”; e a seguir: ''Os governos,
ou seja, os acionistas do FMI teriam que assumir esse custo, o que exigiria
muitos anos de trabalho” (dados e declarações em: “Valor Econômico”,
02/04/2009).
[13] Ver: “O caminho para a transição ao socialismo”, de R. Rabelo, texto para
o Seminário nacional do PCdoB “Desvendar o Brasil”, São Paulo, 3,4 e 5 de
abril 2009, ainda sem a revisão do autor.

84
Tendências do capitalismo contemporâneo*
Estagnação crônica do crescimento econômico especialmente no capitalismo
desenvolvido, [1] queda da produtividade do trabalho, endividamento público e
privado ascendente, persistência do processo de financeirização capitalista
global, desigualdade social galopante e agravamento do desemprego
estrutural. Fenômenos da era neoliberal entrecruzados com a passagem a uma
nova revolução industrial. Alterações estruturais na dinâmica da acumulação do
capitalismo neoliberal sugerem a reconfiguração uma nova fase da etapa
imperialista.
Neoliberalismo: conceito e crise – um debate
O neoliberalismo pode ser conceituado como um programa da economia
política neoclássica de da era do capitalismo financeirizado. Representa-se
numa plataforma dirigida pelo poderio do grande capital financeiro patrocinador
da explosão do capital fictício, sendo central o capital portador de juros.
O neoliberalismo envolve um padrão de acumulação que se desenvolve a partir
da crise dos anos 1970, alicerçado: a) no padrão dólar-flexível desde 1971; b)
na flutuação das taxas de câmbio, desde 1973; c) e na elevação drástica da
taxa básica de juros pelo Fed em 1979, para recompor a hegemonia do poderio
econômico do imperialismo norte-americano.
Esse programa foi paulatinamente estruturado, inicialmente pela Inglaterra e os
EUA, de modo a materializar políticas globais de: (i) desregulamentação e
liberalização financeiras; (ii) as privatizações de empresas estatais e públicas;
e (iii) a abertura comercial internacional e desnacionalização generalizadas.
Outrossim, no debate que vem prosseguindo e conforme se consolidava os
elementos do ideário constitutivo da globalização neoliberal e financeira, deve-
se reter substantivamente o que segue.
Para o economista E. REINERT a globalização neoliberal tem como pano de
fundo a teorização do prêmio Nobel Paul Samuelson (1949), que defendeu ser
o livre comércio internacional o fator principal de “equalização de preços dos
fatores” (capital e trabalho), que assim, tenderiam a ser iguais em todo o
mundo. [2] Samuelson atreveu-se a provar “matematicamente” o fenômeno, diz
REINERT, quando hoje comprova-se fartamente o desastre. E o que levou o
Ocidente à confusão e à desordem atuais foi uma teoria econômica que
abdicou de estudar aspectos fundamentais da dinâmica capitalista, inclusive a
dinâmica da tecnologia e das crises financeiras, escreve o economista
(Posfácio, 2016).
Numa outra confluência, P. ANDERSON e R. BRENNER chamam a atenção
para o ataque cerrado que a ascensão neoliberal assestou no Estado e no
movimento sindical, notadamente advinda da queda da lucratividade que
passou a atravessar o capitalismo central desde o final do 1960. Para
ANDERSON, ademais, o proselitismo reacionário de F. Hayek, contra a
“servidão moderna” do pós-guerra ocupou lugar central na “ideologia do
neoliberalismo”. Segundo BRENNER, desde o final dos anos 70, instala-se a

85
dominação crescente do capital financeiro; as políticas neoliberais visam
garantir, proteger e expandir o campo de lucros para o capital financeiro e as
multinacionais, e garantir os interesses do capital financeiro implementou-se às
expensas das bases da economia, em geral, e da classe trabalhadora, em
particular. [3]
Também de acordo com o sociólogo francês P. BORDIEU, a teoria do
neoliberalismo “é pura ficção matemática”, fundada desde o início numa
“abstração formidável”. Sua concepção estreita e estrita da racionalidade como
racionalidade individual vinculam-se às condições econômicas e sociais das
orientações racionais “e as estruturas económicas e sociais que condicionam a
sua aplicação”. [4] O programa neoliberal - analisa ele - deriva o seu poder
social do poder político e econômico, daqueles cujos interesses expressa:
acionistas, operadores financeiros, industriais, políticos conservadores e
sociais-democratas que foram transformados nos subprodutores tranquilizantes
do laissez faire, altos funcionários financeiros decididos a impor políticas que
procuram a sua própria extinção.
“Uma nova razão do mundo”, é a formulação síntese alcançada pelos
pesquisadores P. DARDOT e C. LAVAL, [5] onde o neoliberalismo abrangeria
mais vastamente: a) a conquista do poder político pelas forças neoliberais; b) o
rápido crescimento do capitalismo financeiro global; c) a individualização das
relações sociais às expensas das solidariedades coletivas; d) a polarização
extrema entre ricos e pobres; e, e) o surgimento de um novo sujeito, o
desenvolvimento de novas patologias psíquicas. Assim, o neoliberalismo seria,
“longe de limitar-se à esfera econômica”, integrador de “todas as dimensões da
existência humana”.
Segundo os economistas G. DUMENIL e D. LEVY, o neoliberalismo não
poderia ser definido abstratamente como “geral”, vez que ele é seria diferente
nos EUA e Europa, daquele existente no Japão, etc. Correspondendo
fundamentalmente à reafirmação do poder da finança, ainda que ele conteria:
a) tendências em mudanças técnicas e rentabilidade; b) em estruturas de
classes; c) em formas de poder estatal; d) em quadros institucionais etc.
Contraditoriamente, acreditam esses pesquisadores marxistas que o
neoliberalismo é um “novo estágio do capitalismo”, caracterizado por uma
estratégia das classes capitalistas aliados aos administradores de alto escalão
do setor financeiro, para reforçar sua hegemonia e expandi-la pelo mundo. [6]
A crise iniciada em 2007-8 seria assim uma “crise do neoliberalismo”.
P. GOWAN, [7] entretanto, nos dá uma visão bastante precisa do processo de
espraiamento do neoliberalismo, no sentido que ele veio conformando o
“programa” acima referido e caracterizando sua subordinação à “globalização
financeira”. O primeiro ato do governo Thatcher foi liquidar os controles
britânicos sobre as movimentações financeiras (1979); em 1981 foi a vez do
Conselheiro F. Hollande seguir a britânica; H. Kohl igualmente o fez logo ao
tomar posse (1982); em 1984 aparece a ideia de Mercado Único Europeu que
sobretudo alavancou a remoção dos controles da movimentação financeira em
toda a Europa Ocidental; a Dinamarca liberalizou as finanças em 1988, assim
como o fez a Itália; em 1989 a França abandona gradualmente o controle da

86
conta de capitais. Durante toda a década – relata GOWAN - de 1980 os
Estados Unidos pressionaram o Japão “com algum sucesso” para liberalizar as
restrições de saída e entrada de fundos, “um passo importante para o aumento
do tamanho e do peso dos mercados financeiros anglo-americanos”.
Não só. O neoliberalismo é entronizado com uma mudança radical do Sistema
Monetário Internacional. Desde 1980 o dólar deixa de ser um padrão de valor
tradicional dos regimes monetários pré-existentes (ouro-libra e ouro-dólar). Mas
passas a cumprir sobretudo o papel mais importante de “moeda financeira”
num sistema desregulado e de paridades cambiais inexistentes, ademais de “o
valor do dólar é fixado pela taxa de juros norte-americana”, a referência básica
do sistema financeiro global, na medida em que ao EUA mantém a sua dívida
pública “como título de segurança máxima”, afirmaram TAVARES, M e FIORI,
L. [8]
O historiador marxista E. HOBSBAWM [9] advertira que a “globalização
acompanhada de mercados livres” trouxe consigo uma “dramática acentuação”
das desigualdades econômicas e sociais nas nações e entre elas. Embora a
pobreza extrema geral estivesse diminuindo não havia sinais que tal
polarização não continuasse, assim como ela deveria ser considerada na base
de importantes tensões sociais e políticas no começo do século XXI. Para ele,
na “era do neoliberalismo” estabeleceu-se uma “época gloriosa das finanças
especulativas internacionais”, onde se calcula as atividades das empresas
“nem mesmo em um ano”, implicando no abandono dos “valores” que
construíram a grande empresa capitalista do pós-2ª Guerra: insegurança
permanente e mudança contínua de trabalhadores e administradores.
L. BELLUZZO, por sua vez, ressalta o caráter eminentemente especulativo e
de criação contábil de capital fictício desse capital financeiro, universal, na
medida em que a sua capacidade mobilizadora de grandes massas de capital-
dinheiro força “a supressão de barreiras tecnológicas e de mercado”. A
desregulamentação e a liberalização dos mercados financeiros e cambiais
iniciaram-se antes - “desde meados de 1960” - da ruptura ao sistema Bretton
Woods e contribuíram para a sua derrocada. Assim, os mercados financeiros
contemporâneos apresentam grande inclinação para episódios de euforia e de
alavancagem imprudente, ante uma “extrema sensibilidade aos riscos de
contração súbita da liquidez”. [10]
Fases da crise: uma periodização
A distinção que podemos – e devemos – fazer são as fases dessa crise, e das
características que aparecem na iniciada 2007-2008.
1. Ela surge como a explosão na chamada bolha financeira das hipotecas
subprime (agosto de 2007), e não antes ou depois. Teve influência significativa
no colapso do próprio banco Lehman Brothers, em setembro de 2008, lotado
de hipotecas inadimplentes “empacotadas” por outros serviços bancários, e
abençoadas pelo sistema financeiro sombra (shadow financial system). Aliás, o
liberal Paul Krugman reeditou um livro, atualizado em 2009, chamado
exatamente “A crise de 2008 – e a economia da depressão”. Ele já remete aí
ao shadow banking system – banco-sombra –, ou ao processo que ficava

87
submerso com essas mudanças que ocorreram notadamente desde a
generalização e implosão espetacular doas chamadas “inovações financeiras”
do neoliberalismo.
2. Como sabemos, em setembro de 2008, quando da falência do baco Lehman
Brothers, o sistema financeiro internacional colapsou completamente. Ou seja,
nesse ano a crise se torna sistêmica, isto é, quando houve interrupção abrupta
do financiamento o movimento do capitalismo globalmente. Do centro à
periferia. Todo o financiamento da economia capitalista mundial sofreu
abruptamente o chamado credit crunch, um estancamento ou ruptura do crédito
internacional. Configura-se aqui uma segunda fase da crise global.
3. Após o “crash”, podemos visualizar uma outra fase de impacto, que é a
chamada crise das dívidas soberanas na Europa, concentradamente em 2009-
2010. Ela foi o resultado de todas essas políticas “terapêuticas” que nós
acompanhamos desde 2007: os bancos centrais financiando a crise socorrendo
os grandes bancos – “grandes demais para falir”, diziam – com uma trilhonária
injeção de dólares. Uma montanha inimaginável de dinheiro que nunca se viu
em nenhum momento no capitalismo, considerando-se o próprio
desenvolvimento do papel da finança, e mesmo da descrita incontrolável
proliferação do capital fictício. Esse debate vai e volta na comparação com a
catástrofe e a distinguindo da Grande Depressão de 1930.
4. Podemos afirmar que, já a partir de 2011 uma outra fase da crise global se
expandiu fortemente para a América Latina, em especial. Para a CEPAL
(ONU), a fraqueza da economia mundial, causada principalmente pelas
dificuldades que enfrentam Europa, Estados Unidos e China, “incidiu no
crescimento da região”, informava seu Estudo Econômico da América Latina e
do Caribe 2012. (http://exame.abril.com.br/economia/cepal-crescimento-da-al-
se-desacelerara-ate-3-2-em-2012/). Em julho de 2016, a organização ainda
informava que os países da América Latina e do Caribe apresentariam uma
retração em seu produto interno bruto (PIB) de - 0,8% em 2016, queda maior
que a observada em 2015 (-0,5%), com um comportamento muito heterogêneo
entre países e sub-regiões. (http://www.cepal.org/pt-br/comunicados/cepal-
recuperacao-crescimento-america-latina-caribe-depende-dinamismo-
investimento )
Teoricamente, é fundamental ter sempre em conta que:
Do ponto de vista do marxismo, sobre a base da superprodução ou
superacumulação de capitais (máquinas, equipamentos, instalações,
matérias-primas, ativos financeiros), a crise se instala quando da parada
súbita que interrompe o ciclo da realização capitalista, quer dizer, a
dinâmica cíclica do investimento. Noutras palavras, as crises no
capitalismo não podem ser separadas da regularidade de sua dinâmica
expansiva. O capitalismo, segundo Marx, objetiva produzir em
larguíssima escala, até superproduzir capital. Quer dizer, sobreinvestir
para fazer crescer a produtividade social do trabalho e suplantar a
concorrência; superproduzir para superlucrar, superacumulando capital

88
em excesso e em todas as suas formas, referenciando-se numa dada
taxa média de lucro.
Expansão da liquidez, “bolhas”, crise financeira
No caso da crise das “dívidas soberanas” na Europa têm-se tudo a ver com os
títulos e as dívidas públicos, quando os bancos centrais passaram, na verdade,
a cobrir o buraco financiando a banca privada, à custa do Estado e do povo.
Outro fenômeno revelador da imensa fragilidade da teoria dos mercados
autorregulados: eles se equilibram ou se autorregulam e tentam resolver as
crises com essa intervenção avassaladora do Estado! Quer dizer, falácia e
enganação.
Ora, praticaram políticas e operações que nunca tiveram precedentes na
história do capitalismo. Noutras palavras, da execração e do ataque cerrado ao
Estado em geral passou-se à manipulação descarada das finanças públicas
estatais para salvar bancos e financistas do desastre por eles criados! Mais
uma vez: os teóricos do mercado autorregulado passaram cerca de 30 anos
dizendo que tinha que ser tudo desregulamentado e a economia protegida
pelos mercados, quando veio uma crise gigantesca e o Estado veio mostrando
o alargamento intervencionista do próprio Estado, com endividamento
extraordinário, crescente e simplesmente impagável hoje.
Se analisarmos as referências do endividamento dos bancos e do
endividamento dos Estados europeus antes de 2007-8, e em 2016, vemos que
ele foi se multiplicando e não parou. Houve um processo de agigantamento
dessas dívidas. Continua crescendo e provocando um endividamento
extraordinário: 270% do PIB (Produto Interno Bruto), no Japão; 170% na Itália;
106% nos EUA; na Grécia, em Portugal e na Espanha mais que dobrou.
Em que estágio estaríamos nessa crise? Nessas fases de 2007, 2008, 2009-
2010 e 2011-12, há bastante nitidez de que nada do que foi feito pelos Bancos
Centrais, por meio dessas injeções trilionárias e criação de outros mecanismos
que os americanos inventaram, é novidade, pois após o Fed (BC dos EUA) e
os BC da Inglaterra (2007) que utilizaram primeiro o Quantative Easing (QE) ou
“flexibilização quantitativa, seguiu-se o Japão, e depois o Banco Central
Europeu. Significa – a “flexibilização quantitativa” - simplesmente que o próprio
governo passa a comprar títulos dos seus Tesouros, e outros ativos, injetando
o dinheiro em setores da na economia. Objetivamente, monetizar esse dinheiro
no mercado e dispô-lo para compra e para especulação financeira no mundo
inteiro. Por isso também que as “bolhas financeiras” voltaram.
Houve um processo de expansão gigantesco, não só de expansão da chamada
liquidez, mas a multiplicação de riqueza financeira fictícia. Ao invés, no entanto,
de se resolver o problema da queda violenta nos investimentos à produção,
voltou-se novamente para a esfera financeira, de uma forma incontrolável. Não
satisfeitos com esse negócio, os bancos centrais passaram a fazer taxa de juro
zero. Na Europa, estava em torno de 2%, na época. E o processo da crise de
2009-2010 resultou em taxa de juros zero. Note-se abaixo o gráfico com dados
bem recentes acerca das taxas de juros de longo prazo

89
Isso se generalizou, porque passou a haver um processo de ampliação da
concorrência financeira, impulsionada na ascensão neoliberal, no sentido de
que se cai a capacidade de comprar dinheiro para investir em tal moeda ou
ativo, e se eles se depreciam, outros passam a fazer o mesmo. Não satisfeitos
com isso, os juros passaram a ser negativos. Inclusive implicando perdas para
o sistema bancário-financeiro, por causa do mecanismo que estabelece o
processo de empréstimos com a taxa de juros negativos sobre títulos dos
governos, que seriam ressarcidos por uma tal taxa de juros, que virou negativa.
Assim, em fevereiro de 2016 possuíam juros negativos, além do Japão, em
alguns de seus títulos ou como taxa principal de referência, o Banco Central
Europeu (BCE), o BC da Suécia, da Suíça e da Dinamarca. Segundo a cálculos
do banco J.P. Morgan, há hoje cerca de US$ 6 trilhões em títulos públicos com
juros negativos. Esse montante dobrara em apenas dois meses; e em meados
de 2014, ainda não havia nenhum bônus de dívida soberana com rentabilidade
abaixo de zero. (http://oglobo.globo.com/economia/aumenta-numero-de-paises-
com-juros-negativos-18641745#ixzz4Yy4xHt1g)
Três meses após, em maio de 2016, o primeiro-ministro japonês, na reunião do
G7, deu uma entrevista ao jornal “Le Monde”, dizendo o seguinte: “Nova crise
global financeira está no horizonte”. Já banqueiro e professor francês Patrick
Artus disse que a crise de 2007-2008 levou a um estado de “crise financeira
permanente” na economia mundial. Em entrevista
(http://www.valor.com.br/financas/4553953/loucura-dos-bcs-infla-bolha-do-
mercado-de-bonus-diz-professor ), fala num livro sobre o assunto, intitulado “A
loucura dos bancos centrais”, Artus disse o seguinte: “Hoje, há um excesso de
liquidez de circulação, onde a base monetária do mundo, ou a liquidez criada
pelos bancos centrais, é de 23 trilhões de dólares, comparada a 2 trilhões de
dólares, há 20 anos. E essa liquidez, criada pelos Bancos Centrais, representa
cerca de 30% do PIB mundial hoje. Era 6% no final dos anos 1990”.

90
Nessa direção L. Belluzzo (http://www.ceapetce.org.br/noticias/a-nova-bolha-
os-mercados-financeiros-afogam-se-em-liquidez-e-o-investimento-seca/)
escreveu num artigo, antes da entrevista desse Patrick, na qual ele diz o
seguinte: “Em 2008, a bolha de bonds, de títulos, ações, era de 80 trilhões de
dólares, hoje supera 100 trilhões de dólares. O mercado de derivativos, que
usa essa bolha como colateral, supera 555 trilhões de dólares”. A conclusão
dele, e de muitos outros pesquisadores, é a de que estamos próximos a uma
nova crise financeira. E, como disse enfaticamente Patrick, essa nova crise
financeira no horizonte será pior do que a de 2008.
Decadência e embuste neoclássico

Importantes questões estruturais dos ciclos-crises recentes do capitalismo são


dedutíveis nas formulações de ideólogos do pensamento econômico do
mainstream como Mohamed El-Erian (2011), para quem o crescimento
econômico mundial passa a viver “um novo normal”; como por Larry Summers,
ex-secretário do Tesouro dos EUA, onde, a partir do fracasso da economia
americana alcunhou de “estagnação secular” o atual estágio do afundamento da
economia global (2013); e, no final de 2014, Cristine Lagarde, diretora-gerente
do FMI dissertou estarmos vivenciando “uma nova mediocridade”.

Essa nova onda de aparente “catastrofismo” – uma profecia degenerada da


teoria neoclássica - advinda desses credenciados porta-vozes da doutrina
neoliberal, somente aparece após a devastação resultante da grande crise
iniciada em 2007-8. Revela a hipocrisia concentrada da ideologia do “amor do
dinheiro” (Keynes), que sequer disfarça uma explicação oportunista do próprio
fracasso.

A propósito da irresolução da grande crise capitalista atual e seus horizontes


turvos, recente manifestação do economista Stanley Fischer (vice-presidente do
Fed (Banco Central os EUA) não deixa margem de dúvida sobre a decadência
estrutural da economia dos EUA. De que a questão de sua recuperação é muito
mais problemática do que imaginam os poucos apologistas que restam –
exceção feita ao caso de vassalagem explícita por economistas brasileiros. Para
Fischer, uma série de desafios de “longo prazo” revelam que a economia
americana, a qual permanece atolada em um baixo ritmo de expansão, com o
que diz ser taxas de juros reais de equilíbrio menores e um padrão de reduzido
crescimento da produtividade - dissertou em discurso preparado para
apresentação no Conselho de Relações Exteriores. “Esta não tem sido uma
recuperação econômica feliz”, afirmou Fischer. “O desconforto com a economia
reflete um número de desafios de longo prazo”, acrescentou. E citou, em
particular, o envelhecimento da população e a desaceleração do ritmo de
crescimento da produtividade. (“Recuperação econômica dos EUA não tem sido
feliz, avalia vice do Fed”, Valor Econômico, 21/12/2016).

91
O factual é que o crescimento do PIB real per capita está desacelerando, tanto
nas economias capitalistas avançadas como nas chamadas emergentes; mas
não este crescimento examinado empiricamente em perspectiva histórica. A
China socialista, o grande motor da expansão econômica desde a crise
financeira deflagrada pelo colapso das hipotecas subprime, também está
desacelerando, embora controladamente; o que integra a política econômica do
Estado chinês. Ocorre que, sendo provável que a economia dos Estados
Unidos reduzirá mais ainda o ritmo lento de crescimento, será muito difícil
evitar uma nova crise mundial. Para Instituto Global McKinsey, nos espera uma
“turbulência global” (2016).

Também segundo o FMI (setembro 2016) a economia mundial necessita uma


ação coordenada para “contrarrestar a desaceleração renovada”. Para o Fundo
registrar-se-á em 2016 o pior desempenho em matéria de crescimento
econômico mundial desde 2009. Alerta o FMI que é, preciso agir para “acabar
com a preocupação generalizada de que os políticos pouco podem fazer
quando se enfrenta a um círculo vicioso de (muito) baixo crescimento, (muito)
baixa inflação, taxas de juros próximas a zero, e altos níveis de dívida”.
Endividamento esse em evolução e incontestavelmente ilustrado abaixo (2014).

Financeirização sistêmica incontornável

Entretanto, bem recentemente dados do FMI asseguram que a pilha de débitos


globais atingiu o recorde de US$ 152 trilhões, ou 225% do PIB mundial. Dois
terços deles, ou US$ 100 trilhões, são do setor privado. “O elevado débito

92
privado não apenas aumenta as chances de uma crise financeira como
também dificulta o crescimento, pois devedores muito endividados
eventualmente diminuem seu consumo e investimento”, em um círculo vicioso
interminável.

Ademais, os técnicos do FMI olharam para o passado (27 episódios em


economias ricas entre 1980 e 2006) e constataram que a desalavancagem
levou em média 5 anos. Assim, tomando como ponto de partida 2009, o FMI
constatou que a resolução do problema deveria estar bem avançada. Não está:
a redução das dívidas privadas foi de apenas um terço em relação aos
precedentes históricos e os níveis de endividamento agora “são
significativamente maiores”. (Valor Econômico, Editorial, “Endividamento em
alta ainda ameaça a economia global”, 16/10/2016)

Conforme ainda o relatório UNCTAD (ONU, setembro 2016) que acompanha


as economias dos chamados países em desenvolvimento chegou à conclusão
de que o mundo está a ponto de “entrar numa terceira fase da crise financeira”.
Alerta para os altíssimos níveis do endividamento das empresas nessas
economias; que o crescimento econômico global permanece fraco, ou uma
taxa abaixo de 2,5%; do comércio mundial idem, que diminuiu drasticamente
para cerca de 1,5% em 2015 e 2016, em comparação com 7% antes da crise.
Assim, o fenômeno dos ciclos e crises mais recentes se caracterizariam por
estagnação prolongada e o enraizado processo de financeirização da riqueza
capitalista.

Na mesma direção vão declarações recentes do presidente do Banco Central da


Inglaterra. Conforme assinalou Mark Carney (05/12/2016), nos últimos 10 anos o
resultado da dinâmica da crise, falando suavemente – diz - os resultados das
economias avançadas durante os últimos dez anos tem sido uma contínua
decepção. Porque a ansiedade sobre o futuro aumentou – alinha -, a
produtividade não se recuperou e os salários reais estão por baixo faz uma
década, algo que ninguém entre os vivos havia conhecido antes. “As pessoas
se queixam de queda nos salários, precariedade no emprego, corporações
apátridas e desigualdades impressionantes”, concluiu Carney.
(http://www.sinpermiso.info/textos/mark-carney-las-notas-de-marx-y-la-decada-
perdida )

De acordo com L. Coutinho, com efeito, o valor do estoque global de ativos


financeiros (ações, títulos públicos, títulos privados bancários e corporativos,
créditos securitizados) que alcançara US$ 192 trilhões em 2007, caiu para US$
168 trilhões no fim de 2008, no ápice do sufoco do sistema bancário, mas
praticamente voltou ao nível pré-crise já no fim de 2009. De 2010 em diante, a
riqueza financeira global inflou paulatinamente, atingindo estonteantes US$ 232
trilhões no final de 2014!

93
Simultaneamente, o mesmo Patrick Artus, explica didaticamente: 1) antes,
uma bolha imobiliária criou efeito de riqueza que estimulou o consumo; 2)
atualmente, a bolha dos bônus fez baixar os juros para as empresas e os
governos; 3) mas “uma bolha sempre explode”: como já assistimos, em certo
momento os agentes econômicos se desembaraçam de ativos muito caros “e
isso explode”; 4) quem pegou emprestado “vai, com a alta de juros, pagar bem
mais caro por suas dívidas”.

Produtividade e paradigma tecnológico

Examinando-se a crise sob o ângulo estrutural, o economista norte-americano


Robert Gordon – em livro elogiado de Satanás a Jesus Cristo!
http://press.princeton.edu/quotes/q10544.html ) - afirma que as novidades
criadas pela revolução da internet não aumentam a produtividade da economia
e empalidecem diante dos avanços trazidos pelo século XX. Há 50 anos
pesquisando a temática, as conclusões de Gordon são expostas no livro The
Rise and Fall of American Growth (Ascensão e Queda do Crescimento
Americano): “As invenções de hoje têm um impacto mais restrito que o
surgimento do automóvel ou do ar-condicionado”, afirma Gordon.
Olhando a produtividade da economia dos EUA desde 1870, para Gordon os
resultados são incontestáveis: a) nas cinco décadas entre 1920 e 1970, o
crescimento da produtividade devido à inovação foi quase três vezes maior do
que no período seguinte; b) houve uma década, entre 1994 e 2004, em que a
revolução digital deu sinais de que entregaria a sua promessa, mas depois
disso os ganhos de produtividade caíram novamente; c) por isso seria preciso
concluir que as tecnologias processadas entre “1920 e 1970 tiveram um
impacto transformador mais profundo na economia e em nossos padrões de
vida do que o computador e as tecnologias de informação que definem nossa
época”.
Ainda, num estudo (2012) sobre as revoluções industriais, Gordon concluíra
então que, se, 1) motor a vapor e ferrovias, que são de 1750 a 1830; 2)
eletricidade, motor de combustão interna, água encanada, petróleo e indústria
química, de 1870 a 1900; 3) computadores, internet e celulares, de 1960 até
hoje, “a segunda revolução foi a mais importante: teve consequências até os
anos 1970, com aviões, ar condicionado, autoestradas e urbanização”. A
internet não teria tido o mesmo sucesso: nos anos 1970, o crescimento médio
da produtividade nos EUA teve uma queda brusca de quase 2% ao ano para
0,8%, o padrão das últimas décadas; exemplo seria o próprio Boeing 707, que
é de 1958.

De acordo comum sua pesquisa, embora no início a terceira revolução até


tenha trazido mais produtividade - processamento de dados no setor bancário,
por exemplo -, as inovações ao longo do tempo foram voltadas mais para o

94
entretenimento e as comunicações pessoais do que para os processos
produtivos. Até porque, diz Gordon, “a maioria das invenções recentes da
informática não trouxe transformações fundamentais, mas miniaturização; o
iPhone, por exemplo, só junta funções que laptops e celulares antigos já
tinham”.

A propósito, o economista Eleutério Prado, quem pesquisa o estudo de


Gordon, apresenta a seguinte correlação entre as tendências mais longas para
a produtividade nos EUA e Grã-Bretanha, vis-à-vis o movimento das
revoluções industriais.
(https://eleuterioprado.files.wordpress.com/2015/04/perscrutando-o-horizonte-
histc3b3rico-do-capitalismo.pdf)

Em seu desenvolvimento, ocorre que a produtividade norte-americana parecia


ter voltado a crescer, exibindo uma média de crescimento anual da produtividade
no setor empresarial não-agrícola de 2,5% entre 1991 a 2007. No entanto, ao
longo dos anos 2010 a 2014, o crescimento anual da produtividade dos EUA
caiu para uma média de 0,9%. “Uma grande revisão de dados mostra que o
renascimento da produtividade nos Estados Unidos parece estar em sérios
apuros”, afirma Renato Inkatli. (http://parallaxis.com.br/o-paradoxo-da-
produtividade-o-desafio-de-mensurar-a-produtividade-na-era-das-tic/)

95
Com efeito, nos EUA, se o Bureau of Labor Statistics estima que a duração da
semana de trabalho média tem se mantido estável, em cerca de 34 horas, desde
o advento da internet há duas décadas, nada – continua Inkatli - poderia estar
mais longe da verdade: os trabalhadores do conhecimento trabalham
continuamente fora do escritório tradicional, verificando seus e-mails, atualizando
planilhas, escrevendo relatórios, e em reuniões de brainstorming (técnica de
discussão em grupo) os trabalhadores do conhecimento, ou de colarinho branco,
que são a maioria dos trabalhadores em economias avançadas – estão agora
inconscientemente presos a seus locais de trabalho, essencialmente, 24 horas
por dia, sete dias por semana, uma realidade que não se reflete nas estatísticas
oficiais – enfatiza o economista.

Crises e revoluções industriais: enfoques e efeitos

Se a Primeira Revolução Industrial deve ser periodizada entre 1760 e 1840, de


outra parte, é relevante lembrar aqui que, nos novos estudos sobre a teria de
Marx e Engels, destacadamente dos pesquisadores da nova MEGA (Marx e
Engels – obra completas), encontram-se vários cadernos em que Marx
examinou detalhadamente as crises capitalistas de 1848, 1857, 1866 e 1872.
Crises capitalistas que ocorreram exatamente no processo que antecedeu a
passagem da primeira revolução industrial para a segunda!

Por suposto, na transição estrutural seguinte, a partir da década de 1870


iniciava-se o desenvolvimento do movimento explosivo que foi denominado de
Segunda Revolução Industrial. Dando lugar a novos ramos de produção, vai
sendo gestado um novo padrão tecnológico - do aço, da eletricidade, do motor a
combustão interna, da química pesada etc. essa nova tecnologia já não era
produzida e difundida por homens práticos, mas resultava da aplicação
consciente de conhecimentos científicos nos processos produtivos.

Note-se bem: a 1ª grande depressão (1873-1896) era uma fase de transição


entre a etapa concorrencial do capitalismo e a monopolista. Apesar dos avanços
no processo de centralização de capitais, os monopólios ainda não eram
generalizados e as empresas individuais típicas do capitalismo concorrencial
ainda dominavam a estrutura econômica. Fundamental assim compreender:
também o novo padrão tecnológico ainda não era dominante, com a exceção do
aço, cuja produção supera a do ferro no período. Assim, os ramos da produção
baseados na antiga tecnologia dominavam a economia no momento em que
estavam ainda em gestação os setores ligados ao novo padrão técnico.

E, atenção: nesse movimento de centralização de capitais, de fusões,


combinações etc, os bancos passavam a assumir um papel central, dada sua
posição estratégica de monopolizadores de crédito. A pesquisa tecnológica
começava a ser desenvolvida no próprio interior das grandes empresas que

96
surgiam, e agora o capital assalariava cientistas e técnicos, e buscava
deliberadamente as inovações. Dessa forma, a inovação tecnológica passava a
ser resultado do planejamento e de pesquisas, e não mais produto da ação
individual.

Por tais razões é que, para a caracterização da passagem à etapa monopolista


do capitalismo, Lênin (“O imperialismo, fase superior do capitalismo”, 1981)
parte da identificação da transformação estrutural pela qual passava o regime
de produção nos países avançados, e situa a mudança básica no grau atingido
pela concentração da produção. Após demonstrar como a livre concorrência
engendrava organicamente o monopólio:

1. décadas de 60 e 70, ponto culminante de desenvolvimento da livre


concorrência. Os monopólios são ainda germens apenas perceptíveis. 2.
Depois da crise de 1873, longo período de desenvolvimento dos cartéis,
os quais constituem ainda uma exceção, não são ainda sólidos, ainda
representam um fenômeno passageiro. 3. Auge de fins do século XIX, a
crise de 1900 a 1903: os cartéis convertem-se em uma das bases da vida
de toda economia. O capitalismo transformou-se em imperialismo,
assevera Lênin.

Numa rápida consideração sobre a Terceira Revolução Industrial, iniciada por


volta de 1960, Luciano Coutinho em estudo pioneiro no Brasil analisava o
fenômeno do novo paradigma tecnológico, assinalando: 1) amplo espectro de
aplicação em bens e serviços; 2) oferta crescente e suficiente para suprir a
demanda na fase de difusão acelerada; 3) rápida queda dos preços relativos
dos produtos portadores das inovações, reduzindo continuadamente os custos
de adoção destas pelos usuários; 4) fortes impactos conexos sobre as
estruturas organizacionais, financeiras e sobre os processos de trabalho; 5)
efeitos redutores generalizados sobre os custos de capital e efeitos
amplificadores sobre a produtividade do trabalho.

Ainda, para Coutinho, as tendências então plasmadas expressariam: a) o peso


crescente do complexo eletrônico; b) um novo paradigma de produção
industrial – a automação integrada flexível; c) revolução nos processos de
trabalho; d) transformação das estruturas e estratégias empresariais; e) as
novas bases da competitividade; f) a “globalização” como aprofundamento da
internacionalização; e g) as “alianças tecnológicas” como nova forma de
competição (“A terceira revolução industrial e tecnológica: as grandes
tendências de mudança”, Revista Economia e Sociedade, 1992).

Noutra outra linha de atualização teórica sobre as transformações dos sistemas


industriais modernos, em seu consagrado estudo “Revoluciones tecnológicas y
capital financiero. La dinámica de las grandes burbujas financieras y las épocas
de bonanza” (2004), a pesquisadora Carlota Pérez (Harvard) conclui que,

97
impulsionando a mudança do paradigma tecno-econômico estão as indústrias
como núcleo de cada revolução técnico-científica, que podem ser agrupadas
em três categorias principais:
 Os ramos industriais motores, produtores de insumos chave de uso
quase universal: os semicondutores hoje, o petróleo e os plásticos da
onda anterior, o aço barato na terceira revolução industrial, o carvão na
segunda, e a energia hidráulica (moinhos de água e transporte por
canais) na primeira.
 Os ramos vetores, são as usuárias mais visíveis e ativas do insumo
chave e representam os produtos paradigmáticos da revolução. São os
ramos industriais que difundem a “a notícia” sobre as novas
oportunidades: os computadores, os programas (software) e os
telefones celulares de hoje; os automóveis e artefatos elétricos na
quarta revolução, os vapores de aço na terceira, os trens ferroviários
com motores a vapor na segunda, e a maquinaria têxtil na primeira.
 As infraestruturas, que tecnologicamente formam parte da revolução,
deixam sentir seu impacto definindo e expandindo as fronteiras de
mercado para todas as indústrias: a internet hoje, as rodovias e a
eletricidade na quarta, a rede mundial de transportes na terceira
(ferrovias continentais rotas e portos para os navios a vapor), as
ferrovias nacionais na segunda, e os canais na primeira.
Utilizando-se de uma periodização diferenciada, Pérez apresenta o
seguinte e amplo quadro das grandes transformações nas bases técnicas
do capitalismo:

98
No configurar da nova revolução industrial, e na caracterização do ideólogo
neoliberal Klaus Schwab (“A quarta revolução industrial”, Edipro, 2016), a
chamada Quarta Revolução Industrial ou Indústria 4.0 processa uma fusão de
tecnologias, borrando as linhas divisórias entre as esferas físicas, digitais e
biológicas. Na qual se configura a inteligência artificial, a robótica, a impressão
3D, os drones, a nanotecnologia, a biotecnologia, a estocagem de dados (Big
Data) e de energia, os veículos autônomos, os novos materiais, a internet das
coisas, etc.

Schwab acrescenta que, no entanto, a segunda revolução industrial precisa


ainda alcançar 17% da população do planeta, pois cerca de 1,3 bilhão de
pessoas não têm acesso à energia elétrica. Em relação à segunda R.I., mais da
metade da população não têm ainda acesso à internet ou cerca de 4 bilhões de
pessoas. Mas, se o tear mecânico levou quase 120 anos para atingir países fora
da Europa, a internet espalhou-se em cerca de uma década, assinala. “Na
medida em que as tecnologias de marchine learning (aprendizagem da máquina)

99
e robótica avançarem será inevitável a substituição de funções ocupadas por
homens hoje”.

Visível desenvolvimento das forças produtivas de um lado, e radical ampliação


do desemprego tecnológico - por sobre o atual desemprego estrutural -, no outro
lado. Mas, a) velocidade (ritmo exponencial e não linear); b) amplitude e
profundidade (combinação de várias tecnologias com base na revolução digital);
c) impacto sistêmico (transformação sistêmica entre países, empresarial,
industrial e societária), seriam razões alinhadas por Schwab para argumentar
estarmos na alcunhada quarta revolução industrial.

Um fato explicador das facetas da dita revolução industrial é a inteligência


artificial do Watson, supercomputador que a IBM apresentou em 2007 capaz de
aprender e conversar de igual para igual com humanos para em breve substituí-
los em diversas tarefas, a começar pelo diagnóstico médico. Ou as impressoras
4d em teste no MIT, onde pesquisadores imprimem objetos tridimensionais e
depois observam enquanto a quarta dimensão – o tempo – assume o comando e
os materiais programáveis se organizam automaticamente.

Pesadelo e desemprego “tecnológico”

Desse modo, podemos destacar que dele resultam: 1) a venda mundial de


robôs atingiu 225 mil em 2015, 12% a mais que o ano anterior; espera-se 400
mil em 2018, sendo que Ásia (especialmente China e Coréia do Sul) controlam
60% das vendas, seguindo-se o Japão, EUA e Alemanha. 2) Em 2014 o
Facebook comprou o aplicativo WhatsApp por U$ 25 bilhões, que possuía 55
funcionários; a United Continental aérea foi capitalizada em dezembro de 2015
por fortuna similar, entretanto possuindo 82.300 funcionários. 3) Relatório do
banco suíço UBS (2016), por sua vez, defende que a 4ª Revolução Industrial
está ancorada em duas forças. “A primeira é a automatização extrema nos
negócios, governo e vida privada. A segunda, é a extrema conectividade, que
aniquila a distância e o tempo como obstáculos à comunicação cada vez mais
ampla e mais rápida”. 4) Assim, as chamadas operações de alta frequência –
realizadas por programas de computadores com algoritmos que compram e
vendem ativos financeiros em milésimos de segundos – correspondem hoje a
70% do volume negociado do mercado de ações norte-americano e 30 a 40%
no mercado europeu. 5) Apresentado ao Fórum Econômico Mundial (Davos,
fevereiro, 2016), “O futuro dos empregos: emprego, habilidades e Estratégia da
Força de Trabalho para a Quarta Revolução Industrial”, com base em pesquisa
com 15 grandes economias do capitalismo desenvolvido e em desenvolvimento
conclui que: haverá até 2020 um acréscimo de perda líquida e de empregos da
ordem de 5 milhões de empregos, sendo a razão de 7,1 milhões para a criação
de 2,1 milhões.

100
De outar parte, o novo relatório a Organização Internacional do Trabalho
(OIT/janeiro de 2017) estima que este ano haverá um aumento de 3,4 milhões
de pessoas desempregadas (ou 5,8% maior que o do ano anterior); a previsão
é que no mundo inteiro some aproximadamente 201 milhões de trabalhadores;
a tendência de crescimento deve se estender até 2018, ano que deve registrar
aumento de 2,7 milhões de desempregados em relação a 2017. Para a direção
da OIT, o desemprego continuará subindo nos próximos anos, crescimento
econômico mundial esse que “segue decepcionante”.
Assim, a partir desses cinco exemplos resumidos acima, nos marcos das
mudanças apontadas nos sistemas industriais, parece-nos suficiente concluir
que há em curso indiscutível processo de mudança na dinâmica da
acumulação do capital. Assim é que programas reestruturantes da Indústria 4.0
estão em operação: nos EUA a Advanced Manufacturing (2011); na Alemanha
a Industry 4. 0 (2014); no Reino Unido a Future of Manufactoring (2013); na
França a Industrie du Futur (2015); na Coréia do Sul a Manufactoring Inovation
3.0 (2015); na Índia a Make in India (2014); na China a China Manufactoring
2025 (2015).

Mas, atenção:

“Não sabemos se a inteligência artificial vai ou não se tornar um pesadelo


da ficção científica, mas certamente terá impacto fundamental na natureza
do trabalho”, avalia o filósofo americano Jerome Glenn, diretor-executivo e
co-fundador do projeto Millennium, organização internacional dedicada a
analisar e projetar cenários futuros, a serviço do grande capital.

As interações entre inteligências artificiais e a proliferação da nanotecnologia, da


robótica e da automação poderão produzir “um cenário de desemprego sem
precedentes”, avalia Glenn, que há quarenta anos faz projeções para instituições
que trabalham com a produção e a difusão de conhecimento (think tanks).
(http://www.valor.com.br/carreira/4766977/o-futuro-do-trabalho-sera-inventar-o-
proprio-emprego)

Considerações finais

Afirmamos que não é possível desconhecer três movimentos centrais que agora
mesmo se entrecruzam no capitalismo neoliberal contemporâneo, em meio a
essa gigantesca crise irresoluta e sem horizontes de solução, iniciada em 2007-
8: a) o profundo processo de “financeirização” da riqueza como um padrão
arraigado da dinâmica capitalista contemporânea; b) mutações no paradigma
tecnológica que parece combinar a um outro estágio avançado - e rapidíssimo –
da terceira Revolução Industrial, ou à denominada quarta Revolução Industrial;
c) ao tempo em que se assiste à degradação e regressão social vasta e

101
profunda, o flagelo do desemprego em taxas nunca antes alcançadas, seja de
modo relativo ou absoluto.

E não pode haver dúvida de que, em Marx e em Lênin uma ideia central é a de
que são as transformações qualitativas nas fases do capitalismo que engendram
suas mudanças estruturais. Tais mudanças, por sua vez, devem condicionar
mudanças na dinâmica da acumulação capitalista, incidindo ademais nas lutas
de classes.

Foi Karl Marx, em sua genialidade estonteante que escreveu indelevelmente n’O
capital, Livro 1, cap. XXIII: “Produzir mais-valia é a lei absoluta desse modo de
produção”. E mais adiante: “Expressando matematicamente: a magnitude da
acumulação é a variável independente, o montante de salários, a variável
dependente, não sendo verdadeira a afirmação oposta”.

*Publicado em “Governos Lula e Dilma: o ciclo golpeado. Contexto internacional,


realizações, lições e perspectivas”, São Paulo, Anita Garibaldi\Fundação
Mauricio Grabois, 2017.

NOTAS

[1] É indispensável sempre reafirmar que, para Marx, não há crise permanente
do capitalismo, mas quase regular periodicidade das crises no mercado mundial
(Teorias da Mais-Valia). Segundo Lênin, “no seu conjunto, o capitalismo cresce
com uma rapidez incomparavelmente maior que antes”. Simultaneamente, no
capítulo VIII, “O parasitismo e a decomposição do capitalismo”, afirmara Lênin:
“Mas não obstante, como todo monopólio, o monopólio capitalista gera
inevitavelmente uma tendência para a estagnação e para a decomposição” (“O
imperialismo, fase superior do capitalismo”, capítulo X, “O Lugar do
imperialismo na história”, p. 668, Lisboa, Edições Avante! 1981). A tendência a
estagnação encontra-se no interior do crescimento capitalista, de “rapidez
incomparavelmente maior que antes”. Lênin refere-se concretamente ao
crescimento de certos ramos industriais, certos setores da burguesia, certos
países, a) nos Estados rentistas espoliadores via exportação de capitais e o
colonialismo; b) ao caráter parasitário e desigual desse crescimento que
alcança os países centrais, e os periféricos).

[2] Ver: “Como ao países ficaram ricos... e por que os países pobres continuam
pobres”, E. Reinert, Rio de Janeiro, Contraponto/Centro celso Furtado de
políticas para o desenvolvimento, 2016.
[3] Ver: “Balanço do Neoliberalismo”, Perry Anderson, em: Pós-neoliberalismo:
as políticas sociais e o Estado democrático”, Sader, E. e Gentili, P. (Orgs.), Rio
de Janeiro, Paz e Terra, 1995. “A crise emergente do capitalismo mundial: do
neoliberalismo à depressão?”, R. Brenner, Revista Actuel Marx/Centre National
de la Recherche Scientifique da França, 30 de setembro de 1998, Sorbonne,
Paris.

102
[4] Ver: “A essência do neoliberalismo”, P. Bordieu, em: www.diario.info (2017
[1998]).
[5] Ver: “A nova razão do mundo. Ensaio sobre a sociedade neoliberal”, P.
Dardot e C. Laval, São Paulo, Boitempo, 2016.
[6] Ver: “O neoliberalismo sob hegemonia americana”, G. Dumenil e D. Levy,
em: “A finança mundializada – raízes sociais e políticas, configuração,
consequências”, Chesnais, F. (org), Sã Paulo, Boitempo, 2005. Também “A
crise do neoliberalismo”, G. Dumenil e D. Levy, São Paulo, Boitempo, 2014.
[7]Ver: “A roleta global. Uma aposta faustiana de Washington para a
dominação do mundo”, P Gowan, Rio de janeiro, Record, 2003.
[8] Ver: “A hegemonia americana”, M.C. Tavares e L.Fiori, Revista Lua Nova,
São Paulo, nº 50, 2000.
[9] Ver: “Globalização, terrorismo e democracia”, E. Hobsbawm, São Paulo,
Companhia das Letras, 2007. Também, “O novo século. Entrevista a Antonio
Polito”, E. Hobsbawm, São Paulo, Companhia das Letras, 2007.
[10] Em: “Prefácio” à “A finança mundializada”, L. Belluzzo, de Chesnais, F.
(org.), 2005, cit.

103
Crise capitalista global persiste em cenário sombrio*
Provavelmente, a melhor definição para o atual estágio da crise gestada em
2007-8 foi explicitada pelo banqueiro Dick Fischer, nada menos que antigo
presidente do Fed (banco central dos EUA): “Nós injetamos cocaína e heroína
no sistema” para criar um efeito riqueza e “agora estamos a mantê-lo com
Ritalina” (medicamento para tratar déficit de atenção, também antidepressivo).

A orgia do
mercado financeiro é o tema do filme O Lobo de Wall Street Foto: Ilustra Cezar Xavier

Conforme análise acurada do economista marxista britânico Michael Roberts, a


situação da economia global pode ser assim resumida: (i) novo impulso
especulativo nas bolsas de valores, ao lado do crédito farto e barato; (ii) preços
baixos da energia (petróleo);(iii) aumento do endividamento empresarial privado;
(iv) desaceleração do crescimento econômico e queda dos investimentos e
lucros. “Alguma coisa tem que acabar explodindo”, assevera ele.

No mesmo texto, Roberts informa que, segundo o novo economista-chefe do


FMI Maurice Obstfeld, a queda global nos preços de petróleo podem levar a uma
onda de calotes no pagamento das dívidas públicas (títulos soberanos) e
privadas mundo afora. Assim, estimular a demanda econômica global e reformar
o sistema financeiro seriam medidas agora “ainda mais urgentes”. [1]

Ora, no cenário traçado por Roberts deve-se necessariamente acrescer a cíclica


volatilidade – nenhuma tendência fixa, por óbvio - nos mercados bursáteis
globais como parte integrante das incertezas e fuga de risco que devem
intensificar-se na medida em que o quadro internacional tende efetivamente a se
agravar.

Assim, noticiou-se nesta quarta-feira: a) para o estrategista da Nomura


Securities, do grande truste financeiro japonês (de Nova York), “Há claramente
um elemento de ‘risk off’ (fuga de risco) presente nos movimentos do mercado
no começo de abril”; b) o que veio acompanhado a notícia de que o PMI da Zona
do euro (índice geral de compras para indústria e serviços) ficou estável apesar
do anúncio do BCE (Banco Central Europeu) injetar enormes novos estímulos
monetários; assim como o PMI da Alemanha (carro-chefe da economia
europeia) registrou em março o menor crescimento em oito meses; c) evidente

104
sinal de que pode estar no horizonte nova tormenta financeira é o anúncio do
Fed (banco central dos EUA) de que não vai elevar a taxa básica de juros em
abril. [2]

Mais ainda. Nesse 07/04/2016 informou-se, em reunião a “porta fechadas”, [3]


em Berlim, com Lagarde (FMI), Merkel, Azevedo (OMC), Kim (Banco Mundial),
Gurría (OCDE) e Ryder (OIT) concluiu-se que: 1) o crescimento econômico
mundial “continua medíocre, frágil e permanecerá abaixo das tendências
históricas do pós-guerra, ninguém sabe por quanto tempo”. 2) E que neste 2016
mais 2,3 milhões de trabalhadores serão desempregados, somando “quase” 200
milhões deles.

Mergulho sistêmico da produção industrial

Refletindo o cumulativo processo de


desaceleração da economia mundial, em
curso, a indústria de transformação mundial
[4] no quarto trimestre de 2015 cresceu 1,9%
em relação ao mesmo período de 2014,
mantendo tendência de desaceleração
iniciada no segundo trimestre de 2014
(países desenvolvidos como nos emergentes
e em desenvolvimento). As principais razões
apontadas: a fraca retomada da demanda e
em especial, dos investimentos mundiais.
Em comparação a julho-setembro, a
fabricação de manufaturas caiu 0,5% em
outubro-dezembro de 2015.

Ratificando a desaceleração, relativamente a 2014, “emergentes” e em


desenvolvimento obtiveram expansão de 4,6% da indústria de transformação no
quarto trimestre de 2015 puxada por China e América Latina. Neste
quadrimestre a produção de manufaturas chinesa embora tenha crescido 6,5%,
isto representou a menor taxa desde 2005.

Já a indústria de transformação da América Latina assinalou variação negativa


de 4% em outubro-dezembro de 2015, frente ao mesmo período de 2014, tendo
sido a retração de 2,9% em julho-setembro nesta comparação (exceto o México
2,2%). A produção de manufaturas no Brasil caiu 12,4% neste período,
Argentina -0,9%, Chile -1,5%, Colômbia -0,4% e Peru -0,8%. Os principais
fatores da queda seriam: a) baixa dos preços das commodities; b) a
desaceleração chinesa; c) o arrefecimento das dinâmicas nacionais do
crescimento econômico.

A “vertigem” chinesa

Ocorre que a China – enfatize-se vez por todas - vem reafirmando, sob vários
ângulos, seu reposicionamento geopolítico mundial. Conforme estudo de
Chandrasekhar e Gosh, com base nos dados do World Economic Outlook do
FMI (outubro de 2015), houve queda expressiva na participação das economias
105
desenvolvidas, de 83% para 60% do PIB global nos últimos 30 anos. O período
de 2002 a 2013 abarcou uma queda de 80% para 62%. A ascensão
historicamente vertiginosa da China significou o crescimento de sua participação
de 3% para 15% no PIB mundial, isto representando 87% da queda de presença
dos países referidos entre os anos 1980 e 2015. [5]

No plano imediato, simultaneamente ao processo de desaceleração de sua


economia, que sabidamente retifica sua estratégia de desenvolvimento, a China
bateu fulminante recorde em fusões e aquisições no primeiro trimestre deste
ano. Segundo o Financial Times, as compras por empesas chinesas de
estrangeiras somaram US$ 101 bilhões, quase 15% do total dessas. ChenChina,
Dalian Wanda e Abang Insurance destacaram-se no movimento que somou US$
682 bilhões no mundo inteiro nesses três meses. Em contraposição, para fontes
do FT “impressiona ver a queda de atividade nos EUA”. [6]

Capitalismo neoliberal “drogado”

Na direção do assinalado acima por


Roberts, o oligopólio financeiro JP
Morgan calcula que a taxa de
investimento de capital cresceu a
menos de 1% ao ano, em termos
mundiais, no primeiro trimestre deste
ano. Ano passado, o investimento das
empresas caíra 2,1% no último trimestre
de 2015, a primeira queda trimestral em
mais de três anos.

Evidente que a situação da economia


mundial continua sendo marcada
nitidamente por um longo processo de
estagnação – depressão para inúmeros
pesquisadores - do centro capitalista,
desde 2013 agora afetando duramente as economias periféricas e não
possuidoras de moeda conversível.

Provavelmente, a melhor definição para o atual estágio da crise gestada em


2007-8 foi explicitada pelo banqueiro Dick Fischer (09/03/2016), nada menos
que antigo presidente do Fed (banco central dos EUA), de Dallas: “Nós
injetamos cocaína e heroína no sistema” para criar um efeito riqueza e “agora
estamos a mantê-lo com Ritalina” (medicamento para tratar déficit de atenção,
também antidepressivo). [7]

Fisher, reconhece assim – cinicamente - que o tratamento para a economia com


cocaína e heroína não funcionou “apesar do seu êxito em elevar preços de
ativos”. O ex-diretor do banco central dos Estados Unidos confirmou - e repetiu
- então o que outros economistas e organismos multilaterais do mainstream: “O
Fed é uma arma gigante à qual já não restam munições”.

106
Sim: Fischer representa bem a gangue de bandidos e loucos que tomaram de
assalto o capitalismo “drogado” do far west americano!

*Publicado em Portal Fundação Mauricio Grabois, 07.04.2016

NOTAS

[1] Ver em: http://www.sinpermiso.info/textos/el-dinero-barato-los-precios-del-


petroleo-bajos-y-la-deuda-de-las-empresas

[2] Em: “Incertezas voltam a incomodar mercados”, José de Castro, Valor


Econômico, 06/04/2016.

[3] Em: “Líderes globais têm visão pessimista para os próximos anos”, Assis
Moreira, Valor Econômico, 07/04/2016.

[4] Dados e informações do IEDI (Instituto de Estudos para o Desenvolvimento


Industrial), em “Produção da Indústria de Transformação Mundial no Último
Trimestre de 2105: Tombo na América do Sul”, 25 de Março de 2016 - nº 725.

[5] Dados em: “Assim é (se lhe parece)!, L. Belluzzo e G. Galípolo, Valor
Econômico, 05/04/2016.

[6] Ver: “Fatia da China em fusões e aquisições globais é recorde”, Valor


Econômico, 1/04/2016.

[7] Ver: orig: http://www.zerohedge.com/news/2016-03-09/former-fed-president-


we-injected-cocaine-and-heroin-system-create-wealth-effect

107
Novo crash financeiro no horizonte*

Pensa o economista francês Patrick Artus que as políticas ultra expansionistas da liquidez
(QE,“quantitave easing”), tocadas pelo Banco da Inglaterra, pelo Fed americano, o Banco
do Japão e o BCE europeu, levaram o sistema capitalista pós crise 2007-8, a um estado de
crise financeira permanente na economia mundial.[1]

Para Artus, economista-chefe do banco Natixis e professor da Universidade


Paris 1-Panthéon-Sorbonne, a explosão da bolha atual dos títulos de dívida é
inevitável. Autor do recente “A Loucura dos Bancos Centrais”, Artus diz que
hoje há um excesso de liquidez em circulação, onde a base monetária do
mundo (quantidade de liquidez criada pelos BCs) é de US$ 20 trilhões
comparada a US$ 2 trilhões há 20 anos. Essa liquidez criada pelos BCs
representa cerca de 30% do PIB mundial ante apenas 6% no fim dos anos 90.

Como didaticamente ele explica: 1) antes, uma bolha imobiliária criou efeito de
riqueza que estimulou o consumo; 2) atualmente, a bolha dos bônus fez baixar
os juros para as empresas e os governos; 3) mas “uma bolha sempre explode”:
como já assistimos, em certo momento os agentes econômicos se
desembaraçam de ativos muito caros “e isso explode”; 4) quem pegou
emprestado “vai, com a alta de juros, pagar bem mais caro por suas dívidas”.

Nessa direção, Belluzzo e Galípolo mostram que, em “O verdadeiro estado


atual do sistema financeiro” publicado no site Zerohedge, integrantes do
Phoenix Capital Research negam eficácia na ideia de que se resolve o
endividamento emitindo-se mais dívidas. Assim, em 2008 a bolha de bonds era
de US$ 80 trilhões, hoje supera os US$ 100 trilhões; o mercado de derivativos
que usa essa bolha de bonds como colateral supera US$ 555 trilhões.
Informam ainda que as corporações hoje estão mais endividadas, em 2007 os
bonds das empresas americanas somavam US$ 3,5 trilhões, hoje eles estão
em US$ 7 trilhões, perto de 50% do PIB. “Os Bancos Centrais enfrentam os
limites da política monetária para retirar a economia desse atoleiro, inundado
por liquidez”, concluem Belluzzo e Galípolo. [2]

Advirto, entretanto, que Artus concentra excessivamente a ideia de crise


permanente “apenas” por conta da injeção trilionária de dólares, a partir do
chamado QE. Ora, esta macroeconomia fantasmagórica que se generaliza e se
impõe aos bancos centrais para tirar a economia capitalista mundial desta crise
sem horizonte foi seguida da política de “juros zero”; assim como vários bancos
centrais pequenos já haviam adotado taxa negativa de juro, a NIRP (Negative
Interest Rate), como Suíça e Suécia, tendo o Banco de Japão passado a
adotá-la efetivamente.

Tanto é assim que, no último 2 de maio, o presidente do BCE Mario Draghi


afirmou que nos cálculos do banco, atualmente 18% da economia global,
ponderada pelo PIB, opera com políticas de taxas negativas; proporção que
sobe para 40% se incluídos os países com juros entre zero e 1%.

Para Draghi, a questão central “é a demanda de investimentos insuficiente em


todo mundo”, onde as baixas taxas provocam ademais pressão sobre o modelo

108
de negócios das instituições financeiras (bancos, fundos de pensão e
companhias de seguros), “apertando a receita de juros” num momento em que
a rentabilidade já é fraca. [3]

Confluem tendências negativas na economia mundial

Recordemos que, início do último abril, segundo o estrategista da Nomura


Securities (de Nova York), grande truste financeiro japonês, havia “claramente
um elemento de ‘risk off’ (fuga de risco) presente nos movimentos do mercado”.

Indiscutivelmente, começa a se generalizar uma sensação de debacle iminente


dentro do processo ininterruptamente longo da crise. O referenciado
economista crítico da desregulamentação financeira J. Bradford Delong, por
exemplo, evitou as meias palavras, ao declarar que chegou a hora dos bancos
centrais assumirem a responsabilidade e executar a política de “jogar dinheiro
por helicóptero, pondo recursos diretamente nas mãos dos que têm seus
gastos limitados pelo baixo nível de renda e pela falta de ativos para garantia
de crédito.

Delong diz ainda que o ex-economista chefe do FMI Barry Eichengreen há


pouco declarou-se totalmente alarmado: “A economia mundial está afundando
visivelmente e os formuladores de políticas públicas que deveriam administrá-la
estão paralisados pelo medo”, disse Eichengreen, como se a justificar a ideia
do “helicóptero” de Delong. [4]

Noutro ângulo, conforme temos insistido, apesar da manipulação sistemática


dos dados da economia do império norte-americano torna-se impossível
esconder a realidade de seu declínio e problemas estruturais graves. A
economia dos Estados Unidos registrou, no primeiro trimestre, o menor
crescimento em dois anos, o que atesta a imensa fragilidade de um alardeado
“ciclo de expansão econômica”, num momento de incertezas globais.

