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A ATUALIDADE DE MARX NA ANÁLISE DO CAPITALISMO

Carla Djaine Teixeira


Marcia Alves de Mello Silva 1

INTRODUÇÃO

A análise do capitalismo e a produção das desigualdades sociais tem sido um dos


maiores objetos de estudo das Ciências Sociais. Autores clássicos como Karl Marx
investigaram a gênese desse problema no desenvolvimento histórico das sociedades humanas,
nas formas e relações de produção. O pensamento marxista ainda hoje é presente na
interpretação da realidade social, sobretudo na crítica ao sistema capitalista, partindo do
antagonismo de classe, expropriação do trabalho e necessidade de ruptura com ordem
econômica vigente.
As crises econômicas e políticas tanto no contexto da pandemia como fora dele podem
ser compreendidas através de categorias marxistas. Tendo isso em vista, o presente ensaio tem
como objetivo discutir a atualidade do pensamento marxista para análise crítica do
capitalismo. Partimos da afirmação que, historicamente, o capitalismo se fundamenta na
produção desigualdade e no regime de exploração humana, e o Estado, por sua vez, atua como
aparelho das classes dominantes. Juntos, esses dois elementos formam um sistema que se
retroalimenta e representa os interesses das elites.
Nosso ensaio conta com três seções: a primeira, intitulada “Contribuições do
Manifesto Comunista para a crítica ao capitalismo”, a segunda “Crise do capitalismo: o que
nos diz o marxismo” e, por último, “Considerações sobre o capitalismo e a pandemia da
Covid-19”, que apresentaremos as considerações finais, discutindo a relação entre o sistema
de produção capitalista e a eclosão da Covid-19. Como aporte teórico, utilizamos, sobretudo,
as seguintes obras: O Manifesto do Partido Comunista (2010), e alguns capítulos de O
Capital - Livro I (2013) e autores marxistas contemporâneos que serão referenciados ao longo
do texto.
A pretensão do ensaio é relacionar as categorias específicas da teoria marxista com a
realidade social atual, revisitando obras de Marx e de autores marxistas. Acreditamos que,
embora os escritos de Marx apresentem lacunas, e as categorias precisam ser atualizadas
levando em consideração o contexto histórico da época, a sua ontologia do trabalho e a

1
Mestrandas do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS) da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (UFRN), matriculadas na disciplina Teorias Sociais Clássicas (2021.1).
2

análise do modo de produção capitalista, nos fornece bases sólidas para compreender os
problemas sociais, econômicos e políticos das sociedades modernas e contemporâneas.
Diante do cenário de crise econômica e política agravada pela pandemia da Covid-19,
analisar o modo de organização capitalista é fundamental para compreendermos a gênese
destes problemas e suscitarmos o debate sobre a necessidade da superação do sistema
capitalista através da organização da classe trabalhadora. Com isso, defendemos a atualidade
do pensamento marxista, e o seu pioneirismo na análise crítica do capitalismo.

CONTRIBUIÇÕES DO MANIFESTO COMUNISTA PARA A CRÍTICA AO


CAPITALISMO
O manifesto descreve, veementemente, como o desenvolvimento da sociedade
burguesa que tornou o operário um escravo assalariado explorado pelo
capitalista. Laski, Harold2

Marx e o marxismo são essenciais para formulação crítica sobre o capitalismo, nesse
sentido, iniciaremos revisitando a obra Manifesto Comunista, redigido por Karl Marx e
Friedrich Engels, publicado pela primeira 1848, em Londres, com o título de O Manifesto do
Partido Comunista.
O Manifesto Comunista é um documento teórico-político, redigido a pedido dos
dirigentes da “Liga dos Justos”, um documento programático, formulado em meio às lutas e
revoluções urbanas de 1847 e 1848. A obra não foi apenas um panfleto, um programa para o
partido, teve grande repercussão e foi publicizada em diversos países, tornando-se um
documento histórico.
No prefácio da edição alemã de 1872, vinte e cinco anos após a primeira publicação,
Marx e Engels3 destacam que “por mais que tenham mudado as condições nos últimos 25
anos, os princípios gerais expressos nesse Manifesto conservam, em seu conjunto, toda sua
exatidão” e que sua aplicação prática dependerá das condições históricas vigentes.
Destacamos que os princípios e tendências sinalizados no Manifesto foram desenvolvidas por
Marx no que se considera a sua principal obra: O Capital.

