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INTRODUÇÃO
Ah, se isso é verdade, afaste-se de mim. Só posso oferecer amizade; não sei amar,
nem poderia suportar um amor tão heróico.
Eu sou franca, ingênua; deve procurar outra; não será então difícil você se esquecer
de mim. (VERDI, 2007)
Prefere a noite, onde representa com maior desenvoltura seu papel. Qualquer um que
a observe por alguns momentos é capaz de imaginar o que ela faz para sobreviver, a forma
que encontrou para sustentar-se financeiramente, o que ultimamente se convencionou chamar
de “trabalho sexual”, conforme afirma FIGARI (2007, p. 360).
Entra a madrugada, amanhece novo dia, e Paloma vê-se de volta ao mundo real.
Agora é ela quem representa o papel de C. As duas fundem-se e confundem-se em apenas
uma mulher. O coletivo atrasa e ela teme não chegar à Praça XV a tempo de pegar o próximo
ônibus que a levará à Niterói, cidade onde mora. Precisa estar em casa a tempo de dividir o
café da manhã com sua filha, M., de 21 anos, estudante de Direito na UFF. Seu outro filho,
J., de 16 anos, vive com o pai. C. vive com a mãe e a filha. Deseja tornar-se cabelereira, e
para isso estuda aos sábados, além de fazer um “pé-de-meia” com o intuito de montar seu
próprio salão. Queixa-se que já teve alguns relacionamentos, mas nenhum homem
compreendia sua profissão. Seu maior sonho é “encontrar uma pessoa bacana quando deixar
a vida.”
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Graduando em Psicologia – Licenciatura Plena, pela Federação das Faculdades Celso Lisboa (2009)
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Professor auxiliar de ensino na Federação das Faculdades Celso Lisboa nas áreas de Filosofia, Ética e
Epistemologia. Cursando o Mestrado Acadêmico em Letras e Ciências Humanas na UNIGRANRIO
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Optou-se aqui pelas iniciais dos nomes de batismo, apesar de todas as entrevistadas terem autorizado a sua
publicação integral.
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Tal como a “La Traviata” de Giuseppe Verdi, este estudo está dividido em 3 atos:
preconceito, cofres e sonhos, e visa revelar que, apesar de viverem em uma sociedade
“líquido-moderna” (BAUMAN, 2007), mulheres como Paloma, Kelly ou Carmem possuem
dentro de si cofres muito bem trancados, onde guardam os segredos e os sonhos de C., R., ou
M., respectivamente.
OBJETIVOS
A ideia fundamental deste artigo partiu da insatisfação gerada após ouvir-se a ópera
“La Traviata” (VERDI, 2007), e, ao aprofundar-se na leitura da obra, perceber que Violetta
Valéry, aquela mulher que existia apenas nas páginas da ficção, guardava dentro de si algo
mais que apenas a concubina que ela permitia-se manifestar. A partir das primeiras leituras
de “A Poética do Espaço” (BACHELARD, 1974) e “Introdução à Metafísica” (BERGSON,
1974), ficaram evidentes os conceitos bachelardianos de “cofre” e bergsonianos de
“conhecimento absoluto” respectivamente, inspirando assim um estudo mais apurado do
universo das profissionais do sexo.
Apresentar-se-á aqui a relação entre a Filosofia e o trabalho sexual feminino realizado
no Hotel Paris, localizado no centro da cidade do Rio de Janeiro (Avenida Passos, n. 7),
tomando como ponto de partida a obra literária “A Dama das Camélias” (DUMAS, 1951),
ambientada na cidade de Paris, na França do século XIX, a qual serviu de inspiração à “La
Traviata”, mostrando como a religião, a ciência e a sociedade ajudaram a moldar o olhar
preconceituoso lançado à primeira vista a estas trabalhadoras, esquecendo-se das mulheres
que existem por trás dos nomes de guerra, suas intimidades e suas vidas fora do ambiente das
ruas, incluindo aí a capacidade de sonhar.
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METODOLOGIA
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Cabe salientar que as questões foram dirigadas de maneira indireta, tendo o resultado surpreendido o
pesquisador, devido à qualidade e à amplitude de respostas.
