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Introdução
Ah, se isso é verdade, afaste-se de mim. Só posso oferecer amizade; não sei amar,
nem poderia suportar um amor tão heróico.
Eu sou franca, ingênua; deve procurar outra; não será então difícil você se esquecer
de mim (VERDI, 2007, p. 40).
[...] vi entre os simples, descobri entre os jovens um que era carecente de juízo, que
ia e vinha pela rua junto à esquina da mulher estranha e seguia o caminho da sua
casa, à tarde do dia, no crepúsculo, na escuridão da noite, nas trevas. Eis que a
mulher lhe sai ao encontro, com vestes de prostituta e astuta de coração (grifo
meu) (PROVÉRBIOS, cap. 7, vers. 7-10).
Prefere a noite, onde representa com maior desenvoltura seu papel. Qualquer um que
a observe por alguns momentos é capaz de imaginar o que ela faz para sobreviver, a forma
que encontrou para sustentar-se financeiramente, o que ultimamente se convencionou chamar
de “trabalho sexual”, conforme afirma FIGARI (2007, p. 360).
Entra a madrugada, amanhece novo dia, e Paloma vê-se de volta ao mundo real.
Agora é ela quem representa o papel de C. As duas fundem-se e confundem-se em apenas
uma mulher. O coletivo atrasa e ela teme não chegar à Praça XV a tempo de pegar o próximo
ônibus que a levará à Niterói, cidade onde mora. Precisa estar em casa a tempo de dividir o
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Graduando em Psicologia – Licenciatura Plena, pela Federação das Faculdades Celso Lisboa (2009).
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Professor auxiliar de ensino na Federação das Faculdades Celso Lisboa nas áreas de Filosofia, Ética e
Epistemologia. Cursando o Mestrado Acadêmico em Letras e Ciências Humanas na UNIGRANRIO.
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Optou-se aqui pelas iniciais dos nomes de batismo, apesar de todas as entrevistadas terem autorizado a sua
publicação integral.
II
café da manhã com sua filha, M., de 21 anos, estudante de Direito na UFF. Seu outro filho,
J., de 16 anos, vive com o pai. C. vive com a mãe e a filha. Deseja tornar-se cabelereira, e
para isso estuda aos sábados, além de fazer um “pé-de-meia” com o intuito de montar seu
próprio salão. Queixa-se que já teve alguns relacionamentos, mas nenhum homem
compreendia sua profissão. Seu maior sonho é “encontrar uma pessoa bacana quando deixar
a vida”.
[...] a vida líquida é uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante.
As preocupações mais intensas e obstinadas que assombram esse tipo de vida são os
temores de ser pego tirando uma soneca, não conseguir acompanhar a rapidez dos
eventos, [...] perder o momento que pede mudança e mudar de rumo antes de tomar
um caminho sem volta. [...] Entre as artes da vida líquido-moderna e as habilidades
necessárias para praticá-las, livrar-se das coisas tem prioridade sobre adquiri-las
(2007, p. 8).
Tal como a “La Traviata” de Giuseppe Verdi, este estudo está dividido em 3 atos:
preconceito, cofres e sonhos, e visa revelar que, apesar de viverem em uma sociedade
“líquido-moderna” (BAUMAN, 2007), mulheres como Paloma, Kelly ou Carmem possuem
dentro de si cofres muito bem trancados, onde guardam os segredos e os sonhos de C., R., ou
M., respectivamente.
Objetivos
A ideia fundamental deste artigo partiu da insatisfação gerada após ouvir-se a ópera
“La Traviata” (VERDI, 2007), e, ao aprofundar-se na leitura da obra, perceber que Violetta
Valéry, aquela mulher que existia apenas nas páginas da ficção, guardava dentro de si algo
mais que apenas a concubina que ela permitia-se manifestar. A partir das primeiras leituras
de “A Poética do Espaço” (BACHELARD, 1974) e “Introdução à Metafísica” (BERGSON,
1974), ficaram evidentes os conceitos bachelardianos de “cofre” e bergsonianos de
III
Metodologia
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Cabe salientar que as questões foram dirigadas de maneira indireta, tendo o resultado surpreendido o
pesquisador, devido à qualidade e à amplitude de respostas.
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Em detrimento ao levantamento, devido à possibilidade de maior aprofundamente que aquele oferece (GIL,
2002).
IV
Sara Mara, 35 anos: na rua onde mora, os vizinhos ignoram sua profissão; Ana
Angélica, 36 anos, revela: “Há de ter coragem e criatividade”; Carmem, 54 anos, 32 de
profissão, esconde dos filhos que moram no Mato Grosso do Sul. Eles pensam que ela
trabalha como camelô; Fabiana, 27 anos, cita termos como racismo, nojo e espancamento para
exemplificar seu sentimento, e termina assim: “Dói ser discriminado”.
