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Anais do V Congresso da ANPTECRE

“Religião, Direitos Humanos e Laicidade”


ISSN:2175-9685

Licenciado sob uma Licença


Creative Commons

MULHERES NA MÍDIA: NADA A COMEMORAR


UMA ANÁLISE SOBRE A EXPOSIÇÃO FEMININA NA IMPRENSA
E NA PUBLICIDADE BRASILEIRAS

Ana Luisa Trigo


Mestranda em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
analuisatrigo@gmail.com
Bolsista CNPq

ST 10 - GÊNERO E RELIGIÃO: TENDÊNCIAS E DEBATES

Resumo: Apesar de alguns avanços no mercado de trabalho e na sociedade as mulheres ainda


sofrem com estereótipos, muitos deles reforçados pelas propagandas veiculadas pela televisão
ou pelas notícias divulgadas na imprensa. A violência doméstica é tratada como caso pontual.
Na cobertura política dá-se mais ênfase ao peso, ao humor e ao modo de se vestir da
presidente do que ao seu trabalho como chefe do Executivo. A publicidade ainda está atrelada
à mulher como cuidadora do lar ou como símbolo sexual. E grupos religiosos, que poderiam ser
locais de discussão e proteção acabam por vezes colocando a mulher em uma situação
constrangedora. Esta comunicação tem como objetivo fazer um percurso sobre a exposição
feminina na mídia brasileira tendo como base em três fontes principais: estudo elaborado pelo
Instituto Patrícia Galvão e ANDI – Comunicação e Direitos (Agência de Notícias dos Direitos da
Infância) em parceria com o Observatório de Igualdade de Gênero da Secretaria de Políticas
para as Mulheres da Presidência da República (divulgado em 2011); dados da pesquisa “Como
a Mulher é Retratada na Mídia?”, realizada pelo Movimento Mulher 360 (divulgada em 2014); e
análise do noticiário recente. Segundo as pesquisas avaliadas, a publicidade e o noticiário
ainda retratam a mulher de forma apelativa e não propõe discussões aprofundadas sobre
problemas como a violência contra as mulheres e as relações de igualdade no campo
profissional, por exemplo. A luta pela igualdade de gênero em vários campos sociais, e em
especial na mídia brasileira, objeto de avaliação desta comunicação, ainda tem um longo
percurso pela frente. No meio desse caminho, a pressão popular por uma cobertura mais
eficiente da imprensa ou sobre a maneira como a publicidade retrata a mulher pode ser uma
maneira de mudança de posicionamento. Assim como a mudança da mentalidade da sociedade
brasileira.

Palavras chave: mulher, igualdade de gênero, estereótipos femininos, direito das mulheres,
violência, mídia.

Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. ST1004


Introdução: A última Relação Anual de Informações Sociais (RAIS)1 emitida em 2013
pelo Ministério do Trabalho e Emprego aponta para o crescimento do público feminino
no mercado de trabalho. O nível de emprego das mulheres cresceu 3,91% enquanto o
dos homens ficou em 2,57%.

A RAIS também avaliou a escolaridade dos trabalhadores e das trabalhadoras e


verificou que aí outro ponto favorável para as mulheres. No mercado formal elas
representam 52,17% dos cargos com níveis de curso superior incompleto e 58,93%
com curso superior completo. A pesquisa ainda apontou que renda da trabalhadora
brasileira cresceu em 2013 na comparação com o público masculino. Foram 3,34%
para as mulheres e 3,18% para os homens. Boas notícias. Mas nem tanto.

Apesar do crescimento percentual, as mulheres ainda ganham menos que os


homens. A mesma RAIS aponta que em 2013 o salário médio das mulheres era de R$
2.018,48. Já o dos homens era de R$ 2.451,20. O relatório o Progresso das Mulheres
no Mundo 2015-2016: Transformar as economias para realizar os direitos 2, das
Organizações para as Nações Unidas (ONU) mostra que no mundo, a média salarial
das mulheres é 24% inferior a dos homens, mesmo trabalhando na mesma função.
Segundo o estudo da ONU, em todas as regiões, além do salário inferior, é delas o
ônus de uma carga excessiva de trabalhos não remunerados, como cuidar da casa, dos
filhos, de parentes idosos ou doentes.

Apesar de as mulheres serem maioria na população, 51% segundo o último


Censo, a participação relativa na sociedade em relação aos homens indica uma
discriminação não explícita. Para HANRAHAN (2012) as normas culturais legitimam a
subordinação de gênero e frustra as tentativas de mudanças institucionais para as
mulheres.

