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A Psicopolítica de Peter Sloterdijk

ORELHA DO LIVRO

Sloterdijk elaborou uma espécie de grande descrição da modernidade (e da pós-


modernidade) que ultrapassa a própria dicotomia ficção versus realidade ou filosofia
versus literatura, e até mesmo, da natureza versus cultura. A modernidade é um dos
temas mais recorrente em Sloterdijk em termos que comandam o roteiro a seguir, que
diz respeito a uma visão geral e sucinta da psicopolítica de Sloterdijk. Como se verá, após
a trilogia das Esferas, a filosofia de Sloterdijk passou-se a ser considerado com tons de
surrealismo e um grande romance do sujeito moderno e pós-moderno, associado a uma
pergunta que, segundo ele mesmo, deveria guiar o filósofo: como é possível um espaço
que responda às motivações? Como o homem teve que lidar com o espaço, política,
mídia, guerras, ecologia, globalização, ciência, esclarecimento, tecnologia, etc. O texto
que segue pretende, apresentar brevemente o norte das análises sobre uma psicopolítica
do alemão. Grande parte da psicopolítica de Sloterdijk pode ser vista em Esferas I, II e III,
En El Mundo Interior del Capital (2007) e Ira e Tempo (2012). Todavia, Sloterdijk tem mais
o que dizer sobre modernidade e subjetividade. A modernidade fez o trabalho de
“refutação do espaço interior”. “É moderno quem negar ter estado alguma vez em um
espaço interior”. Perdeu-se aí todo o apoio para dar continuidade ao que é a
subjetividade não como intersubjetividade, mas subjetividade que já contém o outro, que
é um “com”, desde sempre.
ORELHA PARTE DETRAS

Sloterdijk esclarece em um conceito precioso: o thymos. O thymos é um conflito


interno da consciência heroica no desempenho da violência. Mesmo sabendo que age
em nome da justiça humana e da vontade dos deuses ou de Deus, o irado sabe também
que sua ação precisa de um reconhecimento. É este o coração das lutas políticas
modernas. A "revolução timótica" ocorre quando as sociedades modernas percebem que
precisam legitimar sua ira, mas não têm instâncias metafísicas às quais atribuir suas
ações. O que fazer? Investir toda a economia da ira na autoestima e em guerras coletivas
de reconhecimento. Nesse sentido, o comunismo foi uma das mais eficazes
administrações da ira. Os burocratas soviéticos, os seus maiores especialistas. A filosofia
revolucionária percebe com lucidez que não basta ter ira. É preciso capitalizá-la. No
comunismo, a ira encontrou sua melhor seguradora. Nasce com ele o fundo monetário
da ira. O "banco comunista da ira" foi uma forma lucrativa de mobilizar as energias
psicopolíticas. Afinal, como notou profeticamente Bataille, a economia não vive apenas
de dinheiro, mercadoria e mais-valia. Uma de suas maiores forças reside naquela despesa
que não retorna: a morte. Porém, os combustíveis fósseis se esgotam. Mesmo se eles
forem corpos humanos. Para que esse investimento inicial na morte fosse positivo à bolsa
de valores comunista, precisava ser reinvestido. A partir de então, os bens psicopolíticos
adquiridos com o terror se desdobraram no plano político. O que foi a Guerra Fria, senão
uma imensa guerra timótica? O que são as relações internacionais senão uma enorme
disputa timótica de poder? Qual a função da energia nuclear hoje em dia senão a de
desempenhar uma rivalização mimética por reconhecimento? A ameaça nuclear é um
dos mais líquidos investimentos da ira, pois consiste num adiamento indeterminado da
vingança que capitaliza a violência em benefício de seus acionistas. Temos um tratado
"político-psicológico", onde Sloterdijk analisa a cultura ocidental a partir da ideia da ira,
como "o motor real da história". Passando desde uma reflexão sobre a Ilíada, de Homero,
epopeia constituída em função da ira de Aquiles, passa por Nietzsche com alusões
antropológicas, indo para teorias psicanalíticas ao desconstruir a pulsão de morte,
situando Eros em um ligar sim na sociedade, mas elegendo uma preferência pelo thymos,
que para os gregos, era responsável pelo arrebatamento da ira, orgulho e
reconhecimento. Tudo isso para se fazer uma psicopolítica moderna principalmente dos
Estados modernos “aquele que respira e cospe dinheiro”. A ira seria a arma que nos teria
restado? Infelizmente, não. Desde a Antiguidade, a ira é uma riqueza psicopolítica. O
motor civilizatório. Todos os imperadores souberam empregar topicamente a ira para
promover suas divinas destruições. Com a emergência dos monoteísmos, ela ganhou em
refinamento. Não são mais deuses humanizados que se apossam da consciência
enfurecida do herói e o levam a matar. O herói torna-se o médium entre o inimigo e uma
substância sutil fora do mundo: Deus. Essa transcendência da ira torna os executores da
destruição duplamente divinos. A passagem para a modernidade nos mostrará a ideia do
homem isolado. A moeda passa por toda a história como o símbolo da vitória e da
abertura de futuros. Hoje ainda mais com o reforço do neoliberalismo onde a atomização
de si consigo mesmo perpassa pelas entranhas do indivíduo-empresário, aquele que no
fim quer a sua própria extinção.
A PSICOPOLÍTICA DE PETER SLOTERDIJK

EDUARDO DOS SANTOS ROCHA

1ª EDIÇÃO

SÃO LUÍS – MARANHÃO, 2019.

EDITORA:

ATRÁS

FICHA CATALOGRÁFICA
SUMÁRIO

Introdução 7

I – Base Filosófica e o Cinismo 9

II – Capitalismo, Sociedade Moderna e Contemporânea 69

III – Aceleração e Mobilização 202

IV – O Poeta, o Filósofo e o Antropoceno 344


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INTRODUÇÃO

Sloterdijk parte para uma análise da Modernidade não tão apoiada no


Iluminismo, mas mais para uma crítica do Iluminismo. Uma Crítica da Razão Cínica.
Sloterdijk toma a antropologia como algo de seu interesse, em especial nos três grandes
profetas da modernidade – Nietzsche, Marx e Freud (junto com Heidegger). Como não
poderia ser diferente, a globalização é um tema que retorna bastante conectada com
explicações mais sociais e psicológicas da modernidade que são esclarecedoras que
afirmam que o Estado Moderno gira em torno da figura do magistrado que exerce a
função mais importante de autoridade do Estado, ou seja, de garantir o crédito. Ainda
vemos isso no mundo de hoje nas famosas garantias Hermes do governo Alemão para
assegurar a confiabilidade do credor no exterior, sendo, digamos, o próprio Estado como
garantidor de crédito o que mostra que manter essa crença central, devia ser uma das
maiores preocupações do Estado. Vemos isso nos mais diversos níveis sociais, não tanto
capitalismo, mas um creditismo. Quase não há hoje quem não use crédito para a
liberdade, lucro, negócios, capital financeiro, clubes de futebol, seguros. Ter dívidas é
sinônimo de andar para frente. Ver a história da Modernidade quando o Estado
(fiscalidade) atuou como fiador de valores não niilistas, isto é, quando promoveu a
confiabilidade e a crença não só na aliança entre trono e altar, mas em uma aliança
também entre trono e sistema de crédito. O uso das relações de confiança, que foi visto
nas comunidades agrícolas, algo que vem de uma sociedade pré-capitalista: lealdade por
lealdade. Por isso que um escândalo explodiu no século XVIII na França com a introdução
do papel moeda no sistema monetário foi um choque pré-niilista. Pode-se pensar até que
a Revolução fracassou pela falta de confiança, porque não conseguiu responder ao
crédito e os cessionários perderam seu valor. O resultado a Revolução baseava-se nele.
Todas as terras expropriadas prontas para redistribuição. Isso não funciona. Há também
uma história de um financista inglês que convenceu o rei francês a participar de um
experimento com papel moeda. Isso foi um prenúncio do calote na cúpula do Estado. Daí
surgiu uma dinâmica revolucionária que magoou a confiança na capacidade do Estado
como fiador. Se quer gerar credibilidade não é tanto a integridade dos políticos que
conta, mas o compromisso do Estado em assegurar um bom funcionamento e garantir
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que a riqueza acumulada não suma da noite para o dia, para que o Juízo Final da
economia moderna de 1929 não se faça novamente presente.
Obs.: Este livro poderia ser considerado uma continuação do que foi escrito em
“A Filosofia de Peter Sloterdijk” de 2018. Aqui algumas partes e novas abordagens e
teorias estão inseridas.
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I – Base Filosófica e o Cinismo

Sloterdijk criou grande parte de sua antropologia no sentido contrário do que


hoje poderíamos chamar de conservadorismo. Diz ele que há uma ficção do ser de
carências.1 Essa situação de penúria do homem só poderia resultar em descrições em
todos os âmbitos de pessimismo e uma importação de negatividades. Um típico contexto
ideológico. Um contexto de exploração das periferias pelos centros (no âmbito da
metafísica e da construção imperial, Sloterdijk chama de espaço “radiocrático”). As
formas mercantis como o hábito de importar barato (miséria) como matéria-prima e de
elaborá-la em produtos de alto valor para o mercado de consumo é visto hoje como um
grande sucesso nos países de primeiro mundo. Enquanto isso, a ideia de pessimismo no
terceiro mundo defronte à riqueza do Ocidente é tida em balanços negativos. Se
pensarmos até em bem-estar social do Primeiro Mundo e a pobreza dos
subdesenvolvidos, veremos que se apresenta uma moldura de resultados de injustiças
frente ao hemisfério sul. O que eles pensam é em um tipo de conservação da miséria
enquanto espírito conservador da miséria, do esforço, da pobreza, negador do luxo e do
bem-estar foi invertido. O pauperismo pode ser descrito como sinônimo de carência.
Uma ontologia que ultrapassa aspectos econômicos ou políticos fazendo da carência uma
espécie de “essência negativa”, algo como um ser da escassez. A essência humana seria
neste contexto, sua subjetividade. Uma psiquê torta como forma de pobreza humana
como manifestação histórica, social e existencial, (produtos, oportunidades e recursos)
visto por exemplo, nos trabalhos de Arnold Gehlen. Um conservador do século XX com
tradições hegelianas à direita. Gehlen toma essa ideologia como uma antropologia
filosófica. Como expoentes do século XX se juntaria a ele em uma “síndrome pessimista”
nomes como Luhmann, Adorno, Freud, Lacan, Schmitt e Herder. Um crescente
conservadorismo fundado no homem deficitário. A determinação do homo pauper como

1
SLOTERDIJK, Peter. Esferas III: Espumas (Esferología Plural). Traducción de Isidoro Reguera. Madrid:
Siruela, 2006, p. 529. Sloterdijk menciona que no transcurso do século XX foi mais difícil de manter como
supostos fundamentos fundamentais do conservadorismo clássico. Seja em seu caráter de constituição
como conservadorismo da miséria, em catolicismo da carência ou negação da riqueza. Na medida em que
a mensagem encoberta e onipresente da facilitação da vida se materializava nos ânimos das gerações
seguintes, uma interpretação de mundo tendo em vista o prejuízo da carência tomou uma posição pouco
plausível.
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antropologia das carências. Ânimos conservadores e uma paralisia do aligeiramento (é


significativo que a palavra “aligeiramento” seja Leichtung, e “clareira” seja Lichtung) das
coisas construíram o animal profundamente pobre como um ser humano ativo, reflexivo
em sua cultura. Nesses dizeres o homem seria eternamente um caído, por isso é
importante lembrar o episódio da Queda e do Pecado Original. Se o homem está no
mundo, não estamos em um lugar melhor, mas porque decaímos, logo, esta transposição
atingiria toda a constituição do homem. Ao homem cabe pequenas riquezas, mas nunca
deixaria de ser um pecador-decaído.
Gehlen viu algo que o homem veio de um hominídeo que trouxe, pela evolução,
traços infantis morfológicos e psicológicos, para o indivíduo adulto da espécie. O homem
é sempre o não pronto, não acabado. Mas, nesse caso, faz diferente de Sloterdijk, que
apanha a neotenia associada à tese do isolamento de grupos, condição esta, que deu às
progenitoras uma invernada, uma estufa de tranquilidade para cuidar da prole, inclusive
dos nascidos mais jovens, para fazer da cria um ser que terá a infância e jovialidade
mesmo em fase adulta. Em Sloterdijk é assim que neotenia funcionou. Não para Gehlen.
Com este último, a neotenia vem sem essa conversa. E, então, ele endossa a tese do
homem como o que nasce pobre, sem recursos, aquele que perto dos outros animais é
o menos preparado, e tem então, por apoio sucessivo de aspectos culturais (e não na
sequência biológica e simbólica da invernada) e, por isso, um caráter de trabalho duro na
vida miserável, sair da condição de ser-de-carências. Nunca sairá. Será eternamente
deficitário e penuriado. Mas, de vez quando, deixará todos os males maiores do pecado
original, e poderá viver bem alguns momentos. Poderá se desonerar em forma de
comunidades subversivas de artistas livres, mas isso nunca deverá ser o comportamento
dos “muitos”. Estes, sempre serão conduzidos pela disciplina, pelo trabalho, pela labuta
diária para suprir a condição de ser de carência. Sloterdijk vê o homem não como ser-de-
carência, mas como ser rico. A neotenia produz o hominídeo rico e o homo sapiens mais
rico ainda. O conservador Adorno jamais endossaria tal tese, talvez tivesse apreço pelas
considerações de Gehlen. Sendo assim. Adorno não tem uma teoria para a sociedade da
abundância. Se uma predominância no século XX teria de ser a da escassez e da visão
precária do homem, poucos autores seguiriam uma sociologia aos moldes de Galbraith.
Quando Adorno, junto com Horkheimer, produziram os textos sobre a “Dialética do
Iluminismo”, a sociedade da abundância e o individualismo que hoje conhecemos não
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estavam em voga. Os fundadores da escola de Frankfurt viram os terrores do século XX,


como pensar para além do preto e cinza? O batismo de “ciência triste” permite pressupor
que a economia política é uma escola de crueldades, pelo motivo de que ela educa seus
adeptos na resignação em uma suposta manutenção legal da pobreza. Nem se quisermos
ajudar não poderíamos. Adorno compactuaria com essa ideia: a de seguir uma visão
tenebrosa que seguia o pauperismo industrial. Para ele, nem os mais abastados se livram
da desfiguração do mundo pela abstração do intercâmbio. Tudo estaria cunhado de
modo semelhante. A vida se subalternaria e se corrói pela sujeição das coisas na
expressão do preço. A forma de um conservadorismo esclarecido. Um acontecimento no
século XX que apresentaria a ideia da superação da pobreza material de massas nos
países de primeiro mundo. Mas um certo pessimismo dizia que a riqueza econômica
nunca seria suficiente para pôr fim ao complexo de pobreza. Ciência triste. Onde quer
que o Esclarecimento apareça como uma “ciência triste”, ele estará fomentando, a
despeito de sua vontade, o entorpecimento melancólico. Por isso, a crítica da razão cínica
promete mais um trabalho de divertimento, no qual se encontra desde o princípio
decidido que ela não é tanto um trabalho, mas muito mais um relaxamento do trabalho.
Por isso, também que Sloterdijk declara a morte da Teoria Crítica. Considera uma forma
de neo-idealismo, para quem passou anos e séculos a ultrapassar o idealismo objetivo
dos antigos e o idealismo subjetivo dos modernos para cair em um idealismo
intersubjetivo? Fica para a próxima! A defesa contra o niilismo é a verdadeira guerra
ideológica da modernidade. Se em alguma frente comum ainda lutam lado a lado
fascismo e comunismo, é na frente contra o niilismo, atribuído em uníssono à
“decadência burguesa”. O que há em comum entre ambos é a convicção em opor um
valor absoluto à tendência niilista: de um lado, a utopia nacionalista, de outro a utopia
comunista. Superação do niilismo? “As superações... são sempre piores do que o
superado”, palavras de Adorno em Dialética Negativa (1966). Não é de se espantar que
a autorreflexão moderna não conseguir mais “ir para casa”, apesar de todos os seus
“revolvimentos”. Os sujeitos não sabem nem em “si”, nem em seus mundos que os
circundam como estando “consigo em casa”. Para o pensamento mais radical da
modernidade, se descortina no: polo-si-mesmo o vazio e, no polo-mundo, a estranheza.
Jamais imaginaríamos que nossa razão não conseguiria imaginar como algo vazio deveria
conhecer a si mesmo em algo estranho. Grande parte dos conhecimentos objetivos se
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destacou de qualquer ligação com um “si-mesmo” e se encontra em contraposição à


