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APRENDER A SOL IDÃO:

Aula com M iche l Foucau lt

Julio Groppa Aquino 50

Corriam as primeiras décadas do século XX. Num canto


qualquer da capital portuguesa, um sujeito franzino era absorvido pelo
spleen da época.

Começo a conhecer-me. Não existo. I Sou o intervalo entre


o que desejo ser e os outros me fizeram, I Ou metad e desse
intervalo, porque também há vida ... I Sou isso, enfim ..
I Apague a luz, fech e a porta e deixe de ter barulho de
chinelos no corredor. I Fique eu no quarto sú com o
grande sossego de mim mesmo. I É um universo barato
(PESSOA, 19Hfia, p. '1· 1:l ).

Óculos redondos, bigode ralo, um onipresente chapéu preto


fazendo as vezes ora de centro de gravidade face a um entorno hostil, ora
de abrigo momentâneo a uma existência assombrada pela presença de eus
em descompassada profusão.
Seu ofício: "A designação mais própria será 'tradutor', a mais
exacta a de 'correspondente estrangeiro em casas comerciais'. O ser
poeta e escritor não constitui profissão mas vocação" (PESSOA, 1986b,
p. 252). Sua compleição psíquica: "[. .. ] predominância do elemento
histérico na emoção e do elemento neurasténico na inteligência e na
vontade (minuciosidade de uma , tibieza de outra )" (PESSOA, 1980,
p. 175). Para quem preconizava que "[. ..] morrer é só não ser visto"
(PESSOA, 1986a, p. 160), sua passagem foi deveras fugaz: encerrou-se
aos 47 anos de idade, em 1935.
Nascera em Lisboa em 1888, no Largo de São Carlos, de onde
se podia avistar, poucas quadras abaixo, o grande rio. Presença marcante
em seus escritos, "[. .. ] o Tejo ao fundo é um lago azul" (PESSOA, 1982a,
p. 36). Outras vezes: "Ó macio Tejo ancestral e mudo, I pequena verdade
onde o céu se reflecte!" (PESSOA, 1986a, p. 357).
O velho rio, presume-se, seria portador de uma força atávica
responsável por sagrá-lo como uma engrenagem decididamente maior do
que um mero curso de águas em busca de desembocadura. O Tejo não
apenas banhava o país; antes, era um grande portal do tempo, uma vez
.íO. J.j , re-don'nte em Ed u~._·• uJi o . P rott>~sor Ti t u la r da Fac uldade tle Educ;u;fi<J da U nin·r . . idad e de Sàn
Pau lo.
que a ele era confiada a tarefa de ser guardião tanto da memória quanto
do porvir de um povo.
Em março de 1914, um de seus heterônimos dá a conhecer um
escrito sumário, não obstante eivado de uma clarividência ímpar. Suas
linhas iniciais: "O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, I
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia I Porque
o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia" (PESSOA, 1986a, p. 215).
A polarização entre a beleza honorífica do nobre rio e aquela
ignorada do rio sem nome ocupará o poeta de ponto a ponto, redundando
no veredicto em favor da segunda. Para justificar sua escolha, são
formulados dois argumentos que situam ambos os rios em posições
opostas. Prossegue o poema:
O primeiro argumento:

O Tejo tem ~ramles navios I E na ve~a nele ainda, I Para


aqueles que vêem em tudo o que lá não está, I A memúria
das naus. I O Tejo desce de Espanha I E o T~jo ent ra no
mar em Portu~al. I Toda a ~ente sabe isso. I Mas poucos
sabem qual é o rio da minha aldeia I E para onde ele vai I
E donde ele vem (PESSOA , 19HGa, p. '2 I fí-'21 <i).

O segundo:

Pelo Tejo vai-se para o Mundo. I Para além do Tejo há


a América I E a tilrtuna daqueles qu e a encontram. I
Nin~uém nun ca pensou no que há para além I Do rio da
minha aldeia . I O rio da minha ald eia não taz pensar em
nada I Quem está ao pé dele es tá sú ao pé dele (PESSOA,
19SGa, p. '2 w ).

