Você está na página 1de 20

Em tempos como estes

escritas de si
Roland Barthes por Roland Barthes
Efratia Gitai (1909-2004)
Correspondências (1929-1994)
Homenageado pela 43ª Mostra Internacional de Cinema, o cineasta israelense Amos Gitai esteve em
São Paulo em 2019 para participar do lançamento do livro "Em Tempos como Estes", que reúne
correspondências da mãe do diretor.

Neste vídeo, ele dirige Bárbara Paz, Camila Márdila, Regina Braga e Gabriel Braga Nunes durante a
leitura de algumas cartas.
Efratia para Sarah (irmã) você se dá conta de que é uma bênção sentir e saber que
compreende o artista, cuja obra não será vã enquanto oferecer um
Viena, 16 de abril de 1931 momento tão significativo para os que amam e apreciam a beleza.
Querida Sarka! Estou lendo agora textos sociológicos sobre o imperialismo (como
o do poderoso Império Britânico), críticas à dominação e à
Estou sentada junto a uma janela aberta. O sol de primavera sorri.
exploração (um país se apoderando de outro, como fazem a
Tudo exala saúde! Estabilidade. Que posso dizer, Sariku? Nada
Europa ou os Estados Unidos, para citar apenas dois), o
realmente novo para contar. Aulas, visitas, conferências, concertos,
colonialismo, um assunto fascinante (muito importante e
teatro, cinema etc. Uma vida cultural real e rica. Às vezes é difícil
relevante). A realidade em Erets Israel depende muito desses
imaginar como as pessoas podem viver sem isso. Suponho que
mistérios políticos. Todo ser humano, todo corpo social tem de
possam se acostumar com qualquer coisa.
conhecer a si mesmo e a seu meio. Sim, temos muito a assimilar
Ontem assisti ao novo filme de Charles Chaplin, Luzes da cidade: para poder compreender o que está diante de nós e o que nos
incrível, mesmo. Ao sair do cinema, senti que tinha acabado de cerca. Para todo homem que se preze, uma percepção rasa é um
passar algumas horas com um gênio (no sentido pleno da palavra). erro imperdoável (social e politicamente – é preciso aprender muita
Um gênio que compreende perfeitamente os seres humanos: coisa).¹ Infelizmente, poucas universidades cobrem esses assuntos
criaturas pequenas e complexas com alegria, tristeza, amor, ódio; cruciais. Sim, o sistema social influencia a educação e tudo o
humor e tragédia (como são trágicos o amor e o ódio dele). Ele é mais. Trabalhadores não são os únicos que sofrem por causa da
realmente um gênio tragicômico! É um sensação única estar burguesia. Escolas, teatros, literatura, arte… Tudo é influenciado
sentada no meio de uma multidão sabendo que poucas pessoas por ela.
são de fato capazes de compreender a beleza de uma obra assim.
Só vêem a superfície e riem alto sem discernir a profunda tristeza,
a dor e o sofrimento que podem estar contidos no riso. Ao ver isso,
¹ Efratia estava frequentando cursos privados de
psicologia com Anna Freud e Alfred Adler, na
Universidade de Viena. Além disso, participava
de conferências políticas de Charlotte Bieler e
de Otto Bauer. A maior parte delas versava
sobre marxismo social-democrático.
Estou começando a constatar que a educação não é neutra, de o máximo que puder, em casa, no ken.
jeito nenhum. Na Europa, a burguesia não tem nada a ganhar se
as pessoas receberem uma educação crítica e abrangente. Se Que ventos estão soprando entre os alunos do ginásio?
recebessem, veriam quão danosa é a burguesia e se rebelariam. É Escreva-me e, por favor, responda a todas as minhas perguntas.
assim em todas as áreas. A burguesia mantém o poder porque tem Mande lembranças a nossos camaradas e professores,
dinheiro. Nos Estados Unidos, é ainda mais inacreditável! Os especialmente a Ben Yehuda. E um alô especial para Shulamit.
burgueses podem comprar qualquer coisa: a opinião pública, a
educação – os jornais estão à venda, assim como os professores,
sim, sim – e a arte também… Oh, sim, é exatamente assim que Efratia
funciona e está aí para quem quiser ver.

