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Fonte: MANDEL, Ernest. Teoria Marxista do Estado. Lisboa: Edições Antídoto, 1977. pp.
9-46.
Referindo-se aos Bushemanos, o Padre Victor Ellenber escreve que esta tribo jamais
conheceu a propriedade privada, nem os tribunais, nem autoridade central, nem órgãos
especiais de qualquer tipo(1).
"O bando, e não a tribo, é o verdadeiro corpo político entre os Bushemanos. Cada bando é
autônomo, levando a sua própria vida independentemente da dos outros. Os seus assuntos
são, em regra, regulados por caçadores peritos e pelos homens mais velhos e
experientes"(2).
"o tempo não só não está amadurecido para a família patriarcal com a autoridade paterna,
como para um agrupamento político realmente centralizado (...) Obrigações activas e
passivas são colectivas no regime do clã totêmico. Poder e responsabilidade nesta
sociedade activa têm caráter indivisível. Estamos em presença de uma sociedade comunal
e igualitária, dentro da qual, no mesmo totem, a própria essência de cada indivíduo e a base
da coesão geral colocam todos os membros do clã em pé de igualdade"(3).
Dois exemplos ilustrarão este desenvolvimento, que consistiu em tirar à maioria dos
membros da sociedade certas funções que primitivamente exerciam (coletivamente a
princípio), com o fim de dar essas funções a um pequeno número de indivíduos.
O exercício das armas é uma função importante. Engels disse que o Estado é, em última
análise, nada mais do que um corpo de homens armados.
Numa tal sociedade, o conceito de que pegar em armas constitui uma prerrogativa particular
de uma instituição chamada exército, ou polícia, ou agentes militares de vários tipos, não
existe. Qualquer adulto masculino tem o direito de usar armas. (Em certas sociedades
primitivas, a cerimônia da iniciação, que marca o início da maioridade, confere o direito ao
porte de armas).
É exatamente o mesmo que se dá nas sociedades que ainda são primitivas, mas já
próximas do estádio da divisão em classes. Por exemplo, pelo que se deu nos povos
germânicos ao tempo em que atacaram o Império Romano: todos os homens livres tinham
o direito ao porte de armas e podiam empregá-las na sua defesa e dos seus direitos. A
igualdade de direitos entre os homens livres, que vemos. nas primitivas sociedades
germânicas, é, de facto, a igualdade entre soldados, como a anedota do vaso de Soissons
tão bem ilustra(4).
Na Grécia e na Roma antigas, as lutas entre patrícios e plebeus giravam muitas vezes em
torno deste assunto do direito ao porte de armas.
Em geral, a escrita era desconhecida nas sociedades primitivas. Não existiam portanto
códigos escritos de leis. Mais ainda: o exercício da justiça pertencia à colectividade.
À parte contendas decididas por famílias ou pelos próprios indivíduos, só assembléias
colectivas tinham o poder de pronunciar juízos. Na primitiva sociedade germânica, o
presidente do tribunal do povo não julgava: a sua função consistia em verificar que eram
observadas certas regras e certas formalidades.
A ideia de que pudesse haver certos homens destacados da colectividade, a quem fosse
reservado o direito de dispensar justiça, parecia aos cidadãos de uma sociedade baseada
no colectivismo do clã ou da tribo, tão fora de sentido como o reverso parece à maioria dos
nossos contemporâneos.
A independência (não formal nem jurídica mas muito real e quase total) dos grandes
Estados feudais pode mostrar-se no facto de o senhor feudal, e só ele, exercer em todo o
seu domínio todas as funções que tinham sido entregues à colectividade adulta nas
sociedades primitivas.
Este senhor feudal é dono absoluto do seu reino. É o único com direito ao porte de armas
em qualquer momento; é o único polícia, o único agente de autoridade; é o único com
direito a cunhar moeda; é o único ministro das finanças. Exerce em todo o seu domínio
todas as clássicas funções desempenhadas pelo Estado, tal como hoje o conhecemos.
Delega em parte os seus poderes em outras pessoas, mas não em homens livres, visto que
estes pertencem a uma classe social em oposição à classe senhorial. Delega-os em
pessoas completamente sob o seu controle: os servos, que são parte do seu pessoal
doméstico.