Se, de acordo com o primeiro argumento, o que desponta é a


origem imemorial do velho rio em oposição diametral à ausência de
linhagem histórica do outro, o segundo argumento acaba por acirrar tal
oposição, ao trazer à baila o não finalismo do pequeno rio em detrimento
da transcendência redentora do Tejo. A nulidade do rio bastardo, desde
sempre esvaziado de promessas, residiria em sua incapacidade de engenhar
futuros. Daí que, destituído de uma vontade tanto de fundação quanto de
evolução, seu único atributo seria o apego ao próprio presente, no qual se
encerra e de lá emite sinais incertos.
Sem procedência nem destinação de véspera, o rio sem história
- logo, sem teleologia - obriga-nos a entabular uma torção intelectiva
em direção não a uma dilatação metafísica do olhar, mas a seu exato

i DI
contrário. Leia-se: em vez de em tudo ver o que lá não está, trata-se de
atentar exatamente para tudo aquilo que lá se dá de barato; seus restos,
por assim dizer.
Nesses termos, uma resposta afirmativa ao que, no presente,
intercepta-nos implica desinflacionar o que já se pensa em prol de
outras formas de efetuação de pensamento, empenhadas, quiçá, em uma
estetização microfisica do mundo, essa baseada apenas nas contingências
deste. Toca-nos, pois, ter olhos o bastante para abraçar a beleza sempre
renovada, porque insuspeita, das coisas ordinárias que se agitam ao redor,
as quais nada pedem de nós. Arremata o poeta aldeão: "[. .. ] o espírito
contemplativo que nunca saiu da sua aldeia tem contudo à sua ordem o
universo inteiro. Numa cela ou num deserto está o infinito. Numa pedra
dorme-se cosmicamente" (PESSOA, l982a, p. 425)
Estar à altura da grandeza proporcionada pelas coisas
desprovidas de significações herdadas requer um arranjo intelectivo
específico e, simultaneamente, um princípio de ação incontornável. Isto
é, para que se possa deixar encharcar pelo esplendor trágico do mundo,
é preciso cultivar uma recusa à gana edificante da história, alguma
recalcitrância do agir e, acima de tudo, uma solidão ansiada.
Se isso não for possível, que prospere o ódio, então.

Não: não quero nada I Já disse que não quero nada. I Não
me venham com conclus<les! I A única conclusão é morrer.
I Não me tragam estéticas! I Não me fa lem em moral! I
Tirem-me daqui a metaflsica! I Não me apreg-oem sistemas
completos, não me enfileirem conquistas I Das ciências
(das ciências, Deus meu, das ciências!) - I Das ciências,
das artes, da civilização moderna! I Que mal fiz eu aos
deuses todos? I Se têm a verdade, guardem-na! (PESSOA,
I~HWa, p. :l!JG-:lé!7).

***
A 1.400 quilômetros de Lisboa, no centro-oeste francês, nascia,
em 1926, um de seus habitantes mais ilustres: Michel Foucault. O
pensador provavelmente não conheceu a obra de Fernando Pessoa. Do
nascimento do segundo ao desaparecimento do primeiro, em 1984, duas
fatias distintas do século foram testemunhadas por cada um deles; um
século cujas turbulências resultaram em um ceticismo cortante quanto
aos universalismos e suas utopias redentoras.
A descrença em relação às grandes metanarrativas modernas
fez com que as artes, as filosofias, as ciências sociais e também a educação
- esta "um campo minado de metanarrativas" (SILVA, 1994, p. 256) -
ganhassem feições controversas, conflitantes e, no limite, fraturadas,
instaurando o que alguns autores vêm denominando a em da suspeita.
Pessoa ( 1982b, p. 49.'3) talvez o pressentisse:

Quanto mais contemplo o espectáculo Jo munJo, e o !luxo


e refluxo Ja mutação Jas coisas, mais protlmJamente me
compenetro Ja ficção ing-énita Je tuJo, Jo prestíg-io ü!lso
Ja pompa Je toJas as realiJaJes. E nesta contemplação, que
a toJos, que retlectem, uma ou outra vez terá suceJiJo, a
marcha multicolor Jos costumes e Jas moJas, o caminho
complexo Jos prog-ressos e Jas civilizaçôes, a confi.1são
granJiosa Jos impérios e Jas culturas - tuJo isso me
aparece como um mito e uma ficção, sonhaJo entre sombras
e esquecimentos.