Vale ainda ressaltar que todas as entrevistadas são mães e, acerca da relação
maternidade e prostituição, ENGEL (1998) menciona:
enxergue a possibilidade da existência de uma outra mulher por trás do que nos é apresentado
ao primeiro olhar.
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Disponível em <http://leiturasdahistoria.uol.com.br/ESLH/Edicoes/15/artigo119600-4.asp> Acesso em 3 nov.
2009.
VI
A primeira pergunta realizada a cada uma delas logo revela um primeiro objeto
guardado entre tantos outros: o nome, certamente um elemento identitário, seu “eu”. Apenas
duas não utilizam um nome de guerra enquanto trabalham, ou seja, 80% delas procuram
proteger este importante capital simbólico (GOLDENBERG, 2007).
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Neste caso, a palavra entre aspas simples assume a conotação de admirável, extraordinária ou mulher de fibra.
VII
Se pudera abandonar para sempre a mesa de operações do hospital, por que não
poderia largar a mesa de operações do mundo, em que seu bisturi imaginário abria o
misterioso cofre do “eu” feminino para encontrar um ilusório milionésimo de
diferença (1985, p. 235).
Estas mesmas imagens desvendam ainda uma outra realidade oculta: a possibilidade
de que cada uma destas mulheres seja uma individualidade além do grupo social em que está
inserida. Porém, durante o período em que estão trabalhando, trancam-se em seus cofres e
transformam-se em apenas mais uma peça na imensa engrenagem das ruas. Matam sua
individualidade:
Nesses sonhos, “ser famoso” não significa nada mais (mas também nada menos!) do
que aparecer nas primeiras páginas de milhares de revistas e em milhões de telas, ser
visto, notado, comentado e, portanto, presumivelmente desejado por muitos – assim
como sapatos, saias ou acessórios exibidos nas revistas luxuosas e nas telas de TV, e
por isso vistos, notados, comentados, desejados... “Há coisas na vida além da
mídia”, observa Germaine Greer, “mas não muito... Na era da informação, a
invisibilidade é equivalente à morte” (grifo meu) (2008, p. 21).
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Apesar de Bachelard ser um dos mais notórios críticos da obra de Bergson (BACHELARD, 1974) encontram-
se claras similaridades no que tange ao tema proposto ao presente artigo.
IX
monetário. Sabem separar a vida que levam nas ruas da vida de casa: “Numa sociedade de
consumidores, tornar-se uma mercadoria desejável e desejada é a matéria de que são feitos os
sonhos e os contos de fadas” (BAUMAN, 2008, p.22).
Em “A Mulher Eunuco”, Germaine Greer (1980) define esta mulher como uma pessoa
castrada ao nascer, condenada a viver uma vida inferior devido à ausência do pênis.
Analogamente, pode-se apresentar a prostituta, uma mulher sentenciada a não sonhar, a existir
apenas dentro do papel que a sociedade lhe impõe, o papel de simples mercadoria, de uso
imediato e posterior descarte. Convivem em um ambiente cercado por vícios como álcool e
drogas9, onde torna-se quase impossível imaginar uma sociedade ou mundo melhores. Vão,
paulatinamente, deixando seus sonhos para trás: “Mergulhadas no ópio da rotina, as pessoas
negligenciam seus sonhos e vão perdendo a capacidade de sonhar” (SOUZA, 2006).
Considerações Finais
A união entre pesquisa bibliográfica e trabalho de campo mostrou-se eficaz, sendo que
uma dependeu da outra para que ambas pudessem sobreviver. Apesar da idéia inicial deste
estudo ter surgido durante a leitura de uma obra de ficção, a realidade a acompanhou de perto.
Trazendo a ficção à realidade da prostituição de rua, constatou-se que o mesmo pode ocorrer
na segunda, e realmente é assim que acontece, como apontado anteriormente. Estas mulheres
“da vida”, profissionais do sexo, que outrora foram consideradas “degeneradas natas”,
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Todas as entrevistadas afirmaram não se envolverem com estes vícios.
X
conforme LOMBROSO (1991), são dotadas das mesmas capacidades de viver e construir
sonhos que as ditas “mulheres normais”, apesar de ainda sofrerem preconceito na mesma
medida que sofreram na literatura bíblica.
Buscou-se aqui estabelecer relações entre a realidade em que essas mulheres vivem,
tanto em sua vida privada como em sua vida pública, o preconceito e o descaso com que são
encaradas por parte da sociedade e como, apesar de todos os obstáculos que enfrentam
diariamente, conseguem representar no palco da vida personagens tão distintos com tamanha
desenvoltura.
Referências Bibliográficas
GIL, Antônio Carlos. Como Elaborar Projetos de Pesquisa. Editora Atlas, 2002.
SOUZA, Cesar. Você é do Tamanho dos seus Sonhos. Agir Editora, 2006.