nossa consciência naquela objetividade diferenciada, no qual o caminho não é mais re-
fletido para uma subjetividade. O eu não experimenta mais em nenhuma parte mais o si
mesmo, e se o faz, se deixa encobrir por elementos reais com uma clara e manifesta
interioridade desprovida de mundo. O que temos são subjetividades, interioridades,
exterioridades e coisas que racharam e se transformaram em “mundos estranhos”.
Diante disso, fica claro o abandono da premissa da filosofia clássica. Na Idade Moderna,
a lei é a superação do autodomínio pelo domínio do mundo. Um novo romantismo do
intelecto soberanos culminará no Idealismo Alemão e os produtos da sua desintegração
continua atuante perigosamente por muito tempo. Um romantismo de tipo perdedor na
conexão entre phátos universalista e inutilidade prática (jovens hegelianos,
Existencialismo como bifurcação entre criação artística e planos utópicos, os primeiros
socialistas, Teoria Crítica), ocasionalmente complementada por uma atitude tipicamente
moderna de “pôr em prática” as ideias filosóficas (violência terrorista). Os modernos
passaram a muito tempo a compreender a sentença “conhece-te a ti mesmo” como uma
forma de convite do ego para uma elevação de si em ignorância e de fuga do mundo. A
era do sem-abrigo metafísico conforme Lukács falava, acaba por generalizar o hábito de
fuga. Com sua disposição formal de progresso, o mundo foge de si mesmo em si mesmo,
a partir de cada lugar do mundo fugitivo preparam-se novas e continuadas fugas. Assim,
o mundo acelerado do dinheiro e das comunicações parodiam relações metafísicas com
o efêmero, não dispõe de nenhuma ideia da metafísica. O modo de refletir moderno
recusa para si mesmo e expressamente uma competência que é: para se assentar
subjetividades sem quebras em mundos objetivos, o que se descortina é um abismo. O
“si-mesmo” sabe a si mesmo de uma maneira misteriosa com o que seria o “mundo”,
mas isso sem que ele mesmo possa conhecer a si no sentido da cosmologia grega. Os
sistemas clássicos retiraram seu “páthos” da certeza de que a experiência do mundo era
uma experiência de si que convergiam para um signo do “absoluto”, algo próximo de
Hegel e Tales de Mileto. A simples constatação de que reflexão e vida não era “um saber
distante”, onde razão teórica, razão prática nunca poderiam se alienar e separar uma da
outra, pelo simples fato de que, too conhecimento encontraria em si, um
autoconhecimento dos “seres cognoscentes”. Na modernidade, há uma reflexividade
que não consegue mais girar em torno de si mesma (em torno da mesmidade do si-
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mesmo). Se nas reflexões mais antigas como na estrutura da Odisseia homérica, havia
um herói que saia de sua casa, retornando tempos depois a mesma depois de passar por
maus bocados e atravessando o mundo, a fim de ser reconhecido por sua mulher, as
reflexões modernas não encontram mais nenhum “retornar”, já não há de maneira
alguma “terra natal”.
Dessa esfera provêm grandes poses da resistência individual em uma realidade
efetiva gritantemente desesperada. A Primeira Guerra Mundial ainda pode ser
considerada aqui como um evento histórico-metafísico, em certa medida, como o
comentário militar à sentença nietzschiana “Deus está morto”. O “eu” depois da guerra
é uma herança sem testamento e se acha quase irrevogavelmente condenado ao
cinismo. Uma vez mais, ele se lança em grandes posturas expressivas: autonomia estética
no esfalecimento; codestruição na destruição geral; caretas refletidas mesmo no
dilaceramento; congelamento de afetos, afirmação fria de relações que dizem não ao
nosso sonho de vida; a frieza do mundo superada pela frieza da arte. Colocam de maneira
desrespeitosa as suas poses contra o caráter fatídico do tempo, caráter esse tão
sobrepujante quanto ordinário. Um deixar-se levar cinicamente. “Estamos vivos, estamos
vivos” (1945). Talvez testemunhemos hoje as últimas gerações de adultos cuja imagem
de si próprios ainda está imbuída de motivos estoicos. Freud em Reflexões Para os
Tempos de Guerra e Morte (1915), recorreu a uma constante estoica para os pacientes o
século XX, quando em 1915, escreveu, fazendo referência à Primeira Guerra Mundial que
“Suportar a vida, permanece, contudo, o primeiro dever se todos os que estão vivos”.
Nietzsche já em seu tempo parecia ter percebido um certo cinismo na ciência.
Para ele, também a ciência do ponto de vista fisiológico possui um certo empobrecimento
da vida como pressuposto, as emoções tornadas frias, o ritmo tornado lento, a dialética
no lugar do instinto, a seriedade impressa nos rostos e nos gestos. A seriedade como
marca inconfundível do metabolismo mais trabalhoso, da vida que luta, daquilo que
funciona com mais dificuldade, a ciência moderna como a mais involuntária,
inconsciente, secreta e subterrânea. O saber e o poder são dois modos de acesso ao
“além de bem e mal” moderno. A partir do momento em que nossa consciência dá o
passo decisivo de entrada nesse “além”, apresenta-se inevitavelmente o cinismo.
O fascismo foi interpretado via Heidegger a partir de sua reflexão sobre
modernidade e tecnologia, o que hoje chamamos de “técnica”, e a emergência de
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subjetivação e objetificação do mundo associados a um Humanismo falso. Para que


exaltar novamente o ser humano e seu autorretrato filosófico padrão como solução no
humanismo, se a catástrofe do presente acaba de mostrar que o problema é o próprio
ser humano, com seus sistemas metafísicos de auto-elevação e auto-explicação? Querido
Beaufret, parece dizer Heidegger, é preciso começar do zero, ou talvez abandonar todo
desejo de começar. Dois anos antes, Adorno e Horkheimer, na Dialética do
esclarecimento, já indicavam o fim totalitário do projeto intelectual europeu. O
humanismo se oferece como cúmplice natural de todos os possíveis horrores que podem
ser cometidos em nome do bem humano. De fato, o fascismo é a metafísica da
desinibição, talvez uma forma desinibida da metafísica. Na visão de Heidegger, o fascismo
foi a síntese do humanismo e do bestialismo, isto é, a paradoxal confluência de inibição
e desinibição. Carl Schmitt falou do fascismo na ligação com a necessidade de soberania
da Alemanha. Hannah Arendt viu bem os aspectos da imbecilidade simplória do burocrata
fascista, da capacidade não do mal, mas dá imbecilidade, da mediocridade em posições
de poder. A Escola de Frankfurt insistiu no desenvolvimento da razão como racionalidade
técnica, base do comportamento incapaz de empatia, e mesmo de uma “rápida
mecanização do homem”. Para Adorno, o individualismo se apresentava como uma
perda, algo que a “sociedade administrada” e o “capitalismo tardio” haviam destruído,
ou então eliminado a possibilidade. Adorno tinha uma utopia de regresso. Seu mundo
correto era o mundo ideal de um tempo da sociedade capitalista em que a sociedade de
massas não havia aparecido. Outro que caminhou por essas trilhas foi Walter Rathenau,
assassinado em 1922, tinha encontrado uma fórmula expressiva: “a mecanização do
mundo”. Rathenau era um político-burguês, e ao mesmo tempo um empreendedor bem-
sucedido e filósofo de alto nível. Ele quis interpretar para si e para os contemporâneos a
essência da sociedade moderna. Seu ponto inicial para falar sobre a mecanização do
mundo, não foi o exército, mas sim, a grande cidade (Zur Kritik der Zeit – Para Uma Crítica
do Tempo de 1912). Fugindo da filosofia e adentrando no campo cinematográfico
teríamos ainda Tempos Modernos de 1936 com Charles Chaplin. Essas análises se
tornaram clássicas. Nos anos oitenta, há quatro décadas, Peter Sloterdijk agrupou a elas
a sua teoria: o nazismo foi o fruto do cinismo moderno.2

2
Thomas Mann em A Montanha Mágica (1924) levou a termo a sua confrontação com o espírito do tempo
weimariano neocínico, não notado por muitos, que acreditavam que essas conversas nas alturas de Davos
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Sloterdijk (2012, pp. 633-634):

Revelou-se naqueles anos um risco existencial presente por toda parte: por
trás de toda sólida aparência, emerge o elemento inconsistente e caótico. Uma
reviravolta realizou-se naquelas regiões profundas, nas quais a ontologia do
cotidiano é projetada: um sentimento pesado de ausência de firmeza das
coisas penetrou nas almas, um sentimento de falta de substância, de
relatividade, de mudança acelerada e de flutuação involuntária de transição
em transição. Essa volatização do sentimento para o confiável desemboca em
uma fúria angustiada coletivamente difundida contra a modernidade. Pois
modernidade é a suma conceitual de relações, nas quais tudo só aparece
justamente “de maneira relativa” e aponta sempre para a mudança. A partir
dessa fúria angustiada forma-se facilmente uma prontidão para se deslocar
deste estado desconfortável do mundo e para transformar o ódio contra ele
em um sim aos movimentos sociopolíticos e ideológicos, que prometem a
maior simplificação e o retorno energético a relações “substanciais” e
confiáveis. Vem ao nosso encontro aqui o problema da ideologia a partir de
um aspecto psicoeconômico. Em uma boa parte, o fascismo e suas correntes
paralelas, eram ditos em termos filosóficos, movimentos de simplificação. Mas

não seriam outra coisa que senão sagacidades derradeiras da burguesia cultural sem qualquer tipo de
vínculo social. Thomas Mann debateu-se na tarefa de apreender o espírito da adaptação, da colaboração
e da afirmação, que caíra nessa década nas águas do cinismo, apresentando o que seria um
“posicionamento positivo”, que não eram baseados em afirmações de uma realidade ou de dados
mortalmente objetivos. Da A Montanha Mágica emerge, talvez pela última vez, imagens de uma
humanidade que permanece na engenhosa sem se tornar cínica. Uma humanidade que não pode mais
existir na planície. As alturas de Davos correspondem à uma zona psíquica onde todo o drama de seu livro
acontece. Nele, um humorista tenta novamente subir a um ponto mais elevado do que as altas elevações
do cinismo. Aqui há uma tradição mais antiga de ironia-humorística que luta com a ironia moderna de “opa,
estamos vivos”. O caráter moderno de “lançado” e com o deixar-se impelir cínico, o herói da história se
entrega à sua aventura na montanha e se deixa arrastar pela corrente do tempo nas altas altitudes. Porém,
o que temos aqui não é uma engrenagem completamente solta, mas um pressentimento de uma formação
superior, uma esfera luminosa de um si-mesmo mais elevado, de uma humanidade e de uma afirmação da
vida diante do realismo e da regressão e da morte. A risada se autonomiza e não pertence mais àquele que
ri. Uma risada que não temos mais responsabilidade e compromisso. Algo ri em nós, quando tomados uma
consciência, que alcança um caráter mais profundo em nós do que pode perceber o nosso eu civilizado. É
assim que nosso herói Hans Castorp ri, um riso intenso, incontrolável, uma careta levemente dolorosa por
causa do vento frio. Um riso que vem quando seu primo conta como os cadáveres no inverno são
transportados para a planície. Ele diz: “em um tobogã”. Continua ele dizendo: “E tu me contas isto com
toda a tranquilidade de espírito?” Então, vem a resposta: “Tu te tornaste completamente cínico nestes
cinco meses!”. Creio que um cidadão chamado Caio Copolla também poderia ser inserido aqui. Um
sorrisinho dente de cavalo e o bloquinho de anotações. Um sorriso que virou uma careta. Ri a todo
momento sem motivo algum. Thomas Macho fala do Homem que ri de Vitor Hugo, contando as diversas
histórias produzidas pela literatura e pelo cinema a partir desse clássico. No campo popular, lembra o filme
Batman, o cavaleiro das trevas, em que Heath Ledger interpreta o Coringa. Ora, o que é esse vilão senão
aquele que foi posto por sorrir na base da faca? Sempre estará sorrindo! Nas situações mais dramáticas,
perigosas e difíceis ele terá de sorrir, querendo ou não. Mesmo diante da morte ele sorri. Não há como
evitar o que diz um rosto feito à mão – a mão de máquina! Então, o melhor que se há de fazer é jogar, é
participar do mundo achando graça no que não tem graça exatamente porque o rosto estará afirmando
isso. Seria tolo tentar contrariar o rosto. Seria uma tarefa árdua e fadada ao insucesso. Não podemos ser
menos ou mais do que é nosso rosto, a máscara que é o rosto, a “organização forte”. Não é isso que os
personagens de Nicolas Cage e John Travolta descobrem, quando seus rostos são trocados, no célebre
filme de John Woo? Eles logo percebem que podem agir muito bem tendo um rosto que parecia não ser
senão o seu simétrico e odiado outro.
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o fato de precisamente os mercadores da nova simplicidade (bom-mau,


amigo-inimigo, “front”, “identidade”, “laço”) terem percorrido, por sua vez, a
escola moderna e niilista do refinamento, do blefe e da ilusão – isso foi que só
pôde ficar mais claro muito mais tarde para as massas. As “soluções” que soam
tão simples, o “positivo”, a nova “estabilidade”, a nova essencialidade e
segurança são, de qualquer modo, as estruturas que no subterrâneo são ainda
mais complexas do que as complexidades da vida moderna, contra as quais
elas se voltam. Pois elas são construtos defensivos e reativos – compostos a
partir de experiências modernas e de negações dessas experiências. A
antimodernidade é bem possivelmente mais complexa e paradoxalmente mais
moderna do que aquilo que ela recusa; em todo caso, ela é mais turva, tosca,
brutal e mais cínica.

O clima que imperou antes dele, especialmente na República de Weimar, e que


o preparou, foi aquele no qual a mentalidade vigente era de pessoas que perceberam
que havia acabado os tempos da ingenuidade. Modernização da consciência infeliz.
Ambos garantem um fim último que justifique todos os meios e prometa um sentido à
existência. Mas onde o cinismo radical dos meios se encontra como um resoluto
moralismo dos fins, sucumbe o último vestígio do sentimento moral dos meios. Hitler ao
tentar se lançar como um antropólogo disse que “a invenção mesma se baseia na
descoberta da artimanha e finta, cuja aplicação simplifica a luta pela vida com outros
seres...”. O porta voz dos mutilados de guerra era o jornal Associação Imperial, órgão da
Associação Imperial dos Inválidos e Enlutados de Guerra. O jornal saia com impressões
bem regulares desde 1922. Duas coisas foram ensinadas por essas impressões e manuais
aos sobreviventes mutilados: primeiro, uma vontade de viver de aço. E, a educação do
corpo na adaptação com as próteses. Tudo tinham a função de tomar uma postura
positiva e uma alegria de viver em meio à continuidade do trabalho mostra-se hoje como
sátira. Nos manuais de mutilados e nos escrito da indústria técnico-médica surge uma
imagem de homem extremamente contemporânea: o homo protheticus, que deve dizer
um sim selvagem, mas ao mesmo tempo, sereno a tudo aquilo que diz não à
“individualidade” dos “indivíduos”. Em algumas cartilhas dessa época tinha-se um
direcionamento bastante individual para pessoas com um braço (1915), o crescente
número de pessoas com braço único vindas do front dá novos impulsos aos “antigos
homens de um braço só”. Muitas dessas cartilhas apresentavam a ideia de que ter um
braço não era algo tão ruim assim. Haviam políticas no sentido de indenizações estatais,
tudo piorou ainda com a crise de 1929 e em 1931 quando decretos-lei de emergência
levaram a reduções radicais dos gastos do tesouro nacional. A construção da ideia de que
17

o honorário protegeria toda a penúria dos aleijados de guerra. A “existência triste” não
aguardariam estes, desde que eles conseguissem encontrar o caminho de volta para o
trabalho. O trabalho foi o fato fundamental de toda a modernidade. Ócio é de todo vício
o início. A mão no trabalho não era algo desconsiderado nem para os que lutaram na
guerra. Em alguns jornais haviam páginas de exaltação onde se falava que aqueles que
perderam membros, não o perderam sob o machado do carrasco, mas na luta sagrada. A
maioria dos homens veem um veterano de guerra como um monumento vivo. Conquistar
a autonomia seria uma lei, a meta do homem de um braço só. O que nunca deixar que os
outros o ajudassem para aqueles que tinham um braço só haveria uma vantagem, pois
aquele de um braço só consegue tornar para si mesmo, ele perde o medo da perda
insuperável. As próteses medicinais e a mentalidade com elas oferecida do robô robusto
não trazem à luz senão um padrão de pensamento universalmente difundido. A guerra
soltou a língua do cinismo latente dominante, medicinal e militar. Sob sua influência, os
aparatos militares e os aparatos de produção confessaram sua reivindicação de consumir
a vida dos indivíduos a seu serviço. O corpo humano na sociedade do trabalho e da luta
já mostrava há muito tempo como prótese, antes de se ter precisado substituir partes
faltantes por partes técnicas funcionais. Nos anos de Weimar, a técnica aproximou-se
provocativamente do antigo humanismo. Nessa época, a associação conceitual “o
homem e a técnica” transformou-se em uma ligação compulsiva, que abrangia desde os
cumes da filosofia burguesa até os bancos de escola. O esquema de pensamento diz: a
técnica assume o controle, ela ameaça degradar o homem, ela quer nos transformar em
robôs. Se mantivermos nossa alma em marcha, nada nos acontecerá. Pois, a técnica está
presente em última instância para o homem – e não o homem para a técnica. Como
elemento especificamente fascista não resta nada em termos de conteúdo. A ideologia
do fitness é hoje, desnazificada, tão aguda quanto outrora, enquanto a ética do ser, agora
como antes, é colocada contra a ética do ter. A vida prática não tem melhor sorte que
não no livro de Hannah Arendt chamado de Vida Activa.3 Curiosamente, nas últimas
páginas de seu livro, Hannah Arendt acaba por fazer uma saudação à vida contemplativa.
Ela continua sem perceber que precisamente a perda da capacidade contemplativa é
responsável pela degradação do homem em animal trabalhador. Não é natural esta

