Você está na página 1de 40

Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.

com

A ARTE DE AMAR
A psicanálise de Christian Dunker

MATERIAL COMPLEMENTAR

maio /2021
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

AVISO

Este material é exclusivo para os inscritos no curso “A Arte de Amar”,


com Christian Dunker, realizado pela Casa do Saber em maio de 2021.
É proibida a reprodução ou divulgação deste material, parcial ou em
sua totalidade, sem autorização. Os direitos autorais são exclusivos
da Casa do Saber.

QUEM PRODUZIU O MATERIAL

CONTEÚDO
AMANDA PÉCHY
DANILO KOVACS
RONALDO VITOR DA SILVA
ISADORA JARDIM SALAZAR

APROVAÇÃO
ISADORA JARDIM SALAZAR
Curadora

DESIGN
DEBORAH KUTNIKAS
Designer

FALE COM A GENTE

suporte@casadosaber.com.br

2
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

Que pode uma criatura senão,


entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,


sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o amar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,


o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho,
e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,


distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa


amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

“Amar” – Carlos Drummond de Andrade

3
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

01

AMAR AO OUTRO
COMO A TI MESMO?
O amor, quais as contingências
e as impossibilidades

Respondeu Jesus: “ ‘Ame o Senhor, o seu Deus de todo o seu coração,


37
de toda a sua alma e de todo o seu entendimento’. 38Este é o primeiro
e maior mandamento. 39E o segundo é semelhante a ele: ‘Ame o seu
próximo como a si mesmo’.

O amor é indissociável das formas de falar sobre ele, é algo que se produz
sob a forma como o caracterizamos. Seja na literatura, nas artes, no cinema,
no teatro, todas as histórias que tratam sobre o amor, ao mesmo tempo que
inventam, o expandem.

No ocidente, podemos pensar em duas grandes matrizes para entender


a experiência amorosa e suas imbricações:

A primeira se trata de uma matriz Judáico-Cristã. Em Mímesis (1946),


Erich Auerbach trabalha com o entendimento da Bíblia como um texto
fundador do pensamento e da sociedade ocidental, através de uma
hermenêutica, pôde se perceber uma nova forma de interpretar a história,
através de uma ótica que tenha início meio e fim, da Gênesis, a passagem
e vinda de Cristo, até o Apocalipse.

Na junção dessas duas culturas há o livro de Mateus (22), onde serão


tratados os conceitos fundamentais, os mandamentos: “Amarás ao senhor,
teu Deus, em todo seu coração, de toda tua alma e de todo teu espírito”
e o segundo mandamento, de certa forma semelhante, “Amarás o teu
próximo como a ti mesmo”. Desses dois mandamentos dependem toda
a lei e os profetas.

4
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

Quem é este outro? Podemos pensar no outro como alguém próximo,


que divide momentos e situações, mas também o outro que fala outra
língua, o outro que mora em outra localidade, aquele que seria intitulado
outrora de “adversário natural”.

Questão esta que fora objeto de estudo de Freud, que é: O que significa
amar o outro como a si mesmo? Freud entende que esta forma de amor
implica em uma noção de si, de um eu, de uma objetividade, bem como
de uma subjetividade e completa de forma a alertar os perigos desta
afirmação, amar ao próximo como a si mesmo é uma coisa necessária,
mas também impossível, pois o amor não reage bem às coerções.
A ideia de ser obrigado a amar é profundamente incompatível com
um dos principais fragmentos que mais procuramos na experiência
amorosa, que é a liberdade.

VERDADEIROS AMORES CRUZAM A NORMA

Esses amores verdadeiros, além de serem incompatíveis com a coerção,


acabam por se tornarem também transgressores, de forma a contrariar
a lei da família, contrariar os bons costumes, contrariar os padrões socialmente
impostos, todas as formas de amor, historicamente, foram conquistadas.

A segunda parte desse processo analisado por Freud é a impossibilidade,


que concerne à forma como entendemos o eu, para os modernos o eu
era entendido como uma unidade, indivíduo, é o sujeito do contrato.
Quem é o amante e quem é o amado quando amamos a si mesmo?
A descoberta freudiana se dá na percepção que o eu é um divíduo.
Amar o outro como a si mesmo, nesta situação temos dois outros,
temos o outro outro, que está fora de mim, e o outro que é uma versão
de mim.

Aprendemos a amar pela experiência amorosa, a partir das nossas experiências


de amor com quem cuida de nós, logo no começo de nossas vidas. Isso vai
produzindo e conferindo ao amor, de certa forma, uma estrutura repetitiva,
o tipo de apego que se forma no começo da vida, tende a se repetir nas
expectativas amorosas, visando fugir de um desamparo, do “hilflosigkeit”.

O bebê humano, comparado ao de outros mamíferos demora muito tempo


para criar a sua independência daqueles que o cuidam, algumas hipóteses
foram formuladas para tentar entender essa relação e, justamente, por
conta desse período maior que necessitamos para nos estabilizar no
mundo, seja por conta da má formação do sistema extrapiramidal, pelo

5
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

sistema viso motor mal formado e ainda não estabilizado, são estes
fatores que fazem com que ele seja mais amável.

O amor vem, primariamente, de encontrar o outro que depende de você,


este movimento passa a ser um movimento irresistível para a nossa espécie
e isto é um prototípico para o amor, mas será que só isso é amor?

Para Rousseau, existe uma forma de amor que diz respeito a si, a experiência
de si, a experiência de dois: Do si como o outro. Este conceito é interpretado
como “Amour-de-soi”, ou amor de si, e teria relação com uma autoconservação,
com um experienciar-se como alguém, ser alguém, de forma a nos gerar
satisfação, uma vez que nos afasta do desamparo.

São as experiências que a criança conquista de intimidade, da possibilidade


de ficar sozinho, da possibilidade de ficar consigo mesma. Esta seria outra
forma prototípica do amor.

Há também para Rousseau outra forma de amor, o “amour propre”, ou amor


próprio, percebera esta forma se voltando aos moralistas franceses do
século dezesseis, entendendo as matrizes de formação dos contos de
fadas, das fábulas, que tinham uma função de explicar para as crianças
emas complexos, entre eles, justamente como amar e ser amado. Nisso
tudo havia uma espécie de moralidade crítica e de reconhecimento que,
junto com o surgimento do indivíduo como valor, tínhamos descoberto
e valorizado o “si próprio.” O próprio remete a propriedade, a posse, ou
seja este alguém está sujeito a uma lógica de mercadoria.

Duas experiências distintas marcam este conflito, poder estar consigo


de forma amistosa, a satisfação de estar, a experiência proto amorosa
de que eu sobrevivo, e do outro lado da equação a experiência se dá
de forma concorrencial, que posso ser outro, que posso me aperfeiçoar
e ser melhor. Para Rousseau, há um conceito muito importante a ser
trabalhado nesta questão, que é o da perfectibilidade, este senso de
querer ficar melhor e da combinação entre essas duas formas de amor,
o amor de si e o amor próprio.

Para Freud, a forma como a gente se ama, é uma forma muitas vezes
masoquista, uma forma sádica e ofensiva a si, portanto, amar ao outro
como a si mesmo, não parece a melhor opção, o que talvez faltasse para
os antigos, e sobretudo a concepção bíblica de si, é que o si mesmo trata
também da relação patológica que acompanha o si mesmo. Não é um lugar
puro e neutro, pelo qual instanciamos a experiência de observar o mundo,

6
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

esta crise se dá seja porque na percepção de que a perfectibilidade


inventada não pode ser atingida, os ideais fracassaram, portanto, para
amar os outros é muito importante amar a si próprio, para também suportar
que os outros te amem.

Amar ao outro como a si mesmo, na mensagem e experiência bíblica,


diz respeito a experiência de humildade, de reconhecimento do outro
e reconhecimento no outro.

Já a outra matriz que ajuda a explicar não só o amor, mas também


a experiência amorosa é a Greco-Romana, e se embasa na noção de
que é possível se aprender a amar.

Ovídio em seu Livro das transformações (metamorfose), se propõe


a narrar as epifanias de Zeus e suas diferentes formas de se manifestar,
é de nosso interesse porque narra a origem de um herói, pois estão são
indivíduos, pessoas que não só vivem a sua vida, mas vivem uma vida
que serve de exemplo e paradigma para outras vidas, cruzando a barreira
da ordem, da lei, de forma a criar novas leis, novos paradigmas de
individualização.Uma destas estórias é a da saga de Narciso, que foi
posteriormente reapropriada por Freud em v
trabalhando acerca desse aspecto da individualização que é o narcisismo
e pra falar e definir o narcisismo como uma forma de amor. Um amor
narcísico, uma forma de escolher narcísica, uma gramática narcísica
que Freud vai tematizar homenageando os gregos.

Cefiso era um sujeito extremamente bonito, desejado, mas que não


deixava que ninguém se aproximasse de si, porque a outra pessoa
não seria, de certa forma, auto suficiente. Pelo seu excesso de soberba
e pela impossibilidade de estar com o outro, Cefiso estupra Liriope
e desta relação abusiva nasce, o lindo, Narciso.

O pai de narciso, por não conseguir dar espaço ao outro, só pode transformar
a relação amorosa, sexual e a experiência erótica em uma experiência de poder,
de dominação.

Após o nascimento de Narciso, fora levado a presença do Oráculo,


e perguntaram se o viveria bem, de maneira longeva, a resposta que
fora apresentada pelo Oráculo fora “Ele viverá tanto tempo quanto ele
se desconhecer”, acarretando que o conhecimento de si se transforme
em uma condição trágica.

7
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

Na adolescência de Narciso, conhecera Eco, uma ninfa que acabara se


apaixonando por ele, e que, só conseguia repetir as últimas palavras do
que o outro disse pra ela. Juno, que protege Eco, não gosta muito dessa
situação de desprezo que Narciso revela por aquela que o ama, de forma
que acaba por perpetuar uma maldição sobre Narciso, “Que ele ame e,
quiçá, não possua o amado”, dando a noção de posse, de propriedade
para o objeto incorporado.