2
Communist Manifesto - Social Landmark. Londres, George Allen & Unwin Ltd., 1961. Traduzido por Regina
Lúcia F. de Moraes para a Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1978. publicado na edição do Manifesto da editora
Boitempo, 2010. MARX, Karl; Engels, Friedrich. Manifesto Comunista, Tradução de Álvaro Pina e Ivana
Jinkings. 1ed. revistada. São Paulo: Boitempo, 2010.
3
Prefácio da edição alemã de 1872, publicada na edição brasileira da editora Boitempo em 2010.
3

Para professor José Paulo Netto4, o Manifesto é um chamamento político, uma unidade
entre teoria e prática. É uma convocação para a luta e a intensidade da luta de classe é um
elemento presente na sociedade capitalista, assim, pode ser considerado um ponto de partida
para uma análise crítica das sociedades burguesas. O Manifesto é um documento que assume
a perspectiva de classe, onde a classe operária é vista como sujeito político.
Este documento histórico que em linhas gerais aponta características e tendências do
desenvolvimento do capitalismo, é uma obra que oferece ao leitor, não todas as respostas, mas
uma crítica rigorosa da modernidade capitalista:
[...] não encontrará nesse texto respostas para todas as suas questões, mas poderá
notar que ele oferece, com uma antecipação de mais de um século, um painel –
crítico e rigoroso – da modernidade capitalista. A mundialização das relações
capitalistas, a mercantilização universal das relações sociais, o assalariamento
generalizado, a insegurança social institucionalizada, a constituição de um mercado
global, a gravitação urbana, o significado das comunicações velozes, o
desenvolvimento científico e tecnológico – todo esse complexo aparece sintetizado
na apreciação do mundo burguês, caracterizado pela “subversão contínua da
produção, esse abalo constante de todo o sistema social, essa agitação permanente”.
(NETTO, 2013, p. 25).

Marx e Engels apontam tendências do desenvolvimento da sociedade burguesa, uma


antecipação não utópica da ordem burguesa e de consequências para a sociedade. Não é à toa
que o fato de ler o Manifesto provoque uma relação direta com situações que vivenciamos na
sociedade capitalista contemporânea. Seguimos destacando ideias fundamentais que
consideramos pertinentes e que imprimem o caráter clássico e atual do Manifesto, que são as
lutas de classe, burguesia, proletariado, Estado e desenvolvimento da sociedade capitalista.
Ao colocar que a “história de todas as sociedades é a história de lutas de classes”, os
autores trazem a discussão do antagonismo de classe como um elemento presente em vários
períodos históricos, exemplificado pelas relações entre “homem livre x escravo”, passando
pelo “senhor feudal e servo” e podendo ser resumido como os autores pontuam, de forma
simples e direta, pela relação entre “opressores e oprimidos” que podemos chamar de
burguesia x proletariado e capitalista x trabalhador.
A sociedade burguesa não aboliu o antagonismo de classe e ainda estabeleceu
condições para aparecimento de novas classes, para Marx e Engels (2010, p.40): “Não fez
mais do que estabelecer novas classes, novas condições de opressão, novas formas de luta em
lugar das que existiam no passado”, e seguiu concentrando meios de produção e centralização