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Em detrimento ao levantamento, devido à possibilidade de maior aprofundamente que aquele oferece (GIL,
2002).
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Sara Mara, 35 anos: na rua onde mora, os vizinhos ignoram sua profissão; Ana
Angélica, 36 anos, revela: “Há de ter coragem e criatividade”; Carmem, 54 anos, 32 de
profissão, esconde dos filhos que moram no Mato Grosso do Sul. Eles pensam que ela
trabalha como camelô; Fabiana, 27 anos, cita termos como racismo, nojo e espancamento para
exemplicar seu sentimento, e termina assim: “Dói ser discriminado”.
Vale ainda ressaltar que todas as entrevistadas são mães e, acerca da relação
maternidade e prostituição, ENGEL (1998) menciona:
[...] os esteriótipos médicos que opunham a prostituição à maternidade são
construídos a partir da associação entre prostituta e esterilidade, concebida esta
última não apenas em seu aspecto físico, mas sobretudo moral – ou seja, eram
mulheres incapazes, física e/ou moralmente de exercer o sublime papel de mães (p.
203).
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Disponível em <http://leiturasdahistoria.uol.com.br/ESLH/Edicoes/15/ artigo119600-4.asp> Acesso em 3 nov.
2009.
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A primeira pergunta realizada a cada uma delas logo revela um primeiro objeto
guardado entre tantos outros: o nome, certamente um elemento identitário, seu “eu”. Apenas
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Neste caso, a palavra entre aspas simples assume a conotação de admirável, extraordinária ou mulher de fibra.
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duas não utilizam um nome de guerra enquanto trabalham, ou seja, 80% delas procuram
proteger este importante capital simbólico (GOLDENBERG, 2007).
A quantidade de imagens que emergem é impressionante, uma mais surpreendente que
a outra, revelando mistérios, desmistificando falsas ideias, contrariando as expectativas de
Tomas, personagem de KUNDERA (1985):
Se pudera abandonar para sempre a mesa de operações do hospital, por que não
poderia largar a mesa de operações do mundo, em que seu bisturi imaginário abria o
misterioso cofre do “eu” feminino para encontrar um ilusório milionésimo de
diferença (p. 235).
Estas mesmas imagens desvendam ainda uma outra realidade oculta: a possibilidade
de que cada uma destas mulheres seja uma individualidade além do grupo social em que está
inserida. Porém, durante o período em que estão trabalhando, trancam-se em seus cofres e
transformam-se em apenas mais uma peça na imensa engrenagem das ruas. Matam sua
individualidade:
Numa sociedade de indivíduos, cada um deve ser um indivíduo. A esse respeito,
pelo menos, os membros dessa sociedade são tudo menos indivíduos diferentes ou
únicos. São, pelo contrário, estritamente semelhantes a todos os outros pelo fato de
terem de seguir a mesma estratégia de vida e usar símbolos comuns – comumente
reconhecíveis e legíveis – para convencerem os outros de que assim estão fazendo.
(BAUMAN, 2007, p. 26)
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Apesar de Bachelard ser um dos mais notórios críticos da obra de Bergson (BACHELARD, 1974) encontram-
se claras similaridades no que tange ao tema proposto ao presente artigo.
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uso imediato e posterior descarte. Convivem em um ambiente cercado por vícios como álcool
e drogas9, onde torna-se quase impossível imaginar uma sociedade ou mundo melhores. Vão,
paulatinamente, deixando seus sonhos para trás: “Mergulhadas no ópio da rotina, as pessoas
negligenciam seus sonhos e vão perdendo a capacidade de sonhar” (SOUZA, 2006)
A preferência do enfoque poético nesta relação, influenciado pelas leituras
bachelardianas, tomou como base a seguinte frase: “A certeza de viver é dada pela
capacidade de sonhar (...)” (MOISÉS, 1998, p. 209). Provou-se, através do estudo de campo,
que, apesar de estarem inseridas na sociedade proposta por Bauman, estas mulheres são
capazes de construir sonhos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Referências
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Todas as entrevistadas afirmaram não se envolverem com estes vícios.
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