Em Erets Israel as coisas não são tão gritantes. Só agora me dou


conta de como é tola a história que nos ensinam. Conjecturas são
apresentadas como se fossem verdades e fatos reais. O que
podemos fazer? Não é dever do movimento juvenil e da classe
operária endireitar o que está errado e corrigir as distorções? O
movimento juvenil precisa fazer mais. Precisamos aprender com
os novos livros que temos (a história do socialismo e da luta de
classes, de Max Weber, está na nossa estante). É muito difícil
assimilar os fundamentos necessários para a construção de uma
sociedade. Mas temos de aprender. Isso vai exigir mais do que
apenas ler: nem mesmo aprendemos isso lá. Sim, é o dever de
todo jovem e de cada um, sim, de cada um. Cada um tem de fazer
Munio Weinraub Gitai (1909-1970) na época em Munio Weinraub Gitai, Kibbutz Kfar Masaryk, Israel (Elevações), 1962-1964. Tinta sobre pergaminho, 60 x 90
que frequentou a Bauhaus, Dessau, c.1929 cm. MoMA.
Efratia e Amos, c.1972
Efratia para Amos Não. Londres e os ingleses já não são como eram, exceto o teatro,
cuja memória continua a me espicaçar. Joyce e Beckett. Paris tem
Haifa, 11 de outubro de 1994 "algo"... Eu gostaria de circular pelo Pompidou, meus olhos
nadariam nos chafrizes espumantes, e, é claro, eu mergulharia na
Meu querido Amos,
escada rolante junto com aquele desfile de humanos. Não ia deixar
Lembro minha infância, minha juventude; tão belas nas areias de lado os impressionistas! Eu amo, amo o impressionismo, cada
douradas da pequena Tel Aviv. Isso me vem por meio de alguns vez mais que da última! Mas ficaria muda nessa cidade, porque
capítulos do romance de Yaakov Shabtai, Passado contínuo.¹ Tantas não falo francês, nenhuma palavra!
memórias de sonhos de amor naquelas dunas, ainda que com a
E por que não Berkeley? É um lugar magnífico: a paisagem, as
idade eles fiquem mais modestos que durante a juventude. Tantas
vistas, melhor até que Haifa, a cidade em que vivo. Tenho amigos
lutas, adversidades, estudos intermitentes… e uma sensação de
judeus lá – muito mais humanos do que muitos israelenses. Mas
distanciamento, de lacunas, sobretudo de "sonhos frustrados", uma
eles também dizem que Berkeley, onde passei duas semanas seis
frustração que pressiona e pressiona… E o que vai ser?
anos atrás, não é mais o que era. Los Angeles está sob a sombra
Quanto ao que você mencionou, que eu vá para outro país, às vezes invasiva projetada pela Sunset Boulevard! Não, não consigo ver
considero essa ideia, mas para onde? Na juventude, depois do outro lugar onde me instalar. Mas, afinal, há muitas coisas que
kibutz, estudei em Viena, depois em Berlim, entre 1930 e 1932. fazem a vida ser boa em Israel hoje em dia: o belo monte Carmelo,
Deixei o provincianismo para trás e foi inspirador, mas agora? a beira-mar e o calçadão, que é tão magnífico ao anoitecer; Bat
Londres, talvez. Em 1960 passei o ano na London School of Galim, a praia Dado, crepúsculos esplêndidos. E a universidade,
Economics. Amei aquela cidade chuvosa e amei estar sozinha: esse
______________________________
esplêndido isolamento foi desafiador, mas também apaixonante e
estimulante. E os outros estudantes eram como filhos, não tinham ¹ Adaptado por Amos Gitai com o título Coisas, em 1995.
medo de se contaminar com minha velhice… Mas voltar para lá?
onde fiz cursos com Nathan Zach, A. B. Yehoshua e, sobretudo, com
o excelente Guidon Efrat.¹ E os teatros em Haifa e em Jerusalém. E
a música e os poucos amigos que restam. Sabemos o que é
amizade. Para mim, estão enterradas aqui pessoas da geração da
Segunda Aliá e meus pais, que nunca esquecerei e que sempre
amarei! Aqui estão enterrados meus melhores amigos, meu marido,
o arquiteto, e muitos outros… Não visito cemitérios. Para mim, nada
de ossos secos e ocos. Minhas memórias estão ligadas a este lugar,
e é difícil erradicá-las. Só algumas escapadas para o exterior,
depois o retorno. Para mim, com certeza não existe outro lugar, mas
uma preocupação me corrói: o que vai acontecer com vocês, os
jovens, carne da nossa carne, vocês que ficam e vivem o sonho
frustrado? Será que vão vencer essa escuridão que está nos
envolvendo?