4
José Paulo Netto é um intelectual brasileiro marxista, em 2020 lançou uma biografia sobre Karl Marx; Ver em
NETTO, José Paulo. Karl Marx: Uma Biografia.2020, p. 195;
Ver vídeo em https://www.youtube.com/watch?v=fmbMHOOBzwQ; Acesso em 16 jul 2021.
4

política, em apenas um século desenvolveu forças produtivas, superiores as gerações


passadas.
Com o desenvolvimento da burguesia e do capital, em paralelo, desenvolve-se também
o proletariado, que constitui “a classe dos operários modernos, os quais só vivem enquanto
têm trabalho e só tem trabalho enquanto seu trabalho aumenta o capital” (MARX; ENGELS,
2010, p.46). Os proletários não possuem propriedade e não são os donos dos meios de
produção, a propriedade que possuem é a sua força de trabalho que se transforma em
mercadoria na sociedade capitalista moderna.
Essa condição é agravada com o desenvolvimento do capital financeiro que é “ a
condição essencial para existência e supremacia da riqueza nas mãos de particulares, a
formação e crescimento do capital; a condição de existência do capital é o trabalho
assalariado” (MARX; ENGELS, 2010, p. 50). Nesse contexto, o Estado Moderno assume o
papel de um agente que viabiliza a ordem burguesa e “não é senão um comitê para gerir os
negócios comuns de toda a classe burguesa” (MARX; ENGELS, 2010, p. 42).
É excepcional a precisão que a descrição da relação capital x trabalho feita pelos
autores tenha a capacidade de transformar um documento em um relato histórico, e em um
instrumento de luta da classe trabalhadora cuja essência pode ser vista até hoje nos
movimentos sociais e sindicais.

CRISE DO CAPITALISMO: O QUE NOS DIZ O MARXISMO

O movimento da sociedade capitalista, repleto de contradições, revela-se ao


burguês prático, de modo mais contundente, nas vicissitudes do ciclo periódico
que a indústria moderna perfaz e em seu ponto culminante: a crise geral. Esta já
se aproxima novamente, embora ainda se encontre em seus estágios iniciais.
Karl Marx, 18675

Nesta seção discutimos concepções centrais da teoria marxista para a compreensão da


consolidação e crise do capitalismo. Para isso, nos fundamentamos sobretudo no Livro I de O
Capital para discorrer sobre as categorias de expropriação do trabalho, mais-valia e
acumulação, apresentando, na sequência, os limites da produção de lucro do sistema
capitalista que, em seu curso natural e cíclico, dão origem às crises.
Para Marx (2013), o ponto de partida para o regime de produção capitalista foi a
expropriação da terra. Para formar uma massa de trabalhadores assalariados nas sociedades
pré-capitalistas e consolidar esse regime, a expropriação de terras levou os camponeses a

5
MARX, 2013, p.130.
5

migrarem para o capital agrícola e para a indústria com a finalidade de satisfazer suas
necessidades básicas de alimentação e moradia.
Uma das condições básicas para o surgimento do sistema capitalista foi a separação
entre os trabalhadores e os meios pelos quais podiam realizar seu trabalho e garantir a sua
sobrevivência. Assim, o primeiro passo rumo a consolidação do regime de exploração do
homem pelo homem e da desigualdade social teria sido a acumulação primitiva.
Esse processo de acumulação primitiva foi marcado pela violência e pela usurpação
das terras dos camponeses que tiveram suas terras invadidas e suas casas destruídas para a
expansão do capital agrícola. No capítulo intitulado A assim chamada acumulação primitiva,
de O Capital - Livro I, Marx (2013) descreve a ordem da acumulação primitiva, a
expropriação do trabalho que culmina na miséria daqueles que não possuem os meios de
produção e precisam vender a sua força de trabalho:
Deu-se, assim, que os primeiros acumularam riquezas e os últimos acabaram sem ter
nada para vender, a não ser sua própria pele. E desse pecado original datam a
pobreza da grande massa, que ainda hoje, apesar de todo seu trabalho, continua a
não possuir nada para vender a não ser a si mesma, e a riqueza dos poucos, que
cresce continuamente, embora há muito tenham deixado de trabalhar. (MARX,
2013, p.960).