Foucault, tal como Pessoa, foi um dos protagonistas mais


emblemáticos das circunvoluções de sua época. Mais correto seria dizer
que ambos foram catalisadores de sua própria atualidade, entendendo esta
como a abertura de um intervalo crítico no interior do próprio tempo.
No caso do pensador francês, mediante a grande difusão de suas
ideias e o impacto delas decorrente nos mais variados campos do saber,
ele se converteu em uma referência indispensável da intelectualidade da
segunda metade do século XX. Não obstante, o gesto de submeter as
racionalidades dominantes e o teor normativo-pastoral que elas carreiam
ao cotejo histórico-filosófico atraiu toda sorte de detratores. Poucos
pensadores foram, talvez, alvo de acusações tão contundentes quanto
Foucault. Ele próprio parecia ter clareza das repercussões, muitas vezes
contraditórias, de seus posicionamentos, sobretudo os de natureza política.

AcreJito efetivamente que fui situaJo, sucessiva e às


vezes simultaneamente, em toJos os lug-ares Jo tabuleiro
político: anarquista, esquerJista, mar xista baJerneiro ou
enrustiJo, niilista, antimarxista ex plícito ou JissimulaJo,
tecnocrata a serv1ço Jo g-aull ismo, neol i hera!..
(FOUCAULT, ~004·a, p. ~n ) .

Diferentemente das ambições da fenomenologia e do marxismo


-os dois discursos dominantes em sua época -, não haveria, em Foucault,
nenhuma proposta de adesismo ou de liberação, mas uma maneira inédita de
pensar. Para Jacques Ranciere (2004, p. 10), "não há pensamento de Foucault
que fundamente uma política ou uma ética novas. Há livros que produzem
efeito na medida mesmo em que não nos dizem o que devemos fazer".
A seara educacional não passaria impune às ideias foucaultianas,
sobretudo a partir da aparição, em meados da década de 1970, de Vigzar
e punir (FOUCAULT, 1987), o qual trouxe à luz um modo de teorizar/
pesquisar articulado ao escrutínio histórico-filosófico de determinadas
pautas sociais candentes - no caso, as prisões; antes havia sido a
loucura, depois, a sexualidade. No livro de 1975, Foucault pormenorizou
o expediente do exame nas escolas, a título de exemplificação dos
protocolos comuns às instituições disciplinares. Tratava-se, então, de
perspectivar o caráter polimorfo e tentacular das relações de poder em
operação nas rotinas das mais variadas práticas institucionais, a fim de
que fosse possível refratar tanto o pleito de uma suposta neutralidade,
quer epistemológica, quer política, das relações aí travadas, quanto um
igualmente suposto lastro humanístico ali conexo. Era a ferrenha noção
de sujeito da consciência que, para Foucault, deveria ser posto na berlinda .
Tomaz Tadeu da Silva ( 1994, p. 249-250) assim dimensiona as
consequências de tal modo de encarar a prática educacional:

Uma perspectiva que reconhece o descentramento da


consciência e do sujeito, a instabilidade e provisoriedade das
múltiplas posições em que são colocados pelos mú ltiplos e
cambiantes discursos em que são constituídos, começa por
questionar e interrog-ar esses discursos, desestahil izando-
os em sua inclinação a fixá-los numa posição única que,
afinal, se mostrará ilusúria. A posição pôs-estruturalista
[. ..] subverte todas as nossas mais queridas noçües sobre
educação, incluindo aq uelas que tínhamos como mais
críticas e transg-ressivas. Nisso reside sua filrça.