109
De acordo com dados oficiais, o Produto Interno Bruto (PIB) americano cresceu
0,5% - menos da metade da taxa do trimestre anterior – devido principalmente
à queda dos investimentos corporativos e das suas exportações. O quadro
também foi afetado por uma desaceleração do crescimento dos gastos do
consumidor, apesar de um aumento da renda pessoal.
Estamos desacelerando desde o ano passado. Isso não é um fenômeno de um
trimestre”, afirmou Joseph LaVorgna, economista-chefe para os EUA do
Deutsche Bank. “É surpreendente que o consumidor não tenha se saído
melhor, tendo em vista o forte crescimento do número de empregos e os baixos
preços da energia”, desconversa ele. Em abril, a economia dos EUA gerou 160
mil empregos, abaixo da média de 224 mil ao longo do ano até abril, revelou
Jeanna Smialek, da insuspeita Blomberg.
Indústria global segue afundando
De outra parte, a indústria no mundo todo teve desempenho ruim em abril,
mostraram dados divulgados ontem para Estados Unidos, zona do euro, Japão
e China, realçando as dificuldades de a economia decolar em nível global. Com
a fraca demanda e o excesso de oferta, as leituras regionais devem reforçar a
impressão de quem a recente retomada da economia não se sustentará
facilmente e de que pode ser preciso mais estímulo.
Na zona do euro, onde o Banco Central Europeu (BCE) vem promovendo uma
política de estímulo, a indústria cresceu apenas marginalmente em abril. Na
China, novos dados sugerem que a economia se estabilizou em abril, em meio
a uma recuperação no mercado imobiliário e do crédito. A indústria, porém,
cresceu pouco. O PMI oficial ficou em 50,1 pontos, chegando segundo no
campo positivo. O indicador para serviços e construção, porém, teve melhor
desempenho e ficou em 53,5 pontos. No Japão o PMI medido pela
Markit/Nikkei para o setor industrial caiu a 48,2 pontos em abril, em
comparação a 49,1 pontos em março. O número não somente indica uma
contração, como foi o pior para o setor industrial japonês em mais de três anos.
[5]
China e índia enfrentam a grande crise
Por falar na China, dias atrás o Ministério dos Transportes do país anunciou
que deverá injetar quase 5 trilhões de yuans (US$ 770 bilhões) na
infraestrutura de transportes nos próximos três anos. O aporte sinaliza a
determinação do país em usar investimentos públicos para manter a economia
em plena atividade. A mais nova rodada de financiamento deverá beneficiar a
debilitada indústria pesada e o setor de construção civil. Chega na sequência
do anúncio pela comissão na terça-feira de que 1,6 trilhão de yuans serão
investidos em 130 projetos no também necessitado cinturão industrial das
províncias da região Noroeste. [6]
A economia indiana cresceu 5,3% em 2012/13; a previsão é de alcançar 7,5%
por cento em 2016, tendo sido seu PIB de 7,3% em 2015. A última pesquisa
econômica do Ministério de Finanças prevê um crescimento entre 7% e 7,75%

110
no próximo ano, embora com riscos de perda. Diante do quadro atual dos Brics
(crescimento negativo no Brasil e na Rússia, desaceleração chinesa e
estagnação na África do Sul), a Índia vai bem, apenas porque, nas palavras de
seu presidente do banco central, Baghuram Rajan, “em terra de cego, caolho é
rei”.
A tormenta vindoura – e o velho Marx
Nas conclusões do economista-banqueiro francês Patrick Artus, “a próxima
crise financeira será pior que a das hipotecas de alto risco” (subprime, iniciada
em agosto de 2007, EUA). Nouriel Roubini afirma que muitos outros mercados
(além dos BRICs, acima citados) também desaceleram desde 2013, em razão
do enfraquecimento das condições externas e da fragilidade econômica, o que
– diz - exacerbou “o excesso de poupança global e a crise de investimentos”.

Assim, o crash financeiro global que se avizinha, fundado na furiosa


especulação no interior da enorme expansão da liquidez atual, particularmente
nos países centrais, continua sua marcha inexorável. Pari passu à tendência
explícita de desaceleração global.
Quer dizer, uma invariância que combinaria estagnação
superacumulação/anarquia imensa na emissão de títulos (portadores de juros,
portanto capital financeiro).
No entanto - e como sempre -, não se sabe exatamente quando o crash
ocorrerá.
Contemporaneamente, a relação entre a taxa de juros, derivativos (contrato e
aplicações de futuro), o investimento, e a rentabilidade imaginada chegaram à
anarquia absoluta das previsibilidades. Na era dos ativos financeiros, a tomada
de decisão capitalista da reversão de investimentos permanece mais ainda sob
a tutela dos fatores contidos na subjetividade da aposta nos fatores do risco do
cálculo capitalista.
Do ponto de vista do marxismo, sobre a base da superprodução ou
superacumulação de capitais (máquinas, equipamentos, instalações, matérias-
primas, ativos financeiros), a crise se instala quando da parada súbita que
interrompe o ciclo da realização capitalista, quer dizer, a dinâmica cíclica do
investimento. Noutras palavras, as crises no capitalismo não podem ser
separadas da regularidade de sua dinâmica expansiva. O capitalismo, segundo
Marx, objetiva produzir em larguíssima escala, até superproduzir capital. Quer
dizer, sobreinvestir para fazer crescer a produtividade social do trabalho e
suplantar a concorrência; superproduzir para superlucrar, superacumulando
capital em excesso e em todas as suas formas, referenciando-se numa dada
taxa média de lucro.
*Publicado em Portal da Fundação Maurício Grabois, 20.05.2016
NOTAS

[1] Em: http://www.valor.com.br/financas/4553953/loucura-dos-bcs-infla-bolha-


do-mercado-de-bonus-diz-professor

111
[2]Em:http://www.ceapetce.org.br/noticias/a-nova-bolha-os-mercados-
financeiros-afogam-se-em-liquidez-e-o-investimento-seca/
[3]Em:http://www.valor.com.br/financas/4546879/juro-baixo-e-sintoma-de-
desafios-da-economia-global-diz-draghi
[4]Em:http://www.bresserpereira.org.br/terceiros/2016/maio/16.05.Dinheiro-
farto.pdf
[5]Em:http://www.valor.com.br/internacional/4547109/demanda-cai-e-afeta-
industria-global
[6]Em:http://www.valor.com.br/internacional/4559043/pacote-de-estimulo-preve-
gastos-de-us-770-bi-em-transportes-na-china

112
Capitalismo Walking Dead: juros negativos revelam a crise o pântano*
No horizonte do capitalismo de transfiguração neoliberal - assentado no estágio
imperialista dos nossos dias - vê-se perigoso aprofundamento da
desaceleração com nova recessão (na estagnação!) sendo muito provável.
Sim, num capitalismo já “respirando por aparelhos”, espécie de morto-vivo. E a
espalhar miasmas terríveis por toda a parte
Há visível perplexidade e impotência diante do prosseguimento da grande crise
global, com falência de medidas as mais “heterodoxas” já realizadas em todas
as histórias das depressões - respostas sem qualquer sucesso para retirar do
pântano a economia capitalista. Fenômenos novos que vem acompanhado de
uma hipocrisia suicida diante do colapso e dum cinismo intelectual sem
precedentes.
Taxa de juros negativos
Esta é a nova “macroeconomia” da fantasmagórica da economia mundial que
se generaliza e se impõe aos bancos centrais para tirar a economia capitalista
mundial de desta “Longa Depressão” (Michael Roberts). [1] Isso porque falhou
a política de “juros zero”. Assim como falhou a generalização anterior da
política “Quantitave Easing” (Inglaterra, EUA, Japão e União Europeia), tendo
fracassado ainda a impressão de moeda. Vários bancos centrais pequenos já
haviam adotado a NIRP (Negative Interest Rate) como Suíça e Suécia, mas a
semana passada o Banco de Japão passou a adotá-la efetivamente.

No caso do poderoso Banco do Japão, os rendimentos dos bônus do Tesouro


de dez anos passaram ao negativo, o que significa que os bancos e outros
investidores de grandes empresas corporativos preferem pagar ao banco
central japonês e ao governo para manter os bônus para a próxima década, ao
invés de gastar ou investir dinheiro efetivamente.

Com uma taxa de juros negativos os bancos comerciais (que geralmente


emprestam a longo prazo) passam a pagar ao banco central para manter suas
reservas nele, imaginando-se que os bancos estariam mais dispostos ao
crédito e outras operações. Mas a deflação que atinge a maioria das

113
economias centrais (especialmente na zona do euro) serve como um bloqueio
ao investimento, direcionando-se assim lucros ao entesouramento ou a
especulação.

Para se ter ideia, o volume de transações com títulos de governos (soberanos)


com taxa de juros negativos atingiu cerca de US$ 6 trilhões. Martin Wolf
(Financial Times), sempre representando os régios interesses da city londrina
etc., passou e defender o (cinicamente) chamado “dinheiro de helicóptero”. Isto
é: transferir crédito diretamente nas contas bancárias dos correntistas, ou um
tipo de quantitative easing “para o povo”, com vem denominando a ala
esquerda do trabalhismo britânico. [2]

Na base da argumentação de Wolf, a economia mundial “está esfriando, tanto


estrutural quanto ciclicamente”, ainda que as taxas de juros negativas “já
passaram do terreno do impensável para a realidade”. E remete ao último
outlook da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico) onde se lê a recomendação para a “expansão fiscal”, em direção
oposta à “austeridade” por ela recomendada a ferro e fogo. É que, igualmente
para a OCDE, em desaceleração persistente, a produção mundial “não será
mais elevada que em 2015, que já foi o ritmo mais lento dos últimos cinco
anos”.

Entretanto, pode-se concluir que, até o momento, na prática as taxas de juros


negativas não têm conseguido impulsionar o crédito nem a demanda agregada
(quantidade de bens e serviços que o conjunto dos consumidores deseja e se
dispõe adquirir num tempo determinado e por um preço) que se esperava. De
fato, o problema decorre ao extraordinário nível de endividamento no
capitalismo desenvolvido nos últimos 20 anos, ao que se seguiu um processo
deflacionário que está longe de terminar.

Noutro ângulo, sequer a redução das taxas interbancárias (spread) feita


recentemente pelo BCE (Banco Central Europeu) conseguiu alterar as
operações do varejo. O que demonstra ser a redução ao negativo das taxas de
juros bem mais uma manobra de continuidade da “guerra cambial” (guerra de
capitais): neste caso o euro se posiciona mais favoravelmente do que o dólar.
De todo modo, em dezembro de 2015, a taxa de depósitos bancários (que
remunera as reservas que os bancos comerciais depositam no Banco Central)
foi de -0,2% para -0,3% ao ano

“Austeridade”: a desmoralização anunciada

Noutro problema fundamental, conforme ainda importante análise da Unctad


(Agência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento), a economia
mundial estaria passando por uma “terceira etapa da grande crise financeira
iniciada em 2008”, [3] agora atingindo os emergentes. A saída, afirma
enfaticamente Alfredo Calcgano, chefe do setor de macroeconomia e políticas
de desenvolvimento, passa por mobilização mais acelerada de países ricos
para recuperar a demanda global, inclusive por parte dos que têm déficit.
Em direção semelhante a da OCDE, para a Unctad “um incremento do gasto
público em bens e serviços de 4,4% do PIB durante cinco anos, até 2020 (ou

114
seja, gasto extra de 0,87% ao ano), comparado com o cenário atual, resultaria
num crescimento acumulado adicional de 2,5 pontos percentuais globalmente
(0,5 p.p. anual). Acompanhado de política fiscal progressiva, esse cenário é
considerado pela entidade consistente com uma redução do déficit fiscal. “A
confiança no mercado financeiro volta com o crescimento e não com
austeridade”, diz Calcgano. E que, para enfrentar a crise, “Todo mundo fez
política expansionista, com bons resultados, e conseguiu controlar [o pior da
crise]”, declarou. [4]
Notemos ademais que, para Roberto Azevêdo, diretor-geral da OMC
(Organização Mundial do Comércio), na medida em que vários bancos centrais
adentraram no território de taxas negativas de juros, títulos dos governos tem
obtido rendimento perto de zero, “e a economia mundial não reage. Isso é
muito preocupante”
O que foi explicitamente reiterado por Mario Draghi, presidente atual do BCE,
em comunicado no dia 1 de março de 2016: “Neste ambiente, as dinâmicas de
inflação da zona do euro continuam mais fracas do que o esperado", diz a
carta. Mario Draghi afirma ter “uma variedade de instrumentos à sua
disposição” e que “não há limites para quão longe estamos dispostos a usar os
nossos instrumentos, dentro do nosso mandado, para atingir o nosso objetivo”.
Enquanto a reunião do G-20 em Xangai praticamente desconheceu os “alertas”
do FMI frente a situação da economia mundial. “Essa evolução dos
acontecimentos aponta para maiores riscos de uma recuperação fora dos
trilhos, num momento em que a economia mundial está extremamente
vulnerável a choques adversos”, alertou o FMI. Para quem “a economia
mundial precisa de ações multilaterais ousadas para estimular o crescimento e
conter o risco”. [5]
No comunicado do G-20, diz-se que “a recuperação global continua, mas
segue desigual e aquém da nossa ambição”. Um resumo do ridículo explícito,
apesar das promessas de “usar todas as ferramentas” (monetária, fiscal etc.)
para a “retomada do crescimento” – o que já virou lero-lero. (“G-20 vê
recuperação da economia global aquém da esperada”, O Estado de S. Paulo,
25/02/2016).
Uma nota sobre a Venezuela
A Venezuela prossegue em grandes dificuldades econômicas, especialmente
atingida pela derrubada do preço do petróleo (cerca de 70% do seu PIB). O
país reduziu recentemente a importação de alimentos e de remédios frente ao
impacto da continuidade do pagamento da sua dívida externa (no 26 de
fevereiro vencia US$ 1,5 bilhão em títulos de dívida, tendo o governo
anunciado que faria o pagamento). A estimativas para o PIB deste ano revelam
um forte crescimento negativo, evidentemente a se confirmar. Além, o país vem
consumindo suas reservas internacionais que, em queda, estariam em torno de
(apenas) US$ 14,56 bilhões em fins de fevereiro.
Duas observações

115
1) Pelo exposto, ademais de repetições dos alertas do FMI acerca dos
novos fatores de risco da economia global, há uma clara viragem na
conduta de recomendação da OCDE e da Unctad (ONU), no sentido de
aplicação imediata de políticas de ampla flexibilização fiscal e aumento
do gasto público, mesmo diante de dívidas públicas gigantescas
acumuladas nos principais países do capitalismo central. O que
evidentemente desmoraliza o receituário do “ajuste fiscal” radical
imposto especialmente pela “troika” (BCE/Comissão UE/FMI). E em
certo sentido antecipam recados à periferia subdesenvolvida às voltas
com violenta queda do produto, das receitas fiscais e exportação de
commodities.
2) Mas a questão que parece ser a essencial é a de que a “financeirização”
neoliberal continua sua “fuga para frente”, cuja hegemonia do grande
capital no comando de organismos multilaterais - tomando medidas ou
não tomando -, e enfrentando novas e flagrantes contradições (agudas e
crônicas), ainda assim sem respostas progressistas e soberanas
satisfatórias até onde a vista alcança. Prosseguirá portanto a destruição
de forças produtivas com drástica regressão social.
*Publicado em Portal Vermelho, 07/03/2016

NOTAS
[1] Ver o importante artigo de Roberts em:
http://www.sinpermiso.info/textos/podemos-evitar-la-recesion-mundial-que-se-
aproxima

[2] Ver: http://www.valor.com.br/opiniao/4451536/dinheiro-jogado-de-


helicopteros

[3] Na nossa opinião são quatro as fases que compõem essa grande crise, até
agora: a) das hipotecas “subprime” (agosto de 2007); b) a falência do Lehman
Brothers (setembro de 2008); c) a chamada de “crise das dívidas soberanas”,
desde 2010 e que se agrava; d) a fase atual, que arrasta a periferia capitalista
e atinge, de outro modo, a estratégia de desenvolvimento vitoriosa da China.
[4] Ver: http://www.valor.com.br/internacional/4439760/unctad-defende-mais-
gasto-publico-para-enfrentar-crise
[5] ver: http://www.valor.com.br/internacional/4453434/fmi-fala-em-momento-
critico-e-pede-medidas-energicas-do-g-20

Aurora 2016. Falência da economia política neoliberal*

116
“A situação está pior do que em 2007. Nossa munição macroeconômica para
combater desacelerações (dowturns) no essencial já foi toda gasta” (William
White, presidente da comissão de revisão da OCDE e ex-economista-chefe do
Banco de Compensações Internacionais –BIS). [1]
No finalzinho de dezembro passado, em Berlim, a chefona do FMI (Fundo
Monetário Internacional) Cristine Lagarde mandou avisar a todos: o
crescimento da economia mundial 2016 será decepcionante, desigual e situado
em novos riscos financeiros. Ela imagina que as causas deste cenário se
encontram na queda da produtividade, no envelhecimento da população
mundial e ainda que os efeitos da crise financeira. Segundo disse, a crise
iniciada com a falência do Lehman Brothers, não teria até agora assegurado a
estabilidade financeira sistêmica – por ela assim concebida e desejada.
Em fim de mandato - a ser renovado -, Lagarde comentara também que a
desaceleração econômica na China e a elevação da taxa básica de juros nos
EUA iriam contribuir para maior volatilidade econômica e insegurança em
qualquer parte do globo. A Europa – afirmou insuspeitadamente - fecharia o
ano com elevação do endividamento público e privado, com baixas taxas de
investimento e debilidades no sistema bancário do continente. [2]
Para 2015 a OCDE já havia cortado sua previsão de crescimento global para 2,9%
em seu relatório de perspectiva econômica, dos 3% previstos em setembro. A
organização tem repetidamente cortado sua perspectiva de crescimento de 2015
ante os 3,7% inicialmente. Disse que o comércio global vai crescer somente 2%
este ano, um nível que foi visto apenas cinco vezes nas últimas cinco décadas e
que coincide com contrações: 1975, 1982-83, 2001 e 2009: “É profundamente
preocupante”, disse a economista-chefe da OCDE, Catherine Mann, na introdução
do relatório; alertando que “O comércio mundial tem sido um termômetro da
produção global”. [3]
Sim, crise crônica afunda a periferia

De acordo ainda com o último informe da Comissão Econômica para América


Latina e o Caribe (CEPAL), o crescimento da economia mundial em 2015 foi de
2,4 %, levemente inferior ao registrado em 2014, de 2,6 %. Para 2016 espera o
órgão leve aceleração que alcançaria uma taxa próxima aos 2,9 % - o que
certamente não será alcançado. América Latina e o Caribe, que caíram 0,4%
em 2015, nesse ano prevê-se ainda uma estagnação de 0,2 % de seu
desempenho econômico.

Desaceleração que desde 2013 passara a atingir quase todas as economias da


periferia capitalista, fundamentalmente de modo sincrônico. O que se registra
acentuado no caso da Rússia (-3,7% até novembro de 2015), do Brasil (cerca
de -3,5% em 2015), mas não do México – sempre conforme com as estimativas
que circulam na praça. Afirme-se claramente, contudo, que boa parte das
economias emergentes tiveram em 2015 seu pior resultado em quase duas
décadas.

117
CRESCIMENTO DO PIB (Produto Interno Bruto) 1985-2015

FONTE: FMI (Fundo Monetário Internacional)


O que também se relaciona com o problema crônico da oscilação dos preços
das commodities, em especial do petróleo: entre julho de 2014 e o fim de 2015
o preço do petróleo desabou 70%! Contrariando expectativas, na primeira
semana do ano seus preços caíram mais de 10%, queda inusitada para esses
períodos. E conforme relatou o índice agregado Bloomberg World Oil & Gas,
nessa primeira semana as 60 maiores companhias de petróleo do mundo
perderam cerca de US$100 bilhões em função desse verdadeiro colapso de
preço.
Sobre essa questão, é esclarecedora a interpretação trazida à luz pelo
economista russo Valentin Katasonov: os manipuladores do mercado
petrolífero são os grandes bancos, não mais a OPEP. Que operam através dos
contratos futuros de petróleo e de outros seus derivativos ligados ao petróleo.
Os preços diários (para transações spot) são estabelecidos pelos preços para
entregas futuras (num prazo de um ano, por exemplo). E os preços futuros são
o resultado do que se chama “expectativas”. As tais “expectativas” são criadas
pelas agências de classificação, os chamados peritos, e a mídia monopólica.
Na prática, tudo isto está sob o controle dos grandes bancos. E são os bancos
que simplesmente encomendam (place an order) as expectativas
“necessárias”. [4]
Instabilidade permanente, falência: o “novo normal”

Segundo Wolf, a economia mundial precisaria encontrar “um novo e poderoso


motor de demanda, já que os antigos estão engasgando e morrendo”; não se
sabe se ele será encontrado, diz. Mas o resto do mundo está esperando,
provavelmente com excesso de otimismo, que os EUA forneçam o que está
procurando. E isso não teria ocorrido “mesmo que o Fed tivesse optado por
não apertar a política monetária”. “O ajuste futuro para uma economia mundial
tão viciada em bolhas de crédito vai ser difícil”. “Também preocupante é a

118
desaceleração do crescimento do comércio - em parte resultado e em parte
causa de um crescimento mais fraco”. “A globalização está perdendo
dinamismo”, admite resignado ele, o ilustrado e dissimulado porta-voz da
grande finança capitalista [5]

Mas William White vai mais fundo. “O mundo enfrenta uma onda de
inadimplência de dívidas épicas”: esse é o prognóstico grave do experiente
economista do mainstream. Conforme a referida análise de White, credores da
Europa provavelmente enfrentarão algumas das maiores
perdas (haircuts). Bancos europeus já admitiram US$2 trilhões de empréstimos
que não serão pagos: eles estão fortemente expostos a mercados emergentes
e estão quase certamente estendendo o prazo (rolling over) de mais dívidas
podres que nunca foram reveladas.
Em relação especificamente à situação do Fed (banco central dos EUA), White
sentenciou estar agora “num horrível impasse pois tenta libertar-se da QE
(Quantitative Easing) e aprumar o navio outra vez. “É uma armadilha da dívida.
As coisas estão tão ruins que não há resposta certa. Se subirem as taxas [de
juros] isso será detestável. Se não elevarem, isso apenas faz as coisas piores”.
Resumindo: as considerações últimas de Cristine Lagarde (FMI), Martin Wolf
(Financial Times) e especialmente de William White convergem para a ideia de
que, nos marcos obscuros da continuidade da crise, a elevação em 0,25% da
taxa básica de juros pelo banco central americano (FED) em dezembro vai
acirrar a guerra cambial (de capitais), reforçará a instabilidade financeira e
aprofundará a desaceleração global.
Quinze anos depois da queda, falência!
E desnecessário detalhar o irrefutável e já célebre relatório da ong. britânica
OXFAM Internacional (1942) de 18 de janeiro de 2016:
• Em 2015, só 62 pessoas possuíam a mesma riqueza de 3,6
bilhões da metade mais pobre da humanidade. Em 2010 eram
388 pessoas. Essa riqueza sofreu incremento de 44% em
apenas cinco anos. Enquanto isso, essa metade mais pobre
sofreu redução0 em mais de U$ 1 bilhão de dólares, um
colapso de 41%! Ou 1% de ricos detém a mesma riqueza que
99%! [6]

China: comando nacional de política econômica


A propósito, no último mergulho de 2015 houve quem visse na situação do sistema
de relações internacional um quadro assemelhado ao pós-1930, antecessor dos
acordos internacionais de Bretton-Woods (1944): grande fragmentação geopolítica,
formações de blocos e dificuldades crescente par a imposição de um sistema
monetário internacional exaurido e inviável ao mundo, contudo ainda sustentado
artificialmente numa moeda (dólar).

119
De fato, de uma parte, cumpre notar que o yuan da China adquiriu o status de
uma divisa oficial de reserva: a decisão foi tomada pelo Fundo Monetário
Internacional em 30 de Novembro de 2015. A moeda chinesa, o yuan, tornou-
se a quinta divisa oficial de reserva, juntando-se ao dólar americano, ao euro,
ao yen japonês e à libra britânica. Mais ainda: a seguir, com base no peso
estabelecido pelo Fundo, o yuan tenha sido imediatamente classificado em
terceiro lugar no cesto de divisas de reserva do FMI, à frente do yen e da libra.
De outra parte, a China convive às convulsões sistêmicas da crise capitalista
gestada no ventre do declínio americano, simultaneamente à estratégia traçada
da necessidade de um “aggiornamento” de um modelo de desenvolvimento
baseado fundamentalmente no gigantesco setor exportador para outro de
avanço dos serviços de tecnologia mais sofisticada e um comércio voltado
fortemente à demanda e consumo internos. Seu crescimento excepcional de
6,9% em 2015 é prova inconteste de seu controle sobre a política econômica
nacional.
Considerado grande especialista na economia chinesa, Roberto Dumas
(mestre em Economia da China pela Universidade de Fundan e em Economia
Mundial pela Universidade de Birmingham, na Inglaterra) assegura que os fatos
registrados na China na segunda-feira, 04/01 (desvalorização da moeda
nacional, o yuan, e quedas simultâneas nas duas Bolsas de Valores, de
Shangai e Shenzhen), só surpreenderam quem não conhece as decisões das
autoridades chinesas: “O que está acontecendo na China nada mais é do que o
resultado de uma bem planejada política econômica de Governo, produzindo
os efeitos esperados”, informa Dumas. [7]

*Publicado em Portal da Fundação Mauricio Grabois, 07.04.2016

NOTAS
[1]Ver: “Mundo enfrenta onda de inadimplência de dívidas épicas, teme
veterano banco central”, A. Evans-Pritchard, The Telegraph, 19/01/2016.
http://www.telegraph.co.uk/finance/financetopics/davos/12108569/World-faces-
wave-of-epic-debt-defaults-fears-central-bank-veteran.html
[2]Ver: “FMI espera desempenho negativo da economia mundial em 2016”.
(http://www.granma.cu/mundo/2015-12-30/fmi-espera-negativo-desempeno-de-
la-economia-mundial-en-el-2016-30-12-2015-21-12-52)
[3] Em: “OCDE reduz de novo projeção de crescimento da economia mundial”.
http://g1.globo.com/economia/noticia/2015/11/ocde-reduz-de-novo-projecao-de-
crescimento-da-economia-mundial.html.
[4] Ver: “O cartel bancário que dirige o mercado de petróleo”, V. Katasanov.
http://www.strategic-culture.org/news/2016/01/18/banking-cartel-that-steers-oil-
market.html. Traduzido em resistir.info
[5] Em: “Essa turbulência é resultado do erro do banco central dos EUA”, M. Wolf, Folha
de S.Paulo/Financial Times, 13/01/2016.

120
[6]Ver:
http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160118_riqueza_estudo_oxfa
m_fn
[7] Ver: “É preciso entender a China: não é crise – é política econômica”, em:
Sputnik [http://bit.ly/1JVHnHx] 07/01/2016.

121
Características e fases da grande crise capitalista iniciada em 2007-8
(TEXTO INTEGRAL)*
O diretor de Estudos e Pesquisas da Fundação Mauricio Grabois, A. Sérgio
Barroso, apontou as características e as fases da crise de 2007-2008, a sua
evolução e a tendência atual, durante a primeira mesa do IV Seminário Nacional
de Estudos Avançados do PCdoB, cujo tema central foi "O golpe no Brasil como
parte da ofensiva do imperialismo no mundo e na América Latina."

A. Sérgio Barroso discute como evolui a crise econômica mundial Foto: Cezar
Xavier

(...) A ideia era de que a exposição do professor Belluzzo fosse sobre a crise,
sobre os aspectos mais estruturais da crise. A sugestão aqui da direção da
Escola (João Amazonas), à qual agradeço pelo convite, era de tocarmos
também um pouco nesses aspectos da crise capitalista atual. Nessas
circunstâncias a nossa contribuição vai ser limitada.

Vou dividir minhas observações em três questões gerais e uma conclusão. A


primeira é recuperar um pouco esse trabalho que a escola, o partido e sua
direção vêm fazendo, no sentido do exame detalhado – eu diria bastante
acurado, embora com as limitações evidentes relacionadas à complexidade e à
natureza do contemporâneo processo de formação teórico-ideológica. A seguir,
as características e as fases dessa crise de 2007-2008, a sua evolução e a
tendência atual.

E, de fato, o Luís (Fernandes) já falou sobre isso e tem insistido e escrito


bastante sobre o tema, representando também a nossa opinião sobre o assunto.
Nós vivemos um período de transição, um elemento de grande profundidade

122
desse sistema de relações internacionais tanto do ponto de vista
geoeconômico quanto geopolítico. Então, quero resgatar que, desde 2003,
quando reestruturamos a Escola Nacional, o principal tema do debate que
orientou os trabalhos desse primeiro Curso Nacional nosso foi, exatamente, o
exame do capitalismo contemporâneo. Suas características, a natureza do
capitalismo contemporâneo.

Noto então que, bem antes da grande crise, já vínhamos procurando examinar
essas mudanças que vêm se processando na dinâmica do capitalismo. Mais
para frente um pouco, no ano da crise, no final de 2007 (em agosto), fizemos,
em novembro, um seminário no qual abordamos a crise e seus aspectos
geopolíticos, contemplando as transformações, o mundo em transição. Também
promovemos um seminário internacional sobre o assunto, com convidados
estrangeiros etc.

Lembro-me que havia representantes da Venezuela, da China, do Vietnã, de


Portugal. O exame, da nossa parte e do trabalho da escola, vem se orientando
exatamente por esse processo de busca do entendimento dessa nova situação
criada. Mais para frente, nós fizemos esse outro esforço de contribuição, com
análise mais abrangente, sobre a crise capitalista global, de 2007 até 2013, suas
conexões e tendências. Culminou num estudo que já pega a crise num certo
andamento e que teve a colaboração de 20 autores daqui e de fora do país,
resultando num livro que acreditamos ter uma contribuição importante a dar.

Nessas três facetas da crise (a gênese e o desenvolvimento dela e as conexões


de perspectiva que elas apresentariam), vai nesse sentido o esforço da
Fundação, do trabalho da Escola, do Partido, e com a ajuda de vários
intelectuais, de fazer o exame também mais aprofundado dessa junção. Digo
isso entrando na segunda questão, porque algumas dessas conclusões vimos
debatendo na escola, nos Estudos Avançados.

Nós fizemos o primeiro ciclo de Estudos Avançados sobre a crise e a finança


capitalista e também tivemos grande audiência e participação muito grande. O
professor Belluzzo abriu esse debate com uma conferência. E, então, a crise e a
finança capitalista, quer dizer, a dinâmica da finança capitalista nesse processo
da crise, e, como eu dizia, vimos então procurando extrair algumas conclusões
desse debate, embora sabemos, com a crise ainda em curso, que continua sem
horizonte de definição concreta, real.

O comando político da “financeirização”

A primeira dessas conclusões foi lançada já no seminário de 2007. E foi uma das
preocupações que o camarada Renato Rabelo levantou como um dos pontos
que serviram para orientar o nosso debate, ou à qual os conferencistas
pudessem responder durante as suas exposições e no curso do seminário. E a
questão é essa que o Renato levanta: a “financeirização”, “a dominância
financeira” ou o “regime dirigido pelas finanças”, e as suas diversas
denominações, já apareciam com frequência na literatura, na interpretação de
vários autores e na análise mesmo do movimento comunista. Uma contribuição
dos marxistas e do movimento comunista. Ou seja, por um outro viés, a

123
liberalização das finanças, a desregulamentação comparecia no debate. Mas,
como se relaciona o processo de “financeirização” com o sistema de poder do
capitalismo global? Então, essa ideia vai, a partir de 2007, colando a ideia de
que o processo de financeirização capitalista ou financeirização da riqueza ou o
processo de produzir, gerir e realizar essa riqueza tem um comando político e
concreto. Isto é, ele sofreu orientação de um programa que terminou por se
denominar neoliberal, a partir da crise capitalista dos anos 1970, em particular
com a ascensão de Thatcher e Reagan – fato que expandiu essas políticas,
posteriormente para a Alemanha, para o Japão e outros países, tomando essa
feição na qual os governos passaram a aplicar um programa de desmonte das
conquistas de pós-guerra, em particular a partir do desmonte dos pilares dos
acordos econômicos, financeiros e comerciais que tiveram vigência nos famosos
Acordos de Bretton-Woods (1944).

Passou então a intervir na periferia do capitalismo, no sentido de que o processo


de liberalização e desregulamentação, antes ocorrido no centro do capitalismo,
se estabelecesse também como uma imposição dos grandes grupos financeiros
e do poder econômico capitalista dos países imperialistas. Não só dos Estados
Unidos, mas também do comando dos países imperialistas. Prevaleceram os
interesses dos bancos, das grandes corporações etc. Esse processo vai se
materializando de uma maneira a se afirmar a compreensão da relação existente
entre a materialidade do poder político, das correntes políticas e a aplicação
paulatina do programa neoliberal. Aquele processo posterior de crise evolui
depois e se estabelece sobre essas premissas. Ou seja, não é um mecanismo
do movimento endógeno da hegemonia histórica da finança no modo de
produção capitalista em si.

Marx, já no final do século 19 – discutimos sobre isso no seminário A crise,


Marx e as finanças capitalistas –, tratava do problema do predomínio do capital
portador de juros, do capital financeiro sobre as outras formas do capital
(industrial e comercial), e como uma manifestação superior das formas que a
riqueza assumiu em relação às formas pretéritas desse modo de produzir
riquezas.

Essa questão geral, uma visão extraordinária de Marx, evidentemente um


processo, sofreu enormes transformações. Lênin examinou o mesmo tema já
sob uma outra ótica, do século 20. As formas de produção dessa riqueza e as
formas da crise do capitalismo se estabeleceram nesse processo de
desenvolvimento que vai, no pós-Segunda Guerra, da ruptura dos acordos e da
ascensão e aplicação desse programa neoliberal.

Então, nessa segunda ordem de questões, ou seja, de uma conclusão de


interpretações, é importante ressaltar que essa ideia da relação da
“financeirização” e a operação de poder político – que estabelece o programa
neoliberal –, do que nós temos debatido e escrito também, pode-se configurar
esta crise evoluindo – de modo esquemático – em pelo menos três ou quatro
momentos.

O primeiro momento se estabelece com a crise de agosto de 2007, que é a das


hipotecas “subprime” (inadimplentes) – embora o pessoal comente muito que a

124
crise é de 2008. Claro que essa de setembro de 2008 (falência do banco
Lehman Brothers) tem impacto internacional muito mais forte: ela trona a crise
global, iniciada um ano antes aproximadamente, em uma crise sistêmica. Mas
ela está inteiramente vinculada aos mesmos processos endógenos que se
estabeleceram sobre a crise de caráter financeiro das hipotecas subprime. Mas
não só isso: apesar de ter tido sua emergência nos Estados Unidos – por isso
que é importante distingui-las do processo de 2008 –, ela não foi só um
problema “americano”.

Assim, em setembro de 2007 os problemas no mercado de crédito fazem o


banco de empréstimo subprime, Northern Rock, pedir ajuda ao Banco Central
britânico e, cinco meses depois, o Northern Rock é nacionalizado. E também o
grande banco francês Paribas, no segundo semestre 2007. Em março de 2008
houve resgate do Bear Stearns: o banco de investimentos JP Morgan Chase –
seu rival – se oferece para resgatá-lo. E assim por diante.

Um sistema financeiro sombra

Ora, tais colapsos ocorreram fundamentalmente em função do acúmulo de


dívidas, títulos e papéis podres, que eram as hipotecas “empacotadas” em
empréstimos tidos como securitizados (seguros), em inúmeros bancos do
sistema financeiro internacional. Na prática, dívidas tituladas que não tinham
como ser pagas, dado principalmente a aguda crise de crédito, sob abrupta
subida da taxa básica de juros dos EUA. O processo entrara num grande circuito
de crise financeira ou de crédito internacional. Posteriormente, foram analisados
detalhes complexos de configuração interbancária que, na verdade, escondiam o
que foi denominado, já em 2008, como bancos–sombra: o “sistema financeiro
sombra” (shadow financial system). É um sistema bancário no qual os próprios
Bancos Centrais dos países mais importantes do centro do capitalismo omitiam
a existência dessas operações nos balanços dos outros grandes bancos, que
não eram registrados. Ou seja, eram balanços falsos, fantasmas. Realizavam-se
gigantescas operações fictícias e especulativas, encobertas, que não constavam
nos balanços.

Essas características aparecem em 2007 e 2008. Mas ela surge como a


explosão na chamada bolha financeira das hipotecas subprime – e não antes ou
depois. E isso não é uma coisa menor. Teve influência significativa no colapso
do próprio banco Lehman Brothers, em setembro de 2008, lotado de hipotecas
inadimplentes “empacotadas” por outros serviços bancários.

A distinção que podemos – e devemos – fazer são as fases dessa crise. E que,
em 2008, o sistema financeiro internacional colapsou completamente. Ou seja,
nesse ano a crise se tronou sistêmica quando houve interrupção abrupta do
sistema que financia o movimento do capital global! Do centro à periferia. Todo o
financiamento da economia capitalista mundial sofreu o chamado credit crunch,
um estancamento ou ruptura do crédito internacional.

Dou sempre dois exemplos simples nos nossos debates da escola, para ver o
impacto dessa ruptura no sistema de financiamento: No final de 2008 a Vale

125
demitiu dois mil trabalhadores, sem explicação. E, logo depois, a Embraer
demitiu quatro mil e duzentos trabalhadores, sem explicações.

Lembro que Lula chamou a direção da Embraer para explicar, que disse que
havia a concorrência da Embraer [Empresa Brasileira de Aeronáutica] com a
Bombardier, do Canadá, e que se não ocorressem providências no sentido de
cortar custos, manter investimentos, manter financiamentos internacionais, a
Bombardier ultrapassaria a primazia da Embraer como a maior produtora de
jatos para voos regionais do mundo.

Isso foi chantagem, não foi argumento. Um argumento corporativo de que a


Bombardier passaria a assumir a posição da Embraer, que continua a ser uma
empresa de excelência na fabricação de jatos regionais de alta sofisticação. E,
no caso da Vale, lembrem-se de que houve uma pendenga, na qual o presidente
da empresa foi demitido – mas depois, somente no governo da Dilma. Houve
então uma briga entre Lula e o presidente da Vale, Roger Agnelli.

Parada abrupta dos investimentos ou dos “pagamentos”

Na crise houve então um impacto de tal ordem, a revelar uma das principais
características da crise do capitalismo global – mais ainda capitalismo
“financeirizado” –, que é a parada súbita do investimento. Essa era a ideia já
contida em Marx, e não é invencionice. Marx fala da parada da acumulação, que
é exatamente processo que, ao se gerar a mais-valia, pode levar ou não ao
reinvestimento. Esse é o processo do dinamismo – ou não, repito – capitalista. A
parada da acumulação, ou seja, a parada do investimento, a suspensão da
compra ou encomendas já anunciadas de máquinas e equipamentos
sofisticados tecnologicamente, para aumentar a produtividade, só assim para
driblar a concorrência e ter maiores lucros no processo da produção.

Então, essencialmente, a crise se estabelece dessa maneira. E hoje esse


fenômeno se repete. Na nossa opinião – e isso é um debate que travamos aqui
na escola –, esse mesmo processo de superacumulação, desde o mecanismo
originário de superprodução de capitais, e mercadorias, que Marx descrevia, se
processa de modo similar nesse grande cassino que se alimenta no capitalismo
“financeirizado”. No sentido de que se compreenda os títulos (imobiliários e
outros), além das hipotecas, como sendo genuinamente capitais que portam –
são produtores de – juros.

Há especulação desenfreada nesse processo gigantesco de acúmulo de papéis


com essa interconexão que a informatização acelerou. Como sabemos,
transformando tudo não só numa loucura de investimentos e de especulações
de compra de títulos e jogo especulativo de futuro. É uma novidade muito forte a
instituição dos derivativos, contrato de futuros que derivam de determinados
contratos (moeda, commodities, câmbio, juros etc.). Então, denominando-se
pomposamente de “inovações financeiras”, funciona para commodities, para
barril de petróleo, funciona para moedas, títulos, para tudo que possa
representar mercadoria-capital.

126
Esse processo de agigantamento dos ativos financeiros é que caracteriza a
deflagração dessas crises mais recentes. Não é um problema exclusivamente da
produção, que vai cada vez sendo mais afetada pelo setor financeiro, pela crise
que desaba do setor financeiro e incide sobre o processo da produção capitalista
como um todo. É a célebre definição de “autonomia relativa” das esferas da
produção e financeira.

Fase ou etapa atual da crise

Assim, após a crise das hipotecas “subprime” – depois de uma outra fase, a de
setembro de 2008 ou a da falência do baco Lehman Brothers –, nós podemos
visualizar uma outra fase de impacto, que é a chamada crise das dívidas
soberanas na Europa, concentradamente em 2010. Ela foi o resultado de todas
essas políticas “terapêuticas” que nós acompanhamos desde 2007: os Bancos
Centrais financiando a crise socorrendo os grandes bancos – “grandes demais
para falir”, diziam – com uma trilionária injeção de dólares, euros ou ienes, tanto
faz. Uma montanha inimaginável de dinheiro que nunca se viu em nenhum
momento no capitalismo, considerando-se o próprio desenvolvimento do papel
da finança, e mesmo essa incontrolável proliferação do capital fictício. Esse
debate vai e volta na comparação com a catástrofe e as características da
Grande Depressão de 1930.

Abro parênteses aqui: se em 2007 houve a crise do subprime,


fundamentalmente das hipotecas, isso se alastrou pelo mundo inteiro. Não era
só um fenômeno americano. Isso teve a ver a seguir, como vimos, com a
implosão do Lehman Brothers, que foi muito mais grave do que a crise de 2007.
Aliás, o liberal Paul Krugman reeditou um livro, atualizado em 2009, chamado
exatamente A crise de 2008 – e a economia da depressão. Ele já remete aí ao
shadow banking system – banco-sombra –, ou aquele processo que ficava
submerso com essas mudanças que ocorreram notadamente desde a
“financeirização” do capitalismo.

Naquela época, o Estado não tinha mecanismos, até pela própria concepção
liberal do padrão vigente, que era do padrão-ouro no sistema financeiro
internacional. E, pela visão hegemonicamente liberal, não havia mecanismos de
proteção ou defesa, fato que levou, por exemplo, a estourar a crise de outubro
de 1929. Depois disso, ocorreu uma série de regulamentações, pelo próprio
presidente Roosevelt, nos Estados Unidos. Não só para criar leis que
protegessem, mas também isso inseriu o Roosevelt numa plataforma avançada,
progressista. Se for ver hoje, é quase uma plataforma de esquerda que ele
apresenta: O controle do sistema financeiro, controle dos monopólios, anistia e
refinanciamento das dívidas da população, criação da Previdência Social, logo
no início dos anos 1930 etc.

Também foi implantada a principal lei de regulamentação do sistema financeiro –


a Lei Glass-Stegall, 1933. Na prática, o sistema financeiro americano que (ainda)
é muito pulverizado, muito estadualizado. São muitos bancos. Era, e é ainda,
diferente de outros países, inclusive da Alemanha. A transformação desses
bancos comerciais (que financiam no longo prazo) em bancos de investimento,
que trabalham no curto prazo (com títulos e todo tipo de papéis), atuou no

127
sentido de impedir que os bancos regionais americanos tivessem autonomia e
estabelecessem, por exemplo, uma taxa de juros à revelia do Banco Central
americano. Enfim, foram tomadas medidas pelas quais o Estado interveio para
fazer com que houvesse um processo regulatório sobre a crise originada em
1929.

Hoje, essas crises das dívidas soberanas têm muito a ver com os títulos públicos
nos Bancos Centrais que passaram, na verdade, a cobrir o buraco financiando a
banca privada, à custa do Estado e do povo. Outro fenômeno revelador da
imensa fragilidade da teoria dos mercados autorregulados: de que na dinâmica e
crises do capitalismo eles se equilibram ou se autorregulam e resolvem as crises
que, com essa intervenção avassaladora do Estado. Ora, praticaram políticas e
operações que nunca tiveram precedentes na história do capitalismo. Noutras
palavras: da execração e do ataque cerrado ao Estado em geral passou-se à
manipulação descarada das finanças públicas estatais para salvar bancos e
bilionários dos prejuízos por eles criados!

Mais uma vez: os teóricos do mercado autorregulado passaram cerca de 30


anos dizendo que tinha que ser tudo desregulado e a economia protegida pelos
mercados, quando veio uma crise gigantesca e o Estado veio mostrando a
necessidade de se autorizar o alargamento intervencionista do próprio
Estado, com endividamento extraordinário, crescente e simplesmente impagável
hoje.

Expansão da liquidez, “bolhas”, crise financeira

Se analisarmos as referências do endividamento dos bancos e do endividamento


dos Estados europeus antes de 2007 e 2008 e agora, vemos uma coisa que foi
se multiplicando, não parou. Continua crescendo e provoca um endividamento
impagável: 270% do PIB (Produto Interno Bruto), no Japão; 170% na Itália;
106% nos EUA; Na Grécia, em Portugal e na Espanha mais que dobrou. Houve
um processo de agigantamento dessas dívidas.

Partindo para a última parte, em que estágio estaríamos nessa crise? Nessas
fases de 2007, 2008 e 2010, há bastante nitidez de que nada do que foi feito
pelos Bancos Centrais, por meio dessas injeções trilionárias e criação de outros
mecanismos que os americanos inventaram, é novidade, pois os ingleses
utilizaram primeiro, depois o Japão, e depois o Banco Central europeu, nessa
sequência, que foi denominado de Quantitave Easing (QE). Significa – a
“flexibilização quantitativa” - simplesmente que o próprio governo passa a
comprar títulos do Tesouro e outros ativos e injetar o dinheiro correspondente na
economia. Monetizar esse dinheiro no mercado e dispô-lo para compra e para
especulação financeira no mundo inteiro. Por isso também que as “bolhas
financeiras” voltaram, que é a conclusão pública de um debate à qual se chegou
mais recentemente.

Então, houve um processo de expansão gigantesco, não só de expansão da


chamada liquidez. Quer dizer, há a riqueza financeira fictícia que pode ser
transformada em dinheiro, em qualquer canto. Esse processo de expansão, ao
invés de resolver o problema dos investimentos na produção, gerou mais

128
aplicação novamente para a esfera financeira, de uma forma avassaladora e
incontrolável. Não satisfeitos com esse negócio, os Bancos Centrais passaram a
fazer taxa de juro zero. Já estava baixa. Na Europa, estava em torno de 2%, na
época. E o processo da crise de 2010 resultou em taxa de juros zero.

Isso se generalizou, porque passou a haver um processo de ampliação da


concorrência, no sentido de que se cai a capacidade de comprar dinheiro para
investir ou tal moeda de deprecia, para emprestar, tenho que fazer isso também.
Não satisfeitos com isso, os juros passaram a ser negativos. Inclusive implicando
certas perdas para o sistema bancário-financeiro, do sistema bancário, por
causa do mecanismo complexo que estabelece o processo de empréstimos com
a taxa de juros negativos sobre títulos dos governos que seriam ressarcidos por
uma tal taxa de juros, que virou negativa.

Recentemente o presidente do Banco Central europeu, Mario Draghi –


banqueiro esperto e fino especulador – anunciou: “nós continuaremos com a
política de expansão quantitativa, novas rodadas de mais empréstimos”, a ponto
de esse processo ter gerado um debate nos Estados Unidos, com economistas
destacados neoliberais e mesmo reacionários – alguns que já foram do FMI –,
avaliando que o negócio do “dinheiro de helicóptero” deve ser uma política, pois
assim se coloca dinheiro direto na conta do consumidor para ele comprar
imediatamente. Um processo de crédito barato, com dinheiro suficiente para
fazê-lo consumir. E isso continua em debate, com gente deles aí defendendo.

Agora em maio último, o primeiro-ministro japonês, na reunião do G7, deu uma


entrevista ao Le Monde, dizendo o seguinte: “Nova crise global financeira está
no horizonte". Tentaram desfazer, mas ele já havia dado a entrevista. O
banqueiro e professor francês, Patrick Artus, disse que a crise de 2007-2008
levou a um estado de “crise financeira permanente” na economia mundial. Em
entrevista há pouco tempo (Valor Econômico), comentou que recém-lançara um
livro sobre o assunto, intitulado A loucura dos bancos centrais. É que, além de
economista, ele deve ser psiquiatra também – ou precisar dele. Mas ele ali ainda
diz de importante o seguinte: “Hoje, há um excesso de liquidez de circulação,
onde a base monetária do mundo, ou a liquidez criada pelos bancos centrais, é
de 23 trilhões de dólares, comparada a 2 trilhões de dólares, há 20 anos. E essa
liquidez, criada pelos Bancos Centrais, representa cerca de 30% do PIB mundial
hoje. Era 6% no final dos anos 1990”.

Nessa direção o professor Belluzzo escreveu com outro economista um artigo


interessante, antes da entrevista desse Patrick, na qual ele diz o seguinte: “Em
2008, a bolha de bonds, de títulos, ações, era de 80 trilhões de dólares, hoje
supera 100 trilhões de dólares. O mercado de derivativos, que usa essa bolha de
bonds como colateral, supera 555 trilhões de dólares”.

A conclusão dele, e de outros autores, é a de que estamos numa nova crise


financeira. E, como disse enfaticamente Patrick, essa nova crise financeira no
horizonte será pior do que a de 2008. Esse sujeito é um banqueiro de 70 anos
de idade. Um homem rico, economista formado. Não tem nada que ficar dizendo
tolices. Por isso, destaco que esse primeiro-ministro japonês tem toda razão em

129
expressar que a tendência que temos pela frente é a de uma nova crise
financeira.

Uma consideração final

O que considero muito pior: isso deve ocorrer quando estamos num estágio, ou
numa outra fase dessa crise depressiva e cronificada, inédita, pelas
características acima assinaladas, em que ela se desdobra para a periferia do
capitalismo. No nosso caso, a América Latina e o Caribe, o processo que resulta
da crise global e europeia, e mais recentemente a desaceleração (controlada) da
China, reserva-nos um agravamento no descenso das taxas de crescimento
econômico e um aumento do desemprego desde o segundo semestre de 2011
(Cepal, Comissão Econômica para a América Latina).

*Publicado em Portal da Fundação Maurício Grabois, 09.08.2016

130
Notas sobre o “inimigo principal”*
“O mercado monetário é sempre, por assim dizer, o quartel general do sistema
capitalista” (Schumpeter) [1]
Há poucos dias foi o poderoso Deutsche Bank (alemão) a anunciar demissão
de 9 mil trabalhadores bancários para “melhorar a frágil situação do banco”,
descreve o Financial Times. Isso representaria 9% do staff do banco, sendo
que quatro mil demissões dessas ocorrerão na Alemanha. Além, o banco
resolveu reduzir em 6 mil, dos 30 mil consultores externos usados em área com
a de tecnologia e informação. Também saindo fora de dez mercados,
principalmente em cinco países da América Latina, com a venda do Postbank
(subsidiária) o Deutsche passará o “facão” em nada menos que outros 19 mil
empregos!
(http://www.valor.com.br/imprimir/noticia/4293846/financas/4293846/deutsche-
bank-demitira-9-mil-e-saira-de-dez-mercados).
Mas qual a razão essencial das medidas tomadas pelo Deutsche, o maior dos
bancos da Alemanha? O próprio FT esclarece mais adiante que, pagante de
uma multa de U$ 2,5 bilhões tomada por sua participação no escandaloso
episódio de manipulação da Libor britânica (taxa de referência para juros
interbancários, tabelada em Londres), culmina-se a demissão de seu
executivo-chefe adjunto A. Jain [2]. O que foi seguido por nova falcatrua
envolvendo o banco, desta vez na Rússia, então flagrado em lavagem de cerca
de US$ 6 bilhões, nos últimos quatro anos – o diário londrino omite menção à
operação de lavagem. [3]
Grande banco lava e financia o “terrorismo”
Não à toa temos registrado uma comprovação indisfarçável do contubérnio
fraudulento e criminoso do atual sistema financeiro internacional: em 17 de
Julho de 2012, tornou-se público e comprovado que David Bagley, diretor
mundial do banco HSBC para regulamentação pediu demissão em sessão no
Senado dos EUA. A sessão fora convocada para Bagley ser formalmente
acusado, após investigação, de permitir operações de lavagem de dinheiro do
narcotráfico (cartéis do México), bem como de dinheiro proveniente de
financiadores de “grupos terroristas” (Arábia Saudita). A alta direção do banco
sabia de tudo! [4] O banco tem raízes mergulhadas em guerras coloniais e
comerciais conduzidas pelo imperialismo inglês na Ásia.
De acordo ainda com extensa reportagem da irreverente (e insuspeita de
“esquerdista”) Revista Rolling Stone (http://thoth3126.com.br/banqueiros-
gangsters-muito-grandes-para-serem-presos/), durante pelo menos cinco
anos esse maior banco britânico ajudou a lavar centenas de milhões de
dólares para traficantes de drogas, incluindo o cartel de Sinaloa do
México, declarou o ex-procurador-geral de New York Eliot Spitzer: eles “fazem
os caras em Wall Street parecerem bonzinhos”.
O banco HSBC também lavou dinheiro para organizações terroristas ligadas à
Al-Qaeda, para gângsteres russos, entre outros; teria transacionado com o Irã,

131
Sudão e a Coréia do Norte, países sancionados pela ONU. “Além de ajudar
assassinos, traficantes de drogas, terroristas e estados desonestos”, auxiliando
fraudes fiscais comuns para esconder muito dinheiro – afirma com todas as
letras Jack Blum (advogado e ex-investigador do Senado dos EUA), chefe de
uma investigação de suborno importante contra a empresa Lockheed em 1970.
“Eles violaram todas as malditas leis que constam no livro”; “Eles fizeram
todas as formas imagináveis e possíveis de negócios ilegais e ilícitos” –
disparou então Blum, na mesma reportagem.

Oligopólio bancário global, gigantesca especulação sistêmica

Para François Morin, economista, professor emérito em Toulouse e membro do


conselho geral do banco central francês, uma “hidra” mundial bancária nasceu
há cerca de dez anos, e já tomou conta de todo o planeta. [5] Apenas 14
bancos com importância sistêmica “fabricam” derivativos, cujo valor imaginário
(o montante dos valores segurados) chega a US$ 710 trilhões, ou mais de 10
vezes o PIB mundial (Produto Interno Bruto).

Conta ainda Morin que, desde 2012 autoridades judiciais dos Estados Unidos,
britânicas e a Comissão Europeia aumentaram investigações e multas que
demostram que muitos desses bancos – especialmente onze deles (Bank of
America, BNP-Paribas, Barclays, Citigroup, Crédit Suisse, Deutsche Bank,
Goldman Sachs, HSBC, JP Morgan Chase, Royal Bank of Scotland, UBS) –
montaram sistematicamente “acordos organizado em bandas”. Isto é,
construíram um oligopólio movido à uma cartelização sistêmica. O que pode
ser visto na citada operação de manipulação da Libor e do mercado de câmbio,
que levou a imposição de multas de muitos bilhões de dólares, prática esta
cada vez mais generalizada.

132
Coincidindo com o avanço da “globalização financeira”, o super-oligopólio
bancário tornou-se muito rico: o balanço total dos 28 bancos do oligopólio
(50,341 trilhões de dólares) é superior, em 2012, à dívida pública global
(48,957 trilhões de dólares)! Suas dívidas privadas tóxicas foram maciçamente
transferidas para os Estados, na última crise global. Ao lado de montanhas de
riqueza fictícia, por suposto.

Na argumentação de Morin, depois dos anos 1970 os Estados perderam “toda


a soberania monetária” - sendo eles os responsáveis. A moeda agora é criada
pelos bancos, na proporção de cerca de 90%, e pelos bancos centrais (em
muitos países, independentes dos Estados) os restantes 10%. Além disso, a
gestão da moeda, através de taxas de câmbio e taxas de juros, está
inteiramente nas mãos do oligopólio bancário, que tem todas as condições para
manipulá-los. O desastre “está diante de nós” conclui Morin; e se um novo
terremoto financeiro ocorrer - “as condições estão maduras” - os Estados estão
exauridos, e será “ainda mais grave do que o precedente”.

Fraude bancária no Brasil.

No último dia dezoito, veio à luz no Brasil [6] que o Conselho Administrativo de
Defesa Econômica (Cade) negocia acordos com bancos que estão sendo
investigados por “supostas” (?) manipulações nas taxas de câmbio no Brasil,
entre 2009 e 2011, pelos quais eles terão que entregar provas de cartel para
obter redução de penas.

Dos 15 bancos investigados, logo uma surpresa! Os mesmos HSBC e


DEUTSCHE encabeçam a lista junto ao Banco Standard de Investimentos, o
Banco Tokyo-Mitsubishi UFJ, o Barclays, o Citigroup, o Credit Suisse, o J.P.
Morgan Chase, o Merrill Lynch, o Morgan Stanley, o Nomura, o Royal Bank of
Canada, o Royal Bank of Scotland (RBS), o Standard Chartered e o UBS.

Provando cabalmente que nada há de “suposto” na operação fraudadora


multinacional no país, o suíço UBS já assinara em julho passado um “acordo
de leniência” assegurando documentalmente ter havido sua participação na
patifaria planejada e executada! Mas há – diz-se no jornal - ainda 30 pessoas
físicas suspeitas de participação na roubalheira.

Marx e o sistema de crédito

Para Marx, a consequência decisiva do desenvolvimento capitalista converge


para o que denomina de “moderno sistema de crédito”. Ou seja, na medida em
que: (i) a concentração (e centralização|) de capitais; e, (ii) o moderno sistema
de crédito são por ele considerados as principais “alavancas da acumulação
capitalista”. Nele localiza os pressupostos sobre o impulso à superacumulação
de capital tendo por base a dinâmica permanente do capital financeiro (capital-
dinheiro ou capital monetário) e sua direta relação com superacumulação,
especulação e crises. Em suas visionárias palavras:

“Se o sistema de crédito é o propulsor principal da superprodução e da


especulação excessiva... (...) acelera o desenvolvimento material das forças

133
produtivas e a formação do mercado mundial... (...) Ao mesmo tempo, o crédito
acelera as erupções violentas dessa contradição, as crises... (...) levando a um
sistema puro e gigantesco de especulação e jogo”. [7]

*Publicado em Portal vermelho; Portal da Fundação Maurício Grabois,


27/11/2015

NOTAS
[1] Em: “A teoria do desenvolvimento econômico”, J.A. Schumpeter, Abril
Cultural, 1983 [1911], p. 86).
[2] Acompanhe esse revelador episódio aqui:
https://br.noticias.yahoo.com/mundo-econ%C3%B4mico-pol%C3%ADtico-
comemora-demiss%C3%A3o-diretores-deutsche-bank-174848465--sector.html
[3]Ver:http://www.jornaldenegocios.pt/empresas/detalhe/
presidentes_do_deutsche_bank_renunciam_apos_escandalo_das_taxas_de_ju
ro.html
[4]Ver: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/55138-hsbc-lavou-dinheiro-diz-
senado-dos-eua.shtml
[5] Em: “A hidra mundial. O monopólio bancário”
(http://outraspalavras.net/posts/os-28-bancos-que-controlam-o-dinheiro-do-
mundo/).
[6] Em: “Bancos negociam acordos com o Cade”, J. Basile, Valor Econômico,
18/11/2015.
[7] Ver: O Capital, Livro 3, volume 5, p. 510, Civilização Brasileira, s/data.

134
Capitalismo e desigualdades. Notas teóricas introdutórias (parte I)*

A. Sérgio Barros

1. Já no Discurso sobre a Origem e os fundamentos da desigualdade entre


os homens (1774-5), de J-J Rousseau, irrompe a vulcânica descoberta acerca
do significado da gênese das desigualdades entre as classes (e os homens): o
monopólio da propriedade privada. Há, diz ele antes, uma desigualdade moral
ou política convencional, estabelecida no privilégio de alguns serem mais ricos;
uma outra, física ou natural. Mas a agricultura e a metalurgia revolucionaram a
estrutura de posse da propriedade, criando ato contínuo a escravidão e a
miséria. [1] Como enfatiza Dent [2] para Rousseau a “ambição devoradora”
para aumentar a fortuna relativa passou a ser menos por necessidade e mais
para que ela alce o proprietário “acima dos outros”.

Após a Revolução Francesa, a Crítica da Filosofia do direito de Hegel


(1843), embora essencialmente concentrada no desvelar das contradições
hegelianas e sua filosofia do Estado prussiano; afirme o desmascaramento do
uso da Constituição como corolário da soberania do monarca – “O arbítrio é o
poder soberano”, repetia Hegel [3] -, Marx, ali, não só evocaria modernas
lições rousseaunianas do apartamento e da alienação política do povo na
transição feudo-burguesa. A propriedade privada – “tem a razão romana e o
coração germânico”, sublinha Marx [4] - aparece então como “fato inexplicável,
não um direito” (idem). Sendo que ela passa a ser a constituição política do
ponto culminante daquele estágio de desenvolvimento: “A propriedade privada
é a existência genérica do privilégio, o direito como exceção”; implicando em
que “a mais alta disposição política é a disposição da propriedade privada” [5].

De outra parte, não surpreende que às certas concepções acerca da


desigualdade, imanentes ao movimento revolucionário dos círculos políticos
igualitaristas (especialmente) franceses (séculos XVII-XIX), por exemplo,
Antonio Labriola evoque posteriores formulações do Manifesto do Partido
Comunista (1848), do mesmo Marx, e Engels. Onde o comunismo
conspiratório – analisa o teórico italiano –, o blanquismo de Buonarroti, mesmo
de Bazard, da Carbonária, até Babeuf e o jacobinismo de Boisset e Fauchet, à
intuição de Morelly ou ainda a genialidade de Mably confluía a um igualitarismo
precursor “do socialismo violento, protestatário, conspiratório”. Porque o
Manifesto rompia com uma ideia “tão ingênua e assim toscamente
compreendida” de tal princípio de igualdade – arremata Labriola [6].

Com efeito, e além, segundo o Manifesto uma nova sociologia do capitalismo


irrompia sobre ruínas do regime feudal, num movimento em que: a) camadas
inferiores da classe média, pequenos industriais, comerciantes rentistas,
artesãos, camponeses sucumbiam nas fileiras do proletariado; b) dentre todas
as classes em oposição à burguesia, “só o proletariado é uma classe

135
verdadeiramente revolucionária. As outras classes degeneram e perecem com
o desenvolvimento da grande indústria” [7].

Assim, a constituição do capitalismo, àquela época de (e em) Marx revelava,


principalmente: a) assimetrias estruturais “separadas” pela propriedade
privada; b) antagonismos e desigualdades radicais de classe que convergiam
para a afirmação do proletariado como única classe verdadeiramente
revolucionária [8]. Ocorre que, notadamente em O Capital (1867) a ideia
(geral) de desigualdade entre as classes sociais passa a encontrar substrato na
dinâmica do regime do capital. Quer dizer, quando a determinação específica
do processo global da produção capitalista “não é mais do que um meio de
valorização, processo [de trabalho] que, por sua vez, enquanto tal, é
essencialmente produção de mais-valia, isto é, processo de objetivação de
trabalho não pago” [9].