1
Para os dados completos da RAIS 2013 acesse o site http://portal.mte.gov.br/portal-mte/rais/#2. Último acesso em 4
de junho de 2015.
2
Relatório divulgado em 27 de abril de 2015. Texto completo no site:
http://progress.unwomen.org/en/2015/#collapseThree. Dados colhidos na imprensa. Último acesso em 8 de junho e
2015.

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Feministas há muito reconhecem que desigualdade social e
subordinação de gênero têm fortes sustentáculos culturais. A
marginalização política e econômica das mulheres sempre foi
sustentada, e legitimada, por noções culturais de sexo feminino e
feminilidade que relegam a mulher à esfera doméstica. O culto da
domesticidade e da santidade da família, a noção das mulheres
como nutridoras e não como líderes, e a ideia de que a pureza das
mulheres seria violada por sua entrada na esfera pública fornecem
forte justificativa ideológica para a marginalização das mulheres
(HANRAHAN 2012, p.62).

ROSADO-NUNES (2008) acrescenta que as diferenças biológicas também são


usadas para a defesa de que a mulher deve se ater ao lar, “reafirmando a legitimidade
de sua exclusão da esfera pública e reiterando sua inferioridade social e política”.

O retrato da imprensa e a “mulher objeto” na publicidade: Estereótipos como esses


acabam sendo repetidos pela sociedade e reverberados pela mídia. Dados do estudo
Imprensa e Agenda do Direito das Mulheres: uma análise das tendências da cobertura
jornalística3 apontam nesse sentido. Elaborado pelo Instituto Patrícia Galvão e ANDI –
Comunicação e Direitos (Agência de Notícias dos Direitos da Infância) em parceria com
o Observatório de Igualdade de Gênero da Secretaria de Políticas para as Mulheres da
Presidência da República a pesquisa avaliou 16 jornais de todo o País (cinco de
circulação nacional e pelo menos dois de relevância em cada uma das cinco regiões
brasileiras), entre janeiro e dezembro de 2010, tendo como base as questões sobre
violência, poder e decisão, e trabalho relacionados às mulheres, num total de 2.381
notícias encontradas.

Ao avaliar os números da pesquisa, um fato chama a atenção. O tema violência


é o mais recorrente no noticiário pesquisado (63,3% dos textos). Trabalho e poder
recebem muito menos atenção da imprensa, com 18,9% e 17,8% respectivamente. O
que os pesquisadores perceberam é que, no caso da violência, a cobertura ficou

3
O texto completo da pesquisa está disponível em http://www.andi.org.br/publicacao/imprensa-e-agenda-de-direitos-
das-mulheres-uma-analise-das-tendencias-da-cobertura. Último acesso em 22.05.2015

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limitada aos cadernos policiais e/ou locais que noticiaram o fato como um problema
individualizado, mesmo com assuntos de grande repercussão.

No período analisado ocorreram os casos Eliza Samúdio (que teria sido


assassinada pelo ex-goleiro do Flamengo, Bruno. O corpo de Eliza nunca foi
encontrado) e Mércia Nakashima, encontrada morta às margens de represa em Nazaré
Paulista, interior de São Paulo (o ex-namorado, Mizael Bispo de Souza, foi condenado
a 20 anos de prisão em março de 2013, pena considerada pequena pela família da
vítima). De acordo com os pesquisadores, apesar dos dois assuntos de grande apelo
público, as pautas sobre violência quase não trouxeram um debate social ou legal,
mesmo com a entrada em vigor da Lei Maria da Penha4.

Os outros dois temas – trabalho e poder – ocuparam um espaço reduzido no


noticiário em comparação com a relevância econômica, social e política da mulher.

Embora o acúmulo de atividades seja uma realidade para grande


parte das mulheres, os veículos de imprensa praticamente ignoram
a questão da dupla jornada ao tratarem do tema Mulher e Trabalho.
Segundo os dados coletados, a questão não é mencionada por
85% das notícias. Dentre os poucos textos que abordam esse
aspecto, é comum a presença de um viés que acentua a visão
naturalizada de que a casa é responsabilidade da mulher. (ANDI,
Instituto Patrícia Galvão, 2011, p.11).
No período analisado pelo estudo ocorreu a campanha presidencial que elegeu
Dilma Rousseff para seu primeiro mandato. Com outra virtual candidata de destaque,
Marina Silva, a participação feminina na política brasileira foi pauta para 425 notícias.
Mas é possível pensar que esse espaço poderia ter sido menor sem a participação das
duas candidatas.
Mais uma vez, um ponto chamou a atenção dos pesquisadores: a desigualdade
no tratamento dado pela imprensa para candidatas e candidatos.