Podemos então observar outro conflito, neste sentido, amar como uma
experiência real encontra com a imagem e o corpo do outro em encontro
com o amor como uma experiência como uma quase imagem e sombra,
que não se pode possuir, portanto, não se pode perder. “ No êxtase ele
se depara, com um signo marmóreo: uma estátua de Paros”. Uma outra
forma de dizer de um corpo que não é corpo.

“Sem o saber, deseja a si mesmo e se louva, cortejando, corteja-se;


incendeia e arde”. Há aqui um ponto chave, ao não saber, levanta-se
a hipótese do inconsciente, de não saber o que se está sendo produzido
no mundo, e neste movimento, quanto mais narcísico, menos há
o conhecimento dessa situação. Menos se dá conta de como é
o personagem.

Não há mais a experiência de si, há portanto a experiência do próprio,


só que agora, diferente da tradição judáico-cristã há um suporte efetivo
no qual esse amor se dá, que são as imagens corporais, das quais se
nos afastamos delas, temos efeitos e despersonalização, portanto,
um amor em uma estrutura de alienação.

Quando Freud trata do narcisismo amoroso, ressalta também que quando


a gente ama, de forma inevitável, acabamos nos alienando no outro, na
experiência do outro. Mas esta alienação é interessante uma vez que,
as artes, a literatura, o cinema, o teatro podem servir como fonte de
reflexão para tornar o amor mais assertivo, mas também mais interessante.

“Faço o fogo que sofro”

Narciso então se dá conta da sua divisão, só que neste caso a paixão pela
unidade faz com que ele se lance contra a sua imagem refletida e seja então
levado pelo rio Estige. “Mas lá no estige, corpo nenhum havia”

A narrativa romântica é a narrativa sobre um amor que não dá certo, por


mais que podemos dizer que essa pessoa que está no corpo é a imagem

8
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

do corpo, é o efeito do corpo, não é o corpo enquanto aquele que


é dotado de imperfeições, aquele que sofre com as intempéries do
tempo e este é o corpo que Narciso está condenado a não ter.

APRENDA MAIS COM A CASA DO SABER NO YOUTUBE

AMAR DÁ TRABALHO
Luís Mauro Sá Martino

ASSISTIR

FIM DO AMOR ROMÂNTICO


Maria Homem

ASSISTIR

9
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

02

AFINAL,
O QUE É PAIXÃO?
Há diferenças entre amar e se apaixonar? Qual o limite entre esses
dois sentimentos? Quando tratamos das distinções, associações
e relações entre o amor e a paixão, podemos tratar de diferentes
pontos que fazem as fronteiras do amor. A primeira poderia ser
a dimensão do desejo, uma experiência amorosa que consideramos
rica, que consideramos transformativa, que não está dissociada
do desejo mas sim intimamente ligada de forma dialética entre
o amor.

É possível perder o desejo e, mesmo assim, continuar amando essa


pessoa, e perder o amor e continuar desejando a pessoa. O mesmo
pode ser dito com relação ao gozo, em congruência com o que Freud
definiu como “Campo da sexualidade humana”, tem relação com toda
uma economia de prazeres. Orais, anais, fálicos, narcísicos. Tudo que
nos gera prazer está referido ao campo do gozo. Ainda que prazer
e gozo sejam diferentes, ainda que satisfação e gozo sejam diferentes.
O amor possui uma zona de sobreposição com o gozo, mas as coisas
podem acontecer separadas.

Há uma terceira dimensão que está na borda do amor, a angústia.


Faz parte desse momento de descoberta que algo está acontecendo,
a mudança do corpo. A quarta fronteira e dimensão, na entrada de
um grande amor, existe uma grande paixão. A paixão tem certas
características, que podem levar à dependência, como gostar de
se apaixonar, do flerte e etc..

Ao se apaixonar, se perde autonomia e independência. Mas toda relação


é de dependência, de submissão? Não, vivemos o apaixonamento como
passividade. A paixão é um conceito filosófico, antes de ir para a experiência
cotidiana, é um conceito que vem do grego pathos, sempre esteve ligado a

10
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

certo dualismo. Gérard Lebrun aponta que há na ética de Aristóteles,


uma correlação de duas recusas, de um lado a recusa de declarar guerra
contra as paixões, mas deve se aprender a dominá-las, não reprimi-las,
a recusa a considerar o comportamento passional como involuntário.
Sim, há escolha possível na paixão, inclusive porque há a escolha por
não se apaixonar, compreendido como um afeto mórbido, passível de
controle, o pathos carrega originalmente dois conceitos diferentes,
o passional (que tem a ver com a ética), ou de forma ativa. Portanto,
não há nenhum demérito nas dinâmicas da passividade.

A passividade é um modo de existência, um modo de experiência,


tão interessante quanto a atividade, amar e ser amado estão em pé
de igualdade, do ponto de vista ético. Mas qual é a potência dessa
relação? As inversões, quando o amante passa a ser amado e o amado
passa a ser amante, essa circulação que vai dar intensidade ética
para o amor.

Um duplo sentido que podemos ver ilustrado através do entendimento


passional versus patológico do apaixonamento, uma tradição que vai
ver no apaixonamento um tipo de loucura, quando não uma infração,
um delito.

Para Foucault é importante distinguir as paixões infantis e as paixões


adultas, indagando o que ainda lhe resta de infantil, quais as loucuras
secretas que nele habitam e que crime fundamental desejam praticar.
Sugerindo que a paixão adulta envolve um conhecimento, um certo
domínio dos riscos, e uma espécie de discernimento que a paixão
é uma paixão, já a paixão infantil nos carrega para uma ingenuidade,
para a demissão do pensar, para uma resposta. Indo do amor para
o desejo, uma resposta a pergunta do apaixonado que é: O que o
outro espera de mim? Quais posturas tenho que tomar para garantir
a manutenção dessa relação?

Quanto mais aguda essa resposta, mais vamos nos aproximando de


formas elementares de amor, que remetem, primariamente, a imagem
infantil, a posição de objeto de cuidado de outro. O fato de que a pessoa
que se apaixona, recorrentemente, passa a ter noção da textura de
ilusão que está vivendo e enfrentando, por isso, ela necessita de
efeitos de realidade para dar sustentação ao contexto.

11
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

Na Metapsicologia, ou no funcionamento do “eu” diante da experiência


da paixão, descrita por vários psicanalistas, sobretudo Freud, como
uma experiência que retoma uma alienação formativa, retomando
a discussão apresentada no primeiro encontro sobre o eu quanto
um divíduo, que não nascemos com um “eu” formado, mas o adquirimos
e o formamos. Mais especificamente segundo Lacan, entre os 6 e os
8 meses de idade, quando a criança passa a ter uma alteração na sua
relação com a imagem do espelho. Em um primeiro momento, ao olhar
para a imagem a reação da criança a sua imagem no espelho não se
diferencia muito de um animal.

A criança e o gato não conseguem se diferenciar de outro animal, ou


pessoa, inclusive quando a criança pequena, menor de seis meses de
idade, olha para sua própria mão investigando e descobrindo algo,
e parece fascinada com aquela mão, que é dela e ao mesmo tempo
não é dela.

Neste primeiro momento de relação com a imagem demonstra então


uma determinada alienação, onde aquele “eu” não se reconhece na
imagem que acaba sendo produzida.

No segundo momento, o tempo do transitivismo ou da indeterminação,


onde a criança, diante do espelho, demonstra um interesse maior pelo
espelho, não é só pelo outro, ela passa a observar, se interessar pela
imagem, brinca com uma problemática que reflete uma forma indeterminada,
um interesse de discernimento entre quem é o agente e quem é o paciente
do ato, sentindo em si o que faz com o outro.

Onde é que está o eu, nesta relação, na imagem? Ou no olho que observa
esta imagem? Na imagem, ou no corpo?

Como na história de Narciso e a perda da possibilidade de ouvir o outro


como diferente. Um paradigma da loucura humana, onde o articulador
percebe algo que não sente e acaba projetando no outro, porque ela
é ruim, o outro que nem sabe o que passa, diz algo que responde a você,
como a realização daquilo que o articulador não suporta em si mesmo.
O transitivismo acaba gerando aquilo que ele mesmo nega, aquilo que
não estava passível de ser reconhecido.

Em um terceiro tempo, a criança finalmente olha para sua imagem e passa


a se reconhecer, a compreender e investigar seu funcionamento, todas as
realizações do esclarecimento nesta experiência formativa do eu.

12
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

O que acontece quando o “eu” descobre esse ponto de passagem


do transitivismo?

Ele experimenta uma satisfação típica, satisfação de tipo narcísica, onde


goza de ser e ter uma imagem, as duas experiências se confundem no ser,
de forma a criar uma confluência das duas histórias para este ponte onde
temos duas paixões.

O pathos, é o pressuposto básico na qual certas experiências fundamentais


podem se dar, neste sentido algumas linhas interpretam o pathos como:
Passividade, patologia e “sentimento de mundo” (Experiência do lugar,
da época, do outro).

Três sentidos de pathos convergentes para o momento onde se adquire


uma imagem, onde há a percepção que esta imagem não sou eu, no sentido
de uma projeção do “eu”, uma extensão, mas que acaba representando
simbolicamente. Ganho este que vem junto com um prazer, que poderíamos
ligar a paixão da fascinação e a paixão pela agressividade.

A partir do momento que percebo o outro, o espelho, o olhar, me torno


alienado ao outro, o outro detém o lugar de onde “eu sou eu”. Se eu não
estou me sentindo satisfeito, a culpa, causa e responsabilidade, passam
a ser do outro.

Justificando portanto, um caráter agressivo com o outro, demandando este


lugar de volta, “me olhe deste lugar onde eu realizo o ideal de mim mesmo
para você”.

Pensando que o “eu”, como instância instável está sempre sujeito a uma
crise, quando o olhar muda, há uma mudança no sentido de si. Mas em
momentos críticos, limitamos para uma opinião, um olhar que me tire
dessa incerteza sobre mim mesmo e este olhar desencadeia a paixão,
portanto, a paixão é quando me coloco neste lugar onde a imagem do
outro me torna uma unidade tamanha em mim que me apaixono, no três
sentidos de pathos, por esta pessoa.