Portanto, indispensável compreender que penetra na sociabilidade do regime


do capital a indissociabilidade de acumulação e reprodução de suas relações;
sendo como duas “estações” de uma mesma trilha, ou seções de um mesmo
movimento: a lei do processo de valorização do valor. Como destrinchou
Belluzzo [10], trata-se da lei fundamental do movimento do modo capitalista de
produção, lei interna, que o distingue dos modos anteriores; expressa as
relações capitalistas de forma transfigurada. Simultaneamente, conforme ainda
geniais assertivas de Marx, são a concorrência e o moderno sistema de crédito
as duas principais alavancas desse processo de acumulação capitalista.
Donde, definitivamente, concentração e centralização de capitais
redimensionam permanentemente as formas monopólicas de apropriação dos
lucros, da riqueza, propriedade e patrimônio.

Assim, importa sublinhar aqui que a fase imperialista do capitalismo apresenta


um salto formidável relativamente à questão do monopólio da propriedade. Nas
palavras certeiras de Mazzucchelli, agora é “claro, de início, que um reduzido
número de bancos e empresas – associados ou não – consegue estabelecer a
primazia de sua estratégia e de seus interesses sobre os principais fluxos de
acumulação. Este controle de poucos se exerce através do domínio dos
mercados e da capacidade de disposição sobre o conjunto do capital social”.
[11]

São igualmente preciosas as assertivas de Hobsbawm, mirando as


transformações que se processaram na natureza do capitalismo global, em
particular a ideia de que o aspecto crucial da nova situação econômica mundial
exigia das economias desenvolvidas a busca de novos mercados - por
“necessidade”. Também por isso o impacto mais significativo foi “sua profunda
desigualdade, pois as relações entre metrópoles e países dependentes eram
altamente assimétricas”; e dramáticos e decisivos os efeitos sobre os países
dependentes, mesmo não tendo sofrido ocupação. [12]

2. A caracterização aguda de Lênin, acerca do advento de uma nova fase do


capitalismo, o imperialismo, contrasta, por exemplo, com as de Max Weber ou
as de teóricos e intérpretes destacados da passagem ao capitalismo à época
dos monopólios. Seja a respeito do lugar daquele na história, seja no enfoque

136
do caráter crescentemente assimétrico e desigual deste capitalismo. Ou seja,
mesmo críticos poderosos como o norte-americano T. Veblen (“Teoria da
classe ociosa”, 1900), ou o brilhante J. Schumpeter (“Teoria do
desenvolvimento econômico”, 1911) [13] pressupunham visões de classe
ancoradas no capitalismo trustificado. Veblen, Schumpeter e Weber: formas
diferentes de defesa do capitalismo monopolista.

Weber, grande ideólogo burguês e ainda hoje aplaudido no mundo inteiro, em


seu portentoso estudo Economia e Sociedade (1913, 1918, 1920), além de
teorizar tendo como inspiradora da gestão da empresa capitalista moderna a
categoria racionalidade [14], a de dominação [15], e a de situação de
monopólio [16], formula, em linhas gerais, dessa maneira a configuração
classista desse seu capitalismo contemporâneo:

“Entre elas estão as ‘classes médias’, que abrangem as camadas, de todas as


espécies, que dispõem de propriedade ou qualidades de educação e daí obtém
sua renda. Algumas delas podem ser ‘classes aquisitivas’ (empresários – em
grande parte positivamente privilegiados -, proletários – negativamente
privilegiados), mas nem todas (camponeses, artesãos, funcionários)” [17].

“Positivamente privilegiada”. A fraseologia sofisticada weberiana – e mais que


empolada – expressa a fundamentação das estruturas teóricas da sociologia
de Weber, especialmente descrita em sua obra mais famosa, “A ética
protestante e o espírito do capitalismo” (1904-5). Ali, essencialmente, a
ética protestante, como ética do trabalho feita para a acumulação de capital (e
não para os gastos, as despesas, o consumo da riqueza - diz bondosamente
Weber) é o principal fator cultural para o desabrochar e o desenvovolvimento
do capitalismo. Sob o ângulo dos princípios, é clara a oposição à interpretação
marxista, na medida em que o valor ético (religioso) – profundamente idealista -
é quem cria as condições para um desenvolvimento econômico; de outro
ângulo, o fundamento ético do espírito do capitalismo significa a busca do lucro
estritamente como um fim em si mesmo, algo transcendental; o que se opõe a
satisfazer necessidades materiais pelo dinheiro. Ganhar dinheiro,
honestamente, é obrigação, pois se estaria eficientemente seguindo o caminho
certo e designado por Deus - diz Weber. [18]

Para Lênin (O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo, 1916), [19] é


conclusivo que a internacionalização capitalista resulta em maior desigualdade
do desenvolvimento, elevando às tensões, as contradições do capitalismo,
quando a luta por mercados e por fontes de matérias-primas torna-se furiosa,
propiciando tendências ás guerras. O que advém dos traços mais salientes
desta fase do capitalismo: 1) o monopólio, advindo dos processos de
concentração da produção; 2) a fusão do capital bancário com o industrial,
dando origem à “oligarquia financeira”; 3) a exportação de capitais, como forma
de ampliação dos lucros através do domínio econômico e territorial das
potências; 4) a constituição dos trustes e cartéis resultantes da expansão e
crescimento dos monopólios; 5) a associação e concorrência internacional dos
monopólios, em luta feroz para a obtenção de outros e maiores mercados; 6) a
luta pela partilha do mundo e a tendência às guerras interimperialistas.

137
E, baseando-se particularmente na análise de Marx sobre o papel do sistema
de crédito e bancário, Lênin assinala a nova fonte de espraiamento das
assimetrias estruturais do capitalismo monopolista:

“O característico do imperialismo não é o capital industrial, mas o capital


financeiro” (idem p.110). Sendo falso que “a dominação do capital financeiro
atenua as desigualdades e as contradições da economia mundial, quando, na
realidade, o que faz é acentuá-las” (idem, p. 113). Porque o “capital financeiro e
os trusts não atenuam, antes acentuam a diferença entre o ritmo de
crescimento dos diferentes elementos da economia mundial” (idem, p.115).

3. É de Lênin a teoria da lei do desenvolvimento desigual do capitalismo. E a


questão é retomada de maneira conseqüente por P. Baran em sua obra mais
importante, A economia política do desenvolvimento (1957); quando insistia
na atualidade da classificação do país subdesenvolvido pela “exigüidade de
seu produto social per capita”, ao lado de penetração violenta, e destrutiva
“pelo capitalismo ocidental”. [20] Segundo pós-guerra em que, distintamente
da “indefinição” hegemônica do pós-primeira guerra mundial, paradigmas
do centro imperialista tentaram impor a superioridade no debate teórico-
político e nos rumos do desenvolvimento econômico – tudo reforçado pela
escolta neoclássica – não admitida - de A. Lewis e W. Rostow. O
desenvolvimento aparece então como um processo eminentemente técnico,
indutor de uma sociedade industrializada onde o progresso tecnológico
contínuo estaria garantido [21]. Assim, as desigualdades capitalistas
também desapareceriam com “a maturidade industrial” (Rostow).

Na verdade, teorizava-se sobre sociedades completamente idealizadas, cuja


pobreza decorreria do “reduzido tamanho do setor capitalista” e onde os
processos de desenvolvimento eram entes que independem da época e
abstraem suas próprias mediações históricas. Aliás, a visão deformada
daqueles explicadores do nosso atraso omite que os processos de
industrialização da América Latina entre 1930-50 [22] passaram por
transformações e rupturas sócio-políticas de magnitude, no sentido da
impulsão industrializante e superação do atraso oligárquico. Numa verdadeira
vaga contra as pressões externas – notadamente as dos Estados Unidos –
Perón na Argentina, Vargas no Brasil, Ibañez no Chile, Cárdenas no México,
Paz Estenssoro na Bolívia, e, posteriormente, Alvarado no Peru (1968) e
Caldera na Venezuela (1971) lideraram o movimento de afirmação nacional
desses países.

Por isso inteiramente pertinente outra observação de Hobsbawm [23], focando


o impulso crucial da industrialização originária inglesa, articulando fatores de
mudança no capitalismo em geral: “Em primeiro lugar, a Revolução Industrial
não foi uma mera aceleração do crescimento econômico, mas uma aceleração
de crescimento em virtude da transformação econômica e social – e através
dela”.

Considerações finais

138
Perfilamos aqui certo debate teórico buscando re-demonstrar que o fenômeno
das desigualdades acompanha o capitalismo desde o nascimento e sua
constituição enquanto modo de produção. Estrutural, na verdade, na medida
em que se desenvolve o capitalismo espalha manifestações de desigualdades
para todas as esferas das relações econômicas, sociais e políticas. São suas
leis de movimento que lhe asseguram contradições endógenas e imanentes. E
assinalamos que o processo de reprodução e permanência/renovação do
capitalismo subdesenvolvido lhe é aferido pela condição de subordinação e
atraso relativo dos processos de industrialização subjugados por países
imperialistas. O que tem feito persistir e ampliar secularmente as
desigualdades – como veremos na segunda parte.

*Publicado em Revista Princípios, nº 111, jan.\fever. 2011

NOTAS
[1] In: “O contrato social e outros escritos”, Jean-Jaques Rousseau, Cultrix,
1978, pp. 143 e 183.
[2] Ver: “Dicionário Rousseau”, de N.J.H. Dent, Dicionário de Filósofos, Zahar,
1996, p. 108.
[3] “Crítica da filosofia do direito de Hegel”, Karl Marx, Boitempo, 2004, p. 41.
Ainda Hegel: “A personalidade do Estado é real somente como uma pessoa, o
monarca” (p. 47).
[4] Marx, idem, p.125.
[5] Marx, idem, p.p 124 e 114.
[6] Ver: “Em memória do Manifesto Comunista”, Antonio Labriola, in: Manifesto
Comunista, Karl Marx-Friedrich Engels, Boitempo, 2004, p.99-100.
[7] No Manifesto, idem, p. 49
[8] Contudo, ele antecipa: “O proletariado passa por diferentes fases de
desenvolvimento. Sua luta contra a burguesia começa com a sua existência”
(idem, p. 47).
[9] Ver: “Capítulo inédito D’o capital – resultados do processo de produção
imediato”, K. Marx, Porto, Publicações Escorpião, p. 46. Dito o assunto de
maneira mais clara e do ponto de vista do proprietário dos meios de produção,
“A autovalorização do capital – a criação de mais-valia – é pois objetivo
determinante, predominante e avassalador do capitalista, impulso e conteúdo
absoluto das suas ações” – argumenta Marx (idem, p.45).
[10] In: “Valor e capitalismo. Um ensaio de economia política”, L. Belluzzo,
Unicamp, 1998, pp. 109-10).
[11] Ver: “A contradição em processo – o capitalismo e suas crises”, de F.
Mazzucchelli, Unicamp, 2004, pp. 86-7. Destaca a seguir o autor fatores de
amplificação do monopólio, a) através dos diferenciais técnicos, financeiros e
de escala; b) dos movimentos de mobilização em larga escala de recursos
líquidos e sua transformação em capital monetário disponíveis a “uma limitada
minoria de capitalistas” (idem, p. 87).
[12] Ver: “A era dos impérios 1875-1914”, E. Hobsbawm, Paz e Terra, 2003, pp.
101 e 110, 8ª edição.
[13] Veblen apontou o comportamento ostentatório dos ricaços norte-
americanos, na passagem ao século XX: nada anteriormente visto na história

139
era parecido; comparava hábitos com os hábitos similares e de costumes do
poder dos chefes nas tribos primitivas (ver: Cap. XII, Nova Cultural, 1988). Para
Schumpeter, sendo central a tese do “empresário inovador”, a função
empresarial é dependente das grandes empresas monopolistas; sua visão de
prosperidade é correspondente aos lucros da acumulação e tende ao infinito. A
ditadura da grande corporação sintoniza-se com os valores do sucesso
individual: o ethos, que motiva os executivos das grandes corporações. E o
lucro, nesse sentido, um claro sinal – o êxtase - de êxito. Indiscutível, porém, o
insight contido no Capítulo II, “O fenômeno fundamental do desenvolvimento
econômico”, da obra de Schumpeter. Este brilhante economista austríaco
escreveu depois coisas interesantes sobre o genial Marx e, em 1942
publica sua obra progressista “Capitalismo, socialismo e democracia”.

[14] “A racionalidade formal do cálculo em dinheiro está, portanto, vinculada a


condições materiais muito específicas que interessam aqui sociologicamente”,
in: “Economia e Sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva”, V. 1,
UNB/Imprensa Oficial, 2004, p. 68, 4ª edição.
[15] “(...) chamamos de dominação a probabilidade de encontrar obediência
para ordens específicas (ou todas) dentro de determinado grupo de pessoas.
(...) Mem, cada caso individual, a dominação (‘autoridade’) assim definida pode
basear-se nos mais diversos motivos de submissão: desde o hábito
inconsciente até considerações puramente racionais, referentes a fins. Certo
mínimo de vontade de obedecer, isto é, de interesse (externo ou interno) na
obediência, faz parte de toda relação autêntica de dominação” (idem, p.139).
[16] Ou de “classe proprietária positivamente privilegiada”, está no monopólio
(i) de abastecimento de bens de consumo de preços elevados; (ii) possibilidade
de uma política planejada (de venda); (iii) na oportunidade de formação de
patrimônio de excedentes não consumidos; (iv) na oportunidade de formação
de capital por meio de poupança (com possibilidade de investimento de capital
a juro), assim dispondo sobre a posição de dirigentes empresariais; (v) em
privilégios onerosos estamentais de educação (Weber, idem, p. 199-200).
[17] Ver: Weber, idem, p. 200.
[18] Ver: “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, M. Weber, Pioneira,
1999, Cap. II. Weber repete seguidamente a ideia de que o grande problema é
a luta contra a inescrupulosidade em princípios que orientavam as sociedades
pré-capitalistas, ao passo que o “capitalismo moderno, onde quer que ele tenha
começado sua ação de incrementar a produtividade do trabalho humano
através do incremento de sua intensidade, tem encontrado a infinitamente
obstinada resistência deste traço orientador do trabalho pré-capitalista; e, ainda
hoje, quanto mais atrasadas estejam (do ponto de vista do capitalismo) as
forças de trabalho tanto mais tem de lidar com ela” (idem, p. 38).
[19] Ver: “O imperialismo, fase superior do capitalismo (Ensaio de
vulgarização)”, V. I. Lénine, Avante!, p. 108, 1977.
[20] Baran, op.cit., Zahar, pp.132 e 152. E mais adiante: a forma como o
capitalismo se inseriu no processo histórico de desenvolvimento das “atuais
nações subdesenvolvidas impediu a materialização do que denominamos

140
condições ‘clássicas’ do crescimento”. Condições estas que dizem respeito ao
“modo de utilização do excedente econômico” (idem, ibidem).
[21] Cf. “Processo de industrialização. Do capitalismo originário ao atrasado”,
C. Alonso B. de Oliveira, Introdução, Unesp/Unicamp, 2003; e “O pensamento
econômico no século XX”, C. Napoleoni, Cap. X, Paz e Terra, 1979.
[22] À época, “O Estado supriu a debilidade do capital privado nacional e o
desinteresse do capital forâneo: fez petróleo, aço, produtos químicos básicos,
infra-estrutura, bancos, transporte, energia e telecomunicações. Mais que isso:
nesse momento, a luta pela industrialização na América Latina passa a
constituir uma bandeira progressista em todos os países” – argumenta W.
Cano, em: “Soberania e política econômica na América Latina”,
Unesp/Unicamp, p. 21, 2000).
[23] Ver: “Da revolução industrial inglesa ao imperialismo”, E. Hobsbawm,
Forense, p. 33, 2000, 5ª edição.

141
Crise capitalista: destruição e extermínio*

“[uma época histórica que perdeu o rumo], nos primeiros anos do novo milênio,
com mais perplexidade do que lembro ter visto numa já longa vida, aguarda,
desgovernada e desorientada, um futuro irreconhecível” (Hobsbawm, 2013). [1]

O artigo prossegue em torno de questões do segundo eixo temático do 13º


Congresso do PCdoB enfrenta, corretamente, a questão da grande crise
capitalista atual, as alterações geopolíticas em curso e a nova luta pelo
socialismo. Concentra-se na verdadeira demolição social que a crise vem
provocando. São evidentes os sinais da decadência de uma certa “civilização
ocidental”.

O desemprego seguirá crescendo

No ingresso do sexto ano da grande crise capitalista global deve-se notar que a
Grande Depressão do século passado teve auge de maior gravidade entre
1929 e 1933; quer dizer, concentrou-se nos cinco primeiros anos. Voltou a se
agravar em 1937, comprovadamente pelo uso de políticas econômicas
ortodoxas, de retorno ao “livre-cambismo” e de “austeridade”. Os fenômenos
depressivos só foram dirimidos através da 2ª Guerra Mundial (a partir de 1939)
quando a economia dos EUA a ele se engrenou.

Nas três fases da crise atual, sua marca “de classe” é a brutal exploração
capitalista sobre os trabalhadores. A grande burguesia global e seus governos
buscam repassar todas as suas consequências para o trabalho. A grande crise,
longe de se amainar espraiou-se especialmente nos países centrais, numa
devastação social sem precedentes na história do capitalismo e só excetuada
pela destruição humana (e das forças produtivas) da 2ª Guerra.

Junto à queda do produto (PIB) e dos preços (deflação) e estagnação em


vários países, a explosiva elevação do desemprego tornou-se um severo
drama social sem qualquer solução no horizonte.

O próprio Relatório da OIT (Tendências Mundiais do emprego 2013 -


Organização Internacional do Trabalho) registra ter havido mais 5,1 milhões de
trabalhadores desempregados em 2013; o que significa ultrapassar 202

142
milhões de desempregados neste ano. Na estimativa desse órgão da ONU, em
2014 pelo menos mais três milhões de desempregados surgirão; enquanto
cerca de 40 milhões de trabalhadores desistiram de buscar um emprego
“inalcançável”, entre 2007-2012 (trabalhadores desempregados por
“desalento”).

Segundo denuncia o documento, o fenômeno da diminuição drástica da força


de trabalho nas economias do capitalismo central, por sua feita, “encobre o
verdadeiro alcance da crise do emprego”. Daí considerar a OIT que o
desemprego atinge fortemente a juventude, calculando-se em 74 milhões os
jovens sem emprego; a tendência disso é crescer sistematicamente pelo
menos até 2017. Segundo afirma o Relatório, mesmo que a economia
capitalista mundial recupere o crescimento, ele “não será suficientemente forte
para reduzir o desemprego com rapidez”.

Em março último, o Eurostat (Escritório de Estatísticas da União Europeia)


divulgou haver mais de 50% de jovens (menos de 25 anos) desempregados da
PEA (População Economicamente Ativa), número alarmante e com tendência à
elevação. A Espanha chega a 55,5% (janeiro 2013). Na Grécia,
impressionantes 59,4%, na Itália 38,7% e em Portugal 38,6%.

Colapso social, êxodos, suicídios

“(...) a força motriz da produção capitalista é a valorização do capital, ou seja,


a criação de mais-valia, sem nenhuma consideração para com o trabalhador”
(Marx). [2]

Em sua evolução, além do desemprego massivo, a crise vem produzindo


exploração capitalista sem precedentes, com políticas dos cortes de salários,
de aposentadorias, de gastos públicos e sociais, privatizações, fabricando
crescente ampliação das desigualdades sociais e do novo alastramento da
pobreza em todos os países em crise.

O pano de fundo dessa perversa orientação se disfarça nas “políticas de


austeridade”, o que significa a decomposição da capacidade dos Estados
manterem o gasto público e social, nos últimos anos assaltados por novo
endividamento crescente, no claro objetivo de salvar do naufrágio o reinado da
grande finança. Ora, nada tem funcionado, à medida que a estagnação e a
recessão econômicas corroem a arrecadação de impostos, ao tempo em que
se eleva mais o endividamento nos países em crise.

Exemplo claro dessas políticas é o caso da decomposição financeira norte-


americana: sua dívida pública líquida saltou de 43% do PIB em 2007 para
quase 100% no início de 2013.

Simultaneamente, de acordo com as estatísticas dos organismos a serviço do


capitalismo, a OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento
Econômico), diz, ainda no início de 2012 que a renda média dos 10% mais
ricos dos 34 países participantes da entidade era nove vezes maior que os
10% mais pobres de 2008; nos anos 1980 essa diferença era de cinco vezes.

143
Nos EUA, informações do Census Bureau do país assinalam que a riqueza
apropriada por 7% de famílias milionárias tiveram seu patrimônio líquido
acrescido 28%, enquanto o dos 93% restantes caiu 4%, entre 2009 e 2011.

Assim, numa Europa com desemprego recorde e, acima de tudo, diante da


falta de perspectiva, 1 milhão de pessoas já deixaram seus países de origem
em busca de trabalho desde 2008, no que já está sendo considerado o maior
êxodo do Velho Continente em meio século. Terrível o caso irlandês, onde
mais de 100 mil pessoas já deixaram o país desde o início da explosiva crise
da dívida; em 2012, a taxa ganhou uma nova intensidade: 3 mil irlandeses
deixaram o país por mês, isto é, o maior fluxo de migração desde a grande
fome que atingiu a ilha entre 1845 e 1850 - reportou Jamil Chade (O Estado de
S. Paulo, 5/5/2013).

O número de casos de depressão, abuso de drogas e prostituição elevou-se


gravemente na Grécia em crise. Estudo realizado na Universidade de
Cambridge, no Reino Unido, acusa a austeridade (no início de 2012), de
elevarem os suicídios em 17%, onde violência e os homicídios também
aumentaram e os assaltos quase duplicaram. A taxa de suicídios entre homens
aumentou mais de 24%, apenas entre 2007 e 2009, conforme estatísticas do
governo grego. Na Irlanda, o número de suicídios entre homens cresceu mais
de 16% no mesmo período; na Itália, foram registrados 185 suicídios motivados
por dificuldades econômicas em 2011 - um aumento de 52% em relação aos
123 suicídios de 2005.

“A recessão” contribuiu para o aumento de suicídios na Inglaterra, segundo


aponta um estudo publicado no The British Medical Journal (agosto de 2012).
O relatório associa o acréscimo da quantidade de pessoas que se matam no
Reino Unido com “o incremento do nível do desemprego”. O número de
suicídios na Inglaterra - que vinha registrando queda há vinte anos - aumentou
em 1 mil durante o período de 2008 a 2010, sendo 846 a mais entre homens e
155 entre mulheres. Vinculados à causa da crise desde 2007, pesquisadores
dos Estados Unidos e do Reino Unido encontraram ainda elevação nas taxas
de suicídios, com índices variados, na Áustria, Finlândia, Holanda, Reino
Unido, Estados Unidos, República Checa, Lituânia e Romênia.

Transe capitalista. Resistência e luta

A resistência da luta proletária e dos trabalhadores em geral vem ocorrendo


particularmente desde a convulsão financeira de setembro de 2008.

A maior resposta operária até agora foi dada em novembro de 2011, na greve
geral europeia: com grandes manifestações, ocorreram na Espanha, Portugal,
Itália, França, Grécia, Suécia, Bélgica, Bulgária, Dinamarca, Alemanha, Áustria,
Reino Unido, Polônia, Hungria, Suíça, Eslovênia, Luxemburgo, Lituânia,
Casaquistão e Malta. Na França, a exemplo, aconteceram 70 manifestações
em várias cidades.

144
Simbolizando a grande resistência dos trabalhadores e o acirramento da luta
de classes provocada pela crise, em abril de 2013 a Grécia foi tomada pela 19ª
greve geral em quatro anos. Em Portugal, quase uma dezena de greves gerais,
grandes mobilizações populares em todo o país tem sido a marca da resposta
operária e popular ao “pacto de agressão” comandado pelo grande capital
financeiro internacional e seus operadores (“a Troika”): O Banco Central
Europeu, O FMI e Comissão Europeia.

O surgimento de movimentos amplos de resistência como o “Occupy”, em “Wall


Street” (Nova Iorque), ou o “Movimiento de los indignados” (“15-M”), na
Espanha reuniram centenas de milhares de populares, combinando
mobilização, passeatas e ocupações de espaços públicos por longos períodos,
configuram ademais amplas formas de denúncias e protestos contra a
oligarquia financeira neoliberal.

Diante do massacre sem paralelo, passaram a ser claudicantes, em relação ao


resultado da perduração da “austeridade”, as recentes opiniões de Olivier
Blanchard (economista chefe do FMI), da chefona do Fundo, Cristine Lagarde,
bem como a de Jack Lew, secretário do Tesouro norte-americano. De outra
parte, Janet Yellen, provável presidente do Banco Central americano, insinuou
que estaria próximo ser necessário reduzir as compras de títulos e sugeriu vir
mudança na taxa de juro. Os juros básicos dos EUA estão entre zero e 0,25%
desde dezembro de 2008; e em setembro último veio a terceira rodada de
“afrouxamento quantitativo” (QE3), programa de compra de US$ 85 bilhões por
mês em títulos públicos e papéis lastreados em hipotecas.

Novas contradições

Fora do eixo imperialista no capitalismo central, bem como dos países


periféricos da União Europeia, os trabalhadores dos denominados
“emergentes” atravessam a grande ofensiva numa outra situação.

Na América Latina e Caribe as consequências da crise tem sido, até aqui,


muito mais brandas, seja através da manutenção do ritmo do crescimento
econômico, seja pela via do pequeno impacto do desemprego. Entretanto,
começam a surgir sinais de repercussões sociais da crise originada no centro
dos países imperialistas, principalmente depois da manipulação de políticas
monetárias expansivas da parte do EUA (dólar), da UE (euro) e recentemente
do Japão (ien).

Ao que tudo indica – parecendo inevitável -, dentro da crise, novas e graves


contradições surgirão no horizonte entre países do centro imperialista e a
recente afirmação de antigas áreas periféricas.

*Publicado em Portal Vermelho, 21/05/2013

Notas:

145
[1] Em: “Tempos fraturados. Cultura e sociedade no século 20”, Companhia
das Letras, 2013, pp. 9-10.

[2] Em: “Capítulo inédito d’O Capital – resultados do processo de produção


imediato”, Escorpião, 1975, p. 20.

Reflexões sobre o capitalismo em crise. (V) O processo da contradição*


O transcurso lógico n’O Capital (e estudos da economia política correlatos), de
Marx, revela os impulsos que levam o capital a ir eliminando o trabalho
necessário; a ir se separando do tempo de trabalho como elemento
determinante, preestabelecido na produção, medida e fonte de riqueza
Aí está a contradição em processo: capital X trabalho e simultânea negação da
fonte de valor forjado por uma determinação essencial, a concorrência
intercapitalista. Isso significa que, ao investir necessariamente no incremento
do progresso técnico, em inovações tecnológicas, para liquidar a concorrência
adversária, liquida-se paulatinamente a base de reprodução de valorização do
valor (mais-valia): o trabalho (capital variável).
Esse é o movimento concreto do capital em sua relação social, acentuando-se
progressivamente contraditório: a) porque a expansão pretendida da
valorização tropeça com barreiras internas ao próprio capital; b) torna cada vez
mais redundante o trabalho vivo ultrapassando suas possibilidades de
realização como valor-capital; c) a aceleração da acumulação leva à crise, e
esta deflagrada recria as condições para a retomada da acumulação,
aparecendo um lado de sua dinâmica sequenciado em expansão-barreira-
expansão. [1]
Kalecki, investimento inovação (obstáculos)
Nessa direção, analisando no pós-2ª Guerra os óbices estruturais ao
desenvolvimento das economias capitalistas centrais, o marxista polonês
Michal Kalecki, em uma de suas conclusões principais, considera que a
incontornável concorrência intercapitalista aliada ao incremento do progresso
técnico impedem uma natureza estática do sistema capitalista. Isto é, a

146
instabilidade sistêmica de caráter estrutural, é condicionada pela dinâmica
irregular do investimento.
Kalecki conseguira assim captar prospectivamente as tendências inelutáveis de
instabilidade crônica do capitalismo, decorrente da descoordenação das
decisões de investimento, hoje amplamente potenciado pelo processo de
“financeirização” contemporânea da riqueza.
Simultaneamente, nas conclusões de seu mais famoso estudo [2], Kalecki
assinala que o enfraquecimento (baixo crescimento; estagnação) das
economias capitalistas em “seus últimos estágios de desenvolvimento” se daria
“em parte” pelo declínio da intensidade das inovações. Isto influenciado por: a)
importância decrescente da abertura fontes de matérias-primas; b) a
acentuação do monopolismo capitalista (oligopólios etc.) dificultando a
aplicação ampla de novas invenções; c) a proliferação de indústrias de bens
duráveis (automóveis etc.) cujo investimento é menor e se destina mais às
montagens. Essas eram ideias avançadas de Kalecki.
O processo da contradição em dupla face
Face A.
Notadamente em sua dinâmica concreta, ou seja, na macroestrutura financeira
desse capitalismo do nosso tempo, realizam-se: 1) operações monetário-
financeiras e patrimoniais de um conjunto de instituições (bancos centrais
relevantes, pelos bancos privados, por diversas organizações financeiras, pelas
grandes corporações e pelos proprietários de grandes fortunas); 2) operando
em várias praças financeiras a valorização e desvalorização das moedas, dos
ativos, gerindo os mercados interligados de crédito e de capitais, ampliando “as
transações cambiais autonomizadas em relação ao comércio internacional,
direcionando a ‘poupança financeira’ e a liquidez internacional” [3]
Ora, tais incertezas que cercam as decisões de investimento surgem
especialmente vinculadas à natureza do progresso técnico atual, ou por
oscilações crônicas das variações dos preços dos ativos financeiros,
determinando ou não as decisões de gasto dos capitalistas. Pois, no
capitalismo é-lhe constitutivo a instabilidade, ao invés de estabilidade, não
havendo nele nenhum compromisso com qualquer tipo de tendência – para o
crescimento contínuo ou à estagnação -, e muito menos com a noção de
equilíbrio, especialmente na ideia de pleno emprego. (Cf. Braga, idem,
p.140.) Evidente e indiscutível a instabilidade e crises “como norma” (Barroso).

Não à toa e conforme o especialista Richard Freeman (Harvard) dos anos 1980
à metade dos 2000, o emprego tem mostrado atraso cada vez maior com
relação ao PIB (Produto Interno Bruto) nas recuperações econômicas; nos EUA
houve uma recuperação sem empregos nos governos Bill Clinton, até que
surgisse o boom da internet no final dos anos 90; nova recuperação sem
empregos em George W. Bush, depois da crise de 2001.

Destacara então Freeman: “É difícil imaginar que os Estados Unidos voltem a


encontrar o pleno emprego, ao menos em um prazo previsível. De 1993 a

147
1998, os EUA criaram milhões de postos de trabalho, e isso elevou em 5,4
pontos percentuais o índice de emprego no país”. E prosseguia então ele:
“Devemos aos trabalhadores que caíram vítimas da recessão uma reinvenção
das finanças de maneira que funcionem como forma de enriquecer a economia
real, em lugar de enriquecer apenas os financistas”. [4]

A-1. Notemos então que sucedeu com a evolução daquilo que o estatístico
John Williams denomina de “depressão americana”, relativamente ao mergulho
do PIB:

Fonte: http://www.shadowstats.com/article/depression-special-report

A-2. Vejamos agora o significado real de “Com 25 mil sem-teto, Los Angeles
vive situação de emergência”, título de reportagem datada do último dia 6 de
novembro. Lá se lê que Los Angeles só perde para Nova York o posto de
cidade com mais sem-teto dos EUA: 25 mil numa população de 3,8 milhões
(NY tem 58 mil e 8,5 milhões de residentes). “Todo dia – declara o prefeito da
cidade Eric Garcetti - a gente vem trabalhar aqui e presencia os sem-teto no
gramado lá fora. É um símbolo da intensa crise que vivemos” M.as, como
assim: não havia “recuperação” da economia dos EUA? disse Georgia
Berkovich, diretora de políticas públicas da Midnight Mission, a maior e uma
das mais antigas instituições do local. “Não temos números assim desde a
Grande Depressão. E, cada vez mais, o número de famílias sem teto aumenta.
São 30% da nossa comunidade agora”, diz Berkovich, voluntária na
organização por 17 anos e foi contratada em 2010).

148
(http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2015/11/1702886-com-25-mil-sem-teto-
los-angeles-vive-situacao-de-emergencia.shtml). [5]

Agora vejamos o recente gráfico de Williams sobre a evolução da taxa de


desemprego oficial, até 2015, do governo dos EUA (linha vermelha) e a
projeção alternativa estatística do economista (em azul):

Acompanhemos então. Em janeiro passado estimava-se que número de


pessoas sem trabalho deveria crescer em 11 milhões nos próximos quatro
anos, e isto ‘está agravando as desigualdades no mundo”, advertia a
Organização Mundial do Trabalho (OIT) em um relatório de projeções.
(http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2015/01/19/oit-preve-que-
desemprego-cresce-ate-2019.htm). Estimava-se ainda que em 2019 mais de
219 milhões de pessoas poderão estar sem trabalho no planeta.

Segundo o relatório publicado em outubro último, neste ano deverá haver 201,6
milhões de desempregados no mundo, pouco mais de 2 milhões a mais do que em
2014. Deste total, 73,4 milhões são jovens com até 24 anos.
(http://g1.globo.com/economia/noticia/2015/10/desemprego-de-jovens-no-brasil-
deve-superar-media-mundial-diz-oit.html)
Face B.
Configuram-se atualmente megas mudanças tecnológicas objetivando atingir
uma nova etapa da automação, na nanotecnologia, na robótica, na inteligência
artificial, nos novos padrões energéticos, na neurociência, nos novos materiais,
em novos processos de organização da produção. É provável, portanto, que
esses novos processos e fenômenos (novas técnicas, novos conhecimentos,
novos aportes científicos) impulsionarão certas transformações produtivas, a
concentração e centralização de capitais, a concorrência na esfera de
monopólios e oligopólios, reimpactando necessariamente na renda e no
emprego dos trabalhadores, em qualquer parte.

149
De outra parte, para o sul-coreano Ha Joan Chang (Cambridge), especialmente
no nono capítulo Não vivemos na era pós-industrial, de seu interessante
estudo, [6] e dissertando exaustivamente acerca de nova morfologia
capitalista, lembra que lojas e escritórios substituíram enormemente as fábricas
em que se trabalhava e a maioria das pessoas conheciam como símbolos da
sociedades moderna.
Mas, atenção – resumo aqui,Chang: a) não ingressamos em um estágio de
desenvolvimento pós-industrial no sentido de que a indústria deixou de ser
importante; b) maior parte (embora não a totalidade) do encolhimento da
parcela da manufatura na produção total não se deve à quantidade absoluta de
bens manufaturados produzidos e sim à queda nos seus preços em relação
aos dos serviços, o que é causado pelo seu crescimento mais rápido na
produtividade (produção por unidade de insumo); c) embora a
desindustrialização se deva principalmente a esse crescimento diferencial de
produtividade através dos setores, ele tem consequências negativas para o
crescimento da produtividade na economia como um todo e para o balanço de
pagamentos (contas externas do país), o que não pode ser desconsiderado; d)
um escopo limitado deles para um crescimento da produtividade torna os
serviços um mecanismo de crescimento ineficaz, onde “a baixa negociabilidade
dos serviços” (fornecimento de refeições, suporte técnico, cabelereiro), significa
igualmente que uma economia mais baseada em serviços terá uma menor
capacidade de exportar; e) as receitas menores com a exportação “significam
uma capacidade mais fraca de adquirir tecnologias mais avançadas de outros
países”, o que por sua vez conduz a um crescimento mais lento; f) é certo que
alguns setores de serviços tem um potencial de crescimento de produtividade
mais rápido, “particularmente os serviços baseados no conhecimento” (serviços
financeiros, consultoria, design, computação e informação, P&D); g) o país que
basear o seu desenvolvimento desde cedo no setor de serviços, a sua taxa de
produtividade a longo prazo “será muito mais lenta do que se ele tiver apoio no
setor industrial”. Vejamos, a propósito, como a depressão (John Williams)
afetou a produção industrial nos EUA, logo em seu início:

150
Para Chang, trata-se de uma “fantasia” achar que os países em
desenvolvimento podem passar por cima da industrialização e construir a
prosperidade baseando-se nas indústrias de serviços: a maioria dos serviços
apresenta um lento crescimento de produtividade e quase todos os serviços
que têm um crescimento de produtividade elevado não podem ser
desenvolvidos na ausência de um forte setor industrial (Chang, idem).
Considerações finais inconclusas

 Sabemos que os desdobramentos sociais da grande crise capitalista


global, iniciada em 2007-8 continuarão a incidir de maneira trágica,
notadamente no centro capitalista, mas não só. Considerando-se
ademais que hoje a economia global convergiu regressivamente para: a)
endividamento muito elevado; b) médias de crescimento econômico
muito baixo (exceto a china); c) expansão e crescimento das
desigualdades; d) deflação e tendências deflacionistas nos principais
países capitalistas; e) ondas ideológicas reacionárias e neofascistas
originariamente emanadas no mesmo centro capitalista em crise.
 Analisando, a propósito da crise capitalista atual, um ângulo fundamental
da situação da força de trabalho deste capitalismo “financeirizado”,
segundo o marxista indiano P. Patnaik teríamos cerca de 63% da força
de trabalho global ou quase dois terços dela, representando
trabalhadores que estão ou desempregados, ou “desencorajados”
(desempregados por desalento), ou “empregados vulneravelmente”, cujo
conjunto constituiria hoje o “exército de reserva”, ou o segmento
vulnerável da força de trabalho mundial. (em: “A estrutura mundial da
força de trabalho”).
(http://peoplesdemocracy.in/2015/1025_pd/structure-world-labour-force).
 Ora, marcha da contradição em processo do capitalismo é prenhe de
historicidade. Do ponto de vista da dialética marxista, as contradições

151
internas irrompem a novas formas e novos, o que alimenta o
estabelecimento de novas contradições. Entretanto, o longo processo
histórico da contradição fundante da dinâmica econômica do capitalismo
acima apresentado não se resolve teoricamente. Quer dizer, a ruptura
necessária com este modo de produzir baseado na eliminação da sua
base de sua própria fonte de criação de riqueza passa pela superação
material e objetiva desse modo social de produzir.
 Novas formas. É por tais razões admirável que, na consagrada obra de
John Kenetth Galbraith, “A crise econômica de 1929. Anatomia de uma
catástrofe financeira”, no capítulo “O crepúsculo das ilusões” (p. 122), lê-
se logo antecedendo que, no frenesi especulativo das novas emissões
de títulos e ações, e especialmente àqueles de maior demanda, [elas]
“não se encontravam registradas no Big Board” (quadro de cotações da
Bolsa de NY). Antecipando-se em muito o que comentamos nesta série,
acerca da recente criação do shadow banking system (sistema
financeiro sombra) lá desvelou o grande economista canadense: “No
entanto, as transações efetuadas na Bolsa de Nova Iorque já não eram
um bom índice do interesse total pela especulação em títulos”. (...) e
muitos mais [os] que achavam convenientes não responder aos mais
elementares questionários da Bolsa”! [Galbraith, sobre o Verão de 1929,
Dom Quixote, 1972, 4ª edição]

*Publicado em Portal da Fundação Mauricio Grabois, 10.11.2015

NOTAS

[1] Ver: “Notas introdutórias ao capitalismo monopolista”, J.C.Braga e F.


Mazzucchelli, em: Revista de Economia Política, 1981, vol. 1, n.2, p. 57, abr.-
jun. (www.rep.org.br )
[2] Ver: “Teoria da dinâmica econômica. Ensaio sobre as mudanças cíclicas e a
longo prazo da economia capitalista”, Abril Cultural, 1983[original 2ª edição de
1965], cap. Os fatores do desenvolvimento, p. 133-4.
[3] Ver: “Temporalidade da riqueza: teoria da dinâmica e financeirização do
capitalismo”, J.C. Braga, UNICAMP. IE, 2000.

[4] Ver: “Uma recuperação sem empregos? ”, R.Freeman, Folha de S. Paulo,


10\01\2010.

[5] Veja também a impactante reportagem da BBC-Brasil sobre o crescimento


da pobreza nos EUA no vídeo abaixo:
(https://www.facebook.com/elvis.rocha.925/videos/973310969392421/?fref=nf)

152
[6] Ver: “23 coisas que não nos contaram sobre o capitalismo”, J.Chang Cultrix,
2013.

Reflexões sobre perspectivas do capitalismo em crise (IV). O contra-ataque


chinês
A crise atual (“2008-2009”) demonstrou o “fracasso” do modelo capitalista anglo-
saxão. Por outro lado, mesmo com o esforço artificial dos economistas em tentar
culpar a China pela próxima recessão, aquela gigantesca economia de estado
faz correções saudáveis de seu sistema econômico, que o Ocidente recusa,
mantendo a desregulação financeira.

153
Sede do Banco do Povo da
China
O crédito é o julgamento que a Economia Política realiza sobre a
moralidade de um homem. (...)[ele] calcula o valor monetário não em
dinheiro, mas em carne e coração humanos” (Marx, “Cadernos de
Paris, 1844). [1]

Nas novas estimativas do relatório do FMI (Fundo Monetário Internacional,


09/2015), lê-se que “aumentaram” os riscos de uma recaída numa recessão
econômica global, o que vem acompanhado de informações tão graves quanto.
Se o crescimento mundial foi reduzido para 3,1% (o mais baixo índice desde
2009), a inflação na zona do euro – em constatada deflação - não vai passar de
0,2% este ano; tendo os EUA involuídos para uma provável taxa de 0,1%!
Ainda assim e com todo alarde sobre o rebatimento da crise sobre os países
“emergentes”, nas projeções da OMC (Organização Mundial do Comércio) o
crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) dos países em desenvolvimento será
este ano de 3,9%, e de apenas 1,9% para os capitalistas desenvolvidos. [2]
Nova recessão no horizonte
Na análise sempre distorcida e “otimista” da institucionalidade da grande finança
internacional, a chefona do Fundo Cristine Lagarde defende que: a) os países
centrais deveriam hoje responder “politicamente” a um “cenário cada vez mais
sombrio”, e isso está se “tornando uma grande dor de cabeça” - “É preciso agir
agora”, disse às vésperas da reunião de setembro do FMI; b) sua preocupação
principal é em se verificar que uma “combinação de fatores negativos aconteça...
ao mesmo tempo”; c) também por isso pediu ao Fed (banco central americano)
para deixar para 2016 o aumento na taxa básica de juros - quase zero desde
dezembro de 2008 -, e exortou os líderes da zona do euro a resolver “a
montanha de empréstimos inadimplentes que pesa sobre o crescimento”
econômico regional. [3].
Entretanto, como passou a se difundir no mundo inteiro, e praticamente como
uma só voz, a República Popular da China já está sendo acusada de ser a
responsável pela próxima recessão!
“Economia em coma” - e a manobra chinesa
Para o cientista político americano (republicano) Brandon Smith, na medida em
que a situação da economia mundial foi precipitada pelo crash bolsista de agosto
deste ano, “a hipocrisia desta mentira [sobre a China] é verdadeiramente
espantosa”, quando a mesma mídia - “sacos de lixo”, chama-a Smith – faz
pouquíssimo tempo, vivia a repetir que a instabilidade financeira chinesa teria

154
“pouco ou nenhuma consequência” sobre os mercados financeiros globais. E as
ações – interpreta - não entram em crash antes ou durante o desenvolvimento
de uma economia enferma: elas entram em crash depois da economia “já ter
entrado em coma”. [4] No caso, o Fed – ou qualquer banco central ou qualquer
governo que assim agiu - utilizou estímulos para manipulação dos mercados
através de profusões da moeda reserva aliadas a taxa de juro zero alimentando
a recompras de ações monetizar (transformar títulos em dinheiro) a própria
dívida do governo americano, conclui ele.
A nova onda de manipulação midiática pelos imperialistas americanos contra a
China, que prosseguirá, foi de pronto desmoralizada pelo economista holandês
Antoine van Agtmael – criador do termo “mercados emergentes” -, ao enxergar a
instabilidade nas bolsas de valores chinesas (agosto) como um processo de
correção, para ele “saudável”, e não como o sinal de uma crise mais grave. Com
absoluta clareza, diz ter a China atravessado de um crescimento do PIB de 10%
a 12% para um de 6% a 7%. E esse “ajuste”, necessário, nos deve ainda
lembrar que a China é a única grande economia que não passou por uma crise
financeira: Brasil, EUA, Coreia do Sul, Taiwan, México e Rússia... “Todos os
maiores países enfrentaram uma crise financeira, mas a China não”, assinala.
Na mesma direção analisa o pesquisador do Instituto China Lau do King's
College (Londres) Ramon Pacheco. Afirmando haver maior liberalização do
sistema financeiro chinês, vê nas alterações últimas na política monetária
(câmbio e juros) uma mensagem clara do governo com suas ações indicando
“que ele está confortável com o crescimento menor e um modelo menos
intervencionista”. [5]
Assim, o foco do governo chinês no curto prazo estaria em manter o crescimento
econômico “num nível razoável e controlar os riscos” de liberalização excessiva,
reconhece o Wall Street Journal (Valor Econômico, 21/08/2015); enquanto o
arrogante ideólogo liberal Martin Wolf passou a admitir que “a economia mundial
também fica resfriada quando a China espirra” (Valor Econômico, 14/10/2015).
A sólida “muralha econômica” da China
De outra parte, conforme recente estudo do economista laureado russo Ivan
Tselichtchev, [6] Xangai, já faz tempo, é o maior centro industrial do mundo. Uma
enorme batalha pelo mercado chinês estaria apenas começando e o Ocidente
(EUA, Reino Unido, França, Alemanha, Itália) deve agir rápido para não ficar de
fora dessa guerra. A crise atual (“2008-2009”) demonstrou o “fracasso” do
modelo capitalista anglo-saxão; e os efeitos colaterais dessa crise “ainda
assustarão o mundo ocidental por muito tempo”.
Factual: enquanto a crise sistêmica do capitalismo de 2007-8 não consegue
apagar suas chamas, a China não é somente uma “fábrica mundial”, mas se
transformou num gigantesco laboratório de pesquisas, inclusive em energia
“verde”, setor em que já lidera. Em relação às perspectivas da competição no
desenvolvimento com o assim denominado Ocidente – argumenta o economista
russo -, a China: a) continua a manter a sua moeda desvalorizada; b) as
empresas chinesas contam com forte apoio do Estado e investimentos de fundos
do governo nessas companhias; c) já é bastante extensa a lista de aquisições
chinesas de empresas ocidentais, enquanto o controle acionário de importantes
empresas chinesas por companhias ocidentais vem se revelando “efetivamente
impossível”; d) o acesso de empresas e investidores ocidentais a segmentos do
mercado chinês ou a negócios no país associam-se à transferência de
tecnologia; e) políticas e o direito chineses continuam a facilitar o acesso ao

155
“roubo” de tecnologias ocidentais.
Marx, o crédito fantasma e o capitalismo zumbi
Como nos referimos (parte I), a configuração efetiva de um sistema financeiro
sombra (shadow banking system) emergente durante a expansão da
“globalização financeira” (anos 1980 em diante) confluiu também para um
avançado processo de apodrecimento do sistema financeiro global, marcado por
manipulação de negócios ilegais, deliberados, em altas esferas do circuito
bancário/financeiro. O endividamento inédito e em incontrolável escala, aliado às
fraudes sistemáticas da “engenharia financeira” levaram a um processo de
decomposição do sistema de crédito internacional.
Nesta matéria (“shadow banking system”), de modo nenhum se pode tirar os
méritos do liberal Paul Krugman. Vinculado “desde criancinha” ao partido
Democrata americano, esse economista (Nobel, 2008) foi dos primeiros a
denunciar as vigarices do sistema bancário sombra, escrevendo que tal sistema
(de empresas “não bancos” ou bancos sem supervisão do banco central
americano e outros) se agigantou durante a fase expansiva da economia
“financeirizada”. Desse modo –diz -, pouco antes da crise os cinco grandes
bancos de investimento dos EUA chegaram a somar balanços patrimoniais da
ordem de US$ 4 trilhões, enquanto os ativos totais do sistema bancário do país
em torno de US$ 10 trilhões! Enfim, em “A crise de 2008 e a economia da
depressão” (Elsevier/Campus 2008), Krugman acusa ali os “instrumentos
financeiros exóticos” (derivativos, instrumentos altamente especulativos etc.) do
sistema bancário sombra: “instituições que nunca foram regulamentadas”.
Num exemplo concreto do contubérnio financeiro fraudulento e criminoso: em 17
de Julho de 2012, tornou-se público e comprovado que David Bagley, diretor
mundial do banco HSBC para regulamentação pediu demissão em sessão no
Senado dos EUA, convocada para ser acusado, após investigação, de permitir
operações de lavagem de dinheiro do narcotráfico (cartéis do México), bem
como de dinheiro proveniente de financiadores de “grupos terroristas” (Arábia
Saudita). A alta direção do banco sabia de tudo! (ver:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/55138-hsbc-lavou-dinheiro-diz-senado-
dos-eua.shtml)
A referenciada consultoria Mackinsey publicou um relatório (Debt and, not much,
deleveraging, McKinsey Global Institute – MGI) [7] mostrando que o
endividamento (famílias, governos, empresas e setor financeiro) saltou de US$
87 trilhões de 2000 para US$ 142 trilhões em 2007; alcançou US$ 199 trilhões
no segundo trimestre de 2014. A dívida total como proporção do PIB registrara-
se assim: 246% (2000), 269% (2007), atingindo 286% em 2014.

Há hoje, então, uma “bolha de crédito” de mais de US$ 200 trilhões a financiar a
economia capitalista global ou mais de três vezes o PIB nominal do planeta! Está
nesse aludido sistema financeiro o grosso desta dívida que precisa ser
realimentada na própria “financeirização” da economia mundial, ampliando mais
e mais a concentração de riqueza e as desigualdades. Como aponta
acertadamente Luiz Eustáquio Diniz, o processo de globalização financeira “tem
potencializado a dívida mundial e a maioria dos países estão perdendo o
controle sobre as dívidas nacionais”. [8]
Claro: montanhas de dívidas, papéis podres para os trabalhadores pagarem!
Vão Pagar?
Ruínas ideológicas

156
Repletas de lucidez, portanto, as recordações que faz o economista Luiz Afonso
Silva [9] das caracterizações de Frederic Jameson, David Harvey e Jean
Braudillard acerca das conexões entre a cultura e a economia da finança
transmutadas na época da globalização neoliberal. Tempo, imediatismo e
valores em ruínas no capitalismo contemporâneo sancionam sem cessar a
homogeinização cultural da idiotia; uma esquizofrenia do tempo contínuo; uma
espécie de sociedade pornográfica imagética, mas sempre a um passo além do
real.

*Publicado em Portal da Fundação Mauricio Grabois, 23.10.2015

NOTAS
[1] Ver: “Cadernos de Paris & Manuscritos Econômicos-Filosóficos de 1844”, K.
Marx, em: Economia Política e dinheiro, Expressão Popular, 2015, p.206.
[2] Em: http://www.valor.com.br/internacional/4250684/emergentes-puxam-para-
baixo-o-comercio-global)
[3] Em:
http://br.wsj.com/articles/SB12208151465633484102904581275733108109492
[4] Em: http://www.zerohedge.com/news/2015-08-27/lies-you-will-hear-economic-
collapse-progresses ; traduzido em resistir.info
[5] Ver: “China vive correção, e não crise, diz Agtmael”, Valor Econômico,
01/09/2015; “Governo chinês está à vontade com crescimento menor, afirma
especialista”, O Globo, 25/08/2015.
[6] Ver: “China versus ocidente: o deslocamento do poder global no século XXI”,
DSV, Introdução, Caps. 1, 2 e 3, 2105.
[7]Em:http://www.mckinsey.com/insights/economic_studies/debt_and_not_much
_deleveraging
[8] Em: http://www.ecodebate.com.br/2015/03/13/a-divida-de-200-trilhoes-de-
dolares-e-a-proxima-crise-financeira-mundial-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-
alves/
[9] Ver: “Moeda e crise econômica global”, L.A.S. da Silva, Unesp, 2015, p.p 56-
62.

Reflexões sobre perspectivas do capitalismo em crise (III) Minsky e a


derrota dos bancos centrais*

Nos argumentos para essa série de artigos acerca das razões dos impasses
extremos do capitalismo vivente da crise sistêmica atual, associamos também o
da “decomposição da economia política neoclássica”. A denúncia do falso
discurso da recuperação dos EUA revela a persistência irresoluta da crise, assim
como a deflação sistêmica integrante da depressão. Cada vez mais autores,
como Minsky, admitem que “a economia moderna não é instável porque está

157
sempre enfrentando choque externos, como o ‘choque do petróleo’, guerras, ou
surpresas monetárias, mas devido à sua própria natureza”.

Nos argumentos para essa série de artigos acerca das razões dos impasses
extremos do capitalismo vivente da crise sistêmica atual, associamos também o
da “decomposição da economia política neoclássica”. Vimos repetindo tratar-se
de imensa falsificação do discurso oficial dos EUA sobre a sua “recuperação”
econômica, assim como da persistência da grande crise iniciada em 2007 sem
horizonte de resolução, agravando continuamente a possibilidade de retomada
da economia mundial. Denunciamos a sistêmica deflação (queda acentuada nos
preços) como parte integrante da depressão (central) que assola a economia
mundial, conforme distintas interpretações e correntes teóricas não liberais
(neoclássicas).
Por exemplo: Barry Eichengreen, ex-economista chefe do FMI – isto mesmo! -,
assim apresentara uma comparação gráfica entre a anterioridade imediata da
Grande Depressão (1930) e o início da grande crise atual (2008); de como se
esboçava a tendência desta crise em curso:

PIB mundial na década de 1930 e atualmente

158
Fonte: ver aqui: http://desmitos.blogspot.com.br/2009/05/grande-depressao-ou-
grande-recessao.html

A partir do instigante artigo “Revivendo a crônica de duas depressões” (2009), B.


Eichengreen e K. O’Rourke concluíram que o mundo estava passando por um
choque econômico “tão grande quanto o choque da Grande Depressão de 1929-
30”; o que não podia ser visto superficialmente apenas pela situação dos EUA,
pois isso seria “negligenciar como alarmante é a situação atual, mesmo em
comparação com 1929-1930”. Perguntaram a seguir estes economistas se “a
resposta política” dada pelos bancos centrais e Estados enfrentaria os
problemas. (ver aqui: http://www.voxeu.org/article/tale-two-depressions-redux)
Outrossim, observe-se as grandes depressões de 1873-96 e 1929-39 tiveram
condicionalidades, circunstâncias e traços históricos diferentes da grande crise
capitalista irrompida em agosto de 2007. Por exemplo, a nova marcha
depressiva hoje não se relaciona diretamente com aquela da assunção da II
Revolução Industrial, cujo progresso técnico impulsionou o sistema à etapa
monopolista e catapultou a posição do grande capital industrial e financeiro no
alvorecer do século XX - cresceram as corporações industriais e financeiras, o
emprego e a renda. De outra parte, o sistema socialista (“real”) construído em
torno da União Soviética, nos anos 1930 passou praticamente incólume às
labaredas da Grande Depressão. Especialmente, a extensão e a profundidade
da internacionalização dos circuitos monetário-financeiros eram à época
“diminutas”, em relação aos tempos vividos nestes precedentes 40 anos.

Fracasso completo da economia política “neoclássica”

Como se respondessem seis anos depois à questão de Eichengreen e


O’Rourke, há pouco mesmo, entre o velho cinismo e a “surpresa”, o Banco
Central norte-americano (Fed) da doutora Janete Yellen e sua turma de
mandachuvas escreveram na ata de setembro que: “a inflação não deve atingir
2% nem mesmo até o fim de 2018”. Ora, sabe-se que desde dezembro de 2008
a taxa de juros básica americana está próxima a zero; e há vários meses faz-se
verdadeira campanha no desejo para que se elevasse a taxa de juros nesta
reunião de setembro! Fracasso!

Mais: a medida de inflação preferida do Fed (o índice de preços de gastos


pessoais do Departamento de Comércio) ficou abaixo de 2% por 40 meses
consecutivos. Na verdade, os banqueiros do Fed estão sem alternativa: somam-
se a inflação baixa mais, recente alta do dólar (preços dos produtos importados

159
para baixo), a queda nos preços do petróleo e outras commodities. Além disso,
dados sobre o emprego, divulgados seguindo a reunião mostram que as
contratações do setor privado “desaceleraram em agosto e setembro”,
recolocando amis uma vez novas incertezas sobre os rumos da economia
americana.

Um dia antes das informações do Fed, o Banco de Inglaterra decidiu manter a


taxa básica de juro em 0,5% ao ano, justificando como novo problema o
desaquecimento da economia do país, e externamente, “especialmente dos
emergentes”. Também na ata da última reunião do BCE (Banco Central
Europeu, lê-se: “os riscos de queda da inflação intensificaram-se durante o
verão” (no hemisfério Norte). Já o banco Central do Japão traça “cenário mais
pessimista foi notado no comunicado da decisão do Banco do Japão (BoJ)”, dois
dias antes do anunciado na ata do Fed. [1]
Contudo, observe-se na referência gráfica abaixo, da insuspeita agência
americana Bloomberg, como a questão da deflação atinge muitos países e é
fenômeno que se arrasta e se agrava.

Minsky, instabilidade financeira e a fábula neoclássica


Uma das ideias que enxergo das mais importantes de Hyman P. Minsky,
fecundo economista norte-americano discípulo de Keynes e Schumpeter, diz
respeito ao efeito das chamadas inovações financeiras, relacionadas ao crédito e
a consequente possibilidade da ampliação do investimento. Efetivamente
“submersa” nos comentários entre temas relevantes de sua principal obra
(“Estabilizando uma economia instável”, 1986), a questão para Minsky
respeitava, na ânsia da ampliação dos lucros, à utilização rápida e a sua
proliferação (por cópias; imitação) dessas inovações visando facilitar cada vez
mais a ampliação do crédito e da liquidez, geralmente pela burla das restrições
impostas às regras monetárias ainda instituídas.

Assim: a) a expansão dos lucros reforçaria as certezas das estimativas


anteriores e realimentaria as expectativas futuras; b) o crescimento das dívidas
das empresas tomadoras de crédito, submetidas às oscilações nas taxas de

160
juros e câmbio, sofre o impacto da reversão da situação de criada na euforia dos
lucros, e reverte-se do ponto de vista da situação das empresas com o aborto do
ciclo. Dito de outra forma, para Minsky, no “boom” econômico, a explosão
especulativa, o endividamento excessivo, a busca pela liquidez, o “pânico”
ocorrem regularmente em qualquer economia monetária importante. São
fenômenos estruturais que passaram a acompanhar a instabilidade das
economias capitalistas - da época dos monopólios.

Nas certeiras palavras de Minsky: “a economia moderna não é instável porque


está sempre enfrentando choque externos, como o ‘choque do petróleo’,
guerras, ou surpresas monetárias, mas devido à sua própria natureza”. [2]
Em sua famosa “Hipótese da Instabilidade Financeira”, dizia serem duas as
proposições fundamentais: a) os mecanismos de livre mercado não podem levar
a um equilíbrio sustentado, com estabilidade de preços e pleno emprego; b) os
ciclos de negócio são devidos à propriedades financeiras essenciais do
capitalismo. E isto para ele estava em “agudo contraste com a síntese
neoclássica”: a fábula em que, na ausência de choques externos a economia do
livre mercado sempre gerará equilíbrio autossustentado com pleno emprego e
preços estáveis (idem p. 194).

Horizontes sombrios, indagações

Pesquisador sistemático da economia mundial, o marxista indiano Prabhat


Patnaik vaticinava em agosto último, que o capitalismo mundial parece destinado
a um agravamento da crise. Após sete anos após o seu surgimento, a crise
persiste “apesar de as taxas de juro dos EUA persistirem abaixo de zero [em
termos reais]. Segundo o economista, a pressão do grande capital financeiro
subida das taxas, que se aproximaria, fará apenas agravar a crise. “O
capitalismo hoje parece muito mais afundado na crise do que a maior parte das
pessoas, incluindo mesmo muitos na esquerda, imaginam”, concluíra Patnaik.
(ver aqui: http://peoplesdemocracy.in/2015/0809_pd/world-recession-set-
worsen).
De acordo ainda com Patnaik, constitui-se grave erro interpretar neoliberalismo
como “uma mera política econômica”, pois, na verdade, o neoliberalismo é de
fato uma mera descrição (e bastante má) de todo um conjunto de medidas que
estão necessariamente associadas à hegemonia da finança globalizada”. (ver
aqui: peoplesdemocracy.in/2015/0517_pd/misconceptions-about-neo-liberalism).

*Publicado em Portal da Fundação Mauricio Grabois, 19.10.2015

161
Notas
[1] Ver: “Fed manteve juros por temor de que inflação não reaja”, Valor
Econômico/Wall Street Journal, 09/10/2015. E
http://www.valor.com.br/financas/4263612/taxa-americana-tende-ficar-
congelada-ate-1-tri-de-2016
[2] Ver: “Estabilizando uma economia instável, - a inclinação natural das
economias de mercado, complexas e globais, em direção à instabilidade”, H.
Minky, Novo Século, 2013, Capítulo 8. A propósito, bom recordar Lênin: “a
dominação do capital financeiro, ao invés de atenuar a desigualdade e as
contradições da economia mundial, o que faz é acentuá-las”. Ou ainda, “O que é
característico do imperialismo não é precisamente o capital industrial, mas o
capital financeiro”. Ver: “O imperialismo, fase superior do capitalismo, Cap. VII.