Esta origem servil ainda se reflete em muitos títulos dos tempos atuais: "condestável"(ou
chefe de polícia) vem de "comes stabuli", servo chefe dos estábulos; "ministro" serf
ministrable, isto é, o servo designado pelo senhor para servir as suas próprias
necessidades; "marechal" é o servo que cuida da carruagem e dos cavalos, etc.(de marah
scalc, do Velho Alto Alemão, que significa guarda de cavalos).
Porque estes indivíduos, homens não-livres, estes domésticos, estão sob o seu controle, o
senhor delega parcialmente neles os seus poderes.
Voltando atrás à sociedade feudal, notar-se-á que as funções de Estado exercidas pela
classe dominante não se limitam apenas aos aspectos mais imediatos do Poder, tais como
o exército, a justiça, as finanças. Também sob o dedo do senhor existem ideologia, lei,
filosofia, ciência, arte, etc. Os que exercem estas funções são pobres que, para poderem
viver, vendem os seus talentos ao senhor feudal, que se encarrega por sua vez das suas
necessidades. Podemos e devemos incluir Chefes eclesiásticos na classe dos senhores
feudais, uma vez que a Igreja era proprietária de vastas terras.
Eis as relações básicas que temos que ter sempre em mente, se não quisermos perder-nos
em emaranhados de complicações e de sutis distinções.
Escusado será dizer que, no decurso da evolução social, a função do Estado torna-se muito
mais complexa, com muitas mais tonalidades do que tinha no regime feudal, tal como
acabamos de descrever muito esquematicamente.
Contudo, temos de começar a partir desta clara e óbvia situação para compreendermos a
lógica da evolução e o processo por que estas diferentes funções se tornaram cada vez
mais autônomas e principiaram a parecer cada vez mais independentes da classe
dominante.
Esta nova sociedade já não é dominada pelos senhores feudais, mas pelo capitalismo,
pelos modernos capitalistas.
Várias instituições que hoje parecem de natureza democrática, por exemplo a instituição
parlamentar, revelam claramente a natureza de classe do Estado burguês.
Assim, na maioria dos países em que foi instituído o parlamentarismo, só a burguesia tem
direito a voto. Esta situação durou, na maioria dos Estados Ocidentais, até fins do último
século e mesmo princípios do século XX.
Pois não é criado o parlamento para o próprio fim de controlar as despesas feitas com o
dinheiro dos contribuintes?
Este argumento, extremamente válido sob o ponto de vista da burguesia, foi adoptado e
desenvolvido pelo partido da burguesia doutrinária(5) no tempo em que se reivindicava o
sufrágio universal. Para este partido burguês, o papel do parlamento consistia em fiscalizar
orçamentos e despesas e só quem paga impostos tem essa fiscalização; quem não paga
tem uma tendência constante para aumentar os gastos visto que não custeia as despesas.
Mais tarde, a burguesia começou a encarar o problema de outra maneira. Com o sufrágio
universal nasceu o imposto universal que cada vez mais sobrecarga os operários. Foi deste
modo que a burguesia restabeleceu a "justiça" inerente ao sistema.
A instituição parlamentar é um exemplo típico do laço muito direto e muito mecânico que
existe — até no Estado burguês — entre o domínio da classe dominante e o exercício do
poder de Estado.
Mas qual a camada social de onde eram escolhidos os jurados — e ainda, em muito larga
medida, continuam hoje a ser escolhidos? Da burguesia. Havia mesmo qualidades
especiais para ser jurado, comparáveis às necessidades para o voto, como a de ser
proprietário — um jurado tinha de ser proprietário da sua casa e pagar uma certa quantia de
impostos, etc.
Para ilustrar este laço muito direto entre o aparelho de Estado e a classe dominante na
época burguesa, podemos citar a famosa lei de Le Chapelier, promulgada na Revolução
Francesa que, a pretexto de estabelecer a igualdade entre todos os cidadãos, proibiu as
organizações patronais e as dos trabalhadores.
Assim, sob pretexto da banir as corporações patronais quando a sociedade industrial tinha
ultrapassado o estádio de corporação — foram postos fora de lei os sindicatos. Desta
forma, os trabalhadores ficavam impotentes perante os patrões, visto que só a organização
da classe operária pode (até certo ponto e em extensão bastante limitada) servir de
contrapeso à riqueza dos patrões.
Por meio da luta empreendida pelo movimento operário, certas instituições do Estado
burguês tornaram-se mais sutis e mais complexas.