Quanto mais perto, mais ameaço este efeito alienante que vem junto com a
paixão, um efeito com borda gozante e ao mesmo tempo é um abismo, uma
angústia. O apaixonado dá um salto no escuro, no vazio, abandonado diante
de uma catástrofe iminente.

Em alguns casos, sabendo que a paixão acaba ou diminui quando se vive,

13
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

criam-se paixões que não vão poder ser submetidas a choques de


realidade, permitindo um gozo indeterminado com o que poderia
ter sido.

Como vimos, o amor se encontra entre os dois pólos, o do necessário


e o do impossível, segundo Freud, agora temos outra gramática possível
de ser acrescentada: Da contingência, da possibilidade.

A estratégia das cartas não enviadas, como descrito por Darian Leader
em “Por que as mulheres escrevem mais cartas de amor que enviam?”
(1998), é um meio de se lidar com a experiência do apaixonamento
criando sobre ela um certo controle. O que acaba tendo consequências
politicamente perigosas quando falamos da paixão, estudado por Freud
no texto de 1927, Psicologia de massas e análise do eu. Demonstrando
haver formas de apaixonamento artificiais, que geram massas de
apaixonados e que exploram o apaixonamento.

Não deveríamos reduzir o amor à experiência interpessoal de duas


pessoas, há amores que são coletivos, há amores que são mais
horizontais, há amores que intercalam diferentes tipos e qualidades
de amor. A paixão, por sua vez, como forma preliminar de amor
muito intensa e que produz efeitos, de certa forma, semelhantes
a aqueles que temos em funcionamento de massa.

A relutância a esses apaixonamentos se dá principalmente a apaixonamentos


que violam a regra genérica da intimidade (que é “aposte um pouco mais ou
um pouco menos do que a experiência te trouxe, para evitar descompasso).

Esta violação é muito perigosa, porque manipuladores podem se aproveitar


dessa situação, onde, na pior das hipóteses, acaba brincando com os
sentimentos alheios, ou para uma posição de gozo pela indiferença.

Uma paixão é uma intensificação artificial das nossas idealizações e das


nossas identificações, que promete, por um espaço curto de tempo, que
um complete o outro. Um mundo sem ilusões seria uma vida muito pobre,
uma vez que as ilusões são formas brandas de sentir nossos sonhos diante
da realidade, pensando uma realização. Mas em geral, realizamos a paixão
pela sua negação como forma de amor.

Um processo de escolha mútua, onde há o apaixonamento, onde se


vislumbram as possibilidades sobre o que de fato fazer com este amor

14
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

e em um terceiro momento, o que fazer quando esta paixão acaba?


O que fazer com esta realidade transformadora?

APRENDA MAIS COM A CASA DO SABER NO YOUTUBE

QUEM É CONTRA O AMOR?


Clóvis de Barros Filho

ASSISTIR

15
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

03

AS FACES
DO DESEJO
Desejar ou ser desejado? O desejo não é somente um impulso para
o amor — é uma força que movimenta os sujeitos. Para a psicanálise,
o desejo é um fator central no desenvolvimento dos indivíduos desde
seu nascimento — ele se transforma ao longo da vida e definirá uma
série de características em na psique, no comportamento, no modo
de enxergar o mundo. Na vida adulta, o desejo perpassa pela sexualidade,
pelos relacionamentos amorosos e até mesmo pela vontade de viver.
E, talvez de forma à primeira vista óbvia, o desejo interage e se compõe
com o amor — essencial para a continuidade das relações.

O desejo é uma questão extremamente relevante para o século 21,


até existencial. Um estudo publicado em março deste ano pelo SAGE
Publishing, um dos maiores conglomerados de publicações acadêmicas
dos Estados Unidos, Why Are Fewer Young Adults Having Casual Sex?1
(“Por que menos jovens adultos estão fazendo sexo casual?”, em tradução
livre), indica que a diminuição do consumo de álcool, o tempo gasto
com redes sociais, o aumento do uso de videogames e o aumento
do tempo que jovens adultos moram com os pais levaram a uma queda
de 14% nas relações sexuais entre 2007 e 2017, sendo os jovens
americanos de 18 a 23 os que têm vida sexual menos ativa.

A tendência definida como “afastamento da intimidade” se repete ao


redor do mundo: o Japão, por exemplo, registrou em 2019 a sexta queda
consecutiva nos registros de casórios — pouco mais de 580.000 foram
selados em 2018, o menor índice desde a Segunda Guerra Mundial.
Como menos uniões significam menos bebês, o governo decidiu até
ressuscitar a prática milenar das casamenteiras, mas quem promove
as uniões é o próprio Estado. Como Emma Dalton, PhD em Filosofia,
coloca em seu artigo Online Konkatsu and the Gendered Ideals of

16
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

Marriage in Contemporary Japan2 (“Konkatsu Online e os Ideais de


Gênero do Casamento no Japão Contemporâneo”, em tradução livre),
publicado em 2016, a busca por uma cara-metade ganhou até nome:
konkatsu, uma variação de shukatsu, a procura por emprego.

A resistência à intimidade é um mal do século 21, especialmente


pensando na questão do trabalho. As mulheres japonesas, por exemplo,
têm escolhido colocar a carreira como prioridade em um primeiro
momento, ao invés de construir uma família, porque é muito difícil ter
ambos (o problema é que, ao contrário dos homens, elas correm contra
o relógio biológico, e adiar a intimidade pode também significar abandonar
a maternidade — gerando a preocupação com a demografia). Envolver-se
tira, além de energia subjetiva e psicológica, tempo do precioso espaço
da produção. Essa narrativa, contudo, foi encapsulada muito antes por
Wilhelm Jensen, em 1902, quando publicou o romance Gradiva. O texto
sintetizou tão bem a questão do desejo e o recalque da intimidade que
o pai da psicanálise, Sigmund Freud, abordou Jensen e escreveu um
de seus clássicos, O Delírio e os Sonhos na Gradiva de Jensen.

O romance conta a história de um jovem arqueólogo alemão, Norbert Hanold.


Obcecado pelo trabalho com o Império Romano no Museu Arqueológico
Nacional de Nápoles, passa seus dias lendo textos e estudando, sem
nenhuma vida amorosa ou qualquer abertura para isso. Um dia, sentado
em um banco em uma praça, ele vê uma mulher passar — uma mulher
como nunca antes havia visto, com um vestido e sandálias exóticos,
e um andar decisivo marcado pelo momentum de suas solas dos pés
empurrando o chão. Para ele, parecia uma deusa saída diretamente
do Império Romano, de outro mundo. Ele é tomado pelo desejo, que
o desperta do estado de torpor anterior. A cena causa um efeito imediato
de apaixonamento, o efeito de abismo. Angustiado, Norbert não consegue
dizer nada, fazer nada—só observa sua aparição ir embora. Encantado
e desesperado, ele decide escavar suas anotações para entender a conexão
da moça com essa outra época. De repente, descobre um afresco idêntico
à imagem que ele viu passar no parque: o afresco de Gradiva (do latim
“aquela que avança”).

1
SCOTT, J. South; LEI, lei. Why Are Fewer Young Adults Having Casual Sex?. Sage Journals, Vol. 07, march,
2021. Disponível em: <https://journals.sagepub.com/doi/full/10.1177/2378023121996854>
2
Emma Dalton & Laura Dales (2016) Online Konkatsu and the Gendered Ideals of Marriage in Contemporary
Japan, Japanese Studies, 36:1, 1-19, Disponível em:
<https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/10371397.2016.1148556>

17
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

É neste momento de apaixonamento, quase que a antecâmara do amor,


que os elementos do desejo interrogam o sujeito. O que eu quero naquela
pessoa que eu quero? O que faz com que eu me encante por uma pessoa?
A característica fundamental do desejo, que não está no amor, é que ele
introduz uma falta, uma ausência. Gradiva vem, mas depois deixa Norbert.
Não é a moça que determina o desejo: é a sua falta. A demanda, o amor,
pelo contrário, é um estado em que se encontra um objeto, composto
posteriormente como um signo de amor—junção do significante (imagem
literal) e significado (conceito). O desejo, por sua vez, tem um significante
sem significado.

O desejo parte de um encontro com o Outro, um estrangeiro, gerando


quase uma epifania. É como se fosse a primeira vez que Norbert viu uma
mulher. Para Freud, isso se relaciona a um esforço de retorno a traços
mnêmicos de repetição. O desejo é aquilo que alguém quer de novo

No percurso de descobrir esses padrões, o sujeito se depara com a


Constituição interna do seu desejo: a fantasia (que sai do inconsciente).
A fantasia, por sua vez, gera uma pergunta: “o que você quer?” Nas
palavras de Christian Dunker, “o desejo é sempre o desejo do desejo
do Outro”. O interesse em alguém é sucedido pela vontade de encaixotar,
possuir, o desejo deste estrangeiro — de Gradiva. É um processo
perigoso, já que pode criar um padrão de comportamento em que
o sujeito começa a agir da forma que ela acho que o outro quer, ficando,
desta forma, surdo para entender o que o outro realmente quer. O que
se escuta é apenas a fantasia mobilizada para vestir esse outro. Norbert,
inclusive, chega a pensar: “Gradiva quer que eu a estude”, iniciando
uma investigação profunda sobre essa figura no afresco — não diferente
da forma como um indivíduo usa suas redes sociais para fazer a arqueologia
do passado de seu objeto de interesse.

Neste momento, dois processos entram em conflito. A identificação


amorosa (os pontos em comum que o sujeito identifica no Outro,
imaginando um pacto de absoluta intimidade) e a movimentação do
desejo. Alguém tem que fazer o primeiro movimento. De um lado,
se eu não fizer nada, posso perder essa pessoa. Do outro, se eu
forçar, nunca saberei se a pessoa me quer porque me quer, ou só
porque eu a quero. O desejo se realiza quase que por telepatia, em
uma conversa individual com o seu próprio desejo, e não se sabe
nada sobre o outro lado.