162
Reflexões sobre perspectivas do capitalismo em crise (II) Marx e o capital
fictício*
Atento ao sobe e desce ilusório das instituições especulativas do capital
internacional, o autor reúne neste segundo artigo a retórica confessional dos
economistas alinhados aos agentes da crise, fazendo mea culpa de seus
equívocos na análise de dados que apontariam para uma recuperação
econômica dos EUA que só existe em seus gráficos fictícios. Uma retórica que
serve apenas para confundir ainda mais o cidadão que paga o preço da gestão
fraudulenta do sistema financeiro global.

“Um otário vê exemplos isolados de aplicação de golpes virtuais...(...)


Infelizmente, muitos de nós fomos otários – inclusive Arkeloff e eu”, R. Shiller,
junto com Akerlof prêmio Nobel de economia [1]

Por falar em otários, não foi por falta de aviso e alerta a ocorrência desse último
crash das bolsas de valores de agosto último. Significando mais uma montanha
de mentiras criadas pela propaganda americana sobre a “recuperação” de sua
economia, o índice Down Jones desabou em queda de mais de 1000 pontos, o
que não acontecera desde 2010! Enquanto isso, a República Popular da China
acumulava em setembro US$ 3,557 trilhões em reservas internacionais - na
moeda dos “otários” -, mesmo após ter sacado cerca de US$ 100 bilhões para
deter o ataque especulativo em sua moeda, o renminbi (agosto-setembro).

Aliás, o mesmo Lawrence Summers (ex-secretário do Tesouro dos EUA),


reintrodutor da expressão “estagnação secular” afirmou então sobre o recente
crash bolsista que, “como em agosto 1997, 1998, 2007 e 2008, podemos estar
nos primeiros estágios de uma situação muito difícil”. Ora, tal prenúncio sucede o
longo processo em que o BC americano faz malabarismos inéditos e jogatinas
para artificializar e forçar a alta das ações em geral, resultando em subir o
mercado de ações puramente por interesses de financistas. Somadas as
manobras a uma taxa de juros baixíssima, e o quantitave easing (expansão
monetária através de compra de títulos), tanto quanto os grandes especuladores
empresas como Amazon, Google ou Apple, especialmente, têm tomado
empréstimos para comprar suas próprias ações e alavancá-las! [2]

163
Especulação e burla desenfreadas

Bem antes, bem que alertara o economista Ha-Joon Chang (sul-coreano,


Cambridge), a propósito da fantasia da recuperação americana e europeia: “Isso
não é uma recuperação, é uma bolha, e ela vai estourar”. Quando bolhas de
proporções históricas estão se desenvolvendo nos Estados Unidos e no Reino
Unido, os dois mercados de ações mais importantes do mundo, anunciava então
Chang no britânico The Guardian (24/02/2014).

Chang, na entrevista, ironicamente relembrou que Robert Lucas, o badalado


economista do mercado liberalizado (prêmio Nobel de Economia,1995),
orgulhosamente declarou em 2003: “o problema da prevenção da depressão foi
resolvido”. Em 2004, Ben Bernanke (presidente do Fed, BC dos EUA)
argumentara que, provavelmente, graças a uma melhor teoria da política
monetária, o mundo entrara na era da “grande moderação”, em que a
volatilidade dos preços seria minimizada. Portanto, crises no horizonte estariam
descartadas...

Dez anos depois do embuste de Bernanke, o economista e marxista francês


Gérard Duménil (ex-diretor de pesquisa do Centre National de la Recherche
Scientifique, CNRS) foi levado a informar que a crise econômica mundial de
2008 poderá se estender por um período superior a dez anos. O longo período -
maior do que ocorreu com outras crises no passado - dever-se-ia ao fato de não
ser possível ainda ver uma saída para Europa e Estados Unidos e seus
problemas com o significativo aumento da dívida pública. (Valor Econômico,
16/04/2014).

164
Em junho último, o editor de economia do Financial Times, Martin Wolf, frenético
defensor dos “trapaceiros” (Shiller) ilustrava a pantomima: 1) os níveis de
endividamento estão substancialmente maiores do que em 2007; 2) está limitada
a capacidade dos governos responderem aumentando drasticamente seus
déficits fiscais dado o crescimento do endividamento; 3) há uma “probabilidade
razoável” das taxas de juros continuarem muito baixas: antes da crise, as taxas
de juros dos bancos centrais centro capitalista eram de 5% ou 6% - se antes da
próxima crise forem de 2%, 3% ou mesmo 4%, “não terão muito o que cortar”.
Por todas essas razões, é perfeitamente possível imaginar “que a próxima crise
será pior”, enfatizou Wolf (Valor Econômico,12/06/2015).

Isso se soma a um quadro do sistema internacional de trocas no comércio que,


de modo inconteste, vai desenhando um cenário real mais uma vez
perigosamente turvo e representativo de um estado depressivo desigual
(expressão nossa; voltaremos ao termo) na economia mundial. O marxista
Michael Roberts, por exemplo, exibindo o gráfico abaixo, pergunta: “O comércio
mundial está voltando para as profundezas da Grande Recessão?”

(Ver aqui: https://thenextrecession.wordpress.com/2015/09/28/from-crawl-to-


crash/)

De fato, de acordo com o diplomata brasileiro Roberto Azevêdo (diretor-geral da


OMC), o comércio mundial (exportações e importações) deve cair pela quarta
vez seguida, saindo de uma média histórica de crescimento anual com média de
5,1% para uma taxa menor que 2,5%. Azevêdo foi explícito: “Não consigo ver
uma retomada do patamar de crescimento do pré-crise no futuro imediato”,
prevendo crescimento do comércio muito modesto, muito moderado “onde
houver”. Sim, palavrório diplomático!

Marx e a exacerbação fetichista do capital fictício

Ora, na origem das transformações que levaram o capitalismo a esta crise que
se arrasta (e sem horizontes!) desde 2007-8 encontram-se as metamorfoses do
capital, crédito e do sistema financeiro global que assinalamos en passant no
artigo anterior.

Resumindo a descrição de R. Guttmann [3]:

165
1) a combinação de desregulamentação, globalização e informatização
transformou um sistema financeiro estritamente controlado, organizado em
âmbito nacional e centrado em bancos comerciais (que recebem depósitos e
fazem empréstimos), em um sistema auto regulamentado (autônomo), de âmbito
global e centrado em bancos de investimento (corretagem, negociações de
lançamento de ações mediante subscrição pública onde a empresa e
intermediário financeiro colocam-nas no mercado de valores mobiliários).

2) Alterações estruturais do sistema de crédito foram formatadas por inovações


financeiras dotando o sistema de crédito geral de flexibilidade e capacidade de
reação às necessidades de credores e devedores incentivando as bolhas de
ativos, a subestimação de riscos e a alavancagem excessiva. Ou seja, a
“financerização” prioriza o capital fictício fazendo com que derivativos (de crédito
futuro) ou valores mobiliários (papéis, títulos) lastreados em ativos, distam
infinitamente da atividade econômica real de criação de valor.

3) A desregulamentação permitiu que os bancos se expandissem a novas áreas


geográficas ampliando as opções de serviços, combinam diversas funções
financeiras (operações bancárias comerciais, operações bancárias de
investimento, gestão de fundos, gestão de fortunas privadas e seguros;
combinam diversas funções financeiras (operações bancárias comerciais,
operações bancárias de investimento, gestão de fundos, gestão de fortunas
privadas e seguros) num único comando.

Para Marx, no movimento do capital portador de juros (D-D’, dinheiro que gera
dinheiro sem passar pela produção) - ou o capital financeiro em uma de suas
variantes - a relação capital atinge sua forma mais alienada, a “mais reificada e
mais fetichista, embora continue sendo um produto de uma relação social, não
relação entre coisas; segundo Marx, o capital como “fetiche autômato perfeito”.
[4]

Conforme ainda Marx, o capital fictício integra a dinâmica intrínseca do moderno


sistema de crédito. O que permite uma acumulação de capital muito superior ao
valor concreto do capital industrial empregado, ao tempo em que torna objetiva a
ocorrência de crises de realização e de superprodução. Ou ainda, o capital a
juros vem a ser é a sua forma mais geral porque corresponde à culminância do
processo de construção teórica, que avança das formas mais abstratas
(mercadoria e dinheiro) “para as formas mais concretas que correspondem à
feição final assumida pelo regime do capital”. Sintetiza Belluzzo: o conceito e a
prática do capital fictício “tem uma importância teórica maior do que os marxistas
costumam lhe atribuir”; ele estabelece critérios de valorização do capital distintos
do capital efetivo; critérios que “são necessariamente especulativos”, no sentido
de que se apoia na avaliação do curso esperado do preço dos títulos, o
rendimento que se espera descontado pela taxa de juros do mercado. [5]

Neoliberalismo e a invencionice dos “otários”

Assim, a partir dos anos 1980, três movimentos simultâneos e centrais passam a
protagonizar novos e crescentes movimentos especulativos, catapultados pelas

166
medidas de desregulamentação e liberalização das economias capitalistas
centrais.

1)Os bancos comerciais, submetidos à regulação específica e ao aumento da


concorrência, expandiram extraordinariamente o volume de crédito concedido;
retirando parte dos ativos (e, portanto, dos riscos) de seus balanços, uma vez
que seu capital próprio (reservas) era insuficiente para atender as exigências dos
acordos internacionais supervisionados pelo BIS (Banco de Compensações
Internacionais). 2) Os bancos passaram a administrar fundos de investimentos,
oferecer serviços de gestão de ativos por meio de seus vários departamentos,
fornecer seguros financeiros (hedge) como dealers (agentes negociadores) no
mercado de derivativos e ofertar linhas de crédito nas emissões de commercial
paper (papéis de curto prazo) e outros títulos de dívida no mercado de capitais.
3) instituições de vários tipos evoluíram a desempenhar um papel semelhante ao
dos bancos comerciais, fora da estrutura regulatória existente e, assim,
deliberadamente inaptos às reservas de capital obrigatórias. Isto é, bancos e
verdadeiros supermercados financeiros deixaram de atuar como simples
fornecedores de crédito e passaram a condição crescente de intermediadores de
recursos em troca de comissões; romperam assim relações diretas antes
existentes, com os tomadores de crédito que costumavam ser vigiados por um
“indicador antecedente” de riscos de inadimplência. [6]
**********************************************************************
Óbvio que a palavra “otários” – escolhida pelo medalhado economista americano
Shiller - não passa de retórica ou dissimulação: ele é “otário”? O neoliberalismo e
suas crises são a exacerbação especulativa das operações financeiras fictícias,
no sentido desvelado por Marx. Hoje multiplicado pelo inusitado, trata-se de
fabricação humana assentada nas possibilidades da valorização e da exploração
do regime hodierno do capital. “Otários” são bilhões de seres humanos e
trabalhadores esmagados pela alienação do fetiche do capital.

No próximo artigo examinaremos dimensões da crise e as indagações sobre as


perspectivas.

*Publicado em Portal da Fundação Maurício Grabois, 09.10.2015

NOTAS
[1] Em: “Fraudes, otário e mercados financeiros”, R. Shiller, Valor Econômico,
18/09/2015.
[2] Ver: “China nada tem a ver com isso! Nos EUA, são empresas recomprando
as próprias ações”, entrevista de M. Hudson, redecastorphoto, 27/08/2015; ver
aqui: http://www.marchaverde.com.br/2015/08/china-nada-tem-ver-com-isso-nos-
eua-sao.html
[3] Ver: “Introdução ao capitalismo dirigido pelas fianças”, R. Guttmann, Novos
estud. - CEBRAP nº. 82, São Paulo Nov. 2008
[4] Ver: O Capital, Livro 3, v. 5, p. 450-1, Civilização Brasileira, s/data.
[5] Ver: “Marx e Keynes e a finança capitalista”, L. Belluzzzo, em: “Os
antecedentes da tormenta”, Unesp/FACAMP, 2009.
[6] Ver: “A crise financeira e o global shadow banking system”, Marcos M. Cintra
e Maryse Farhi, em: “Novos estud. - CEBRAP no.82, São Paulo Nov. 2008.
167
Reflexões sobre perspectivas do capitalismo em crise (I)*

168
Nessa série de cinco artigos retomaremos a discussão sobre a grande crise
capitalista atual, incidências e horizontes. Buscando visualizar melhor o que
consideramos seus impasses sistêmicos extremos. Como pano de fundo
pressuposto a lei do desenvolvimento desigual do sistema capitalista, problema
científico fundamental da evolução histórica das sociedades, então equacionado
por Lênin no início do século passado. Mirando-se ainda o imbróglio de
conexões cada vez mais vastas e profundas que se renovam entre o centro, a
periferia capitalista e os países sobreviventes da experiência socialista.

Nessa série de cinco artigos retomaremos a discussão sobre a grande crise


capitalista atual, incidências e horizontes. Buscando visualizar melhor o que
consideramos seus impasses sistêmicos extremos. Como pano de fundo
pressuposto a lei do desenvolvimento desigual do sistema capitalista, problema
científico fundamental da evolução histórica das sociedades, então equacionado
por Lênin no início do século passado. Mirando-se ainda o imbróglio de
conexões cada vez mais vastas e profundas que se renovam entre o centro, a
periferia capitalista e os países sobreviventes da experiência socialista.
Apesar dum cenário global de “estilhaçamento” dos marcos geopolíticos da
situação pretérita, a análise não descobrirá pólvora alguma, mas examinará a
seguinte postulação: a persistência do regime contemporâneo do capital, e a
falência da economia política neoclássica aceleram antagonismos incontornáveis
à sua sobrevivência. Cruzando problemas estruturais e conjunturais, iniciaremos
com aspectos centrais da crise ligada às mudanças na esfera financeira.
Neoliberalismo, enganadores e trapaceiros
“Mercados competitivos, por sua própria natureza, produzem engano e trapaça”
(George Akerlof e Robert Shiller, ganhadores do Prêmio Nobel de Economia,
25/09/2015). [1]
Em grande medida – temos insistido -, questões estruturais dos ciclos e crises
recentes são dedutíveis nas formulações recentes de Mohamed El-Erian (2011):
o crescimento econômico mundial passa a viver “um novo normal”; por Larry
Summers, ex-secretário do Tesouro dos EUA, onde, a partir do fracasso da
economia americana alcunhou de “estagnação secular” o atual estágio do
afundamento da economia global (2013); e, no final de 2014, Cristine Lagarde,
diretora-gerente do FMI dissertou estarmos vivenciando “uma nova
mediocridade”.
Evidente: essa nova onda de aparente “catastrofismo”, advinda de credenciados
porta-vozes dos paradigmas neoliberais somente aparece após a devastação

169
resultante da grande crise iniciada em 2007-8. E enfeitar o fracasso com a
definição cínica de “nova mediocridade” talvez bem represente a ideia do “moral
hazard” (risco moral) difundida pelos ideólogos neoliberais para justificações da
ilimitada voracidade e anarquia cometidas pelo grande capital financeiro. Insulto
a Keynes? [2]
Ao que tudo indica, a tão almejada luz no fim do túnel “pós-crise” pisca, diante da
interesseira propaganda da “recuperação” econômica dos EUA. País que hoje
amontoa 2,2 milhões de presidiários (cinco vezes mais que 1980),
correspondendo a 25% da população carcerária mundial - enquanto sua
população soma apenas 5% da população do planeta! [3]. Noutro indicador
econômico fundamental, para o influente economista norte-americano Bradford
Delong (ex-subsecretário-adjunto do Departamento do Tesouro dos EUA), a
proporção de pessoas empregadas em relação à população “continua
sinalizando uma economia em profunda dificuldade”. Ademais, a inflação nos
EUA não está apenas inferior à meta de longo prazo do Fed (Banco Central dos
EUA), como se acredita “que continue assim durante pelo menos os próximos
três anos”. [4] A deflação – que se busca disfarçar - é fenômeno que acompanha
as depressões, como mostra a experiência histórica!
Isso oito anos depois de trilionários aportes em dólar pelo Estado americano a
bancos e investidores falidos, de fuixação de uma política monetária com taxa de
juros negativas, e um extenso e repetido de programa de venda-compra de
títulos do Tesouro (quantitative easing). O falhanço em verdade apontaria nada
mais que a interrupção prolongada dos ciclos de dinamismo causais da
acumulação do capital sistêmica.

170
“Los Angeles declara estado de emergência após aumento do número de sem-
teto” [5]
No âmago da involução, a crise detonada pela “financerização” da riqueza
capitalista e seus fenômenos econômicos-sociais, aqui compreendidos como
responsáveis pelas conexões verticais de rupturas do processo de acumulação
do capital.
Crise e mutações financeiras
As características gerais da presente crise aparecem de maneira similar àquelas
grandes crises de outrora que processaram alterações substantivas na dinâmica
do ciclo capitalista, isto é, determinada tipologia da expansão pré-crise provocou
prolongamento e distúrbios severos no estágio que deveria ser rotineiramente de
uma crise recessiva.
Para o marxista norte-americano Robertt Guttmann, ao invés, o sistema como
um todo foi envolvido nessa crise, assim como quando ocorreram agora
alterações estruturais no modus operandi do sistema capitalista. Os
desequilíbrios gerados, na ausência de processos intervenientes, ensejam
explosões seguidas de paralisias sistêmicas. Crises estruturais da mesma
envergadura e similares às de: 1873-1879, 1929-1939 e 1979-1982 - argumenta
ele.
Espécies de nuvens passageiras”, outras que se manifestaram nos anos 1990,

171
esta não só apenas originou-se do centro do sistema, ao invés da periferia, esta
notabilizou-se por revelar “falhas estruturais profundas na arquitetura
institucional de contratos, fundos e mercados que compunham o sistema
financeiro novo e desregulamentado”; uma crise sistêmica, de proporções épicas
e efeitos duradouros. [6]
Crises sistêmicas que levam à recessão, estagnação ou depressão. É como
interpreta e distingue o também economista marxista britânico Michel Roberts.
No gráfico abaixo. Roberts não só assinala os ciclos das tendências do
crescimento econômico no desenrolar das crises, como destaca um processo
depressivo instalado desde a crise de agostO de 2007, “até agora”. [7]

Dito de outra forma, a crise e seus desdobramentos atuais configuram


fenômenos gestados num padrão de capitalista voltado à acumulação financeira
neoliberal. Assim denominada, a “globalização financeira” dos mercados globais
soterrou o padrão anterior regulatório acordado no pós-2ª Guerra. Notadamente
a partir dos anos 1980, como nunca as relações do poder no comando direto das
operações recompuseram as forças sociais do grande capital financeiro,
decretando políticas de desregulamentação e a liberalização dos mercados
financeiros e liquidando o regime de finanças e comércio mundial instituído em
Bretton Woods.
Importa assim repor: 1) neoliberalismo e “globalização financeira” não apenas
reafirmam a tendência à superacumulação de capital, como introduziram novas
determinações agravantes da instabilidade e da incerteza do cálculo capitalista
próprias desse regime de produção na época dos monopólios; 2) especialmente
instrumentos e “inovações” financeiras, e a as obscuras relações se amplificaram
progressivamente entre o sistema bancário tradicional e o “sistema financeiro
sombra” (shadow banking system), fenômenos decisivos que estiveram no
centro da deflagração da crise, em agosto de 2007 e setembro de 2008. 3)
desenvolveu-se nova e furiosa campanha permanente de ataque e desmonte
das conquistas do trabalho, um aríete de recomposição das taxas de lucros; 4)
De acordo com outro pesquisador marxista, David Kotz [8], ocorreram três
desenvolvimentos fundamentais no neoliberalismo: a) ascensão das
desigualdades econômico-sociais; b) proliferaram grandes bolhas de ativos; c) a
expansão de um setor financeiro especulativo e propenso ao risco, visivelmente

172
contrastantes, por exemplo, com os EUA durante o período “regulado” 1948-73
( “The Golden Age”).
No artigo seguinte veremos mais detalhadamente a relação entre os novos
instrumentos financeiros (“inovações”) e a crise.

*Publicado em Portal da Fundação Mauricio Grabois, 02.10.2015

NOTAS

[1] Ver: “economistas premiados engrossam o coro do ataque ao livre mercado”,


Wall Street Journal/Valor Econômico, 25/09/2015. Para J. Schumpeter, “O
mercado monetário é sempre, por assim dizer, o quartel general do sistema
capitalista” (“A teoria do desenvolvimento econômico”, Abril Cultural, 1983
[1911], p. 86).
[2] Nos escritos de J. Keynes, o famoso capítulo 8 (“Teoria do juro, emprego e da
moeda”, Abril Cultural 1983 [1935], p. 117), pode-se lê: “Além da causa devida à
especulação, a instabilidade econômica encontra outra causa, inerente à
natureza humana, no fato de que grande parte das nossas atividades positivas
depende mais do otimismo espontâneo do que de uma expectativa matemática,
seja moral, hedonista ou econômica”.
[3] Em: “A encarcerada economia americana”, L.Tyson e L. Mendonça, Valor
Econômico, 28/09/2015.
[4] Ver: “Sobre o aperto monetário americano”, J. Bradford Delong, Valor
Econômico, 31/08/2015.
[5] Manchete da reportagem do New York Times, copiada pelo Estado S. Paulo
(23/09/2015), informando ainda que em números oficiais são 26 mil moradores
de rua na cidade. Áreas urbanas de Nova York, Washington e São Francisco
registram aumento dos sem-teto; em Honolulu, no Havaí, ou Tucson, no Arizona,
também em cidades “famosas por suas políticas liberais”, como Madison,
Wisconsin, levaram a repressão a grandes acampamentos.
[6] Ver, de R. Guttmann: “Globalização financeira pós-crise”, em: Revista Tempo
do Mundo, IPEA, v.1, nº1, dez. 2009; “Uma introdução ao capitalismo dirigido
pelas finanças”, Novos Estudos/CEBRAP, nº82, 2008.
[7] Ver: “Deuda, despalancamiento y recesión”, M. Roberts, in: SinPermiso,
05/10/2014.
[8] Ver: “A teoria marxista da crise e a severidade da crise econômica atual”,
orig.em: http://people.umass.edu/dmkotz/Marxist_Cr_Th_09_12.pdf. O marxista
Kotz vem pesquisando a categoria “Estrutura Social de Acumulação”.

173
O (mau) cheiro do fascismo*
A sistemática conduta neofascista e criminosa dos EUA se entrecruza agora
com a crise do capitalismo, que persiste a provocar por toda parte ambientes de
descrédito, desemprego, aumento de suicídios, do consumo de drogas e
crescimento de doenças mentais, bem como crescentemente esquentando um
caldo de cultura favorável às idéias e movimentos neofascistas.

O formidável, corajoso e impactante artigo do jornalista britânico John Pilger,


“Por que a ascensão do fascismo é de novo a questão” [1] reforça as
contribuições mais recentes de intelectuais e militantes marxistas que passaram
a alertar sobre a ascensão de correntes e partidos neofascistas. Ademais de
pouco assinalada transmutação do termo fascismo e seus signos.

Segundo Pilger, a partir mesmo de 1945, mais de um terço dos países membros
das Nações Unidas (69 países) foram objeto de algumas ou de todas as
seguintes formas de intervenção nas mãos do fascismo moderno dos Estados
Unidos: “foram invadidos, seus governos derrubados, seus movimentos
populares esmagados, suas eleições subvertidas, seu povo bombardeado e
suas economias despojadas de toda proteção” sem falar em sociedades
perversamente destroçadas por “sanções”. Milhões de mortos, conforme o
historiador também britânico Mark Curtis; e para isso e em cada um dos casos,
uma grande mentira foi preconcebida. Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria...

Matanças sem fim

Acusando irrefutavelmente os crimes imperialistas nucleados e perpetrados


desde então pelos Estados Unidos da América, Pilger lembra que “o elemento
comum no fascismo” ontem como hoje, “é o assassinato em massa”. Exemplifica
a invasão norte-americana do Vietnã onde havia suas “zonas de fogo livre”, de
“contagem de corpos”, seus “efeitos colaterais”. Descreve que no estado de
Quang Ngai – Pilger foi correspondente de guerra e esteve lá – “muitos milhares
de civis (‘gooks’) foram assassinados pelos Estados Unidos”. Nos casos do Laos
e do Camboja, avalia ter havido “o maior bombardeio aéreo da história produziu
uma época de terror até hoje marcada pelo espetáculo de crateras feitas à
bomba, as quais, vistas de cima, parecem monstruosos colares”.

174
“Hoje”, sentencia o jornalista: “a maior campanha isolada de terror do mundo
envolve a execução de famílias inteiras, de convidados em casamentos, de
enlutados em funerais”, - as vítimas de Obama. E recorrendo a reportagens do
The New York Times, diz que Obama faz a sua seleção a partir de uma “lista de
morte” apresentada a ele todas as terças-feiras na Sala da Situação da Casa
Branca. Assim, sem qualquer insinuação de legalidade, Obama “decide quem
vai morrer e quem vai viver”. Ordenando o uso dos drones, “mísseis [helfilre]
calcinam suas vítimas e enfeitam a área com seus restos mortais”. Cada
bombardeio é retratado na tela de controle remoto como um “bugsplat” (inseto
esmagado).

O cerco à Rússia de Putin

Pilger denuncia vigorosamente ainda os acontecimentos recentes da Ucrânia.


Recorda o 2 de maio de 2014, em Odessa, quando 41 pessoas de etnia russa
“foram queimadas vivas na sede sindical”, com a polícia apenas assistindo.
Dmytro Yarosh (chefe do partido “Setor de Direita”) então saudou o massacre
como “outro dia brilhante na nossa história nacional”. A mídia norte-americana e
britânica classificou o massacre de “tragédia horrível”, mas resultante de
“confrontos” entre “nacionalistas” (neonazistas) e “separatistas” (pessoas que
recolhiam assinaturas para um referendo por uma Ucrânia federal). O porta-voz
da oligarquia financista Wall Street Journal condenou as vítimas: “Incêndio
mortal provavelmente provocado pelos rebeldes”, declarou o Governo. Obama
felicitou ao governo provisório neonazista por sua “moderação”. O objetivo dos
EUA e da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) é o cerco e
desmembramento da Rússia e seu entorno.

Avanço neofascista na Europa

A sistemática conduta neofascista e criminosa dos EUA se entrecruza agora


com crise sistêmica e global do capitalismo, iniciada em 2007-2008 e que
persiste a provocar por toda parte ambientes de descrédito, desesperança,
desemprego, aumento de suicídios, do consumo de drogas pesadas e
crescimento de doenças mentais, bem como crescentemente esquentando um
caldo de cultura favorável ao crescimento de idéias e movimentos neofascistas.
O caso da Europa é pródigo em exemplos, que vão desde a razoável
representação parlamentar do partido “Aurora Dourada”, (abertamente nazista,
da Grécia); também o Partido Nacional Democrata Alemão (NPD),
declaradamente nazista, em 2014 elegeu pela primeira vez um deputado ao
Parlamento Europeu obtendo 1% dos votos; na França o crescimento da
extrema-direita (neofascista), a Frente Nacional que teve 25% dos votos ao
parlamento europeu etc. [2]

Denunciar, combater e derrotar os golpistas no Brasil!

Desnecessário repetir sobre a insana conduta da direção golpista que insuflou


abertamente as manifestações do 15 de Março em nosso país. Elas seguiram
uma linha de ataques, desrespeito, mentiras e calúnias contra a Presidenta da
República, ensaiando um teatro obscurantista, e nunca visto nas terras de
Tiradentes, Bonifácio e Osvaldão. O que se somou às claras com a histeria

175
fascista de grupelhos e degenerados das camadas médias da sociedade
brasileira a clamar por “intervenção militar”.

Tudo isso tem sido dirigido e conduzido ideologicamente pela horda de bandidos
em que se transformaram os apátridas Aloísio Nunes, Aécio Neves, FHC, Álvaro
Dias, notadamente, todos bajulados diuturnamente por uma mídia apodrecida. O
primeiro declarou a mídia querer “sangrar até o fim” a Presidenta Dilma; o
segundo escreveu em nome de vários golpistas um protocolo (apócrifo) de
pedido de impeachment, logo recusado pelo Ministro Zavascki (STF); o terceiro
forjou “entrevista” para dizer que uma pesquisa que encontrara queda na
popularidade da Presidenta significaria “o descrédito” e perda “das condições de
governar”; o quarto, conhecido oportunista desonesto e reacionário, surfou na
idéia de a tal pesquisa colocar na ordem do dia o impeachment.

Como revelou o renomado cientista político Moniz Bandeira, em recentíssima


entrevista, [3] à pergunta: “o governo da Venezuela tem denunciado a
participação de Washington em tentativas de golpe. O mesmo poderia estar
acontecendo em relação ao Brasil?”, respondeu ele: “Evidentemente há atores,
profissionais muito bem pagos, que atuam tanto na Venezuela, Argentina e
Brasil, integrantes ou não de ONGs, a serviço da USAID, Now Endowment for
Democracy (NED) e outras entidades americanas”. E prossegue o professor
Bandeira: “As demonstrações de 2013 e as últimas, contra a eleição da
presidente Dilma Rousseff, não foram evidentemente espontâneas. Os atores,
com o suporte externo, fomentam e encorajam a aguda luta de classe no Brasil,
intensificada desde que um líder sindical, Lula, foi eleito presidente da
República”.
Que ninguém se iluda: esses golpistas declarados ao promover a campanha
pelo seqüestro do mandato da Presidenta da República juntam-se aos fascistas
e transpiram a sua fedentina.

*Publicado em Portal da Fundação Mauricio Grabois, 20.03.2015

NOTAS
[1] Ver: http://johnpilger.com/articles/why-the-rise-of-fascism-is-again-the-issue

[2] Concretamente, em 25 de Maio passado, nas eleições para o Parlamento


Europeu a extrema-direita venceu as eleições na França, Grã-Bretanha e
Dinamarca, e cresceu na Áustria Hungria e Grécia.

[3] Entrevista ao site do Partido dos Trabalhadores na Câmara dos Deputados,


17/03/2015.

176
Marxismo e a grande crise capitalista global*
“Não há crises permanentes... [mas] quase regular periodicidade das crises no
mercado mundial” (Marx). [1]

O artigo - inspirado na teoria marxista - reafirma a persistência essencial dos


mecanismos estruturais e imanentes que determinam hodiernamente as crises
do capitalismo. Portanto recusa a imobilidade de suas formas, tanto quanto a
versão de estagnação perpetuada das crises. Mudam as formas das crises e
seus conteúdos vão também sofrendo alterações: mediatas ou imediatas. Lênin
sublinhava a ideia hegeliana na Enciclopédia Filosófica: a contradição não é
idêntica em todas as esferas e em todos os graus.

Por suposto, a certeira (e comprovada) conclusão de Marx exposta na epígrafe


acima tem signos lógicos, necessitando sempre apreende-la imersa na história.
Porque a percepção sistêmica da unidade: regime do capital + capitalismo (ou
de leis do movimento do capital + sociedade burguesa) permanece crucial à
orientação da ação política revolucionária nas lutas de classes.

Crises, fases e etapas

A devastação social global que vem se seguindo à grande crise capitalista,


deflagrada nos EUA, reafirma mais uma vez a natureza implacável deste
sistema, os supostos e objetivos reais de sua dinâmica. Bem como confere
maior nitidez à sentença de sua obsolescência e de regime econômico-social
historicamente superado.

Alarmada, a Organização Internacional do Trabalho (OIT-ONU) acaba de


divulgar (setembro) existirem 200 milhões de desempregados no mundo.
Quando os EUA - gendarme imperialista do culto à matança - anunciaram
existir mais de 46 milhões de pobres, ou 15,1% de sua população: o maior
nível em 52 anos. Duas informações subestimadas, advirta-se.

Pois a falsificação ideológica dos indicadores passou a ser contestada por


gente graúda do stablishment imperial: 1) de acordo com P. Craig
(republicano), exsecretário-adjunto do Tesouro de R. Reagan, em se
computando também os trabalhadores em desalento a longo prazo, como era
feito oficialmente em 1980, em junho de 2011 a medida completa da taxa de
desemprego nos EUA era de 22,7% da PEA (População Economicamente
Ativa), ao invés dos 9,2% alardeados; 2) conforme o ex-secretário do Trabalho
de B. Clinton, R. Reich (democrata), os 5% de americanos de mais alta renda
são hoje responsáveis por
37% de todo consumo do país; do fim dos anos 90 até 2007, o endividamento
da família americana típica cresceu em 33%, e a alíquota fiscal para as
pessoas de alta renda foi reduzida pela metade, para 35%; enquanto empresas
financeiras respondiam por cerca de 40% dos lucros corporativos americanos
(2007). [2] A última questão é assim figurada por F. Chesnais:[3]

177
Em se distinguindo fases e etapas do capitalismo [4], no curso desta crise
desenham-se uma primeira fase, a das “hipotecas subprimes” (2007); uma
segunda, a do “colapso do Lehman Brothers” (2008) e que lhe proveu caráter
sistêmico mundial; e esta terceira, reagudizante, denominada como “crise das
dívidas soberanas” (2011), de enorme impacto destrutivo na União Européia e
especialmente nos EUA. A propósito, na caracterização do “financial led
capitalism”, o marxista R. Gutmann [5] interpreta: o pânico de 1873, o colapso
de Wall Street em 1929, a crise e mudança da política monetária do Fed
(19791982) e a “crise financeira” atual como sendo “quatro crises estruturais”,
iniciados todos nos Estados Unidos, mas envolventes a economia mundial.
Acrescentemos: embora a crise dos anos 1970 não tenha a
extensão/profundidade das demais.

De outra parte, a crise das “dívidas soberanas” atesta numa escala nunca vista
uma transferência de riqueza dos trabalhadores e dos povos para grandes
banqueiros e financistas cúmplices na fabricação dessa mesma crise; ou saque
do público para o privado. Esta transferência significa que tesouros e bancos
centrais de todo o mundo já gastaram US$ 12, 4 trilhões até agosto último:
fortuna quase igual ao valor do PIB (Produto Interno Bruto) norte-americano e
de sua dívida pública!

Ao mesmo tempo, grandes monopólios não financeiros acumulavam US$ 1,12


trilhão em dinheiro e investimentos líquidos nos balanços mais recentes, 59% a
mais que os US$ 703 bilhões do terceiro trimestre de 2008: “Engordando o

178
caixa”, descreveu o assunto The Wall Street Journal em agosto último. E noutro
exemplo menor: apenas seis dos principais bancos dos EUA (Bank of America
Merryl Linch, BNY Mellon, Citigroup, Goldaman Sachs, JP Morgan Chase e
Morgan Stanley) somaram US$ 42,4 bilhões em lucros em 2010, 40% a mais
que em 2009. [6]
O exemplo dado acima por Reich é apenas símbolo da “financeirização” da
riqueza: a crescente integração dos mercados financeiros em cada país e a
articulação mundial entre os mercados financeiros tornaram-se indispensáveis
às operações de multiplicação da gigantesca riqueza financeira atual. Numa
dimensão similar, a frequência dos episódios de instabilidade e crises
financeiras evidenciou-se nos anos no final dos anos 1980 e notadamente nas
décadas de 1990 e 2000.

O regime do capital

Recordemos. Do ponto de vista estrutural, o regime do capital, na interpretação


de Marx desenvolveu propriedades universais, uma vez entronizadas suas
forças produtivas típicas. Isto é, a) o capital (máquinas, equipamentos,
instalações, matérias-primas, ativos financeiros) é valorização do valor que se
expande; b) expande-se a mais-valia a partir da extração do excedente do
trabalhador assalariado, subtraindo o valor do tempo de trabalho socialmente
necessário, vis-à-vis ao pagamento para reprodução de seus meios de
subsistência, da jornada de trabalho produtora de mais-valor; c) a concorrência
intercapitalista (reforçada pelos mercados externos) impõe a ampliação das
escalas de produção e o aumento da produtividade social do trabalho; d) sendo
a tendência inexorável de o capitalista aumentar investimentos no capital
constante (C), o que representa inovação tecnológica em bens de produção
(bens de capital), em detrimento (ou no descarte) da força de trabalho e seus
salários (v); e) na lei geral da acumulação capitalista, as duas alavancas
decisivas são a concorrência e o moderno sistema de crédito; f) a concorrência,
o crédito, a concentração centralização de capitais implicam nos fenômenos
estruturais de superacumulação e superprodução de capitais; g) a
superprodução de capital não indica em outra coisa senão superacumulação
de capital, enquanto que o subconsumo assalariado representa o dado de que
se parte previamente – nunca foi causa de crises, mas pode retroalimentar a
estagnação.

Portanto, as crises no capitalismo não podem ser separadas da regularidade


de sua dinâmica expansiva. O capitalismo, segundo Marx, objetiva produzir em
larguíssima escala, até superproduzir capital. Quer dizer, sobreinvestir para
fazer crescer a produtividade social do trabalho e suplantar a concorrência;
superproduzir para superlucrar, superacumulando capital em excesso e em
todas as suas formas, referenciando-se numa dada taxa média de lucro.
Simultaneamente, o moderno sistema de crédito sintetiza o movimento lógico
histórico do desenvolvimento do capital, sendo a circulação creditícia “condição
e resultado constante da produção capitalista”. E segundo Marx, a formação do

179
capital fictício se chama “capitalização”, sendo fictícia sua valorização a dada
taxa média de juros e essa valorização e seu movimento não guardam relação
direta e imediata à valorização do capital produtivo. [7]

A figura acima ajuda a ilustrar como na ascensão do neoliberalismo se


restabeleceu a renda da grande burguesia, remunerando “salários” muito
elevados no cume da pirâmide das rendas e desviando amplos fluxos de renda
em direção aos proprietários de títulos (capital fictício), então numa deliberada
política monetária de taxas de juros elevadas. Ou seja, mostra um padrão de
taxas de juros reais de longo prazo, nos EUA e na França, onde o aumento
após 1979 foi espantoso: substituem-se taxas amplamente positivas por taxas
muito baixas dos anos 1970. Como argumentam os marxistas G. Dumenil e D.
Lévy [8], “essas taxas de juros de longo prazo elevadas tornaram-se um traço
característico do neoliberalismo, até a ruptura de 2000”. Mais ainda – afirmam
eles –, correspondentes às corporações, com as taxas altas, entretanto, o
Estado, as famílias e os países da periferia foram forçados a suportar este
ônus: elevaram-se fluxos de renda em benefício dos emprestadores, ou
famílias ricas e instituições financeiras.

Por sua feita, o capital a juros (D-D’) significa a forma mais desenvolvida e mais
abstrata do capital: “a forma mais reificada,... a forma mais vazia do capital, a
perversão, no mais alto grau... a forma fetichista pura”. [9] E as duas variantes
do capital financeiro - o portador de juros e o fictício - conduzem a um vetor que
se relaciona com a busca incessante de valorização do valor, para a qual a
especulação passa a ser intrínseca ao desenvolvimento das modificações no

180
sistema de crédito. Especulação, que, de acordo com uma formulação
(impressionante) de Marx é conseqüência do desenvolvimento do sistema de
crédito e lucro a partir dos juros, e:
“Reproduz nova aristocracia financeira, nova espécie de parasitas, na figura de
projetadores, fundadores e diretores puramente nominais; um sistema
completo de especulação e embuste no tocante à incorporação das
sociedades, lançamento e comércio de ações” [10].

Na síntese de L. Belluzzo, [11] o circuito D-M-D’ (Dinheiro-Mercadoria-mais


Dinheiro), contido no Livro I e que parece iluminar o enigma do capital,
reaparece no Livro III na forma de D-D’, em seu verdadeiro viés capitalista
coletivo e despótico comandando decisões de gasto e de produção, isto é,
sobre o emprego e os salários dos trabalhadores.

Acumulação financeira, sociedade burguesa e crise

“Se o sistema de crédito é o propulsor principal da superprodução e da


especulação excessiva... (...) acelera o desenvolvimento material das forças
produtivas e a formação do mercado mundial... (...) Ao mesmo tempo, o crédito
acelera as erupções violentas dessa contradição, as crises... (...) levando a um
sistema puro e gigantesco de especulação e jogo”. [Marx, 12]

A superprodução de capital – máquinas, equipamentos, instalações,


matériasprimas, e ativos financeiros, claro – é uma “novidade” do século 19,
então anunciada por Marx contra as teorias Smith e Ricardo. Episódios sempre
acompanhados de perturbações financeiras, que diferenciam modalidades das
crises. Também porque é falso separar as distintas esferas da produção da
circulação, solidamente interligadas durante as crises.
O capital procura valorizar-se sempre – sinuosamente tal qual uma serpente -
movimentando-se entre o dinheiro, os ativos financeiros, as mercadorias,
ampliando sua base de valorização. Na operação crédito/capital a juros o
capital converte-se em mercadoria e exprime-se “cada vez mais como puro
capital”, no capital por ações, e outros títulos financeiros que representam o
direito de apropriação da riqueza. É uma dimensão do movimento de suas
formas, que o gênio Karl Marx [13] denominou de “As três figuras do ciclo”:
“Sempre mudando de forma e se reproduzindo, parte do capital existe como
capital-mercadoria que se converte em dinheiro; outra, como capital-dinheiro
que se transforma em capital produtivo; uma terceira, como capital produtivo
que se torna capital-mercadoria. A existência contínua dessas três formas
decorre de o ciclo do capital global passar por essas três fases”.
Formas do capital, formas das crises! Pois o moderno sistema de crédito
alimenta o processo de autonomização do capital a juros, configurando um
circuito financeiro que mobiliza, utiliza e centraliza capital monetário e valoriza
capital fictício. É assim que: a) a proliferação de títulos financeiros passa “a ter
uma circulação e valorização próprias”; b) as variadas formas de ativos
181
“passam a ser disputadas pelas massas centralizadas de capital”, onde o
investimento busca todos os espaços de valorização; e a sistemática
“transformação dos lucros em excedentes financeiros” se submetem “a uma
lógica particular de valorização”. [14]
Na relação unitária (e mais uma vez contraditória) entre regime do capital e
sociedade burguesa, conforme Marx, “a força motriz da produção capitalista é a
valorização do capital, ou a seja a criação de mais-valia, sem nenhuma
consideração para com o trabalhador” [15]. E nas grandes fases expansivas
antecedem à dinâmica das crises, geralmente: monopolização +
financeirização + superacumulação (também de riqueza financeira fictícia) +
crises - podendo haver ou não estagnação.
Exemplifico. A crise atual trata-se, sim, de uma crise gestada num padrão de
acumulação capitalista francamente voltado para a acumulação financeira
neoliberal, onde a financeirização dos mercados de riqueza institucionalizou-se.
Quer dizer, se explicitaram como nunca as relações do poder político no
comando direto das operações que recompuseram as forças sociais do grande
capital financeiro, após a operação de liquidação de fundamentos centrais
originários dos acordos de Breton Woods do pós-Segunda Guerra. Foram
imposições políticas a desregulamentação e a liberalização dos mercados
financeiros.
Aliás, segundo Peter Gowan, a estratégia original do grande capital financeiro
norte-americano e britânico impunha a inflação baixa para manter a função da
moeda “como um padrão fixo de valor de acordo com os interesses do
capitaldinheiro” - tendo sido esta a “verdadeira base para a inauguração do
neoliberalismo do Atlântico”. Extraindo consequências do conceito, diz
Chesnais: o “predomínio financeiro puro” do ressurgimento das formas do
“capital-dinheiro concentrado”, a manejar as alavancas de controle do sistema
capitalista mundial, “acentuou o processo de financeirização crescente” dos
grupos industriais. [16]
Numa recente análise, D. Kotz [17] aponta três desenvolvimentos
fundamentais no neoliberalismo: a) ascensão das desigualdades; b) grandes
bolhas de ativos; c) um setor financeiro especulativo e propenso ao risco,
visivelmente contrastantes, por exemplo, com os EUA durante o período
“regulado” 1948-73. À época, os salários subiram quase à mesma taxa da
produtividade do trabalho, enquanto a distribuição do rendimento familiar
tornou-se ligeiramente menos desigual. Estes três desenvolvimentos são
características da “forma institucional liberal do capitalismo” – formula Kotz.
Para quem, no centro da operação político-ideológica da grande burguesia
financeira encontra-se o enfraquecimento da capacidade de negociação
sindical do trabalho, resultando no fenômeno da “estagnação ou queda salarial
enquanto os lucros ascendem rapidamente”. O que é reforçado pela
desproteção estatal ao trabalho, permitindo ao capital manter uma fatia
crescente do produto social - diz.
Nessa direção, importa destacar que neoliberalismo e “globalização financeira”
não apenas reafirmam a tendência à superacumulação, como introduzem

182
novas determinações agravantes da instabilidade e da incerteza do cálculo
capitalista, próprias desse regime de produção na época dos monopólios. Com
a particularidade duma “era neoliberal” cada vez mais nítida: a furiosa
campanha permanente de ataque e desmonte das conquistas do trabalho, um
aríete de recomposição das taxas de lucros. Movimento situado no interior dos
processos mais recentes que catapultam as crises via circuitos da “finança
mundializada” (Chesnais), presentes nesta débâcle do capitalismo central.
Nova Depressão?

Expressando multilateralmente a espiral descendente da catarse neoliberal, já


em 2004 [2011, Planeta] o britânico Niall Ferguson intitulou um seu livro de
“Colosso - ascensão e queda do império americano”. Em outubro de 2008, o
famoso historiador P. Kennedy afirmou: “A crise é mais um sinal de um lento e
gradual declínio do poderio americano, mas não quer dizer que haverá uma
queda livre”. Exatamente O mundo em queda livre, denominou-se o livro de J.
Stiglitz, escrito em 2010. P. Krugman, Nobel de economia e do partido
Democrata norte-americano, passou a ver uma nova Grande Depressão em
2011. K. Rogoff assim descreve uma Grande Recessão em 2011, semelhante
à Grande Depressão de 1929-39. B. Eichengreen, em março de 20011 estimou
que “nos próximos 10 anos vamos assistir uma profunda mudança em direção
a um mundo em que várias moedas competirão pela supremacia”. N. Roubini,
outro economista neoliberal e “futurólogo”, elucubrou em agosto de 2011: O
capitalismo pode auto destruir-se. Sim, maior ou menor cinismo de apologistas
da “revolução financeira”, título do pegajoso ensaio de Martin Wolf, editor
econômico do Financial Times.
Ora, a depressão propriamente dita - e agora insinuada por
estagnação/recessão no centro do capitalismo -, caracteriza-se por queda
acentuada do produto, desemprego bastante elevado e deflação (queda dos
preços. Por outro ângulo, as grandes depressões de 1873-96 e 1929-39
tiveram circunstâncias e determinações sócio-históricas diferentes da grande
crise capitalista irrompida em agosto de 2007.

Epílogo (continuidades, contradições, rupturas)

1. As crises de superprodução de capital são expressão da


superacumulação, que se particularizam hoje refletindo o excesso de
valorização do capital (ativos financeiros) relativamente à determinada taxa de
juros. A crescente e sofisticadíssima especulação sistêmica é continuidade
estrutural do desenvolvimento do próprio regime do capital monopolista. Note-
se, no entanto, mais uma vez: para Marx, as crises no capitalismo “não são
mais do que soluções momentâneas e violentas das contradições existentes,
contradições bruscas que restauram transitoriamente o equilíbrio desfeito”. [18]

As contradições mutifacéticas da grande crise capitalista contemporânea


podem indicar espécie de esgotamento da capacidade de renovação das bases
183
da acumulação financeira exasperada pelo neoliberalismo. Como afirmamos
[19], abrem-se rotas nunca percorridas ao se desvelar o movimento
lógicohistórico na evolução paradoxal do capitalismo e suas sociedades –
contradições e antagonismos no “fio da navalha”. O que ocorre em meio a uma
transição geopolítica mundial, exigente de um sistema internacional
plurimonetário. O que significa tensionamento das tendências desta transição.

2. As crises econômicas engrenadas no regime do capital, até hoje, nunca


foram pré-condição para o desabrochar das revoluções proletárias, ou da
passagem à transição ao socialismo. Tal visão economicista e ilusória –
rotineira no marxismo “messiânico” – sofreu reiteradamente dura condenação
de Lênin, defensor da centralidade das vastas condições subjetivas e político-
organizativas do proletariado e seus aliados estratégicos, para a ação numa
crise geral nacional de situação “insuportável”; em condições de “agravamento
além do comum”, da miséria e da angústia das classes oprimidas. [20]
Inobstante, parece-nos claro que a crise atual do capitalismo implicará em
rupturas econômico-sociais, renovando a vitalidade do marxismo-leninismo e
os combates pela indeclinável persecução do socialismo.

*Publicado em Revista Princípios, out./nov.2011

NOTAS

[1] Ver: Teorias da Mais-Valia, K. Marx, vol. II, Difel, 1983, pp. 932-33.

[2] Respectivamente em: O caminho para a guerra, P. C. Roberts, original in:


CounterPunch, 2/7/2011; A pobre classe média americana, R. Reich, O
Estado de S. Paulo/ The New York Times, 11/9/2011.

[3] Fonte: Rentabilidade do setor financeiro e não financeiro nos EUA


(lucros/capital fixo líquido). In: Chesnais, F., Crise de suraccumulation
mondiale ouvrant une crise de civilization, NPA 2/2010.

[4] No interior das etapas constitutivas do capitalismo – mudanças estruturais


incidentes -, aparecem ondas de expansão e prosperidade: grosso modo
1850-72 (livre concorrência); 1890-1914 (impérios/imperialismo); 1945-73
(“era de ouro”). Bem como depressões ou crises severas: 1873-96; 1929-
39; a crise estrutural dos anos 1970; de 1981-3; 1987 etc.

[5] Ver: Globalização financeira e perspectivas pós-crise, R. Guttmann, in:


Revista Tempo do Mundo, IPEA, v. 1/n. 1, dez./ 2009.

[6] Dados do Centro de Economia Mundial (CEM) da Fundação Getúlio


Vargas, in: O Globo, 3/9/2011.

184
[7] Ver: todo o Capitulo 2 O monopólio do capital, de A contradição em
processo – o capitalismo e suas crises, de Frederico Mazzucchelli,
especialmente as pp. 84-90, Unicamp/IE, 2004, 2ª edição.

[8] Ver: Neoimperialismo e neoliberalismo, G. Dumenil e D. Lévy,


Revista Economia e Sociedade, nº 30, abr./2007,

[9] Em: O Capital, K. Marx, Marx, Livro 3, v. 5, Civilização Brasileira s/d.

[10] Ver: “O Capital”, Marx, Livro 3, v. 5, p. 50.

[11] In: "Os antecedentes da tormenta: origens da crise global, L. Belluzzo, p.


206, Facamp, 2009.

[12] Em: O Capital,Livro 3, v. 5, p. 510, Civilização Brasileira, s/data.

[13] O Capital, Livro 2, v. 3, Cap., p. 106, Civilização Brasileira, s/data.

[14] Ver: A contradição em processo. O capitalismo e suas crises, F.


Mazzucchelli, Brasilense, 1985, p. 87-88.

[15] Em: Capítulo inédito D’o Capital - resultado do processo de produção


imediato, Marx, p. 20, Escorpião, 1975.

[16] Ver, respectivamente: A roleta global. Uma aposta faustiana de


Washington para a dominação do mundo, P. Gowan p. 81, Record, 2003;
e Da noção de imperialismo e da análise de Marx do capitalismo:
previsões da crise, F. Chesnais, in: “O Incontornável Marx”, p. 64, Nóvoa,
J. (org), Salvador/São Paulo, Unesp/Edufba, 2007.

[17] Ver: A teoria marxista da crise e a severidade da crise econômica atual,


D. Kotz, orig.em:
(http://people.umass.edu/dmkotz/Marxist_Cr_Th_09_12.pdf). O marxista
Kotz vem pesquisando a categoria Estrutura Social de Acumulação.

[18] Em: O Capital, Livro 3, v. 5, p. 286, Civilização Brasileira s/d.

[19] Ver: Rupturas e impasses no desenvolvimento neoliberal, A.S. Barroso,


in: Desenvolvimento: ideias para um Projeto Nacional, Barroso, A.S. e
Souza, Renildo (Orgs.), Anita Garibaldi, 2010.

[20] Ver especialmente os seguintes estudos de V. Lênin: A bancarrota da II


Internacional (1915); O Estado e a revolução (1917); Esquerdismo,
doença infantil do comunismo (1920). Neles, Lênin considera a Primeira
Grande Guerra imperialista como sendo o fenômeno objetivo decisivo à
conflagração e vitória da revolução de Outubro na Rússia.

185
A grande crise oito anos depois*
[o capital a juros (D-D’) significa]: “a forma mais reificada,... a forma mais vazia
do capital, a perversão, no mais alto grau...sem depender da produção... a
forma fetichista pura”(Marx, O capital, Livro 3). [1]

186
Desde o lançamento de “A grande crise capitalista global 2007-2013: gênese,
conexões e tendências” passaram-se dois anos e inúmeros prenúncios
colhidos por seus autores desvelaram-se. Seja do ponto de vista analítico ou
do que se escreveu sobre origens, nexos e tendências dessa crise, os textos
em conjunto dão uma visão a mais aproximada possível da realidade –
dimensões múltiplas exibindo singularidades numa unidade.
A partir de decisões relacionais inextrincáveis entre poder financeiro-político, o
neoliberalismo pôde decretar a “financeirização” da riqueza como padrão
sistêmico. Teoricamente, um capitalismo que define a riqueza pelo tripé
moeda-crédito-patrimônio (títulos, ações); gestiona-a pelos bancos centrais,
sistema financeiro privado e tesouraria das grandes empresas industriais e
comerciais (macroestrutura financeira); e realiza-a através do dinheiro e ativos
financeiros que predominam sobre os lucros e resultados operacionais (num
número cada vez maior de países). [2]
Dinâmica e burla do capitalismo concreto
Do ponto de vista das operações desse processo de “financeirização” são
aspectos fundamentais: 1) os bancos comerciais, submetidos à regulação
específica e ao aumento da concorrência expandiram extraordinariamente o
volume de crédito concedido; retirando parte dos ativos (e, portanto, dos riscos)
de seus balanços, uma vez que seu capital próprio (reservas) era insuficiente
para atender as exigências dos acordos internacionais supervisionados pelo
BIS (Banco de Compensações Internacionais). 2) Os bancos passaram a
administrar fundos de investimentos, oferecer serviços de gestão de ativos por
meio de seus vários departamentos, fornecer seguros financeiros (hedge)
como dealers (agentes negociadores) no mercado de derivativos e ofertar
linhas de crédito nas emissões de commercial papers (papéis de curto prazo) e
outros títulos de dívida no mercado de capitais. 3) instituições de vários tipos
evoluíram a desempenhar um papel semelhante ao dos bancos comerciais,
fora da estrutura regulatória existente e, assim, deliberadamente inaptos às
reservas de capital obrigatórias. Isto é, bancos e verdadeiros supermercados
financeiros deixaram de atuar como simples fornecedores de crédito e
passaram a condição crescente de intermediadores de recursos em troca de
comissões; romperam-se relações diretas anteriores com os tomadores de
crédito que costumavam ser vigiados por uma vigilância de riscos de
inadimplência. Brota daí o chamado “shadow banking system” ou sistema
financeiro sombra. [3]

Ficção como extensão do real. Superacumulação e crises


Do ponto de vista estrutural do regime do capital, uma ideia decisiva de Karl
Marx acerca de dinâmica do capitalismo diz respeito exatamente ao caráter
“fetichista” da expressão universal das formas da riqueza: o dinheiro. Para
Marx, [4] em seus desdobramentos, no movimento do capital portador de
juros (D-D’, dinheiro que gera dinheiro sem passar pela produção), ou capital
financeiro em uma de suas variantes, a relação capital atinge sua forma mais
alienada, a “mais reificada” embora continuar produto de uma relação social,
não entre coisas. O capital como “fetiche autômato perfeito” (Marx).

187
É assim que: a) a proliferação de títulos financeiros (securities) passa a ter uma
circulação e valorização próprias; b) as variadas formas de ativos passam a ser
disputadas pelas massas centralizadas de capital, e o investimento busca
todos os espaços de valorização; a transformação dos lucros em excedentes
financeiros se submetem a uma lógica particular de valorização do capital
Oligopólios em concorrência violenta, do ponto de vista do poder financeiro,
mantêm a mesma lógica das crises de superprodução de capital, fortemente
alimentada pelo caráter fictício da acumulação financeira. Refletindo o excesso
de valorização do capital em relação à determinada taxa de juros. Mas se
exacerbaram alguns traços típicos dessas crises como a rapidez da
propagação e a recorrência. Isto é, as crises se tornam mais frequentes por
aumento da especulação e do volume na acumulação fictícia - o que decorre
da quantidade/velocidade das transações com ativos financeiros, cada vez
mais abrangentes, se propagando mais rapidamente pelos mercados nacionais
e alcançando facilmente regiões inteiras ou mesmo o mundo.
Ocorre que, “a força motriz da produção capitalista é a valorização do capital,
ou a seja a criação de mais-valia, sem nenhuma consideração para com o
trabalhador”, assinalara Marx. [5]
Valorização e muralha das desigualdades
Demonstra o economista pop star francês Thomas Piketty: há mais de duas
décadas a desigualdade vem crescendo rapidamente nos Estados Unidos e na
Inglaterra, especialmente – mas não só, e se generaliza. No caso americano, o
processo começou – diz - com a liberalização econômica: sequestro fiscal para
os ricos, milionários e bilionários a partir das reduções da progressividade dos
impostos.
Nos Estados Unidos, cuja a alíquota máxima de imposto de renda alcançava
acima de 90% (1944-1964), ou num desenvolvimento capitalista onde a
desigualdade era mais baixa e o crescimento econômico alto, impuseram as
elites burguesas às legislações alíquotas máximas para cerca de 40%. Do
mesmo modo, deliberadamente, as políticas tributárias dos EUA passaram a
baixar drasticamente os impostos sobre heranças e os tributos sobre
patrimônio. Como compara Piketty – coautor do livro Pour une Révolution
Fiscale -, em países que as mudanças não foram tão profundas, a
desigualdade não evoluiu tão fulminantemente. Informa ainda que “a fatia da
renda apropriada pelos 10% mais ricos nos EUA em 2012 é igual a 50,4%, a
mais elevada desde 1917, quando a série começa”. A concentração é maior na
comparação entre os 99% na base e o 1% no topo da pirâmide, que fica com
22,5% — denúncia inclusive do movimento Ocupem Wall Street em seus
protestos. De fato, de 1993 a 2012, a renda média real dos 99% cresceu 0,34%
anual, enquanto a do 1% subiu 3,3% ao ano, dez vezes mais. Com isso, se
apropriou de dois terços da riqueza gerada. [6]
Trata-se, sem dúvida, da propagandeada fábula neoclássica da convergência
(neoliberal) para um (suposto) desenvolvimento. Resumindo, a partir de 1970,
no âmbito econômico a teoria do equilíbrio geral veio a ser amplamente
aplicada na área do desenvolvimento, com grande sustentação em modelos

188
computacionais. Assim, na vigência de uma suposta situação de concorrência
perfeita, o modelo forneceria – por exemplo, nas teorias dos neoclássicos
Kenneth Arrow (Nobel 1972, com J. Hicks) e Gérard Debreu (Nobel de 1983) –
e alcançaria uma solução de equilíbrio na qual a disposição das escolhas
individuais e a distribuição dos recursos otimizada seriam possíveis. Ou seja,
uma sociedade real é fantasiada pelo mercado! Como assim?

Exemplo: o denominado “fundo dos gênios” (o fundo hedge Long Term Capital
Management, LTCM) – de propriedade de dois prêmios Nobel de economia, os
neoliberais Myron Scholes e Robert C Merton (1997), e de um ex-vice-
presidente do Fed (Banco Central dos EUA) – entrou em colapso em meio à
crise da Rússia (1998) e quase leva os mercados financeiros à bancarrota.
Maior prova da cruel aventura de teóricos neoclássicos, impossível!

Noutro ângulo, como argumenta exaustivamente Piketty em outro estudo, [7] a


convergência entre países ricos e pobres e seu modelo, levou a previsões
“bastante chocantes para a desigualdade internacional”, sendo que, no caso
dos países ricos e os latino-americanos de renda intermediária, “as diferenças
de renda tendem a se aprofundar”.

Epílogo: endividamento recorde, deflação e mergulho do comércio


mundial
“O crédito calcula o valor monetário não em dinheiro, mas em carne e
coração humanos” (Marx, “Cadernos de Paris, 1844). [8]
No artigo deveras explicativo do estágio em que chegamos, “Uma nova crise
no horizonte”, [9] o editor de economia do Financial Times e arrogante
liberal Martin Wolf ilustrava a espécie de prisão perpétua em que chegou o
encarceramento do sistema neoliberal:
1) os níveis de endividamento estão substancialmente maiores do que em
2007;
2) está limitada a capacidade dos governos responderem aumentando
drasticamente seus déficits fiscais dado o crescimento do endividamento;
3) há uma “probabilidade razoável” das taxas de juros continuarem muito
baixas: antes da crise, as taxas de juros dos bancos centrais centro capitalista
eram de 5% ou 6% - se antes da próxima crise forem de 2%, 3% ou mesmo
4%, “não terão muito o que cortar”. Por todas essas razões, é perfeitamente
possível imaginar “que a próxima crise será pior”, enfatizou Wolf.
Mais: relatório do FMI (Fundo Monetário Internacional, 09/2015): “aumentaram”
os riscos de nova recessão mundial; o PIB global reduzir-se-á para 3,1% (o
mais baixo índice desde 2009). Na zona do euro – em constatada deflação – a
inflação não vai passar de 0,2% este ano, e nos EUA a provável taxa de 0,1%!
Diz a OIT (Organização Internacional do Trabalho, 08/10/2015): em 2015 haverá
201,6 milhões de desempregados no mundo, pouco mais de 2 milhões a mais do
que em 2014; do total, 73,4 milhões são jovens com até 24 anos.