No caso brasileiro (AQUINO, 2015), foi a partir de Vigiar e


punir que os teóricos da educação passaram a tomar os rituais escolares
corriqueiros como tributários fidedignos da racionalidade disciplinar
e, mais tarde, do primado biopolítico. Assim, as teorizações de timbre
foucaultiano viram-se compelidas a focalizar a razão imanente entre
a educação escolar e o projeto moderno de normalização social, a qual
se perfaz via os processos de ordenamento da multiplicidade humana -
tanto em seu viés individual/ disciplinar quanto no plano populacional/
biopolítico -, desbaratando, assim, a retórica incauta que prega um
otimismo educacional tão bem-intencionado quanto subserviente a
forças regulatórias implacáveis, porquanto encarregadas da fabricação, da
manutenção e da proliferação de modos de vida em íntima consonância
com os imperativos do controle, da classificação, da hierarquização e,
por fim, da produtividade; modos de vida identitariamente serializados,

IB.111
estandardizados, não obstante proclamem-se autoarbitrados, resultantes
de uma alardeada atividade autorreflexiva.
O plano teórico foucaultiano revela-se, por assim dizer, um
divisor de águas no que se refere a um tipo de perspectivação analítico-
crítica capaz de proporcionar uma mirada em nada abstracionista ou
laudatória do papel e da função das práticas educacionais no presente
democrático nas sociedades ocidentais.
Mais especificamente, os estudos foucaultianos na educação
lograram oferecer instrumentos para dimensionar um sem-número de
pontos nevrálgicos das práticas educacionais contemporâneas, incluindo,
algumas vezes, aquelas que se desdobram para além do quadrante escolar:
desde os investimentos psicologizantes na autonomização gestionária
discente sob o mantra do empreendedorismo/ empresariamento, passando
pelo clima reinante de desqualificação (hetero e autoimpingida, por sinal)
da autoridade docente, até o incontornável impacto de uma miríade de
demandas sociais nos afazeres pedagógicos, dentre outros. O que aí se pode
vislumbrar são certas mutações concretas das pautas do co nvívio escolar,
as quais descrevem uma rápida reconfiguração de uma forma escolar que,
no caso brasileiro, tão logo se pretendeu democrática, aliou-se aos ditames
daquilo que alguns autores têm chamado capltallsmo cognitivo.
Se, no ideário das teorias pedagógicas dominantes, sejam
elas desenvolvimentistas, sejam afiliadas ao pensamento progressista,
a educação escolar figura como condição slne gua non de passagem
para uma presumida maioridade do sujeito e, por conseguinte, para
uma também presumida transformação social (tenha ela um sentido
evolucionista, reformador ou revolucionário, tanto faz), no escopo da
teorização foucaultiana, por sua vez, a escola firma-se como propulsora
de mecanismos de incitação e conformação das novas gerações ao nexo
subjetividade-verdade em voga. Trata-se de um intrincado engenho
empenhado em um tipo de regulação de amplo espectro das condutas dos
viventes, estas intrinsecamente imantadas à norma .
Entende-se, desse ponto de vista, que tanto a escola pública
quanto a particular (do segmento infantil ao universitário, indistintamente)
atuariam, cada qual a seu modo, em prol de um mundo sob a batuta de uma
regulação ininterrupta e autoarbitrada da liberdade dos e pelos cidadãos.
Daí o esmorecimento da noção de educação como fator político decisivo para
a construção de um mundo minimamente comum, doravante fragmentado
em grupos identitários próprios digladiando pela fatia maior do bolo social.
Nessa perspectiva, o contato com as ideias foucaultianas
oportuniza uma pedagogia sem mistificação de nenhum tipo, já que
refratária aos binarismos ideológicos que designam a discursividade aí
em circulação. Isso significa que o efeito principal das ideias foucaultianas
na educação consiste na materialização de um horizonte intelectivo que,
longe de qualquer ensejo prescritivo ou dogmático, perfaz-se por meio
do usufruto de um tipo de gesto ético-político não contingenciado nem
pela grandiloquência, nem pela inércia decorrentes das ideias pedagógicas
salvacionistas da época.
Sendo assim, a tarefa dos estudos foucaultianos passa a ser o
desconfinamento cognitivo de enquadres interpretativos saturantes,
demonstrando que o que hoje nos soa verdadeiro, ou mesmo necessário,
abriga uma enorme porção de contingência e de arbitrariedade. Daí,
inclusive, a recusa a qualquer espécie de rendição seja ao plano das
representações, seja ao das mentalidades, abdicando-se, assim, da busca
por uma essencialidade universal ou por uma lei única capaz de reger os
modos de vida aí em curso. Trata-se, ao contrário, de se voltar à massa das
coisas ditas- aquilo do que a educação escolar ln toturn deveria se ocupar
- à moda de um acontecimento de cunho descontínuo e em constante
deslocamento. Uma educação do e pelo arquivo, em suma.
Impossível não fazer coro a Deacon e Parker ( 1998, p. 151 ),
quando afirmam que