18
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

Essa fixação arqueológica está na zona de transição entre o desejo


e o amor. A partir dela, são criados pontos de identificação e signos
de amor, aprofundando o movimento de retornos. Na prática, quanto
mais se deseja o outro, mais o outro te deseja. Está aí o rapto de Freud:
o momento em que o sujeito é arrebatado, puxado para o universo
do outro. E inicia-se o balanço do processo de sedução, em que se
um desejo se afasta, o outro se aproxima, gerando uma resposta do
primeiro (às vezes marcado pelos ciúmes, porque gera o medo da
perda, do afastamento).

Tudo se transforma a partir do momento em que se diz “eu te amo”.


A partir desse dito, a realidade não é a mesma, as pessoas não são
mais as mesmas — mesmo diante da rejeição. Esta é uma das coisas
mais atraentes no desejo, esse efeito de transformação. A partir da
instauração do desejo, tudo que diz respeito ao Outro passa a ser
imediatamente interessante. Uma parte pode ser mentira, mas aos
poucos aquilo começa a transformar o sujeito: sua vida é elevada
pelo Outro, para experimentar.

A dinâmica se dá desta forma desde que haja inversão do amante


e amado. Sempre há alguém que ama mais em uma relação (o amor
não é democrático), mas é imprescindível que os papéis se invertam
com o tempo: a inversão vai criando o desejo. Não é dual: ou o Outro
deseja, ou não deseja. O que acontece é que um provoca o outro,
gerando um ciclo de aproximação e afastamento.

Nos Estados Unidos, por exemplo, existe uma alegoria chamada


“Síndrome do Noivo Canadense”. As jovens moças costumam viajar
para acampamentos de verão, muitas vezes no Canadá, onde se apaixonam
pela primeira vez—e, logo em seguida, precisam deixar os seus amados.
Isso permite o início do processo de desejar alguém em ausência,
à distância, imaginando futuros garantidos e protegidos contra os
efeitos de realização do desejo. É um respiro interessante e formativo.
Todo amor precisa desse ponto de recuo, para que o sujeito possa
se refazer, e refazer o Outro. Quem é aquela pessoa? Quem sou eu
para aquela pessoa? Em casamentos longevos e bem-sucedidos,
o que ocorre são, na verdade vários casamentos: montagens de
amor e desejo que se fazem e refazem.

Nisso, há, essencialmente, duas formas de amar. Na primeira, o amor


se dá em relação ao ser. O sujeito é apaixonado pela existência do Outro.

19
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

É o amor incondicional, importantíssimo de se ter na infância para que


a criança sinta segurança. Mas pode ser perigoso, já que, se o amado
faz algo ruim, é desrespeitoso, o amor não morre. Na segunda forma,
mais qualificada, o amor se dá em relação ao que o Outro faz. Precisa
cuidar, merecer, se não se perde o amado.

Do delírio à verdade

Enquanto estuda a Gradiva de mármore, Norbert continua tendo outros


encontros esporádicos com sua Gradiva de carne e osso. No parque,
ela passa, olha, para, passa de novo. Um dia, ela se senta ao seu lado
no banco e os dois têm uma conversa estranha, em que começa a contar
detalhes sobre a vida do arqueólogo que uma desconhecida não poderia
saber. A narrativa de Jensen conversa com o momento da mágica amorosa
em que o objeto de afeto parece adivinhar o desejo — mas, na verdade,
ele só sabe porque escuta.

Ao final, contudo, Gradiva se revela de forma extremamente literal. Ela conta


que seu verdadeiro nome é Zoe Bertgang e só sabe dos detalhes sórdidos
da vida de Norbert porque era sua vizinha de infância, motivo porque ele
sempre sentiu que já a havia visto. Os dois estudavam juntos, brincavam
juntos no mesmo pátio e se apaixonaram com a paixão doce da juventude.
Ela nunca o havia esquecido, e ele também não, mas em seu delírio só
conseguia enxergar a mulher do afresco. Envolto no seu mundo do trabalho
e da arqueologia, ele reprimia e recalcava seu desejo, que só pôde aparecer
deformado n’“aquela que avança”. “Zoe” significa vida, “Bertgang”, ou “gang”,
é “direção”. A vida direcionada, a mulher que anda como se soubesse para
onde vai. O nome da vizinha, seu primeiro amor, nunca saiu de sua mente.
Foi o significante que apareceu no primeiro momento do arrebatamento.

Freud usa o romance de Jensen para falar sobre a busca nas origens do
passado pelos desejos que ficaram para trás, parte decisiva e para criar
os desejos possíveis do futuro. Ignorar as paixões passadas é jogar fora
as pistas para descobrir onde o seu desejo se liga ao amor, e onde o seu
amor se liga ao desejo. Na história, Zoe é analista e sintoma ao mesmo tempo:
é o delírio de Norbert e a cura de seu amor delirante, o amor que ele amava
sozinho. Não apenas uma ilusão, o delírio é um meio de aproximar-se da sua
realidade. E quando o arqueólogo se apaixona é como se aquele amor sempre
estivesse escrito em sua vida (a repetição, a volta), e o amor é a reunião,
ou despertar, do indivíduo que estava esquecido de si. No arrebatamento,
a neurose de Norbert se transforma profundamente. Primeiro, o desejo

20
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

nega o amor, mas depois o absorve e conserva. E vice-versa. O próprio pai


da psicanálise denomina esse poderoso competidor para a cura: o amor.

APRENDA MAIS COM A CASA DO SABER NO YOUTUBE

AS RELAÇÕES SEXUAIS
SÃO INCOMPLETAS
Welson Barbato

ASSISTIR

AMOR É DESENCONTRO
Clóvis de Barros Filho

ASSISTIR

21
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

04

A SOLIDÃO
CONTEMPORÂNEA
Amar pressupõe o outro? É possível estar acompanhado e mesmo assim
se sentir só? Como explicar a solidão, esse sentimento de ausência que
paradoxalmente nos atinge em um mundo cada vez mais conectado?
Mais do que isso: a solidão dificulta o amor ou é sua companheira?

O século 21 implicou em novas formas de interação com o mundo,


principalmente pelo protagonismo da internet: empresas reinventaram seus
serviços, governos adotaram ferramental digital, diferentes partes do mundo
se conectam com dois ou três cliques e ideias de múltiplas matizes são
compartilhadas com amplitude imensurável. Essa renovação de paradigmas
ainda em curso, porém, não veio sem custos, em seu livro Reinvenção
da Intimidade: políticas do sofrimento contemporâneo, Christian Dunker
argumenta que as relações amorosas atuais têm como principal desafio
a solidão, isso porque tal experiência de desamparo cresce linearmente
a cada geração, sobrepondo-se com intensidade entre os mais jovens,
já familiarizados com as dinâmicas virtuais e perenes dos ambientes online.
Não à toa, de acordo com reportagem publicada no periódico El País,
em 2016, um em cada três brasileiros afirmam que se sentem sós3.

Mas onde está enraizado esse mal-estar? Para Dunker, uma das principais
razões reside no descompasso entre os ideais da modernidade e a verificação
de suas realizações no mundo. Ancorando-se no filósofo polonês Zygmunt
Bauman, Dunker analisa que o projeto moderno traz consigo duas frentes
contraditórias de compreensão da realidade, a primeira que impõe a força
da discriminação, da separação e visualização do outro; a segunda que aponta
para a impossibilidade de estar só e, portanto, da dependência de diferentes

3
CACIOPPO, John; CACIOPPO, Stephanie. Solidão, uma nova epidemia. El País online. 13 de abril de 2016,
Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2016/04/06/ciencia/1459949778_182740.html>

22
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

sujeitos. De tal modo, entre essas espécies de consagração do indivíduo


e reconhecimento de sua diminuta presença na coletividade, o autor lê
a virada para o século XXI como a afirmação de um “acordo digital” que
demanda energia e infiltração pessoal em interesses ou projetos particulares.

Desprendido a não ser de si mesmo, o sujeito elenca suas prioridades


– o trabalho, por exemplo – assim como as demandas menos importantes,
entre elas a experiência amorosa. Numa sociedade que relega o amor
a um papel marginal e que tem o neoliberalismo como modelo socioeconômico,
Dunker entende que as estruturas da política, da economia e da cultura
perpetuam o sofrimento psíquico de cada um, logo, de toda sociedade.
A solidão, portanto, é fruto do Neoliberalismo como gestão do sofrimento
(DUNKER, 2021).

A partir desse ponto de vista, o amor e a solidão, portanto, estão conectados


não apenas à análise psíquica ou fisiológica dos sujeitos, mas também
ao universo das interações sociais e, sobretudo, do trabalho. Dunker
compreende que com a emergência do neoliberalismo na década de 1970
e sua consagração após a Queda do Muro de Berlim, esse estilo de produção
e vida ancorou-se na globalização para determinar um padrão de comportamento
universalizante, caracterizado antes pelo sofrimento que pela seguridade geral.
Elencando o indivíduo em sua capacidade produtiva como força-motriz da nova
ordem que se desenhava, articulou-se também os contornos de uma “política
de sofrimento” que tem o trabalho como principal parâmetro das potências de
cada um. Dessa maneira, pressupostos como a competitividade, as relações
predatórias, a flexibilização associada à produtividade e a disponibilidade
integral, caracterizam-se como índices de valoração pessoal.

A vida, assim, é analisada sob a lente da gestão do sucesso de uma empresa,


pelo vocabulário do empreendedorismo. Os sujeitos não se constituem
por si ou pela forma como acumulam repertórios variados, mas pelos sucessos
pessoais de uma lógica competitiva. Tal financeirização da experiência é
verbalizada por Dunker sob o epíteto de “Você S/A”, ou seja, os pronomes
e a identidade pessoal são constituídos mediante o código trabalho.
Desdobra-se daí a pergunta: como amar sob essas condições?

De acordo com o psicanalista francês Jacques Lacan, o amor e o desejo


são problemáticos para um discurso do mestre, uma vez que essa voz
imperiosa almeja não o êxtase afetivo-amoroso, mas sim a realização
que se dá na entrega dos serviços, isto é, o mestre não abre espaço
para o amor, pois seu olhar prioriza o trabalho. Nesse cenário lacaniano

23
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

atravessado pelo neoliberalismo, a grande crise da experiência amorosa está


na virada do longo século 20, como nomeia Giovanni Arrighi, para o século 21,
na medida em que há uma “deflação da experiência amorosa” incentivada pela
compreensão da vida sob padrões de produção econômica.