*Publicado em Caderno Saber-Gazeta de Alagoas, 07\11\2015

189
NOTAS
[1] Ver: O Capital, K. Marx, Marx, Livro 3, v. 5, Civilização Brasileira s/d., p.452.
[2] Ver: “Qual o conceito de financeirização compreende o capitalismo
contemporâneo?”, J.C. Braga, em: A grande crise capitalista global 2007-2013:
gênese, conexões e tendências, Anita Garibaldi/Fundação Maurício Grabois,
2013, p.119.
[3] Conf. “A crise financeira e o global shadow banking system”, Marcos M.
Cintra e Maryse Farhi, em: “Novos estud. - CEBRAP noº 82, São
Paulo Nov. 2008.

[4] Ver: O Capital, Livro 3, v. 5, p. 450-1, Civilização Brasileira, s/data.


[5] Em: Capítulo inédito D’o Capital - resultado do processo de produção
imediato, Marx, p. 20, Escorpião, 1975.
[6 Ver: http://oglobo.globo.com/economia/desigualdade-nos-eua-atinge-maior-
nivel-em-um-seculo-12452072#ixzz3k3PWw7of].
[7] “Ver: “A economia da desigualdade”, T. Piketty, Intrínseca, 2015, p.p 67-8.
[8] Ver: “Economia Política e dinheiro’, K. Marx, em: “Cadernos de Paris &
Manuscritos Econômicos-Filosóficos de 1844” Expressão Popular, 2015, p.206.
[9] Em: “Valor Econômico”, 12/06/2015.

2011. Clivagens e tendências na crise*

190
“O século XXI é o século asiático” (Wen Jiabao). [1]

No crepúsculo de 2010 a reunião do G-20 (Seul, 11/2010) ecoou a gritaria


opositora aos EUA em manter a supremacia de sua moeda contra o mundo -
ataque cataléptico de sua desidratada economia em crise. “Nova guerra
financeira mundial”, definiu o influente economista Michael Hudson, o outro
pacotaço dos EUA (U$ 600 bilhões) para aprofundar a desvalorização do dólar,
facilitar suas exportações, assim como o pagamento de suas contas externas e
a especulação contra as moedas (já ultravalorizadas) de vários dos
“emergentes”; o que se soma à desvalorização do euro – a do yuan chinês,
noutro nível - frente a várias outras moedas.

Desta feita, até as Filipinas (antiga colônia americana) denunciou o porrete


imperialista, junto a Brasil, China, Índia, África do Sul, Japão, Alemanha.
Testemunhou-se “indignação” e ameaças da parte de Timothy Geithner, o
secretário do tesouro norte-americano. [2] Enfim, “guerra de capitais”, como
bem conceituou o economista Lecio Morais [3]; intensificação da guerra
comercial pelo império, o que já vem se desdobrando em inevitável
protecionismo global. Não à toa, Daniel Eckert, colunista do jornal alemão “Die
Welt” e autor do livro “Weltkrieg der Währungen” (“Guerra mundial de divisas”)
compara os EUA com um “viciado em heroína, que tem a sua droga fornecida
pela China”; os EUA consomem – diz ele - e a China produz o que os
americanos consomem; os EUA se endividam, a China fornece o capital para o
endividamento americano; a China é, maior credor americano. [4]

EUA e UE: decadência e obscurantismo no capitalismo central

Como nos EUA, na União Européia (onde se destaca combativa e persistente


resistência popular) a maioria dos 27 segue em estagnação econômica a se
prolongar e em decadência social; submersos estes dois grandes pólos em
dívidas impagáveis, desemprego elevadíssimo, cortes brutais do financiamento
público, aumento de xenofobia, racismo e da violência.

Em números gerais, segundo a liberal “The Economist”, os EUA crescerão


1,5% do PIB (Produto Interno Bruto) em 2011; o mundo 3,7% (80% vindo dos
“emergentes”), em lugar dos 4% antes imaginados; a zona do euro 1,5%, prevê
a Comissão Européia. Enfocando outro aspecto grave do atual estágio da crise

191
sistêmica, ainda em setembro passado o próprio diretor-gerente do FMI,
Strauss-Kahn esclareceu: “A recuperação não é suficiente, é preciso ter uma
recuperação com emprego” (Valor Econômico, 14 de setembro 2010).

Avançam manifestações eleitorais de crescimento da extrema-direita nos EUA


(“Tea Party”) e em vários países europeus. O fenômeno é crescente e
preocupante.

Sobre essa questão, importa assinalar que: a) é notável o crescimento da


influência da extrema direita francesa, onde se institutos projetam a “Frente
Nacional” de J.M. Le Pen (e sua midiática filha, Marine) superando em votos a
UMP (“União por um Movimento Popular”, de N. Sarkozy; b) nas eleições
regionais italianas (março, 2010) a neofascista “Liga do Norte”, foi o terceiro
partido mais votado (12,7%) dos votos dos italianos, quase o triplo do
conquistado nas eleições regionais de 2005; c) na Suíça aprovou-se o
referendo (novembro, 2010), de autoria do texto é do partido de extrema direita
SVP (“Partido do Povo Suíço”); a Lei determina a expulsão automática de
imigrantes condenados por crimes no país, incluindo cidadãos europeus.

Na verdade há proliferação de alianças politicos-eleitorais na Europa entre a


denominada direita “tradicional” e a extrema-direita (nos Países Baixos, na
Dinamarca, na Itália ou na Áustria). O que “reflete una tendência europeia
fundamental” acelerada pela crise. Marine Le Pen, a exemplo, pertence
plenamente a esta geração europeia dos “netos” (e “netas” de Pétain,
Mussolini, Hitler, Franco) como os Wilders (Países Baixos), os Fini (Itália), os
De Wever (Bélgica), os Strache (Áustria), os Vona (Hungria), os Tudor
(Romênia), os Kjaersgaard (Dinamarca). [5]

Ademais, em meados de 2011: a) cerca de 2/3 dos estados americanos estará


às portas da falência; b) a bancarrota fiscal européia somente agravará a
questão social e a situação dos trabalhadores. E, pelas estimativas de seus
próprios governos (municipais, estaduais e federais) será necessário um
refinanciamento superior a US$ 3 trilhões nos EUA, e de US$ 2 trilhões na
Europa para que consigam fechar as contas ao longo deste ano.

A própria OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento


Econômico) crê num “hiato de produção” mundial que não deva se fechar até
2015, enquanto economistas de Harvard e Cingapura encontram um
crescimento econômico do G-7 de 2,1% entre 1998-2008, e consideram que
nos próximos 10 anos este será de 1,45% [6].

O “arco-íris” asiático

Na Ásia, em disjuntiva à decadência, consolida-se em escala espectral a China


(“economia socialista de mercado”) que: a) supera em 2011 o líder EUA na
manufatura, disse Daniel Franklin, editor da “The Economist; b) inaugurou o
trem bala mais rápido do mundo (Xangai-Hangzhou), a quase 420 km por hora;
c) criou o supercomputador mais rápido do mundo, o Tianhe-1A,
“transformando o país em superpotência da tecnologia”, escreveu Ashley
Vance, do “The New York Times”; d) liderou investimentos mundiais em

192
petróleo, com gastos de 45% do total de fusões e aquisições, em 2009, cifra
que chegou a US$ 18 bilhões ainda em setembro de 2010; e) acumulava
reservas internacionais correspondentes a US 2,85 trilhões em dezembro de
2010 [7]; f) as primeiras imagens do “caça invisível” chinês J-20 – só existente
nos EUA e na Rússia – foram vistas na internet no 5 de janeiro deste ano,
coincidentemente dias antes da visita de R. Gates, ex- chefe da CIA e atual
secretário da Defesa.

Em 2011 a China deverá crescer 8,5% seu PIB, a Índia, que segue crescendo
e se fortalecendo, deverá atingir 8,2%, ainda de acordo com estimativas da
“The Economist”. Intensificam-se as manobras táticas de cooperação e conflito
entre Índia+China – Índia+EUA. O governo indiano de Manmohan Singh faz
claro “jogo duplo”, perigosamente pondo o país no centro das grandes alianças
cruciais do início desta década. Note-se que o presidente Obama declarou no
apagar das luzes de 2010 ser a Índia “uma potência mundial estabelecida”. [8]
Mas, atenção, não é só. Em 28-9 de julho de 2010 o primeiro-ministro britânico
D. Cameron visita a Índia para acordos aeroespaciais; entre 6-9 de novembro
foi a vez de Obama; de 4 a 7 de dezembro o presidente francês N. Sarkozy e
M. Sing anunciam acordos de US$ 9,4 bilhões na esfera nuclear; e o premiê
chinês, entre 15-17 negocia US$ 16 bilhões com o governo indiano (Valor
Econômico, idem).

Ultrapassado ano passado pela China em sua condição de segunda economia


mundial, o Japão voltará à estagnação; as escaramuças militares na península
coreana miram estrategicamente a China. A renda familiar japonesa média caiu
9% desde 1993; os trabalhadores temporários crescem e atingiram um terço da
força de trabalho (16% dos anos 80). Além disso, até 2055 a população deverá
baixar de 127 para 90 milhões de habitantes (40% serão idosos). A situação
econômica das pessoas é a razão principal de mais de 30 mil japoneses terem
cometido suicídio a cada ano nos últimos 12 anos. Cerca de 77% dos
desempregados no Japão não recebem auxílio-desemprego, segundo a
Organização Internacional do Trabalho. E, enquanto Jeff Kingston (diretor de
Estudos Asiáticos na Universidade Temple, em Tóquio) afirma que na “melhor
das hipóteses... Conseguirá evitar uma catástrofe, mas é difícil ver outra coisa
que não sejam perspectivas sombrias”, o primeiro-ministro Naoto Kan
apresenta a sua (e velhíssima) receita: "Abrir o país", ou seja, reduzir as
barreiras comerciais, afrouxar a regulamentação e tornar o país mais atraente
para investir. De outra parte, a dívida pública do Japão deve somar o dobro do
PIB (2011) e atingir 210% do PIB em 2012, situando o país como o de maior
relação dívida pública/PIB entre os países pesquisados (OCDE). Tais razões
levaram o premiê Kan, numa entrevista à TV Asahi (5/1/2011) - confirmou o
secretário-chefe do Gabinete, Yoshito Sengoku – a dizer que “as condições
fiscais atuais não permitem adiamentos nessas decisões, pois estamos nos
aproximando da beira do abismo”. [9]

A Rússia?

Resumindo bem: 1) Bateu recorde da sua produção de petróleo em 2010,


tendo saído da recessão de 2009; 2) suas reservas internacionais voltaram a
crescer e somam cerca de US$ 500 bilhões, recebeu US$ 25 bilhões em

193
investimentos diretos estrangeiros e sua economia deve crescer 4% em 2011;
3) Rússia e Índia assinaram uma série de acordos que inclui a construção de
dois reatores nucleares russos, inclusive um “pacto” que anuncia criar e
desenvolver jatos de combate de última geração; 4) com os EUA, assinaram
um novo tratado Start, que [teoricamente] reduzirá em 30% o número de ogivas
nucleares (até 1.550 cada), e limita a 800 o número de vetores estratégicos
(mísseis intercontinentais e submarinos), o que foi aprovado pela Duma na
primeira de suas três votações. [10]

América Latina desacelera

De acordo com recente boletim da CEPAL (Comissão Econômica para a


América Latina e Caribe – ONU), a economia latino-americana, que cresceu
6% em 2010, cairá para 4,2% em 2011. O Brasil também vai reduzir quase à
metade seu ritmo do crescimento de 2010, segundo a CEPAL a 4,6%, frente
aos 7,7% ou mais previstos para 2010. Para a organização, Chile, Peru e
Argentina deverão ter os melhores desempenhos deste ano, juntamente com
os menores do MERCOSUL (Paraguai e Uruguai). No ano passado a inflação
já se manifestou em alta, especialmente na Venezuela e Argentina. No entanto,
em 2011 a recuperação do emprego iniciada em meados de 2009, nas
estimativas a taxa de desemprego na América Latina e no Caribe deve cair de
7,6% em 2010 para 7,3% no próximo ano. Mas – diz a CEPAL -, o déficit em
transações correntes da região deverá alcançar cerca de -1,5% do PIB (1,3%
em 2010). Conforme ainda L. Moreno, presidente do BID (Banco
Interamericano de Desenvolvimento), o grande volume de dólares
descarregado na América Latina é um desafio crucial para este ano: “Há um
tsunami de dólares em busca de oportunidades. E a busca de oportunidades se
dá em países onde há crescimento e não há dúvida que os fluxos de capital
continuarão chegando, destacou ele. [11]

A grande convulsão acelera o declínio dos EUA

A devastadora crise financeira, iniciada em 2007-8 forçou até o aparato


multilateral de controle imperialista das políticas econômicas. Além de admitir,
em abril passado, o controle da conta de capitais o Fundo Monetário
Internacional faz um giro para posições mais “realistas”. “Quando a próxima
crise financeira explodir - e digo bem quando ela explodir e não se explodir -,
devemos estar prontos", alertou em dezembro último o chefe do FMI Strauss-
Khan. Prosseguindo, afirmou: "E não podemos contar de novo com os
contribuintes para pagar a nova fatura", advertindo que hoje que as
consequências da crie global estão longe de ter se esgotado. "A situação na
Europa resta preocupante, o futuro é mais incerto do que nunca, e sem esperar
que a calma volte, é preciso começar a reconstruir tudo", anunciou ele. [12]

É nesse quadro em que se aclara o estágio do declínio imperialista


estadunidense, ao menos em três tendências claras: 1) a crise levou ao
“aprofundamento do declínio relativo da economia dos Estados Unidos face às
mudanças em curso na divisão internacional do trabalho, sobretudo a partir dos
chamados países emergentes, especialmente a China”, conforme
prognosticara a Resolução do 12º Congresso do PCdoB, (A extensa, profunda

194
e grave crise do capitalismo, novembro de 2009). 2) Cresce a resistência ao
financiamento mundial dos déficits e do endividamento externo dos EUA, pelo
resto do planeta, embora e sabidamente: a) este fosse o modelo econômico
imposto (e consentido) e “naturalmente” plasmado desde o arranque da
“globalização financeira” (década de 1980); b) como antecipara Suzzane de
Brunhoff (A instabilidade monetária internacional, 2005), o endividamento dos
EUA é distinto dado a condição de emissor da moeda em que denomina suas
dívidas; c) a desindustrialização, os processos de outsourcing (terceirização
externa) e a queda de produtividade vêem a muito desmontando a base da
produção norte-americana e movendo sua economia para os chamados
serviços financeiros. 3) A contestação põe em relevo que a transição
geopolítica à multipolaridade global exige um sistema internacional
plurimonetário, não mais o atual.

Crise, decadência e ilusões monetárias

O que nada tem a ver [13] com o fracassado vaticínio de mais de 20 anos
(esperando Godot?) prognosticando o “colapso iminente do padrão dólar”.
Escoltado por esta completa inocuidade, a cômica ilusão sobre a substituição
do dólar pelo euro se revelou uma completa humilhação: inúmeros analistas e
membros de governos europeus passaram ver a saída da atual crise no
esfacelamento da moeda européia - algo difícil de se materializar até por falta
de alternativas geoeconômicas ao continente. É que para esses, a tendência à
multipolaridade era uma “ficção”: em última instância se omitia então a
proeminência a da China Socialista – sequer assim a denominavam! - e ao
invés da (insidiosa) emergência do yuan, deixaram “se encantar” com a moeda
européia nascida em 1999.

Ainda a respeito deste último tema, vale a pena transcrever uma ajustada
opinião do professor J. L. Fiori, um grande estudioso brasileiro da complexa
dinâmica do sistema de relações internacionais:
“Ao contrário da crise americana de 2008, a crise europeia de 2010 não é
apenas financeira, nem se restringe à insolvência de alguns estados de menor
importância econômica, dentro da comunidade. Agora sim se trata de uma
crise monetária, de insolvência do próprio euro, uma moeda que é emitida por
um Banco Central “metafísico”, que não pertence a nenhum Estado, nem
administra a dívida de nenhum Tesouro Central”. [14]

De outra parte, consideramos simplificada (e metafísica) a conclusão de I.


Wallerstein, para quem “Não há qualquer outra moeda hoje preparada para
substituir o dólar como moeda de reserva. Nesse caso, quando o dólar cair,
deixará de haver moeda de reserva. Estaremos num mundo de moeda
multipolar”. Bem como não estamos de acordo com uma formulação conclusiva
do professor Fiori acerca doutra questão correlata: “Mas é absolutamente certo
que a simples ultrapassagem econômica dos EUA não transformará
automaticamente a China numa potência global, nem muito menos no líder do
sistema mundial”. [15] Por que nenhuma coisa nem outra?

1) Porque o vetor principal é a consolidação de um sistema plurimonetário –


que na prática já começa a existir – com o dólar sendo parte integrante neste

195
sistema: o problema não é esperar a sua “queda” – isto é absolutamente
irrelevante. 2) A República popular da China já é efetivamente a segunda
potência econômica global. Ora, acaso, a China reivindica (para hoje) ser “líder
no sistema mundial”? Não, e não é essa a questão estratégica crucial, como
muito bem acentuou o liberal Fareed Zakaria, ainda em 2008. Pois, explorando
e desenvolvendo maneiras de complicar e desgastar a supremacia militar
americana, notadamente nas áreas de tecnologia espacial e informática, os
chineses, “o que é mais importante, usarão sua força econômica e suas
habilidades políticas para alcançar seus objetivos sem ter de apelar para a
força militar”. [16]

Sob outro ângulo e especificamente do ponto de vista do significado de sua


política militar e de defesa, assim concluiu a muito respeitada professora
Brahma Chellaney (Strategic Studies at the New Delhi-based Centre for Policy
Research), no seu artigo A arrogância da potência chinesa: “É de importância
fundamental o fato de a China ter se tornado uma potência militar mundial
antes de ser uma potência econômica. (...) A ascensão da China, portanto, é
tanto obra de Mao como de Deng. Porque se não fosse o poder militar chinês,
os EUA tratariam a China como outro Japão”.

Ademais, notemos novamente, o que apresentou o relatório do respeitado


SIPR (Stockholm International Peace Research Institute, 2008) [17],
relativamente à enorme diferença entre orçamento militar dos EUA e o da
China:

“(...) mas em período de economia em declínio, esta desproporção irá cada vez
ser mais acentuada até ser demasiado flagrante que os EUA já não
conseguem suportar financeiramente a carga de serem a única superpotencia
mundial. (...) “E a China irá aparecer cada vez mais como uma potencia militar
global, tendo ainda que vencer a batalha da modernização tecnológica e
ultrapassar todas as barreiras de conhecimento que lhe faltam ainda através de
parcerias com empresas ocidentais e russas ávidas de exportar tecnologia a
todo o custo...” .

Trata-se portanto de má vontade ou grave equívoco fugir á constatação da


verdade indiscutível: na transição geopolítica mundial o fato decisivo é a
proeminente clivagem no sistema de relações internacionais que vai fazendo
“quebrar” a hegemonia imperialista dos EUA – o elo chave da cadeia de
evoluções e contradições sistêmicas. Sendo indiscutível o acelerado
debilitamento estrutural dos Estados Unidos, tanto em matéria monetária,
econômico-financeira e diplomática, fenômenos que reduzem sua capacidade
para persistir atraindo ampla fatia dos capitais internacionais, inclusive para
sustentar sua gigantesca máquina de guerra. Noutra ponta, pensamos que as
revelações recentes do (ainda obscuro) Wikileaks, para além, são
manifestações de divisões profundas e originárias no aparelho de espionagem
e segurança estatal da potência imperialista, ou noutras palavras mais um
fenômeno a insinuar um fracionamento de suas classes dominantes – incluindo
fortes divergências na cúpula militar - quanto à estratégia frente à decadência.

Conclusões: duas tendências centrais

196
Advertindo logo para as corriqueiras concepções antagônicas à dialética
materialista, de que tendências não possuem contratendências - problema
epistêmico fundamental ao qual o cientista Karl Marx dedicou todo o capítulo
XIV do livro III de O Capital - [18], em matéria de exercícios de previsibilidade
científica considero que devemos igualmente seguir um “conselho” recente do
professor Eduardo Chitas:

“o passado em geral, o passado remoto incluido, trazem muito ao presente,


mas não trazem lições de orientação. É em cada tempo presente que estão e
têm de ser encontrados critérios da nossa relação com o passado,
indissociáveis da nossa orientação conjuntamente prática e teórica, na época
que nos é dado viver”. [19]

Assim,

• A aceleração da decadência dos Estados Unidos da América tende a se


explicitar mais ainda nos próximos três anos. Do ponto de vista econômico-
social, grave sintoma disto é a extensão de 2 para 5 anos a medida de tempo
para consideração do desemprego de longa duração, conforme determinou
recentemente o Ministério do Trabalho americano; assim com a notícia (CNN,
novembro de 2010) de que já somam 43 milhões os estadunidenses que
necessitam do vale-refeição Federal para sobreviver. Além disso, pendurada
na paralisia do endividamento de famílias e empresas, a nova Câmara de
deputados, hostil a Obama e de maioria republicana, terá que autorizar o novo
teto para a dívida pública que em abril atinge inimagináveis US$ 14, 3 trilhões,
ou seja, praticamente o PIB do país! Sob o ângulo político, o crescente clima
de ódio que se manifesta às claras nos EUA somente aumentará a
radicalização e a instabilidade política, enfraquecendo tanto a unidade nacional
como a capacidade da liderança imperialista - fenômeno este último inconteste
e motivador de uma “agenda multilateral” mascarada e impotente - [20],
reforçando a deterioração da força de sua moeda.

• A afirmação de Wen Jiabao (epígrafe de abertura) é inédita, poderosamente


lógica e francamente hostil à ideia fracassada do “novo século americano”.
Mas, como argumentamos acima, o problema do sistema de alianças global
dependerá, em grande medida, das posições da Índia – e, na Ásia, do
“caminho” do Japão. Independentemente, a China em 2011 já se constitui uma
potência global “assimétrica”. E se constituiu um erro crasso analistas
burgueses ineptos subestimarem os enormes saltos qualitativos, em todas as
áreas estratégicas ao desenvolvimento, que o prolongado crescimento
econômico virtuoso produziu. Noutros termos – afirmou no citado artigo a
professora Brahma Chellaney –, o crescimento de 13 vezes da economia nos
últimos 30 anos produziu recursos ainda maiores para a China “afiar suas
garras militares”. Por sua vez, Zakaria argumentara ainda através de O
consenso de Pequim, vasto estudo de J.C. Ramo, quando este afirma: “A meta
da China não é o conflito, mas evitá-lo”. Sim, Sun Tzu e Clausewitz – e não
Napoleão!

Noutra questão fundamental, tem completa razão o presidente Hu Jintao

197
quando afirma que “O atual sistema monetário mundial é um produto do
passado”. [21] Óbvio que é. [22] A novidade é ele ter dito isto “na cara dos
gringos”. E já não é mais segredo que o supermercado financeiro global
Goldman Sachs estima que em 2040 a economia chinesa ultrapassará a dos
EUA. A novidade é que será antes disso!

*Publicado em Portal Grabois, 22.01.2011

_________

NOTAS

[1] Em: Wall Street Journal/Valor Econômico, 16/12/2010.

[2] “Nós não vamos nos esquecer dessas críticas”, vociferou o secretário
Geithner, num jantar durante o G-20, após as declarações do ministro Guido
Mantega e do seu homólogo sul-africano atacando o tsunami de liquidez
fabricado pelos EUA. Geithner pareceu “perder os nervos”, relata o jornalista
brasileiro Assis Moreira (“Reunião termina com críticas aos americanos”, Valor
Econômico, 16/11/2010).

[3] Ver: O g-20 e o Brasil: a guerra de capitais e a geopolítica por trás da guerra
cambial, Revista Princípios, nº 110, nov/dez/jan 2011.

[4] Entrevista ao O Globo, 7/11/2010.

[5] Ver: Carta confidencial ‘GlobalEurope Anticipation Bulletin’ N°50 - 16 de


diciembre de 2010 (© Copyright Europe 2020 / LEAP – 2009).

[6] Dados e informações em: “The Economist/Carta Capital”, 24/11/2010.

[7] Em: Bloomberg/Valor Econômico, 17/1/2010.

[8] Fato ocorrido quando Barack Obama visitou a Índia para acordos e
negócios de US$ 14 bilhões, e após 5 anos de presença ali da liderança
americana, anunciou apoio ao ingresso do país no Conselho de Segurança da
ONU. Por sua feita, o primeiro-ministro da China, Wen Jiabao concluiu em 17
de dezembro sua visita de dois dias à Índia. Como transcreveu (da Radio
Internacional da China) o jornalista Osvaldo Bertolino, “Wen destacou que as
duas nações devem promover a cooperação pragmática e estratégica a partir
da realidade”. Wen ainda deixou “claro o apoio chinês à Índia no empenho no
Conselho de Segurança e anunciou a postura chinesa sobre a solução pacífica
das disputas de fronteira, e que envolvem rios trans-fronteiriços” (“O outro lado
da notícia”, 24/12/2010).

[9] Fontes: “Japão encerra ano rebaixado a potência de segunda classe”,


Malcolm Foster, Associated Press, de Tóquio, 30/12/2010; e “Situação fiscal
deixa o Japão perto da ‘beira do abismo’, diz governo” (Valor Econômico, 7,8 e
9/1/2001). Houve recente subida das taxas de juros na Coréia do Sul e na
Tailândia – e também na China -, prenunciando crescimento econômico

198
regional menor (Bloomberg/Valor Econômico, 17/1/2011).

[10] Fontes: “The Economist/Carta Capital – O mundo em 2011”, jan/fev. 2011;


e “Exame.com”, 21/12/2010.

[11] Em: “AL terá de administrar expansão menor em 2011”, Valor Econômico,
07/01/2011.

[12] Em: “FMI quer supervisão global para bancos”, Assis Moreira, Valor
Econômico, 09/12/2010.

[13] Aliás, nunca teve. Não se faz política sem as mediações exigidas pela
realidade e ninguém sobrevive nesse terreno na base de devaneios
futurísticos. Apesar da convulsão financeira (2007-2008) que derreteu peças-
chaves do sistema financeiro norte-americano, o país, possuidor de reservas
imensas de recursos naturais e sofisticada técnica, em 2011: a) terá um PIB
que se projeta em US$ 14, 996 trilhões; b) abrigará cerca de 314 milhões de
pessoas, com uma renda per capita (PPP) de US$ 48.010 mil; c) fará gastos
militares superiores a US$ US$ 554 bilhões (Robert Gates, secretário da
Defesa dos EUA, em 6/1/2011); d) segundo o Pentágono, citado pelo ex-
historiador da CIA e professor (emérito, Universidade da Califórnia) Chalmers
Johnson, o imperialismo norte-americano (2008) sustentava-se em 865
instalações militares (mais de 40 países) - antes da tentativa colombiana de
ampliar bases americanas -, deslocando mais de 190 mil soldados em mais de
46 países e territórios (“La Jornada”, 18/7/2009).

[14] Ver: O círculo quadrado da moeda européia, Fiori, J., Valor Econômico,
30/6/2010. Ver também: Entrevista de José Luís Fiori a Tatiana Merlino: A
Europa está cada vez mais dividida, Caros Amigos, 23/08/20; também Euro
perde a confiança dos Bcs, em: Wall Street Journal/Valor Econômico,
20/5/2010.

[15] Ver: de Wallerstein, Guerra de moedas? Evidentemente, Esquerda. net,


22/11/2010. O doutor Wallerstein é aquele mesmo que decretou a data para a
morte do capitalismo em 2040 (ver: Capitalismo e crise contemporânea – a
razão novamente oculta, Barroso, A. diss. Mestrado, IE/Unicamp. 2023). O
artigo de Fiori é Caleidoscópio mundial, Valor Econômico, 29/12/2010.

[16] Ver: O mundo pós-americano, de Zakaria, F., Companhia das Letras, pp.
139-40, 2008.

[17] Em: yearbook2008.sipri.org/ 23 Nov, 2010.

[18] Ver: o volume 4, Civilização Brasileira, s/d. Podemos sintetizar as


contratendencias à lei da Tendência de Queda da Taxa de Lucro, do seguinte
modo: a) aumento do grau de exploração do proletariado, por maior tempo da
jornada de trabalho, ou pela intensificação do trabalho; b) redução dos salários;
c) queda nos preços de elementos do capital constante (procura de matérias
primas mais baratas, maquinaria tecnicamente mais avançada, insumos e
serviços essenciais subsidiados como aço, mineração, energia,

199
armazenamento, transporte etc. d) formação de uma superpopulação relativa a
rebaixar o valor da força de trabalho; e) ampliação e abertura de mercado
externo para aplicar o excedente, ou encontrar fontes de matéria-prima e
recursos abundantes para reduzir custos; d) o ampliação da aplicação do
capital em ações, contra-restado a queda na taxa de lucro com juros das ações
de empresas ou por títulos públicos.

[19] Em: O mundo às avessas, Eduardo Chitas, odiario.info, 30/11/2010. O


artigo do filósofo português é excelente.

[20] É preciso, porém, persistir na opinião de que o imperialismo norte-


americano continua ampliando o gasto e a pesquisa em áreas estratégicas e
de reforço de sua conduta de dominação e hegemonia militar. Assim, no
esclarecedor artigo Estados Unidos reforçam combate ao ciberterrorismo,
Misha Glenny (Financial Times) relata que no “ano passado, o secretário da
Defesa dos EUA, Robert Gates, declarou o ciberespaço o “quinto domínio” das
operações militares, juntamente com a terra, os mares, o ar e o espaço. É o
primeiro domínio militar criado pelo homem a exigir um comando inteiramente
novo no Pentágono. Ele começou a operar plenamente na semana retrasada,
marcando um novo capítulo na história das guerras e da rede mundial de
computadores” – descreve Glenny (Valor Econômico, 15/10/2010).

[21] Jintao, habilidosamete, agregou ainda que a política monetária americana


“tem um grande impacto na liquidez mundial e no fluxo de capital e, portanto, a
liquidez do dólar deve ser mantida a um nível razoável e estável”. Que “a
ausência de regulamentação das inovações do setor financeiro” foi a causa da
crise e atual. E ponderando, falou sobre medidas recentes para expandir o uso
do yuan no comércio e no investimento internacional, admitindo entretanto que
torná-lo uma moeda totalmente internacionalizada “será um processo
relativamente demorado” (Para China, sistema baseado no dólar é 'coisa do
passado', Valor Wall Street Journal/Valor Econômico, 17/01/2011).

[22] O marco da assunção do dólar no Sistema Monetário Internacional data de


1944, embora viesse se fortalecendo bem antes. Portanto, lá se vão 67 anos,
embora poucos atentem para o fato histórico de que o padrão ouro-libra foi
convertido em base para as operações monetárias internacionais apenas em
1870, falecendo em 1914 antes mesmo da ruína econômica da Grã-Bretanha
no final da Iª Guerra; efetivamente durou 74 anos.

__________

Belluzzo, O Capital e o refúgio das novas conexões

200
29\06\11

O professor Belluzzo - dileto amigo e nosso prestigioso colaborador [1] - está


concluindo mais uma empreitada inovadora. Seu novo livro promete dar uma
revirada – por “de cabeça para cima” – à interpretação das desordens do
capitalismo financeirizado dos dias que correm.
Para tal, Belluzzo tece a partir da construção teórica fecundada pelo velho
Marx, entretanto reiterando escoimar vulgaridades difundidas em nome do
revolucionário cientista social alemão. Em idêntica senda que a “Escola de
Campinas” (economia da Unicamp, São Paulo) terminou também por forjar,
desde a publicação de “Valor e capitalismo. Um ensaio sobre economia
política” (Brasiliense, 1980), originalmente Tese de doutorado (1975) do
professor paulista de Bariri.
Mas esta angular analítica do capitalismo contemporâneo esteve presente,
mais recentemente, em grande parte dos “Ensaios sobre o capitalismo no
século XX” (UNESP/Unicamp, 2004), e notadamente em “Os antecedentes da
tormenta. Origens da crise global” (UNESP/FACAMP, 2009) - este uma
reforçada coletânea de ensaios antigos e novos.
Certamente, quem lhes deitou os olhos tem por obrigação (e convencimento)
reconhecer a larga erudição do professor Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, bem
além – afirmo aqui – dos insights da economia política crítica latino-americana.
Erudição e disposição para o exercício da compreensão dialética dos
fenômenos gerais e gravíssimos impasses em que se debate a civilização do
regime do capital; notadamente em suas formas assumidas de sociedades
burguesas européia e americana.
Por isso mesmo, nada tem de trivial a presença de Belluzzo no “Biographical
Dictionary of Dissenting Economics” (2ª edição, 2000, Edward Elgar Publishing,
UK), editado em 1992, pelos pesquisadores britânicos Philip Arestis e Malcolm
C. Sawyer. Ao contrário: além dele, apenas Celso Furtado e Maria da
Conceição Tavares são os únicos brasileiros a freqüentar o heterodoxo e
instigante compêndio, junto às grandes estrelas da história da economia
política internacional.
A exemplo de Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, lá estão os norte-americanos
Maurice Herbert DOBB (1900-1976), Paul Alexander BARAN (1910-1964),
Hyman Paul MINSKY (1919-1996) e Paul Marlor SWEEZY (1910-2004), os
ingleses Joan ROBINSON 1903-1983, John Maynard KEYNES (1883-1946),
os italianos Claudio NAPOLEONI (1924-1988) e Piero SRAFFA (1898-1983),
os poloneses Rosa LUXEMBURG (1871-1919) e Michal KALECKI (1899-
1970), o russo Nikolai Ivanovich BUKHARIN (1888-1938), o canadense John
Kenneth GALBRAITH (1908-2006), o alemão Rudolf HILFERDING (1877-
1941), o húngaro Nicholas KALDOR (1908-1986), o chileno Raul PREBISCH
(1901-1985), os austríacos Josef STEINDL (1912-1993) e Karl POLANYI
(1886-1964), o belga Ernest MANDEL (1923-1995), entre os quase cem nomes
selecionados.

201
Mas, a propósito do novo livro do professor Belluzzo, gentilmente ele nos
cedeu (e autorizou) a publicação do inédito Capítulo IV, “O Capital” e a
Ontologia do Ser Social. Nele, como verá o (a) leitor (a), o autor refina o
desvelar dos movimentos categoriais que estruturam a totalidade da natureza
do processo da produção capitalista, muito provavelmente sintetizado na
seguinte formulação:
“A investigação de Marx examina a reprodução do capital em suas
determinações materiais e sociais: trata-se da reprodução conjunta das
relações de produção e das formas materiais impostas às mercadorias pelo
regime do capital”. Ou ainda, o propósito de Marx, ali, “é analisar
simultaneamente a reprodução, em conjunto, das formas materiais do capital e
das relações sociais da produção”.
Nada simples, porém francamente inteligível, é sabido que o pensar de Marx,
particularmente em O Capital, sofre decisiva influência das leis da dialética
hegeliana. Mas em Marx, estações, fases, contradição, superação e totalidade
lógicas desfilam emanadas do real, de sua materialidade histórica.
O livro do professor Belluzzo, articulando uma apreensão - à lupa - da teoria
marxiana originária, aos desvãos das engrenagens do regime do capital
hodierno, certamente reforçará nosso arsenal crítico de combate por uma nova
civilização.
Nota
[1] Belluzzo escreveu dois artigos exclusivos para a Revista Princípios: “O
regime do capital e o desenvolvimento capitalista”, nº 79, jun./jul 2005; “Marx e
Keynes e a finança capitalista”, nº100, mar./abr 2009.

202
A bancarrota da República imperial americana*
Larry Summers, ex-secretário do Tesouro dos EUA - um dos chefetes
organizadores da “globalização financeira” -, a partir da economia americana
repetiu termos do keynesiano Alvin Hansen ao denominar de “estagnação
secular” (2013) o atual estágio do afundamento da economia global. Antes
dele, o indiano e ex-economista chefe do FMI Mohamed A. El-Erian chamara
(2011) esse quadro de “o novo normal”.

“Repúblicas muitas vezes acabam por ruir de repente sob seu o próprio peso;
outras são arruinadas pela violência dos inimigos no momento em que se
julgam mais seguras; outras envelhecem lentamente e acabam por sucumbir
às suas próprias doenças internas” (Jean Bodin, “Os seis Livros da República,
Livro Quarto”). [1]

No final de 2014, Cristine Lagarde, diretora-gerente do FMI afirmou estarmos


vivenciando “uma nova mediocridade”. Ora, diante desse vaticínio súbito
saindo da boca de “oficiais” graduados do grande capital financeiro e da
especulação implacável, só idiotas ou farsantes ainda acreditam que a
economia dos EUA não está condenada – à prisão perpétua, digamos.
Fenômeno real que em grande medida reflete as grandes transformações
estruturais geoeconômicas e geopolíticas confrontando neoliberalismo versus a
ascensão vertiginosa da China socialista e sua nucleação de um novo polo
contra-hegemônico de desenvolvimento.

Ultimamente à vista, a decadência do imperialismo norte-americano não só é


factual e multifacética, ademais aparenta expressar o declínio de uma
civilização inserida no modo de produção capitalista e suas sociedades
burguesas; particularmente das componentes do estágio imperialista. Nestas,
são inúmeros seus impasses e crises frequentes, estruturais. Por óbvio, não há
fatalismo histórico, mas são mais que evidentes as tendências plasmadas na
posição dos EUA no sistema de relações internacionais, assentadas num

203
declínio econômico cada vez mais acentuado.

Operação da plutocracia neoliberal

Evidente que nada de “natural” guiou as mudanças do regime econômico pós


Bretton-Wodds. Para isso era decisivo despejar a crise da hegemonia norte-
americana, dos anos 1970-80, nas costas dos trabalhadores, para ascensão
neoliberal. Como desvelam exaustivamente as pesquisas de Charles Ferguson,
[2] o alcance da operação neoliberal nos EUA, no sentido de legitimar a
desregulamentação geral da economia. Na argamassa ideológica, forjaram
justificativas para convencer incautos de seu país e no mundo inteiro que a
“globalização” dava a todos, acesso a uma nova era de progresso. Para tal,
penetraram em todas as esferas da sociedade.

Nessa sistemática trama - a articulação para elevar aos píncaros o status de


poder da grande finança capitalista -, o establishment americano transformou
num negócio multibilionário, inclusive, a “venda de conhecimento acadêmico”
para influenciar políticas governamentais, os tribunais e a opinião pública.
Consultorias jurídicas, regulatórias e políticas em economia, finanças e
regulamentação passaram a constituir condomínios de meia dúzia de grandes
firmas monopolizadas, a montar escritórios específicos para palestras e
conferências, assim como grupos de lobbys que (agora mesmo) financiam e
sustentam “redes de acadêmicos de aluguel” concentrados especificamente em
defender os interesses do grande capital em debates sobre políticas de
regulamentação.

Como argumenta longamente Ferguson, esses escritórios de “palestrantes”


revelaram-se importantes canais de lavagem e disfarce de pagamentos a
intelectuais lobbystas e defensores contumazes dessas políticas. Economistas
e professores renomados dos EUA como Glenn Hubbard, Larry Summers (ex-
economista chefe do Banco Mundial, ex-subsecretário de Tesouro de assuntos
internacionais, ex-vice-secretário do Tesouro e secretário do Tesouro de Bill
Clinton), Frederic Mishkin, Richards Portes, Laura D’Andrea Tyson, Martin
Feldstein, Hall Scott, John Campbell etc., escreveram textos, livros sobre
regulamentação e desregulamentação financeira, ganhando “fortunas de Wall
Street defendendo seus interesses no Congresso, em litígios regulatórios, nos
tribunais e na imprensa”(p. 263).

De outra parte, para o mesmo P. C. Roberts, a mídia hegemônica


estadunidense ajuda o governo e os interesses capitalistas e privados que
lucram influenciando fortemente o mesmo governo, exercendo o “controle da
lavagem cerebral do público”. Assim, invadir o Afeganistão porque uma facção
ali está a proteger Osama bin Laden, a quem os EUA acusam sem qualquer
prova do ataque de 11 de Setembro; invadir o Iraque porque Saddam
certamente tem armas de destruição em massa “apesar dos relatórios em
contrário dos inspetores de armas”; derrubar Muamar Kadafi por causa de uma
interminável “lista de mentiras”; derrubar Hafez Assad porque ele utilizou armas
químicas, embora haja “toda a evidência em contrário”; porque a Rússia é

204
responsável por problemas na Ucrânia, não porque os EUA derrubaram o
governo democrático eleito mas porque a Rússia aceitou uma votação de
97,6% dos habitantes da Crimeia para se reunirem à Rússia, etc.[ver em:
http://www.paulcraigroberts.org/2015/01/25/freedom-america-europe-pcr/]

Uma decomposição essencial

Desde os anos 1990, estudos inovadores como os de Cristopher Lasch, de


Richard Sennett, ou de Barbara Eirenrach, estão a capturar com rigor a rápida
deterioração social que a infusão liberal promoveu nos EUA. Mais
recentemente, várias pesquisas de Neill Ferguson observam uma história de
“longa duração” da involução da sociedade norte-americana.

Lasch, em seu profícuo ensaio já identificara ali o declínio da manufatura e a


perda de postos de trabalho do setor, a diminuição da classe média, o
incremento do número de pobres, o crescente índice de criminalidade, o
florescimento do tráfico de drogas, a decadência das cidades americanas,
como sendo também expressão do caráter irreal, artificial que passou a isolar
os interesses das elites da vida do povo, mas portadores de uma “secreta
convicção de que os verdadeiros problemas são insolúveis”. E a “oportunidade
da terra prometida” foi transformada na erosão do “ideal democrático”, onde a
mobilidade de capital e a emergência do mercado mundial produziram, elites
que não mais pleiteiam a “igualdade de situação, e agora o sim ao “ascenso
seletivo dos que não pertencem as elites da classe profissional e executiva”. [3]

Sennett, [4] ao examinar a inflexão da “ética do trabalho” nos EUA como uma
espécie de deformação das expectativas do trabalho (protestante) árduo e
implacável, mas de todo modo voltado para o futuro, conclui que as alterações
perpetradas pelo “trabalho flexível” e “em equipe”, estimula o correr riscos, e
trata a dependência como motivo de vergonha. No moderno capitalismo
americano não existe mais carreira, mas apenas projetos, de duração limitada;
agora estou numa equipe e amanhã posso estar em outra, ou mesmo
trabalhando como consultor autônomo. Este regime “que não oferece aos seres
humanos motivos para ligarem uns para os outros não pode preservar a sua
legitimidade por muito tempo” – parece ter advinhado Sennett (p. 176).

Antes, Sennettt citara o banqueiro de investimento e diplomata Felix Rohaty,


sobre a ocorrência insofismável da enorme mudança na sociedade americana
(neoliberal): “uma imensa transferência de riqueza dos trabalhadores
americanos de qualificação inferior, classe média, para os donos dos bens de
capital e uma nova tecnocracia tecnológica” (p. 105).

Talvez por isso mesmo o conservador Niall Ferguson tenha intitulado um seu
estudo sugestivamente de “A grande degeneração. A decadência do mundo
ocidental” (Planeta, 2013). Observando a evolução da crise que se originara
nos EUA, sentencia: “A dívida pública – declarada e implícita – tornou-se uma
forma de a geração mais velha viver à custa dos jovens e dos que ainda estão
por nascer”, o que tornou disfuncional a ponto de aumentar a fragilidade do

205
sistema”. Ademais, “é remota” – diz ele - a perspectiva de que um avanço
tecnológico comparável às “ferrovias poderia tirar os Estados Unidos da
situação em que se encontra”. Taxativamente, para Ferguson a chamada
“Grande recessão é meramente um sintoma de uma – mais profunda – Grande
Degeneração”.

Retratos da decadência

Em 2005 Eric Hobsbawm chamava a atenção para um fenômeno característico


da “globalização”: o mercado livre trouxera consigo um aumento espetacular e
potencialmente explosivo das desigualdades sociais e econômicas, dentro e
internacionalmente entre os países. Ao tempo em que alertara para a ideia de
um império ser a própria ideia de ordem: um “mito histórico”; uma “conversa
mole”, asseverou. [5]

Aliás, uma resposta direta às expressões “mito histórico e “conversa mole” são
dadas sem arrodeios por P.Craig Roberts: “Guerra, guerra, guerra, é tudo o
que Washington quer. Ela enriquece o complexo militar e de segurança, o
maior componente do PNB dos EUA e o maior contribuinte, juntamente com a
Wall Street e o lobby de Israel, para campanhas políticas estadunidenses” (Ver
em: http://www.paulcraigroberts.org/2015/01/25/freedom-america-europe-pcr/
print/).

Em maio deste 2015 o Fed (Banco Central dos EUA) divulgou que nas razões
do marasmo econômico do país está a criação de um grande volume de
empregos com baixos salários, característicos do comércio e dos serviços, os
setores de maior crescimento. Segundo o economista Carlos Drummond
(“Trancos e barrancos”, Carta Capital, maio/2015, nº849), a) no início da crise,
em 2008, as ocupações com salários médios representavam 60% do total e
cinco anos depois, somente 22%; b) o total de empregos com salários baixos
passou, porém, de 21% para 58% no mesmo período; c) a parcela com salários
altos manteve-se estável.

É que nos últimos anos – prossegue Drummond -, a baixa remuneração


generalizou-se nos Estados Unidos. Cerca de 45 milhões de cidadãos, ou
14,5% da população, vivem abaixo da linha de pobreza, mostrou um relatório
do Census Bureau em 2014. Antes da crise, em 2006, essa parcela somava
12,3%; no extremo oposto, os ganhos do segmento com renda proveniente de
investimentos no mercado ou de patrimônios imobiliários são os maiores dos
últimos 60 anos, segundo o economista Gary Burtless, da Brookings Institution.
“É realmente um fenômeno quando advogados, financistas, estrelas dos
esportes e do entretenimento aumentam mais e mais a distância em relação
àqueles condenados a apenas sobreviver”, constata Burtless.

Piketty e expansão das desigualdades

De acordo com o economista francês Thomas Piketty, há mais de duas


décadas a desigualdade vem crescendo rapidamente nos Estados Unidos e na

206
Inglaterra, especialmente – mas não só e se generaliza. No caso americano o
processo começou – diz - com a liberalização econômica, noutras palavras
com o sequestro fiscal para os ricos, milionários e bilionários a partir as
reduções da progressividade dos impostos.

Nos Estados Unidos, cuja a alíquota máxima de imposto de renda alcançava


acima de 90% (1944-1964), isto é, numa fase de desenvolvimento capitalista
onde a desigualdade era baixa e o crescimento econômico, alto –, impuseram
as elites burguesas às legislações alíquotas máximas para cerca de 40%. Do
mesmo modo, deliberadamente, as políticas tributárias dos EUA passaram a
baixar drasticamente os impostos sobre heranças e os tributos sobre
patrimônio. Como compara Piketty – coautor do livro Pour une Révolution
Fiscale -, em países que as mudanças não foram tão profundas, a
desigualdade não evoluiu tão fulminantemente.

Num retrospecto, Piketty informa que “a fatia da renda apropriada pelos 10%
mais ricos nos EUA em 2012 é igual a 50,4%, a mais elevada desde 1917,
quando a série começa”. A concentração é maior na comparação entre os 99%
na base e o 1% no topo da pirâmide, que fica com 22,5% — denúncia inclusive
do movimento Ocupem Wall Street em seus protestos. De fato, de 1993 a
2012, a renda média real dos 99% cresceu 0,34% anual, enquanto a do 1%
subiu 3,3% ao ano, dez vezes mais. Com isso, se apropriou de dois terços da
riqueza gerada. [6]

O economista Guy Standing [7] é autor do mais conhecido livro sobre o tema
do crescimento do trabalho precário. Em The Precariat: The new dangerous
class (2011), ele defende que as mudanças na economia mundial estão
criando uma nova estrutura de classes, substituta da anterior fundeada pela
burguesia e pelo proletariado. A nova estrutura, diz Standing, é composta de
vários grupos: no topo encontra-se uma plutocracia internacional, a usar seu
poder econômico para influenciar e moldar o poder político. Abaixo dela
vicejam elites nacionais e compõe com a primeira uma classe hegemônica.
Logo abaixo, vem o grupo assalariado, com rendimentos elevados e segurança
no emprego; seus membros ocupariam o topo da pirâmide das grandes
empresas e nichos privilegiados da máquina do Estado.

Compara ele esse grupo de assalariados a uma “confraria pressionada”, que


perde integrantes para os grupos logo abaixo, frequentemente por causa de
processos de terceirização. Parte desse contingente é constituída por
consultores e pequenos empresários, que sonham em pertencer à elite. O
precariado está abaixo do proletariado e constitui, segundo Standing, uma
“classe em construção”. Seu trabalho é caracterizado “pela flexibilidade e
incerteza”.

A manipulação oficial do desemprego nos EUA

Segundo relatório da OCDE de setembro de 2014 (Organização para a


Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) a situação do desemprego

207
crônico nos principais países capitalistas persistia dramática e em evolução.
Para a organização, apesar de ter havido naqueles países um certo retrocesso
do desemprego global, “o desemprego de longo prazo continua aumentando”.
Ali, no primeiro trimestre, 16,3 milhões de pessoas estavam, desempregadas
há mais de um ano, quase o dobro que em 2007, antes do início da crise
financeira. Ocorre que, nos Estados Unidos esse percentual de desemprego de
longa duração passou dos 10% em 2007 a 25,9% (!) em 2013. [8]

Mas, não é só. Para o estatístico e economista John Williams, o quadro do


desemprego oficial nos EUA é francamente manipulado. Em julho passado,
para o pesquisador e sua metodologia distinta da do governo, o desprego no
país teria alcançado 23% da PEA (População Economicamente Ativa). No
gráfico abaixo vê-se uma comparação (oposta) entre o descenso do
desemprego na curva governamental e ao ascenso no levantamento de
Williams. Sendo que, mesmo um apanhado geral médio (curva cinza) ainda
indicaria taxas substancialmente maiores que a oficial, não obstante a curva
registrar um declínio em maiores patamares.

The ShadowStats Alternate Unemployment Rate for July 2015 is 23.0%. [ver
em: http://www.shadowstats.com/]

Num outro enfoque questionador dos números oficiais americanos do


desemprego, o economista e marxista indiano Prabhat Patnaik, em
esclarecedor exercício relata que pouco antes da crise a taxa de desemprego
nos EUA era cerca de 5% e a razão entre emprego-população era de 63,3%
(razão força de trabalho-população de 66,6%); supondo esses números, esta a
razão emprego-população em julho de 2015 situava-se nos 59,2%; isto é, com
a mesma razão, a força de trabalho-população que existia pouco antes da
crise, isto significaria uma taxa de desemprego de 11%! “O fato de ao invés de
uma taxa de desemprego de 11% termos uma de apenas 5,3% nos EUA, é
porque um certo número de trabalhadores simplesmente abandonou a força de
trabalho, por causa das perspectivas negras de obtenção de emprego”. Tudo
isso apesar do fato de que o Federal Reserve dos EUA tem mantido suas taxas
de juro básicas próximas do nível zero desde a cerca de sete anos. [9]

Bem-vindo ao Inferno liberal

“O nível de corrupção e manipulação que caracteriza a economia dos Estados


Unidos e sua política externa atualmente eram impossíveis em outros tempos
(...) A ganância pelo poder hegemônico fez de Washington o governo mais
corrupto do planeta (Paul C. Roberts, janeiro 2015). [10]

Em matéria do ícone e porta-voz da liberalização financeira nos EUA, o


W.S.Journal (“Cresce o consumo e as mortes por consumo de heroína nos
EUA”, 05/02/2014), lê-se que, exatamente nos anos que seguiram à grande
crise originária naquele país, o número de usuários de heroína nos EUA saltou
quase 80%, entre 2007 e 2012, para estimados 669.000 (Administração de
Serviços de Saúde Mental e Abuso de Substâncias, a Samhsa, uma repartição

208
do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA). E o número anual
de mortes por overdose atribuídas à heroína chegou a 3.094 em 2010 (ano
mais recente para o qual há dados disponíveis), um aumento de 55% em
relação a 2000 (Centro para Controle e Prevenção de Doenças dos EUA).

Noutro ângulo, e citando estatísticas do FBI, o relatório chinês salienta que em


2013, registaram-se nos Estados Unidos mais de um milhão de crimes
violentos (exatamente 1.163.146), entre os quais 14.196 homicídios, 79.770
violações e 345.031 assaltos. “Os Estados Unidos fazem comentários acerca
dos direitos humanos em muitos países, mas não mostram o mínimo de
remorso ou a intenção de melhorar a sua própria situação neste domínio, que é
terrível”, acusa o governo chinês.

A China acusa novamente os Estados Unidos, e em particular a Central


Intelligence Agency (CIA), de “usarem indiscriminadamente torturas cruéis”.
Segundo o governo da China, “os Estados Unidos são um país com graves
problemas de discriminação racial e contínuas discriminações institucionais
contra as minorias étnicas”.

“Milhões de crianças norte-americanas não têm casa" e “três crianças morrem


em média por dia devido a abusos”, conclui o relatório chinês. [11]
*Publicado em Portal da Fundação Mauricio Grabois, 28.08.2015

Notas
[1] Ícone Editora, 2012, p. 12.
[2] Ver: “O sequestro da América. Como as corporações financeiras
corromperam dos Estados Unidos”, C. Ferguson, Zahar, 2013.
[3] Ver: “La rebelión das elites e a traição da democracia”, C. Lasch, Paidós,
1996, pp. 13-15.
[4] “A corrosão do caráter. Consequências pessoais no trabalho no novo
capitalismo”, Record, 1999, pp.
[5] “Porque a hegemonia dos Estados Unidos defere da do império britânico”, in
“Globalização, democracia e terrorismo”, Companhia das letras, 2007, pp. 4-60.
[6] [Ver: http://oglobo.globo.com/economia/desigualdade-nos-eua-atinge-maior-
nivel-em-um-seculo-12452072#ixzz3k3PWw7of].
[7] Ver, do articulista Thomaz Wood: “Os super-ricos e o resto”, em: Carta
Capital, 10/05/2015.
[8] Veja aqui: https://br.noticias.yahoo.com/ocde-alerta-desemprego-estrutural-
queda-sal%C3%A1rios-162657879--business.html
[9] Ver: “A recessão mundial destina-se ao agravamento”, P. Patnaik, em:
http://peoplesdemocracy.in/2015/0809_pd/world-recession-set-worsen
[10] Em: http://noticias.sapo.tl/portugues/lusa/artigo/19412384.html
[11] Original em: http://www.paulcraigroberts.org/2015/01/16/ruin-future-paul-
craig-roberts/, Institute of Political economy, 16/01/2015. P. Craig Roberts,
economista, foi secretário- assistente do Tesouro do governo Reagan

209
Marx, teorias e crises do capitalismo contemporâneo [parte 1]*
“Em outras palavras, as perdas dos capitalistas foram pagas com o patrimônio
de toda a sociedade, representada pelo governo. Este tipo de comunismo na
qual a reciprocidade é completamente unilateral, parece ser muito atrativo para
os capitalistas europeus” (Marx, “A crise financeira na Europa”, New York Daily
Tribune, 22/12/1857) [1]

Relembrar 130 anos do desaparecimento do gênio revolucionário Karl Marx é


recuperar várias de suas categorias e interpretações que se projetam no
tempo, adquirindo novas formas pelo movimento mesmo do regime do capital.
o que traduz a dialética de seu método e de sua teoria.
Assim, este artigo debate a interpretação marxiana – e marxista – das crises
capitalistas. busca: a) contribuir para a compreensão do fenômeno, e parte
integrante da estrutura dinâmica do capitalismo – as crises –, segundo
aspectos centrais da teoria de Karl Marx [2]; b) situar criticamente
interpretações anacrônicas do marxismo, algumas na crise global de agora que
ressuscitam a mania escatológica [3]; c) aludir a novos fenômenos que
“assaltaram” o capitalismo movido pelas finanças. Porque constitui imenso
equívoco borrar as formas que redesenham as crises mimetizadas no
desenvolvimento do capitalismo.
Tais questões aqui visam clarificar um panorama turvo de horizontes para
combates mais consequentes. Noutra palavras, as críticas de análises
reducionistas das teorias de Marx e Lênin frente aos complexos (e singulares)
processos das grandes crises, não é problema acadêmico ou exclusivamente
teórico: possuem grave acento político, na medida em que aquelas resultam na
substituição dum sistema tático de reforço das posições revolucionárias, pelo
“estrategismo” - o discurso estratégico errático e esquemático.
Fundamentos inseparáveis: dinamismo e crises
A valorização do valor (da mais-valia) é objetivo central da produção capitalista,
o que sistemicamente resulta sempre em superacumulação de capital (também
ativos financeiros). Fenômenos que se manifestaram na origem e no
desenrolar da crise global que ora presenciamos.
As crises no capitalismo não podem ser separadas da sua dinâmica própria,
intrínseca. O capitalismo, em seu móvel de acumular por acumular, jamais se
interessará pelas “necessidades sociais” das massas trabalhadoras. Isto diz
respeito à sua “missão”, a qual, segundo Marx, é produzir em larguíssima
escala, implicando em superproduzir capital. Quer dizer, sobreinvestir para
fazer crescer a produtividade social do trabalho e suplantar a concorrência,
superproduzir para superlucrar, e superacumular capital em excesso e em
todas as suas formas, referenciando-se numa dada taxa média de lucro.
Ocorre que a superprodução de capital – máquinas, equipamentos,
instalações, matérias-primas, e ativos financeiros – é uma “novidade” do século
19, então anunciada por Marx contra as teorias Smith e Ricardo.
Esclareço. Trata-se sim - a atual - de uma crise gestada num padrão de
acumulação capitalista francamente voltado para a acumulação financeira,
onde a “financeirização” dos mercados de riqueza institucionalizou-se
210
globalmente. Como se disse, o capital é também ativos financeiros que
rendem juros e dinheiro. Manipulado por capitalistas, o dinheiro produz mais
dinheiro por ser reserva de valor, por agir como capital a juros (capital-
dinheiro), por potencialmente atrair mais crédito. O capital procura valorizar-se
sempre - sinuosamente tal qual uma serpente - movimentando-se entre o
dinheiro, os ativos financeiros, as mercadorias ampliando sua base de
valorização. Na operação crédito/capital a juros o capital converte-se em
mercadoria e exprime-se “cada vez mais como puro capital”, no capital por
ações, e outros títulos financeiros que representam o direito de apropriação da
riqueza [4]. É uma dimensão do movimento de suas formas, que o gênio Karl
Marx denominou de “As três figuras do ciclo”:
“Sempre mudando de forma e se reproduzindo, parte do capital existe como
capital-mercadoria que se converte em dinheiro; outra, como capital-dinheiro
que se transforma em capital produtivo; uma terceira, como capital produtivo
que se torna capital-mercadoria. A existência contínua dessas três formas
decorre de o ciclo do capital global passar por essas três fases” [5].
Assim, segundo R. Guttmann, a crise atual “todavia, é diferente. Não apenas
emanou do centro... como também revelou falhas estruturais profundas na
arquitetura institucional de contratos, fundos e mercados que compunham o
sistema financeiro novo e desregulamentado. Estamos diante de uma crise
sistêmica, que é sempre um evento de proporções épicas e efeitos duradouros.
Claras são as distinções da preponderância esmagadora da finança, nesta
crise”.[6]
O que quer dizer também: as crises não são sempre sistêmicas desde priscas
eras.
Valorização, superacumulação e crises
Conforme Marx: “a força motriz da produção capitalista é a valorização do
capital, ou a seja a criação de mais-valia, sem nenhuma consideração para
com o trabalhador” [7]. Crescimento, recessão, recuperação, expansão e
instabilidade - também estagnação - são as categorias principais do
capitalismo, e seu vetor de acumulação capturada pela hegemonia da haute
finance (Karl Polanyi).
Pelo seu caráter incontornavelmente expansivo [8] - de outra parte não seria
possível a “financeirização” -, esse padrão passou a ser imprescindível às
determinações da grande finança especulativa e concorrencial. “Brotar” da
estagnação (veremos adiante mais sobre isso) é um artifício estagnacionista
Nas grandes fases expansivas antecedem a dinâmica das crises, geralmente:
monopolização + “financeirização” + superacumulação (também de riqueza
financeira fictícia) + crises [podendo haver ou não estagnação].
Está em Marx que o desenvolvimento do moderno sistema de crédito decorre
da imperiosa necessidade de centralização de massas de capitais, o que
coincide com o processo de autonomização do capital a juros, configurando um
circuito financeiro que mobiliza, utiliza e centraliza capital monetário e valoriza
capital fictício. É assim que: a) a proliferação de títulos financeiros passa “a ter
uma circulação e valorização próprias”; b) as variadas formas de ativos
“passam a ser disputadas pelas massas centralizadas de capital”, onde o

211
investimento busca todos os espaços de valorização; onde a sistemática
“transformação dos lucros em excedentes financeiros” se submetem “a uma
lógica particular de valorização” [9].
Importa aqui destacar é que o monopólio não apenas reafirma a tendência à
superacumulação, como introduz novas determinações que terminam por
agravar a instabilidade e a incerteza do cálculo capitalista, próprias desse
regime de produção, notadamente na época da “globalização financeira”. Na
mesma direção, a teorização dos processos mais recentes que catapultam as
crises via circuitos da “finança mundializada” (Chesnais) são similares aos
mecanismos originários das crises desse regime de produção. O que, mais
uma vez, na presente crise global, pode ser constatado cabalmente na
decomposição de vários dos maiores bancos de “investimento” - gigantescos
bancos e coração do sistema financeiro dos EUA -, verificada após o deflagrar
da crise, em agosto de 2007.
Aliás, além de superacumulação-superprodução, devemos insistir em que a lei
de tendência de queda da taxa de lucro e a desproporção entre os
departamentos são igualmente fenômenos que se expressam da dinâmica da
crise. Crises que, conforme Marx, em última instância tem como determinação
originária o antagonismo irresoluto: apropriação cada vez mais privada X
produção cada vez mais expansivamente social.
“Financeirização” e crise
“Essa mudança é chamada de financeirização. A crescente integração dos
mercados financeiros em cada país e a interligação global entre as praças
financeiras são necessárias às operações da gigantesca riqueza financeira
atual. (...) Aumentaram os episódios das crises financeiras, como os anos de
1990 e 2000 demonstraram (R. Souza, 2008) [10].