3
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 12ª Edição. Tradução: Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2015, pp. 9-26.
18

constatação em um estudo que promete explicar a “condição humana”? O modo de vida


dominante nas subculturas ocidentais abriu sem precedentes as comportas para práticas
de treino, asceses de superação, quer o nome que demos para elas: treino, desporto,
dietética, modelização corporal, fitness, terapia, meditação, spa, todas elas de realização
positiva. Do lado oriental, nada muito diferente com seus maiores expoentes como a
China e a índia também completaram sua passagem para modelos orientados de mundo.
Não se pode duvidar que tais sportsmen da “santidade” de que os tempos e quase todos
os povos são pródigos, tenham de fato encontrado uma libertação real daquilo que com
um tão rigoroso training combatiam, razão pela qual esses métodos estão entre os fatos
etnológicos mais universais. Resultado em termos psicológicos “renúncia de si” e
“santificação”. O fascismo aparece aqui como rebelião dos eus das próteses contra a
civilização “liberal”, em cuja “desordem” eles ainda teriam, contudo, uma pequena
chance de ser eles mesmos. Em uma fuga violenta para frente, eles sobrepujam o
sistema, do qual eles emergem. O segredo de sua autoconservação esconde-se na
eliminação total de tudo aquilo que lembrava algum dia um si-mesmo. É certo que o
nacional-socialismo não foi um “neopaganismo” como vociferou Habermas, nem mesmo
o erro de Eric Voegelin, no erro de interpretar como uma “religião política”. É certo que
de tons racistas, ausência de pensamento burocrático e estupidez militar não surge
qualquer tipo de fenômeno religioso. É certo que em certo nível os alemães nazis
operaram entre as distinções entre o Bem alemão e o Mal não-alemão, mas isso não
chega a ser um indício suficiente para constatarmos que havia um funcionamento de um
dualismo gnóstico, como supôs Voegelin. Esta “autoprogramação” de uma impulsiva
hermenêutica pseudometafísica em torno do fascismo é um sintoma de uma dificuldade
de que muitos se depararam em admitir a questão da banalidade do mal já muito bem
tratada por Hannah Arendt, é mais fácil aceitar a sua total ausência de significado teórico.
O nacional-socialismo estabelece-se como nacional-funcionalismo. O fascismo
alemão foi mais do que uma tentativa de se chegar em uma “hegemonia mundial”, o seu
motor mitológico foi fomentado por um quiliasmo racista, expressão de Jacob Taubes.
Uma teozoologia que recorreu a uma biopolítica “religiosa”, na forma de incitação
popular de maneiras absurdas. Houve uma concretização de uma revolta contra a
tradição judeo-cristão-liberal da Europa, enquanto guerra contra o judaísmo, foi um
indício para sobrepujar o mito judaico da Eleição através de uma autopromoção alemã.
19

Com a queda sem precedentes, os alemães foram levados a reconhecer de maneira


válida, que as identidades nacionais e as missões nacionalistas nada mais são, do que
autohipnoses coletivas nascidas da fúria, da violência e geradoras de violência. Sob os
efeitos destas, os atores históricos, guiados pelas autossugestões, precipitam-se para a
cena a fim de conquistar o seu lugar ao sol da história universal. A ideologia nacional-
socialista foi um movimento fitness militarizado e de cultura populista do acontecimento
de massa (völkisch), apoiado numa doutrina muito superficial e cruamente naturalista em
torno do poder. Isto nada tem a ver com religião. O fascismo é uma política baseada na
vingança integral. Dirige-se a coletivos de perdedores e incita-os a buscar compensações
autodestruidoras. O fascismo oferece aos ambiciosos frustrados possibilidades
alternativas de rebelião, é esse seu segredo. Cumpre as expectativas de satisfação dos
obstinados perdedores levando-os por desvios, é aí que reside sua capacidade de
sedução. Dizem: “juntos somos mais fortes”, já que não conseguiam ser fortes por si
mesmos. Obriga a todos ficarem mobilizados o tempo todo. Adorno gostava de citar uma
das frases dos teóricos do nazifascismo que era o seguinte: “Quando tudo isso acabar
podem dizer tudo de nós. Só não podem dizer que nós fomos entediantes”. É olhando
mais atentamente para o fenômeno das esferas que podemos entender como muitos
homens do século XX foram arrastados para transformações catastróficas, sem que
tivessem podido encontrar ou desenvolver meios psíquicos adequados para travar
intimidades e forjar novas relações. Um caráter inóspito caracteriza as relações
modernas, é possível ver que toda proximidade seca em precariedade. Os sentimentos
positivos transferíveis para a pátria e a família convertem-se em algo escasso. Vimos um
século de psicoses políticas, seu núcleo central seria uma psicose de forma e sintomática
de stress espacial, ela apresenta-se em formas de desequilíbrio de pertencimento. Vemos
indivíduos desenraizados que deixam de ter consciência do como e de onde viemos, com
quem ter vínculos, com quem e em quem confiar, em que formatos comunicam, o que
se pode ou não se modificar. Indivíduos que não sabem quem são e quem são os outros,
um saber desse tipo, só surgem onde emergem, suficientemente, boas esferas primárias,
onde a partir delas se é possível fazer transferências para o mais longínquo sem que se
gere medo da sua própria perda. Digamos que entramos em um terreno baldio dos
sociopatas típicos da sociedade moderna, indivíduos com uma forte inclinação para
atitudes de extrema-direita, em outras palavras, sofrem de uma falta de
20

“reconhecimento” nos tons hegelianos. Não é de se espantar o caráter, pelo menos no


Brasil, de atitudes de um saudosismo do passado, rememoração de segmentos da arte,
música e política que hoje já “não são mais os mesmos”, dizem que “no meu tempo era
diferente”. Claramente uma retórica da integração. A Modernidade faz seu dever na
construção de cavernas políticas histéricas. Nesta época onde os homens murcham na
capacidade de julgar e acabaram se juntando em pseudocomunas ilusórias. Esses abrigos
são baseados em sistemas de delírios que possuem uma forma de salvação através do
fim ou salvação pela terra arrasada. Uma promessa de salvação que será paga com a
destruição. Num período assim, surgem em todos os lados anjos da morte. As sociedades
nacionais modernas têm, digamos assim, uma “estrutura” não material. Só podem
perdurar como comunidades imaginárias, onde todas têm uma dimensão não
“desenhável”. São instáveis e fictícias. Estão em uma fronteira entre o delírio, para utilizar
a expressão de Benedict Anderson “imagined communities”. Os Estado-nação seriam
desde o início, unidades de pura ficção política. A finalidade da política moderna consiste,
portanto, em abrigar sob um mesmo teto um número considerável de homens excitados,
homens que formam uma sociedade com formato baseado no estresse sob um telhado
étnico-cultura comum. Uma visão mais simplificada seria mais fácil considerar as nações
modernas como asilos políticos, recipientes de molduras abarcantes. Um tipo de asilo
indígena. Lá se verifica um local de abrigo, de refúgio, um espaço de proteção física e
simbólica para pessoas desenraizadas e ameaçadas. No mundo que temos hoje, não são
apenas os imigrantes e os refugiados estrangeiros, mas exatamente os nativos que mais
se sentem “deslocados”, mais se sentem ameaçados e desenraizados e virtualmente
infectados. Um asilo nacional serve para proteger a necessária ilusão de enraizamento.
Do ponto de vista da boa vida a proteger, existe o interesse de preservação ligado ao
biótipo social, uma política cultura seja de esquerda ou de direita, devem levar em
consideração a necessidade de satisfações não reacionárias e não repressivas. Quando
isto falha temos a violência.
21

Frankenstein: O Prometeu Moderno. Frontispício de uma


edição inglesa, publicada pela Colburn and Bentley em
1831. Gravura feita por Theodor von Holst.

Hitler tem uma antropologia da luta, em caráter duplo de uma invenção técnica
e de uma dissimulação subjetiva. Hitler queria que se elevasse o inventor como o
indivíduo excepcional, um tipo de biologismo de mais apto para a vida, e por isso mesmo,
aristocrático. Uma teoria da elite para funções antropológicas e psicológicas. Diz “a
natureza é cruel, nós também podemos ser”. A referência de uma política de amizade foi
contestada por militares com argumentos darwinistas de que não teríamos que lutar,
lutar e lutar porque o mundo mesmo nos mostra sob o signo da guerra. Ser “elite”
significava pertencer àqueles que descobrem ou inventam “fintas e artimanhas”. Uma
visão típica do cinismo e da vigarice. A crítica da razão cínica traz uma visão panorâmica
sobre o Esclarecimento e as condições internas desse movimento, repetindo o trabalho
irônico junto ao supergo. Trabalho este que teve que ser predominado por subjetividades
estratégicas em sociedades de classes e sociedades militares. As duas grandes leituras a
22

respeito da Modernidade, seja a de Marx falando do capitalismo enquanto criador de um


novo mundo (o do império do valor de troca), e a de Nietzsche falando do niilismo como
imperativo para o mundo (a desvalorização de todos os valores), não são senão, cara e
coroa da mesma moeda. Essa moeda estampa a narrativa a respeito do sentimento que
tocou todos os de boa cabeça, e até mesmo, em certo sentido, de meados do século XIX
e de todo o século XX. Em ambos os casos, o decreto lido na moeda cunhada pela
Modernidade dizia a mesma coisa: onde está o real? Como faremos para “levar adiante
esse mundo”? Quem obedeceria a quem e quem usufruiria de quem num mundo em que
nada é dito como real, em um sentido forte, e que, portanto, a sensação de que a
irreferencialidade pudesse se impor socialmente e psicologicamente? A questão posta
nunca foi a do fingimento. Fingir, todos podemos. Aqui, temos de invocar a distinção de
um escrito de quarenta anos atrás de Jean Baudrillard, sobre o que é dissimulação e o
que é simulação. Um cachorro pode perfeitamente dissimular, mas só o eu ou meu tio,
os humanos, podem simular. O dissimulado finge que não fez o que fez ou finge não ter
o que tem. Diferentemente, quem simula diz ter o que não tem e diz ter feito o que não
fez. O simulacro não é o fingimento, é a produção criativa do zero, do não feito, do não
existente. É a difícil tarefa humana de se referir ao nada porque deve escondê-lo. O
mundo do simulacro é o mundo psicossocialmente imperante quando a Modernidade
abre suas avenidas para que a desconfiança sobre o desaparecimento da dicotomia real-
aparente se instaure.
Seria a felicidade o último crime? Cinza é a tonalidade fundamental de uma
época, que, secretamente e depois de muito tempo, volta a sonhar com uma explosão
de tons pasteis. Sonhos como uma capacidade vital. A capacidade de se lançar numa fúria
certa na hora certa, da capacidade de romper com o clima de preocupação, da quebra
da incapacidade de festejar, de ser feliz, da capacidade de se entregar. Quem sofre sem
se enrijecer compreenderá quem pode ouvir música se vê claramente em alguns
segundos projetado para o interior do outro lado do mundo. A certeza de o real estar
efetivamente escrito com a pena da dor, da frieza e da rigidez marcou o acesso dessa
filosofia ao mundo. Em verdade, ela não acreditava senão muito pouco na mudança para
melhor, mas não cedia à tentação de se embotar e de se habituar com o dado.
Permanecer sensível era uma postura por assim dizer utópica, manter aguçados os
sentidos para uma felicidade que não virá, mas à qual nos mantemos de prontidão, nos
23

protege dos recrudescimentos mais malévolos. Ser otimista era sinônimo de


ingenuidade, de uma felicidade intocável. No tempo histórico, os felizes são sempre
aqueles que são tidos como aluados, utópicos, os poupados, os que ficam à mercê. Para
os outros, impera uma lei da dureza e do endurecimento, o amor nunca é
suficientemente tão forte como a morte. É natural salvarem-se na sabedoria e no
cinismo, por isso, os estoicos trabalham a sua estátua interior, o espiritualista no seu
corpo luminoso. O que está presente é sempre o ser e o nada.

The Skat Players por Otto Dix. Um tipo de arte chamado bricolagem
grotesco. (1920). Três soldados lutam com um jogo de cartas apesar de seus
absurdos acréscimos robóticos. Uma linha para ver as cartas dele se
sustentam entre os dedos dos pés, enquanto outra sem membros tem uma
carta na boca. Suas pernas de madeira se misturam com as da mesa e
cadeiras, tornando-as difíceis de distinguir da mobília.

O mundo de hoje é de uma “sociedade de massas” sem dúvida, mas, como


Sloterdijk coloca, também estamos naquela sociedade que põe o indivíduo como se
vendo como mais real que tudo o que está ao seu redor. A situação de opulência, parece
não entrar de modo algum na pauta dos intelectuais, que continuam sempre acreditando
24

em formas laicas de ver o homem no Pecado Original e na Queda. Se para Rousseau a


propriedade seria um pecado, pensar outras formas disso também o seriam. Esta foi em
grande parte o fundamento moderno da ideia de ressentimento. Uma antropologia
deficitária batizaria também uma psicopolítica erótica extrema. Devemos entender que
a ira ou a fúria estão em diferentes formatos ou em estados de agregação. O
ressentimento é uma intensa acumulação emocional que conduz a um alívio na forma de
um sentimento contido (preso-encapsulado) pelo qual a ira (raiva) se converte em hábito.
É o mesmo que dizer um “sentimento reprimido”. Quando a ira e o tempo se afastam,
então, surge o ressentimento. Ou seja, uma sensação que se trata de reprimir, de uma
sensação de um tempo e daí se cria o ressentimento. A vingança não tem lugar em um
modo de agir imediato (do alívio imediato), mas sim, de algo que se guarda no interior e
em outro momento de descarrega. Uma forma nada mais que de um ressentimento que
cria um sedimento que podemos comparar com o envenenamento.
O Estado contemporâneo surgiu de uma diferença trágica que desde o século
XIX, o Estado moderno Absolutista e o medieval no fundo não existem, pois, esse estado
tem muitos sentidos, por exemplo o domínio do poder pelo medo e pela força é
monopolizada pelo Estado. No século XX com o fim da 2 Guerra Mundial, se caracteriza
pelo terrorismo de Estado (Atmoterrorismo). Essa ideia de "guerra contra o terrorismo"
parece algo contraditório. Hoje a guerra é terrorismo e vice-versa. A questão do
terrorismo após 11 de setembro pode funcionar como um caso específico de um
fenômeno na pós-modernidade, que é a expansão das áreas de combate, para qualquer
lado. O terrorismo (a guerra) hoje, que parece nos asfixiar, visa antes de tudo à destruição
do ambiente do seu inimigo, à destruição das condições de possibilidade de sucesso do
seu inimigo. Não se vê muita diferença entre a guerra "oficial" levada a cabo pelos Estados
Unidos contra seus inimigos (que aliás também se caracteriza pela destruição vinda do
céu, daí eu chamar nosso terrorismo de "atmoterrorismo" ou "aeromoto", como em
"terremoto") e atos como os que aconteceram em Nova York. Depois dos ataques
terroristas de 11 de setembro de 2001, os americanos começaram a construir outras
estruturas mais sofisticadas e até maiores que as Torres Gêmeas. O engraçado é que
ninguém parece sentir falta daquelas torres. Assim que foram destruídas, suas funções
foram cumpridas por outras estruturas. A verdadeira consequência do 11 de setembro
foi que, desde então, os norte-americanos têm algo muito precioso. O seu simbolismo.
25