O poder de Estado é permanente e é exercido por um certo número de instituições isoladas
e independentes dessa tão mutável e instável influência como é a do sufrágio universal. São
estas instituições que devemos analisar se quisermos saber onde reside o verdadeiro
poder: "Governos aparecem e governos desaparecem, mas a polícia e os administradores
permanecem".
Deveremos considerar esta viragem, esta inversão, como conspiração diabólica contra o
sufrágio universal, feita pelos capitalistas?
Estamos em presença de uma realidade objectiva mais profunda: os poderes reais são
transferidos do legislativo para o executivo; o poder do executivo é reforçado de maneira
permanente e contínua, como resultado de mudanças que também se dão dentro da própria
classe capitalista. Este processo começou nos tempos da Primeira Guerra Mundial na
maioria dos países beligerantes e desde então tem continuado ininterruptamente.
Mas este fenômeno existiu muitas vezes antes desse tempo. Assim, no Império Alemão,
esta prioridade do executivo sobre o legislativo apareceu ao mesmo tempo que o sufrágio
universal. Bismark e os Junkers concederam o sufrágio universal para empregarem a classe
operária, até certo ponto, como alaca [no original "alaca" - erro de impressão,
provavelmente seria alavanca - nota MIA] contra a burguesia capitalista assegurando deste
modo (naquela sociedade já essencialmente capitalista) a relativa independência do poder
executivo exercido pela nobreza prussiana.
Este processo mostra perfeitamente que a igualdade política é mais aparente do que real e
que o direito do cidadão ao voto não passa de um mero direito de meter um pedacinho de
papel na caixa da assembléia de votos, de tantos em tantos anos. O direito não vai mais
longe, nem (sobretudo) alcança os centros reais onde se tomam as decisões e se exerce o
poder.
Porque então era esta a função do Parlamento: servir de lugar comum de reunião onde os
interesses colectivos da burguesia pudessem ser formulados. lembremos que, na época
heróica do parlamentarismo, não era só com palavras e votos que o interesse colectivo se
manifestava; também usavam os punhos e as pistolas. Não mandou a Convenção milhares
de cidadãos à guilhotina, pela mais ínfima das maiorias, essa Convenção, clássico
Parlamento burguês da Revolução Francesa?
Mas a sociedade capitalista não permaneceria atomizada. Pouco a pouco, pôde ver-se a
organizar-se, a estruturar-se, em concentrações cada vez maiores, de forma cada vez mais
centralizada. A livre concorrência desaparece e é substituída por monopólios, por trusts e
por grupos capitalistas.
O Parlamento e, mais ainda, o governo de um Estado capitalista, por mais democrático que
pareça ser, está atado à burguesia por cadeias doiradas que tomam o nome de dívida
pública.
Nenhum governo poderia durar mais de um mês sem bater à porta dos bancos para pagar
assuas despesas correntes. Se os bancos se recusassem, o governo abriria falência.
São duplas as origens deste fenômeno. Os impostos não entram diariamente nos cofres; as
receitas concentram-se em certos períodos do ano mas as despesas são contínuas. É
deste modo que surge a dívida pública a curto prazo.
Este problema não é de solução difícil, mas surge ainda outro problema, muitíssimo mais
grave. Todos os modernos Estados capitalistas gastam mais do que recebem. Eis a origem
da dívida pública a longo prazo para a qual os bancos e estabelecimentos financeiros
adiantam dinheiro a juros elevados. Aqui está uma conexão direta e imediata, um laço
diário, entre o Estado e a Alta Finança.
Se pensarmos um pouco sobre o problema, poderemos ver que todos quantos exerçam
funções do Estado e pertençam à sua engrenagem, são — de um ou de outro modo —
cães-de-guarda. São cães-de-guarda a polícia vulgar e a especial, bem como os
recebedores de impostos, os juízes, os arranha-papéis das repartições governamentais, os
cobradores dos meios de transporte, etc. Em suma, todas as funções governativas
reduzem-se a isto: vigilância e controle da vida da sociedade, no interesse da classe
dominante.
Muitas vezes diz-se que o Estado contemporâneo desempenha o papel de árbitro. Esta
afirmação não altera nada ao que acabamos de dizer: "fiscalização" e "arbitragem" não
serão, basicamente, a mesma coisa?
Há que fazer dois comentários. Primeiro: o árbitro não é neutro. Como atrás explicamos, os
homens importantes do aparelho governativo são parte e parcela da grande burguesia.