Touro abatido em Wall Street


Trazendo à luz das passagens referidas, chamemos atenção a questões
centrais da dinâmica do regime do capital do nosso tempo: a) a fixação da
categoria “financeirização” da riqueza capitalista; b) a ideia de uma interligação
sistêmica dos “mercados financeiros nacionais e internacionais” [11]; c) o
visível aumento da frequência das crises (detonadas nas esferas) financeiras,
notadamente desde os fins dos anos 1980, tipificando assim uma
particularidade dessa dinâmica.

212
Como assinalamos, a predominância avassaladora da valorização financeira no
atual padrão contemporâneo de acumulação capitalista mundial, impulsionado
pela liberalização e desregulamentação financeiras expandidas reconfiguram
as singularidades que se explicitam na marcha da grande crise atual. A
dominância sistêmica do capital financeiro e da finança em geral é fato
amplamente comprovado. A “finança direta” preponderou amplamente sobre a
antiga função intermediadora do sistema bancário; isto é, os chamados
investidores institucionais (e empresas) passaram a operar diretamente com
títulos et caterva no mercado de capitais.
Ora, especialmente apontadas por Marx no Livro 3 de O Capital, a plenitude do
capital financeiro, com o advento do moderno sistema de crédito é recusa de
determinações rígidas, estáticas das leis de movimento do capital. Daí que
“revoltar-se” contra uma “suposta” financeirização é justificar andar que
andemos em círculos na crise do marxismo.
Não se trata de artificializar discrepâncias intelectuais, muito menos
transformá-las em rivalidades. A obra de economia política de Karl Marx não só
é complexa – e inacabada, NOTA BENE -, como necessita de uma visão do
conjunto de suas teses essenciais. Num exemplo teórico notável de
formulações centrais do estatuto científico do marxismo, escreve o
epistemólogo português Armando Castro:
“A totalidade teórica organiza e enuncia um sistema de relações entre
representações (cujo centro são as leis), permitindo chegar à explicação de um
conjunto de relações com propriedades próprias e diferentes das que se
reconhecem nos seus elementos interligados” [12].
O histórico e o lógico. Desconhecimento e negação da teoria de Marx
1. Numa dimensão histórica, consistem em fatos reconhecidos e fartamente
analisados a regulamentação do comércio e das finanças internacionais,
institucionalizada pelo sistema de Bretton Woods (1944), através das limitações
aduaneiras protetivas na periferia e no centro capitalista e também por
restrições ao livre movimento de capitais. O que foi sucedido pelo móvel da
globalização neoliberal: essencialmente desregulamentação da produção e da
circulação de mercadorias em nível internacional e dos mercados financeiros
internacionais. No que se seguiu uma forte valorização da riqueza financeira,
impulsionada pelos novos instrumentos (inovações financeiras) e seus
mercados. A propósito, recorde-se aqui: em 2007-8 completaram-se dez anos
da crise iniciada na Ásia, inicialmente na Tailândia, detonada por uma onda de
sucessivos ataques especulativos a várias moedas da região, fazendo desabar
países (produto e emprego) que particularmente desregulamentaram e
liberalizaram a configuração de seus mercados financeiros.
2. Noutra dimensão, do ponto de vista teórico, as ideias de Marx, do final do
século XIX, sobre o caráter das crises do capitalismo, demonstraram não só
ser de uma força histórica tremenda. Elas abrigam duas questões cruciais à
compreensão da dinâmica sistêmica do capitalismo: a) assinalam a ruptura do
ciclo ascensional, por “parada” ou bloqueio dos investimentos, com
desdobramento inexorável em “queima de capital”; b) reafirmam o imperativo
estrutural de funcionamento no movimento constitutivo e contraditório de
expansão-instabilidade-crise.

213
Dito de outra maneira, não se trata apenas de acusar “problemas relevantes”
na esfera financeira. Essa é uma visão que simplesmente “descola” produção
de circulação. Para Marx, o próprio desenvolvimento do capital e do sistema de
crédito sofre, nas crises, interrupção em:
“inúmeros pontos da cadeia de obrigações de pagamento em prazos
determinados, e se agravam com o consequente desmoronamento do sistema
de crédito que se desenvolve junto com o capital. Assim redundam em crises
violentas, agudas, em depreciações bruscas, brutais, estagnação e
perturbação física do processo de reprodução e, por conseguinte em
decréscimo real da produção” (Marx, “O Capital”, Livro 3, v. 4, p. 292,
Civilização Brasileira, s/ data).
Hodiernamente, na medida em que o “capital portador de juros” (Marx) passou
a ser o motor das operações financeiras na ascensão do neoliberalismo, assim
como foi promotor de uma época crônica de instabilidade e crises financeiras
mais frequentes, deve-se acentuar que:
“Sob o aspecto qualitativo, o juro é mais-valia, proporcionada pela nua
propriedade do capital, pelo capital em si, embora o proprietário esteja fora do
processo de reprodução; é mais-valia que o capital rende, dissociado de seu
processo” (Marx, Livro 3, v. 5, Cap. XXIII, p. 434) [7].
Sim “dissociado”, pois no processo de valorização do capital portador de juros,
“O ciclo D...D’ entrelaça-se com a circulação geral de mercadorias, sai dela e
nela entra e é parte dela. Entretanto, constitui, para o capitalista individual,
movimento próprio autônomo do valor-capital, movimento que se efetua parte
na esfera da circulação geral de mercadorias e parte fora dela, mas
conservando sempre seu caráter autônomo” (Marx, “O Capital”, Livro 2, v. 3, p.
57).
Não deixando dúvidas, mais enfaticamente diz ele ainda sobre a
especificidade do capital portador de juros e sua relação com a tendência à
superacumulação capitalista:
“Assim, o ciclo do capital-dinheiro é a forma mais exclusiva, mais contundente
e mais característica de manifestar-se o ciclo do capital industrial. O objetivo e
o motivo propulsor deste nele saltam aos olhos: expandir o valor, fazer dinheiro
e acumular (comprar, para vender mais caro)” (Marx, idem, p. 60).
No entanto, recordando a interpretação dialética de Marx (“As três figuras do
ciclo”) do movimento do capital-dinheiro, capital-mercadoria e capital produtivo,
referidas no artigo anterior, é imprescindível que assim compreendamos a
totalidade desse movimento:
“Mas, cada parte ininterrupta e sucessivamente de uma fase, [pode passar] de
uma forma funcional para outra. As formas são portanto fluidas e sua
simultaneidade decorre de sua sucessão”. “(...) Só na unidade dos três ciclos
se realiza a continuidade do processo global... O capital global da sociedade
possui sempre essa continuidade e seu processo possui sempre a unidade dos
três ciclos” (Marx, idem, p. 107).

214
3. Na evolução do capitalismo contemporâneo, a manipulação do capital-
dinheiro assim aparece formulada: a) F. Chesnais [13], insistindo, diz que o
“predomínio financeiro puro” do ressurgimento das formas do “capital-dinheiro
concentrado”, a manejar as alavancas de controle do sistema capitalista
mundial, “acentuou o processo de financeirização crescente dos grupos
industriais”; b) segundo P. Gowan, a estratégia original do grande capital
financeiro norte-americano e britânico, impunha a inflação baixa para manter a
função da moeda “como um padrão fixo de valor de acordo com os interesses
do capital-dinheiro”, tendo sido esta a “verdadeira base para a inauguração do
neoliberalismo do Atlântico” [14]; c) porém, em sua dinâmica concreta, ou seja,
na macroestrutura financeira desse capitalismo do nosso tempo, realizam-se
operações monetário-financeiras e patrimoniais de um conjunto de instituições
(bancos centrais relevantes, pelos bancos privados, por diversas organizações
financeiras, pelas grandes corporações e pelos proprietários de grandes
fortunas); operando em várias praças financeiras a valorização e
desvalorização das moedas, dos ativos, gerindo os mercados interligados de
crédito e de capitais, ampliando “as transações cambiais autonomizadas em
relação ao comércio internacional, direcionando a ‘poupança financeira’ e a
liquidez internacional” – descreveu Braga [15]; d) padrão sistêmico esse
neoliberal que, por sua feita, determinou as últimas décadas “como as mais
tumultuosas da história monetária internacional, em termos de número, escopo
e gravidade das crises financeiras” – enfatizam Kindlerberger e Aliber. [16]
Superacumulação financeira X estagnacionaismo
Vê-se que a globalização financeira adveio da liberalização do movimento de
capitais e transposição de fronteiras econômicas, a par de decisões do Estado
norte-americano em catapultar a grande finança especulativa. Cada vez mais
intensa, a instabilidade do sistema tende a ser permanente, obstando a taxa de
investimento, o que pode reduzir o ritmo da acumulação e do crescimento
econômico no centro capitalista e em parte da periferia do sistema.
Assim, as crises canalizadas pelas esferas financeiras, fortemente
oligopolizado do ponto de vista do poder financeiro, mantêm a mesma lógica,
numa variante induzida pelo caráter fictício da acumulação financeira, da crise
de superprodução; refletindo o excesso de valorização do capital em relação à
determinada taxa de juros. Exacerbando alguns traços típicos dessas crises
como a rapidez da propagação e a recorrência.
O que significa dizer: as crises contemporâneas se tornam mais frequentes, por
expansão e aumento da especulação, e do volume na acumulação fictícia; o
que, por sua vez é decorrente da quantidade/velocidade das transações com
ativos financeiros, cada vez mais abrangentes, se propagando mais
rapidamente pelos mercados nacionais e alcançando facilmente regiões
inteiras ou mesmo o mundo.
Observe-se: divulgou-se em 2008 que a relação entre a riqueza (fictícia)
nocional financeira (aquela que é alavancada e derivativa e pode chegar a
valer de acordo com o que valha no futuro câmbio ou juros) seria de US$ 350
trilhões, enquanto o PIB (Produto Interno Bruto) dos países do planeta
alcançaria US$ 56 trilhões [números redondos e aproximados].

215
De outra parte, na direção oposta dos que ainda insistem na tese da
“estagnação” como produtora de “financeirização”, escreve Marx, desvelando já
então um aspecto estrutural (e contemporâneo!) que integra as crises
financeiras:
“Esse capital fictício reduz-se enormemente nas crises, e em consequência o
poder dos respectivos aos proprietários de obter com ele no mercado. A baixa
nominal desses valores mobiliários no boletim da Bolsa não tem relação com o
capital real que representam, mas tem muito que ver com a solvência do
proprietário” [17].
Em categorias mais precisas, (i) Marx alude a dois tipos de capital financeiro: o
portador de juros e o fictício; (ii) o capital fictício consistindo em títulos
negociáveis no futuro (para ele composto por ações ordinárias das Bolsas,
títulos públicos e a própria moeda de crédito (bancária).
Indispensável aqui o registro da formidável narrativa do norte-americano
Guttmann:[18]
“Já há um século atrás, Marx (1894) fazia distinção entre dois tipos de capital
financeiro, tais sejam capital de empréstimo portador de juros e o que
denominou capital fictício. Esse último consistia, segundo Marx, em títulos
negociáveis sobre compromissos de fluxo de caixa futuros (securities), cujo
valor era derivado unicamente da capitalização da renda antecipada, sem
nenhuma contrapartida em capital produtivo. Marx identificava, como fontes-
chave de capital fictício, ações ordinárias negociadas na bolsa de valores,
títulos públicos e a própria moeda-creditícia. Todos os três se tornaram muito
mais importantes hoje do que eram nos tempos de Marx. (...) O mercado de
títulos públicos, cuja dramática expansão foi fruto de meio século de aumento
nos déficits orçamentários, na maioria dos países industrializados, oferece hoje
aos investidores um instrumento altamente líquido e relativamente livre de risco
para aplicar o dinheiro excessivo em caixa”.

Vejamos então um exemplo recente de que não é a estagnação que produz a


financeirização, quando examinamos a experiência da longa estagnação
japonesa (1990-2002). 1) Conforme o especialista Ernani Torres Filho, entre
1983 e 1991 - exatamente o período que antecede a grande crise do país -, o
crescimento médio da economia japonesa foi de 4,4%, bem maior que o dos
EUA (3,0%) ou da Alemanha (3,1%). O período que vai de 1992 a 1995 –
exatamente no período que o Japão afundava na estagnação -, esse
crescimento foi de 0,7%, o dos EUA 3,2%, o da Alemanha 1,1% [20]. 2) Para
se ter ideia do custo fiscal do Japão para enfrentar a estagnação, deflagrada
com a desvalorização de riqueza e a deflação, posteriores à especulação da
bolsa de valores e de imóveis, ele foi estimado em 20% do PIB, contando
apenas a partir dos anos 1992 a 1995 [19].
Estamos afirmando então que, já em Marx simultaneamente se processa: a) a
acumulação de capital à base da apropriação do trabalho excedente; b) a taxa
de lucro induzindo a taxa de juros; c) o capital portador de juros gestando
capital fictício. Isso conduza a um vetor que se relaciona com a busca
incessante de valorização do valor, para a qual a especulação passa a ser
intrínseca ao desenvolvimento do moderno sistema de crédito. Especulação,

216
que, de acordo com uma formulação de Marx é consequência do
desenvolvimento do sistema de crédito e lucro a partir dos juros, e:
“Reproduz nova aristocracia financeira, nova espécie de parasitas, na figura de
projetadores, fundadores e diretores puramente nominais; um sistema
completo de especulação e embuste no tocante à incorporação das
sociedades, lançamento e comércio de ações” [20].
Ademais, um processo especulativo (e cíclico) que Marx vincula também,
claramente, à deflagração de crises financeiras:
“Essa são crises cujo movimento se centra no capital monetário e, por isso,
bancos bolsas de valores e finanças são suas esferas imediatas”. [21]
Superacumulação e Lei da Tendência de Queda da Taxa de Lucro
Na correlação anunciada entre valorização do valor e superacumulação
desdobra-se a valorização financeira. À guisa de introdução, passemos então a
outra correlação (inversa): entre a superacumulação e a Lei de Tendência de
Queda da Taxa de Lucro.
Não “apenas” porque, a) a tendência à queda da taxa de lucro é efetivamente,
segundo Marx, uma expressão típica desse modo de produção, na medida em
que o processo de acumulação capitalista necessita, obrigatoriamente,
continuar a expansão da produtividade social do trabalho. Mas notadamente
porque, b) a partir da segunda metade do século 20, a enorme expansão do
sistema internacional de crédito potencializa a superacumulação de capital.
Expansão essa que, de acordo com interpretação de P. Nakatani, acerca do
que denomina “desenvolvimento da esfera financeira”, terminou se
manifestando na em escala mundial. De uma parte – diz ele -, a expansão do
sistema financeiro teria absorvido o excesso de capital monetário da esfera
produtiva; de outra parte, “gerou uma remuneração que encobriu, pelo menos
parcialmente e contraditoriamente, a tendência à queda na taxa de lucro,
gerando os períodos de euforia com as ‘bolhas financeiras’; enfim, essa esfera
passou a comandar o conjunto do sistema” [22].
Importa então aqui relembrar simplificadamente que, para Marx, assim se deve
equacionar a Taxa de Lucro: Taxa de Lucro: l= m/(c+v)
Sabemos que m é a Taxa de Mais-Valia, c o capital constante e v o valor da
força de trabalho (salários). Como afirmamos, para o capitalista é decisivo o
investimento em c (máquinas, equipamentos, instalações, matérias-primas), no
sentido de aumentar a produtividade do trabalho (força produtiva social). Na
mesma medida em que ele mesmo descarta ou até “aniquila” (Belluzzo) a força
de trabalho. Ou seja, fica evidente que a tendência (de longo prazo) da taxa de
lucro é cair.
E por que no “longo prazo”? Porque se deve apreendê-lo em duas dimensões:
1) Nas palavras de Marx, cujo idêntico raciocínio crucial persiste especialmente
nos Capítulos XII, XIV e XV do Livro 3, v. 4 (também no livro 1):
“Assim, ao progredir o modo capitalista de produção, o desenvolvimento da
produtividade social do trabalho se configura na tendência à baixa progressiva

217
da taxa de lucro e, além disso, no aumento absoluto da massa de mais-valia ou
lucro extraído” (“O Capital”, Livro 3, v. 4, p. 255).

*Publicado em Revista Princípios, Nº 124. Abril\Maio 2013

Notas

[1] Ver: “La crisis financieira em Europa”, in: Escritos Económicos Menores,
Fondo de Cultura, p. 204, 1987.

[2] Para Marx: “As crises não são mais que soluções momentâneas e violentas
das contradições existentes, erupções bruscas que restauram transitoriamente
o equilíbrio desfeito”. Em: O Capital, Civilização Brasileira, Livro 3, v. 4, p. 292.
s/data.

[3] Os adivinhadores da crise última são os da “catástrofe iminente” do


capitalismo, ou da “decomposição iminente do padrão dólar”. Procuram
confundir clichês inúteis com tendências que vinham se plasmando de visível
grau de superacumulação geral de capital, expansão, especulação,
alavancagem e instabilidade.
[4] A passagem tem por base observações de Braga, J. C. S. (2000). Em:
“Capitalismo e crise contemporânea – a razão novamente oculta”, de A. S.
Barroso, dissertação de Mestrado, Unicamp/IE, 2003.
[5] Em: “O Capital” Livro 2, v. 3, Cap. IV, p. 106, Civilização Brasileira, s/data.

[6] Antes, “As finanças foram profundamente transformadas por uma


combinação de desregulamentação, globalização e informatização. Este
impulso triplo transformou um sistema financeiro estritamente controlado,
organizado em âmbito nacional e centrado em bancos comerciais (que
recebem depósitos e fazem empréstimos), em um sistema auto-
regulamentado, de âmbito global e centrado em bancos de investimento
(corretagem, negociações e underwriting [lançamento de ações com subscrição
pública com intermediário] de valores mobiliários)”. (in: “Uma introdução ao
capitalismo dirigido pelas finanças”, Revista Novos Estudos, CEBRAP, nov.
2008).

[7] Em: “Capítulo inédito D’o Capital - resultado do processo de produção


imediato”, Marx, p. 20, Escorpião, 1975.
[8] Há sim limite estrutural irreversível na dinâmica estrutural do capitalismo:
enquanto investe perenemente em sua base técnica (desenvolvimento das
forças produtivas como determinante histórico do desenvolvimento), parar
alagá-la, expandir a produção e suplantar a concorrência, Das Kapital tem que
reduzir, descartar, até mesmo destruir sua própria base de valorização: o
trabalho humano e o tempo social necessário à sua subsistência e o da
extração da mais-valia.

218
[9] Ver todo o Capitulo 2 (“O monopólio do capital”), uma pequena obra-prima
de F. Mazzucchelli: “A contradição em processo – o capitalismo e suas crises”,
espec. pp. 84-90, Unicamp/IE, 2004, 2ª edição.
[10] “Dominação global, neoliberal e financeira”, Renildo Souza. Que a seguir
acresce Souza: “Ademais, as crises cíclicas periódicas são fomentadas pela
superprodução e superacumulação, sob o acicate da globalização da
concorrência”. In: “Capitalismo contemporâneo e a nova luta pelo socialismo”,
pp. 49 e 52, Anita Garibaldi, 2008.
[11] Luís Fernandes foi pioneiro no Brasil a teorizar sobre uma dimensão
crucial das ideias de Marx e Engels, descritos no Manifesto do Partido
Comunista: “A força dessa compreensão reside na identificação de um impulso
expansionista insaciável por parte do capital, que o empurra incessantemente
para a busca de novos mercados em todo o globo. Em tempos da chamada
‘globalização’, a atualidade dessa leitura não poderia se mais evidente” (“O
Manifesto Comunista e a dialética da globalização”, de L. Fernandes, in: “O
Manifesto comunista 150 anos depois”, Reis Filho, D. A. (org.), pp. 109 e 114,
Contraponto, 1998.
[12] Ver: ”A contribuição de Marx à teoria e à metodologia das ciências sociais”,
de A. Castro, in: “Conhecer o conhecimento”, p. 95, Avante! 1989.
[13] Ver: “Da noção de imperialismo e da análise de Marx do capitalismo:
previsões da crise”, de F. Chesnais, in: “O Incontornável Marx”, p. 64, Nóvoa, J.
(org), Unesp/Edufba, 2007.

[14] Ver: “A roleta global. Uma aposta faustiana de Washington para a


dominação do mundo”, p. 81, Record, 2003.

[15] Ver: “Temporalidade da Riqueza: teoria da dinâmica e financeirização do


capitalismo”, de J. C. S. Braga, Campinas, Unicamp/IE, 2000.
[16] Em: “A reconstrução do sistema financeiro global”, de Martin Wolf, Cap.
“Crises financeiras na era da globalização”, p. 31, Elsevier/Campus, 2009.
[17] Ver: “O Capital”, Marx, Livro 3, v. 5, p. 50.
[18] Ver; “A transformação do capital financeiro”, de R. Guttmann, Economia e
Sociedade, nº7, Unicamp/IE, dez.1996
[19] Ver: ”A crise da economia japonesa nos anos 90: impactos da bolha
especulativa”, de E. T. Filho, in: Revista de Economia Política, nº 65, jan./mar
1997; sobre dados de Scott, B.; da OCDE, Economic Outlook, vários anos.
[20] Antes, afirmara: “com o juro ascendente cai o preço deles [dos papéis]. O
que também provoca essa queda é a escassez geral de crédito, que força os
detentores a lançarem-se em massa no mercado para obter dinheiro” (O
Capital, Livro 3, volume 5, pp. 566-7).
[21] Em: “O Capital” volume I, p. 116, Nota 99 [à terceira edição alemã], Abril
Cultural, 1983.
[22] Ver: “A crise atual do sistema capitalista mundial”, de P. Nakatani, mimeo,
s/data. É bibliografia complementar à Escola Nacional do PCdoB, Núcleo de
Economia Política & Desenvolvimento.

219
III
DESENVOLVIMENTO,
DESINDUSTRIALIZAÇÃO E
GOLPE ULTRALIBERAL

220
PIB 0,1%: Meirelles, entreguista e enganador!*
Trata-se de demagogia sem desfaçatez a comemoração do “crescimento”
trimestral de 0,1% do PIB pelo governo Temer. Na verdade, a divulgação do
resultado revela uma preocupante tendência do desempenho da economia
brasileira. Pesquisa da FGV, também informada esta semana, concluiu com uma
“releitura da recessão”, que, de 2014 a 2016, a contração do PIB no período foi
de 8% e não de 8,6% conforme os indicadores originais do IBGE.

Trata-se de demagogia sem desfaçatez a comemoração do “crescimento”


trimestral de 0,1% do PIB (Produto Interno Bruto), da economia brasileira, pelo
governo Temer. Assim como pela mídia irresponsável que o apoia e os
apologistas do mercado. Aliás, ontem mesmo o jornal Valor Econômico,
estampava que “analistas” previam uma alta de 0,3% dessa variável econômica.

Assim, frustração de especuladores financistas, que agora passam a chantagear


o país, difundindo, imediatamente, que se a tal reforma da Previdência não for
aprovada, haverá logo, logo, elevação da taxa básica de juros!

Tal “comemoração” deve ser somada à constatação oficial de que o crescimento


da dívida Bruta de 73,9% para 74,4% do PIB, bateu novo recorde na série
histórica iniciada em 2006. Essa dívida do setor público não financeiro subiu de
R$ 4,789 trilhões em setembro para R$ 4,837 trilhões em outubro, segundo
informou ontem o Banco Central (BC).

Pior ainda: espera-se que esse crescimento atinja 75,5% no ano de 2017, e,
segundo projeção do FMI, a dívida bruta do país chegará a 91,1% do PIB em
dois anos, e atingirá 96,9% em 2022. Também, aí, o discurso dos golpistas da
suposta política de “austeridade” para conter o endividamento bruto; ou contra as

221
“pedaladas” que teriam sido cometidas pela honrada presidenta Dilma Rousseff,
revelam-se falácia e manipulação cínica.

Precarização e desigualdades se alastram

De outra parte, viu-se nesta mesma semana que o registro de espantosos 12,7
milhões de desempregados, ao invés dos 13,3 milhões registrados (IBGE) no
trimestre findo em outubro, 75% dos novos empregos são sem carteira assinada,
ou empregos informais, precários.

O fato é que, no final de 2016, o ano do golpe articulado pelo governo do atual
ministro da Fazenda, a desigualdade aumentou. De acordo com a PNAD do
IBGE, as pessoas situadas na parcela de 1% dos maiores rendimentos de
trabalho recebiam, em média, R$ 27.085, enquanto a metade de menor renda
recebia R$ 747, em um país cujo rendimento médio mensal de todos os
trabalhos foi de R$ 2.149. Nesse mesmo ano, os 10% com maiores rendimentos
concentravam 43,4% de todas as fontes de renda recebidas no Brasil (IBGE,
29/11/2017).

Aliás, nas palavras grafadas pela mídia de “O Globo”, a desigualdade voltou a


aumentar no país: ao atingir patamares recordes em 2016, o desemprego fez
com que a disparidade da renda domiciliar per capita no Brasil registrasse o
primeiro aumento em 22 anos, segundo mostra o índice de Gini calculado pela
FGV Social. [1]

Propaganda enganosa

É preciso relembrar que no último setembro, o falastrão e entreguista ministro da


Fazenda Henrique Meirelles, em entrevista ao jornal Estadão, afirmou
textualmente: “Nossa expectativa, e isso é muito importante, é que o Brasil já
termine o ano com crescimento acima de 2%” (O Estado de S. Paulo,
17/09/2017).

Ora, todas as fontes de pesquisa e estimativas reconhecem que o país, este


ano, dificilmente alcançaria 1% do crescimento da economia, quando em
verdade este deverá se situar entre 0,8% a 0,9%.

Ademais, sabidamente, o golpe contra o pais tem por detrás uma verdadeira
fúria entreguista e privatista, cujo Mentor, Meirelles, afirmara em 2016 que todas
as empresas estatais que podem ser privatizadas, parcial ou integramente,
devem ser vendidas. Não à toa, uma vez consumado o golpe, Temer anunciou a
desestatização de 91 ativos de controle estatal, aí incluídos 18 aeroportos, duas
rodovias, quatro empresas, duas rodovias, e 16 concessões de energia.

Em 27 de setembro deste ano, foram leiloadas quatro usinas da energia da


Companhia Elétrica de Minas Gerais (Cemig), a saber: São Simão, Miranda,
Jaguara e Volta Grande.

Recuperação pífia

222
Desdobrando a sequência alguns dados gerais do PIB, incluindo os de
divulgados na sexta-feira passada, registram-se:

a) 1,3% no 1º trimestre: puxado pelo setor agrícola;

b) 0,6% no 2º trimestre: empurrado pela liberação dos recursos de contas


inativas do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e a queda da
inflação, que aumentou a renda real (relativa) da população.

c) 0,1% no 3º trimestre: cujo consumo cresceu 1,2%, note-se, também às custas


de novo endividamento das famílias (crédito), e aliado a uma fração restante das
contas inativas. Houve, segundo o IBGE, uma alta de 1,6% nos investimentos, o
único fator substantivo para uma futura retomada da economia, entretanto um
crescimento evidentemente pífio diante da queda histórica que veio a se verificar
na taxa de investimentos.

Noutras palavras, o problema crucial é a violenta queda na taxa de


investimentos, a variável mais importante para o crescimento econômico.

Segundo pesquisas do IEDI (Instituto de Estudos para o Desenvolvimento


Industrial, 18/10/2017): 1) os investimentos (dos primeiros três meses de 2014
ao segundo trimestre de 2017), setor mais afetado da recessão profunda,
encolheram 29% e deve ser o último dos componentes do PIB a recuperar as
perdas, o que deve ocorrer somente a partir de 2024. 2) O consumo das
famílias, responsável por cerca de dois terços do resultado geral do PIB pela
ótica da demanda, encolheu 7% e não deve reverter essa perda antes de 2019.
3) A indústria de transformação, que recuou 18% durante a recessão, só se
recuperaria em 2021.

“A má notícia adicional” – afirma aquele importante documento do IEDI - é que:


a) esse tempo de recuperação deve ser ainda mais longo, tendo em vista que
essas projeções do Instituto foram feitas com base em taxas de crescimento de
outros períodos pós-crise, na casa dos 5% ao ano; e, b) taxas que não se
repetirão desta vez, dadas as peculiaridades e a profundidade da recessão atual.

Analisando esse quadro, do ponto de vista da indústria, Luciano Coutinho


afirmou então que, “temos um processo de digestão da capacidade ociosa. Eu
só vejo recuperação intensa de investimentos para depois de 2019. Isso
dependerá de uma mudança política, de um novo governo, cujo perfil nós não
sabemos qual será. Então há muita incerteza ainda no mapa."

Em outras considerações (03/11/2017), levantamento do IEDI, feito a pedido do


jornal Diário do Comércio e Indústria, aponta que, entre os 24 ramos
pesquisados pelo IBGE, apenas quatro (os segmentos de fabricação de móveis;
informática, produtos eletrônicos e ópticos; de veículos automotores, reboques e
carrocerias; e de produtos alimentícios) apresentam uma evolução positiva neste
ano, trimestre contra trimestre anterior na série com ajuste.

223
Chantagem descarada do capital

Esse quadro levou – inclusive - ao neoliberal Armando Castelar a admitir a ficção


dos festejos do “pibinho”: nesse ritmo, “levaremos anos para voltar ao patamar
de atividade que tivemos no passado”. E reconhece, a seguir: “Se pensarmos
em termos [do crescimento do PIB] per capita, a narrativa é ainda mais triste”.
Defensor radical das “reformas”, Castelar define a situação atual como de boas
notícias, “mas em um contexto geral que continua tétrico” (“Recuperação
avança, mas celebração deve ser breve”, Valor Econômico, 04/12/2017).

Na verdade, a divulgação pelo BC do resultado do PIB do 3º trimestre revela


uma preocupante tendência do desempenho da economia brasileira. Pesquisa
da FGV (Fundação Getúlio Vargas), também informada esta semana, concluiu
com uma “releitura da recessão”, que, de 2014 a 2016, a contração do PIB no
período foi de 8% e não de 8,6% conforme os indicadores originais do IBGE.
Uma queda brutal!

Quer dizer, qualquer análise que projete a retomada do crescimento econômico


brasileiro tem necessariamente que partir de uma base anterior depressiva,
donde se conclui por outro longo caminho que o Brasil precisa, urgentemente
começar a trilhar.

E não vai adiantar a nova cantilena do mercado, de que agora é “a agenda


política” que vai definir o tom do entusiasmo com 2018. Como vivenciamos,
antes era o governo de Dilma Rousseff que precisava ser varrido, para a
retomada do crescimento, assim como para a “chuva de investimentos”, que viria
após o golpe.

O economista-chefe do banco Safra, o especulador Carlos Kawall é claro, em


sua chantagem: as eleições presidenciais de 2018, são “o principal definidor do
futuro do Brasil”, uma vez que, “não há apetite por grandes apostas, novos
projetos de investimentos” (Valor Econômico, idem, p.A-6). Diz ele ainda que a

224
economia só melhora com “um cenário eleitoral favorável” - à burguesia e seus
funcionários, por suposto.

Na ordem do dia enfrentar a cantilena ideológica ultraliberal destruidora da


nação. E defender o Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento

*Publicado em Portal da Fundação Mauricio Grabois, 04.12.2017

NOTAS

[1] Em:https://oglobo.globo.com/economia/com-crise-desigualdade-no-pais-
aumenta-pela-primeira-vez-em-22-anos-21061992#ixzz50JVFlmS6]
[2] Divulgado neste 4 de dezembro, o percentual de famílias endividadas
alcançou 62,2% em novembro de 2017, com aumento de 0,4 ponto percentual
na comparação com outubro, sendo o quinto mês seguido de altas no indicador,
segundo a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic),
da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC). A
Peic aponta ainda um recuo no percentual de famílias inadimplentes.

O golpe e capital financeiro: a conexão Wall Street*

Com o real “fortemente dolarizado” pensa Chossudovski que a intenção de Wall


Street é manter o Brasil num colete de força monetário, relacionando a atual
dívida interna com um crescimento do endividamento externo do país. E não
exagera o pesquisador quando afirma que “sob os governos” de Fernando

225
Henrique Cardoso e de Lula, “as nomeações do presidente do Banco Central
eram aprovadas por Wall Street”.

Foto: Ilustra por Cezar Xavier


As indicações de Henrique Meirelles e Ilan Goldfajn (ministro da Fazenda e
presidente do Banco Central do governo interino), e especialmente as
controvérsias iniciais sobre a CPMF (Paulo Skaf da Fiesp e Paulo Pereira da
Força Sindical, de imediato contrários), pareciam – só pareciam - sinais
contraditórios sobre as políticas cambial e monetária. As nomeações – por um
núcleo de governo provisório recheado de reacionários e corruptos – para a
equipe econômica apontam a clara hegemonia no interino governo Temer do
grande capital financeiro (local e forâneo). Quem, sibilina e efetivamente, utilizou
do peso pesado da burguesia industrial (especialmente a paulista) como aríete
principal das classes dominantes para a campanha pelo impeachment. Esta,
esperneia radicalmente contra novos impostos, ainda que provisórios.

Sabe-se bem que a política econômica que vinha prevalecendo sob Barbosa e
Tombini (ministro da Fazenda e presidente do Banco Central do Governo Dilma)
promoveu a desvalorização do real, barateando as exportações e, desse modo,
positivando e equacionando o déficit nas contas correntes do balanço de
pagamentos que afligia o país.

Ora, como primeiro e concreto sinal da alteração de rumos da política


econômica, a queda de 5,13% do dólar em junho de imediato serviu para atrair
os importadores, aproveitando-se quando a moeda americana chegou a ser
negociada a R$ 3,3625 (mínima diária do ano, em 9 de junho). Logo,
especuladores fizeram hedge de custos comprando dólar. Por exemplo: o
especulador Leonardo Veras (Rabobank), afirmou que a queda do dólar para
perto de R$ 3,40 “acabou atraindo os importadores de insumos, que
aproveitaram para comprar dólares e travar os custos”.

226
Por outro lado, antes do anúncio do chamado “teto de gasto de 30 anos”, as
negociações entre Estados e equipe econômica do governo interino para a
renegociação das dívidas fracassaram. Depois de três horas de reunião, a
Fazenda apresentou uma contraproposta em que deixa claro que não há espaço
fiscal para mudar o índice de correção do estoque das dívidas, assim como
conceder uma carência de 100% dos pagamentos por 24 meses (duas principais
reivindicações dos governadores). Secretários estaduais informaram após, que a
Fazenda propôs uma carência escalonada por 18 meses, começando em 100%
e reduzindo cinco pontos percentuais por mês, com objetivo de manter o impacto
fiscal do Tesouro Nacional em R$ 28 bilhões, o previsto na proposta inicial de
carência de 40% por 24 meses. [1]

Vendeta ultraliberal

Aliás, no discurso de posse no BC, Goldfajn foi explícito de como vai conduzir a
política macroeconômica: é preciso substituir os efeitos da política econômica do
governo afastado pelo “velho e bom tripé macroeconômico”, composta por
“responsabilidade fiscal”, “controle da inflação” e “câmbio flutuante”- disse.
Mentindo descaradamente, afirmou então: esses fatores é que permitiram ao
Brasil ascender econômica e socialmente num passado não muito
distante. Goldfajn se referia ao governo neoliberal e desestruturador do Estado
de FHC et caterva.

Após anunciar, na prática, a dissolução do ministério do Desenvolvimento,


noutra questão crucial, a política monetária, tornou-se óbvio do que desejam
fazer com a política de juros. Goldfajn pôs na diretoria de Política Econômica (a
de maior influência nas decisões sobre a taxa básica de juros), Carlos Viana de
Carvalho, professor da PUC-Rio com atuação no mercado financeiro que já
trabalhou no banco central dos EUA!

Também suficiente lembrar a todos que ele mesmo, quando sócio e ex-
economista-chefe do Itaú-Unibanco, Ilan Goldfajn escreveu em artigo publicado
pelo O Globo (5 de março de 2013), enfatizando que, para vencer a inflação
“possa ser necessário temporariamente reduzir o consumo e desaquecer o
mercado de trabalho” [recessão e aumentar o desemprego].

227
Sobre sua nomeação por Meirelles/Temer, disse Zeina Latif, economista-chefe
da XP Investimentos: “Não acredito que a nomeação dele significa uma
antecipação de corte de juros. Uma coisa é o analista traçando cenários em uma
instituição financeira, outra coisa é o presidente do BC. São coisas
completamente distintas”. O que contraria declarações do próprio Ilan de poucos
dias atrás, assim como de ser necessário a criação de um novo imposto junto ao
“teto” para o gasto público.

Meirelles, achando pouco, indicou Mansueto de Almeida, neoliberal até a tampa,


que ganhou notoriedade no país ao criticar, nos últimos anos, a chamada
“contabilidade criativa” adotada pela equipe do ex-ministro Guido Mantega – e
amplamente usada por FHC. Mansueto especializou-se em explicar
detalhadamente as chamadas "pedaladas fiscais" antes mesmo delas terem sido
condenadas como “crime” pelo Tribunal de Contas da União (TCU).

Outro insuspeito indicado, Carlos Hamilton, foi crítico feroz à política fiscal
expansionista de Mantega no fim do governo do ex-presidente Lula e no primeiro
mandato da presidente Dilma Rousseff. Ele saiu do BC no início de 2015 e foi
trabalhar com Meirelles no grupo J&F, controlador da JBS. Agora, Hamilton será
o novo secretário de Política Econômica. Um tal de Marcelo Abi-Ramia Caetano
está na Secretaria da Previdência, órgão que será criado com a incorporação do
Ministério da Previdência Social pelo Ministério da Fazenda. Caetano é colega
de Mansueto no IPEA, do qual é funcionário desde 1997.

A conexão Wall Street

Como revelara o eminente professor Moniz Bandeira (Carta Capital, 18 de maio


de 2016), “há fortes indícios” de que o capital financeiro internacional” (de que
Wall Street e Washington) cevaram a crise política e institucional, aguçando
feroz luta de classes no Brasil. Para Moniz Bandeira, se a mídia, nos Estados
Unidos, manifestou-se duramente contra o impeachment de Dilma Rousseff,
criticou-o como golpe de Estado, “no entanto o capital financeiro nacional e
internacional, certamente a CIA e a National Endowment for Democracy (NED),
estiveram por trás da crise política e institucional”.

Alertando depois, gravemente, para uma estratégia de amplia a presença de


bases militares americanas, a partir da cedência de Maurício Macri, na
Argentina, assevera bandeira que os EUA “não se conformam com o fato de o
Brasil integrar o bloco conhecido como BRICs e seja um dos membros do banco
em Shangai, que visa a concorrer com o FMI e o Banco Mundial”. [2]

De acordo ainda com o economista canadense Michel Chossudovski – detalhista


e enfático –[3] deveu-se a Wall Street e ao ideário dos defensores do
“Consenso de Washington”, a indicação do governo interino pós-golpe de Michel
Temer de um antigo presidente-executivo da Wall Street “com cidadania
estadunidense” para chefia do Ministério da Fazenda: Henrique de Campos
Meirelles, ex-presidente do Fleet Boston Financial’s Global Banking (1999-2002)
e antigo presidente do Banco Central sob a presidência de Lula foi nomeado
ministro da Fazenda em 12 de maio. O Boston Bank se fundiu ao Bank of
America, tornando-o em 2004 o segundo do império americano.

228
Com o real “fortemente dolarizado” pensa Chossudovski que a intenção de Wall
Street é manter o Brasil num colete de força monetário, relacionando a atual
dívida interna com um crescimento do endividamento externo do país. E que,
desde o governo de FHC, “Wall Street tem exercido controle sobre nomeações
econômicas chaves”, incluindo o Ministério da Fazenda, o Banco do Brasil e o
Banco Central. E não exagera o pesquisador quando afirma que “sob os
governos” de Fernando Henrique Cardoso e de Lula, “as nomeações do
presidente do Banco Central eram aprovadas por Wall Street”. A nomeação do
ex-ministro Palocci para a Fazenda, por exemplo, só foi publicizada, em
Washington, após anúncio anterior da escolha de Meirelles para o BC brasileiro.

Genealogia da bandidagem financeira

O canadense discorre ademais sobre a inacreditável “coincidência” dos vínculos


de vários dirigentes da Fazenda e do BC do Brasil, com a alta finança
estadunidense e global.

Lembra, a exemplo, que Ilan Goldfajn possui dupla cidadania: israelense-


brasileira; que Goldfajn é discípulo e amigo de Stanley Fischer, de também dupla
cidadania, israelense-norte-americana, ex-FMI e atual vice-presidente do Fed
(Banco Central dos EUA).

Recorda ainda que Armínio Fraga, ex-presidente do BC brasileiro de FHC -


também de dupla cidadania brasileira-americana - e ex-principal operador do
“Quantum Group of Funds", isto é, o braço direito do maior "ladrão de casaca" da
era neoliberal e megaespeculador e financiador de "ongs" contrarrevolucionárias
mundo afora, George Soros!

*Publicado em Portal da Fundação Mauricio Grabois, 16.06.2016

NOTAS

[1] Em: [http://www.valor.com.br/brasil/4595941/fazenda-e-secretarios-nao-


chegam-acordo-sobre-dividas]

[2] ver: [http://www.grabois.org.br/portal/entrevistas/152847/2016-06-15/moniz-


bandeira-bases-na-argentina-fazem-parte-do-cerco-dos-eua-ao-brasil]

[3] Ver: original em http://www.globalresearch.ca/wall-street-behind-brazil-coup-


d-etat/5526715 Há uma tradução (precária) em resitir.info

Notas sobre “A radiografia do golpe”*

229
“O endividamento do Estado era, pelo contrário, o interesse direto da fração da
burguesia que dominava e legislava através das Câmaras. O déficit do Estado,
esse era o verdadeiro objeto da sua especulação e a fonte principal do seu
enriquecimento”. (Marx, “As lutas de classes em França de 1848 a 1850”). [1]
O livro recente do professor Jessé de Souza, adianto, é um bom estudo, forte e
direto, ademais de suas lacunas e limites. Aliás, também penso que o golpe,
apesar de ter sido em parte truncado, só se completará – é esse o clímax do
objeto de desejo dos golpistas – com a prisão severa ou a cassação dos
direitos políticos do ex-presidente Lula.

Em “A tolice da inteligência brasileira”, livro mais denso e teórico (Leya, 2015),


Souza polemiza aguda e criticamente, com argumentos, contra importantes
intérpretes brasileiros como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freire e
Raymundo Faoro, entre outros autores. Em essência, Souza enfrenta
vigorosamente a tese, que chama de “mito” construído pela elite brasileira,
lembrando que sistemas corruptos e patrimonialistas são, na verdade, um
fenômeno incrustrado nas desigualdades sociais e entre as classes, em
qualquer parte do mundo. Holanda e Faoro, liberais conservadores, sempre
escondiam-se atrás de um ataque ao funcionamento estatal (perdulário,
corrupto), resultando objetivamente no se enxergar as virtudes do mercado –
interpreto livremente.

Em suas fulminantes palavras, essa tese “foi uma mentira construída


cientificamente, a partir de Sérgio Buarque, Raimundo Faoro, como se a
corrupção fosse a grande singularidade cultural brasileira, é um absurdo dizer
isso - os americanos legalizam a corrupção, a corrupção é a forma de você
manipular o tolo no fundo”.

Assinalemos então o que consideramos o principal de “A radiografia...”.

Chumbo grosso

Para Jessé de Souza:


1.As raízes do golpe de 2016 nasceram em junho de 2013 – “o ovo da
serpente”. Porque a força das ruas foi, posteriormente e após a eclosão do
movimento pelo passe livre, manipulada e manejada pela grande mídia em
favor dos objetivos da elite brasileira. Jessé, que acompanhou uma série
sistemática das notícias dadas pelo Jornal Nacional, dia após dia, afirma que a
TV Globo foi montando o discurso de que a insatisfação popular era
generalizada e baseada na corrupção estritamente Estatal; a narrativa
promoveu a “federalização” de problemas, sempre ligados à corrupção. Dalí em
diante foram construídos as bases para formular a imagem de Lula e do PT
como símbolos da corrupção no seio do Estado, e do poder judiciário; e,
notadamente na outra ponta, Sérgio Moro, como símbolo da moralidade e
salvação do país.

2. Na oculta definição necessária de corrupção o mercado engana a sociedade,

230
e parte dessa a sociedade como um todo “compra o Congresso, por exemplo,
pra você nunca passar leis que possam taxar ricos”. O Estado empobrece, os
ricos ficam cada vez mais ricos, e os ricos não são taxados, porque isto já
estava precificado na compra de parlamentares. Se você não pode taxar os
ricos, então você tem que pedir emprestado o dinheiro dos ricos, que é quem
têm o dinheiro. Essa é a raiz da crise fiscal, que é entendido de um modo
completamente distinto, como se fosse para ‘cortar educação e saúde dos
pobres e da população.

3. Segundo Souza, a então presidenta reagiu à campanha da corrupção de


modo ambíguo: ao tentar lançar a reforma política no centro das discussões, e
acicatada pela mídia a manipular o assunto a partir da “fulanização excessiva”,
envolveu-se pessoalmente n a cruzada anticorrupção. Ao ser acrítica frente ao
discurso manipulatório e hegemonizante, ela tornou-se presa fácil da condução
midiática massacrante. “Pior: terminou acreditando na farsa da imparcialidade
da operação Lava Jato até quando ficou muito tarde para qualquer reação”. Até
porque – pensa o autor -, historicamente o tema da corrupção “não oferece
nenhuma reflexão e compreensão real do mundo” que consegue distorcer e
manipular emotivamente um público cativo, mantendo-se alvos seletivos
(pp.88-9). Assim, por volta de fins de junho de 2013, enquanto o aparato
midiático insuflava a demonização dos partidos políticos, para o Jornal
Nacional da Globo, que dava voz a depredadores radicalizados, qualificava as
manifestações como “uma verdadeira festa pacífica e democrática”; enquanto a
FIESP passou a estampar a bandeira brasileira em sua sede, na avenida
Paulista (p.92).

4. O aliciamento midiático, a seguir, do aparelho jurídico-policial, da “casta


jurídica” ultraprivilegiada, bem como sua campanha sistemática contra a PEC
37 (era incompetente o MPF para julgar crimes referidos no artigo 144 da
Constituição) desenvolveu-se de modo a consagrar “o casamento entre a mídia
classe média conservadora”, ou a ideia de que ela era o “herói cívico” de
ocasião. Uma “classe revolucionária” – metaforiza ele - forjada para a
construção da base social que faltava para a estratégia golpista. É, pois, no
sentimento escravocrata tradicional das elites que se compartilha, “mas
intensificado na fração conservadora da classe média”, com o desprezo aos
pobres, acusados de serem os responsáveis pela própria pobreza. Um móvel a
ser abatido: o processo acelerado de inclusão social brasileira entre 2003-
2013, que fez com que eles tivessem “acesso a oportunidades de consumo que
nunca haviam tido”. Daí que, a novidade verdadeira da captura das “jornadas
de junho” foi a “repaginação turbinada de um ator velho e bem conhecido da
nossa história: “a fração da classe média moralista e conservadora, que
sempre desprezou e odiou os pobres, representantes da maioria da população
brasileira”; essa é a fração que transforma “as manifestações em verdadeiro
fenômeno de massas” – separadas cuidadosamente da minoria de “vândalos”
(pp. 95-100).

5. Conforme Jessé de Souza, apesar de propenso a compromissos, os


governos do PT significaram um desafio ao sistema. O “mensalão” teria sido

231
então uma resposta ao conservadorismo e reacionarismo do Congresso, um
cálculo pragmático com “alguma dose de cinismo” (p. 109). No caso da
Petrobras, entregou-se diretorias de investimentos bilionários e reservas do
pré-sal fabulosas “ao saque de praxe”, tendo-se com pano de fundo as
negociações com esse mesmo Congresso; recorda ele as denúncias de
corrupção na empresa feitas por Paulo Francis (1996), época de FHC, que,
depois alertado pelo empresário Steinbruch, nada fez. Mas a criminalização do
PT e de seu projeto passou a ser uma estratégia incansável de dois “principais
parceiros do golpe: o complexo jurídico-policial do Estado e a mídia
conservadora”. A imprensa servil ao dinheiro unida aos interesses corporativos
da casta jurídica, deflagrada a Lava Jato, confluiu no “fio condutor do golpe”.
Sérgio Moro foi então a figura perfeita para a estratégia golpista funcionar: a
classe média nas ruas o via como sua integrante, e membros do aparato
jurídico-policial viam nele a encarnação perfeita do partido corporativo que se
traveste do bem comum” (pp. 110-120).

Jessé conclui, entre outras questões – por incrível que pareça e à sua revelia!
-, como se revisitasse o Marx da epígrafe. Deflagrado a queda da presidenta,
diz, os interesses econômicos por trás do golpe de Estado virão à luz do dia. “O
interesse de assaltar a sociedade como um todo via taxa de juros para o bolso
de meia dúzia agora torna possível posições antifinanceirização que não
existiam entre nós”, imagina. Ademais,a elite financeira, a imprensa e o
parlamento “comprados têm agora nas mãos um, governo sem prestígio e
fraco, sem qualquer apoio popular” (pp. 134-5).

Lacunas

A questão, ainda obscura e carente de pesquisa, da participação americana no


golpe contra a honrada ex-presidenta Dilma é omitida no trabalho de Souza.
Apenas para citar alguns intelectuais destacados e de diferente perspectivas
ideológicas, o norte-americano Noam Chomsky, o brasileiro Pepe Escobar, o
argentino Atilio Boron e o canadense Michel Chossudovsky acusaram explícita
e diretamente a interferência imperialista na derrubada de Dilma. [2]

Questão que se revela nítida com a visita de Rodrigo Janot, Procurador Geral
da República, ao FBI, sabidamente para tratar de fatos relativos à espionagem
na Petrobras, ao que se seguiu a prisão do tesoureiro do PT, João Vaccari
Neto.

Relatou então o jornalista Sérgio Lamucci: em sua passagem pelos EUA, Janot
teve encontros no Departamento de Justiça e na Polícia Federal americana
(FBI) na segunda-feira e ontem na Organização dos Estados Americanos
(OEA). O procurador-geral não falou com a imprensa. No Departamento de
Justiça e no FBI, ele teria discutido questões relacionadas à Operação Lava-
Jato, que investiga o esquema de corrupção na Petrobras. Procuradores da
Lava-Jato também estiveram em Washington. [3]

Cerca de dois meses depois, “O tesoureiro do PT, João Vaccari Neto, foi preso

232
nesta quarta-feira (15) pela Polícia Federal em sua casa, em São Paulo.
Secretário de Finanças do partido, o petista nega envolvimento no esquema de
corrupção que atingiu a Petrobras nos últimos anos”. [4]
Há ainda o fato, registrado, que Liliana Aylde, embaixadora dos EUA durante o
golpe “constitucional” que derrubou Fernando Lugo da presidência do Paraguai
ter sido nomeada para o Brasil, à época da Lava Jato, por Barack Obama.

Limitações

Ressaltaria como digno de nota, o fato de Jessé de Souza insistir numa


narrativa, presente em seu outro livro, de classificar a “esquerda brasileira”
como “economicista”; o que seria “uma vulgata marxista”, explicita depois em
entrevista ao jornalista Luis Nassif (CGN, 13/09/2016). Para ele isso quer dizer
que a esquerda (que ele generaliza) se restringe a um projeto mais
redistributivo e imagina que isso “automaticamente” modificaria a sociedade.
Ainda, para Jessé de Souza, “Então houve uma leitura da esquerda também,
que até hoje é assim, isso significa o fato da esquerda ser colonizada pelo
discurso da direita” (entrevista, idem).

É que o professor não sabe bem qual o conceito de economicismo, este


claramente exposto por Lênin, em suja renomada obra “Que fazer” (1901-2). O
conceito então se refere à negação ou ausência da luta política encetada pelo
partido revolucionário, e sua circunscrição à luta econômica ou meramente
sindical. Por isso ele deveria apontar a que tipo de esquerda ele acusa.
Certamente tal errática generalização – muito menos o chavão de uma
“esquerda colonizada” - nada, absolutamente nada tem a ver com o PCdoB, e
outras correntes da esquerda nacionalista e programática do Brasil.

*Publicado em Vermelho, 09/09/2016


NOTAS
[1] Editora Avante!, 1984, p. 38, 2ª dição.
[2] Ver em: http://folhadiferenciada.blogspot.com.br/2016/06/chomsky-
imprensa-argentina-o-que-houve.html
https://www.youtube.com/watch?v=_RP8Wk01-C8
http://www.atilioboron.com.ar/2016/05/asalto-al-poder-en-brasil.html
http://resistir.info/chossudovsky/golpe_brasil_01jun16.html
[3] Em: http://www.valor.com.br/politica/3906538/janot-assina-cooperacao-com-
banco-mundial-para-combate-corrupcao
[4] Em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/04/1616790-tesoureiro-do-pt-
e-preso-pela-pf.shtml
Catarse da República*
Violência inaudita, novo espraiamento da pobreza, ampliação das desigualdades
e desnacionalização acelerada da economia são as tragédias disruptivas que
estão sendo impulsionados pelo golpe parlamentar-jurídico/policial-midiático.

233
Lavrador de café Foto: Portinari
Em junho de 2017, o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e o Fórum
Brasileiro de Segurança Pública divulgaram o estudo “Atlas da Violência“, [1]
analisando dados sobre homicídios no Brasil entre 2005 e 2015. A conclusão é
de que homens jovens são as principais vítimas (92%). 1) Em Alagoas e Sergipe
a taxa de homicídios de homens jovens atingiu, respectivamente, 233 e 230,4
mortes por 100 mil homens jovens em 2015. 2) A cada 100 pessoas
assassinadas no Brasil, 71 são negras; informa o Atlas que os negros possuem
chances 23,5% maiores de serem assassinados. 3) São 155 assassinatos por
dia, o que equivale a seis mortes por hora em cada estado, e as características
das mortes se repetiriam: ligadas ao tráfico de drogas e tendo como vítimas
jovens negros pobres da periferia executados com armas de fogo.

O Ipea chegou a simular uma comparação entre os dados da violência no Brasil


e no mundo: todos os atentados terroristas do mundo nos cinco primeiros meses
de 2017 não superam a quantidade de homicídios registrada no país em três
semanas de 2015. Por óbvio, ressalve-se o cotejamento.

A perversão cordial

Evidente: foi-se – definitivamente - pelos ares a infinda e tormentosa discussão


sobre “o homem cordial” brasileiro. Publicado logo depois de “Casa Grande &
Senzala” (1933) de Gilberto Freyre, em “Raízes do Brasil” (1936) Sérgio Buarque

234
de Holanda também perquiria o “quem somos nós”, objeto inovador da célebre
pesquisa do sociólogo pernambucano.

O eminente historiador Holanda, em verdade, foi alterando sua ideia de “homem


cordial” (capítulo 4º da 1ª edição), após a poderosa carta crítica de Cassiano
Ricardo (1948). O conceito em Holanda inspirava-se, modificadamente, no de
seu amigo Ribeiro Couto.

Ricardo então comentara: “...Sérgio Buarque de Holanda reexamina seu


conceito de ‘homem cordial’ e agora sob novos aspectos, que não figuravam na
primeira edição”. E emenda: “Já isto me honra muito, demonstrando, pelo menos
que a minha discrepância não era, de todo, gratuita”. [2] Mas, para Ricardo, a
“bondade específica natural” do brasileiro, aí contido “nosso individualismo”,
jamais poderia ser confundida com “polidez” (op. cit, p.376).

Secundando a famosa frase de Holanda – “somos ainda hoje uns desterrados


em nossa terra” -, qual mesmo a alteração conceitual que processa Holanda?
Emanado das reiterações contrastantes (o rural e o urbano, o semeador e o
ladrilhador, o trabalho e a aventura etc.), a tipologia (evidentemente weberiana)
de Holanda serpenteia onde se sublinhava a cordialidade expressando uma
nítida separação entre o público e o privado. Para ele, o que incide de maneira
altamente negativa: “Armado desta máscara (a cordialidade) o indivíduo
consegue manter sua supremacia ante o social”. A modernização brasileira
seria, por extensão, iníqua, como se anti-histórica (versus Alemanha, Japão,
França), inobstante avanços.

Em verdade, a ideia da cordialidade buarquiana assentava-se em relações


familiares originárias, atravessando até a esfera do público, achatando, pelo
privado, o interesse público que deveria ser prioritário. Nada de impessoalidade
“necessária”, no público, por suposto. Como se disse, somente em 1956 (3ª
edição), Holanda retifica sua ideia, onde o “coração” – o cordial - brasileiro
poderia gerar sentimentos bons ou maus, indistintamente.

Sabe-se que Sérgio Buarque de Holanda interrompe a polêmica com Cassiano


Ricardo com uma fugidia metáfora: “[já foi] gasto muita cera com esse defunto”.

“Defunto” inventado, replicante, fantasmático – digo eu.

Capitalismo selvagem

Ainda em 1998 os economistas J. M. Cardoso de Mello e F. Novais escreveram


um importantíssimo ensaio desvelando o processo acidentado das conquistas da
modernização brasileira, em contraposição às implicações econômico-sociais do
desastre de governos neoliberais de FHC.

Em “Capitalismo tardio e sociabilidade perversa” (Unesp-FACAMP,1998) - crítica


arrasadora da destruição neoliberal de FHC et caterva -, Cardoso de Melo e
Novais mais que alertavam, com inteiriça razão, acerca da súbita regressão que
ameaçava uma desestruturação nacional. Severa regressão societária, pois,

235
desde o advento da globalização, entronizou-se por aqui a competição
selvagem, transformando a violência num recurso cotidiano de sobrevivência;
manifestada também no trânsito infernal nas nossas grandes cidades poluídas,
servas do automóvel, atravessando as relações de trabalho, deformando a vida
familiar, chegando “até ao assassinato”. Assim – continuam os autores a captar
um ambiente catastrófico -, “uma sociedade que não dá valor à vida não pode
pretender que os excluídos, do emprego, da escola, da vida familiar, considerem
a vida um valor” (Cap. “A que ponto chegamos? ”).

No ano seguinte (1999), e dando sequência às indagações dos economistas


citados, em “O capitalismo selvagem. Um estudo sobre a desigualdade no
Brasil” (Unicamp/IE), a economista Wilnês Henrique assim concluía sua
fundamentada pesquisa de doutorado, em verdade um retorno ao longo
processo de configuração e os resultados então examinados do capitalismo
tardio brasileiro:

“De outro lado, vimos que as relações entre dependência e desigualdade ficaram
expostas a olho nu nestes últimos 20 anos. Na época do capital financeiro e da
ciência e tecnologia como base ampliada de valorização do capital, a
dependência reaparece como dependência financeira e tecnológica. Porque não
dispúnhamos e nem criamos um mínimo de capacidade autônoma de inovação
e investimento, fomos obrigados a fazer o ‘ajuste exportador’, que culminou no
neoliberalismo”. E prossegue a economista: “Ele terminou impondo restrições
drásticas ao crescimento e imobilizou a política econômica e social. À regressão
econômica correspondeu a regressão social, que se manifesta no desemprego
estrutural, na cristalização dos baixos salários, no emprego de terceira categoria,
na multiplicação de serviçais, na flexibilização e extinção de direitos”.

Ora, essas duas análises, relativamente pioneiras (e certeiras), ajudam-nos a


refletir sobre uma sentença: os 13 anos que vivenciamos de assunção do novo
ciclo político no Brasil (governos Lula e Dilma) apenas esboçaram reverter outros
dez anos d’“A construção interrompida”, usando aqui os termos visionários do
livro de Celso Furtado (Paz e Terra,1992). No segundo governo Dilma, houve,
sabidamente, erros enormes, e avanços apenas em parte.

Desse modo, às conquistas que agora se evaporam, urgiam novas exigências


duma truncada expansão capitalista que, numa síntese (precária) poderia ser
assim formulada: ampliaram-se os direitos das camadas populares, enquanto se
reproduz um padrão capitalista nos marcos da hegemonia financeira neoliberal
(global).

Ademais, acumularam-se graves sequelas e velhas doenças da referida


selvageria capitalista, tornando as batalhas pelo novo desenvolvimento uma
verdadeira guerra nacional de classes e frações de classe, incluídos o inadiável
e duro enfrentamento contra a burguesia bancária/financeira e os interesses do
capital internacional. Este último, seguramente por detrás do golpe.

A catarse republicana cruza agora 128 anos do nosso mosaico nacional – curta
vivência. A beleza (ingênua) das palavras de Cassiano Ricardo, fiel a uma outra
época, foi trespassada pela consolidação histórica de uma sociedade burguesa

236
cruel, eis a inescapável condição brasileira hodierna. Aqui, as famosas “leis
impiedosas” que Marx aludia, uma vez vigentes as forças produtivas do
capitalismo, persistem a engrenar o país na condição de periferia sistêmica.