a prática de ensinar não deve se diri~ir a uma oferta


de verdades ou de novos conhecimentos, mas a um
questionamento das verdades existentes[. .. ]. Ela deve estar
centrada em nossas formas cambiantes de sujeição, em nossa
existência relaciona!, e nas fór~~as, práticas e instituiçcies que
constroem nossas identidades em nosso nome.

Isso significa que, independentemente do quadrante em que nos


situemos na prática educacional (seja o da docência, seja o da pesquisa),
compete-nos reportar ao grande arquivo do mundo - tão palidamente
tangenciado nas narrativas escolares -, perfurando-o, transtornando-o
pouco a pouco e, portanto, reconstituindo-o inteiramente. Só assim se
tornaria possível conquistar certo distanciamento crítico de nosso próprio
tempo e dos regimes de verdade que tanto o fustigam, os quais podem
encontrar, nas aulas, um espaço privilegiado de circulação ou, ao contrário,
de interrupção pontual.
Trata-se, em suma, do compromisso de trabalho do Intelectual
especifzco, cujo ponto de mira é, segundo Foucault (2004b, p. 249): "[. .. ]
através das análises que faz nos campos que são os seus, o de interrogar
novamente as evidências e os postulados, sacudir os hábitos, as maneiras
de fazer e de pensar, dissipar as familiaridades aceitas, retomar a avaliação
das regras e das instituições".
Toca-nos, então, reconhecer que, nas intermitências dos fazeres
pedagógicos cotidianos ou, mais precisamente, no vazio produzido pelo
excesso de convicção ou, na mão contrária, pela defecção voluntariosa de
seus artífices, instaura-se um breve intervalo crítico a empuxar uma força
de outra envergadura e de outro substrato. Um éthos expansivo. Um éthos
sem verdade, sem futuro e sem redenção.
Dessarte, nada restaria aos profissionais da educação senão uma
atitude de desassossego intelectual quando se trata de pensar e agir em
confronto com as novas gerações. Uma atitude, quiçá, menos pretensiosa,
de um lado, e mais corajosa, de outro. Um fio de navalha, por assim dizer,
por meio do qual o trabalho educacional poderia perfeitamente, quer-nos
parecer, reencontrar seu papel tão transitivo quanto transtornador no
cenário das transações discursivas contemporâneas.
Em outras palavras, trata-se de promover uma abertura radical
do mundo aos que nele estão chegando; abertura que comporta uma dupla
acepção: o acesso dos mais novos ao constituído e, ao mesmo tempo, a
desmistificação dos meandros de tal constituição. Daí que, por meio da
companhia de Foucault, nada nos convoca senão a chance de fomentar
uma espécie de vitalidade intelectual sóbria, infensa a qualquer tipo de
adesão entusiástica em relação às palavras de ordem correntes. Quem
sabe, assim, façam-se dilatar as fronteiras do próprio pensamento em favor
de um porvir menos asfixiante.
Se concebida e praticada dessa maneira, a lida escolar poderia
abarcar, sem prejuízo de nenhuma ordem, quaisquer expedientes, desde
os mais prosaicos aos mais excêntricos, conquanto estes se prestem a
salvaguardar a aula como um espaço precisamente intelectual, sob a
responsabilidade do professor.
O próprio Foucault (2004c, p. 285), certa feita, manifestou-se
nessa direção:

Não vejo onde está o mal na prática de alguém que, em


um daJo jogo Je verdaJe, sabenJo mais Jo que um outro,
lhe Jiz o que é preciso fazer, ensina-lhe, transmite-lhe um
saber, comunica-lhe técnicas : o problema é Je preferência
saber como será possível evitar nessas práticas nas quais
o poJer não poJe Jeixar de ser exercido e não é ruim
em si mesmo os eleitos Je dominação que htrão com que
um garoto s~ja submetiJo à autoriJaJe arbitrária e inútil
Je um professor primário; um estudante, à tutela Je um
professor· autoritário etc.

iN:I
Na contramão dos discursos pedagógicos correntes e seus slogans
típicos, os quais redundam amiúde numa espécie de subalternização do
professor como intelectual, lograr-se-ia fazer operar o âmbito escolar
como uma arena ficcional- de natureza precisamente laboratorial, frise-se
- calcada em experiências, de uma parte, de imersão vertical no passado e,
de outra parte, de fomento a respostas imprevistas e dissonantes daquelas
apropriações obtusas desse mesmo passado que pululam nos manuais de
ensino; independentemente de sua afiliação teórica ou ideológica, aliás.
Ensinar, ao gosto arquivístico foucaultiano, exige, portanto, um
convívio intensivo com os mortos, a matéria única de uma aula que mereça
seu nome, a fim de que nos constituamos como viventes igualmente
dignos de um futuro que, não obstante, não será usufruído por nós. Trata-
se, assim, de uma interlocução sempre em delay, a qual só se efetiva com
e pelo outro, não obstante anônimo, rarefeito, sempre tardio (AQUINO,
2016) . Solidão, mais uma vez. Uma solidão grávida de encontros, porém.
Algo semelhante faz - em outro contexto, obviamente - o
escritor Valter Hugo Mãe (2014, p. 15) afirmar o seguinte:

Aprender a solidão não é senão capacitarmo- nos do que


representamos entre todos. Talvez não representemos nada ,
o que me parece impossível. Qualquer rasto que dei xemos
no eremitério é uma conversa com os hom ens que, cinco
minutos ou cinco mil anos depois, nos descubram a presença.
Dificilmente se concebe um homem não moti vado para
deixar rasto e, desse modo, conversar. [. ..] Os homens séJs
percebem que há alguém na água , na pedra, no vento, no
f(>go. Há alguém na terra.

Se correta for a hipótese do encontro entre professor e aluno


como um diálogo entre pegadas e sombras, correto também será concluir
que a aula pode consistir em uma conexão artificiosa entre o que nos foi
legado e aquilo que formos capazes de reconstruir com as próprias mãos.
Em suma, a aula consubstanciada doravante em termos de uma aventura
didático-tradutória (CORAZZA, 2016) .
Eis aqui, em linhas gerais, o que se poderia nomear amizade
intelectual (AQUINO, 2014), tida como uma atitude de rigor acentuado e,
ao mesmo tempo, de afeição desmedida aos que já se foram e, sobretudo, aos
que estão por vir, em nome de certas ideias que mereceriam permanecer
no mundo quando dele já tivermos desertado.