Assim, a arbitragem não se dá no vácuo: dá-se na estrutura que mantém a sociedade
existente de classes. Sem dúvida que podem ser feitas pelos árbitros concessões aos
exploradores; isso depende essencialmente da relação de forças. Mas o objectivo básico da
arbitragem é manter a exploração capitalista como tal, transigindo um pouco em assuntos
secundários, no, caso de ser preciso.
Segundo comentário: o Estado é uma entidade criada pela sociedade para fiscalização do
funcionamento diário da vida social; está ao serviço da classe dominante, com o fim de
manter o seu domínio. Existe uma necessidade objectiva para esta
organização-cão-de-guarda, uma necessidade muito intimamente ligada ao grau de
pobreza, ao grau de conflito social que existe na sociedade.
De um modo geral e histórico, o exercício das funções do Estado está intimamente ligado à
existência de conflitos sociais. Por sua vez, estes conflitos sociais estão intimamente
ligados à existência de certa escassez de bens materiais, de recursos, de meios
necessários para a satisfação das necessidades humanas.
Este facto tem que ser sublinhado: enquanto existir o Estado, será ele a prova de que há
conflitos sociais, (portanto, uma relativa escassez de bens e serviços). Desaparecendo os
conflitos sociais, desaparecerão os cães-de-guarda, por inúteis e parasitas, — mas nunca
antes disso!
Com efeito, a sociedade paga a esses homens para exercerem funções de vigilância,
enquanto esta vigilância for do interesse de uma parte da sociedade. Mas é perfeitamente
evidente que, não havendo nenhum grupo na sociedade que esteja em perigo, para que
tenha de se exercer a função dos cães-de-guarda, a função desaparecerá logo por inútil. E,
ao mesmo tempo, desaparecerá o próprio Estado.
Enquanto estivermos neste período de transição que abrange dez mil anos da história
humana, período que também inclui a transição entre o capitalismo e socialismo, o Estado
há-de sobreviver, continuarão os conflitos sociais e terá de haver gente a arbitrar estes
conflitos, tudo no interesse da classe dominante, e nada mais.
O Proletariado no Poder
O que dissemos serve para responder a algumas perguntas que se levantam sobre o
Estado e o Socialismo.
Quando dizemos que o Estado existirá ainda, mesmo na sociedade de transição entre
capitalismo e socialismo, surge a pergunta sobre se a classe operária ainda necessitará do
Estado quando alcançar o poder.
Não poderia esta classe, ao tomar o poder, abolir o Estado de um dia para o outro? A
História já respondeu a esta pergunta. Por certo, teoricamente, a classe operária podia
abolir o Estado. Contudo, seria isso apenas um ato formal, jurídico, uma vez que os
operários não se apoderavam do poder numa sociedade já tão rica e com tal abundância de
bens materiais e serviços que os conflitos sociais como tais, isto é, centrados na distribuição
desses produtos, tivessem desaparecido; e que a necessidade de árbitros, de
cães-de-guarda e polícia que dominassem todo aquele caos, desaparecesse ao mesmo
tempo que a relativa escassez de bens. Tal facto nunca aconteceu e não é provável que
venha a dar-se em qualquer tempo.
Se a classe operária tiver de tomar o poder num país em que exista ainda escassez de
bens, embora parcial, ou exista certa pobreza, durante algum tempo esta sociedade não
pode ainda funcionar sem um Estado. Continuarão a existir conflitos sociais.
O contrário é o recurso a uma atitude hipócrita, como fazem certos anarquistas: destruamos
o Estado e demos outro nome às pessoas que exerçam as funções governamentais. Mas
isso é só uma pura operação verbal e nada mais. É a "abolição" do Estado apenas no
papel. Enquanto os conflitos sociais existirem, haverá uma real necessidade de alguém que
regule esses conflitos. Ora, as pessoas que regulam conflitos equivalem a Estado. Para a
humanidade, é impossível regular conflitos coletivamente, numa situação de desigualdade
real, ou de real incapacidade, para satisfazer as necessidades de cada um.
Igualdade na pobreza
Pode surgir uma objecção, embora seja algo absurda e não haja muitos que possam
apresentá-la.
Pode imaginar-se uma sociedade em que a abolição do Estado esteja ligada à redução das
necessidades humanas, numa tal sociedade, pode-se estabelecer uma perfeita igualdade
que, certamente, não será outra a não ser a igualdade na pobreza. Assim, se a classe
operária tivesse de tomar amanhã o poder na Bélgica, todos passariam a ter pão e
manteiga — e talvez mais alguma coisa.