Necessariamente aqui, lembro que o “Mestre de Apipucos”, em suas antinomias


de “Nordeste” (1937), referindo-se a esta região como sendo “talvez a mais
patológica” do país, aduziu que:

“Também a civilização grega foi uma civilização mórbida... escravocrata... pagã...


e... estranhamente criadora de valores, pelo menos políticos, intelectuais e
estéticos”. [3]

Às portas da neocolonização neoliberal, cabe aos comunistas, revolucionários e


patriotas a plena consciência dos terríveis espectros que rondam a Nação.
Cabe-nos lutar sem tréguas pelo desenvolvimento, pela nossa independência e
pelo socialismo.

(Foto: null)
*Publicado em Portal da Fundação Mauricio Grabois, 16.11.2017
NOTAS

[1]Em: https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/uma-semana-de-mortes-
o-retrato-da-violencia-no-brasil.ghtml

[2] Ver: “Variações sobre o homem cordial”, C. Ricardo, em: “Sérgio Buarque de
Holanda. Raízes do Brasil. Edição comemorativa 70 anos, orgs. Berzaquen de
Araújo, R., Schwarz, L., Companhia das Letras, 2006, p. 366.

[3] Ver: “Nordeste”, Gilberto Freyre, citado em: “Chuvas de verão. Antagonismos
em equilíbrio em Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre”, Ricardo

237
Berzaquen Araújo, em: “Um enigma chamado Brasil. 29 intérpretes e um país”;
Botelho, A., Schwarcz (orgs.), Companhia das Letras, 2009, p. 220.

Uma nota sobre a nota*

238
“As últimas pessoas em cuja avaliação deveríamos confiar são os analistas da
Standard & Poor’s” (Paul Krugman, 2011).
Programaticamente, as agências de risco iniciam sua cantilena e os insultos
pela chantagem preparatória ao caminho de claro contraponto aos interesses
nacionais dos países em desenvolvimento (taxa de juros baixa para expansão
da economia, política cambial que garanta moeda desvalorizada por um
extenso período, política fiscal expansionista e de gasto público, função ativa
do Estado e das estatais etc.). E o pano de fundo do anúncio da agência dos
diagnósticos fraudulentos e das interesseiras “profecias autorrealizáveis”
desenha o agravamento da crise econômica no centro capitalista, agora
expandindo-se com força à periferia.

Nas palavras certeiras de Moniz Bandeira, o que ocorre no Brasil (“e contra o
Brasil”) é uma campanha de interesses econômicos estrangeiros, devido a
vários fatores, entre outros, a inserção do nosso país “no banco do BRICS,
com a Rússia e a China, associada aos interesses políticos domésticos, de
uma oposição sem ética, sem compostura, servindo aos interesses
antinacionais”. [1]

Como efeito, os conglomerados financeiros e suas agências, amplificados


enormemente com a ascensão do neoliberalismo, surgem na verdade com a
emergência do imperialismo e a estrutura monopolista das grandes empresas e
bancos. Teoricamente, o risco de crédito resulta da possibilidade de que uma
(ou mais de uma) das partes não cumpra (m) suas obrigações contratuais,
ocasionando perdas do principal para o (s) parceiro (s).

Mais precisamente, as agências acompanham desde o início os interesses dos


trustes norte-americanos; e não à toa a s&p data de 1922 em que se funde a
Standars Estatistics e toma a forma atual já a partir de 1941; a Moodys data de
1909. Mas as classificações de risco tiveram suas origens em 1850, com a
expansão dos mercados de títulos de dívidas das companhias ferroviárias
norte-americanas. Antes do período chamado de “o ciclo ferroviário”,
prevaleciam amplamente nos mercados de capitais eram títulos soberanos de
alguns países europeus (Holanda e Inglaterra), onde os investidores locais
confiavam para emprestar dinheiro.

Ontem e hoje: fraudes e especulação

Aliás, no caso da grande crise iniciada na Tailândia em 1997 e a seguir


generalizada à Ásia e logo globalmente, descrevem Farhi e Cintra que Stiglitz
et alli identificaram que as agências “reduziram as notas dos países do Sudeste
Asiático em crise, mais do que a deterioração de seus fundamentos
econômicos justificaria”; o que exacerbou o custo dos empréstimos externos,
causando a evaporação dos fluxos de capitais internacionais e contribuindo
para amplificar mais ainda crise na região asiática. [2]

Nesta análise esclarecedora de Maryse Farhi e Marcos Cintra, no caso da crise

239
russa (1998), os sucessivos cortes nas classificações do risco país provocaram
o efeito “claramente pró-cíclico, pois acentuaram os movimentos de fuga de
capitais e de desconfiança dos investidores”. O que levou: a) em maio de 1998,
no furacão de um ataque especulativo “o governo russo a triplicar as taxas
básicas dos juros”, as agências realizaram forte corte nos ratings do país e dos
títulos de sua dívida pública interna e externa, levando à exacerbação da fuga
de capitais”; b) em setembro de 1998, as agências reduziram a classificação de
risco do Brasil, e, novamente, em janeiro de 1999 quando, o governo brasileiro
passou a um regime de câmbio flutuante.

O capital financeiro serviçal do neocolonialismo e da guerra

A ideologia “econômica” motivadora das “notas” da agência Standards & Poor’s


deve ser interpretada ipsis verbis pelas imagens abaixo. Seus interesses
sociais e de classes, em última instância fundamentam, manipulam, projetam e
se confundem notavelmente com a resultante política da faceta mais agressiva
do capital financeiro neocolonialista e reiteradamente criminoso.

Assim, a ninguém interessado no assunto se deve dar ao direito da ignorância


ou da ingenuidade: as agências de risco são de propriedade de bancos de
investimentos dos Estados Unidos.

*Publicado em Portal Vermelho, 11/09/2015

NOTAS
[1] Ver: “Agências de risco estão a serviço de especuladores e de interesses
econômicos e políticos dos EUA”, entrevista de L.A.M.Bandeira, em: Carta
Maior, 11|09|2015.
[2] Ver: “Informação dos investidores: classificação de riscos, contabilidade e
conflitos de interesses”, Farhi e Cintra, FEE, 2002.

Desmantelar a operação golpista contra a Nação! *

240
Em última instância, encontra-se no centro do tabuleiro o projeto de liquidação
do Brasil enquanto nação, na atual quadra histórica. É exatamente disto que
trata a marcha golpista camuflada na tentativa do impeachment da Presidenta
Dilma Rousseff. Passou-se a exigir-se a derrota de correntes políticas
avançadas ou de caráter democrático-popular impulsionadoras da reconstrução
desenvolvimentista, soberana e provedora de amplas melhorias sociais às
massas populares.
A conjugação de interesses entre forças do país e as forâneas acumpliciadas
no golpismo responde simultaneamente às exigências de um capítulo na
história do capitalismo global, em crise profunda. Porque não há interesses
políticos desgarrados daqueles econômicos, de classe.
Num momento em que a desaceleração da economia mundial, uma inflexão
severa do comércio internacional e mais crescimento do desemprego são
anunciados pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico), o FMI (Fundo Monetário Internacional), a OMC (Organização
Mundial do Comércio) e a OIT (Organização Internacional do Trabalho) –
aparelhos multilaterais do capital.
Sabidamente, o novo ciclo político progressista (inesperado e) hospedado pelo
povo no Brasil e em inúmeros países da América Latina defronta-se a um
contra-ataque político-ideológico entrecruzado a uma “depressão econômica”
nos países centrais, deflagrada em 2007-2008. Hoje a se espraiar fortemente à
periferia do sistema neoliberal, a onda depressiva solapa as condições
econômicas da resistência contra-hegemônica, alimenta infame campanha
midiática conservadora, falsifica preceitos da própria democracia capitalista em
nome da desestabilização institucional progressista e popular, a qualquer
custo.
Rapinagem e ultra-concentração do capital
Como mais uma vez pertinentemente alerta Moniz Bandeira, sobre o império
americano, em meio à campanha golpista atual, o Brasil está na mira de Wall
Street: “O objetivo é destruir as grandes empresas brasileiras, as construtoras
que são fatores de expansão mundial do Brasil, e permitir que entrem no
mercado brasileiro as multinacionais americanas”.

Paralelamente, cursam as iniciativas dos EUA em impor tratados internacionais


[1] que são a tentativa de uma transição global para instituições
governamentais acima de estados-nações; ou, por intermédio desses tratados,
ao nascimento de um conjunto de instituições privadas acima dos estados-
nações: os investidores privados poderão processar um Estado soberano num
tribunal arbitral privado!
Do mesmo modo, os tratados visam a eliminar qualquer referência a
“investidores estrangeiros” pelos assinantes, liquidando assim a capacidade da
produção tecnológica nacional. Igualmente, no alvo a agricultura, terras e
minérios dos países em desenvolvimento (subdesenvolvidos). A ampliação
maior ainda da desigualdades econômico-sociais e assimetrias serão
inevitáveis.

241
Noutra dimensão, a concentração e centralização do capital levou ao que o
economista François Morin (membro do conselho geral do Banco Central
francês) chamou de uma “hidra” mundial bancária. Quem já teria tomado “conta
de todo o planeta”: apenas 14 bancos com importância sistêmica multiplicam
derivativos cujo valor imaginário (o montante dos valores segurados) chega a
US$ 710 trilhões, ou mais de 10 vezes o PIB mundial (Produto Interno Bruto)!
Oligopólio bancário advindo no rastro da “globalização financeira” ou da
financeirização da riqueza como “o processo de remoção de qualquer presença
pública na economia e de converter o excedente econômico em pagamento de
juros ao setor financeiro”, resumiu o ex-secretário Assistente do Tesouro dos
EUA, Paul C. Roberts (“A reescravização dos povos ocidentais”). [2]
Brasil: derrotar a aliança da traição!
Importa observar então que, após escrever “Brasil: a construção interrompida”
(1992), Celso Furtado, no início dos anos 2000, notadamente na América
Latina, afirmou que havia se estabelecido o desafio da ultrapassagem do
“fracasso das experiências neoliberais que marcam a virada do século”. O que
para ele, revelara condicionalidades de, entre outras questões determinativas:
a) um processo de globalização que torna “inevitável o avanço da concentração
de poder em mãos de poucos”; b) uma evolução estrutural no capitalismo
avançado que “escapa aos esquemas teóricos que herdamos do passado”. [3]
Os dois fenômenos se amplificaram!

Não tenhamos ilusão: liquidar a construção de um novo Projeto Nacional de


Desenvolvimento, eis as razões fundamentais que confluem à marcha golpista
no Brasil de agora. Para além da violação aberta da Constituição da República,
da empreitada para desmoralizar e destruir o partido político de Dilma e Lula,
subjaz uma oposição de caráter e objetivos ultraliberais sintonizada com a
estratégia furiosa dos arrivistas imperialistas. Antes do mais, riscar do mapa
regional a integração soberana e as melhorias sociais das massas
trabalhadoras.

É só atentar para o recente programa “Uma ponte para o futuro”, do PMDB,


antes reconhecidamente como partido “centrista”, e hoje sob a batuta de Michel
Temer! [4]

*Publicado em Portal da CTB (Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do


Brasil), 14\12\2015

NOTAS
[1] Os três principais e complementares são: Tratados Bilaterais de
Investimento (TBIs), a Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento
(TTIP) e a Parceria Trans-Pacífico (TPP). Estão em pauta e têm ainda que ser
aprovados formalmente.
[2]Em:sputniknews.com/columnists/20151109/1029803298/us-west-
economy-values.html Traduzido em resistir.info

242
[3] Ver, respectivamente “Em busca de novo modelo. Reflexões sobre a crise
contemporânea”, Paz e Terra, 2003, p. 8 2ª edição; e “Raízes do
subdesenvolvimento”. Civilização Brasileira, 2003, p. 9.
[4] Ver a letra “e” do item “Uma agenda de desenvolvimento”: “realizar a
inserção plena da economia brasileira no comércio internacional, com maior
abertura comercial e busca de acordos regionais de comércio em todas as
áreas econômicas relevantes – Estados Unidos, União Europeia e Ásia – com
ou sem a companhia do Mercosul, embora preferencialmente com eles. Apoio
real para que o nosso setor produtivo integre-se às cadeias globais de valor,
auxiliando no aumento da produtividade e alinhando nossas normas aos novos
padrões normativos que estão se formando no comércio internacional”

Frangalhos ideológicos de uma burguesia hipócrita e bastarda*


Logo pelo título do texto publicado por Otavio Frias Filho na Folha de S. Paulo,
de sua propriedade, “O atentado, o suicídio e a carta. Mil disfarces de Getúlio

243
Vargas convergem num gesto de coerência”, o diretor de redação diz a que veio:
atacar, enxovalhar e tentar enterrar a memória do líder político número um e
fundador consciente da industrialização capitalista no Brasil.

Velório do presidente Getúlio


Vargas mostrou a dimensão da comoção popular pelo suicídio e o repúdio ao
golpismo da imprensa
Numa pretensa “resenha” do 3º livro de Lira Neto, sobre Getúlio Vargas (Getúlio
1945-1954: da volta pela consagração popular ao suicídio), o diretor de redação
da Folha de S. Paulo, Otavio Frias Filho retrata em inteireza e sem qualquer
pudor a ideologia do setor da classe que ele teima em representar.

A propósito, renitência inútil: a corte endividada ao grande capital financeiro que


a ele se gruda está irremediavelmente decrépita. [1] Não é à toa que tal
vocalização da burguesia se agarra à desonrosa aflição de lutar até cair
defendendo o fracasso das teorias dos “mercados autorregulados” que
afundaram o capitalismo central na depressão![2]

Indo ao assunto, logo pelo título do texto publicado no jornalão de sua


propriedade, “O atentado, o suicídio e a carta. Mil disfarces de Getúlio Vargas
convergem num gesto de coerência”, Frias Filho diz a que veio: atacar,
enxovalhar e tentar enterrar a memória do líder político número um e fundador
consciente da industrialização capitalista no Brasil. Certamente: sendo parte de
um grupo restrito de países latino-americanos que enfrentaram Grande
Depressão de 1929, o Brasil à frente dos demais no concurso da
industrialização, necessário “deixar bem claro que ainda que as pressões do
processo econômico por mudanças estivessem presentes, foi necessária sua
condução, pelo Estado, pela liderança de Vargas”, dissertou Wilson Cano. [3]

“Mil disfarces”, por óbvio, é maneira hipócrita (desrespeitosa e apátrida) que


Frias Filho encontrou para esconder – apagar - a excepcional capacidade
política de Vargas em desafiar conjunturas políticas inéditas, estranhas e de duro
enfrentamento à corja de reacionários de sua própria classe, teimosa com Frias
em jogar a história da República no pântano do atraso e de saudosismo

244
passional ao comando escravocrata. Sim, os que odiavam Getúlio – que, além,
foi ditador influenciado pela ascensão do fascismo, democrata e estadista -
queriam que tipo de destinação ao processo colapsante de Império e República
Velha?

Escória de uma burguesia bastarda

Ora, o traço mais relevante que emergiu da ordem burguesa brasileira e sua
sociabilidade – a marca mais importante dela - é a escandalosa desigualdade
social, que, como disse Wanderley Guilherme dos Santos importa captar a
oração subordinada que assevera ser a desigualdade “a mais importante delas”,
das contradições que atormenta aos trabalhadores e as camadas populares.
Nas precisas palavras do eminente cientista social Guilherme dos Santos, a
sociabilidade capitalista “moldou-se” – palavra-chave – pela inércia do
escravismo, sequencialmente à construção do Estado capitalista estruturado
pela escravidão reproduzindo dinâmica e inércia institucional de uma geração a
outra. “Getúlio Vargas, nesse sentido, representa importante ruptura com a
dinâmica herdada da escravidão, ao renovar as estruturas do Estado capitalista
para incorporar aquela questão em seu próprio âmago” – sublinha Guilherme
dos Santos (Apresentação à “A construção da sociedade do trabalho no Brasil”,
de Adalberto Cardoso, FGV/FAPERJ, 2010).

Pois bem. Para Frias Filho, o padrão de revoluções no país, “com pouco ou
nenhum derramamento de sangue e de transições negociadas” – ele queria ou
gostaria mesmo que fossem derramados rios de sangue? -, onde estas por sua
vez “se transfere por osmose à nova”, como 1989, 1930... e ele acaba por se
denunciar ao incluir “1964” a tais transições “negociadas”! Ora, para quem
assistiu seu próprio império de comunicação ceder seus automóveis para
carregar presos políticos totalmente indefesos aos porões da tortura e
assassinados pelos militares da OBAN; para depois, bem depois chamar pelo
editorial de seu jornal o regime militar exatamente de “ditabranda”, é ou não é
confissão deliberada e livre de defesa, inclusive do fascismo?

Acusação ideológica alucinada

Por isso também, para Frias Filho, o que importa da biografia dramática e trágica
de Getúlio - um “sedutor matreiro capaz de se safar das piores encrencas” - é
que ele “sentia atração pelo suicídio honroso”; que um dos filhos de Getúlio que
suicidou-se em 1977, “parece sugerir alguma propensão inata” ao mesmo. Ora,
desde Èmile Durkheim, ilustre sociólogo burguês, sabe-se que o
suicídio egoísta, o altruísta e o anômico (ausência de regras na sociedade,
gerando o caos, fazendo com que a normalidade social não seja mantida), todos
eles sem exceção e suas causas, são segundo Durkheim, “sempre sociais”. No
nosso tempo, as principais causas estatísticas de suicídio normalmente ocorrem
em pessoas com o transtorno bipolar, a depressão, a dependência de drogas e
também a esquizofrenia; não existe nenhuma evidência de “hereditariedade”
suicida, mesmo que fatores genéticos atuem com frequência (irregular) em
inúmeras sociopatias.
Frias Filho, “psicólogo” farsesco e arrogante acaba de descobrir o suicídio
hereditário!

245
Sim, a imputação a uma família – de Vargas – de geneticamente suicida, por
inferir Getúlio um doente mental, talvez seja a mais odiosa da história da
República.

Há bem mais: no jogo de palavras aparentemente enganador de Frias Filho,


Getúlio Vargas ao escrever em sua carta-testamento “Nada mais vos posso dar,
a não ser o meu sangue” revelaria apenas uma ressonância cristã ao sacrifício
“feito em nome do povo” e que sela sua aliança (“uma chama imortal”) com o
líder imolado; que numa “condensação teatral de um drama muito maior”, o
governo Getúlio via seu “raio de manobra” se estreitando por uma “polarização
entre forças econômicas e interesses sociais contraditórios”, mas “o cobertor era
curto, como sempre”, num momento de ambiente de negócios que se reclamava
“como se diria hoje, mais amigável”.

Aliás, como diz e repete hoje a mesma linguagem das forças reacionárias e
golpistas – “polarização”, diz ele - a que presta contas Frias Filho, Getúlio, então,
“concedeu o controvertido reajuste de 100% do salário mínimo, elevando-o a
valor real próximo ao de hoje” - vejam outro crime do presidente! Na mesma
batida e mentindo novamente, Frias Filho afirma que o Partido Comunista
rompera com Getúlio “por orientação de Moscou” (1954) para fazer agitação
operária nas greves. Não houve interferência de Moscou à época, a orientação
era nacional: Prestes e o partido inclusive já discutiam apoiar Getúlio assim
como a seguir fez-se aliança com o PTB de Vargas, antevendo em certo sentido
as tendências da onda golpista, apesar do giro à esquerda do Manifesto de
Agosto (1950).

Baixo nível e manipulação

A ”resenha” de Frias Filho, sinuosa em elogios ao livro de Lira Neto - e chegando


a chamar Getúlio de “estadista”, entre ataques -, é, além, francamente inspirada
na famosa frase de Fernando Henrique Cardoso, de 20 anos atrás, “Eu disse (...)
quando fui eleito que queria botar fim da Era Vargas”, referindo-se exatamente
ao seu “modelo autárquico e ao Estado intervencionista” (1994).

Todavia, no exato momento em que se debate no Brasil os 60 anos do enorme


impacto, a perplexidade da decisão de Vargas e sua herança como estadista,
para Frias Filho:

“Getúlio foi um oportunista por excelência, adotando disfarces ideológicos que


mais lhe convinha, a cada conjuntura”; sendo sua filha e colaboradora Alzira
“também uma mulher corajosa, arguta e dotada de tino maquiavélico”.

E, finalmente, na analogia com a atualidade política do país, pergunta


descaradamente o chefão da Folha: “O PT em vez do PTB, Lula em vez de
Getúlio (Dilma em vez de Dutra?), o PSDB em lugar da UDN?...”. Como? Dilma
Rousseff igual ao ditador liberal e entreguista Gaspar Dutra? Não há qualquer
lógica nisso, mas claro que a pergunta é novo jogo de palavras para, a seguir,
assinalar que ”essa identidade é aparente”. Então, por que a “pergunta”?
Porque, para Frias Filho:
“O maniqueísmo ideológico dos anos 1950 se dissolveu numa espécie de

246
centrismo tecnocrático, administrativista, no qual as alternativas, por mais
encarniçada que continue sendo a luta de suas falanges pelo poder, não passam
de versões um pouco mais à esquerda ou à direita –precisamente como PT e
PSDB na atualidade, separados por divergências mais de grau e estilo do que
de essência”.
Assim e principalmente, não existe, é nula na “resenha” de Frias Filho a
fundação por Getúlio Vargas da Petrobras - quando no livro de Lira Neto há
simplesmente 22 referências a Petrobras e petróleo! [4]
Não existe na “resenha” de Frias Filho nenhuma referência à criação do BNDE
(BNDES), inclusive apoiada pela UDN golpista, bem como por jornais
oposicionistas como “O Correio da Manhã”, questão e suas consequências que
aparecem descritas em quatro páginas do livro de Lira Neto. [5]
Também como não existe qualquer referência as pressões do imperialismo na
carta-testamento de Getúlio Vargas, carta esta manipuladamente “analisada” – à
base de fofocas e intrigas fantasiadas ou amplificadas - pelo responsável
editorial e chefe maior da FSP, para quem a ditadura militar foi uma “ditabranda”.
Lembremos então essa passagem imorredoura da carta de Getúlio Vargas:

“Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e


financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o
trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar.
Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos
internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de
garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso.
Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis
criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da
Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A
Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja
livre”.

*Portal da Fundação Mauricio Grabois, 27.08.2014

NOTAS
[1] Lê-se no Observatório de Imprensa (“Mídia endividada preocupa a
sociedade”, 28/08/2014) a seguinte análise retrospectiva: “se a situação
financeira do Grupo Folha é menos grave (de acordo com os dados de
endividamento em eurobônus), sob o ponto de vista estratégico sua situação é
mais séria, considerando que se trata de um grupo jornalístico que depende
majoritariamente de apenas um veículo (a Folha de S. Paulo), enquanto os
demais estão apenas alçando vôo (Agora São Paulo e Universo OnLine)”.
Doutra parte, Octavio Frias, o pai, fundador do jornal, disse em entrevista a
Jorge Felix, originalmente no AOL Notícias (21/10/2003): “Nunca vi a mídia tão
endividada como hoje. Mas acho que é fruto da situação geral que não é fácil.
Não só nacional, como mundial. O mundo atravessa uma crise econômica”.

[2] A declaração recentíssima de J. Stiglitz é apenas mais uma demonstração de


lucidez: “A única maneira de descrever o que está acontecendo em alguns
países europeus é depressão” (“Espectro de uma década perdida, como no
247
Japão, ameaça a zona do euro”, Valor Econômico/ Financial Times, 22/098/
2014).
[3] Ver: ”Crise de 1929, soberania na política econômica e industrialização”, de
W. Cano, in: “A era Vargas. Desenvolvimento, economia e sociedade”, Bastos,
P.P.Z., Fonseca, P. C. D. (orgs.), UNESP, 2013. Bom registar que Eleonora de
Lucena, veterana jornalista da mesma FSP e sua diretora-executiva, em resenha
decente e honesta considerou este livro “ótimo” (ver: “Atual, livro exibe a gênese
da filosofia de Getúlio Vargas”, FSP, 9/12/2013).

[4] Em seu livro (p.217), Lira Neto faz questão, inclusive, de reproduzir a ordem
de Getúlio frente às queixas contra os gastos (cerca de R$ 3,3 bilhões em
valores atuais) envolvendo a criação da “Petróleo Brasileiro Sociedade
Anônima”: “Prossigam os estudos sem temor quanto ao vulto dos investimentos,
desde que os fundamentos do programa sejam objetivos e a possibilidade de
mobilizar recursos seja efetiva”.
[5] Ver: páginas 232-3, 265, 396.

O espontâneo e o consciente - de volta para o futuro (anotações)*


“Desculpe os transtornos: estamos mudando o Brasil” (Faixa de manifestantes
surgidas em várias capitais entre 17-19 de junho 2013).
1. O reexame entre a relação do espontâneo e o consciente é uma imperiosa
exigência de novas contradições surgidas em qualquer estágio do

248
desenvolvimento societário; é um dever da leitura dos comunistas em capturar
o desenvolvimento sempre paradoxal da sociabilidade; capturar para
enriquecer a inteligibilidade, bem como o seu múltiplo arsenal de intervenção
nos combates anticapitalistas. Tais contradições foram compelidas no
movimento das manifestações e lutas das massas, na já batizada “Jornadas de
Junho” e sobre as quais comentaremos no final do artigo. Mas não é segredo
que ao redor dos últimos 20 anos no Brasil emergiram mobilizações de massas
submersas na rotulação de "movimentos sociais" (sem qualquer dúvida
também motivadora do reacionarismo antipartido). Inclusive imersas na
barafunda da desidentidade de suas particularidades socioculturais, as partes
são impelidas à convergência duma legitimação de variantes do
“multiculturalismo” entre nós. Legitimação que não é aleatória, diga-se logo.
2. Como bem interpreta o filósofo J. Barata-Moura, independentemente de sua
captação gnosiológica, isto é, objetivamente, a origem do movimento e dos
fenômenos em geral “reside, precisamente, nas contradições que internamente
os constituem”. [1] Noutras palavras: não há movimento sem contradição,
porque o movimento é ele próprio a vida da contradição. Mais ainda: o caráter
ôntico da contradição é condição mesma em que ela se plasma e se
desenvolve, ou seja, é de sua natureza o processo de irrupção afirmativa para
o seu devir (tornar-se). Assim é que a historicidade da dialética e suas partes
constitutivas (realidade+conhecimento+transformação) têm sempre como
motor a miríade de contradições a projetar o movimento. Por conseguinte é
correto dissertar: o que se esconde por trás duma “estabilidade” (ou aparente)
momentânea nos processos sociais são contradições surdas a escavar aquela
história - como a velha toupeira. Ouçamos um alerta do filósofo português:
“Compreender o nexo existente entre o sistema das contradições em devir e o
momento de permanência (relativa) detectável nos seus afloramentos à
superfície constitui uma tarefa fundamental da teoria, bem como um suposto
indispensável da prática social consciente que aspire a eficácia fundada na
intervenção transformadora no corpo das realidades” (idem, p. 309; grifos
nossos).
3. Para o magistral Lênin, no espontâneo da rebelião de massas há presença
do embrião do consciente. Porém, adesão espontânea não é “espontaneísmo”
na medida em que “há espontaneidade e espontaneidade”, afirma Lênin em
sua clássica polêmica com os “economicistas” russos no estrangeiro. Por que
razões? No capítulo do célebre Que fazer? (1902) “A espontaneidade das
massas e o espírito da consciência da social-democracia”, Lênin compara “o
entusiasmo generalizado da juventude russa” pela teoria marxista, nos idos de
1895, e as greves operárias do ano seguinte que se alastraram por todo o país,
vis-à-vis ao caráter do movimento das décadas de 1870 e 1880. Diz então que
a destruição “espontânea” de máquinas [aspas de Lênin] ocorrida naqueles
anos contrastaria com o sentido “consciente” [aspas de Lênin] das greves de
meados dos 1890: houve “progresso do movimento operário nesse intervalo”,
sublinha [2]. Segundo o teórico revolucionário russo, ao invés de manifestação
de “desespero”, agora apareciam “lampejos de consciência”; “formulam-se
reivindicações precisas”; “procuram-se prever o momento favorável” das ações
etc. No entanto - e como se sabe bem -, acrescentava Lênin que todos os
avanços existentes naquele período “não podiam” mesmo gestar a consciência
socialdemocrata (socialista), pois esta só seria alcançada através da adesão à
249
política posta em prática pelo (ideário do) partido comunista. Ao tempo em que
– destaca Luciano Gruppi – Lênin convictamente entendia que a opressão
capitalista determina uma série de rebeliões, de ações e de oposições nem
todas na mesma direção – sendo “algumas reacionárias e corporativistas”; mas
reivindicações “anticapitalistas... ainda que seus promotores não tenham
consciência de tal caráter”. [3]
4. Não à toa, em Gramsci é perfeitamente compreensível o assentimento dum
suposto teórico em Lênin, no que respeita relação entre consciência política e
conquista da hegemonia (capacidade de direção; conquistar alianças
revolucionárias estratégicas etc.), em termos da proeminência valorativa, do
binômio cultura e moral trespassando as lutas de classes. Quer dizer, a
“inovação leninista” – diz acertadamente Werneck Vianna [4] – sublinha a
superação de concepções fragmentárias do sistema de valores e das
instituições burguesas ou modernas, para uma outra, sistêmica, produzida por
uma hegemonia intelectual e moral como parte constitutiva da conquista do
poder no Estado. Por isso também Gramsci aclara a famosa afirmação de Marx
(“Prefácio à Contribuição à crítica da economia política”, 1859) de que a
tomada de consciência pelos homens dos conflitos estruturais se dá no âmbito
das ideologias: ela é gnosiológica – enfoca Gramsci -, ou seja, designa o
processo do qual se formam as ideias e as concepções de mundo (Gruppi, op.
cit, p. 3-4). Ora, note-se que, segundo pressupõe o revolucionário italiano,
“(...) não existe na história a ‘pura’ espontaneidade: coincidiria com a ‘pura’
mecanicidade. (...) Pode-se dizer que o elemento da espontaneidade é por isso
característico da ‘história das classes subalternas’, e ainda dos elementos mais
marginais e periféricos destas classes, que não atingiram a consciência de
‘classe por si’...”. [5]
Prossegue na sequência Gramsci:
“Descuidar e, pior ainda, desprezar os chamados movimentos ‘espontâneos’,
isto é, renunciar a dar-lhes uma direção consciente, a elevá-los a um plano
superior inserindo-os na política, pode ter muitas vezes consequências muito
sérias e graves” (idem, p. 271).
E, atenção, mais adiante: “Acontece quase sempre que um movimento
‘espontâneo’ das classes subalternas é acompanhado por um movimento
reacionário de direita da classe dominante, por motivos concomitantes: uma
crise econômica... determina conjuras de grupos reacionários que se
aproveitam o enfraquecimento objetivo do governo para tentar golpes de
Estado” (idem, pp. 271-272).
5. Numa direção similar a essas teorizações de Gramsci, conforme assinalou
Eric Hobsbawm em “Notas sobre a consciência de classe” (1980), a ausência
mesma de consciência de classe, em termos modernos, não implica a ausência
de classe e nem de conflitos de classe; sendo que na vigência da economia
mercantil capitalista houve uma modificação fundamental: elevou-se a escala
desta consciência, em termos nacionais. Marx e Engels - sublinha ele -, seja
em estudos históricos ou trabalhos políticos, “jamais negligenciaram as
complexidades sociais, as estratificações”, que são intrínsecas as classes. [6]
Neste sentido, uma das importantes conclusões do historiador marxista
britânico noutro seu clássico estudo (“Flutuações econômicas e alguns

250
movimentos sociais desde 1800”) [7] é a de que, ao invés de se encontrar
sistematicamente “explosões”, “saltos” ou irrupções sociais a partir do
agravamento das condições de vida e trabalho das massas populares nos
desdobramentos das depressões ou recessões econômicas, a regularidade do
fenômeno explosivo se encontraria mais na correlação com as fases
expansivas do crescimento capitalista. De fato, em relação às grandes revoltas
dos trabalhadores continuaria a ser verdade – diz ele - que “saltos”
surpreendentes tendiam a ocorrer, menos no fundo dos colapsos, e mais nas
épocas das oscilações para cima, de emprego crescente ou, num caso
especial de grande importância no século vinte, de guerra [baseado numa
pesquisa de 50 anos na Inglaterra da passagem do século XIX-XX e expandida
para a Europa]. De outra parte, sobre as particularidades encontradas na
gestação dessas irrupções sociais trabalhistas, conclui:
“Só a análise individual pode revelar a combinação específica das tensões que
compõem qualquer ‘explosão’ determinada, e as tentativas de descobrir
exatamente mesma combinação (em contraposição a uma semelhança familiar
geral dos padrões) tem a probabilidade de ser malsucedidas” (idem, p. 156).
6. Podemos então supor que, do ponto de vista epistemológico: as linhas que
separam as ações espontâneas das conscientes se inserem no entrelace dos
contornos duma materialidade em movimento. Portanto, no terreno das lutas de
classes – e essa é uma síntese de Lênin –, não se pode entender uma
separação entre o espontâneo e o consciente: devemos compreender as duas
categorias em seus nexos dialéticos concretos. Porque as ações dos
movimentos de massas se assentam sobre variados níveis de consciência. E
as condicionalidades formativas de suas “consciências” via de regra limitam (ou
não) a articulação dos planos reivindicatórios (o específico e o geral). O que é
compreensível ser muito mais difuso quando as demandas e protestos são
apinhados num conjunto vastamente heterogêneo e surpreendente - difuso e
confuso. Daí que as novas mediações dos movimentos tem que ser
apreendidas à luz dos processos de desenvolvimento e experiência das lutas
de classes: novos movimentos, novas mediações. O tênue entre o espontâneo
e o consciente, no que respeita as manifestações não formalmente dirigidas e
“não orgânicas” expressam particularidades “invisíveis”; pois construções e
desconstruções sociopolíticas as tornam mais e mais complexas. Daí a
differentia specifica dos estágios da espontaneidade e da consciência social.
Noutras palavras: o desenvolvimento dos estágios da consciência sociopolítica
emana do prolongado processo histórico que deita raízes em cada
nacionalidade, no solo de cada país. Por conseguinte, é equívoco compreender
hoje como “consciente” a ação se massas unicamente pelo ângulo de sua
adesão ao partido mais avançado das classes trabalhadoras, o partido
comunista; ou mesmo esterilizar o “espontâneo”. Outra coisa é o
distanciamento da percepção da realidade em movimento.
7. Num famoso livro publicado 1994, o mesmo Hobsbawm (“A era dos
extremos”) nos chamava a atenção do quadro mundial de incerteza, violência e
instabilidade criadas pela a ascensão da globalização neoliberal e as derrotas
socialistas. Depois, em “Globalização, democracia e terrorismo” (2007), ele
disserta sobre o avanço acentuado das desigualdades econômicas e sociais,
impostas pela adoção dos “mercados livres”, no interior das nações e entre
elas, já então na base de “importantes tensões sociais e políticas do novo
251
século”. [8] Sob esse largo ângulo, o exame das lutas sociais em curso no
Brasil - mobilizações populares extensas, vigorosas e acentuadamente
marcadas pela presença nuclear da juventude - nos remete necessariamente, e
em primeiro lugar, ao pano de fundo do Brasil da época neoliberal que
atravessamos recentemente. Porque encerra avanços e recuos nos estágios
da consciência social, decerto nada se explicará, hoje e amanhã, se as
entranhas históricas desse período não forem literalmente revolvidas; e
removidas. Muito especialmente não se desvendará como o povo brasileiro
vem perquirindo sobre a sua condição de cidadania desde então. Por quê
mesmo? Ainda em 1998 os economistas J. M. Cardoso de Mello e F. Novais
escreveram um importantíssimo ensaio desvelando o processo acidentado das
conquistas da modernização brasileira, em contraposição às implicações
econômico-sociais do desastre de governos neoliberais de FHC. Em
“Capitalismo tardio e sociabilidade moderna” (1998) Cardoso de Melo e Novais
mais que alertavam, com inteiriça razão, acerca da súbita regressão que
ameaçava uma desestruturação nacional. Severa regressão societária, pois,
desde o advento da globalização, entronizou-se por aqui a competição
selvagem, transformando a violência num recurso cotidiano de sobrevivência;
manifestada também no trânsito infernal nas nossas grandes cidades poluídas,
servas do automóvel, atravessando as relações de trabalho, deformando a vida
familiar, chegando “até ao assassinato”. Assim – continuam os autores a captar
um ambiente catastrófico -, “uma sociedade que não dá valor à vida não pode
pretender que os excluídos, do emprego, da escola, da vida familiar,
considerem a vida uma valor” (Cap. “A que ponto chegamos?”, 1998). [9] No
ano seguinte (1999) e dando sequência às indagações dos economistas
citados, em “O capitalismo selvagem. Um estudo sobre a desigualdade no
Brasil”, a economista Wilnês Henrique assim concluía sua fundamentada
pesquisa de doutorado, em verdade um retorno ao longo processo de
configuração e os resultados então examinados do capitalismo tardio brasileiro:
“De outro lado, vimos que as relações entre dependência e desigualdade
ficaram expostas a olho nu nestes últimos 20 anos. Na época do capital
financeiro e da ciência e tecnologia como base ampliada de valorização do
capital, a dependência reaparece como dependência financeira e tecnológica.
Porque não dispúnhamos e nem criamos um mínimo de capacidade autônoma
de inovação e investimento, fomos obrigados a fazer o "ajuste exportador"', que
culminou no neoliberalismo. Ele terminou impondo restrições drásticas ao
crescimento e imobilizou a política econômica e social. À regressão econômica
correspondeu a regressão social, que se manifesta no desemprego estrutural,
na cristalização dos baixos salários, no emprego de terceira categoria, na
multiplicação de serviçais, na flexibilização e extinção de direitos”. [10]

8. Ora, essas duas análises, relativamente pioneiras (e certeiras), ajudam-nos


a refletir sobre uma sentença: os dez anos que vivenciamos de assunção do
novo ciclo político no Brasil (governos Lula e Dilma) apenas começaram a
reverter outros dez anos d’ “A construção interrompida”, usando aqui os termos
visionários do livro de mestre Celso Furtado (1992). Desse modo, às
conquistas recentes se assentaram em novas exigências duma truncada
expansão capitalista que, numa síntese (precária) poderia ser assim formulada:
ampliam-se os direitos das camadas populares, enquanto se reproduz um

252
padrão capitalista nos marcos da hegemonia financeira neoliberal (global).
Ademais, acumularam-se graves sequelas e velhas doenças da referida
selvageria capitalista, tornando as batalhas pelo novo desenvolvimento uma
verdadeira guerra nacional de classes e frações de classe, incluídos o duro
enfrentamento contra a burguesia bancária/financeira e os interesses do capital
internacional. Ou não?
Daí manifestações de massas onde se expressou até elevada criatividade,
como no caso do cartaz da epígrafe deste artigo – que informa desconhecer o
ocorrido entre nós nos últimos 10 anos! Esse tipo de atitude espalhou-se por
todo o país, inclusive em nossos profundos rincões. Não existiu na história
brasileira, notabilizando-se a inédita experiência democrática atual, “tomadas
de posição” tão abertas como desta feita, nas manifestações de massas.
No caso de São Paulo, berço da eclosão, colecionaram-se cartazes e faixas
oriundas de distintos manifestantes, onde se pôde ler: “Não são por centavos
que estamos aqui”; “Querermos escola e hospitais em Guarulhos do padrão da
FIFA”; “O jovem no Brasil não é levado a sério”; “IPTU aumento de 300%
Partido do Povo?”; “Quando o povo levantar o governo vai se reverenciar”;
note-se em Cacoal (RO): “Tem tanta coisa errada no município e no Brasil que
não cabe em um cartaz”; ou em Timóteo (MG) “Por favor não nos machuque
nós não temos # hospitais”; no Recife: “Basta de corruptos! Basta de
comparsas! Voto aberto parlamentar! Para essa zona acabar!”; ou no cartaz
revelador exibido por uma adolescente: “Enfia os 0,20 no SUS”.
Portanto, caso das grandes manifestações de massas, iniciadas - sim e sem
dúvida, pela direção de um grupo de jovens da pequena burguesia paulista
radicalizada e em contestação aos governos de Dilma e Lula – e que ainda
estão a ocorrer no Brasil é mais que evidente a explosão de diversos níveis de
consciência e interesses. É bastante provável que haja razão nos que afirmam
a distância entre 1992-2013 como causadora de uma explosão social sem
precedentes: haveria novas aspirações numa gigantesca massa
(principalmente) de jovens, alheios (adversos?) às conquistas do último
decênio sendo a grande maioria ausente de vínculos a organizações de
massas. Mas é falsa a propalada vulgata da “ausência de lideranças”: logo,
logo apareceram os “cabeças” do (recorrente) movimento pela redução das
tarifas, em entrevistas à mídia nacional e internacional! E trata-se da mais pura
ingenuidade não denunciar a descarada manipulação midiática das
manifestações, no início condenando a todos como “baderneiros”, logo depois
as insuflando abertamente contra o governo Dilma, em transmissões televisivas
24 horas por dia.

9. Ainda acerca da natureza das mobilizações, também risíveis (para além de


conservadora) são as opiniões do Lindbergh Farias, Senador do PT e nosso
companheiro: partido político “virou coisa de eleição” e “deixou de ser
instrumento de mobilização das ruas”; acusando ele seu próprio partido e
outras siglas de esquerda de “afastamento da juventude”; fazendo apologia da
“horizontalidade” e das “redes” nas manifestações etc. [11] Sejamos diretos: a
condição de “especialista” em partidos (ex-PCdoB, ex-trotskista e petista) não
retira do Senador a condição do eleitoralismo interesseiro - flerte com a direita?
- que o contamina. Quem são as forças-chaves do combate crucial à avalanche

253
e os efeitos da crise capitalista dos nossos dias, sobre os trabalhadores e a
juventude? Quem são as correntes políticas ou lideranças avançadas e
revolucionárias (e orgânicas) que construíram governos progressistas na
América Latina atual? Respostas: são os comunistas do PCP (Portugal), do
PCG (Grécia), especialmente, as centrais sindicais de Portugal, da Grécia, da
Itália, da França, os comunistas e a juventude organizada do Chile,
sindicalistas e comunistas da Frente Ampla do Uruguai, do PSUV na
Venezuela de Hugo Chávez, do MAS boliviano de Evo Morales, os sandinistas
de Daniel Ortega, a esquerda católica em torno de Rafael Corrêa. São o PT de
Lula, o PCdoB, o PSB, o PDT, principalmente, que estão na vanguarda dos
acontecimentos raros que mudaram o Brasil, desde os idos de 1989! Até os
cegos – porque também escutam – Sabem disso!

Noutra toada, e analisando as manifestações, o cientista político André Singer


pensa que, agora, “caberá à esquerda, que teve o mérito de começar a luta, ter
a coragem de mostrar a cara e propor um programa”. Num ar solene e
conclusivo diz o escritor e ex-porta-voz do ex-presidente Lula: “em que pese os
inúmeros e graves percalços pelos quais passa -- a democracia é a maior
conquista da humanidade no campo da política”. [12]

10. Em termos de considerações finais – e de volta para o futuro. Não, não foi a
“espontaneidade” crua que conduziu a rebelião social que vivenciamos. A
adesão de dezenas e centenas de milhares de jovens, populares,
trabalhadores, aposentados, pais com suas crianças, por si só, é uma óbvia
atitude de tomada de posição contestatória às referidas doenças e sequelas
sociais acumuladas dum capitalismo tardio brasileiro, dilacerado havia muito
pouco pela tragédia neoliberal; ao que se acrescente com ênfase o repúdio à
corrupção em geral, seja ela mistificada ou não pela sistemática campanha
midiática nacional. E leve-se em conta, de alguma maneira, a influência entre
nós dos grandes protestos ocorridos em Wall Stret (“occupy”), na Espanha (“los
indignados”), ou os do Egito, sem dúvida auxiliados pelas “redes” de internet.
Por outro lado, é imperioso preparar-se para um longo combate à
instrumentalização desses movimentos, a contrapropaganda preconceituosa
contra a organização partidária e das massas, que visam, como no passado,
absorver e diluir o descontentamento popular buscando estimular (remotos)
movimentos “inorgânicos”. Relembrando Gramsci, a direita reacionária utiliza
esses movimentos e “quase sempre... aproveitam o enfraquecimento objetivo
do governo para tentar golpes de Estado”.

Essencialmente, as Jornadas de Junho refletem os espaços das conquistas


democráticas indiscutivelmente acentuadas pelos governos de Lula e Dilma: o
pleno exercício duma “democracia das ruas” veio se efetivar em massivos
protestos convergentes contra as mazelas deste tipo de capitalismo brasileiro!
Por isso também trata-se de um (perigoso) engodo a ideia de que nos
encontramos na “primeira década de governos pós-neoliberais no Brasil” [13];
bem como superlativizar as políticas sociais como sendo “o coração dos
governos Lula e Dilma”. Três exemplos insofismáveis: a) na política econômica,
a permanência e a defesa oficial do “câmbio flutuante”, da política fiscal semi-
ortodoxa, bem como a recidiva duma política monetária de juros elevados,
atestando a vigência de orientações ainda da órbita neoliberal (e nos últimos

254
três anos não conseguimos nos livrar da volta ao baixo crescimento
econômico); b) entre abril de 2002 e janeiro de 2013 o valor do salário mínimo
passou de R$ 200 para R$ 622, o que representa ganho real de 70,49% - o
maior desde a sua criação; entretanto, assegura o Dieese: dos cerca de 3,5
milhões de trabalhadores do estado do Pará, quase 1,4 milhão (cerca de 40%)
recebe hoje um salário mínimo; c) a renda per capita do Brasil está em torno de
US$ 10 mil ou cerca de três vezes inferior a da Coréia do Sul, país que teve
sua industrialização ainda mais tardia que a nossa.

De outra parte, diferentemente do que imaginam o Senador Lindbergh e o


professor Singer, o PCdoB - inobstante suas insuficiências e limitações -
continua empenhando todas as suas energias na organização, na elevação da
consciência política e programática das massas no país, nomeadamente dos
trabalhadores (as) e da juventude. Aliás, o PCdoB procura não esquecer as
lições de Marx sobre o significado abrangente do impacto das transformações
nos meios de comunicação: “A burguesia, pelo rápido aperfeiçoamento de
todos os instrumentos de produção, e tornando as comunicações infinitamente
mais fáceis, arrasta todas as nações, mesmo as mais bárbaras, para a
civilização”. [14] Por isso o PCdoB não só sabe a importância relativa das
“redes sociais”, tendo seu de Portal Vermelho na internet, premiado como o
mais importante da esquerda brasileira; como também não se deixa abater com
as grandes dificuldades do desestímulo à participação política: no caso das
eleições da UNE (União nacional dos Estudantes), há anos hegemonizada por
jovens do PCdoB, desconhece-se no país qualquer outra experiência de tal
envergadura duma democracia “horizontalizada” para escolha de seus
representantes.

É o PCdoB quem recusa o falso diagnóstico de já vivermos um decênio de


“pós-neoliberalismo”; é ele quem critica, desde o início do novo ciclo político, a
orientação macroeconômica do governo; é ele quem afirma vivermos ainda
“uma grande transição” a um novo estágio de desenvolvimento no país; é ele a
única corrente política no Brasil quem tem um renovado e nítido Programa
estratégico, nele pontificando a passagem pelo desenvolvimento e o progresso
sociais, com a indispensável ampliação da democracia para a garantia de luta
pelos direitos do povo brasileiro. Mas o Programa do PCdoB é socialista e não
tergiversa: considera que é o Socialismo a maior conquista da humanidade no
“campo da política” e, mais ainda, que só ele é capaz de levar adiante a
consecução dos grandes ideais da Revolução Francesa - Liberdade,
Fraternidade, Igualdade -, definitivamente abandonados pela democracia
burguesa.

*Publicado em Portal Vermelho, 01\07\2013


Notas
[1] Em: “Totalidade e contradição. Acerca da dialéctica”, J. Barata-Moura,
Lisboa, 2012, pp. 302-306, 2ª edição.
[2] Em: “Que fazer? As questões palpitantes do nosso movimento”, V. Lênin,
São Paulo, Hucitec, 1978, pp.23.25.

255
[3] Ver: “O conceito de hegemonia em Gramsci”, L. Gruppi, Rio de Janeiro ,
Graal, 2000, pp. 3-4 e 43, 4ª edição.
[4] Ver: Prefácio de L.W. Vianna a L. Gruppi, op. cit., p. XV.
[5] Ver: “Espontaneidade e direção consciente”, in: Antonio Gramsci – Obras
Escolhidas, São Paulo, Martins Fontes, 1978, p. 269.
[6] Em: “Mundos do Trabalho”, de Hobsbawm, Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1980, pp. 36-38.
[7] Em: “Os Trabalhadores. Estudos sobre a história do operariado”. De
Hobsbawm, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981, pp. 135-147 e 156.
[8] São Paulo, Companhia das Letras, 2007, p.11.
[9] Ver: “Capitalismo tardio e sociabilidade moderna”, Campinas,
FACAMP/UNESP, 2009.
[10] Campinas, Unicamp/IE, tese de doutorado, 1999, p.185.
[11] Ver: Entrevista à Folha de S. Paulo, “Partido deixou de ser instrumento de
mobilização, diz Lindbergh Farias”, 23/06/2013.
[12] Ver: “Esquerda ou direita?”, de A. Singer, Folha de S. Paulo, 22/06/2013.
[13] As precipitadas opiniões são de Emir Sader (org.) em: “10 anos de
governos pós-neliberais no Brasil: Lula e Dilma”, Apresentação, São Paulo,
Boitempo/FLACSO, 2013.
[14] Em: “Manifesto do Partido Comunista”. Lisboa, Edições Avante!, 1975, p.
64, 2ª edição.
É frenética a competição pela atribuição de sentido a manifestações deste
junho que já não possuem sentido unívoco algum. Da tentativa de apropriação
pela mídia conservadora, que obteve sucesso em pautar as demandas e
insinuar o roteiro das caminhadas, às solenes reflexões sobre o
aprofundamento da participação popular e o esgotamento da democracia
representativa, nada faltou para obscurecer o já espinhoso desafio de
compreender o sucesso e eventuais explosões de coletividades. Até mesmo a
subserviente beatificação da juventude pelos velhotes assustados com o
estigma de superados, caso não adotem o corte de cabelo à moicano,
compareceu. Mas em seu tempo, a bem da verdade, nenhum deles foi
preservado de cometer sandices pela juventude de que desfrutavam.É razoável
atribuir ao aumento nas tarifas dos transportes coletivos a força causal que pôs
em movimento as primeiras manifestações. A repressão bruta, na cidade de
São Paulo, à passeata de quinta-feira, 13 de junho, forneceu uma razão
suficiente para a velocidade inédita com que manifestações semelhantes se
disseminassem horizontalmente em várias capitais. Ao saírem às ruas, na
segunda-feira, dia 17, o que as marchas conquistaram em adesão extensa
perderam em unidade reivindicatória. Do mesmo modo, a causalidade que
mobilizava o povaréu tornou-se múltipla e não automaticamente coerente. A
lista de reivindicações avolumou-se, fragmentando os grupos de interesse e
anunciando o óbvio: é impossível atender completa e instantaneamente a todas
as deficiências do país. Insistir nisso é torcer por um impasse sem negociação

256
crível. O clima ficou grávido de sinais disparatados, com a ausência de
coordenação de legitimidade reconhecida. Paraíso para todos os oportunismos,
charlatanices, além dos equívocos de boa fé.Nada a ver com os “cara pintadas”
do “Fora Collor”. À época, todos foram às ruas com o mesmo e único propósito:
o impedimento do presidente . Princípio causal único do movimento, indicava o
que era apropriado e o que não era apropriado fazer. Não havia sentido, para o
objetivo comum, promover depredações, alienar aliados ou desrespeitar
adversários. Muito menos aproveitar a audiência para fazer propaganda de
algum interesse faccioso. Agora, a que vem a PEC 37, por exemplo, nas
manifestações sobre aumento de passagens de coletivos? – Trata-se de um
aprofundamento do processo decisório, dirão alguns de meus colegas. Sim, e
por conta disso lá virá a mídia conservadora sugerir que as manifestações não
parem, apenas substituam as bandeiras, quem sabe sabotar as próximas
licitações ferroviárias, rodoviárias e aeroviárias fundamentais para o país? Ou,
ainda melhor, alterar o sistema de partilha do pré-sal e revogar a exigência de
participação da Petrobrás? As suaves apresentadoras do sistema golpista de
comunicação passaram a perguntar ao repórter que cobria manifestação na
cidade de Niterói se os protestos não iriam se dirigir à ponte Rio-Niterói, justo
depois dos prefeitos do Rio e de Niterói revogarem o aumento nos transportes.
Em qualquer democracia que se preze essa incitação à desordem não ficaria
sem conseqüência.Ao contrário de ser uma beleza de movimento sem líderes,
o espontaneísmo infantil se revela um desastre na confissão de alguns de que
não conseguem impedir a violência de sub-grupos. Nem por isso deixam de ser
responsáveis por ela na medida em que continuarem recusando a adesão
cooperativa das instituições com alvará de estabelecimento reconhecido,
instituições capazes de assegurar a virtude pacífica das manifestações. É
politicamente primitivo, nada vanguardista, impedir a associação de
movimentos organizados e, inclusive, de partidos políticos, desde que
submetidos ao objetivo central da manifestação. Em movimentos de boa fé
democrática há a hora de desconfiar e a hora de convergir. Ou estão sub-
repticiamente provocando o descrédito de legítimas instituições democráticas a
pretexto de alargar a esfera de liberdade do espaço público?Não são só os de
boa fé e bem intencionados que se manifestam e pautam o “espontâneo”
alheio. Reconheço o odor fétido dessa teoria de longe. É frenética a
competição pela atribuição de sentido a manifestações deste junho que já não
possuem sentido unívoco algum. Da tentativa de apropriação pela mídia
conservadora, que obteve sucesso em pautar as demandas e insinuar o roteiro
das caminhadas, às solenes reflexões sobre o aprofundamento da participação
popular e o esgotamento da democracia representativa, nada faltou para
obscurecer o já espinhoso desafio de compreender o sucesso e eventuais
explosões de coletividades. Até mesmo a subserviente beatificação da
juventude pelos velhotes assustados com o estigma de superados, caso não
adotem o corte de cabelo à moicano, compareceu. Mas em seu tempo, a bem
da verdade, nenhum deles foi preservado de cometer sandices pela juventude
de que desfrutavam.É razoável atribuir ao aumento nas tarifas dos transportes
coletivos a força causal que pôs em movimento as primeiras manifestações. A
repressão bruta, na cidade de São Paulo, à passeata de quinta-feira, 13 de
junho, forneceu uma razão suficiente para a velocidade inédita com que
manifestações semelhantes se disseminassem horizontalmente em várias
capitais. Ao saírem às ruas, na segunda-feira, dia 17, o que as marchas

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conquistaram em adesão extensa perderam em unidade reivindicatória. Do
mesmo modo, a causalidade que mobilizava o povaréu tornou-se múltipla e
não automaticamente coerente. A lista de reivindicações avolumou-se,
fragmentando os grupos de interesse e anunciando o óbvio: é impossível
atender completa e instantaneamente a todas as deficiências do país. Insistir
nisso é torcer por um impasse sem negociação crível. O clima ficou grávido de
sinais disparatados, com a ausência de coordenação de legitimidade
reconhecida. Paraíso para todos os oportunismos, charlatanices, além dos
equívocos de boa fé.Nada a ver com os “cara pintadas” do “Fora Collor”. À
época, todos foram às ruas com o mesmo e único propósito: o impedimento do
presidente . Princípio causal único do movimento, indicava o que era
apropriado e o que não era apropriado fazer. Não havia sentido, para o objetivo
comum, promover depredações, alienar aliados ou desrespeitar adversários.
Muito menos aproveitar a audiência para fazer propaganda de algum interesse
faccioso. Agora, a que vem a PEC 37, por exemplo, nas manifestações sobre
aumento de passagens de coletivos? – Trata-se de um aprofundamento do
processo decisório, dirão alguns de meus colegas. Sim, e por conta disso lá
virá a mídia conservadora sugerir que as manifestações não parem, apenas
substituam as bandeiras, quem sabe sabotar as próximas licitações
ferroviárias, rodoviárias e aeroviárias fundamentais para o país? Ou, ainda
melhor, alterar o sistema de partilha do pré-sal e revogar a exigência de
participação da Petrobrás? As suaves apresentadoras do sistema golpista de
comunicação passaram a perguntar ao repórter que cobria manifestação na
cidade de Niterói se os protestos não iriam se dirigir à ponte Rio-Niterói, justo
depois dos prefeitos do Rio e de Niterói revogarem o aumento nos transportes.
Em qualquer democracia que se preze essa incitação à desordem não ficaria
sem conseqüência.Ao contrário de ser uma beleza de movimento sem líderes,
o espontaneísmo infantil se revela um desastre na confissão de alguns de que
não conseguem impedir a violência de sub-grupos. Nem por isso deixam de ser
responsáveis por ela na medida em que continuarem recusando a adesão
cooperativa das instituições com alvará de estabelecimento reconhecido,
instituições capazes de assegurar a virtude pacífica das manifestações. É
politicamente primitivo, nada vanguardista, impedir a associação de
movimentos organizados e, inclusive, de partidos políticos, desde que
submetidos ao objetivo central da manifestação. Em movimentos de boa fé
democrática há a hora de desconfiar e a hora de convergir. Ou estão sub-
repticiamente provocando o descrédito de legítimas instituições democráticas a
pretexto de alargar a esfera de liberdade do espaço público?Não são só os de
boa fé e bem intencionados que se manifestam e pautam o “espontâneo”
alheio. Reconheço o odor fétido dessa teoria de longe É frenética a competição
pela atribuição de sentido a manifestações deste junho que já não possuem
sentido unívoco algum. Da tentativa de apropriação pela mídia conservadora,
que obteve sucesso em pautar as demandas e insinuar o roteiro das
caminhadas, às solenes reflexões sobre o aprofundamento da participação
popular e o esgotamento da democracia representativa, nada faltou para
obscurecer o já espinhoso desafio de compreender o sucesso e eventuais
explosões de coletividades. Até mesmo a subserviente beatificação da
juventude pelos velhotes assustados com o estigma de superados, caso não
adotem o corte de cabelo à moicano, compareceu. Mas em seu tempo, a bem
da verdade, nenhum deles foi preservado de cometer sandices pela juventude

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de que desfrutavam.É razoável atribuir ao aumento nas tarifas dos transportes
coletivos a força causal que pôs em movimento as primeiras manifestações. A
repressão bruta, na cidade de São Paulo, à passeata de quinta-feira, 13 de
junho, forneceu uma razão suficiente para a velocidade inédita com que
manifestações semelhantes se disseminassem horizontalmente em várias
capitais. Ao saírem às ruas, na segunda-feira, dia 17, o que as marchas
conquistaram em adesão extensa perderam em unidade reivindicatória. Do
mesmo modo, a causalidade que mobilizava o povaréu tornou-se múltipla e
não automaticamente coerente. A lista de reivindicações avolumou-se,
fragmentando os grupos de interesse e anunciando o óbvio: é impossível
atender completa e instantaneamente a todas as deficiências do país. Insistir
nisso é torcer por um impasse sem negociação crível. O clima ficou grávido de
sinais disparatados, com a ausência de coordenação de legitimidade
reconhecida. Paraíso para todos os oportunismos, charlatanices, além dos
equívocos de boa fé.Nada a ver com os “cara pintadas” do “Fora Collor”. À
época, todos foram às ruas com o mesmo e único propósito: o impedimento do
presidente . Princípio causal único do movimento, indicava o que era
apropriado e o que não era apropriado fazer. Não havia sentido, para o objetivo
comum, promover depredações, alienar aliados ou desrespeitar adversários.
Muito menos aproveitar a audiência para fazer propaganda de algum interesse
faccioso. Agora, a que vem a PEC 37, por exemplo, nas manifestações sobre
aumento de passagens de coletivos? – Trata-se de um aprofundamento do
processo decisório, dirão alguns de meus colegas. Sim, e por conta disso lá
virá a mídia conservadora sugerir que as manifestações não parem, apenas
substituam as bandeiras, quem sabe sabotar as próximas licitações
ferroviárias, rodoviárias e aeroviárias fundamentais para o país? Ou, ainda
melhor, alterar o sistema de partilha do pré-sal e revogar a exigência de
participação da Petrobrás? As suaves apresentadoras do sistema golpista de
comunicação passaram a perguntar ao repórter que cobria manifestação na
cidade de Niterói se os protestos não iriam se dirigir à ponte Rio-Niterói, justo
depois dos prefeitos do Rio e de Niterói revogarem o aumento nos transportes.
Em qualquer democracia que se preze essa incitação à desordem não ficaria
sem conseqüência.Ao contrário de ser uma beleza de movimento sem líderes,
o espontaneísmo infantil se revela um desastre na confissão de alguns de que
não conseguem impedir a violência de sub-grupos. Nem por isso deixam de ser
responsáveis por ela na medida em que continuarem recusando a adesão
cooperativa das instituições com alvará de estabelecimento reconhecido,
instituições capazes de assegurar a virtude pacífica das manifestações. É
politicamente primitivo, nada vanguardista, impedir a associação de
movimentos organizados e, inclusive, de partidos políticos, desde que
submetidos ao objetivo central da manifestação. Em movimentos de boa fé
democrática há a hora de desconfiar e a hora de convergir. Ou estão sub-
repticiamente provocando o descrédito de legítimas instituições democráticas a
pretexto de alargar a esfera de liberdade do espaço público?Não são só os de
boa fé e bem intencionados que se manifestam e pautam o “espontâneo”
alheio. Reconheço o odor fétido dessa teoria de longe

259
Desenvolvimento e desindustrialização*

Abertas as primeiras janelas do século XXI, a idéia do progresso civilizatório


inexorável, por ingênua, parece desvanecer. O subdesenvolvimento crônico já
espraia os miasmas da desconstrução

Ecoando camufladamente os paradigmas do centro imperialista nos anos 60 do


século passado o debate sobre a teoria do desenvolvimento econômico (1) foi
reforçado pelo tradicionalismo, a partir das formulações grandiloquentes do
inglês A. Lewis e do norte-americano W. Rostow. Com evidente moldura
neoclássica, essas ideias na verdade construíam uma tentativa de resposta
teórica conservadora para, a partir das experiências de desenvolvimento do
capitalismo central, no pós-guerra, buscar as razões e as alternativas para o
atraso do capitalismo dependente e de industrialização retardatária.
Em resumidas contas, para Lewis e Rostow, a problemática do
desenvolvimento periférico seria solucionada quase que retilineamente, no
decorrer do tempo; o desenvolvimento aparece então como um processo
eminentemente técnico, indutor de uma sociedade industrializada onde o
progresso tecnológico contínuo estaria garantido (OLIVEIRA, 2003: Introdução.
FURTADO, 1965: cap. 4. NAPOLEONI, 1979: cap. X).
Assim, teorizava-se sobre sociedades idealizadas, cuja pobreza decorreria do
‘reduzido tamanho do setor capitalista’ e onde os processos de
desenvolvimento eram entes que independem da época e abstraem suas
próprias mediações históricas. Exemplificando: enquanto para LEWIS (1969) “a
questão principal do desenvolvimento econômico é a rápida acumulação de
capital” (apud OLIVEIRA, 2003: 15), HOBSBAWM (1967-8), focando o impulso
crucial da industrialização originária inglesa afirma:

260
“Em primeiro lugar, a Revolução Industrial não foi uma mera aceleração do crescimento
econômico, mas uma aceleração de crescimento em virtude da transformação
econômica e social – e através dela” (HOBSBAWM, 2000:33; negrito nosso).