Pela primeira vez, têm um monumento nacional mítico. Algo como a Jerusalém dos
cristãos na Idade Média. O lugar onde o túmulo de Cristo estava localizado. Pela primeira
vez, os americanos têm essa Terra Santa em território americano. Para fazer uma
cruzada, é necessário possuir uma Terra Santa. O terrorismo é uma forma de cultura de
entretenimento. Terroristas são artistas armados, que interpretam nosso sistema de
mídia. A única coisa que pode ser feita contra o terrorismo é ignorá-lo. Pensemos o por
que não podemos ignorá-lo? A resposta é porque o sistema de mídia é cúmplice do
terrorismo. O sistema de mídia suporta o fascínio pelo terrorismo. Isso remonta à magia,
e a atração que foi falada no Renascimento, o "encantar" e "desencantar" (zaubern e ent-
zaubern, em alemão). Eles já levantaram isso então. Mas o sistema de mídia não quer um
lançamento. Organiza competições de fascinação. A mídia chama a polícia e, nessa
medida, eles recompensam os terroristas. A alma não distingue dinheiro, ou capital. O
meio de pagamento da alma é a atenção. O terror pressupõe o poder comunicativo do
meio vital atacado e, portanto, invariavelmente balbucia no teclado de seus próprios
medos. É por isso que o terror e a sociedade da mídia coexistem, e mesmo isso seria
impensável sem ela. Por mais terríveis que sejam as ações terroristas específicas, elas
permanecem limitadas ao leque de operações específicas. Do ponto de vista quantitativo,
seriam quase insignificantes, se não fossem traduzidos para a língua da parte atacada, e
não tivessem o efeito ali, ampliado dez mil vezes. É por isso que você nunca pode
superestimar a relação íntima entre o terror e os meios de comunicação modernos. Como
os meios de comunicação de massa sempre cumpriram sua função primordial como
instrumentos de auto-irritação, de auto-histerização de sociedades estruturalmente
sobre mediadas, as notícias do terror tornam-se ervas daninhas ideais dentro do sistema
de notícias diárias e relatos de último momento. Eles não demoraram para desencadear
uma espécie de guerra involuntária da mídia contra a própria população, um fenômeno
que se desenvolveu totalmente pela primeira vez entre 1914 e 1918. Na comunicação
sobre o terror, os meios de comunicação modernos despertam sua verdadeira essência.
As intuições de Karl Kraus sobre isso são tão atuais quanto eram quando ele publicou
fragmentos de The Last Days of Mankind nos jornais. A mídia de massa nunca assume seu
próprio caráter de maneira mais completa do que quando informa sobre o medo que
brilha com o seu próprio atividade informativa.
26

Num primeiro momento o terror em política ou guerra teve como causa o


"Terror" jacobino francês. Hegel dizia, resumidamente, que terror ali significava um
estado da liberdade do poder como uma espécie de "doença infantil", na qual essa
liberdade, sem limites, rapidamente se degenerava em violência. Isto é: liberdade sem lei
como explosão da vontade de quem estava no poder. Nesse período havia uma
coincidência entre a hipocrisia da boa vontade e um absoluto uso de meios infelizes. Num
segundo momento, no terrorismo dos anarquistas, o que definia o ato de terror era o
desejo de desestabilizar a sociedade e seu Estado burguês. O terceiro momento do
terrorismo foi o período fascista, fundador de uma "fobiocracia", um Estado sustentado
no terror. Hitler sintetizou uma forma em que cerimonial e terror se juntavam para
cultivar o medo no seu próprio povo. Ele fez de Hobbes um otimista, em se tratando do
medo. Ele mostrou que era necessário "ajudar" o ser humano a ter ainda mais medo para
que se estabelecesse o Estado.

“Lamento muito, meu senhor, os narizes puramente arianos já foram todos vendidos”.
Simplicissimus, 26 de fevereiro de 1933. Olaf Gulbransson.
27

É essa a questão trabalhada pela Escola de Frankfurt no seu estudo acerca da


moderna cidadania: submissão e medo. O caráter autoritário do projeto burguês:
estarmos permanentemente aterrorizados. O quarto momento ou tipo de terror, o nosso
de hoje, nasce ao lado do terceiro, quando, em 22 de abril de 1915, o Regimento de Gás
do Exército alemão lançou gás venenoso sobre o Exército francês nas trincheiras. Ali
nascia a guerra terrorista atual. Interessante lembrar que o cientista ligado a esse fato,
que muito estimulou o uso de armas "avançadas", como gases venenosos, e que ganhou
o Prêmio Nobel em 1918 por suas descobertas em química, foi Fritz Haber, um judeu
alemão que defendia tais armas por achá-las um modo "mais humano de matar na
guerra" e que assim introduziu o conceito, na máquina de guerra alemã, da guerra de
massa baseada em armas químicas. Hoje o terrorismo é muito ecológico, opera sobre a
ideia de destruição tecnocientífica do ambiente dos seus inimigos. A I.G. Farben foi uma
resposta da Alemanha ao mundo depois de sua derrota na Primeira Guerra Mundial.
Reunia as maiores indústrias do país, entre elas a BASF e a Bayer, e anunciava-se, em
1925, quando foi criada (ou posta a público), como o mais acabado esforço alemão. O
complexo de Auschwitz, os fornos, as câmaras e todo o aparato industrial, foi um
desdobramento da I.G. Farben, que cedeu seu espaço e sua tecnologia para o
estabelecimento dos campos de extermínio. A I.G. Farben também detinha a patente do
gás Zyklon B, usado nas câmaras para assassinar os judeus.
Hoje vivemos numa época onde o terrorismo é melhor descrito como um
terrorismo anárquico (individual), de 1945 para trás o Estado teve que fazer um confisco
na vida dos cidadãos porque tem o monopólio para a declaração de guerra (bélica), nesse
caso, o Estado é a própria vida dos cidadãos masculinos. Essa é uma grande diferença se
olharmos o Estado hoje. A guerra praticamente não existe mais para/entre homens. As
duas guerras mundiais são feitas por soldados profissionais e por convocação da
população. A Revolução Francesa desde a antiguidade produziu a massa, com a ideia de
que já não temos mais profissionais de guerra, mas cidadãos, exércitos de cidadãos que
por recrutamento-alistamento voluntário se fixam nos "exércitos populares". O
napoleonismo da República de Weimar revela as reviravoltas e as crises com as quais
homens pequeno-burgueses e burgueses culturais estavam entrando outrora no século
da estratégia. Oswald Spengler em Pessimismus? (1921), fala que “Nós alemães não
conseguiremos produzir outro Goethe, mas com certeza produziremos um César”. No
28

tão famoso A Decadência do Ocidente (1918), também diz que este século, o século XX,
é o século dos gigantescos exércitos parados e do serviço militar obrigatório universal.
Fala que milhares de homens estão prontos para a marcha, poderosas frotas. Trata-se de
uma guerra sem guerra, de uma guerra o sobrepujamento com equipamentos e
prontidão, uma guerra de número, do ritmo da técnica. Realiza-se a entrada na época
das lutas gigantescas, na qual todos nós nos encontramos hoje. Trata-se da passagem do
napoleonismo para o cesarismo, um estágio geral de desenvolvimento de abrangência
no mínimo de dois séculos, que podem ser comprovados em todas as culturas. No estilo
de Spengler vemos o ápice de uma botânica política que de maneira mais radical que
Ernst Jünger, junta a visão de um pesquisador de plantas com a visão de um político, do
historiador e de um estrategista em uma unidade de sadomasoquismo. Chega a dizer:
“...culturas, seres vivos do nível mais elevado, crescem em uma ausência de metas
sublimes como as flores no campo...”. “Mas o que é política? A arte do possível; esta é
uma afirmação antiga, e, com ela, praticamente tudo está dito... O grande político é o
jardineiro do povo”. O político, tal como foi Napoleão, é um “homem de ação”. Diz: “O
homem de ação nunca chega a empreender uma política de risco... Ele tem
constantemente nos lábios a questão de Pilatos – verdades – o político nato está para
além do verdadeiro e falso”. Spengler teria podido simplesmente saber que justo os
alemães não produziriam um César, mas apenas um ator doente e chorão, que na melhor
das hipóteses se tornaria, diante das massas, um mero cesariano suicida.
O axioma da ordem imunológica individualista ganhou aceitação em populações
de indivíduos egocêntricos, como uma nova percepção vital. Que em última instância,
nenhuma tarefa faria por eles o que eles não fazem por si mesmos. As novas técnicas de
imunidade; em seu centro institucional, seguros privados e fundos de pensão, e em sua
periferia, dietética e biotecnologia, se apresentaram como estratégias existenciais para
"sociedades" de indivíduos em que o longo caminho da flexibilização, o enfraquecimento
das "relações objetais" e a autorização geral de relações inter-humanas infiéis ou
reversíveis infiéis levaram ao "objetivo", ao que Spengler corretamente profetizou como
o estágio final de toda cultura: o estado no qual é impossível determinar se os indivíduos
são diligentes ou decadentes, mas diligentes em que relação e decadentes em relação a
que altura? Mas se se fala de declínio ou decadência, quando nós, do Ocidente, tivemos
um apogeu? Um ápice? Devemos relembrar que todas as sociedades se aclimatam a si
29

mesmas através da comunicação sobre suas esperanças e promessas, é só no modelo


moderno que, explicitamente, é impensável a existência de uma cultura monopolista da
boa nova, seja cristã, nacionalista, socialista ou liberal-capitalista.
A tentativa marxista de fundamentar uma polêmica racional universal precisa
ser considerada como fracassada, na realidade efetiva tanto quanto na teoria. A
realização duradoura reside na própria tentativa. De fato, a história humana também é
uma história de lutas como acentua Marx, só que é mais do que questionável dizer se ele
tinha razão ao identificar as lutas históricas como as lutas de classe. A polêmica mundial,
que vemos diante de nós como história do mundo, mostra muito mais a imagem de
conflitos interétnicos, internacionais e interimperiais descomunais, naturalmente
impostos e sobrepostos pelo fato de que os sujeitos dos conflitos são em si na maioria
das vezes sociedades de classes, ao menos no tempo histórico, identificamos em geral
com a história do Estado, isto é, com a história de sociedades imperiais hierárquicas. No
entanto, nenhuma sofística estará um dia em condições de apresentar tal modo a história
humana da guerra de modo que ela viesse a se mostrar como equivalente à história das
lutas de classe. A sociedade de classes também é produto da guerra, tanto quanto a
guerra é o produto da sociedade de classe. Creio que Mad Max: Fury Road (2015) pode
ser de grande valia. Aqui contam os fatos históricos, e, inversamente, como em Hegel,
sempre se dirá que no conflito em fatos e teoria, tanto pior para a teoria. A guerra é mais
antiga do que a sociedade de classes, e lutas entre sociedades de classes não são por si
lutas de classes. O Marxismo, não pode gozar de um primado de poder se dar desde o
início ao luxo dessas distinções. Pode empreender tais distinções, porque não quer ser
nenhuma fantasia de vencedor e não tem nenhum interesse em demonstrar o triunfo
necessário e historicamente “passível de ser vencido” de um partido. Ela já não se
encontra mais de maneira alguma sob a compulsão de não construir empiricamente os
sujeitos de conflitos previamente encontráveis, tal como o marxismo o faz, ao postular
um proletariado combativo como parceiro histórico mundial da burguesia no conflito.
Desde esse período, se viu a cifra dos mortos crescer absurdamente. A guerra
regurgita o novo “sujeito do tempo”: o front, o povo em armas. Um megassujeito de
nosso tempo. As pessoas pouco tempo depois o chamaria de “comunidade popular”.
Nela, os membros das nações são impelidos a participar e se reunir em uma unidade de
luta aparentemente homogênea. Os tempos pareciam pertencer às coletividades, o véu
30