Assim, todas as seitas comunistas, durante a Idade Média, e nos tempos modernos,
pensavam organizar imediatamente a perfeita sociedade comunista, baseada na perfeita
igualdade dos seus membros, proibindo a produção de artigos de luxo, de artigos para
conforto corrente — incluindo a tipografia! Todas estas tentativas falharam. E falharam
porque a natureza humana é tal que, quando o ser humano se dá conta de certas
necessidades, estas não podem ser reprimidas artificialmente. Savonarola(6), ao pregar o
arrependimento e a abstinência, atacou o luxo e pediu que fossem queimadas todas as
pinturas; mas, com tudo isso, não teria sido capaz de evitar que um ou outro incorrigível
amante da beleza, pintasse em segredo. E então, o problema da distribuição de tais
produtos "ilegais", que se tornariam mais escassos do que antes, levantar-se-ia de novo —
inevitavelmente.
O Jogo do Proletariado
Não há um único exemplo, antes do nosso exemplo do proletariado, de uma classe social
chegar ao poder quando ainda oprimida sob os pontos de vista econômico, intelectual e
moral. Por outros termos: postular que o proletariado possa tomar o poder é uma espécie
de jogo, porque, coletivamente, como classe num sistema capitalista, este mesmo
proletariado está esmagado, está impossibilitado de um completo desenvolvimento do seu
potencial criativo. Não se podem desenvolver completamente as capacidades intelectuais e
morais quando se é obrigado a trabalhar oito, nove ou dez horas por dia na oficina, na
fábrica ou no escritório. E tal é ainda hoje a condição do proletariado.
Resulta que o poder da classe operária, quando o alcançar, é vulnerável. Em muitos setores
o poder do proletariado tem de ser defendido de uma minoria que continuará, durante todo
um período histórico de transição, a gozar de enormes vantagens no domínio intelectual e
com largas posses materiais — pelo menos das suas reservas de bens de consumo —
relativamente à classe operária.
Assim, numa sociedade em que o proletariado obteve o poder por algum tempo (poder
político, poder de homens armados, seja como for), muitas alavancas do poder efetivo estão
e permanecerão nas mãos da burguesia — mais exatamente, nas mãos de uma parte da
burguesia a que se pode muito bem chamar "intelligentsia", ou burguesia intelectual e
tecnológica.
Sobre este assunto, Lenin teve algumas experiências amargas. De facto, pode provar-se
que, de qualquer ângulo de que o problema seja encarado, sejam quais forem as leis, os
decretos promulgados, as instituições estabelecidas, se houver necessidade de
professores, de funcionários de alto nível, de engenheiros, de pessoal técnico de grande
treino, em todos os níveis do maquinismo social, é muito difícil colocar de um momento para
o outro, proletários nessas posições — nem mesmo antes de cinco ou seis anos, ou mais,
após a conquista do poder. Durante os primeiros anos do poder Soviético, Lenin, armado de
uma fórmula teoricamente correta, mas levemente incompleta, dizia:
Mas, alguns anos depois, pouco antes da sua morte, Lenin, ao fazer o balanço daquela
experiência, perguntava para si próprio: Mas quem controla? Serão os peritos controlados
pelos comunistas ou será o contrário?
Quando abordamos esta pergunta, dia após dia, em termos concretos e pensamos nos
países subdesenvolvidos, e vemos o que significa na prática um país como a Argélia,
compreendemos perfeitamente que se trata de um problema fácil de resolver sobre o papel,
com algumas fórmulas mágicas, mas dá-se completamente o contrário quando o problema
tenha de se resolver num país real e na vida real.
Mais uma vez, a falsa solução seria uma transformação a nível tão simples que os técnicos
não fossem precisos. Mas esta é uma utopia reacionária.
Todas estas dificuldades indicam a necessidade que tem o proletariado, como nova classe
dominante, de exercer o poder de Estado contra todos quantos possam arrebatar-lhe o
poder, pouco a pouco, ou de uma só vez. É nesta nova sociedade de transição, em que o
proletariado possui o poder político e as principais alavancas do poder econômico, mas em
que defronta uma constelação de fraquezas e de inimigos recém-criados, que tem de ser
exercido o poder de Estado. E uma situação que torna necessário manter o Estado após a
conquista do poder, e que torna impossível abolir esse Estado repentinamente, mas é
evidente que este Estado operário tem que ser de tipo especial.