Nas sociedades capitalistas modernas, o fundamento do capital, isto é, a exploração


da força de trabalho permanece inalterado, enquanto a acumulação de riquezas passa a possuir
características mais sutis através da produção das mercadorias que dão origem ao lucro dos
empresários. As mercadorias assumem um papel central, o cerne do modo de produção e
reprodução do capital, que pode ser definida, de acordo com Marx (2013, p.157) como “um
objeto externo, uma coisa que, por meio de suas propriedades, satisfaz necessidades humanas
de um tipo qualquer [...] do estômago ou da imaginação”.
Por assumir diferentes formas e características o valor das mercadorias pode ser
atribuído de acordo com o seu valor de uso6 e/ou o seu valor de troca7, no entanto, com o
processo de circulação e metamorfose das mercadorias elas passam a ser mediadas pelo
dinheiro e ter seu valor definido pelo tempo de trabalho socialmente necessário para a sua
produção. Com isso, temos duas concepções distintas dentro do capitalismo, o dinheiro como
um simples mediador da circulação de mercadorias, e o dinheiro enquanto capital - passível
de concentração e acúmulo de riqueza.

6
Valor de uso: “formam o conteúdo material da riqueza, qualquer que seja a forma social [...] eles constituem,
ao mesmo tempo, os suportes materiais do valor de troca”. (MARX, 2013, p.158).
7
Valor de troca: aparece inicialmente como a relação quantitativa, a proporção na qual valores de uso de um
tipo são trocados por valores de uso de outro tipo.” (Ibidem)
6

Para que seja possível produzir lucro aos donos dos meios de produção é necessário
que o circulação das mercadorias assumam a seguinte forma: D-M-D transformação de
dinheiro (D) em mercadoria (M) convertida em mais dinheiro (D) que serve como valor de
troca. Esta forma, no entanto, difere da forma de circulação imediata e simples das
mercadorias que segue o fluxo de transformação da mercadoria (M) em dinheiro (D)
convertido em mais mercadoria (M), M-D-M, que serve como valor de uso. (MARX, 2013)
Essa distinção entre valor de uso e troca na circulação das mercadorias pode fazer
emergir a possibilidade de crises do capital, uma vez que valor de uso e troca formam uma
antítese decorrente da compra e venda das mercadorias. Marx (2013) parte da crítica à
concepção de que o mercado, através da circulação de mercadorias, poderia apresentar um
equilíbrio pela unidade entre compra e venda. Em O Capital, Marx (2013, p. 254) afirma que:

a antítese, imanente à mercadoria, entre valor de uso e valor, na forma do


trabalho privado que ao mesmo tempo tem de se expressar como trabalho
imediatamente social, do trabalho particular e concreto que ao mesmo tempo é
tomado apenas como trabalho geral abstrato, da personificação das coisas e
coisificação das pessoas – essa contradição imanente adquire nas antíteses da
metamorfose da mercadoria suas formas desenvolvidas de movimento. Por isso,
tais formas implicam a possibilidade de crises, mas não mais que sua
possibilidade.

Essa interdependência entre compra e venda mediada pelo dinheiro assume a


possibilidade de crise na medida em que os produtores dependem dos possuidores de dinheiro
para completar o ciclo da mercadoria. Aliado a essa dependência acresce um outro problema
dessa metamorfose: o dinheiro pode apresentar um fim em si mesmo ao invés de mediador da
circulação de mercadoria. No entanto, a discussão sobre a possibilidade da natureza das
metamorfoses gerarem crises do capitalismo não é aprofundada por Marx no Livro I de O
capital, uma vez que tal desenvolvimento ainda não é possível pelo conjunto de relações
ainda não existirem. Segundo Harvey (2018), este é um convite feito por Marx para que o
leitor possa refletir sobre a possibilidade de surgirem problemas e crises decorrentes da
metamorfose das mercadorias.
Nesse contexto, o trabalho também assume um caráter de mercadoria, podendo ser
tanto valor de troca – em que os homens vendem a sua força de trabalho em troca de um
salário que garanta as suas necessidades – como valor de uso – em que os donos dos meios de
produção compram essa força de trabalho para usá-la na produção. Uma vez que a condição
necessária para o surgimento do capital era a separação entre os homens e os meios de
produção, o trabalho passa a ser a condição de existência dos homens, de modo que “o ponto
7