4
Lei 11.340/06: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm

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Entre as matérias que mencionam defeitos e/ou aspectos
dificultadores das candidatas e candidatos a cargos de poder, 20%
referem-se apenas às mulheres, enquanto 4% apontam defeitos de
homens e mulheres na mesma nota. Para os homens,
isoladamente, a cobertura simplesmente ignora esta questão. No
que diz respeito a elas, os principais defeitos apontados são:
características individuais (47,90%) e imagem pública (31,25%).
(ANDI, Instituto Patrícia Galvão, 2011, p.13).
Avaliando um período mais recente do noticiário é possível notar que a cobertura
jornalística dos fatos que envolvem a presidente em segundo mandato dá destaque aos
aspectos físicos. A perda de peso de Dilma Rousseff ganhou espaço do noticiário às
colunas sociais. Fotos da presidente andando de bicicleta apareceram na capa do
jornal O Estado de S. Paulo em edições quase seguidas: nos dias 6 e 8 de junho de
2015. E sobre as manifestações iniciadas em março de 2015, a imprensa deu grande
destaque a ofensas pessoais e ao “clamor” dos manifestantes pelo impeachment de
Dilma5.
Quando o assunto é publicidade, os estereótipos ficam mais evidentes. A
pesquisa Como a mulher é retratada na mídia? 6, realizada em janeiro de 2014 pelo
Movimento Mulher 360, mostrou que os 230 participantes, entre homens e mulheres,
reclamaram dos clichês e da falta de diversidade feminina nas peças publicitárias.
Para a maioria, 62,25%, as propagandas retratam apenas um tipo físico de
mulher – e de maneira apelativa –, e pouco mais da metade, quase 52%, disseram que
as propagandas normalmente apresentam padrões de beleza inatingíveis. Em crônica
na revista Veja SP (17 de junho de 2015) intitulada A mulher consumida, o jornalista e
escritor Ivan Angelo perguntou: como a televisão olha o corpo de escolhidas mulheres

5
Os jornais continuaram estampando o impeachment em suas manchetes, mesmo depois de pesquisas mostrarem que
esse não era o principal pedido dos manifestantes. Pesquisa do Datafolha apontou a irritação contra a corrupção em
geral como a maior reclamação das pessoas que foram até a Avenida Paulista protestar. Veja os números da pesquisa
em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/04/1615756-irritacao-com-corrupcao-foi-motivacao-para-
maioria.shtml
6
Pesquisa realizada por meio de questionários online pelo Movimento Empresarial pelo Desenvolvimento
Econômico da Mulher – Mulher 360.

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tipo “Vai Verão?”7. Para ele, a televisão olha para o corpo da mulher como objeto de
consumo: “o olho da câmera é masculinho”, diz, acrescentando que “as profissões de
cameraman e editor de imagens ainda são predominantemente masculinas”.
Maria X Eva e o (des)amparo da religião: a visão da mulher como cuidadora do lar ou
a figura sexualizada, tratada pela mídia conforme o produto veiculado nas campanhas
publicitárias, por vezes acaba sendo repetidos no ambiente religioso. Mesmo sendo
maioria nas igrejas, elas acabam sendo vítimas de doutrinas restritivas baseadas em
interpretações dos textos bíblicos8. Ou ainda sendo parâmetro para comparações
diametralmente opostas. Ora as mulheres devem ser como Maria, mães. Ora elas são
apenas Eva, o símbolo do pecado.
SCHOTT (1996) faz comentários desses aspectos contraditórios sobre o
feminino existentes na Igreja desde seus primórdios.
Por exemplo, Tertuliano, um dos pais da Igreja, faz um virulento
relato da conduta de Eva. “Tu és o portal do Diabo. Tu és o primeiro
desertor da Lei Divina. Tu és aquela que persuadiu a quem o Diabo
não foi bastante corajoso para atacar. (...) Por causa da tua falta,
que é morte, o próprio Filho de Deus teve que morrer (...)”.
(SCHOTT, 1996, p. 76)
Em outro trecho a autora fala como o culto a Maria (cuja figura acolhedora de
“mãe querida” poderia facilitar a vida feminina) não ajudou o fortalecimento social das
mulheres dentro do mundo cristão. Ao contrário “deu mais bases para a sua
subordinação” (Idem, p.84). Mesmo fora da igreja católica, onde a devoção mariana
pode impactar diretamente o olhar sobre o feminino, a questão se repete. NICOLAU
(2003) aborda o problema ao falar sobre as mulheres batistas.
O corpo feminino é visto a partir da ótica cristã e batista,
especificamente, como o elemento responsável por ter transportado
a mulher muitas vezes para um espaço de reclusão doméstica,
impondo sobre ela a instrumentalização do seu corpo a outrem. A