Estejam bem,

Mamãe

______________________________
¹ Historiador da arte israelense.
Haifa vista do monte Carmelo, 2011
MINIBIOS
Sérgio Romagnolo (São Paulo - SP, 1957).
Vive e trabalha em São Paulo.

Escultor, pintor, desenhista, artista intermídia e professor.


Estuda no Colégio Iadê, em São Paulo, entre 1976 e 1977. Em
1980, ingressa no curso de artes plásticas da Faculdade de
Artes Plásticas da Fundação Armando Alvares Penteado - Faap,
em São Paulo. Entra em contato com a obra de Regina Silveira,
Nelson Leirner e Julio Plaza. Entre 1980 e 1984, é professor nas
redes pública e privada de ensino. Leciona pintura na Faap
entre 1985 e 1986. Nesse ano, realiza sua primeira exposição
individual na Galeria Luisa Strina, em São Paulo. No início da
década 1990, passa a dedicar-se à escultura e atua como
professor em oficinas e workshops. Participa da Bienal
Internacional de São Paulo em 1977, 1983, 1987 e 1991. Em
1998, finaliza o mestrado em artes na Escola de Comunicação e
Artes da Universidade de São Paulo - ECA/ USP, com a
dissertação 'Esculturas: Rugas e Alegorias' e, em 2002, conclui
o doutorado em artes na mesma instituição, com a tese O Vazio
e o Oco na Escultura. Entre 2000 e 2005, leciona na Faculdade
Santa Marcelina, São Paulo e a partir de 2007, na Universidade
Estadual Paulista - Unesp.
Hilal Sami Hilal (Vitória - ES, 1952)
Vive e trabalha em Vitória, ES.

Capixaba de origem síria, Hilal Sami Hilal iniciou-se, nos anos


1970, no desenho e aquarela para depois decidir se aprofundar em
técnicas japonesas de confecção do papel. A partir daí, com uma
viagem ao Japão, sua pesquisa intensificou-se, resultando numa
segunda viagem a esse país no final dos anos 1980.

Cruzando influências culturais entre o Oriente e o Ocidente, entre a


tradição moderna ocidental e a antiga arte islâmica, surgiram suas
“rendas”.
Confeccionadas com um material exclusivo, criado com celulose
retirada de trapos de algodão e misturada com pigmentos, resina e
pó de ferro e de alumínio, as rendas privilegiam a força gestual do
artista, que assim constrói a tela a partir de linhas que se cruzam,
de cores que se revelam na mistura dos materiais e da sensação
de ausência gerada pelos espaços em branco. O trabalho,
colocado a curta distância da parede, beneficia-se das sombras
projetadas, criando um rendilhado virtual. Algumas de suas obras
são realizadas apenas com resina acrílica, criando o mesmo efeito
visual.
Renata Tassinari (São Paulo - SP, 1958)

Formou-se em Artes Plásticas na Fundação Armando Álvares Penteado, FAAP, em


1980.

Nos últimos anos a pintura de Renata Tassinari se transformou em um campo fértil


de pesquisas e inovações. O quadro deixou de ser um elemento neutro e passou a
fazer parte da estrutura da obra. A artista pinta sobre uma superfície de acrílico, que
numa abordagem mais tradicional, seria parte do enquadramento de uma obra. Ao
mesmo tempo, deixa a moldura de certas seções da obra cobrir apenas um papel
em branco. Onde deveria haver a transparência do acrílico protetor de uma folha de
desenho, passa a haver pintura e, inversamente, onde a folha de papel se deixa ver,
há apenas o branco do papel que assim se transforma em cor.

De início, os procedimentos acima se desdobravam em séries que alternavam as


cores acrescentadas sobre o acrílico e o branco emoldurado das folhas de
desenho. Com o tempo, ela passa a tratar partes do quadro como coisas, também
outras coisas poderiam ser elementos das obras. Madeiras de diferentes
colorações e ranhuras, e a inversão do avesso de uma moldura de acrílico, têm sido
a prática mais recorrente.

A cor sempre foi um elemento fundamental na obra da artista. Colocar cores num
quadro e pelo quadro habitar o mundo com cores, essa é uma breve descrição do
qual ela sempre buscou. Entre o mundo e o quadro - ao tratar partes da obra
também como coisas do mundo, como coisas palpáveis - agora surgem relações
mais próximas, e percebemos um trinômio obra/cor/mundo sempre se insinuando
em seu trabalho.

Você também pode gostar