de partida do desenvolvimento que deu origem tanto ao trabalhador assalariado como ao


capitalista foi a subjugação do trabalhador” (MARX, 2013, p.963).
Sendo o trabalho a condição de existência do homem, a venda de sua força de trabalho
em troca de um salário, a princípio, pode parecer legítima, e, em alguns casos, até justa.
Entretanto, o valor das mercadorias que o trabalhador pode produzir durante a sua jornada é
superior ao valor da força de trabalho empregada. Tal fato significa que o salário dos
trabalhadores está diretamente condicionado ao que Marx se refere como “roubo de tempo
alheio”, ou seja, o não pagamento de uma parte da jornada de trabalho a um indivíduo
(MARX, 2013).
O tempo de trabalho não pago aos trabalhadores que dá origem a mais-valia é um dos
eixos estruturantes do capital, e uma condição básica para gerar mais-valor. Este conceito,
definido por Marx como o tempo sugado pelo capitalista é convertido em mais mercadorias e,
consequentemente, em mais lucros para os empresários. Para aumentar a produção de uma
mercadoria e gerar mais-valor, pode-se seguir dois caminhos: aumentar a jornada de trabalho
para produzir mais-valia absoluta; e/ou diminuir a força ou o valor do trabalho humano
investido na produção através da elevação das forças produtivas, aumentando o ritmo de
trabalho, e gerando a mais-valia relativa (MARX, 2013).
O processo de expansão do capital levado pela busca constante por lucro é ameaçado
pelas limitações da própria natureza humana, uma vez que o homem, diferente da máquina,
precisa de tempo para satisfazer suas necessidades básicas, e por suas limitações físicas, não
acompanha o fluxo de desenvolvimento das forças produtivas (MACHADO, 2019). Diante
disso, a produção da mais-valia e, consequentemente, do mais-valor torna-se cada vez mais
difícil de ser alcançada (MARX, 2013).
Decorre disso um segundo problema: se por um lado, o sistema de produção
capitalista se expande e concentra riqueza nas mãos de poucos indivíduos, e, por outro lado,
cria pobreza e miséria para as camadas populares, suas crises, para além dos limites da
produção de lucro por meio da mais-valia, são crises de superprodução e subconsumo que
apresentam ciclos de expansão e contração.
A expansão súbita e intermitente da escala de produção é o pressuposto de sua
contração repentina; esta última, por sua vez, provoca uma nova expansão, a qual
é impossível na ausência de material humano disponível, isto é, se o número dos
trabalhadores não aumenta independentemente do crescimento absoluto da
população [...] Tão logo iniciam esse movimento de expansão e contração
alternadas, ocorre com a produção exatamente o mesmo que com os corpos
celestes, os quais, uma vez lançados em determinado movimento, repetem-no
sempre. (MARX, 2013, p. 860)
8

Assim, para garantir o seu lucro e a reprodução do capital, esse sistema mais do que
nunca precisa de um número cada vez maior de pessoas vivendo em condições de
subsistência. Esses indivíduos fazem parte da categoria definida como superpopulação
relativa, ou exército industrial reserva, que constitui uma condição necessária para a
existência do modo de produção capitalista.
Nas oscilações do ciclo industrial esse exército reserva se transforma no principal
agente de reprodução do capital (MARX, 2013). Nas palavras de Marx (2013, p.873) esses
trabalhadores formam
uma parte do exército ativo de trabalhadores, mas com ocupação totalmente
irregular. Desse modo, ela proporciona ao capital um depósito inesgotável de
força de trabalho disponível. Sua condição de vida cai abaixo do nível médio
normal da classe trabalhadora, e é precisamente isso que a torna uma base ampla
para certos ramos de exploração do capital. Suas características são o máximo de
tempo de trabalho e o mínimo de salário.