O impacto dessa crise da experiência amorosa a partir dos anos 2000 é,


para Dunker, potencializado por algumas razões: o fácil acesso e amplitude
de recursos ou plataformas de interação digital (redes sociais), a comparação
autodestrutiva que se desdobra de uma idealização de outras pessoas
e a dificuldade de se amar numa ordem social ainda em trânsito.

A relevância do acesso irrestrito as redes sociais, por exemplo, se dá pela


capacidade dessas mídias de deslocar a experiência presencial (o bar com
os amigos, o encontro para conversas, as festas intimistas etc.) para um espaço
periférico em relação ao mundo virtual, já que dele se extrai a possibilidade de
encontrar o que for mais interessante e personalizado num cardápio de ofertas
infinitas. Se a substituição da presença pela virtualidade minimiza a exposição
aos riscos do encontro pessoal, a troca de olhares, o medo de uma rejeição,
ela também amplia seu grau de idealização, fechando as portas para a efetivação
de uma possível experiência afetiva. Na equação de enfrentar o desafio da
possibilidade de amar ou resignar-se no conforto pessoal, o sujeito se debruça
na segunda opção. Mas o amor não pressupõe o risco?

A comparação crônica, por sua vez, nasce como grau de autocobrança por
uma vida que não atinge as metas, resultados e perspectivas delineadas dentro
do padrão neoliberal. Se a vida é estruturada sob a concepção do “Você S/A”,
toda formação toma como parâmetros as conquistas e méritos, de tal modo
que o sucesso pessoal é posto em paralelo com a leitura idealizada da vida
de outra pessoa, sempre superior, mais vigorosa em recursos e possibilidades.
O outro é o sonho e o fim do autorreconhecimento. As redes sociais nessa
questão funcionam como curadoria de imagens que ficcionalizam identidades,
mascaram fraquezas, medos e incertezas.

Daí que amar em tempos neoliberais seja cada vez mais difícil, afinal o amor
se produz através da palavra, do jogo comunicativo em sua totalidade: expressão
facial, tons, vibrações, gestos, inseguranças, entre outros. Se é da comunicação
interpessoal que nasce o amor, a ordem neoliberal estabelece caminhos outros
para o reconhecimento do indivíduo, ao passo que monetiza a imagem e o
sucesso, desvalorizando as oscilações naturais da personalidade. Em outras
palavras: aquilo que se posta no ambiente digital inventa uma vida que está
alinhada com a forma que gostaríamos de ser vistos, e não com o que somos.

24
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

O que somos ou o amor que queremos, surge apenas na palavra vivida,


dos verbos trocados entre sussurros, toques e olhares.

Amar: verbo intransitivo.

Christian Dunker é categórico ao afirmar que o amor é algo que se produz, não
algo que se tem. Isso porque amar pressupõe as trocas ativas de palavras entre
os sujeitos, não uma comunicação virtual por mensagens online, telefonemas
ou cartas. A produção amorosa emerge da experiência vivida e compartilhada,
já que é nela que se expressa o que somos em nossa totalidade e não numa
performance neoliberal. A presença cria a aproximação e intimidade de onde
pode surgir o amor, afinal, é como diz Rubem Alves, as cartas de amor ilustram
“o que está ausente”4 e não os sujeitos que se dispõe a amar.

Dessa perspectiva, viver o amor pressupõe a linguagem e, consequentemente,


a complexidade expressiva da linguagem. Com isso, a ação amorosa é também
a troca que duas ou mais pessoas fazem dos seus sentimentos nebulosos e até
recônditos. É o desnudar da própria intimidade perante o outro, falar e expor a si
mesmo com e para um interlocutor(a) novo(a), a ponto de que essa enunciação
de si e escuta da experiência alheia seja também uma transformação pessoal.
Rememorando as interpretações de Christian Dunker, o amor é um é uma
produção e expressar a intimidade de si mesmo é uma maneira de cultivá-lo.

O que ocorre, porém, quando já afirmamos ou negamos um amor? Que tensões


nos atravessam após o encontro realizado? Como lidamos com o desenrolar
do que em efetivação da experiência amorosa ou desamparo por sua não
realização? Retornando à filosofia de Zygmunt Bauman, Christian Dunker
desenha um panorama da consonância de duas experiências cada vez mais
rarefeitas na contemporaneidade: a comunalidade e os sentidos possíveis
do encontro. Por comunalidade entende-se a necessidade de estar junto
colocando o pronome nós a frente da individualidade dois sujeitos (o pronome
eu), é o interesse mais pela companhia e pelo estar junto, do que pelo que
se faz com o parceiro(a); nesse caso, o que está em jogo não é a ida a algum
parque, um encontro no cinema ou um jantar, e sim o desejo maior de estar
lado a lado de outra pessoa. Já os sentidos possíveis do encontro são as
possibilidades futuras que idealizamos a partir do contato, isto é, como
sonhamos e imaginamos os dias por vir com a pessoa desejada; essa
elaboração passa por incertezas, dúvidas e tensões próprias do momento
da decisão.

4
ALVES, Rubem. O retorno e eterno: crônicas. Campinas, SP: Papirus, 1992, p. 43-44

25
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

A decisão do desejo: intimidade, solidão e solitude

Se no século 21 a intimidade é associada com a fraqueza e o amor demanda essa


particularidade, como nasce intimidade? De que forma criamos esse vínculo?
Dunker compreende que a compreensão da experiência íntima germina a partir da
solitude, isto é, a capacidade de estar só e não se sentir solitário.

Aparece então uma diferenciação fundamental do comportamento psíquico:


a oposição entre solidão e solitude. A experiência da solitude compreende a
qualidade de estar em bem-estar consigo mesmo, ainda que sozinho; é a zona
de conforto e segurança que poetas ingleses como Edgard Allan Poe associaram
com a finitude. Voluntária por se tratar de uma busca própria pela admiração e
experimentação da vida, a solitude se constitui como hábito de conhecimento
pessoal, é a tranquilidade de manter-se em paz consigo mesmo.

Com atuação em campo diametralmente oposto, a solidão é destrutiva


e muitas vezes involuntária, nela as pressões psíquicas dos julgamentos
pessoais e sociais atuam como narradores fantasmas que impedem
a apreciação e conhecimento de si, o mal-estar preenche a solidão
e ela, carregada de negatividade, deságua no sujeito. Paulinho da Viola
talvez tenha composto alegoria ideal para esse sentimento ao mostrar
que a “solidão é lava que cobre tudo”5.

Colocada a diferença entre solidão e solitude, uma nova afirmação aparece


para esmiuçar a intimidade e o amor: o apaixonado vive apenas a solidão.
E por quê? Sentindo-se em posição de entrega os com as possibilidades
do encontro a flor da pele, germina no apaixonado um caminho duplo que
permite tanto a elaboração positiva do amor (sua concretização), como sua
face de incerteza e desencontro. Daí que em desconforto e com anseio por
algo incerto, a possibilidade de vivenciar a solitude é cerceada. Em outras
palavras, nascem perguntas como: e se eu não for correspondido? E se eu
me machucar? E se me entregar demais? Como ele(a) vai se sentir daqui
para frente? O apaixonado se descobre no temor pelo próprio sofrimento,
assim como pelo de quem ele almeja.

As novas experiências amorosas contemporâneas em seu grau de solidão


passam, de tal modo, por duas importantes dificuldades: uma que diz respeito
ao fato de que normalmente cada uma das partes de um relacionamento já
possuiu outros relacionamentos anteriores e com eles a verbalização repetida
da principal sentença amorosa: “eu te amo”. A outra é o apêndice do que
Dunker nomeia como “lutos amorosos pendentes”, a substituição das

26
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

experiências de superação, finalização e luto do fim de uma relação por


uma característica particular do século 21, o apagamento virtual dos antigos
parceiros. Com recursos para deixar de seguir, bloquear, cancelar ou excluir
pessoas de um círculo, a dinâmica das redes sociais favorece que as
vivências de términos não sejam sentidas em sua completude, uma vez
que a exclusão do outro age, em certa medida, como apagamento da
memória e da história pessoal. Soma-se que junto dos desejos pendentes
e dos casos mal resolvidos, o fardo dos “lutos amorosos pendentes”
cresce gradativamente em mal-estar.

Encontros e desencontros

Se o amor ficou de fora das estruturas neoliberais do século 21, seria


favorável apostarmos nele para a melhora do mundo? É de mais amor
que precisamos? A compreensão de que é pelo acréscimo desse sentimento
que o sujeito se torna melhor e de que a transformação do mundo segue os
mesmos passos é questionada por Dunker. Para ele, a experiência amorosa
não deve ser lida com onipotência divina, espécie de elemento messiânico
dos problemas particulares e sociais, pelo contrário, tal compreensão
confunde dimensões como o desejo e os anseios. Aparece nesse cenário
uma nova preocupação: os encontros e desencontros.

Um exemplo ilustrativo dessa narrativa incipiente aparece na produção


hollywoodiana de comédias românticas. Ali são comuns os filmes em
que um amante se vê apaixonado por alguém em um momento incerto
ou impreciso, limitando a consagração amorosa. Mesma situação pode
ser lida através da literatura brasileira, quando Machado de Assis escreve
o conto Troca de Datas, narrativa da paixão ideal de Cirila e Eusébio, mas
que por ocorrer em momento inapropriado leva o narrador a dizer “não
eram as naturezas que eram opostas, as datas é que não se ajustavam”6.