***
A título de encerramento, oferece-se uma espécie de guia prático
para iniciantes na docência, à moda da iniciativa de Rainer Maria Rilke
(2009)- resguardadas as devidas proporções e, claro es tá, a es pecificidade
dos diferentes usos e fins. Ei-lo.
A cada novo ano, milhares de novos professores pisam pela
primeira vez em uma sala de aula. És apenas mais um entre eles, não te
esq ueças. E, por seres apenas mais um, mas também, quiçá, diferente de
todos os demais, seguem algumas recomendações de caráter eminentemente
prático, sem, contudo, qualquer intenção prescritiva.
Caso não sejas parente ou conhecido de algum proprietário,
diretor ou coordenador de escola particular, ou não tenhas sido selecionado
em nenhum concurso público, prepara-te para o péripl o das substituições,
contratos temporários e, eventualmente, o desemprego sazonal. Supondo
que es tejas iniciando tua carreira nesse momento, precisas saber que, se,
por um lado, serás obrigado a enfrentar, de supetão, as circunstâncias
pedagógicas mais esdrúxulas e desgastantes, por outro, terás a chance
única de conhecer os intestinos da história recente do país, tramada
paulatinamente por seus protagonistas comuns. Laboratório antropológico
melhor não há.
Imagino que tu, pela opção que fizeste, cultives expectativas de
um mundo melhor, de uma vida mais digna tanto para ti quanto mais aos
outros. Mas não. Teus próximos meses ou, talvez, anos não serão prósperos,
nem venturosos. Testemunharás iniquidades das mais diferentes ordens, é
certo. O desrespeito e o preconceito grassarão. Em breve, esquecerás por
completo as certezas inabaláveis que tinhas sobre igualdade, direitos e
quetais. Tuas ideias herdadas se tornarão bastante turvas. Saibas de uma
vez por todas: transformações substanciais do cenário educacional não serão
testemunhadas por tua geração. Tudo permanecerá como agora e antes.
Respira.
O mundo pedagógico se tornará cada vez mais complexo e
confuso, porém. As demandas burocráticas recrudescerão. Avaliarás e
serás avaliado no limite do fastio. Ao final do ano letivo, terás despendido
as melhores horas de tua evanescente juventude a corrigir provas e
trabalhos, a preencher relatórios, a convencer o mund o de que mereces
estar onde está ou, rnutatis mutandis, a sentenciar a pertença alheia.
Esquece tudo o que imaginaste ou ouviste dizer sobre a
profissão. Leva contigo apenas teus cinco sentidos, acompanhados de
nenhum alarmismo ou maledicência. A despeito das tantas convocações
em contrário, permanece atento apenas a que se passa r a teu redor e suas
frestas de oportunidade. Arrisca-te ao máximo, semp1·e tendo em mente
que uma aula não transforma o mundo, mas tampouco o espelha. Lá não