[...] Mas quanto maior for esse exército de reserva em relação ao exército ativo
de trabalhadores, tanto maior será a massa da superpopulação consolidada, cuja
miséria está na razão inversa do martírio de seu trabalho. Por fim, quanto maior
forem as camadas lazarentas da classe trabalhadora e o exército industrial de
reserva, tanto maior será o pauperismo oficial. Essa é a lei geral, absoluta, da
acumulação capitalista. [..] A primeira palavra desse ajuste é a criação de uma
superpopulação relativa, ou exército industrial de reserva; a última palavra, a
miséria de camadas cada vez maiores do exército ativo de trabalhadores e o peso
morto do pauperismo. (MARX, 2013, p.875)

Na medida em que o capital é acumulado, a remuneração e as condições de trabalho


dos trabalhadores tendem a piorar. Mesmo nas situações de aumento de salário, o valor da
remuneração está alinhado à dinâmica do capital, de modo que esse aumento não implica na
diminuição do lucro do capitalista, o que ocorre é uma diminuição da apropriação do trabalho
não pago ao trabalhador. Nesses casos, há apenas uma relativa melhora das condições da
classe trabalhadora sem haver uma mudança real.
De acordo com Marx (2013, p. 884), “a classe trabalhadora continua ‘pobre’, mas
agora é ‘menos pobre’ na proporção em que produz um “aumento inebriante de riqueza e
poder” para a classe proprietária”. Em contrapartida, nos casos oscilações de preços do
mercado, por exemplo, existem diferenças significativas entre o modo que estas oscilações
afetam o lucro do capitalista e o salário do trabalhador, de modo que este último é muito mais
afetado: “com a gravitação do preço de mercado para o preço natural, o trabalhador perde,
portanto, ao máximo e incondicionalmente”. (MARX, 2004, p.24. Grifos do autor).
Isso significa que independente dos momentos de crise do capitalismo, esse modelo
tem como fonte de lucro (mais-valia que gera mais-valor) a exploração do trabalhador, que
terá a sua força ou jornada de trabalho apropriada pelo capitalista em troca de um salário que
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será suficiente apenas para que a sua autoconservação e reprodução seja garantida (MARX,
2013).
Os pólos dessa relação de produção (centralização de riqueza de um lado, e aumento
da miséria de outro) são o cerne das crises do capital e seria responsável pelo seu colapso na
concepção marxista. Dessa forma, o antagonismo entre a classe trabalhadora e os donos dos
meios de produção, trariam fim ao regime capitalista por meio da revolta das classes
populares. Para Marx (2013, p.1013-1014), assim como na origem do capitalismo, "tratava-se
da expropriação da massa do povo por poucos usurpadores; aqui, trata-se da expropriação de
poucos usurpadores pela massa do povo.”
Ao contrário de Marx, alguns teóricos marxianos e marxistas contemporâneos, como
David Harvey, interpretam as crises do capitalismo não como um evento responsável pelo seu
fim, ou seja, como uma barreira à expansão e reprodução do capital, mas como algo inerente à
sua natureza e com capacidade de constante superação (MACHADO, 2019). Em vez da
negação do sistema capitalista, isto é, a sua extinção, o caráter cíclico das crises do
capitalismo tem mostrado uma grande capacidade de adaptação a esses cenários.
Essa capacidade de superação das crises financeiras indica o caráter estrutural da crise
do capital que, ao longo dos anos, tem se manifestado na esfera política e social, sobretudo
com avanço do neoliberalismo (ANTUNES, 2009). Em síntese, podemos dizer que a crise do
capitalismo é, antes de tudo, uma crise social e política, que utiliza o Estado como um
aparelho para a garantia dos interesses econômicos e ideológicos daqueles que formam as
classes hegemônicas.