Ancorando-se em Lacan e nas leituras que o francês fez do romance


O deslumbramento, de Marguerithe Duras, para além do envolvimento
e do desejo das partes que se amam, Dunker também esmiúça que
quanto maior o desencontro, mais poderosa a sensação de rapto, de
captura sentimental que o outro impõe sobre o amante. Essa transformação
que se aproxima de uma possessão pela figura alheia, se esparrama
para além dos comportamentos psíquicos, evidenciando-se em
alterações físicas do corpo, o que a relaciona não com o conceito
de desejo, mas de gozo. Ao pensar no amante, o desencontrado

6
ASSIS, Machado de. Troca de datas. In: Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, Nova Aguilar,
Rio de Janeiro, 1994. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000177.pdf> 27
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

fica com a respiração ofegante, as mãos tremem, os poros se sensibilizam,


as pupilas se dilatam etc.

Esse sentimento de estar raptado ou possuído é a experiência do sublime


que explode junto com o amor. Tecendo-se entre a oscilação do prazer
pela presença do outro, assim como pela solidão de não tê-lo ainda que
por alguns minutos, sobretudo, numa sociedade como a do século 21 (que
erodiu as distâncias temporais),; o amor oferece a alternativa do risco contra
a passividade de solidão individual. É melhor lidar com os perigos de amar
ou se manter seguro na própria solidão?

Narciso acha feio o que não é espelho

Uma das principais faces da sociedade do século 21 é a reprodução


em projeção geométrica das relações narcísicas, a supervalorização
da imagem, do sucesso, dos lucros simbólicos e materiais que um
sujeito pode empreender a seu favor. Nesse palco onde a enunciação
de si é a marca de distinção em relação à coletividade, como podemos
entender o amor enquanto resultado de uma matriz narcísica? O que é
amar nessa sociedade narcisista?

Em contraponto está o amor anaclítico, cuja principal determinação


é o vínculo com a anterioridade, as experiências de amores já vividas
em outras relações. Navegando em mares opostos ao do narcisismo
que exige singularidade e novidade dos laços criados, o amor anaclítico
faz-se pelo reconhecimento do patrimônio sentimental em ação no presente,
ou seja, a partir da consciência de que o que já foi vivido e enunciado
ressoa não como nostalgia, mas forma de carinho e elogio transformado
para as dinâmicas e interações do presente. Solidário e vendo-se como
parte fundamental de um quebra-cabeças em curso, o amor anaclítico
acolhe os desafios de amar e enfrentar a solidão neste século.

Amar ou não? Dedicar-se ao outro desnudando a si mesmo? Sofrer em


si ou sofrer com e pelo outro. A decisão pendular não é óbvia e nem
correta, no entanto, como fala o próprio Christian Dunker, há duas vias
principais: “a solidão do seu condomínio ou o parque de diversões que
o mundo oferece”.

APRENDA MAIS COM A CASA DO SABER NO YOUTUBE

A IMPORTÂNCIA DE ESTAR SÓ
Maria Homem

ASSISTIR 28
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

05

A LIBERDADE
DE AMAR

A contemporaneidade traz consigo novas elaborações de como


viver—e de como amar. Relacionamentos abertos, poligâmicos ou
monogâmicos são constantemente colocados à mesa para discussões
sobre quais são as possibilidades de viver um amor. Como a psicanálise
enxerga essa variabilidade de relações e seus impasses? Como o amor
pode ser reflexo das novas formas de enxergar o mundo?

Historicamente, formas de amor que desafiam a “tradicional família


brasileira” são reprimidas e restringidas. Regimes totalitários, desde
a Alemanha nazista de Adolf Hitler à União Soviética comunista de Joseph
Stalin, sempre perseguiram as minorias sexuais que hoje se enquadram
no grupo LGBTQI+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transsexuais, Queer,
Interssexuais e demais desafiantes da heteronormatividade. Ainda hoje,
países como a Arábia Saudita, a Mauritânia ou o Iêmen criminalizam
a homossexualidade. Por isso, não é de se espantar que a descoberta
do amor como o conhecemos hoje tenha ocorrido na Modernidade.

O início da Idade Moderna varia de acordo com a área de conhecimento,


mas o conceito de Zygmunt Bauman é propício para explicar a descoberta
do amor. Em “Modernidade Líquida” (1999), o filósofo marca a transição
de épocas com o momento em que a vida social passa a ter como centro
o individualismo, uma expansiva autonomia do homem em relação à vida
em sociedade. Deixando a posição de subordinado das instituições sociais,
e assim suas impostas crenças, regras e valores, aparece o individualismo
seguindo o viés do liberalismo, baseado na igualdade e liberdade como
meio de se superar a dominação social. O amor, neste contexto, tem
a ver com a forma que o ser humano se desprende da instituição família
— locus, por sua vez, da experiência primária do amor.

29
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

Amar, então, aparece como ponta de lança para descobrir formas de


liberdade. Não é à toa que os regimes totalitários previamente mencionados
fizeram e fazem tanto esforço para restringir a diversidade de arranjos
amorosos, na esperança de, assim, restringir também ideias e desejo
de liberdade. A consequência é que a vida dos afetos vai sendo excluída
para o espaço privado — uma fantasia para ser vivida exclusivamente
entre duas pessoas. Nas palavras de Christian Dunker, é como se esse
raciocínio político soubesse que, nas formas de amar, “se inscrevem
invenções possíveis de uma lei ainda não escrita”. Na música, Milton
Nascimento canta que “qualquer maneira de amor vale à pena / qualquer
maneira de amor valerá” 7.

As quatro dimensões do amor

Muito conhecido por sua série de ficção As Crônicas de Nárnia, C. S. Lewis


também é referência por suas obras envolvendo a apologia cristã. Entre
elas, está Os Quatro Amores (1960), em que o romancista e acadêmico
destrincha as naturezas do amor, das mais básicas às mais complicadas,
que muito têm em comum a princípio. Para o autor, “a forma mais elevada
não fica sem a mais baixa”. O conceito se divide em quatro categorias,
baseadas nas palavras gregas para o amor: philia, ágape, eros e storge.

Apesar do amor ser uma invenção moderna, como mencionado anteriormente,


é possível enxergar as dimensões do amor em materiais muito anteriores.
Antígona, tragédia grega escrita por Sófocles por volta de 442 a.C., do
amor philia. Cronologicamente, é a terceira peça de uma sequência de três
— a chamada Trilogia Tebana —, cuja protagonista é Antígona, filha de Édipo
e Jocasta, e irmã de Etéocles e Polinices. A história começa com a morte
dos dois homens, que se matam na luta pelo trono de Tebas. Quem sobe
ao poder é Creonte, cuja primeira ordem é que o corpo de Polinices fosse
largado a esmo, sem o direito de ser sepultado, para que as aves de rapina
e os cães o dilacerassem. Seu objetivo era criar uma forma de aviso contra
quaisquer tentativas de derrubar seu governo. Antígona, por sua vez, se
recusa a abandonar o corpo do irmão, mesmo que tenha que pagar com
a própria vida. Para ela, as leis humanas estavam indo contra as leis divinas
e, em um ato de rebeldia, joga uma camada de pó sobre Polinices. Na
sequência, Antígona é presa por Creonte e se suicida (novamente,

7
NASCIMENTO, Milton, Minas, EMI-Odeon, 1975 Disponível em:
<https://open.spotify.com/track/7F1cbFaGSfZE1GTh6wKIAr?si=P_UiS7_1TZ-EI-ocQASabg>

30
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

o regime totalitário reprimindo o amor). Contudo, a teimosia do tirano


causa uma sequência de tragédias posteriores: seu filho, Hêmon, que
se apaixona pela rebelde em cativeiro, também se mata após a amada
falecer, o que faz com que Eurídice, sua mãe e esposa de Creonte, também
dê fim à própria vida.

Sófocles descreve um governo em que a philia — amizade, fraternidade


— não deve estar presente na gestão da vida pública, ao que a protagonista
diz não. Antígona acredita que todas as pessoas têm direito a um funeral,
à lembrança, à existência, e portanto ao defender seu irmão, estava
defendendo todos os tebanos. Seu amor por Polinices confronta
o estado das coisas e o renova, estabelecendo novas leis.

Já ágape, associado às formas religiosas de amor, está presente em


Blaise Pascal, matemático, filósofo e teólogo católico francês nascido
em 1623. Influenciado por Santo Agostinho, Cornelius Jansenius e Saint-
Cyran, Pascal sugere que ágape é o amor que deve acontecer apesar
de tudo, o amor não recíproco, ou que não precisa ser recíproco.
Do reino nefasto do amor-próprio: A origem do Mal em Blaise Pascal
(2018), de Andrei Venturini Martins, discute as teorias do filósofo a
respeito da origem do mal no mundo, que viria de um mal-direcionamento
de ágape. Mas não é preciso ser religioso para pensar nesta dimensão
do amor: ágape seria um amor universal ao humano, à experiência maior,
uma expressão de verdadeira solidariedade, ou caridade. É a dimensão
que nos coloca em proporção (de pequenez) em relação ao outro.

Talvez eros seja o mais conhecido dos amores, talvez a dimensão mais
retratada pela literatura. Para falar de liberdade, contudo, Marquês de Sade
cai como uma luva — ou um chicote. Nascido em 1740, o nobre, político
e filósofo francês é conhecido como o pai da libertinagem e escreveu uma
série de obras eróticas, que combinavam discurso filosófico com pornografia.
O Marquês retratou fantasias sexuais com ênfase na violência, sofrimento
e sexo anal (que ele chama de sodomia, crime e blasfêmia contra o Cristianismo).
Em Os 120 Dias de Sodoma (1904), há uma história em que, no ermo castelo
Silling, em meio à Floresta Negra, quatro nobres e quatro prostitutas se reúnem
para torturar 36 jovens diariamente, até serem sacrificados e descartados.

Defensor de bordéis públicos gratuitos fornecidos pelo Estado, da liberdade


absoluta, moralidade irrestrita, sem religião ou lei, o único comportamento
sexual violento de Sade é um suposto espancamento de uma empregada
doméstica e uma orgia com várias prostitutas. Seu legado, por outro lado,

31
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

é muito mais amplo: não apenas criou um repertório de diferentes formas


de amar e de ter prazer sexual, mas também abriu precedentes para a liberdade
de amar. Com suas fantasias, Sade declara que todas as forças de amor
(no caso, eros) têm direito e dignidade de existência. Nada é proibido,
o que é uma total e completa revolução. Juliette, publicado anonimamente
por Sade em 1797 e acompanhado de “Justine”, prega que o amor do sádico
por sua vítima é legítimo, assim como o amor pedofílico (sempre extremamente
polêmico). Nas palavras de Dunker, usa-se o argumento da pedofilia contra
a liberação de todas as formas de eros na tentativa de coibir a lógica expansiva
do amor: é preciso ir ao extremo para procurar algo a que se possa dizer
“não”. O impasse surge quando o amor não respeita o outro, o viola, mas
nada impede que todas as suas formas existam no nível do sujeito.