individualista da cultura burguesa se rasgou. Na Guerra Civil Americana dos dois lados,
um número significativo de soldados eram “homens normais”, a maioria deles eram
letrados, e não estavam em um exército propriamente dito nos campos de batalha. Nos
tempos antigos, Atenas, Esparta ou nas sociedades medievais não há convocação, todo
cidadão já é em si, e por si só guerreiro. O normal era o cidadão-soldado. A paz e a guerra
eram um fluxo tão presente que não se conseguia criar um grupo de pessoas que não
fossem soldados. A sociedade moderna já seria que estanca ou secundariza (setorializa)
a guerra de modo que a 1ª Guerra Mundial e a 2ª Guerra Mundial são feitas como
acidentes de percurso de “sociedades de mercado”. O século XIX é estruturalmente um
século que do ponto de vista psicológico parecia feito para se fazer "homens loucos"
jovens, porque ao alcançarem a maioridade deveriam estar dispostos a morrer pela
pátria, já os pais lhes diziam que uma larga vida seria preparada, uma contradição
esquizofrênica de discurso. É por isso, que no século XIX existem tantas biografias
irregulares, os filhos de boas famílias preferiam seguir uma carreira de artistas do que
uma de advogado, surgiu uma grande tentação por meio das drogas e boemias, o que no
século XIX aumentou em grandes proporções, basta vermos os chamados "burgos" e as
casas de ópio frequentemente frequentado por burgueses, industriais e capitalistas. Isso
nos lembra uma expressão de Bataille sobre Hegel “encontrou salvação durante a sua
vida; tudo o que resta dele é um pau de vassoura”. Era uma expressão de um se tratava
de um pensador poderoso e um frágil ser vivo. É esse o diagnóstico padrão de um vitalista
sobre um lógico. Na frase se Bataille ecoam discursos de Zaratustra sobre os últimos
homens. Na voz do profeta, Nietzsche fez dizer que os valores supremos do velho
continente produziram não mais do que um híbrido de plantas e espectros. Um
argumento vitalista em sua pureza. O próprio Nietzsche, chegou a dizer "Oh, quem nos
contará toda a história dos narcóticos! – É quase a história da “cultura”, da chamada
cultura superior” (A Gaia Ciência, § 86). Uma frase que só veríamos no século XIX, assim
como a frase chama do Ecce Homo de que "não sou um homem, sou uma dinamite". Algo
que somente pode ser escrita na Suíça de tão raro que ele era, mas também porque a
Suíça era um campo de jogo do terrorismo individual, e na Suíça foi o Estado em que se
utilizou a dinamite pela primeira vez usada para fins civis na construção do túnel de Saint-
Gothard (São Gotardo), uma das maravilhas do século XIX. O túnel comprova que os seres
humanos não só podem atravessar montanhas, mas também como as perfurá-las, e
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ninguém perfura tão bem como os suíços. Não é de se espantar que já em Genealogia da
Moral, Nietzsche considere o “mais perigoso dos explosivos” o ressentimento que é
continuamente acumulado. No século XX, a liberdade de explosão significaria liberdade
de dispêndio de energia. Podemos nos perguntar se a tal chamada “vontade de potência”
de Nietzsche não estaria já no sentido de propor indiretamente uma filosofia do motor
de combustão? A tradução em termos metafísicos da transformação da cultura do carvão
em cultura de gasolina e substâncias explosivas, ou seja, transformação da combustão
em explosão. Uma linguagem semelhante fora vista no jovem Balzac perto de 1830, que
faz escrever a um dos heróis do seu romance uma “teoria da vontade”, ele compara a
vontade humana à energia que advém da máquina a vapor e, depois, à energia do fogo
de um canhão. Seria interpretada em nosso contexto, como uma escalada metafórica na
história da técnica, mas também da história da liberdade. Não vimos por muitos séculos
a liberdade ser clamada por canhões e guerras? Não vemos na cerimônia de posse do
Presidente da República do Brasil com seus canhões e cerimoniais nos Estados Unidos,
shows e desportos com um cerimonial onde jatos passam por cima dos indivíduos?
Sloterdijk diz que as palavras tinham ecos helvéticos, uma vez que a Suíça foi a
primeira a invadir uma passagem pelos Alpes para escavar novas passagens para a Grécia.
Diz ele que essa é a questão metafísica para todos esses povos do norte. Como podemos
reconquistar um acesso mais fácil à verdade mediterrânea, a grande essência dos
sonhos? No entanto, Nietzsche tinha seu próprio acesso aos gregos: tinha a dinamite
dentro dele. Em particular, ele foi o primeiro a perguntar que significado Dionísio poderia
ter para nós. O trabalho da vida inteira de Nietzsche foi um esforço para descobrir o
significado do deus não-olímpico que é “algo que está por vir e algo já presente”.
Nietzsche procurou descobrir como o desmembramento de Dionísio e seu sofrimento
recria o mundo e cria uma nova forma de síntese social possível. Nietzsche estava certo,
até certo ponto, quando diz que “minha alma deveria ter sido uma cantora e não uma
escritora”. O que ele fez em seus últimos dias foi exatamente isso. É por isso que
Nietzsche mais tarde se tornou, especialmente em Zaratustra, o cantor de uma metafísica
do meio-dia. Sloterdijk chama essa passagem de uma resposta europeia à iluminação de
Buda sob a árvore bodhi. Ele descreve o mensageiro como uma pessoa que dorme na
grama debaixo de uma árvore e amarrado à vida apenas com um fio muito fino. Você não
deve se mover. Dionísio está lá. Nem mesmo respire. O mundo se tornou perfeito. Ele
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está olhando para os momentos em que ele foi capaz de suportar o fardo de sua situação
divina. Nietzsche estava entre os raros pensadores que tinham a sensação de que existe
uma profunda conexão entre filosofia moral e relações públicas. Isso pode ser mostrado
no subtítulo de Zaratustra: Um livro para todos e ninguém. Ein buch für alle e keinen. É
uma marca do gênio de Nietzsche. Ele estava agindo como uma espécie de "professor de
ação", e descobriu uma moralidade maior ao escrever um livro para todos e ninguém, um
caminho entre o animal e o super-homem. Nietzsche compara isso a um andarilho de
corda. Ele vê o ropewalker. Ele caiu. Ele diz que, fora de perigo, você fez sua profissão.
Não há nada de desprezível nisso. E por essa razão vou enterrá-lo com minhas próprias
mãos. Não é o sucesso que decide tudo, é a vontade de permanecer dentro do
movimento e andar na corda.
Em Ira e Tempo uma tese básica de Sloterdijk é a de a política é a arte de
administrar a ira na história, onde se destaca a doutrina católica e o Comunismo como os
dois órgãos mais poderosos para o ajuntamento ou de colecionamento metafísica e
política da ira na civilização ocidental. Sloterdijk destaca o fomento da vingança como
uma construção da esquerda no século XX. Não é de se espantar que o livro de cabeceira
de Fidel Castro era o Conde de Monte Cristo (1844). O símbolo central da vingança. O
próprio Lênin também dizia “é com o próprio ódio do proletariado que nós construímos
o socialismo”. Entre outros casos, temos os julgamentos de Che Guevara. Pegar pessoas
e dizer que elas são criminosas, única e simplesmente, por serem burguesas. Eles eram
os opressores e deviam ser executados. Marx diria exatamente o contrário. É com a
capacidade de entender o capitalismo que se constrói uma saída dele. Nisso, Marx
trabalha com uma visão pós-liberal do capitalismo, mencionando até mesmo, a chamada
“missão civilizatória do capital. Uma crítica do capitalismo e não uma desgraça de fazer
uma observação vingativa e personalizada contra o rico. É por isso que ele fala com tons
preocupantes sobre o “comunismo de inveja” nos manuscritos econômicos filosóficos de
1844. Tem o intuito de eliminar o comunista que não é comunista. Aquele comunista que
vê uma casa, mas a vê como uma coisa que é de alguém, e não como casa que pode ser
usada para o benefício comum e de outros, ele quer apenas que o rico ou o burguês saia
dali. Ele quer a expropriação pela expropriação, como forme de empobrecimento, de
punição, isto não é socialismo, e sim, fascismo. Quando Marx fala da socialização dos
meios de produção, é uma forma de tornar esses meios para todos, de uma forma que
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você não tenha burgueses e proletários, mas que se tenha de volta o homem, estamos
falando de uma utopia. Uma sociedade com o fim do mercado, e no limite, o fim do
próprio Estado. Esse mesmo “modo de ser” foi visto no Nazismo, uma prática de direita.
Com a ideia de que o rico é o banqueiro (o judeu), os banqueiros sugam a Alemanha,
devemos pegar eles e tirá-los do capitalismo nacional (suas propriedades, sua cultura,
sua religião, seus meios de existência, sua liberdade) para passar para nós – o povo. Mas
que povo? Os membros do partido.
O cinismo militar pode vir à tona no momento em que o desenvolvimento
psicológico de guerra das três características bélicas masculinas em uma sociedade tiver
conquistado contornos claros: neste momento, então, distinguem-se os tipos do herói,
do hesitante e do covarde. Institui-se uma clara hierarquia de valores, em cujo pico se
encontra o herói: todos no fundo devem ser como ele. O heroísmo é internalizado como
estrela guia dos homens de uma civilização beligerante. Com isso, porém, se torna
necessário um novo adestramento psicossocial do homem, com a meta de alcançar uma
divisão dos temperamentos militares, não encontrável dessa forma na natureza. A
covardia como matéria bruta presente maciçamente e em todos precisa ser reelaborada
em um heroísmo ávido por batalhas ou ao menos em uma hesitação corajosamente
pronta para a luta. É nessa alquimia antinatural que trabalham todas as educações de
soldados na história do mundo das civilizações guerreiras. A família nobre realiza nesse
caso a sua contribuição tanto quanto a família de agricultores armados, e, mais tarde,
tanto quanto as cortes, instituições de cadetes, casernas e moral públicas. O heroico foi
e continuou sendo, em parte até os dias de hoje, um fator cultural dominante. O culto ao
guerreiro agressivo atravessa vitorioso toda a história de tradições escritas e, onde
começamos a encontrar algo escrito, há uma grande probabilidade de que nos
deparemos com a história de um herói, de um guerreiro que passou por muitas
aventuras. Onde termina o escrito, a narrativa de heróis ainda prossegue infinitamente
até as origens orais mais obscuras. Dois representantes poderiam ser Sancho, um
pequeno camponês astuto sabe que tem um direito à covardia, assim como o seu pobre
e nobre senhor Dom Quixote, possui o dever do heroísmo. Mas quem considera o
heroísmo de seu senhor com os olhos de Sancho Pança, vê inevitavelmente o desvario e
a cegueira característicos da consciência heroica. Essa impertinente declaração militar
fornecida por Cervantes nos leva a reconhecer que o antigo prazer da luta teria se
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tornado uma roupagem anacrônica e todos os ensejos aparentemente nobres a partir de


agora não passariam de puras projeções da cabeça do cavaleiro. Assim, moinhos de vento
assumem o lugar dos gigantes, prostitutas se mostram como damas a serem
heroicamente amadas. Para poder ver isso, o próprio narrador precisa da visão realista,
visão própria a um soldado de infantaria (plebeia) e, para além disso, uma permissão
social de falar a língua adequada a essa “visão”. Isso não pode acontecer antes da Idade
Média tardia, antes do momento em que os cavaleiros perderam a superioridade técnico-
armamentistas para a infantaria plebeia e em que as massas de camponeses cada vez
mais frequentemente armados impuseram derrotas aniquiladoras às tropas heroicas
cavalheirescas. Desde o século XIV, a estrela heroica da cavalaria encouraçada
simplesmente experimentou uma decadência. Com isso, chegou o momento no qual o
anti-heroísmo encontrou sua linguagem e no qual o ponto de vista covarde do heroísmo
se tornou publicamente possível. Se os senhores precisaram contabilizar suas primeiras
derrotas, então os servos pressentiram o seu efetivo poder. Agora, tem-se o direito de rir
de maneira realista. O herói antigo era o combatente individual, assim como o herói no
feudalismo era o cavaleiro. O sentido da luta era no duelo, na melhor das hipóteses até
mesmo na luta de um contra muitos. Com a passagem para a moderna condução da
guerra, contudo, desvalorizou tendencialmente a luta individual, decisivos para a guerra
passaram a ser as formações e os movimentos de massas. Articulando-se com a ordem
romana das legiões a moderna organização dos exércitos empurra as funções
propriamente heroicas (ataque relâmpago, resistência, homem-contra-homem). Ou seja,
as exigências heroicas caem cada vez mais sobre aqueles que, segundo a sua natureza e
sua motivação, são antes hesitantes ou covardes. Nas infantarias modernas, por isso,
precisa ser levado a termo uma disciplina heroica esquizoide, o adestramento para um
desafio à morte anônimo e não agradecido (sem reconhecimento). Os oficiais de alto
escalão que, de acordo com a sua posição estratégica, permanecem menos em perigo,
transferem cada vez mais o risco heroico, a morte nas linhas de frente, para aqueles que
não tinham propriamente nada a “fazer” na guerra e que com frequência foram anexados
à tropa de maneira casual ou impositiva (recrutamento, chantagem aos pobres,
alistamento com auxílio de álcool, subterfúgios para filhos supérfluos de camponeses,
etc). As estruturas e táticas de se lutar à distância ou a tecnologia de calor e teleguiados.
A invenção da artilharia grosso modo corresponde o desenvolvimento da violência
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política central e a perspectiva espacial no começo da modernidade. Pela primeira vez,


ela permite uma “dominação” do adversário à distância. E aqui se funda o seu parentesco
funcional com a administração moderna e com a vigilância. Há uma correspondência
entre o olhar do soberano e as resoluções de uma administração central. Desde a
Revolução Industrial, que se irradiou a partir das regiões mineradores inglês, a
metalização da sociedade ganhou uma vez mais novas dimensões. Ao mesmo tempo, a
espionagem do interior da terra avançou retroativamente. Mineiros transformam-se em
exércitos fantasmas da civilização industrial. Exploradores explorados, os trabalhadores
das siderúrgicas avançaram e se tornaram a tropa de elite do ataque capitalista à crosta
“avarenta da terra”. Por fim, a forma econômica moderna capitalizou todos os tesouros
do solo e, com invasões que acontecem milhões de vezes, com perfurações e extrações,
levou-se adiante a guerra mineralógica contra a crosta terrestre, a fim de incinerar os
tesouros levantados ou processá-los, transformando-os em aparelhos ou sistemas
armamentistas.

Os Dois Reis do Horror. Caricatura inglesa da derrota de Napoleão em Leipzig em 1813.


36

Hobbes – O Leviatã.

Aquilo que se está disposto a fazer com o inimigo em caso de necessidade é que
o estabelece de antemão o critério de medida para os instrumentos de aniquilação que
são retirados da natureza. Aquilo que se imaginou para o inimigo: aniquilação de grandes
superfícies por meio da queima, da contaminação e da atomização, precisa ser
anteriormente adicionada à arma. No início do século XIX teríamos ataques aéreos com
cloro, utilização de câmaras de gás para mortes (direito penal), extermínio em massa,
misseis inteligentes, robôs, etc. No fundo, a arma é apenas nossa mensageira para o
adversário, ela comunica nossas intenções com ele. Por isto, armas são os representantes
do inimigo em nosso próprio arsenal. Quem forja uma arma deixa claro para o seu inimigo
que será tão impiedoso em relação a ele quanto em relação ao porrete, ao bloco de ferro,
à granada e ao explosivo. A arma já é o adversário maltratado. Ela é a coisa-para-ti. Quem
se arma já está sempre em guerra. Essa guerra realiza-se de fato continuamente em
intervalos entre fases quentes e frias, sendo que se denomina erroneamente essas fases
frias como paz. Paz, significa, visto no ciclo polêmico, tempo de armamento, isto é,
adiamento das hostilidades com vistas aos metais. Guerra, por conseguinte, significa
entrada em ação e consumo dos produtos do armamento, realização das armas junto ao
adversário. No nível mais elevado da tecnologia moderna, nosso processo de
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Esclarecimento (razão-pensamento) alcança o ponto no qual se despede de uma tradição


metafísica dualista milenar: a oposição entre res cogitans (coisa pensante) e res extensa
(coisa extensa) torna-se simplesmente fora de tom na era cibernética. Ao contrário, na
medida em que a res (substância) que pensa pode ser apresentada e produzida de fato
como máquina, desaparece a oposição em relação à res que existe no espaço
(extensivamente). Passa a haver sistema de armas de artilharia modernos, que são
chamados no jargão estratégico de “munição inteligente” ou “tiros espertos”, ou seja,
mísseis que desempenham no voo funções clássicas de pensamentos (percepção,
decisão, correção de trajetória) e que se comportam “subjetivamente” em relação à meta
adversária. No “projétil capaz de pensar”, chegamos à estação final da dissimulação do
sujeito moderno, pois aquilo que se chama sujeito na modernidade não é, em verdade,
senão aquele eu da autoconservação, ou seja, funções como recolhimento,
distanciamento, autodissimulação, covardia, impelem adiante esse tipo de subjetividade.
Nada mais que uma sofisticação de meios telemáticos para o domínio do mundo à
distância e para a guerra. Sloterdijk apontou que nós vivemos em um "tempo de anjos
vazios” ou um “niilismo midiático", no qual nós esquecemos a mensagem para transmitir
enquanto os meios de transmissão se multiplicam. Este é o próprio “disangélio”. A palavra
"disangelio", que Sloterdijk tira de Nietzsche e Dostoiévski destaca, em contraste com o
"evangelho". O caráter vazio das mensagens distribuídas pelos meios de comunicação e
culminando na famosa frase de Marshall McLuhan: "O meio é a mensagem". É por isso
que, neste tipo de sistemas de telecomunicações inflado: exprime o novo conteúdo, o
que significa que a transferência de pensamentos entre estranhos não é mais possível na
forma de empatia participativa, mas por comunicações explícitas que excedem distâncias
e para o qual os participantes pagam preços elevados do uso do símbolo sistemas apenas
tem que pensar sobre os enormes custos de alfabetização inicialmente, os custos que
hoje em dia todo mundo tenta reprimir, porque eles já foram socializados.
Uma das ferramentas mais poderosas do século XX seria a televisão que quer
fazer com o público algo como uma experiência auditiva, um exercício auditivo, a
televisão é um meio que tem uma certa envoltura visual e terrorista: se dirige ao olho de
um modo em que normalmente só pode fazer o ouvido. Isso supõe um embaraço nos
sentidos, uma confusão entre os sentidos. Mcluhan chegou a dizer que a televisão não é
só óptica, não só é acústica, mas também tátil. O que ele queria dizer é que ela é um meio
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totalitário. Quem vê televisão deveria propriamente levar um traje de banho, já que ao


fazê-lo, é se se lançasse na água dentro de uma piscina de um entorno informático dessa
índole (uma categoria de submersão e imersão). Dentro dessa esfera televisiva totalitária
queremos abrir uma pequena seção, um pequeno biótopo, onde as pessoas podem ser
testemunhas de diálogos autênticos, o mesmo que, de algo específico para o ouvido, e a
imagem se corte de tal modo que serve ao ouvido. A primeira Teoria Crítica já tinha
desenvolvido algumas intuições nesse sentido, se foi buscar o conceito de indústria
artística ou cultural em Alois Riegl, um especialista da cultura romana que se dedicou a
estudar os artigos da cultura de massas na Antiguidade tardia. A indústria cultural romana
girava em torno de imagens cruéis do circo. É significativo que o símbolo cultural e o
media da cultura de massas da Antiguidade, a arena romana, terem reaparecido no
século XX, em aspectos tanto de arquitetura como dramatúrgicas (esportes, Jogos
Olímpicos, política). Se hoje temos jornalistas desportivos que não têm muita noção do
significado dos jogos em que estão envolvidos, trabalham com uma situação de que eles
próprios são espectadores, mas sem nunca olhar para a arena onde eles mesmos atuam
e influem. Com essas atitudes não fazem mais do que contribuir para a transformação da
sociedade numa arena geral e virtual. É aqui que se edifica e cresce uma sociedade
mediática totalitária, que como um vórtice tudo arrasta para o centro da arena. Um
fascismo do entretenimento. Nas arenas antigas, a Fortuna era uma deusa do estádio. O
seu sentido como uma mutação foi a conversão de um ritual para um massacre. Era uma
máquina biopolítica de constituir vencedores os que ficavam ao fim de pé excitando as
massas em forma de identidade e identificação. Um massacre de entretenimento em
forma de Hollywood. Uma instituição que se prolongou por bastante tempo que seria
depois aumentada com a utilização de animais de caça e grande porte. Esse eco perdura
até hoje – o massacre de animais em Roma, era literalmente, uma caça no estádio que
sobreviveu até hoje na Espanha com touradas e em formatos de rodeios em outros locais.
É por isso que Sloterdijk considera uma terceira globalização, a saber: a virtualização do
espaço. Atuação por meio de dinheiro rápido e da informação e imagens rápidas. Quando
as sociedades exercitam excessos de imagens e textos, surge a espuma como discursos
sem controle de referente externos, produção caótica de sentido, vertigem,
abarrotamento.
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Na virada do século XIX para o XX temos um reacender do exercício como


expressão da descoberta e valorização do corpo humano. O atletismo, sob o pretexto da
restauração do olimpismo da antiguidade, reativa o asceta no formato da autossuperação
e fora de qualquer contexto transcendental. Isso requer um reconhecimento de uma
auto-exigência. O interessante é que os jogos romanos de gladiadores haviam inventado
o efeito fascismo como uma cenificação política de seleção e como teatralização da
diferença. O anfiteatro possuía uma luz de verdade sobre a biopolítica romana. Na arena
isso fica claro, a conversão de um apocalipse produzido de maneira artificial. Essa
diferença cenifica uma separação semelhante aos feitos pelo juízo de Deus, entre os que
caem de joelhos hoje e os que permanecem de pé.
Sloterdijk (2004, pp. 292-293):

Sem dúvida, nos excessos de diversão dos teatros romanos estão as origens da
cultura de massa: com eles surgiu uma forma precoce e completa de indústria
de fascinação, que atrai com feitiços e procura emoções a sociedades irritadas
ou decadentes. O antigo fascismo do divertimento (cujo último derivado direto
é a corrida de touros espanhola) antecipa funcionalmente numerosas
características da moderna direção de massas por meios emocionais. Agora
como então, a cultura de massas organiza o impulso para olhar: seu elemento
é a síntese social por meio da fascinação da violência. De fato, quem havia
podido mostrar aos espectadores enfurecidos, no momento álgido dos jogos,
outro objeto que havia sido suficientemente forte como para fazer que os
olhos se afastassem do espetáculo da decisão fundamental? Em vão
polemizaram intelectuais humanistas e depois autores cristãos contra os jogos
intoxicantes, fatalizantes e endurecedores. A razão fundamental do anátema
cristão contra a curiositas escravizante, centrífuga, devoradora de almas é a
luta contra esse passatempo a dos espetáculos de morte que supõe os jogos
romanos. Durante setecentos anos foi esse teatro das fascinações o que
transmitiu aos contemporâneos a instrução romana: mata hoje, morre mais
tarde, e obriga a massa a contemplar todo ele.