CONSIDERAÇÕES SOBRE O CAPITALISMO E A PANDEMIA DA COVID-19

Se eu quisesse ser antropomórfico e metafórico sobre isso, concluiria que a


COVID-19 é a vingança da natureza por mais de quarenta anos de maus-tratos
grosseiros e abusivos da natureza sob a tutela de um extrativismo neoliberal
violento e desregulado.
David Harvey, 2020.

Assim como a exploração do trabalho, a exploração dos recursos naturais é uma das
condições para a existência do capitalismo. Dessa forma, a pandemia da COVID-19 pode ser
interpretada como um fruto da exploração do sistema de produção capitalista, uma vez que o
epicentro da contaminação do SARS-CoV-2 pode ter sido a cidade de Wuhan, na China,
através da comercialização de animais silvestres para o consumo humano (DUARTE, 2020).
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A eclosão da pandemia trouxe à tona, de maneira ainda mais forte, as consequências


de dois problemas inerentes à natureza do capital: a exploração do meio ambiente e a
exploração do trabalho. Se por um lado fomos capazes de observar ao redor do mundo uma
relativa melhora das condições ambientais provocadas pelo isolamento social, como a
diminuição da poluição do ar e da água, por outro lado mostrou de maneira marcante a face da
desigualdade social. Embora o imaginário social tenha partido da máxima de que “todos estão
no mesmo barco”, enquanto estudiosos da sociedade sabemos que essa máxima parte de um
grande equívoco. Assim como Judith Butler (2020), sabemos que a crise sanitária escancara
uma dura verdade:
nós certamente veremos os ricos e os plenamente assegurados correrem para
garantir acesso a qualquer vacina dessas quando ela se tornar disponível, mesmo
que o modo de distribuição só garanta que apenas alguns terão esse acesso e
outros serão abandonados a uma precariedade continuada e intensificada. A
desigualdade social e econômica garantirá a discriminação do vírus. O vírus por
si só não discrimina, mas nós humanos certamente o fazemos, moldados e
movidos como somos pelos poderes casados do nacionalismo, do racismo, da
xenofobia e do capitalismo. Parece provável que passaremos a ver no próximo
ano um cenário doloroso no qual algumas criaturas humanas afirmam seu direito
de viver ao custo de outras, reinscrevendo a distinção espúria entre vidas
passíveis e não passíveis de luto, isto é, entre aqueles que devem ser protegidos
contra a morte a qualquer custo e aqueles cujas vidas são consideradas não
valerem o bastante para serem salvaguardadas contra a doença morte8.
(BUTLER, 2020, p.62)

Embora os limites do capitalismo tenham sido reconhecidos por Butler (2020), esse
regime econômico e político vem encontrando formas de superá-los criando abismos sociais
cada vez maiores. Esse fato pôde ser visto enquanto grande parte da classe trabalhadora do
Brasil e do mundo sofria as consequências da privação econômica, como a fome e
desemprego, uma parcela mínima da população aumentava o seu patrimônio. Assim, a crise
do capitalismo durante a pandemia não é uma crise de superprodução, isto é fato. Entretanto,
é uma crise de esgotamento do modo de produção e acumulação capitalista que manifesta a
sua influência na vida das pessoas.
A crise sanitária da COVID-19 coloca em destaque as contradições do sistema
capitalista, que tem como cerne a expropriação do trabalho em favor do capital, um sistema
econômico, político e social que regula todas as formas de sociabilidade dos países
capitalistas ricos e pobres. Somos capazes de perceber as contradições expostas por Marx
(2013) em momentos de crises, e com a crise da COVID-19 não seria diferente, uma vez que
ela aponta de forma feroz contradições como: vulnerabilidade social; precarização do trabalho
8
Trecho publicado a princípio na obra Sopa de Wuhan (2020), posteriormente traduzido e publicado no blog da
Boitempo. Versão traduzida disponível em:
https://blogdaboitempo.com.br/2020/03/20/judith-butler-sobre-o-covid-19-o-capitalismo-tem-seus-limites/
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e de direitos sociais históricos; concentração de capital e vulnerabilidade e/ou ausência do