A quarta dimensão descrita por C. S. Lewis é menos conhecida. Storge,


segundo o autor, é a ternura, afeição, definida pela capacidade de se ter
um amor empático e separar a corrente sexual da corrente terna. É extremamente
potente, pois ultrapassa o modelo formulado no contrato monogâmico:
com storge, é possível amar em multiplicidade. Dizer “eu te amo” costuma
ser sinônimo de “você me é fiel” — não deseja outras e outros. Mas,
sendo possível amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo, o que fazer
com os outros amores?

Perverso-polimorfo

Os amores contemporâneos, mais múltiplos e fluidos, estão revisando essa


narrativa. Temáticas como abrir a relação, ou formar um “trisal” (casal com
três indivíduos), propõem uma nova distribuição entre as quatro figuras
— às vezes com mais storge, às vezes com mais eros — e mostram que
o amor pode ser mais do que imaginamos.

Em uma leitura mais superficial do Complexo de Édipo, há apenas duas


dinâmicas de relacionamento. Inspirado na tragédia grega de Sófocles
Édipo Rei, Sigmund Freud designou o conjunto de desejos amorosos
e hostis que uma criança desenvolve em relação às figuras parentais.
O filho homem se identificaria com o pai e amaria a mãe, enquanto a filha
mulher se identificaria com a mãe e amaria o pai (desenvolvendo, no primeiro
caso, um amor narcísico e, no segundo, um amor objetal). O resultado:
uma forma de amar heterossexual, genital e monogâmica. A teoria, contudo,
não previa apenas essa interpretação dual.

Para Freud, todos têm uma predisposição à bissexualidade. Em sua obra


Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), a partir de sua leitura

32
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

dos “desvios sexuais”, o pai da psicanálise explica que a pulsão não


possui objeto fixo. No momento inicial da vida humana, inclusive, a pulsão
seria independente do seu objeto, detectável por Freud a partir das
experiências de satisfação sexual, codificadas por ele a partir do conceito
de autoerotismo. Tal afirmação pretendia fragilizar o argumento da psicopatologia
da época, cuja nosografia estabelecia objeto e finalidade fixos para a pulsão
sexual, fora dos quais todo comportamento deveria ser considerado uma
“aberração”. Com o conceito de “perverso-polimorfo”, Freud explica que
a fixação de libido, a inversão e a transgressão anatômica fariam parte
do repertório psíquico corriqueiro da pulsão sexual.

Ou seja, a criança tem os lados feminino e masculino, e seu gênero também


é impactado por sua interpretação do mundo. As duas versões do Complexo
de Édipo estão presentes para todas as pessoas: algumas reprimem uma
articulação, outras reprimem outra, para constituir sua fantasia fundamental.
Depois de constituída, ela é inalterável—incurável. Como essa fantasia é
o limite que dá liberdade para cada sujeito, a tentativa de alterá-la (como,
por exemplo, em supostas terapias de reorientação sexual) causa muito
sofrimento. Assim, a liberdade é pensada não de um limite exterior, mas
de um limite interior, formado na relação com o Outro, nas diferentes
qualificações do amor.

O “eu-objeto”, o “outro-objeto” e uma nova definição de liberdade

Agora, que objeto é este a quem alguém direciona seu amor? O eros,
storge, que seja, objetifica o Outro?

Faz parte da matriz ideológica, neoliberal e capitalista imaginar que só


existe liberdade no campo individual. Para autores como Adam Smith
e Stuart Mill, os seres humanos nascem livres por contrato, pensando
a condição como uma potência do sujeito identificado como indivíduo.
Hoje, essa liberdade se traduz no “modelo Tinder” de encontrar um amor
—a suposta autonomia de escolher quem se quer no infinito cardápio
de fotografias.

Contudo, não é esta a liberdade (de escolher um entre os possíveis)


importante do amor, que faz o indivíduo expandir. Isso porque todos
os seres humanos são ambos sujeito e objeto, mas objetos não passivos,
não dominados, que escolhem. É importantíssimo, inclusive, ter um lado
objeto para conectar-se com o próprio corpo. O que ocorre é que, diante
da inexistência do amor romântico como criação de um sujeito soberano
capaz de escolher o outro contratualmente, muitos escolhem ignorar
ao amor, batendo no alvo errado.
33
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

Esta imprecisão tem raízes profundas na ideologia amorosa. O que não falta
em Hollywood, por exemplo, são massivas narrativas sistemáticas de amor
heterossexual dominativo, e não a dominação erótica de Sade. Assim como
regimes totalitários, a indústria empurra certas formas de amor para fora do
espaço público, uma violência contra a força libertária e libertadora. Amor
tem a ver com palavras, com a história dos relacionamentos pregressos
—como alguém amou e foi amado—, por isso seria imprescindível criar
um repertório extenso de referências.

Diante disso, uma nova definição do que é liberdade se faz necessária,


não mais baseada no sujeito autoconsciente de suas próprias escolhas
e no objeto passivo e dominado, mas envolvendo tanto a condição de
sujeito quanto a de objeto. Negar a condição de objeto é negar a potência
passiva do corpo, sua contingência de encontro. Há mais no humano
que sua cabeça pensante: o corpo fala, muitas vezes coisas em extrema
contradição em relação ao pensamento. Surge o amor baseado na
contingência, o modo de ser daquilo que não é necessário, nem impossível
—mas que pode ser ou não. A liberdade é a possibilidade do amor, não as
possibilidades de escolha de um entre muitos. “Todo amor contingente
demanda nomear a verdade que está em jogo nele, e que você não sabe”,
diz Dunker. É o amor que se transforma, e transforma todos que estão
nessa jornada. É o amor em devir, que mistura philia, ágape, eros e storge.

O grande desafio é, neste processo de transformação, driblar o principal


“anjo destruidor” do amor: a familiaridade. No ensaio “Sobre a degradação
geral da vida erótica”, contido na obra Cinco lições da psicanálise:
Contribuições à psicologia do amor (1910), Freud escreve que todos
os amores, uma vez constituídos, iniciam imediatamente o seu processo
de erniedrigung (degradação, decaimento). Muitos casais tornam-se meros
cuidadores de casa, criadores de filhos, acumuladores de bens, principalmente
com a diminuição do eros na dinâmica. Neste caso, não adianta apelar para
um rearranjo do acordo—abrir o casamento, fazer uma amizade colorida—para
“consertar” o amor. Nas palavras de Dunker, “o melhor momento para abrir
uma relação não é quando o casal está mal, mas quando está bem”. Então,
como lidar com o erniedrigung? Já se disse muito que amor sem obstáculos
não é amor. Como construir resiliência e renovar a vida amorosa? Por que amar?
Ou melhor, por que continuar amando?

34
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

APRENDA MAIS COM A CASA DO SABER NO YOUTUBE

A RELAÇÃO SEXUAL NÃO EXISTE


Christian Dunker

ASSISTIR

ORIGENS E RESSIGNIFICAÇÕES
DO CORPO NEGRO
Jaqueline Conceição

ASSISTIR

35
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

06

POR QUE AMAR – OU POR QUE


CONTINUAR AMANDO?

Após tantas decepções, dúvidas, e em meio ao caos, por que persistir no


amor? Aquilo que nos resta em tempos sombrios é amar? Como o amor — de
si mesmo, ao próximo e ao mundo — pode ser a chave para mudanças e uma
fonte de esperança? A psicanálise enxerga que essa força oriunda do amor
pode ser potência para novos tempos.

Está ficando cada vez mais claro quanto amor exige do subjetivo. Se antes
havia certas soluções prêt-à-porter, como formar uma família, por exemplo,
amar hoje se tornou muito menos claro, o que causa um recuo diante da
percepção do tamanho da transformação psíquica que o ato requer. Quando
Gustave Flaubert escreveu Madame Bovary em 1856, mal sabia ele que
nos tornaríamos uma sociedade bovarista: como Emma, jovem sonhadora
e apaixonada por romances que se decepciona com o casamento com o
indiferente Charles e passa a praticar adultério, o indivíduo contemporâneo
preza o desejo de ser outro. Ter várias vidas, carreiras e amores dentro de uma
mesma experiência.

Segundo o filósofo francês Jules de Gaultier, em Le Bovarysme, la psychologie


dans l’œuvre de Flaubert” (1892) bovarismo consiste em uma alteração do
sentido da realidade, na qual uma pessoa se considera outra. O termo faz
referência ao estado de insatisfação crônica de um ser humano, produzido
pelo contraste desproporcional entre suas ilusões e aspirações e a realidade
frustrante. O amor entra neste contexto como meio de realizar o desejo de
transformar-se em outro, amando sem repetições, de maneiras diferentes.

No seriado Black Mirror, produzido pelo serviço de streaming Netflix, o quarto


episódio da terceira temporada, chamado “San Junipero”, ilustra a dilacerante
escolha entre um grande amor e um amor que nunca foi. Já se pode imaginar
qual foi o eleito. A liberdade presente no amor contingente se manifesta pelo

36
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

que não se sabe sobre si mesmo, sobre o outro, sobre o mundo.


A possibilidade.

Então, se o amor abre um leque tão diverso — ainda mais pensando


na possibilidade de dividir seus objetos de storge, ágape, philia e eros
—, por que continuar amando um? Em primeiro lugar, é quase impossível
parar de aprender, mesmo coisas desprazerosas. É a vocação do ser
humano, diz Christian Dunker. Em segundo lugar, todo amor é “infinito
enquanto dura”, como lembra Vinícius de Moraes em seu Soneto de
Fidelidade. Não é só porque acaba que não foi verdadeiro, e a arrogância
de colocar-se diante da infinitude tende à decepção. Relacionamentos
com essa perspectiva, na verdade, correm perigo de se tornarem
demasiado dependenciais, muitas vezes baseados na insegurança
e temor à solidão. É o cubículo de Jean-Paul Sartre, pai do existencialismo,
na peça teatral “Entre Quatro Paredes”.