11:1•1
há heróis, nem malfeitores, tampouco vítimas. Contudo, no raio daquelas
quatro paredes, vidas menos ordinárias podem ser compartilhadas e, quem
sabe, esculpidas.
Se não, só te restarás, caso estejas empregado na escola pública,
ensinar os alunos pobres a rezar e, na escola privada, os ricos a trapacear.
Com tua anuência explícita ou tua revolta velada- tanto faz-, milhões de
alunos permanecerão, aqui e acolá, alheios à leitura, tanto mais à escrita.
Desterrados de um possível mundo comum, eles jamais poderão dizer do
que seus olhos aqui presenciaram. E passarão como se não tivessem havido.
Passarão em silêncio. Outros farão ruído, tanto e tanto. Em vão. Não serão
ouvidos. E contra todos e cada um deles tu te insurgirás, transferindo-lhes
o ônus daquele mundo comum outrora sonhado, o qual não mais terás
disposi ção para habitar.
Respira.
Nos dias cinzentos que apontam no horizonte, todos os teus
colegas, salvo um ou outro lobo solitário desgarrado da turba lamurienta,
encarnarão rotinas estereotipadas, mas sempre embaladas pela evocação
de um futuro promissor ou catastrófico- tanto faz- que, dessa e mais uma
vez, não virá. Em sua mão esquerda, certezas grandiloquentes; na direita,
a primeira pedra. Anestesiados pela crueza imediata do que insistirão em
nomear "a realidade", eles se alimentarão de um pão mirrado, sovado pela
falta de coragem de mudar traves tida em indignação. E tu farás o mes mo,
provavelmente. Ou não. Não se sabe.
Alguns de teus colegas iniciantes, mais afoitos, tombarão no
meio do ca minho; a maioria sobreviverá acabrunhada. Uma prostração
diuturna será a reação dominante ante os clamores da matéria humana
bruta que pede expressão e, ao mes mo tempo, talhe nas salas de aula.
Ali, os dias prosseguirão sem nenhum arrebatamento. Machado persistirá
ignorado; Guimarães, desconhecido; Drummond, negligenciado. Nenhuma
perplexidade, nenhum inconformismo, nenhum regozijo.
Respira.
Nas horas de insegurança, vale recorrer à companhia imaginária
de teus antigos professores, mas não a seus conselhos. Isso porque eles
não são portadores de nenhum saber excepcional sobre as entranhas do
ofício. Também para um professor tarimbado, as inquietações primeiras
permanecem em aberto. Somos órfãos de luz sempre, todos e cada um.
Soma-se a isso o fato de que toda aula que se preze nunca deixa de ser
enigma. Ali, as leis de causa e efeito simplesmente não fun cionam. Só se
saberá de fato o que ali se forjou muito tempo depois; décadas, talvez.
Previne-te contra a toxicidade premonitória de teus colegas
veteranos. Eles zombarão de tua inocência e de teu entusiasmo, atribuindo
a uma tal "experiência" por eles acumulada o ônus inconteste da prova.
Não confia em seus argumentos, já que não há evidências de segunda mão.
Afortunadamente, a vida não se repete. E, se ela ameaçar se repetir, algo
de embuste estará ali pedindo passagem.
Apesar disso, os sinais continuarão a bater, os pátios a ensurdecer,
os portões e grades a esconder. Indiferente ao passo arrastado dos dias,
a vida continuará explodindo a cada manhã, cada tarde e cada noite na
forma de empurrões, alaridos, palavrões. Estirões desenfreados. Do outro
lado do balcão, todos- tu incluído- alegarão cansaço, um cansaço secular
e irreparável. E obterão certa indulgência de seu respeitável e entediado
público. Mas algo penderá no ar, à espera de uma resposta tímida ou
extravagante que seja.
Respira.
Acostuma-te ao isolamento intrínseco. Ninguém virá em teu
socorro. Alunos parceiros haverá, mas sempre de modo contingente. Não
te iludas ao querê-los como iguais; eles estão sempre de passagem. Não te
atrevas a querê-los como rivais; eles são infinitamente mais fortes do que
tu. Esforça-te por estabelecer com eles uma lida precisamente intelectual,
corporificada na aventura de pensar juntos, em ato e in loco. Lembra-
te: fora de uma aula, um professor nada vale; é lá seu habitat exclusivo.
Cumpre tua parte, mas não esperes a exata contrapartida deles. Eles
estarão ocupados com um sem-número de apelos outros, mais atraentes e,
lógico, mais urgentes.
Se, ao cabo do primeiro ano de exercício profissional, tiveres
certeza de que teu destino deveria ser outro, mas não te sentires
confortável em nenhum outro espaço além daquele abismal entre carteiras,
lousa e cadernos, estarás pronto para te tornares um professor. Ou quase.
Compreenderás, então, que a escolha desse oficio não se define como um
projeto de vida, mas como a incapacidade de evitar um modo de existir em
que algo de mais-vida pede passagem todo o tempo, o tempo todo.
Com sorte, encontrarás, passados os anos, alguma alegria
incrustada nas intermitências do dia a dia. Para conhecê-la, será obrigatório
exercitares a arte da desesperança e, por conseguinte, a solidão necessária
que precede os grandes encontros. Talvez te dês conta deles apenas
quando fores velho. Justo o bastante.
Respira. E vai.

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