Alguns sociólogos e psicólogos de hoje trabalham com diversas hipóteses em se


considerar que os detentores de poder sobre as arenas teriam também o poder sobre a
sociedade, uma capacidade de regra linguística em colocar antecipadamente uma ênfase
entre a existência de tipo fascista: entretenimento de massas e administração de
ressentimentos. Só com um fascismo de contenção ou de escape seria possível de se
conter um fascismo real em um nível psicopolítico. Na arena moderna, não deixaram de
se impor formas não sangrentas de distinção entre vencedores e vencidos, o desporto
atual, continua sendo em seu centro, um repouso no fascínio que exerce a contemplação
da distinção entre vitória e derrota. A atual cultura moderna e europeia pode ser
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interpretada à luz de uma questão da Antiguidade. Se regressarmos no tempo veremos


repetições de construções em formas romanas que vão desde a basílica, o edifício
circular, a moradia no século XVI, o templo, o templo circular, o salão de descanso, o
Teatro Imperial, assentos dos novos parlamentos, sala universitárias, o estádio como se
pode ver no século XX com suas excitações políticas de histeria e gritos – segue-se aí um
uso um tanto absolutista e meio burguês. Em termos modernos, na nossa civilização
temos nos parlamentos, nos sistemas encarregados de dar notícias e nos estádios
desportivos, entre outros, apenas três instituições que inflectam a opinião pública, um
sistema que se formos pensar bem, é um sistema de discrição que garantem um
funcionamento razoável e em forma medianamente tranquilas. É por isso que em nossas
sociedades hoje, um estado de exceção pode ser visto em que desaparecem os limites
entre esses diferentes campos de opinião, é graças à sensação de crise que se torna
possível a fusão e a totalização, o escândalo ou um caso. Essas duas situações tendem a
abolir as diferenças da sociedade. Decida-se tudo a partir de qualquer parte. O
parlamento vira arena, a arena um media de informações, o media de informação um
parlamento, logo, todos estão falando sobre algo, a crise suprime a separação dos
âmbitos funcionais. As personalidades públicas por excelência: políticos, uma
celebridade, um esportista de elite e alguém em posição de objeto de escândalo. Nas
próprias digressões de Esferas I percebemos a capacidade do pré-sujeito fetal de ser uma
“estação de rádio” (sintonizar): se “aproximar” e se “distanciar” dos sons. Algo como uma
câmara que ressoa. É lá que os cordões umbilicais acústicos, as vozes e os ouvidos se
afinam mutuamente. As ressonâncias de que fala são decisivas no “mundo-em”, são atos
que surgem do apelo à vida, como um espaço vazio predestinado. É com este conceito
que é possível chegar em uma teoria dos media em que indivíduos possam ser descritos
como “estações intermediárias nas redes de comunicação”. Ainda temos o péssimo
hábito de estarmos presos em um fetichismo da substância, temos a força imagética de
crer que as coisas chegam primeiro em forma isolada e estabelecem depois relações
entre si. Sendo assim, a chamada teorias dos sistemas não é mais do que uma forma
última de substancialismo individualista. Essa poderia ser uma explicação para que haja
tantos homens naturalmente dependentes do som, em todas as culturas vemos e
ouvimos o desabrochar da música, em alguns casos, tão viciados à música, que talvez
esteja no fato de estarem sintonizados com a frequência da sua saudação. Nesse sentido,
41

passando perto da teoria lacaniana, os pacientes se assemelham a músicos que não


conhecem verdadeiramente seus trechos. A neurose é uma má execução musical crônica.
A ideologia pega pelo cansaço. Ela trabalha com a facilitação do mesmo modo
que o maniqueísmo das novelas trabalham com a facilitação, elimina-se o gasto de
energia que se tem para raciocinar diante no novo. A ideologia como você se
reconhecendo em alguma coisa que você já sabe, é uma técnica utilizada e bastante
conhecida desde os anos 50, esta ideia de que fazer com que os organismos peguem a
via pelo “menor dispêndio de energia”. Você traz uma pessoa para uma situação
confortável até o ponto em que um determinado momento ela capte a mensagem por
muito mais tempo, e não querer mais ouvir outra mensagem que não seja aquele e com
outras codificações. No mundo contemporâneo, especialmente dos chamados
“choaches”, utilizam a terminologia “programação neuronal”. Você programa suas
sinapses para elas produzirem sempre os mesmos efeitos. Nada mais que uma linguagem
que a psicologia já utilizava, um apertar a teclar “auto completar”. Diversas teses nos
anos 60 surgiram a respeito sobre se ter um nível ou patamar aceitável dessas condições.
Há um nível de tédio aceitável. O tédio não é infinito. O descanso não é para sempre. Se
você facilita, e isto é reforçado com mais facilitação numa espécie de retroalimentação,
até o momento em que uma camada da população se cansa de descansar. Ela se cansa
se proporcionar o descanso para ela. É como se tivéssemos uma atividade psíquica que
em um determinado momento se “recusa” de morrer de uma vez por todas. É quando se
chega em um descanso máximo, uma situação de que ninguém faz mais nada para
raciocinar ou pensar, o pensamento ou o cérebro reage como se ele quisesse continuar
“vivo”, pois ele precisa de um “alimento” novo. É aí que se nota o tipo de reiteração que
foi feito com os indivíduos. Já estamos nos onerando nessa desoneração da
contemporaneidade que é sua leveza. Ao se olhar para a cultura ou para os jornais, eis
que surge as frases como: “nossa mais de novo esse tipo de novela”, “de novo este ator”,
“essa mesma notícia”, etc. É isso que se percebe com o cenário político atual do Brasil,
especialmente no cenário político de direita. Em um exemplo claro temos o MBL
(Movimento Brasil Livre), seguidores de Olavo de Carvalho, “Mamãe-falei”, com um estilo
de comunicação que é a de não trabalhar com a notícia verdadeira. Eles pegam qualquer
notícia e entram em um mecanismo de simplificação, para uma “fórmula” da manchete.
Em qualquer vídeo, as vezes sem edição, se mantém manchetes em termos definitivos,
42

mas nunca descritiva. Ela é avaliativa e definitiva. Muita gente diz que isso é “lacração”
(lacra mesmo, acurrala), mas com o objetivo de nos deixar sem pensar, porque uma hora
ela pega e peca pelo exagero, é aí que ela não tem mais volta. Todos desconfiam dela e
acaba se quebrando. Grande parte dos vídeos do agora deputado Federal Kim Kataguiri
são feitos com o seguinte título: “Kim humilha professor”, “Kim acaba com deputada do
PT”, “Kim destrói estudante”, “Kim dá aula de história para MST”, “Kim Kataguiri
responde vovô doidão.4 Kim é um parlamentar que na internet derrota a todos, mas por
ser um parlamentar não derrota ninguém. Sua função é debate para derrotar como
caricatura e exagero. Quando aparecer um vídeo sério sem esse tipo de manchete ele
desmonta todos os outros. Quando Kim perceber que é um homem que é parlamentar e
que precisa crescer e ter cabelos brancos a “brincadeira” vai acabar. Na sua tentativa de
fazer um vídeo descritivo põe abaixo todos os outros. Os seus vídeos vão ser
desmoralizados antes, porque as pessoas acabam se cansando por descansar. Alguns
podem dizer: “agora está demais”, “toda vez isso”, “já enjoei”, “quero alguma coisa a
mais”. Por isso que hoje em dia um “ídolo” aparece a cada mês e eles vão sendo trocados
um por outro. Se está pedindo um “alimento novo”. Vários vídeos são feitos assim, mas
o vídeo completo ou “real” acaba ficando escondido, o que nos leva a crer que há toda
uma equipe por trás das edições (até pela rapidez do upload do mesmo) que reproduzem
sem outros canais com a polarização de manchetes que não justificam os vídeos. É
sempre uma “autoridade” de direita desqualificada que “humilha”, “derrota”, “cala a
boca” de uma outra em outro espectro (geralmente mais qualificada). Para pessoas
atentas ou com cérebros “menos programados” com o tempo percebem isso, passando
a quererem sair do descanso e do cansaço de se estar descansando. Uma fragmentação
como continuidade falsa que nos anos 60 era uma “ideologia da técnica”. Quando se dizia
que a técnica não era neutra nesses anos por criar uma educação onde os indivíduos não
acompanham mais raciocínios. Habermas na década de 70 já fazia textos no sentido de
falar da não neutralidade da própria técnica. Como que as câmeras, os vídeos, a televisão
não no seu conteúdo, mas no seu aparato tecnológico ele não é neutro. Ele traz o que o
McLuhan dizia: “o meio é a mensagem”.

4
Assistir ao vídeo: <https://www.youtube.com/watch?v=Iov_mVIO7jI>, <
https://www.youtube.com/watch?v=FERKOpCQxFo> ou <
https://www.youtube.com/watch?v=IOL9zZIa72Y>. Acesso: 23 Fev. 2019.
43

O que se nota hoje no cenário político brasileiro é que a paranoia começa a se


infiltrar no espectro político da direita. Eles começam se acusar uns aos outros que não
são de direita. Cada um diz que o outro é comunista. Em um mundo não mais comunista
em local nenhum, eles mesmos inventam que os comunistas estão fora e agora dentro
dos seus próprios partidos. Filosoficamente é preciso voltar para aquele quadro do
Vaticano de Rafael, onde estão todos os filósofos de épocas diferentes e de diferentes
tradições (Escola de Atenas). Na pintura vemos que Platão está apontando para cima e
Sócrates para baixo. Platão está falando a doutrina das ideias e Aristóteles da doutrina
dos particulares-terrenas. No Renascimento, Rafael retratou uma disputa entre os
universais x particulares através do quadro que também afetava a Igreja Católica. O que
comanda o mundo? Os universais ou os particulares? Esse é o debate da antiguidade que
chegou até a Igreja. Os conceitos não são universais? As doutrinas? Nós pós-modernos
lutamos contra os universais? Não. Lutamos contra as totalidades. É um universal que se
fechou nele mesmo, e que agora, não quer mais nenhum particular em seu interior. Ele
quer expulsar os particulares do seu interior. É um universal totalitário em termos
políticos e totalizador em termos filosóficos. A Igreja Católica queria ser universal na
doutrina não de Jesus, mas de São Paulo (apóstolo), e de repente, ela começou a ficar
totalitária-totalizadora, pois não permitia mais ninguém dentro dela. Até que um dia isso
não terminaria bem. Foi aí que os particulares foram admitidos. As várias “ordens” dentro
do universal. Como São Francisco de Assis, os Beneditinos, etc. Quem não cabe em uma
ordem é expulsa para o terreno do demônio, para fora do mundo. Não há salvação para
fora da Igreja. O Marxismo quando veio também quis a pretensão de ser universal, logo
ele se desvirtuou em termos de querer ser totalizador-totalitário. Ficou a questão: o
Marxismo permite vários marxismos dentro dele? Ou: esses marxismos dentro do
Marxismo precisariam ser postos para fora como não Marxismo. Foi aí que houve grandes
debates sobre a pureza do Marxismo. Um queria ser mais puro que o outro. Não por
acaso, é Walter Benjamin, esse grande especialista da ambiguidade, que estabeleceu
misteriosas pontes Marxismo e Messianismo. Por isso, Agamben se sente inspirado em
seu “messianismo imanente”. Nasceu aí as “patrulhas ideológicas”. Ordens a serviço do
universal que se transformou em totalizador ou totalitário. “Nós somos os puros
representantes do verdadeiro conceito”. Já os outros são os particulares, e nem isso
podem mais ser, pois agora vamos expulsar vocês do universal passando a ser o nada.
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Começam as cassações, os expurgos, as patrulhas, um querendo se dizer mais legítimo