A história é protagonizada por Garcin, um escritor covarde cujo sonho


era ser herói, Estelle, uma burguesa fútil que foge da culpa por ter
assassinado o bebê que teve com seu amante, e Inês, uma lésbica
agressiva e amarga que trabalhava nos correios. Os três morrem
e chegam a um inferno — sem demônios ou fogo. É apenas um
quarto fechado, sem janelas, onde os três terão de conviver juntos
pela eternidade. Confinados, os três são obrigados a se ver através
dos olhos dos outros. Inês tenta conquistar Estelle, que, por sua vez,
mostra interesse por Garcin. Inês joga um contra o outro, forçando-os
a exibir seus defeitos. Depois, Estelle tenta matar Inês — já morta.
Garcin tenta se vingar tendo relações sexuais com Estelle na frente
de Inês. Os chegam à famosa conclusão: o inferno são os Outros.
É exemplo claro das formas de degradação amorosa, entre elas
o ciúme, que não suporta dividir o amor com outros, quer tudo para
ele. Fora do cubículo apertado do ciúme, divide-se o amor com
o outro para que ele cresça, se multiplique, fique mais rico.

Regras para desamar

Por vezes, ao invés de “Por que continuar amando?”, a pergunta é


“Por que deixar de amar?”. No caso de maus tratos, intolerância,
amores tóxicos, desrespeito e humilhação — já que amor não é desculpa
para nada disso, o contrário é apenas autoengano —, ou quem sabe
de algo mais brando, como a familiarização discutida na aula 5, é
preciso deixar de amar para poder continuar amando. Por isso,

37
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

a receita para desamar passa por amar melhor, ou encontrar um afeto


melhor. O poeta Arthur Rimbaud propôs um projeto moderno de reinventar
o amor, para deixar o último para trás. Outro meio de fazer a transição
é a solitude, que permite o olhar e a experiência de si para além da
dupla, da vida a dois em que o outro faz parte de tudo

Resumo da obra: o amor comporta sua própria lógica de separação.


Também na aula 5, foi discutido que o aprendizado primordial das
dinâmicas do afeto ocorre na unidade familiar, e os pais — por mais
que não o demonstrem — desejam que o filho parta, vá para o mundo.
Desde essa primeira interação, fica claro que não é só sobre a união,
mas também sobre o saber, o prazer e a vida autônoma. Não à toa,
algumas das obras mais marcantes do cinema têm como tema o amor
separador: Humphrey Bogart e Ingrid Bergman dizem adeus em
Casablanca (1942); em Love Story: Uma História de Amor (1970),
Jenny Cavilleri (Ali MacGraw) adoece; dois estranhos comprometidos
se apaixonam e se desencontram em Escrito nas Estrelas (2001);
Francesca (Meryl Streep) vive um intenso, mas breve, amor em
As Pontes de Madison (1995); em Para Sempre Alice (2014),
o Alzheimer é eminente separador de uma mãe de família de seu
marido e filhos; Eu te amo (1981) retrata o romance insustentável
de um homem falido e uma prostituta; Romeu e Julieta morrem ao
fim da peça escrita por William Shakespeare no fim do século 16.

Passado e presente fazem amor

Retomando os conceitos de C. S. Lewis em Os Quatro Amores (1960),


há quatro dimensões do sentimento: philia, ágape, eros e storge. Nos
anos seguintes à publicação do romancista, contudo, o psicanalista
francês Jacques Lacan propôs uma quinta forma de amor chamada
transferência. No Seminário 8, ele detalha que esta é a dimensão utilizada
pelos profissionais da psicanálise para curar as pessoas—permitirem
que amem, trabalhem, tenham menos sintomas, reduzam os pesos dos
ideais, se separem das exigências superegóicas. É restrito, sim, mas
envolve ternura e abertura ao outro, e funciona como uma máquina de
passagem de um afeto ao outro. Uma revisão da potência de amar.

A teoria conversa com a obra Os instintos e suas vicissitudes (1915),


de Freud, em que ele define a teoria das pulsões. “Se agora nos dedicarmos
a considerar a vida mental de um ponto de vista biológico, uma pulsão
nos aparecerá como sendo um conceito situado na fronteira entre o somático

38
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

e o psíquico, como o representante psíquico dos estímulos que se originam


dentro do organismo e alcançam a mente, no sentido de trabalhar em
consequência de sua ligação com o corpo”, define (p. 127). Na pulsão
escópica, ou eu olho, ou sou olhado. Na anal, o objeto ou entra ou sai
do ânus. Para o pai da psicanálise, contudo, a pulsão funciona de forma
um pouco diferente quando se trata de amor. Há três oposições fundamentais:
amar ou ser amado (a substituição, ou transferência), amar ou odiar
(substituição por inversão, alterando a valência semântica) e amar
ou ser indiferente (ou o fim do amor).

É falando da transferência que O Banquete, escrito por Platão por volta


de 380 a.C., abre com o discurso de Fedro. No clássico texto sobre amor,
sete homens fazem pronunciamentos sobre a natureza e as qualidades do
amor durante um banquete. O primeiro discurso afirma que o amor é uma
grande metáfora, matriz de todas as que existem na vida. Por isso, envolve
simbolicamente a capacidade de substituição: amamos primeiro os pais
vigorosamente, depois professores, amigos, amantes. A transferência
ocorre enquanto passagem, sem apagar o passado, mas assimilando
o novo. Ou seja, afetos múltiplos não são incompatíveis, pelo contrário.
Amar não é só a vida com o outro: ensina a fazer este processo subjetivo
de substituição simbólica e cognitiva.

Pausânias discursa em seguida, dizendo que, na verdade, há duas formas


de amar: a carnal e a etérea (eros e ágape). Seu principal ponto, contudo,
é que o amor ensina a dar valor às coisas, à existência humana. Posteriormente,
Lacan também entra nesta discussão para dizer que o amor é como um
óleo, ou uma cola, que junta desejo sexual, afeto e amizade. Segundo ele,
só o amor faz o gozo consentir ao desejo, como uma questão intermediária,
que faz com as duas coisas coabitem o mesmo espaço.

O médico Erixímaco fala em seguida, defendendo o amor como a ginástica


para a alma, uma recomendação médica (o que a psicologia contemporânea
comprova, segundo Dunker: pessoas que têm amor em suas vidas são mais
resilientes, sobrevivem melhor a traumas, enfrentam melhor a terminalidade,
saem-se melhor em seleções no trabalho). Para viver por mais tempo,
Erixímaco receita o amor, que deixa a alma saudável da mesma forma
que o exercício deixa o corpo saudável.

Então, entra Aristófanes com o famoso mito do andrógino, ser de quatro


braços e quatro pernas cujo poder deixou Zeus tão receoso que decidiu
partir-lhe ao meio. Para o resto da eternidade, as duas metades tentariam
se reencontrar (o resistente mito das metades da laranja, a tampa da
panela). A linguagem desta história é tão forte que, até hoje, é difícil sair 39
Licenciado para - Rodrigo Kawamoto - 32836072814 - Protegido por Eduzz.com

das representações duais do amor. Contudo, séculos depois, Lacan nota


que Aristófanes é nada mais, nada menos que um comediante, indicando
que seu mito não deve ser lido como tragédia, mas como comédia. Por
isso, pode ser usado como recurso para estar junto ao outro e servir este
propósito, desde que fique claro que esta dissolução de duas individualidades
em prol de uma nova união não existe, na realidade.

Antes de Sócrates, fala Agatão, o anfitrião, que afirma que o amor envolve
uma atopia, cria um “fora de lugar”. Quem ama, está à deriva — como em
Se Meu Apartamento Falasse (1960), filme em que o flat do protagonista
Bud Baxter anula instituições como trabalho e família, tornando-se point
de relações extra-conjugais de diversos colegas de escritório (e onde Bud
se apaixona pela amante de seu chefe). O não-lugar rompe com relações
de poder, exatamente como o amor deve ser.

Quem interrompe o discurso de Agatão é o jovem e belo guerreiro Alcebíades,


que entra na residência do anfitrião alterado e caluniando Sócrates, seu
professor. No contexto da Grécia Antiga, professor e aluno desenvolviam
relações afetivas e sexuais, e Alcebíades sentia que o mestre lhe incitava
um amor não correspondido, que não permitia a substituição de amante
e amado (erastes, o sábio, e eromenos, o aprendiz). Ao invés de responder-lhe,
Sócrates passa a louvar Agatão com muita astúcia e desenvoltura. Ao fim
e ao cabo, Alcebíades termina a noite com Agatão. O grego desempenhou
a manobra clínica da transferência.

O Banquete, há séculos atrás, já apresenta a perspectiva de que o amor


não é direcionado a uma pessoa, mas a uma coisa de que o sujeito acha
que o Outro é portador: o saber. Sócrates, na verdade, era apenas um
receptáculo vazio pronto para que fosse investido com as coisas que criam
o amor. Não apenas um filósofo, ele era também um teórico do amor.

Por que amar, por que continuar amando? O amor é direcionado ao saber,
que faz com que os indivíduos amem melhor e retornem novamente ao saber,
em um ciclo sem fim de busca pela verdade. Afinal, é a verdade do amor que
se procura em cada amor: a autenticidade, a consequência da implicação,
o que salva, o que transforma. Na tragédia de Shakespeare “Rei Lear” (1605),
um rei idoso, em busca de um sucessor, acaba por escolher duas filhas indignas
de sua confiança, em vez daquela que o ama. Os amores que Goneril e Regan
declaram são falsos, com discursos aduladores em que afirmam que o amam
mais que qualquer coisa no mundo. Cordélia, por outro lado, contraria
as expectativas do rei e afirma que o ama “como uma filha, nada mais,
nada menos”. O amor verdadeiro é este: o que contraria.
40

Você também pode gostar