Aliás, a visão deformada daqueles explicadores do nosso atraso omite que os


processos de industrialização da América Latina entre 1930-50 (2) passaram
por transformações e rupturas sócio-políticas de magnitude, no sentido da
impulsão industrializante e superação do atraso oligárquico. Numa verdadeira
vaga contra as pressões externas – notadamente as dos Estados Unidos –
Perón na Argentina, Vargas no Brasil, Ibañez no Chile, Cárdenas no México,
Paz Estenssoro na Bolívia, e, posteriormente, Alvarado no Peru (1968) e
Caldera na Venezuela (1971) lideraram o movimento de afirmação nacional
desses países.
Quer dizer, além do abstracionismo a ignorar fases distintas da
industrialização, que se realizam também em etapas distintas do estágio do
capitalismo mundial, o pensamento econômico tradicional que se desdobra da
teoria neoclássica também desvincula o desenvolvimento das lutas sociais e de
classes e rupturas de cada país.
Portanto, o enfrentamento da questão nacional - e ademais a decisiva
presença do Estado - marcaram o caráter inicial da industrialização latino-
americana, de resto, uma reiterada lição do brilhante (e esquecido) economista
G. Friedrich LIST (3). List, que pioneiramente – como bem mostra Chang –
considerou, frente aos países desenvolvidos, não ser possível aos países mais
atrasados conseguir desenvolver novas indústrias sem a intervenção do
Estado, particularmente por meios de tarifas protecionistas (CHANG, 2004: 14).
TRAÇOS FUNDAMENTAIS DA EXPERIÊNCIA BRASILEIRA
Relembrando, de 1947 a 1980 – constituindo as fases “restringida” e “pesada”
da industrialização” – o Brasil obteve taxas anuais de crescimento do PIB
(Produto Interno Bruto) iguais a 7,1%; período em que o produto industrial
atingiu 8,5% médios; e a renda per capita alcançou taxas anuais de 4,2%,
enquanto a população multiplicou-se por três.
Tomando-se trinta anos (1950-80), verifica-se que o PIB cresceu 6% a.a.,
reconhecidamente um desempenho econômico somente conquistado por um
número muito restrito de países. A elevação do Brasil à invejável posição de 8ª
economia capitalista, comparativamente aos países mais industrializados do
mundo, não era fantasia.
Mesmo antes, entre 1929-1950, as taxas de crescimento econômico no Brasil
chegaram a 4,6% a.a., tendo sido maiores, nesse período, do que as de
México (4,0%), Alemanha (1,4%), Austrália (2,8%), Itália (1,3%), EUA (2,6%),
Argentina (2,5%), França (0,6%), Reino Unido (1,7%) e Canadá (3,2%). Entre
1930 e 1980, o PIB brasileiro atingiu 6% a.a., um elevado dinamismo num

261
longo período, meio século em que poucos países conseguiram a mesma
performance (Carneiro, 1999).
Mas não só isso: entre 1970 e 1974 o ritmo de expansão do emprego industrial
atingiu o seu máximo na história, computando o índice de 8,4% ao ano, no
país, e 8,6% no estado de São Paulo. Mesmo sofrendo a crise do “milagre”
econômico do regime militar (desaceleração, 1974-78), observando-se o
período de 1971-78, ainda assim a taxa de crescimento do emprego industrial
foi de 5,4%. No entanto, são conhecidas as origens da verdadeira tragédia
social que subjaz a esse crescimento econômico portentoso. Ao se destrinchar
a análise dos censos demográficos (PNADs-IBGE) relativos às décadas de
1960, 1970 e 1980, o paradoxo do padrão capitalista brasileiro de
desenvolvimento é cristalino:
Aqueles denominados 50% mais pobres diminuíram sua participação no total
da massa de rendimentos do trabalho de 17,4%, para 14,9%, e 12,6%, no
curso dos anos das décadas referidas. Em direção oposta, os denominados 5%
mais ricos aumentaram sua participação na renda de 28,3%, para 34,1%, e
37,9%, na mesma ordem.
Simultaneamente, a participação agrícola na PEA (População Economicamente
Ativa) sofre queda expressiva ao longo das décadas estudadas, passando de
54,3%, para 44,6%, e 30,2%, num espaço de apenas 30 anos! (4).
Em outras palavras, enquanto se assistiu a um crescimento econômico sem
precedentes, possibilitador de um razoável aumento da renda per capita,
ampliaram-se a concentração da renda, a desigualdade e a pobreza urbanas,
especialmente.
Observe-se então uma (espantosa) particularidade nacional no interior do
movimento da industrialização e do próprio padrão de desenvolvimento:
Segundo o Instituto de Estudo para o Desenvolvimento Industrial (IEDI,
6/2003), o Brasil foi o país que obteve maior taxa de crescimento econômico do
mundo entre 1900-1973: 4,9% ao ano. Crescimento que estagnou em 2,4%
nos últimos vinte anos, levando-o para a 93ª posição.
Mudanças no cenário internacional
Parecendo ter antecipado os novos fenômenos ideólogos e econômicos
destrutivos que adviriam – em “Processos de formação de Estados e
construção de nações”, escrito em 1970 –, para Norbert Elias, um dos aspectos
“mais estranhos” no desenvolvimento da sociologia seria o contrabando teórico
das visões do curto prazo, em troca da perspectiva de longa duração, no
estudo do como e do por que sociedades se tornaram o que são ao longo dos
séculos. Estrábicas ideologias, pronunciadas na década de 70 passada, elas
expressavam a mudança das teorias sociológicas dominantes, sugeriu ELIAS
(2006).

262
Ora, como sempre insistia Celso Furtado, o rápido crescimento da economia
brasileira (1930-1970) tinha se apoiado, em boa medida, nas transferências
inter-regionais de recursos e na concentração social da renda facilitada pela
mobilidade geográfica populacional. Conforme afirmara, a partir do momento
em que o motor do crescimento deixa de ser a formação do mercado interno,
subordinando-se à economia internacional, os efeitos daquela sinergia inter-
regional desaparecem.
Angustiado, escrevera em Brasil: a construção interrompida: num país em
formação como o Brasil, o domínio dos interesses da grande empresa
transnacional na lógica do ordenamento econômico poderia apontar para a
inviabilização do país como projeto nacional (Furtado, 1992). Seis anos depois
sentenciava Furtado: “Sim. O processo de construção da economia brasileira
foi interrompido, aparentemente porque se acreditou que a globalização exigia
essa interrupção” (Furtado, 1998: 14). Aduziu a seguir que nos encontrávamos
numa situação de “completa falta de percepção histórica. Nosso país estava
em construção, e essa construção foi abandonada”, sublinhou (idem, 1998: 20).
Como se perfilasse na mesma trilha de Elias.
E a propósito do cenário internacional na década que intrigara Elias, em 1979
os EUA elevaram abruptamente as taxas de juros com o propósito de preservar
a função reserva de sua moeda nacional – coincidindo com o “segundo
choque” do petróleo. A tomada de decisão política pelo governo norte-
americano ou a diplomacia do dólar forte teve enorme incidência nas
transformações econômicas internacionais que vieram a seguir; e, a partir dos
anos 1980, a ampliação dos déficits orçamentários e comerciais dos Estados
Unidos “foi um fator importante para dar um segundo impulso e uma nova
direção ao processo da globalização financeira”, interpretara Belluzzo (1995).
Concretamente, entre 1979 e 1989, O Fed (Banco Central dos EUA) maneja
uma flutuação dos juros no sentido em que eles oscilem aos estratosféricos
21%% (1980). Deve-se notar aí que em novembro de 1978 a taxa básica de
juros dos EUA ainda era de 8%, ocorrendo, então, ondas especulativas nos
mercados financeiros importantes. E, ao contrário do que se previa, seguiu-se
um fortalecimento do dólar, e não “fugas”. Como se sabe, há mudança radical
no padrão monetário internacional após a decisão unilateral norte-americana
(1971) de “descolar” o dólar do ouro – e de qualquer lastro.
Como resultado disso, a recuperação da economia norte-americana (1983-89)
chegou, por exemplo, a atingir alta taxa de crescimento em 1984 (6,8%,
variação real PNB/PIB). No interregno, quando de interesse aos EUA, foram
forçadas, através de “coordenação pactuada” das políticas macroeconômicas,
“imposta” aos países do G-7, desvalorizações do dólar (acordos de Plaza,
1985, e do Louvre, 1987).

263
Mas quais mesmo os efeitos marcantes da elevação das taxas de juros que, a
partir dos EUA, se amplificaram e em que sentido isso repercutiu do centro do
capitalismo para fora, para a periferia dependente? Da análise de Tavares e
Melin (1997: 57-59), destacaríamos especialmente que:
Generalizaram-se os ajustes macroeconômicos deflacionistas e recessivos,
implicando violenta contração econômica mundial (1983), levando à queda nos
preços das commodities, afetando principalmente a África a América.
Dobra da dívida externa do chamado Terceiro Mundo, com crises bancárias e
cambiais nos três continentes, atingindo de tal forma o Chile e o México
levando-os inclusive à estatização de bancos. A dívida interna americana
passa a lastro dos mercados monetário e financeiro de Wall Street,
convertendo-se em externa, absorvendo poupadores estrangeiros a partir da
forte valorização do dólar.
A moratória mexicana – um divisor de águas na sinalização para o colapso do
financiamento externo à periferia – decretada em 1982 faz a crise de liquidez
internacional atingir a América Latina que submerge em crises cambiais com
desvalorizações forçadas de moedas, para promover superávits comerciais e
pagar os juros da dívida.
Desindustrialização relativa
Se a década de 1980 assiste à deterioração violenta dos países latino-
americanos, do ponto de vista da decomposição de suas finanças públicas, a
partir do superendividamento externo os anos 1990 serão marcados pelas
mudanças da liberalização financeira.
A desregulamentação da proteção aos fluxos de capitais, junto à escandalosa
abertura comercial, provocaram déficits e desequilíbrios no balanço de
pagamentos, bem como crises cambiais generalizadas. Fruto dessas
alterações – aprofundadas deliberadamente nos dois governos de FHC –, a
indústria de transformação perdeu espaço significativo no PIB desde meados
dos anos 1980, caindo dos 32,1% de 1986 para 19,7% do PIB em 1998 (IEDI,
2005). Essa tendência somente começou a ser revertida a partir de 1999,
depois da adoção do câmbio flutuante e da desvalorização cambial, atingindo
23,1% em 2004, já durante o governo Lula (6).
Ainda na década de 1990, os “ajustes” na economia brasileira passaram a
impor restrições ao crescimento mais elevado e prolongado. A reestruturação
produtiva industrial não trouxe aumento substantivo na competitividade
sistêmica, onde os aumentos da produtividade “se devem ao desemprego em
massa e aos ajustes microeconômicos das empresas líderes” (Tavares e
Belluzzo, 2001: 11) (7). Por isso insiste-se ser absolutamente indisfarçável o
desastroso resultado do crescimento econômico do nosso país nos anos em
que a “globalização” neoliberal foi proclamada a era do “novo Renascimento”.

264
E, ainda: numa conclusão dramática de Tavares e Belluzzo, “Na verdade, a
década de 90 caracteriza-se por uma desindustrialização, entendida como a
redução do coeficiente de valor agregado interno sobre o Valor Bruto da
Produção e como liquidação de postos de trabalho (mais de 1,5 milhão durante
a década na indústria manufatureira)” (idem: 16).
Sim, desindustrialização, crescimento vertiginoso do desemprego e da
degradação social. Não à toa escreveu-se depois, no Relatório Sobre a
Situação Social da ONU (26/8/2005): “A violência está cada vez mais ligada à
desigualdade. É perigoso para a segurança e a paz nacional e internacional
permitir que a desigualdade aumente”. E, apesar do crescimento econômico
considerável em muitas regiões, o mundo é mais desigual agora do que há 10
anos, declarou o insuspeitíssimo secretário-geral, Kofi Annan.
Bem recentemente o aludido fenômeno foi detalhado de maneira abrangente
num balanço dos processos de desindustrialização dos países capitalistas do
centro e da periferia, pelo especialista Gabriel Palma (Cambridge). Se, por um
lado, suas pesquisas apontam, no fundamental, para a evolução das
características de maturidade industrial e de alta renda per capita como típicas
dos processos da desindustrialização do capitalismo desenvolvido, por outro,
Palma desvela o Brasil e os três países do Cone Sul com as mais altas rendas
per capita (Argentina, Chile e Uruguai), como os que sofreram os mais alto
níveis de desindustrialização; recordando que os mesmos estavam entre os da
região que haviam se industrializado mais rapidamente e implementado as
mais drásticas reformas econômicas.
A experiência latino-americana indicaria – disserta Palma – uma sobreposição
de movimentos: enquanto “a globalização avança”, há cada vez menos países
determinados em levar adiante políticas que promovam ou mantenham a
capacidade industrial. Estaria assim “claro [o] papel da ideologia na formação
de políticas econômicas”. Sendo “uma incógnita se a desindustrialização
‘prematura’ atualmente em curso no Cone Sul da América Latina e no Brasil
contém um importante componente de ‘destruição não-criativa’ de política
induzida” (Palma, 2005: 38-40).
Com efeito, conforme defendeu o ex-secretário-geral da UNCTAD (ONU),
Rubens Ricupero, a desindustrialização prematura brasileira e dos países do
Cone Sul nada tem a ver com terem atingido alto níveis de renda per capita,
como ocorre com alguns que alcançaram maturidade industrial ou integram o
centro capitalista; tampouco da chamada “doença holandesa” (a descoberta
recente de petróleo ou gás, conduzindo países à subestimação do saldo
através de exportação de manufaturas). O processo “é produto de erros de
política econômica”, não sendo coincidência a simultaneidade do declínio
industrial e a estagnação, o baixo crescimento e o desemprego estrutural no
nível de 10% - ataca Ricupero (8). Simplificação?

265
Talvez, porque entre 1950 e meados da década de 1970, a participação da
indústria de transformação no PIB deu um salto de 18,7% para 31,7% (1974).
Em 1998 a indústria retroagiu aos níveis dos anos 1950, quando voltou aos
19%, assinalou Julio Almeida, atual Secretário de Política Econômica do
Ministério da Fazenda e ex-diretor do IEDI. “A indústria vem perdendo
participação na geração da renda nacional e do emprego, o que caracteriza os
processos de desindustrialização”, enfatizou Almeida (9).
Enormes desafios para o progresso
Enfim, e sob outro ângulo, do ponto de vista do desenvolvimento industrial, a
ausência de estratégias mais arrojadas para a evolução (tecnológica, escalas e
maior potencial de crescimento) dos grandes grupos nacionais foi, sem dúvida,
associada a políticas macroeconômicas de anti-crescimento, com a
consequente anulação de estratégia de política industrial, nos oito anos de
governo de FHC (Laplane e Sarti, 2006: 291). Tal desenvolvimento industrial
sempre foi o carro-chefe do crescimento econômico, repita-se.
Por conseguinte, o grande desafio da reversão dos processos que levaram à
desindustrialização relativa no Brasil, ao declínio industrial precoce e ao
desemprego avassalador, é inadiável e está na urgência da ordem do dia.
Tarefa somente enfrentada por um governo determinado das forças da
soberania, do progresso social e do trabalho. Sob o risco de uma
decomposição social incontornável.
*Publicado em Revista Princípios, Nº 85, junho, 2006,

Bibliografia
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perspectiva histórica. São Paulo, Unesp, 2004.
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Pública, São Paulo, Zahar, 2006.
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266
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267
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Vozes, 1997, 2ª edição.

Notas
1) Os ícones e pioneiros da Teoria do Desenvolvimento (décadas de 1940 e
1950), incluem, em abordagens diversificadas e pelo viés centro-periferia, o
polonês da Escola Austríaca Paul Narciyz Rosenstein-Rodan, o sueco Gunnar
Myrdal, o húngaro Nicholas Kaldor, os norte-americanos Paul Baran e Albert
Hirshman, o estoniano Ragnar Nurkse, o britânico Maurice Dobb, o chileno
Raúl Presbich, o brasileiro Celso Furtado.

2) À época, “O Estado supriu a debilidade do capital privado nacional e o


desinteresse do capital forâneo: fez petróleo, aço, produtos químicos básicos,
infra-estrutura, bancos, transporte, energia e telecomunicações. Mais que isso:
nesse momento, a luta pela industrialização na América Latina passa a
constituir uma bandeira progressista em todos os países” (Cano, 2000: 21).
3) No seu clássico Sistema nacional de economia política (1841), antes de
criticar Adam Smith, diz com sabedoria List: “Se os ingleses tivessem deixado
as coisas acontecerem – laissez faire et laissez aller, como recomenda a
escola popular de Economia –, os comerciantes de da Liga Hanseática
[cidades marítimas da Alemanha que no século XIII se uniram contra os
piratas] continuariam hoje a exercer seu comércio em Londres, os belgas
estariam ainda fabricando roupas para os ingleses, a Inglaterra continuaria

268
sendo a fazenda dos hanseáticos para a criação de ovelhas, da mesma forma
como Portugal se tornou a vinha da Inglaterra, e nessa condição permaneceu
até os nossos dias” (List, 1986: 22-23). Recentemente List foi relembrado por
Ha-Joon Chang, em Chutando a escada. A estratégia do desenvolvimento em
perspectiva histórica, 2003.
4) Dados e fontes em “O colapso do mercado de trabalho”, de A. Sérgio
Barroso, Debate Sindical, nº 28, jun/jul/ago 1998.
5) Apud C. A. Barbosa de Oliveira, “A formação do mercado de trabalho no
Brasil” em Economia & Trabalho, Campinas, Unicamp/IE, 1998.
6) Não obstante as várias e recentes iniciativas do governo Lula, quando da
recessão, em meados de 2003, o desemprego na Brasil bateu na casa dos
12% na PEA (IBGE). O investimento produtivo entre 1994 e 2002, durante os
dois governos de FHC, tinha caído de 20,8% do PIB, para 18,7%; enquanto o
capital financeiro teve seus ganhos aumentados em 15% ao ano, no período
1995-2002.
7) A propaganda da demagógica idéia de uma “integração competitiva” da
economia brasileira sofreu de Cláudio S. Maciel (1998) lúcida interpretação: a
especialização industrial de então se caracterizava por: a) redução do valor
agregado em todas as cadeias industriais complexas; b) forte ocupação do
mercado de bens finais por produtos importados; c) eliminação da produção de
especialidades na área química, petroquímica, componentes e bens de capital;
d) perda de rentabilidade de setores competitivos de grande escala (papel,
celulose, siderurgia etc), barrando a sofisticação da linha de produtos.
8) Ver: “A desindustrialização como projeto”, de R. Ricupero, artigo publicado
na Folha de S.Paulo e reproduzido no site Desindustrialização Brasil, junho de
2006.)
(9) Ver a entrevista de Julio Almeida ao Jornal da Ciência (SBPC),
“Economistas alertam para desindustrialização”, 2/6/2006. Almeida é explícito
quanto à origem da desestruturação da economia brasileira: a regressão vem a
partir da “década perdida”.

269
O desenvolvimento travado*
“O problema crucial dos países subdesenvolvidos é o aumento considerável do
investimento, não a fim de gerar uma demanda efetiva - como é o caso numa
economia desenvolvida mas com subemprego – mas para acelerar a expansão
da capacidade produtiva indispensável para o rápido crescimento da renda
nacional” (Kalecki, 1983).

Este artigo foca obstáculos estruturais à retomada de um Projeto Nacional de


Desenvolvimento, apenas esboçado nos governos de Lula e no primeiro
mandato da Presidenta Dilma.

Desinvestimento X Desenvolvimento

Desde logo, no Brasil de agora, centralmente vê-se que a sentença de Kalecki


teima em reiterar os limites do subdesenvolvimento, ainda que países
periféricos tenham constituído parques industriais robustos. Por aqui a taxa de
investimento no terceiro trimestre de 2015 foi de 18,1% do PIB, inferior à do
mesmo período de 2014 (20,2%) e a menor para o período desde 2007,
quando foi de 18,8%.

Observe-se, no entanto que, Michael Roberts demonstra que a queda da taxa


de investimento é fenômeno global, inclusive anterior à crise global iniciada em
2007-2008. Nas seis grandes economias de renda mais altas (Estados Unidos,
Japão, Alemanha, França, Reino Unido e Itália) não houve “excesso de
poupança” (ou de lucros das empresas não financeiras) como argumenta o
arrogante liberal Martin Wolf, como causa da crise: “em geral houve escassez
de investimento”, diz Roberts (2015), excetuando o Japão – e China,
acrescentamos. Sim: à exceção da China, “economias desenvolvidas, mas com
subemprego” (Kalecki!).

270
Com efeito, sabe-se que a China manteve taxas de investimentos de até 45%
do PIB, contra-atacando a maré revolta da “globalização financeira”, o que
transformou Xangai no maior centro industrial do mundo!

E recorde-se sempre: de acordo com as teorias do desenvolvimento no


capitalismo, o desenvolvimento pode ser entendido como: a) o resultado de um
prolongado processo de crescimento econômico; b) junto a elevado aumento
da produtividade média e dos salários reais; c) com aceleração a taxa de
investimento para diversificar a estrutura produtiva e o emprego. É isso que
intensifica a industrialização e a urbanização, e exige mudanças progressistas
das estruturas sociais e políticas do país.

Desindustrialização

Entre nós, o processo de desindustrialização é frequentemente assinalados


como sendo parte integrante da “especialização regressiva”, notadamente nos
anos 1990 (abertura comercial e financeira), derivando ainda da interpretação
que: a) o Brasil construiu uma matriz industrial complexa: b) a trajetória da
industrialização gerou uma balança comercial estruturalmente deficitária para
bens de alto conteúdo tecnológico; c) o que teve como vetor essencial políticas
de longo ciclos de valorização cambial, associados ao endividamento externo e
aos déficits em conta corrente e baixo crescimento econômico.

Ora, segundo a FIESP (maio/2015), em 10 anos a indústria de transformação


brasileira perdeu 7 pontos percentuais (cerca de 40%) de participação no PIB,
evidenciando um grave e acelerado processo de desindustrialização. Em 2014
a participação da indústria de transformação no PIB brasileiro foi de somente
10,9%, contra 17,9% em 2004. Estima ainda que em 2015 a participação da
indústria de transformação no PIB seja de apenas 10,6%, nível semelhante ao
de meados da década 1950 – antes de diversos setores importantes da
indústria brasileira serem desenvolvidos.

Simultaneamente, estudos de Davi Kupfer indicam que o setor de serviços já


alcança cerca de 60% da mão de obra ocupada. A redução do crescimento
médio anual do PIB per capita, de 4,1% entre 1950 e 1980 para 0,9% de 1981
a 2014 - inferior a 1% ao ano, comprova a desestruturação no período.

Assim, olhando-se de 1980 para cá, a participação da indústria no PIB caiu de


28% para 9%; a participação das exportações de manufaturados na exportação
total caiu de 62% em 1990 para 35% em 2014. Em 2014, as exportações
representaram 11,5% do PIB. Foi o sexto menor percentual entre 150 países
analisados, segundo dados do Banco Mundial. O Brasil só ficou à frente de
Afeganistão, Burundi, Sudão, República Centro-Africana e Kiribati. E bem
abaixo da média global: de 29,8% do PIB.

271
Ocorre ainda que projeções não oficiais advogam ainda que a produção
industrial do país vai encolher 8,5% no acumulado de 2015 e 3,4% no próximo
ano.

Kaldor, Furtado e a regressão neoliberal

Na conceituação de Nicholas Kaldor (1966) acerca da relação entre mudança


estrutural e desenvolvimento econômico, no longo prazo, o crescimento
econômico de um país está fortemente associado ao tamanho relativo e à
diversificação de sua indústria manufatureira. Esta indústria é o motor da
produtividade da economia, porque pode gerar inovações e difundir os
transbordamentos tecnológicos ao restante do sistema econômico.

Noutro ângulo, pesquisadores consideram que, quando se atinge maturidade, a


indústria de transformação diversifica sua estrutura, onde os bens de capital
(máquinas, equipamentos e instalações) atingem entre 30% e 40% de seu
produto (Cano, 2011). Assim há indução e exigência de enorme crescimento e
diversificação dos serviços no comércio, transportes, finanças, saúde,
educação e outros.

Por sua vez, Furtado escrevera em “Brasil: a construção interrompida”: num


país em formação como o Brasil, o domínio dos interesses da grande empresa
transnacional na lógica do ordenamento econômico poderia apontar para a
inviabilização do país como projeto nacional (Furtado, 1992). Seis anos depois
sentenciava Furtado: “Sim. O processo de construção da economia brasileira
foi interrompido, aparentemente porque se acreditou que a globalização exigia
essa interrupção” (Furtado, 1998, p. 14). Aduziu a seguir que nos
encontrávamos numa situação de “completa falta de percepção histórica.
Nosso país estava em construção, e essa construção foi abandonada”,
sublinhou (idem, 1998, p. 20)

272
A involução atual

Evidencia-se a reprimarização da pauta exportadora brasileira, no processo


marcado pela perda de participação da indústria de transformação nas
exportações, em favor do aumento da participação da agricultura e da indústria
extrativa. Em 2014, a participação das exportações da indústria de
transformação foi de 61,6% das exportações totais, ao invés dos 78,2%
registrados em 2006.

Houve avanço dos setores intensivos em recursos naturais e de baixa


tecnologia na pauta exportadora da indústria de transformação. Tais setores
corresponderam a 38,4% da pauta exportadora da indústria de transformação
em 2014 (avanço de 9% na participação apresentada em 2006). Os setores
intensivos em recursos naturais e de baixa tecnologia foram responsáveis
por 69,7% do aumento das exportações da indústria no período 2014-2007.

Tal involução torna o país mais dependente dos preços internacionais das
commodities e reforça sua vulnerabilidade aos “choques negativos externos”.
Enquanto as importações da indústria de transformação aumentaram cerca
de 4 vezes mais do que as exportações entre 2014-2007, se concentrando
principalmente nos setores intensivos em Escala e de Média Alta Tecnologia.

Considerações finais
Nos marcos regressivos ao desenvolvimento, na globalização neoliberal-
financeira, configuram-se simultaneamente megas mudanças tecnológicas
propiciando atingir nova etapa da automação, na nanotecnologia, na robótica,
na inteligência artificial, nos novos padrões energéticos, na neurociência, nos
novos materiais, em novos processos de organização da produção.

A intensificação da concorrência em nível global significou para as empresas


líderes uma estrutura mais flexível e mais focada no domínio e controle sobre
ativos intangíveis (softwares; licenças; marcas patentes, direitos autorais;
direitos de exibição de filmes), ao mesmo tempo em que parte considerável das
atividades produtivas mais commoditizadas foram segmentadas, externalizadas
e transferidas para países em desenvolvimento, especialmente na região
asiática.

Noutras palavras, mudanças para uma política macroeconômica adequada


(cambial pró-crescimento, monetária e fiscal), no curto prazo, associadas à
retomada de uma política industrial, científica e tecnológica de longo prazo,
ainda assim terão que se defrontar com as mudanças no capitalismo global.
Redefinir e reforçar ainda a ampliação dos horizontes de integração produtiva e
de comércio exterior com a América do Sul (não apenas com o Mercosul).

273
*Publicado em Jornal dos Economistas/Janeiro 2016 - Corecon Rio de Janeiro

Bibliografia consultada

Barroso, A. S. “Desenvolvimento e desindustrialização”, Princípios, edição 85,


junho, 20006.

Cano, W. “A desindustrialização no Brasil”, Unicamp, Textos para a discussão,


dezembro 2012.

FIESP, janeiro 2015, “Desempenho do saldo comercial brasileiro”, José


Ricardo R. Coelho, vice-presidente da FIESP.

Furtado, C. “Brasil: a construção interrompida”. Rio de Janeiro, Paz e Terra,


1992. ____________. “Há um risco de ingovernabilidade crescente”. Entrevista
de C, Furtado, in: Visões da crise, Rio de Janeiro, Contraponto, 1998

Hiratuka, C. / Sarti, F.. “Transformações na estrutura produtiva global,


desindustrialização e desenvolvimento industrial no Brasil: uma contribuição ao
debate” - Texto para Discussão. IE/Unicamp, Campinas, n. 255, jun. 2015)
file:///C:/Users/aloi/Downloads/TD255%20

IEDI. “Manufaturas: O Brasil está se tornando um exportador marginal”,


novembro de 2015.

Kalecki, M. “A diferença entre os problemas econômicos cruciais das


economias capitalistas desenvolvidas e subdesenvolvidas”, in: “Crescimento e
ciclo das economias capitalistas”, ensaios selecionados e traduzidos por Jorge
Migliolli, Hucitec, 1983, pp. 133-140.

Roberts, M. “Exceso de ahorro o escasez de inversión?”, 21/11/2015, ver:


http://www.sinpermiso.info/textos/exceso-de-ahorro-o-escasez-de-inversion

274
Anotações sobre desindustrialização e desenvolvimento*
04\12\15
Introdução
No Brasil de 2015 enveredamos para menos de 9% na participação da
indústria de transformação no PIB (Produto Interno Bruto). O setor de serviços
já alcança cerca de 60% da mão de obra ocupada. A redução do crescimento
médio anual do PIB per capita, de 4,1% entre 1950 e 1980 para 0,9% de 1981
a 2014 - inferior a 1% ao ano, comprova a desestruturação no período.
A indústria de transformação perde espaço significativo no PIB desde meados
dos anos 1980, caindo dos 32,1% de 1986 para 19,7% do PIB em 1998. Essa
tendência somente começou a ser revertida a partir de 1999 (câmbio flutuante
e desvalorização cambial), atingindo 23,1% em 2004, já durante o governo Lula
(interpretação do IEDI, 2005).
Olhando-se de 1980 para cá, a participação da indústria no PIB caiu de 28%
para 9%; a participação das exportações de manufaturados na exportação total
caiu de 62% em 1990 para 35% em 2014.

275
Em 2014, as exportações representaram 11,5% do PIB. Foi o sexto menor
percentual entre 150 países analisados, segundo dados do Banco Mundial. O
Brasil só ficou à frente de Afeganistão, Burundi, Sudão, República Centro-
Africana e Kiribati. E bem abaixo da média global, de 29,8% do PIB.
Na verdade, observo que esfumaçou-se a ideia - difundida por setores
acadêmicos importantes - de que o ciclo concentrado em 2003-2007
(possibilitador no Brasil de volumosa exportação de commodities, expansão do
crédito e crescimento do consumo, junto à descoberta do pré-sal) era
sustentável e teria dado “adeus” aos velhos nexos desiguais centro-periferia. E,
como veremos, o pêndulo resolutivo da questão, mais uma vez (e similarmente
à passagem dos 1970 aos 1980), oscila sob o terremoto geopolítico-
geoeconômico volta a abalar a condição do projeto ao desenvolvimento
(Barroso)
Por conseguinte, o grande desafio da reversão dos processos que levaram à
desindustrialização relativa no Brasil, ao declínio industrial precoce e ao
desemprego que hoje volta a crescer, está na urgência da ordem do dia.
Traços fundamentais da experiência brasileira
Relembrando, de 1947 a 1980 - contendo as fases consideradas como sendo
“restringida” e “pesada” da industrialização” -, o Brasil obteve taxas anuais de
crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) iguais a 7,1%; onde o produto
industrial atingiu 8,5% médios; a renda per capita alcançou taxas anuais de
4,2%, enquanto a população multiplicou-se por três.
Tomando-se trinta anos (1950-80), verifica-se que o PIB cresceu 6% a.a.,
reconhecidamente um desempenho econômico somente conquistado por um
número muito restrito de países. A elevação do Brasil à invejável posição de 8ª
economia capitalista, comparativamente aos países mais industrializados do
mundo, não era fantasia.
Entre 1970 e 1974 o ritmo de expansão do emprego industrial atingiu o seu
máximo na história, computando o índice de 8,4% ao ano, no país, e 8,6% no
estado de São Paulo. Mesmo sofrendo a crise do “milagre” econômico do
regime militar (desaceleração, 1974-78), observando-se o período de 1971-78,
ainda assim a taxa de crescimento do emprego industrial foi de 5,4%. Mas
resulta daí, como se sabe, uma brutal concentração de renda característica do
padrão de desenvolvimento capitalista no Brasil.
Observe-se então uma (espantosa) particularidade nacional no interior do
movimento da industrialização e do próprio padrão de desenvolvimento:
Segundo o IEDI (6/2003), o Brasil foi o país capitalista que obteve maior taxa
de crescimento econômico do mundo entre 1900-1973: 4,9% ao ano.
Ora, de acordo com as teorias do desenvolvimento no capitalismo, o
desenvolvimento pode ser entendido como: a) o resultado de um prolongado

276
processo de crescimento econômico; b) junto a elevado aumento da
produtividade média e dos salários reais; c) com aceleração a taxa de
investimento para diversificar a estrutura produtiva e o emprego. É isso que
intensifica a industrialização e a urbanização, e exige mudanças progressistas
das estruturas sociais e políticas do país.
Desenvolvimento: Kaldor e o “spillover” tecnológico
Na explicação conceitual concreta de Nicholas Kaldor (1966) acerca da relação
entre mudança estrutural e desenvolvimento econômico, no longo prazo, o
crescimento econômico de um país está fortemente associado ao tamanho
relativo e à diversificação de sua indústria manufatureira. Esta indústria é o
motor da produtividade da economia, porque pode gerar inovações e difundir
os transbordamentos tecnológicos ao restante do sistema econômico.
Noutro ângulo, muitos pesquisadores consideram que, quando se atinge
maturidade, a indústria de transformação diversifica sua estrutura, onde os
bens de capital (máquinas, equipamentos e instalações) atingem entre 30% e
40% de seu produto. Assim há indução e exigência de enorme crescimento e
diversificação dos serviços no comércio, transportes, finanças, saúde,
educação e outros.
Regressão neoliberal: lições de Celso Furtado
Furtado escrevera em Brasil: a construção interrompida: num país em
formação como o Brasil, o domínio dos interesses da grande empresa
transnacional na lógica do ordenamento econômico poderia apontar para a
inviabilização do país como projeto nacional (Furtado, 1992). Seis anos depois
sentenciava Furtado: “Sim. O processo de construção da economia brasileira
foi interrompido, aparentemente porque se acreditou que a globalização exigia
essa interrupção” (Furtado, 1998: 14). Aduziu a seguir que nos encontrávamos
numa situação de “completa falta de percepção histórica. Nosso país estava
em construção, e essa construção foi abandonada”, sublinhou (idem, 1998: 20)
Desindustrialização e especialização regressiva no Brasil.
O processo de desindustrialização é frequentemente assinalados como sendo
parte integrante da “especialização regressiva”, notadamente nos anos 1990
(abertura comercial e financeira), derivando ainda da interpretação que: a) o
Brasil construiu uma matriz industrial complexa: b) a trajetória da
industrialização gerou uma balança comercial estruturalmente deficitária
para bens de alto conteúdo tecnológico; c) o que teve como vetor
essencial políticas de longo ciclos de valorização cambial, associados ao
endividamento externo e aos déficits em conta corrente e baixo
crescimento econômico.

Numa conclusão dramática de Tavares e Belluzzo, “Na verdade, a década de


90 caracteriza-se por uma desindustrialização, entendida como a redução do
coeficiente de valor agregado interno sobre o Valor Bruto da Produção e como

277
liquidação de postos de trabalho (mais de 1,5 milhão durante a década na
indústria manufatureira)” (2001, p. 16).
A involução atual
Evidencia-se a reprimarização da pauta exportadora brasileira, processo
marcado por perda de participação da indústria de transformação nas
exportações em favor do aumento da participação da agricultura e da indústria
extrativa. Em 2014, a participação das exportações da indústria de
transformação foi de 61,6% das exportações totais, ao invés dos 78,2%
registrados em 2006.
Houve avanço dos setores intensivos em recursos naturais e de baixa
tecnologia na pauta exportadora da indústria de transformação. Tais setores
corresponderam a 38,4% da pauta exportadora da indústria de transformação
em 2014 (avanço de 9% na participação apresentada em 2006).
Os setores intensivos em recursos naturais e de baixa tecnologia foram
responsáveis por 69,7% do aumento das exportações da indústria no período
2014-2007. Enquanto os demais setores viram suas exportações se manterem
praticamente estagnadas neste período.
As atividades que concentraram as exportações em 2014 dos setores
intensivos em recursos naturais e de baixa tecnologia foram: (i) Abate e
fabricação de produtos de carne: 31,6%; (ii) Fabricação e refino de açúcar:
17,7%; (iii) Fabricação de óleos e gorduras vegetais e animais: 15,7%.
Esta reprimarização da pauta exportadora torna o país dependente dos preços
externos das commodities e mais vulnerável aos chamados choques negativos
externos.
Por outro lado, as importações da indústria de transformação, que aumentaram
cerca de 4 vezes mais do que as exportações no período 2014-2007, se
concentraram principalmente nos setores intensivos em Escala e de Média Alta

278
Tecnologia.

279
Mudanças perturbadoras e contraditórias
Nos marcos regressivos ao desenvolvimento da globalização neoliberal-
financeira, configuram-se simultaneamente megas mudanças tecnológicas
propiciando atingir nova etapa da automação, na nanotecnologia, na robótica,
na inteligência artificial, nos novos padrões energéticos, na neurociência, nos
novos materiais, em novos processos de organização da produção. É certo,
portanto, que esses novos processos e fenômenos (novas técnicas, novos
conhecimentos, novos aportes científicos) impulsionarão as transformações
produtivas, a concentração e centralização de capitais, a concorrência na
esfera de monopólios e oligopólios, implicando necessariamente no impacto na
renda e no emprego dos trabalhadores, em qualquer parte.
Para o IEDI, o Brasil não teria a tentado ao movimento do cenário internacional,
que fragmentou o sistema de produção e globalizou o comércio internacional,
introduzindo nova lógica para a política de desenvolvimento econômico – a
lógica das cadeias globais de valor (CGV). Tal dinâmica baseia-se na
importação de bens intermediários (semimanufaturados, partes e
componentes), e na agregação de valor por meio de serviços, tecnologia,
concepção e logística para a manufatura e distribuição de forma global.
Portanto, no debate em torno da questão da desindustrialização no Brasil,
existem importantes aspectos associados às mudanças observadas na
economia mundial que ficaram de fora deste enfoque. A importância de melhor
compreender essas mudanças reside no fato de que a sua profundidade as
tornam elementos fundamentais e necessários para discutir uma estratégia
mais ampla de desenvolvimento da estrutura produtiva brasileira.
A intensificação da concorrência em nível global significou para as empresas
líderes uma estrutura mais flexível e mais focada no domínio e controle sobre
ativos intangíveis (softwares; licenças; marcas patentes, direitos autorais;
direitos de exibição de filmes), ao mesmo tempo em que parte considerável das
atividades produtivas mais commoditizadas foram segmentadas, externalizadas
e transferidas para países em desenvolvimento, especialmente na região
asiática.
A combinação dessas estratégias com políticas ativas de desenvolvimento por
parte de alguns destes países, com destaque para a China, criou um ambiente
onde surgiram novos competidores com capacitações produtivas e
manufatureiras (produção com baixo custo em diversos setores e etapas das
cadeias produtivas), ao mesmo tempo em que as empresas líderes globais dos
países centrais acentuam seu esforço para desenvolver, adquirir e dominar os
ativos chave, capazes de manter o comando sobre as cadeias de valor
internacionais, reforçando barreiras à entrada dos países em desenvolvimento
(ou subdesenvolvidos) nessa dimensão superior.
Coloca-se, portanto, a dificuldade de enfrentar a concorrência em custo
bastante acirrada, liderada especialmente pela produção chinesa, mas que
envolve outros produtores asiáticos, que combinam custos de mão-de-obra,
escala, câmbio, e incentivos governamentais bastante potentes.
280
Obstáculos e respostas
De outra parte, a competição é reforçada pelas empresas líderes dos
oligopólios globais que lançam mão de seu gigantismo mundial para reforçar
ativos, em especial os intangíveis, como marcas, canais de comercialização e
capacitações tecnológicas, capazes de comandar “cadeias de valores globais,
com maior flexibilidade em seu comprometimento de recursos”. Esse ambiente
de concorrência acirrada se tornou ainda mais feroz depois do início da crise
global em 2007-2008.
 O lento/estagnado crescimento da demanda mundial a partir de então
tem tornado a busca por mercados e a necessidade de ocupação de
capacidade uma alavanca poderosa para estimular a competição e a
mobilização de vários instrumentos para a conquista de mercados por
parte de empresas e países.
 Além disso, uma das consequências da crise foi a crescente discussão
dentro de diferentes países sobre a necessidade de retomar de maneira
mais firme a capacidade de produção manufatureira e o avanço da
inovação em áreas consideradas estratégicas.
 Os países capitalistas centrais, em especial, tentam estimular o
desenvolvimento de novos setores, mercados e áreas tecnológicas. O
desafio portanto, certamente ultrapassa o que se estabelece apenas a
partir da constatação da desindustrialização no Brasil. Ademais, fatores
apontados como solução por economistas conservadores ou neoliberais,
como elevar a poupança interna, condicionar a elevação de salários ao
aumento da produtividade e realizar maior abertura comercial, evidente
que não dão conta do problema.
 Da mesma maneira, uma mudança da taxa de câmbio compatível com o
equilíbrio industrial - questão crucial e sempre defendida por nós -,
parece ser uma condição necessária, mas não suficiente, para
enfrentar os desafios que acompanham as alterações advindas com a
globalização neoliberal.
 Aumentar a atividade e investimento em inovação e elevar a
participação de setores mais intensivos em tecnologia na estrutura
industrial, é igualmente fundamental, mas a questão principal é como,
que estratégia deve ser usada para atingir este objetivo, dada as
mudanças que vem ocorrendo na estrutura produtiva do capitalismo
global.
Considerações finais
Assim, nessas linhas gerais que enfatizam o novo cenário produtivo global,
exige-se avaliação ajustada da posição relativa do país frente às
transformações nos vários setores e cadeias produtivas mundiais, das
capacitações existentes e potenciais no sistema produtivo nacional, assim
como da adequação ou não dos instrumentos e da institucionalidade presente
hoje dentro da política industrial, científica e tecnológica para fazer frente a este
cenário de grandes obstáculos (externos e internos).
281
Noutras palavras, mudanças para uma política macroeconômica adequada
(cambial pró-crescimento, monetária e fiscal), no curto prazo, seguidas de
retomada de uma política industrial, científica e tecnológica de longo prazo,
ainda assim terão que se defrontar com as mudanças no capitalismo global, de
maneira similar às grandes mudanças ocorridas com àquelas da passagem dos
anos 1970-80. Redefinir e reforçar ainda a ampliação dos horizontes de
integração produtiva e de comércio exterior com a América do Sul (não apenas
com o Mercosul). [este último é um dos raros ponto da pauta de
reindustrialização da FIESP que não são entreguistas e extremamente lesivos
aos direitos dos trabalhadores]
Como bem disse Luis Fernandes, no recente Seminário da FINEP
(Desenvolvimento Produtivo e Inovativo - Oportunidades e Novas Políticas), no
Brasil, “a industrialização avançou muito, mas o desenvolvimento científico
tecnológico não acompanhou esse crescimento na mesma proporção”; houve
uma desconexão sistêmica, com baixo nível de integração entre os dois
processos”. Quem alertou ainda para a urgente recomposição da capacidade
de financiamento do setor, particularmente do Fundo Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). Para o presidente do
Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), Mariano Laplane, é preciso
reconhecer que o País avançou, mas é preciso ir além: “Não podemos parar no
ponto a que chegamos. Existem novos desafios, novas restrições”.
*Publicado em Portal da CTB (Central dos Trabalhadores e das Trabalhadoras
do Brasil), 04\12\2015
Bibliografia consultada
Barroso, A. Sérgio. “Desenvolvimento e desindustrialização”, Princípios, edição
85, junho, 20006.
http://grabois.org.br/portal/cdm/revista.int.php?
id_sessao=50&id_publicacao=195&id_indice=1624
Cano, Wilson. “A desindustrialização no Brasil”, Unicamp, Textos para a
discussão, dezembro 2012.
FIESP, janeiro 2015, “Desempenho do saldo comercial brasileiro”, José
Ricardo R. Coelho, vice-presidente da FIESP.
Furtado, Celso. “Brasil: a construção interrompida”. Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1992. ____________. “Há um risco de ingovernabilidade crescente”.
Entrevista de Celso Furtado, in: Visões da crise, Rio de Janeiro, Contraponto,
1998
Hiratuka, Célio / Sarti, Fernando. “Transformações na estrutura produtiva
global, desindustrialização e desenvolvimento industrial no Brasil: uma
contribuição ao debate” - Texto para Discussão. IE/Unicamp, Campinas, n. 255,
jun. 2015) file:///C:/Users/aloi/Downloads/TD255%20
282
IEDI. “Manufaturas: O Brasil está se tornando um exportador marginal”,
novembro de 2015.
Tavares, Maria da C. e Belluzzo, Luiz G. M. “Desenvolvimento no Brasil –
Relembrando um velho tema”. Texto ao Convênio IPEA/CEPAL, São Paulo,
6/4/2001.

Tópicos sobre desindustrialização e desenvolvimento: subsídios ao


documento do Comitê Central do PCdoB (Partido Comunista do Brasil) -
dezembro 2015*
I- Resumo de dados recentes

283
 No Brasil de 2015 enveredamos para menos de 9% na participação da
indústria de transformação no PIB (Produto Interno Bruto). O setor de
serviços já alcança cerca de 60% da mão de obra ocupada. A redução
do crescimento médio anual do PIB per capita, de 4,1% entre 1950 e
1980 para 0,9% de 1981 a 2014 - inferior a 1% ao ano, comprova a
desestruturação no período.
 A indústria de transformação perde espaço significativo no PIB desde
meados dos anos 1980, caindo dos 32,1% de 1986 para 19,7% do PIB
em 1998. Essa tendência somente começou a ser revertida a partir de
1999 (câmbio flutuante e desvalorização cambial), atingindo 23,1% em
2004, já durante o governo Lula (interpretação do IEDI, 2005).
 Olhando-se de 1980 para cá, a participação da indústria no PIB caiu de
28% para 9%; a participação das exportações de manufaturados na
exportação total caiu de 62% em 1990 para 35% em 2014.
 Em 2014, as exportações representaram 11,5% do PIB. Foi o sexto
menor percentual entre 150 países analisados, segundo dados do
Banco Mundial. O Brasil só ficou à frente de Afeganistão, Burundi,
Sudão, República Centro-Africana e Kiribati. E bem abaixo da média
global, de 29,8% do PIB.

 Na verdade, observo que esfumaçou-se a ideia - difundida por


setores acadêmicos importantes - de que o ciclo concentrado em
2003-2007 (possibilitador no Brasil de volumosa exportação de
commodities, expansão do crédito e crescimento do consumo, junto
à descoberta do pré-sal) era sustentável e teria dado “adeus” aos
velhos nexos desiguais centro-periferia. E, como veremos, o pêndulo
resolutivo da questão, mais uma vez (e similarmente à passagem
dos 1970 aos 1980), oscila sob o terremoto geopolítico-
geoeconômico volta a abalar a condição do projeto ao
desenvolvimento (Barroso)
 Por conseguinte, o grande desafio da reversão dos processos que
levaram à desindustrialização relativa no Brasil, ao declínio industrial
precoce e ao desemprego que hoje volta a crescer, está na urgência
da ordem do dia.

II- Traços fundamentais da experiência brasileira

 Relembrando, de 1947 a 1980 - contendo as fases consideradas como


sendo “restringida” e “pesada” da industrialização” -, o Brasil obteve
taxas anuais de crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) iguais a
7,1%; onde o produto industrial atingiu 8,5% médios; a renda per capita
alcançou taxas anuais de 4,2%, enquanto a população multiplicou-se por
três.

284
 Tomando-se trinta anos (1950-80), verifica-se que o PIB cresceu 6%
a.a., reconhecidamente um desempenho econômico somente
conquistado por um número muito restrito de países. A elevação do
Brasil à invejável posição de 8ª economia capitalista, comparativamente
aos países mais industrializados do mundo, não era fantasia.
 Entre 1970 e 1974 o ritmo de expansão do emprego industrial atingiu o
seu máximo na história, computando o índice de 8,4% ao ano, no país, e
8,6% no estado de São Paulo. Mesmo sofrendo a crise do “milagre”
econômico do regime militar (desaceleração, 1974-78), observando-se o
período de 1971-78, ainda assim a taxa de crescimento do emprego
industrial foi de 5,4%. Mas resulta daí, como se sabe, uma brutal
concentração de renda característica do padrão de desenvolvimento
capitalista no Brasil.
 Observe-se então uma (espantosa) particularidade nacional no interior
do movimento da industrialização e do próprio padrão de
desenvolvimento: Segundo o IEDI (6/2003), o Brasil foi o país capitalista
que obteve maior taxa de crescimento econômico do mundo entre 1900-
1973: 4,9% ao ano.
 Ora, de acordo com as teorias do desenvolvimento no capitalismo, o
desenvolvimento pode ser entendido como: a) o resultado de um
prolongado processo de crescimento econômico; b) junto a elevado
aumento da produtividade média e dos salários reais; c) com aceleração
a taxa de investimento para diversificar a estrutura produtiva e o
emprego. É isso que intensifica a industrialização e a urbanização, e
exige mudanças progressistas das estruturas sociais e políticas do país.
 Na explicação conceitual concreta de Nicholas Kaldor (1966) acerca da
relação entre mudança estrutural e desenvolvimento econômico, no
longo prazo, o crescimento econômico de um país está fortemente
associado ao tamanho relativo e à diversificação de sua indústria
manufatureira. Esta indústria é o motor da produtividade da economia,
porque pode gerar inovações e difundir os transbordamentos
tecnológicos ao restante do sistema econômico.

 Muitos pesquisadores consideram que, quando se atinge maturidade, a


indústria de transformação diversifica sua estrutura, onde os bens de
capital (máquinas, equipamentos e instalações) atingem entre 30% e
40% de seu produto. Assim há indução e exigência de enorme
crescimento e diversificação dos serviços no comércio, transportes,
finanças, saúde, educação e outros.
 Desindustrialização e especialização regressiva no Brasil. O
processo de desindustrialização é frequentemente assinalados como
sendo parte integrante da “especialização regressiva”, notadamente nos
anos 1990 (abertura comercial e financeira), derivando ainda da
interpretação que: a) o Brasil construiu uma matriz industrial
complexa: b) a trajetória da industrialização gerou uma balança

285
comercial estruturalmente deficitária para bens de alto conteúdo
tecnológico; c) o que teve como vetor essencial políticas de longo
ciclos de valorização cambial, associados ao endividamento
externo e aos déficits em conta corrente e baixo crescimento
econômico.

III - Quadro atual


Evidencia-se a reprimarização da pauta exportadora brasileira, processo
marcado por:

 Perda de participação da indústria de transformação nas exportações


em favor do aumento da participação da agricultura e da indústria
extrativa. Em 2014, a participação das exportações da indústria de
transformação foi de 61,6% das exportações totais, ao invés dos
78,2% registrados em 2006.
 Houve avanço dos setores intensivos em recursos naturais e de baixa
tecnologia na pauta exportadora da indústria de transformação. Tais
setores corresponderam a 38,4% da pauta exportadora da indústria de
transformação em 2014 (avanço de 9% na participação apresentada em
2006).
 Os setores intensivos em recursos naturais e de baixa tecnologia foram
responsáveis por 69,7% do aumento das exportações da indústria no
período 2014-2007. Enquanto os demais setores viram suas
exportações se manterem praticamente estagnadas neste período.
 As atividades que concentraram as exportações em 2014 dos setores
intensivos em recursos naturais e de baixa tecnologia foram: • Abate e
fabricação de produtos de carne: 31,6%; • Fabricação e refino de açúcar:
17,7%; • Fabricação de óleos e gorduras vegetais e animais: 15,7%.
 Esta reprimarização da pauta exportadora torna o país dependente dos
preços externos das commodities e mais vulnerável aos chamados
choques negativos externos.
 Por outro lado, as importações da indústria de transformação, que
aumentaram cerca de 4 vezes mais do que as exportações no período
2014-2007, se concentraram principalmente nos setores intensivos em

286
Escala e de Média Alta Tecnologia.

IV- Mudanças perturbadoras, obstáculos e respostas

287
Configuram-se atualmente megas mudanças tecnológicas propiciando atingir
nova etapa da automação, na nanotecnologia, na robótica, na inteligência
artificial, nos novos padrões energéticos, na neurociência, nos novos materiais,
em novos processos de organização da produção. É certo, portanto, que esses
novos processos e fenômenos (novas técnicas, novos conhecimentos, novos
aportes científicos) impulsionarão as transformações produtivas, a
concentração e centralização de capitais, a concorrência na esfera de
monopólios e oligopólios, implicando necessariamente no impacto na renda e
no emprego dos trabalhadores, em qualquer parte.
 Para o IEDI, o Brasil não teria a tentado ao movimento do cenário
internacional, que fragmentou o sistema de produção e globalizou o
comércio internacional, introduzindo nova lógica para a política de
desenvolvimento econômico – a lógica das cadeias globais de valor
(CGV). Tal dinâmica baseia-se na importação de bens intermediários
(semimanufaturados, partes e componentes), e na agregação de valor
por meio de serviços, tecnologia, concepção e logística para a
manufatura e distribuição de forma global.
 Portanto, no debate em torno da questão da desindustrialização no
Brasil, existem importantes aspectos associados às mudanças
observadas na economia mundial que ficaram de fora deste enfoque. A
importância de melhor compreender essas mudanças reside no fato de
que a sua profundidade as tornam elementos fundamentais e
necessários para discutir uma estratégia mais ampla de
desenvolvimento da estrutura produtiva brasileira.
 A intensificação da concorrência em nível global significou para as
empresas líderes uma estrutura mais flexível e mais focada no domínio
e controle sobre ativos intangíveis (softwares; licenças; marcas patentes,
direitos autorais; direitos de exibição de filmes), ao mesmo tempo em
que parte considerável das atividades produtivas mais commoditizadas
foram segmentadas, externalizadas e transferidas para países em
desenvolvimento, especialmente na região asiática.
 A combinação dessas estratégias com políticas ativas de
desenvolvimento por parte de alguns destes países, com destaque para
a China, criou um ambiente onde surgiram novos competidores com
capacitações produtivas e manufatureiras (produção com baixo custo
em diversos setores e etapas das cadeias produtivas), ao mesmo tempo
em que as empresas líderes globais dos países centrais acentuam seu
esforço para desenvolver, adquirir e dominar os ativos chave, capazes
de manter o comando sobre as cadeias de valor internacionais,
reforçando barreiras à entrada dos países em desenvolvimento (ou
subdesenvolvidos) nessa dimensão superior.
 Coloca-se, portanto, a dificuldade de enfrentar a concorrência em custo
bastante acirrada, liderada especialmente pela produção chinesa, mas
que envolve outros produtores asiáticos, que combinam custos de mão-
de-obra, escala, câmbio, e incentivos governamentais bastante potentes.

288
 De outra parte, a competição é reforçada pelas empresas líderes dos
oligopólios globais que lançam mão de seu gigantismo mundial para
reforçar ativos, em especial os intangíveis, como marcas, canais de
comercialização e capacitações tecnológicas, capazes de comandar
“cadeias de valores globais, com maior flexibilidade em seu
comprometimento de recursos”. Esse ambiente de concorrência acirrada
se tornou ainda mais feroz depois do início da crise global em 2007-
2008.
 O lento/estagnado crescimento da demanda mundial a partir de então
tem tornado a busca por mercados e a necessidade de ocupação de
capacidade uma alavanca poderosa para estimular a competição e a
mobilização de vários instrumentos para a conquista de mercados por
parte de empresas e países.
 Além disso, uma das consequências da crise foi a crescente discussão
dentro de diferentes países sobre a necessidade de retomar de maneira
mais firme a capacidade de produção manufatureira e o avanço da
inovação em áreas consideradas estratégicas.
 Os países capitalistas centrais, em especial, tentam estimular o
desenvolvimento de novos setores, mercados e áreas tecnológicas. O
desafio portanto, certamente ultrapassa o que se estabelece apenas a
partir da constatação da desindustrialização no Brasil. Ademais, fatores
apontados como solução por economistas conservadores ou neoliberais,
como elevar a poupança interna, condicionar a elevação de salários ao
aumento da produtividade e realizar maior abertura comercial, evidente
que não dão conta do problema.
 Da mesma maneira, uma mudança da taxa de câmbio compatível com o
equilíbrio industrial - questão crucial e sempre defendida por nós -,
parece ser uma condição necessária, mas não suficiente, para
enfrentar os desafios que acompanham as alterações advindas com a
globalização neoliberal.
 Aumentar a atividade e investimento em inovação e elevar a
participação de setores mais intensivos em tecnologia na estrutura
industrial, é igualmente fundamental, mas a questão principal é como,
que estratégia deve ser usada para atingir este objetivo, dada as
mudanças que vem ocorrendo na estrutura produtiva do capitalismo
global.
Considerações finais
 Assim, nessas linhas gerais que enfatizam o novo cenário produtivo
global, exige-se avaliação ajustada da posição relativa do país frente às
transformações nos vários setores e cadeias produtivas mundiais, das
capacitações existentes e potenciais no sistema produtivo nacional,
assim como da adequação ou não dos instrumentos e da
institucionalidade presente hoje dentro da política industrial, científica

289
e tecnológica para fazer frente a este cenário de grandes obstáculos
(externos e internos).
 Noutras palavras, mudanças para uma política macroeconômica
adequada (cambial pró-crescimento, monetária e fiscal), no curto
prazo, seguidas de retomada de uma política industrial, científica e
tecnológica de longo prazo, ainda assim terão que se defrontar com as
mudanças no capitalismo global, de maneira similar às grandes
mudanças ocorridas com àquelas da passagem dos anos 1970-80.
Redefinir e reforçar ainda a ampliação dos horizontes de integração
produtiva e de comércio exterior com a América do Sul (não apenas com
o Mercosul). [este último é um dos raros ponto da pauta de
reindustrialização da FIESP que não são entreguistas e extremamente
lesivos aos direitos dos trabalhadores]
 Como bem disse Luis Fernandes, no recente Seminário da FINEP
(Desenvolvimento Produtivo e Inovativo - Oportunidades e Novas
Políticas), no Brasil, “a industrialização avançou muito, mas o
desenvolvimento científico tecnológico não acompanhou esse
crescimento na mesma proporção”; houve uma desconexão sistêmica,
com baixo nível de integração entre os dois processos”. Quem alertou
ainda para a urgente recomposição da capacidade de financiamento
do setor, particularmente do Fundo Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (FNDCT). Para o presidente do Centro de
Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), Mariano Laplane, é preciso
reconhecer que o País avançou, mas é preciso ir além: “Não podemos
parar no ponto a que chegamos. Existem novos desafios, novas
restrições”.
*Escrito em dezembro de 2015, texto não publicado

Bibliografia consultada
Barroso, A. Sérgio. “Desenvolvimento e desindustrialização”, Princípios, edição
85, junho, 20006.
http://grabois.org.br/portal/cdm/revista.int.php?
id_sessao=50&id_publicacao=195&id_indice=1624
Cano, Wilson. “A desindustrialização no Brasil”, Unicamp, Textos para a
discussão, dezembro 2012.
FIESP, janeiro 2015, “Desempenho do saldo comercial brasileiro”, José
Ricardo R. Coelho, vice-presidente da FIESP
Hiratuka, Célio / Sarti, Fernando. “Transformações na estrutura produtiva
global, desindustrialização e desenvolvimento industrial no Brasil: uma

290
contribuição ao debate” - Texto para Discussão. IE/Unicamp, Campinas, n. 255,
jun. 2015) file:///C:/Users/aloi/Downloads/TD255%20
IEDI. “Manufaturas: O Brasil está se tornando um exportador marginal”,
novembro de 2015.

291

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