que o outro, entrando para um campo da dizimação do adversário que não era
inicialmente adversário, mas sim companheiro. Muitos partidos de esquerda como os
comunistas-stalinistas foi o ápice da paranoia. De um tempo para outro ninguém era mais
comunista dentro do próprio partido, havendo diversas expulsões e perseguições, pois o
verdadeiro comunista seria Stálin. Entra o jogo duplo de se olhar no espelho se perguntar:
“será que este que está aí é um comunista ou um infiltrado”? Em 1964 a Ditadura Militar
brasileira se fechou em si mesma usando o inimigo do comunismo. Foi aí que dentro de
esta totalidade, eles começaram a afastar, expulsar, prender os adversários e inimigos
para recriar o inimigo dentro deles mesmos para continuar mantendo a ideologia da
“segurança nacional”. Chegou-se ao ponto de que o próprio presidente Castelo Branco
(que fez a revolução) foi chamado de comunista pelas forças de 64 por ter feito o Estatuto
da Terra. A paranoia ainda está pegando hoje indivíduos que aspiram não ao universal,
mas ao universal que se desvirtuou em totalidade, indivíduos que querem totalizar:
“onde estão os verdadeiros puros da direita”? Onde estão esses que comandaram a
direita? Este é? Não, então tem que ir para lá. Este outro? Também não empurra mais
para longe. Nesse “ir mais para lá”, cabe também jogá-lo do outro lado. Começa-se a ter
figuras que ninguém sabe quem é começam a criar comunistas numa época como a que
estamos. Basta não ser um “ortodoxo”, que é de uma corrente não fundacionista do
conservadorismo político nem partidário brasileiro (PSL significa o que mesmo?) Quem
agora criticar o que está no governo é comunista, muitos viram no recente caso do
Bebianno, ex-secretário geral da Presidência de República, um infiltrado, um complô
entre ele a Globo. Bebianno passou a ser um agente duplo? E Felipe Moura, jornalista
que tinham contato com Benianno, e se dizia ético-moral? Que não fazia o mesmo
jornalismo que estava aí no mercado? Todos eles foram “desmascarados”. Tudo farinha
do mesmo saco? Um xis foi marcado em suas testas. O alvo agora são eles mesmos, afinal
“quem elegeu o PSL foi Bolsonaro, e não o contrário” ou “No Brasil não existe direita
alguma, só existe o Bolsonaro”. Até chegar, o dia em que a paranoia toma conta do
interior nessa face-dupla de seita. A Igreja conseguiu se livrar dessa paranoia porque
conseguiu criar as ordens internas, o mesmo se viu com o Marxismo. As chamadas
“correntes internas”, os vários marxismos. Mas em alguns lugares onde a doutrina não
consegue criar as correntes internas, onde o universal se mantém com tal, e o particular
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como particular ele sobrevive, mas onde o universal se totaliza e se fecha como universal
não admitindo mais os particulares há a criação dos expurgos e patrulhas ideológicas. A
neurose, a paranoia que se espalha até chegar ao próprio chefe que originou isso (como
central), ele se mata se olhando no espelho porque ele não é mais o chefe puro, o de
direita puro, tem que ser de extrema-direita, mas se algum dia ele sonhar ou fraquejar
um pouquinho com o mercado livre, abertura comercial, isso já soa muito liberal. Ele se
olha no espelho e fala: “eu também já não sou mais direita pura”, muitos desses casos
tiros são dados. Em termos religiosos, a paranoia é a hora que o demônio domina você.
A pureza foi perdida. Se põe em prática uma decantação para se chegar em uma pureza.
No âmbito político funciona da mesma forma. Começa o processo de autofagia interna
do grupo (um vai comendo o outro), do partido até chegar em si mesmo. Muita gente
que vive nesse campo, as vezes morrem (assassinadas pelo chefe) pronunciando o nome
do chefe, pois acreditam que é uma conspiração ali dentro de que vai acabar pegando o
chefe, e o chefe pensa que são elas que estão sendo assassinadas que estão fazendo a
conspiração. Em 1964 chegou-se ao ponto em que os militares fizeram implantação de
bombas para acusar os comunistas. Todos sabem que o general Frota tentou dar um
golpe dentro do golpe, isso após 68 ter sido um golpe diante do golpe. Anísio Teixeira foi
encontrado morto no poço de um elevador. No ano significativo de 1971. Anísio nunca
foi comunista, era um liberal deweyano que foi presidente do INEP, aliás, o primeiro. O
atentado do Riocentro é o nome pelo qual ficou conhecido um frustrado ataque a bomba
ao Centro de Convenções do Riocentro, no Rio de Janeiro, na noite de 30 de abril de 1981,
quando ali se realizava um espetáculo comemorativo do Dia do Trabalhador, durante o
período da ditadura militar no Brasil. Do lado das esquerdas não é muito diferente, a ideia
de “unificação da esquerda” para um pensamento totalizador-totalitário, que de certa
forma, foi um dos erros da atual esquerda. Querer trazer todo mundo para dentro,
formando uma coalizão, o que se viu foi corrupção, crimes, favorecimentos, etc. Uma
busca de universalidade quando cabe particularidades-singularidades.
A luta entre Stálin e Trotski foi muito isso. Uma paranoia dos dois lados. Uma lei
própria à lógica da luta, na qual os adversários se assimilam mutuamente ao longo dos
conflitos. Isso ocorreu em entre o conflito dos comunistas russos e o despotismo czarista.
O que ocorreu entre 1917 e o XX º Congresso do Partido da Rússia precisa ser visto como
uma herança cínico-irônico do czarismo. Tente imaginar Lenin como um imigrante
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frustrado que sentou de 1903 até 1917 na Europa Oriental (Munique e Zurique). Ele
baseou-se o tempo todo na Europa, e o seu estômago, lendo Marx e Hegel sem estudar
a Revolução Francesa ou qualquer outra revolução que teve nesse período que logrou
êxito. Não é de se espantar que ele tenha recebido uma educação em drama político.
Como político, ele foi um dramático autodidata onde viu a Revolução Francesa composta
como uma peça de três a cinco atos. Para ele, a Revolução de 14 de julho foi apenas um
ridículo episódio. Todos os radicais ridicularizaram a revolução de 1789, aquilo foi apenas
a burguesia e os ricos. Mas onde estavam as pessoas? Ele queria que as pessoas fossem
o sujeito da revolução e não apenas uma classe dominante. Eles sempre lutaram contra
a nova retórica da burguesia que advogava “nós somos o povo”. A terceira classe tinha
dito “nós somos o povo”. Os radicais, os jacobinos disseram que as pessoas até agora não
reconheceriam uma quarta classe. Não a terceira. Na política é preciso contar não para
três, mas quatro. Essa é a lição básica dos radicais de esquerda entre os períodos de 1800
e grande parte do século XIX. Eles eram pessoas que poderiam contar até quatro, e essas
eram as pessoas que se sentiram obrigadas a ir além das pretensões da revolução
burguesa. Essa fixação que Lenin professava foi de 1793, porque então dentro da
Revolução Francesa, os jacobinos populistas de partido agarraram o poder e eles
empunharam o reino da virtude. A virtude como se sabe é um instrumento bastante
afiado com uma lâmina chanfrada que corta cabeças tão castas em décimos de segundo.
Na França 17.000 mil decapitações aconteceram com uma engenhosa máquina, onde
Lenin não compreendeu muito bem. É daí que veio o Thermidor (o rei do terror) que
acabou finalizado com a prisão de Robbespierre. Então os jacobinos, os heroicos
senhores fariam algo errado. O corolário de Lenin foi escandaloso, ele disse uma vez “eles
não foram radicais o suficiente”. Eles foram indiferentes. Eles apenas decapitaram uma
fração daqueles que deveriam ter sido decapitados. Ele foi fisicamente capaz de dar um
passo a mais e tudo o que mais veio foi nesse ímpeto de que não haveria outro Thermidor
Entretanto nós sabemos que ele em vida estava meio certo. Na sua época e na de Stalin
não houve um Thermidor. Mas a longo prazo a causa não conseguia mais se sustentar e
com Khrushchev e todos aqueles que seguiram o Thermidor soviético foram colocados
na agenda histórica que precisa ter seu espaço. Desde que nós internalizemos esse jeito
de ver esta cenografia e considerando que a Revolução Russa como uma peça de
reencenação. A Revolução Russa fez uma tentativa de reencenar a Revolução Francesa,
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mas de fato no ano de 1793. No filme de Esther Schub (A Queda da Dinastia de Romanov
de 1927), nos mostra que ela tem esta perspectiva das circunstâncias que não culminou
no outubro da Revolução, mas na Revolução de fevereiro. O departamento de política
cultural de Stalin descobriu que ela era uma mulher a Revolução de fevereiro e ela
reconheceu a legitimidade da Revolução de fevereiro. Ao fazer isso ela fez da Revolução
de outubro ilegal, por conta disso ela foi impedida de sua profissão. Lenin nunca igualou
a massa realmente existente com os proletários de vanguarda dos movimentos
trabalhistas, eles eram apenas matéria-prima básica para uma re-educação
revolucionária um pouco parecida com o Vietnã do Norte quando invadiu o Vietnã do sul
que acabou se unificando. Para isso tinha-se campos para a re-educação revolucionária.
Foi por isso que a classe trabalhadora na União Soviética adotou um fatal tom paradistico.
A classe trabalhadora agora existia de maneira dupla, uma nos campos e uma nas
fábricas. Mas ambas deram a palavra para um tom de escravidão novamente que é
certamente um paradoxo do século XX. Lá onde o proletário estava sendo feito, o herói
da história de fato surgiu uma nova economia escravista.
Lenin transformou-se que um realizador testamentário de um despotismo,
cujos representantes, haviam sido extintos, mas não seus modos de procedimentos e
estruturas internas. Stalin elevou o Estado para um nível de atmoterrorismo. Já se havia
entre os czares do Estado Russo um aperto estreito demais para a sociedade, então o
Estado de partido único comunista virou uma camisa de força. No czarismo viu-se um
pequenino grupo de privilegiados que sob seu controle e com seu poder tinha mantido
de maneira terrorista um império gigantesco, então também passou a existir depois de
1917 um pequenino grupo de revolucionários profissionais que aproveitaram a guerra e
o ódio campesino e proletário contra aqueles que se encontravam em cima, derrubando
o Golias. Trotski como judeu não era herdeiro de uma arcaica tradição de resistência e
autoafirmação contra o poder arrogante? Ele se deixou exilar e assassinar por seus
colegas que tinham subido à condição de Golias. Esse assassinado de Trotski a mando de
Stalin uma réplica ao predomínio presunçoso que tinha sido dada ao genocídio fascista?
Na condição de revolução permanente, elaborada por Trotski, há uma consciência de que
a violência política deve e precisa ser renovadamente se justificar em todos os momentos
e a cada segundo. O poder como poder de paz, como violência jurídica e como violência
protetora, para a vida ativa e plena (autônoma). Esta ideia não conclama ao caos
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constante como em Stalin, se observa aí o signo da consciência judia de que a arrogância


estatal será vencida e humilhada. Nas experiências feitas a partir de movimentos
marxistas “ortodoxos”, no leninismo, no stalinismo, no Vietcong, em Cuba e no
movimento do Khmer Vermelho, uma grande parte do alvorecer (cínico atual) teve a sua
origem. No marxismo vivenciamos o colapso daquilo que o prometia se tornar “o outro
racional”. Foi o desenvolvimento do Marxismo que, na ligação do Esclarecimento com o
princípio da esquerda, utilizou uma alcunha que não tem mais agora como ser negada. A
degradação do marxismo em ideologia de legitimação de sistemas despóticos
disfarçadamente nacionalistas e abertamente voltados para a conquista de hegemonia
arruinou o tão afamado princípio esperança e estragou o prazer na história que, sem esse
princípio, se tornou difícil. Também a esquerda aprendeu que não se pode falar muito
tempo de comunismo como se não houvesse comunismo algum e como se se pudesse
de maneira isenta começar novamente.
Um dos melhores conhecedores de Marx, um cidadão chamado Althusser viu-
se entre um dilema entre competência filosófica e sua lealdade em relação ao Partido
Comunista Francês. Isso tinha consumido seu trabalho teórico, assim como sua
existência, já que era casado com uma socióloga de origem bolchevique, ele foi
perseguido pela ortodoxia e pelo conhecimento, entre fidelidade e liberdade. Ele disse
que Marx, em certo aspecto, não era mais o mesmo, pois houvera uma ruptura, uma
ambivalência teria atravessado sua obra (validade teórica x prática). Mas, ele, Althusser
também não foi capaz de permanecer o mesmo com o dilema acima. Isso acabara
desencadeando a morte de sua esposa Hélena. Althusser em um “surto psicótico”
praticou o crime em um estado de desespero em que não se sabe mais onde começa o
outro e onde termina o eu, onde se desfazem os limites entre autoafirmação e destruição
cega. Quem é o assassino? Althusser, o filósofo, que assassinou a si mesmo pelo desvio
que passava por sua mulher, a “dogmática”, a fim de pôr um fim no estado de tensão que
impediu o filósofo de chegar algum dia propriamente à vida? Trata-se do assassinato
libertário de um preso, que matou em legítima defesa interior aquilo que o matou? Foi
um assassinato de Althusser, o célebre, que só conseguiu destruir sua própria identidade
falsa, sua falsa fama, sua falsa representatividade por meio da imersão na esfera cínica
da criminalidade? Assim como a psicologia conhece suicidas que no fundo são assassinos
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de um outro, também há assassinos que no fundo são suicidas, na medida em que eles
aniquilam a si mesmos no outro.
Hitler também não escaparia, já desconfiava até de seus mais próximos, só
comia depois que o cozinheiro comesse primeiro com medo de envenenamento. O
cinismo semântico não é acompanhado apenas pelas tendências suicidas, mas também
pelo risco da reação histérica, algo que é possível acompanha na “sensibilidade”
paradoxal do fascismo, que trouxe uma ressureição do “sentido totalmente grandioso”
no espetáculo político, com o qual o nada, há muito tempo sentido, se disfarçou. Na
histeria atua uma vontade de romper com o autocontrole do eu cotidiano sem vida. O
que a impele, segundo o cruel aforismo de Lacan, é a busca por um senhor, a fim de poder
tiranizá-lo. Hitler como senhor da guerra nessa batalha mundial imperialista e burguesa,
ele era objetivamente pior do que todo e qualquer gracejo, por mais terrível que o
possamos imaginar. A histeria fascista, em contrapartida, inventou até mesmo o senhor
que ele queria tiranizar, e pintou para si mesma na parede um complô judaico mundial,
a fim de extinguir um povo, cuja existência não era certamente nenhuma ficção. Hitler
com a queda da 1ª Guerra Mundial, viu o front enquanto tal tivesse efetivamente
fracassado e se tivesse sido evocado por meio de sua infelicidade, o destino fatídico da
pátria, o povo alemão teria recebido a derrota de maneira totalmente diversa. Nesse
caso, seria suportado a infelicidade que se seguiu com os dentes cerrados. Mesmo a
capitulação, porém, teria sido apenas assinada com o entendimento, enquanto o coração
já teria decretado o levante vindouro. Porém, agora, segue o mito da “decomposição
interior”. A derrota militar do povo alemão não foi uma catástrofe imerecida, mas um
castigo merecido por uma retaliação eterna. “Nós mais do que merecemos essa derrota”.
Hitler traduz o desastre político-militar do guilhermismo e a queda do capitalismo feudal
na linguagem moral do crime e castigo. Pois não aconteceu nada, segundo ele, de que
nós mesmos não tivéssemos culpa. Nosso crime consistiu no fato de não termos
impedido o fortalecimento de elementos socialistas, pacifistas, liberais, democratas e
“judaicos” na sociedade. O colapso foi, segundo Hitler, uma “consequência de um
envenenamento ético e moral, de uma atenuação do impulso de conservação”. Só assim
se tornou possível, por volta do fim da guerra, que se chegasse a motins de tropas, greves
de munição, etc. O front no campo de batalha estava intacto. Foi apenas o front da terra
natal que fracassou e que trai “aqueles que se achavam fora”. Assim, Hitler desloca o
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front para o interior: fora, a guerra pode ter acabado, mas aqui, no interior, porém, ela
prossegue como batalha contra os democratas, pacifistas, etc, que precisavam da derrota
militar para a vitória de suas convicções. Com isso, Hitler projeta de maneira inequívoca
uma situação de guerra civil: no lado adversário, ele vê os judeus e sua “organização
marxista de luta”, assim como todo o bando de democratas e socialistas entre outros.
Hitler acreditava uma alegria de alguns quanto à infelicidade da pátria. De ter observado
até mesmo em seus contemporâneos pessoas que teriam “dançado e rido” com o final
da guerra, que teriam “se vangloriado da própria covardia” e “glorificado a derrota”.
Hitler projeta aí sua própria estrutura catastrofal sobre o adversário. Pois o vencedor
propriamente dito da catástrofe tinha sido claramente ele, aquele que descobriu nela sua
profissão. Ao mesmo tempo, ele concebe em sua problemática parte da realidade efetiva.
Muitos súditos despertos para a consciência política por meio da guerra se sentiram de
fato aliviados, uma vez que o regime Guilhermino dos junkers, regime esse que tinha se
tornado insuportável, pôde ser perseguido e eliminado. Outros grupos saudaram a
revolução como a irrupção de uma nova era da humanidade, e outros, por sua vez,
expressaram de maneira explícita que sua causa só poderia ter sucesso por meio da
catástrofe da nação capitalista.
“Se afirma com bons motivos que a pós-modernidade é um subproduto do
mando a distância. O telemando representa a técnica chave de controle de admissão de
sons e imagens, e tal como, de admissão de realidade, na egosfera” (SLOTERDIJK, 2006,
pp. 452-453). Não é bruxaria, é tecnologia. Nada existe na técnica que não exista antes
na metafísica. E nada existe na metafísica que não exista antes na lógica arcaica. Devemos
acessar o sinal da autossintonização opcional. A eleição do entorno auditivo e audível. O
superego na psicanálise, já não seria no aspecto moral, a superssintonização do indivíduo
por seu coletivo? As telecomunicações modernas asseguram a célula-apartamento o
cumprimento da ordem de funções defensivas, isolantes, como sistemas imunitários, em
esbanjamento de conforto e distanciador no espaço mundo. A egosfera auditiva
possibilita a entrada de partículas de realidades, sonoras, de ruídos, sensações e
compras. As unidades de lugar estão mantidas informaticamente numa rede de
vizinhanças virtuais. A efetividade da vizinhança se dá de maneira telecomunicativa e não
espacial. A técnica telecomunicativa (as aves voadoras em certas literaturas funcionam
como correios) acelera e possibilita a comunicação à distância e estimula efeitos de
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inflação telepáticas na acessibilidade pela distância. O telefone é o que desenvolveu a


internet. Se na pré-modernidade tínhamos que as mensagens eram oriundas de um
ausente (Deus), seus portadores eram os santos, sacerdotes, seguidores e profetas.
Os latinos chamavam Genius ao deus a que todo homem é confiado sob tutela
na hora do nascimento. A etimologia da palavra é transparente, e ainda é visível na língua
italiana na aproximação entre genio (gênio) e generare (gerar). Genius tem relação com
o gerar, é aliás, evidente pelo fato de o objeto por excelência “genial” ter sido, para os
latinos, a cama. Se chamava genialis lectus porque nela se realizava o ato de geração.
Palavra muito parecida, diga-se de passagem, com o nosso genital, genitália (genitale).
Sagrado para o Genius era o dia do nascimento, motivo pelo qual ainda o denominamos
genetlíaco. Os presentes e os baquetes com que festejamos o aniversário são, apesar do
odioso e já inevitável refrão anglo-saxônico, uma lembrança da festa e dos sacrifícios que
as famílias romanas ofereciam ao Genius no aniversário de seus membros. Horácio fala
do vinho puro, de um leitão de dois meses, de um cordeiro “imolado”, ou seja, salpicado
com a salsa para o sacrifício, mas parece que, originalmente, só havia incenso, vinho e
favos de mel, porque o Genius, o deus que preside ao nascimento, não gostava de
sacrifícios sangrentos. Vide a nossa tradição pascoal. Chama-se meu Genius porque me
gerou. Genius não era apenas a personificação da energia sexual. Manifestações da
fecundidade que gera e perpetua a vida. Mas, como é evidente no termo ingenium, que
designa a soma das qualidades físicas e morais inatas de quem está para nascer. Genius
era, de algum modo, a divinização da pessoa, um princípio que rege a totalidade de sua
existência inteira. É por isso, que se consagrava a Genius a fronte, e não o púbis, e o gesto
de levar a mão à fronte, que fazemos, quase inconscientemente, nos momentos de
desespero e desânimo, quando parece que quase nos esquecemos de nós mesmos,
lembra o gesto ritual do culto de Genius. Um Deus íntimo, o mais íntimo e próprio, é
necessário aplacá-lo e tê-lo favorável sob todos os aspectos e em todos os momentos da
vida, por isso o gênio não pede para entrar, ele já está dentro. É preciso saber cultivar
essa relação secreta com nossos próprios Genius. Mas esse deus muito íntimo e pessoal
é também o que há de mais impessoal em nós, a personalização do que, em nós, nos
supera e excede. Genius é a nossa vida, enquanto não foi por nós originada, mas nos deu
origem. Essa compreensão de homem foge do nosso mundo de hoje. Uma compreensão
implícita em Genius nós faz olhar o homem não apenas como um eu e consciência
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individual, mas que, desde o início, do nascimento até a morte, nós convivemos com
habitantes interiores, um elemento impessoal e pré-individual. Um ser duplo de início. A
ontologia inicia-se com o número dois. É essa presença inaproximável que impede que
nos fechemos em uma identidade substancial, é Genius que rompe com a pretensão do
eu de bastar-se por si mesmo. Um bruxo pessoal. Fica claro que os anjos da guarda vieram
de uma tradição grega, e talvez, até mesmo da antiguidade com o que algumas culturas
estabeleceram como um "segundo eu", criaturas aladas, ou um tipo de entidade em cima
da cabeça de estátuas.
Apuleio (2011, p. 363):