O proletariado, pela sua posição especial na sociedade, será obrigado a manter o Estado.
Mas, para preservar o poder desse Estado, tem de ser radicalmente diferente do Estado
que sustentava antes o poder da burguesia ou da classe feudal e escravizadora. O Estado
operário é, ao mesmo tempo, um Estado, e não o é. Cada vez mais se torna em menos
Estado. É um Estado que começa a extinguir-se, a deperecer, no próprio momento em que
nasceu, como foi dito corretamente por Marx e Lenin.
Marx, ao desenvolver a teoria do Estado operário, da ditadura do proletariado, como lhe
chamou, deu-lhe também várias características, exemplos dos que se encontraram na
Comuna de Paris em 1871. São três as características essenciais:
Isto é importante. É o melhor caminho para reduzir, tanto quanto possível, a separação
entre o poder efetivo, cada vez mais concentrado nas mãos de um órgão permanente, e o
poder crescentemente fictício do parlamentarismo burguês. Não basta substituir uma
assembléia deliberativa por outra, se nada de essencial for mudado com respeito àquela
separação. As assembléias deliberativas devem dispôr de efetivo poder executivo nas suas
mãos.
Não só os membros das assembléias deliberativas devem ser eleitos. Juízes, funcionários
de alto nível, oficiais da milícia, inspetores de instrução, dirigentes das obras públicas, têm
de ser todos eleitos. Isto poderá ser algo chocante em países com tradições napoleônicas
ultra-reacionárias. Mas certas democracias especificamente burguesas, por exemplo os
Estados Unidos, a Suíça, o Canadá, a Austrália, conservaram o caráter eletivo de certo
número de funções públicas. É assim que nos Estados Unidos o chefe da polícia é eleito
pelo seus concidadãos.
Assim, será possível um controle permanente e extensivo por parte do povo sobre os que
exercem funções públicas; e a separação entre os que exercem o poder e aqueles em cujo
nome é exercido, será tão pequena quanto possível. Será por isso necessário assegurar
uma constante mudança das pessoas eleitas, para evitar permanências nos cargos
infinitamente. As funções de Estado devem ser exercidas, em escala sempre crescente,
pelas massas como um todo.
É o único método válido de evitar que haja quem procure cargos públicos com o intuito de
viver comodamente a sugar a sociedade, e também de evitar os caçadores de bons lugares
e os parasitas bem conhecidos de todas as anteriores sociedades. Estas são regras que
exprimem corretamente o pensamento de Marx e de Lenin sobre o Estado operário. Este já
não se assemelha a nenhum Estado anterior, porque é o primeiro Estado que se vai
extinguindo ao nascer; é um Estado cuja engrenagem é composta de pessoas sem
qualquer privilégio em relação à massa da sociedade; as funções são, cada vez mais,
exercidas pelos membros da sociedade como um todo e vão sendo substituídos uns pelos
outros; não é um Estado constituído por um grupo de indivíduos destacados da massa, a
exercerem funções separadas e à parte das massas, mas, pelo contrário, é indistinguível do
povo e das massas trabalhadoras; é um Estado que se extinguirá quando desaparecerem
as classes sociais, os conflitos sociais, a economia monetária, a produção mercantil, as
mercadorias, e o dinheiro. Este deperecimento do Estado deve ser concebido como um
governo dos próprios produtores e dos cidadãos, que se expande cada vez mais, até que,
em condições de abundância material e de alto nível de cultura de toda a sociedade, esta
se encontre estruturada em comunidades de produtores-consumidores que a si próprias se
governem.
Ao olhar para a história da URSS nos passados trinta anos, a conclusão a tirar quanto ao
Estado é simples: um Estado com exército permanente, com marechais, diretores,
empresas e até dramaturgos e bailarinas que ganham cinquenta vezes mais do que um
operário manual ou uma empregada doméstica, um Estado em que se estabeleceu uma
seleção para certas funções públicas, tornando o acesso a essas funções praticamente
impossível para a vasta maioria da população; um Estado em que o poder efetivo é
exercido por pequenas comissões de pessoas cujo cargo é renovado de modo misterioso e
cujo poder continua fixo e permanente por largos períodos — tal Estado não é com certeza
um Estado em deperecimento.
