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Brida
A bruxa de Portobello
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O diário de um mago
A espiã
Maktub
Manual do guerreiro da luz
Na margem do rio Piedra eu sentei e chorei
Onze minutos
Veronika decide morrer
Sumário
Epígrafe
Dedicatória
Hippie
Epílogo
***
Mas, assim que se afastaram, Karla pegou no patch da
sua jaqueta e o arrancou.
“Você já comprou o que estava procurando — as estrelas
são muito mais bonitas do que as bandeiras. Se quiser,
posso ajudar a colocá-las em forma de cruz egípcia ou de
símbolo hippie.”
“Não precisava ter feito isso. Bastava pedir e me deixar
decidir se queria continuar ou não com o patch na manga.
Amo e odeio meu país, mas isso é problema meu. Acabei de
conhecer você; se por acaso acha que pode me guiar e me
controlar porque pensa que sou dependente da única
pessoa que verdadeiramente encontrei aqui, nos separamos
agora. Não deve ser difícil encontrar um restaurante
barato.”
Sua voz tinha endurecido e, surpresa, Karla considerou
essa reação positiva. Não era um boboca que fazia o que os
outros mandavam, mesmo que estivesse em uma cidade
estranha. Já devia ter passado por muitas coisas nessa vida.
Ela devolveu o patch.
“Guarde em outro lugar. É falta de educação conversar
em língua que não entendo e uma falta de imaginação ter
vindo tão longe para entrar em contato com gente que pode
encontrar na sua terra. Se você voltar a falar português, vou
falar holandês, e acho que o diálogo ficará impossível.”
***
“Que maravilha!”
Depois de seis dias de viagem a animação começou a dar
lugar ao tédio, e a rotina esgueirou-se e preencheu o
ambiente. Agora que ninguém tinha mais novidade para
contar, achavam que não haviam feito quase nada além de
comer, dormir ao relento, tentar encontrar uma posição
melhor na poltrona, abrir e fechar as janelas por causa da
fumaça dos cigarros, se entediar com as próprias histórias e
com as conversas dos outros — que nunca perdiam uma
oportunidade para jogar uma pequena farpa aqui e ali,
como de resto fazem sempre os seres humanos quando
estão em rebanho, mesmo que seja pequeno e cheio de
boas intenções como aquele.
***
Sua mente voltou para a sala verde com parte das vigas do
teto descascando e os vidros quebrados nas janelas que um
dia deviam ter sido verdadeiras obras de arte. O sol já havia
descido, a sala estava na penumbra, era hora de voltar para
o hotel, mas Paulo insistiu com o homem sem nome:
“Mas o senhor deve ter tido um mestre.”
“Tive três — nenhum deles ligado ao islã ou conhecedores
dos poemas de Rumi. Enquanto eu aprendia, meu coração
perguntava ao Senhor: estou no caminho correto? Ele
respondia: está. Eu insistia: e quem é o Senhor? Ele
respondia: você.”
“Quem foram seus três mestres?”
Ele sorriu, acendeu o narguilé azul ao seu lado, deu umas
baforadas, estendeu para Paulo, que fez a mesma coisa, e
sentou no chão.
“O primeiro foi um ladrão. Certa vez eu estava perdido no
deserto e só consegui chegar em casa muito tarde da noite.
Havia deixado minha chave com o vizinho, mas não tinha
coragem de acordá-lo àquela hora. Finalmente encontrei um
homem, pedi ajuda, e ele abriu a fechadura num piscar de
olhos.
“Fiquei muito impressionado e implorei que me ensinasse
a fazer aquilo. Ele me disse que vivia de roubar as outras
pessoas, mas eu estava tão agradecido que o convidei para
dormir em minha casa.
“Ele ficou comigo por um mês. Toda noite saía e
comentava: ‘Estou indo trabalhar; continue sua meditação e
reze bastante’. Quando voltava, eu perguntava sempre se
tinha conseguido alguma coisa. Ele invariavelmente me
respondia: ‘Não consegui nada esta noite. Mas, se Deus
quiser, amanhã tentarei de novo’.
“Era um homem contente e nunca o vi ficar desesperado
com a falta de resultados. Durante grande parte da minha
vida, quando meditava e meditava sem que nada
acontecesse, sem conseguir meu contato com Deus, eu me
lembrava das palavras do ladrão — ‘Não consegui nada esta
noite, mas, se Deus quiser, amanhã tentarei de novo’. Isso
me deu forças para seguir adiante.”
“E quem foi a segunda pessoa?”
“Foi um cachorro. Eu estava indo em direção ao rio para
beber um pouco de água quando o cachorro apareceu. Ele
também estava com sede. Mas, quando chegou perto da
água, viu outro cachorro ali — que não era mais que sua
própria imagem refletida.
“Ficou com medo, se afastou, latiu, fez de tudo para
afastar o outro cachorro. Nada aconteceu, é claro.
Finalmente, porque sua sede era imensa, resolveu enfrentar
a situação e atirou-se dentro do rio; nesse momento a
imagem sumiu.”
O homem sem nome fez uma pausa e continuou:
“Finalmente, meu terceiro mestre foi uma criança. Ela
caminhava em direção à mesquita perto do vilarejo onde eu
vivia, com uma vela acesa na mão. Eu perguntei: ‘Você
mesmo acendeu esta vela?’. O garoto disse que sim. Como
fico preocupado com crianças brincando com chamas,
insisti: ‘Menino, houve um momento em que esta vela
esteve apagada. Você poderia me dizer de onde veio o fogo
que a ilumina?’.
“O garoto riu, apagou a vela e me perguntou de volta: ‘E o
senhor, pode me dizer para onde foi o fogo que estava
aqui?’.
“Nesse momento eu entendi o quão estúpido sempre
tinha sido. Quem acende a chama da sabedoria? Para onde
ela vai? Compreendi que, igual àquela vela, o homem
carrega por certos momentos no seu coração o fogo
sagrado, mas nunca sabe onde foi aceso. A partir daí,
comecei a prestar mais atenção a tudo que me cercava —
nuvens, árvores, rios e florestas, homens e mulheres. E tudo
me ensinava o que precisava saber no momento, e as lições
sumiam quando não precisava mais delas. Tive milhares de
mestres a minha vida inteira.
“Passei a confiar que a chama sempre estaria brilhando
quando dela precisasse; fui um discípulo da vida e ainda
continuo sendo. Consegui aprender com as coisas mais
simples e mais inesperadas, como as histórias que os pais
contam para os seus filhos.
“Por isso que a quase totalidade da sabedoria sufi não
está em textos sagrados, mas em histórias, orações, danças
e contemplação.”