sistema público e gratuito de saúde que agrava o risco de morte, em especial dos mais pobres.
No contexto brasileiro, cujo governo sucateia e nega a importância do Sistema Único
de Saúde (SUS) como um instrumento de saúde pública que proporciona atendimento
universal e gratuito em todo o país, percebemos que a saúde dos que compõem as classes
populares não é levada em consideração pelos agentes do capitalismo, isto é, o próprio
Estado. Com isso, trazemos para o fechamento desta seção um fragmento dos escritos de
Marx (2013, p.432) que desvela a natureza desse sistema: “o capital não tem, por isso, a
mínima consideração pela saúde e duração da vida do trabalhador, a menos que seja forçado
pela sociedade a ter essa consideração”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

[...] as análises de Marx, embora evidentemente datadas em alguns aspectos,


são mais relevantes hoje do que na época em que foram escritas.
David Harvey, 2018.

Ainda que se critique os equívocos e lacunas do pensamento marxista dando a Marx a


alcunha de profeta e apontando a dificuldade de dissociar a análise do presente da previsão
do futuro9, a sua obra tem sido amplamente utilizada como referência na análise do
capitalismo e de suas crises, seja por seus seguidores da teoria marxiana, ou por seus críticos.
O considerável esforço empregado na análise das leis do capitalismo e seu sistema de
exploração faz com que até os críticos de Marx reconheçam a genialidade por trás da análise
do funcionamento do sistema de produção capitalista realizada, sobretudo, em O Capital
(ARON, 1999).
Assim como David Harvey (2018), um dos maiores nomes na análise do capitalismo
contemporâneo, partimos do pressuposto que a teoria marxista é hoje muito mais pertinente
do que foi em seu tempo de desenvolvimento, sobretudo diante de um cenário de tantas
mortes, desemprego em massa, destruição de direitos trabalhistas e expansão de governos
fascistas e genocidas. À vista disso, e levando também em consideração as estimativas
apresentadas pelo Fórum Econômico Mundial (2020)10 que apontam para o agravamento do
desemprego e das crises políticas que poderão provocar um cenário geopolítico ainda mais
instável, nada mais atual do que o chamado feito por Marx e Engels em o Manifesto
Comunista: “Proletariado de todos os países, Uni- vos”.

9
Ver ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes. 1999.
10
WORLD ECONOMIC FORUM, 2020.
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REFERÊNCIAS

ANTUNES, Ricardo L. C. Os Sentidos do Trabalho: ensaio sobre a afirmação e negação do


trabalho. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2009.

ARON, Raymond. As Etapas do Pensamento Sociológico. São Paulo: Martins Fontes,1999.

BUTLER, Judith. El Capitalismo Tiene sus Limites. In: AGAMBEN, Giorgio et al.: Sopa de
Wuhan. Editorial ASPO, 2020.

DUARTE, Phelipe Magalhães. COVID-19: Origem do novo coronavírus. Brazilian Journal


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HARVEY, David. Política Anticapitalista em tempos de COVID-19. In: DAVIS, Mike et al.:
Coronavírus e a luta de classes. Terra sem Amos: Brasil, 2020.

HARVEY, David. A loucura da Razão Econômica: Marx e o Capital no Século XXI. 1. ed.
São Paulo : Boitempo, 2018.

MACHADO, Nuno Miguel Cardoso. A “Primeira Versão” da Teoria da Crise de Marx: a


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MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. Tradução de Álvaro Pina e Ivana
Jinkings. 1ed. revistada. São Paulo: Boitempo, 2010.

MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política (Livro I) - O Processo de Produção do


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Disponível em
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