Por quê?
Sem dúvida, num Estado operário, estes indivíduos servem uma causa melhor, pelo menos
na proporção em que defendem uma economia socialista. Mas temos de reconhecer que
estão separados do corpo social e que em larga medida são parasitas. O seu
desaparecimento está condicionado ao nível de desenvolvimento das forças produtivas,
único que pode permitir um termo aos conflitos sociais e abolir as funções que Ihes estão
adstritas.
E, na medida em que estes cães-de-guarda, estes fiscais, cada vez mais monopolizam o
exercício do poder político, nessa medida sem dúvida que eles poderão assegurar
privilégios materiais crescentes e manjares escolhidos na relativa escassez que domina a
distribuição. Constituem assim uma burocracia privilegiada, sem o controle efetivo dos
operários, pronta a defender, antes de mais (e sobretudo), os seus próprios privilégios.
A União Soviética tem continuado a ser uma sociedade de transição cujo nível de
desenvolvimento das forças produtivas é comparável ao de uma sociedade capitalista
avançada. Tem, pois, de combater com armas comparáveis.
Não tendo eliminado os conflitos sociais, a URSS teve de manter todos os órgãos de
controle de vigilância da população e, por isso, teve de manter — e até de reforçar — o
Estado, em vez de permitir o seu deperecimento. Por numerosas razões específicas,
produziram-se deformações e degenerescências burocráticas nesta sociedade de transição,
as quais têm provocado grave prejuízo à causa do socialismo, especialmente porque a
etiqueta "socialismo" foi atribuída à sociedade Soviética com medo de dizer a verdade:
"Somos ainda demasiado pobres e demasiado atrasados para podermos criar uma
verdadeira sociedade socialista".
Na medida em que se pretendeu usar a etiqueta "socialista", a todo o custo, para fins de
propaganda, pode ser explicada a existência de coisas como purgas "socialistas", campos
de concentração "socialistas", direitos das minorias nacionais, etc., etc.
Que garantias poderão ser introduzidas no futuro para evitar o crescimento anormal da
burocracia que surgiu na URSS?
Teoria e prática
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Notas:
(1) La fin tragique des Bushem: Paris, Amiot-Dumont, 1953. pp.70-73. (retornar ao texto)
(2) I. Shapexa. The Khoisan Peoples of South Africa: Georges Routledge and Sons, 1930.
p.76. (retornar ao texto)
(3) A. Moret e G. Davy. Des clans aux Empires: Paris Reinaissance du Livre, 1923. p.17.
(retornar ao texto)
(4) Anedota do vaso de Soissons. A lenda narra um incidente do reinado do Clovis entre os
Francos no Século V da nossa Era (Clovis foi o primeiro franco a aceitar o cristianismo e,
durante o seu reinado , a maior parte da Bélgica e da França foi unida num reino). Depois
da vitória de Soissons (486), quando dividiam o espólio igualmente entre todos os soldados
, Clovis quis guardar para si um certo vaso. Um soldado saiu da fileira e esmigalhou o vaso
com a espada para mostrar que nenhum combatente tinha direito a qualquer privilégio
especial na partilha do espólio. (retornar ao texto)
Só durante a ano de 1961, 707000 adultos aprenderam a ler e a escrever em Cuba, cujo
analfabetismo baixou para 3,9 %. Para 1961- 1964, Cuba estabeleceu os seguintes
objetivos no domínio da instrução: 1) passar os que recentemente aprenderam a ler e a
escrever para o nível médio da instrução primária; 2) completar a instrução primária de meio
milhão de operários que só tenham três anos de escola elementar; 3) assegurar a instrução
secundária básica a 40000 operários que completaram a instrução primária. (retornar ao
texto)
(8) “Cordão Sanitário”. Quando já no nosso século, surgia uma doença grave e contagiosa
em qualquer cidade, estabelecia-se um cerco militar para não permitir entradas nem saídas
de pessoas e dava-se a este cerco o nome de “cordão sanitário” . A Rússia Soviética foi
também cercada por tropas estrangeiras e seus aliados na Primeira Guerra Mundial,
privada de relações comerciais, diplomáticas e culturais com o resto do mundo. Foi uma
época de tremendas privações para a Rússia. O mesmo se dá com Cuba, bloqueada pelos
Estados Unidos, econômica e efetivamente, com o fim de evitar “infecções”. (retornar ao
texto)