7
Vera, ou Verão, é a personagem central da campanha publicitária “Verão é nosso” da cerveja Itaipava, assinada
pela agência Y&R.
8
Um dos textos bastante citados nessas interpretações é a carta de Paulo aos Coríntios (I Cor 11,3) em que diz que “a
cabeça da mulher é o homem”.

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ordem familiar e o bom relacionamento conjugal dependiam do
“bem portar” do seu corpo (NICOLAU, 2003, p. 151).
Conclusão: “a concepção biologizante” tratada por ROSADO-NUNES (2008) coloca a
mulher em um lugar paradoxal na mídia, na sociedade e na igreja. São retratadas como
donas de casa perfeitas que cuidam do lar e da família. Ou são apresentadas com
padrões físicos inatingíveis e estereotipados. A imprensa, que poderia ser um espaço
adequado para uma abordagem mais ampla, repete clichês e se prende ao factual sem
buscar uma análise mais profunda dos fatos noticiados, especialmente aqueles que se
referem à violência.
A repetição de estereótipos tende a reforçar a imagem por vezes distorcida e
superficial da mulher. Dessa maneira, o alcance da igualdade de gênero parece cada
vez mais distante corroborado pelo tratamento desigual dado pela mídia em grande
parte dos casos. A igreja, que poderia ser um local de amparo, nem sempre ajuda e
tentar “recolocar” a mulher no espaço que considera mais adequado.
A pressão popular por um tratamento mais igualitário, pelo menos na mídia, pode
ser um caminho de mudança para a maneira como a mulher vem sendo retratada.
Buscar outras fontes jornalísticas ou outras linguagens publicitárias assegura uma
abordagem mais ampla do feminino na sociedade. E também garante a manutenção
dos direitos e cidadania das mulheres.

Referencias
ANDI, Instituto Patrícia Galvão. Imprensa e agenda dos direitos das mulheres: uma
análise das tendências da cobertura jornalística. Coordenação Veet Vivarta. Brasília,
2011.
FOLHA DE S.PAULO. Ano 96, nº 31475, de 06.06.2015.
HANRAHAN, Nancy Weiss. Feminismo e políticas de reconhecimento: uma história
cautelosa. In: PAIVA, Angela Randolpho (org). Direitos Humanos em seus desafios
contemporâneos. Rio de Janeiro. Ed. PUC-Rio, 2012.
MOVIMENTO MULHER 360. Como a mulher é retratada na mídia? São Paulo, 2014.
Disponível em http://movimentomulher360.com.br/2014/01/midia-deve-valorizar-a-
diversidade-conclui-pesquisa-do-movimento-mulher-360/. Acesso em 01.04.2015.

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NICOLAU, Gina Valbão Strozzi. Corpo feminino e religião. In: Revista Último Andar:
caderno de pesquisa em ciências da religião / Programa de Estudos Pós-graduados em
Ciências da Religião, PUC-SP, ano 6, nº 8. São Paulo, Educ, 2003.
O ESTADO DE S.PAULO. Ano 136, nº 44426, de 06.06.2015.
O ESTADO DE S.PAULO. Ano 136, nº 44428, de 08.06.2015.
REVISTA VEJA SP. A mulher consumida. Autor Ivan Angelo. Parte integrante da revista
Veja, ano 48, n° 24, edição 17.06.2015.
ROSADO-NUNES, Maria José. Direitos, cidadania das mulheres e religião. In:
Tempo social, revista de sociologia da USP, v. 20, nº 2.
SCHOTT, Robin May. Eros e os processos cognitivos: uma crítica da objetividade em
filosofia. Rio de Janeiro, Record, rosa dos Tempos, 1996.

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