Agora, de acordo com certa significação, a alma humana, mesmo quando


ainda está situada no corpo, é chamada de um demônio. [...) Então se,
necessita caso, o desejo da alma que é de boa tendência é o de um bom
demônio. Daí que alguns pensam, como já observamos, que os abençoados
são chamados de eudaimones, o demônio de quem é bom, isto é, cuja mente
é perfeita em virtude. Pode-se chamar esse demônio, em nossa linguagem, de
acordo com o meu modo de interpretação, pelo nome de “Gênio” [...].

Assim, na visão de Apuleio podemos perceber a presença de daimonions bons,


que são gênios bons, aqueles que colaboram ou são favoráveis a felicidade e
prosperidade (eudaimonia). A descrição de Apuleio é em latim quando faz a busca do
significado do termo funcionar a seu favor. Eudaimonia é, portanto, o bom daimon
(prosperidade). Possuir um bom daimon refere-se, no mundo grego, a estar sob os
cuidados de um gênio protetor. Mas gênio já não é mais do âmbito grego, e sim do latim.
Desse modo, na cultura helênica, ou seja, já no âmbito do terreno greco-latino, há quem
faça gênio vir de “genus”, de modo que isso pode ligar o gênio ao ato de solicitar algo
prostrado aos joelhos de alguém. Pede-se algo bom a quem pode fazer algo bom. Um
passo a mais e temos aí o anjo da guarda, a quem se pede, de joelhos (ou aos joelhos)
uma graça, uma proteção, uma façanha em proveito próprio ou de entes queridos – uma
bondade (ou mesmo no caso do casamento se ajoelhar pedindo a mão). A visão do gênio
é vista também nos “gênios da lâmpada” com direito aos três desejos. Segundo Apuleio,
cada gênio nasce com o homem e por isso mesmo, quando caímos e abraçamos os
joelhos de alguém, para implorar algum benefício, na verdade estamos é requisitando ao
gênio (genua = joelho/genus) dessa pessoa. Algo muito comum entre os cristãos (Jesus
e Papa). Se ajoelhar e pedir perdão, etc. Todavia, sabemos bem que esse pedido pode ser
53

feito de maneira interiorizada, se já estamos sobe alguma influência estoica e mais ainda,
e de modo decisivo, sob direção cristã, especialmente na tradição de Agostinho. Pedir
algo ao gênio como uma prática de pedir algo a uma instância interna está a um passo de
pedir algo a si mesmo. Desse modo, conversar com o gênio é conversar consigo mesmo.
Eis que tudo está pronto para vermos a completa subjetivação da palavra. Gênio é, desse
modo, uma espécie de propriedade psíquica da personalidade. Pessoas de bom gênio são
afáveis, pacíficas, encantadoras, charmosas ou possuem uma aura reconfortante
enquanto pessoas de mau gênio podem não ser propriamente maldosas, mas antes
irrequietas, irascíveis, ranzinzas, briguentas. “Fulano de tal tem um gênio terrível”,
dizemos. Também falamos, ou falávamos, “o casamento faliu por incompatibilidade de
gênios”. Quando adotamos tal vocabulário estamos no plano plenamente moderno, onde
a própria subjetivação já cedeu à popular psicologização.
Para uma tradução latina na espécie de genus malignus. O daimon vira
daimonium, daemonium, demônio (diabo-demon). Na doutrina espírita, é muito comum
espíritos habitarem casas dando surgimento para as “casas mal-assombradas”. Com a
construção de casas temos vazão à noção de interioridade com uma função psicológica-
esférica bastante significativa. A divisão de espaços domésticos dá surgimento à uma
subjetividade íntima. Habitar recintos como nossas casas, significa duas coisas: coabitar
com outros seres humanos e coabitar com seus amigos invisíveis. Nas primeiras noções
dessas entidades os demônios não tinham necessariamente um sentido negativo. Depois
veríamos os demônios do bem e do mau. Daimons do lar eram anjos da casa, entidades
que, de fato, se apresentam como as almas de antepassados que não seguem o caminho,
mas ficam na casa para proteger o local ou mesmo as famílias do local. Nossa crença em
entidades que ficam nas casas é enorme e sólida. Quando há suicídio em uma casa, tentar
vendê-la é quase impossível. Todas as casas em que ocorreram desgraças (possessões,
fantasmas, espíritos) causam mais desgraça ainda às imobiliárias que as pegam. Até quem
não tem nenhuma ligação com qualquer misticismo evita comprar casas assim. O melhor
da casa é ter uma história boa ou nenhuma. Anjos novos para casas novas, espíritos claros
para paredes brancas e assim por diante. “O ar fica pesado”, assim falam tanto os devotos
quanto os não crédulos sobre lugares de desgraças. O que pesa é a presença de entidades
frutos da desgraça ali ocorrida, em algum nível. Sócrates tinha um comportamento social
bastante singular. Foi Gustav Hans Graber como um dos pais da psicologia pré-fetal, que
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juntamente com Otto Rank, o primeiro psicólogo da geração freudiana que levou a
reflexão genética da psicanálise a sério para reconstruir a vida dos indivíduos a partir de
uma fase intra-uterina. Fazem parte das características do autodesenvolvimento fetal, na
atualidade, um aspecto musical bastante profundo que participa na formação da
afetação tônica do homem e uma dimensão psico-esférica ou psico-acústica
placentológica que engloba a disposição original do próprio eu em um invólucro (duplo),
um gênio, um anjo da guarda ou na linguagem de Sloterdijk, “proto-objetos” ou
“nobjetos”. O ponto central das considerações que Sloterdijk analisa consiste na noção
de objeto (não objeto). Sloterdijk tira essa noção de Thomas Macho, definindo-a como
co-realidade que, com uma modalidade que não prevê a comparação, paira como
criaturas de proximidade, em significado literal do termo, diante de um eu que não está
enfrentando-os: é precisamente o sujeito pré-fetal. Na primeira comunhão, no contato
íntimo, no ser-com, existe uma constituição psico-acústica do sujeito antes do sujeito,
algo muito antes de qualquer intercâmbio de sinais, onde tem lugar, uma saudação de
boas-vindas. Existe algo semelhante a uma frequência evangélica da saudação. O
primeiro assunto que Sloterdijk trata é a mãe, para ser entendida como um receptáculo
de intimidade, como um espaço interior que desde o momento em que onde há
concepção nos faz estar em situação de um proto-ambiente que coloca o homem na
condição de ser influenciado pela inclusão de materiais (sangue, líquidos, placenta,
música, sons, alimentos, oxigênio, corpos moles e gelatinosos) dentro de coordenadas
espaciais concretas. Aquela vibração extremamente real que procede do eu abnegado da
antiguidade fetal. Seguindo as investigações de Graber, somos separados brusca e
rapidamente com o nascimento desta vibração e do modo de ser “solúvel” a ela
subordinado. Toda a carência com que os psicoterapeutas têm de lidar nas suas
consultas, é por isso, consequência direta ou indireta da nossa anterior submersão-
despedida do mar. Se falamos de pré-objetualidade, quer dizer nada mais que, uma
estadia numa esfera que é mais uma bola anímica sinestésica do que um mundo de
objetos fragmentáveis e separados por cristalização.
Da sua atividade de pensar, talvez fosse melhor chamá-la de comportamento
associal. Existem relatos de que Sócrates tinha o hábito de se afundar nos seus próprios
pensamentos, como se fosse uma espécie de transe. Sabia, como se diz em Xenofonte,
“dirigir o seu espírito para ele próprio”. Uma momentânea tentativa de se ausentar do
55

mundo, interrompendo contatos com o que o arrodeava. Seria como um atributo


inerente à atividade de pensar. É inegável que os pensamentos formam entre si uma
relação tão densa e ininterrupta que se apoderam da consciência do pensador e
interrompem a sua conexão com a percepção das circunstâncias. Isto parece significar
que no “pensar real”, os pensamentos pertencem mais estreitamente uns aos outros do
que o pensador ao mundo que o rodeia. É uma total absorção por operações interna.
Francis Wolff explica a relação entre pensamento e o eu ou sujeito. Quando se diz que
“experimentar o pensamento significa ter a sensação de que sou eu quem pensa”, não
quer dizer que “eu” seria o criador dos meus pensamentos, como se estes me
obedecessem. A relação entre mim e meus pensamentos é antes oposta: é porque
experimento estes pensamentos o tempo inteiro, que eles criam em mim a sensação do
eu, de um eu permanente e imutável. Não sou eu quem molda meus pensamentos, são
antes meus pensamentos que me moldam. Afinal de contas, pensar, para um sujeito,
significa poder saber que ele pensa. Não há experiência do pensamento sem um sujeito
capaz de experimentá-lo. E é aí, finalmente, que eu entro, eu. De vez em quando, com
efeito, ocorre que este pensamento que está em mim como um fluxo permanente, este
pensamento que viravolta sem parar de acordo com as circunstâncias da existência e para
nos objetos os mais variados, ocorre que este pensamento para neste objeto específico
que lhe serve de suporte permanente e que chamo de “eu”. Penso em “mim”, penso que
estou pensando, penso, logo “eu”, os pensamentos parecem ser meus, penso que
sou eu que está pensando e o pensamento cessa de ser produzido em mim sem querer
para parecer que é produzido por mim. Eu penso. Eu penso, isto é: penso que estou
pensando o que não significa nada além de penso que sou eu quem está
pensando; penso-me como não apenas o centro focal onde ocorrem pensamentos, mas
o sujeito, o sujeito único, o sujeito inicial de todos os meus pensamentos. Sou eu quem
está pensando, penso, quando começo a pensar que, de fato, penso.
O que tudo isso quer dizer é que o pensamento é transitivo, ou seja, tem um
objeto exterior, e que é reflexivo, isto é, ele pode tomar a si mesmo como objeto. Um tal
objeto, nesse segundo caso, é o sujeito, o eu. Donald Davidson já tinha falado “a mente
não é algo, mas sim o pensamento acontecendo”. É o que Wolff diz. O “eu” é produto do
pensamento acontecendo quando este pensamento se pensa e, então, parece estar
“vendo” uma instância mais sólida que o fluxo do pensamento. De certo modo, essas
56

observações dão certo encaminhamento dos problemas gerados por Hume e Pascal, que
buscaram dessubstancializar o “eu”, empurrando a “coisa pensante” de Descartes, como
substância, para um segundo plano. Pensar cria um autismo artificial (autorreferente)
que isola o pensador e o leva para um mundo especial de ideias imperativamente
interligadas. Na terminologia de Luhmann, isto seria um tipo de “retiro para o operar
interior”, análoga aos sonhos, que como sabemos, só o sonhador experimenta. Sócrates
mesmo confessa que sua sabedoria tinha algo de má qualidade, “como um sonho, de
uma realidade dúbia”. Estamos falando de uma viagem interior, como um emigrante que
emigra em um movimento de imigração. Seria o “lugar nenhum”. A chamada metoikesis
é o caminho do filósofo para o “lugar nenhum” para este ser filósofo e este “lugar
nenhum” é mesmo um não lugar, de modo que o translado não tem repouso.
Originalmente, pensar (sinnanm, no sentido alto alemão) significava viajar (reisen). Pode-
se pensar também em “mudanças”, isto corroboraria com a ideia de que a morte de
Sócrates deixou um último teorema. A tese de que o homem é um animal determinado
a estar em “mudanças”. Talvez um filósofo precise, primeiro, tomar sua própria morte
para ser um homem da teoria, e tomar a sua própria morte como objeto de teoria. A
observação de Novalis em a calhar: “O autêntico ato filosófico é o suicídio; esse é o
começo real de toda a filosofia, a ele se dirige toda a necessidade do jovem filósofo e só
esse ato cumpre todas as condições e distintivos do feito transcendental. – Elaboração
mais pormenorizada deste pensamento altamente interessante”. Filosofia é aprender a
morrer. Montaigne disse isso. Ele assumiu essa definição de Platão e tentou cumpri-la à
risca. Perto dos quarenta anos, procurou ir se retirando da vida pública e até mesmo dos
afazeres domésticos. Ficava em seu escritório ficava escutando a si mesmo, lendo e
escrevendo. Era o comportamento que mais tarde os manuais de filosofia iriam atribuir
aos céticos de seu tipo: suspensão da ação e adiamento do juízo. A filosofia para
Montaigne exigia esse desgarrar-se da ação, o que chamamos de a ataraxia. Mas também
envolvia o que, mais tarde, Husserl nomeou tecnicamente como epoché, ou seja, época,
período.
Sloterdijk nos lembra que Husserl utilizou este termo que veio de uma tradição
do antigo ceticismo. O que aconteceu foi que Husserl deu um significado diferente
utilizando o termo para a sua própria filosofia no sentido fenomenológico. Sloterdijk
enfatiza essa façanha husserliana dizendo que, no contexto mesmo da filosofia de
57

Husserl, trata-se de quando “o filósofo distingue estados da vida da consciência como


eles aparecem antes e depois de uma quebra fenomenológica”. Trata-se de escapar do
que seria a “atitude natural” que segue o fluxo dos fenômenos mentais sem dar-lhes uma
quebra que permita a reflexão. Peter Sloterdijk aproveita para tirar uma casquinha no
trabalho de crítica ao marxismo vulgar ou, melhor, à ontologia vulgar dos marxistas. Estes
dizem que é a existência que determina a consciência, mas deveriam lembrar que a
atividade da consciência pode segurar a existência, pode colocá-la à distância, e
exatamente por isso, nesse exercício de epoché, refletir sem decidir, ou seja, filosofar.5 O
leitor já deve ter notado a esta altura que: a epoché é cética, antiga, mas Montaigne, ao
se referir à filosofia como um todo copia uma definição que não é de um cético, mas de
Platão. A filosofia é aprender a morrer. Sair da vida ainda em vida, não é, portanto, algo
do cético, mas do próprio invento da filosofia como gênero literário e atividade de
pesquisa universitária, uma criação de Platão. Pode haver diferenças, é claro, entre
epoché e “aprender a morrer”, se retirar do mundo, criar distâncias, mas do modo como
Sloterdijk faz as semelhanças são muito maiores. O “aprender a morrer” (com referências
à Críton; capítulo final de Fédon: Sócrates e a cicuta), se referiu ao que é o centro de sua
filosofia: contemplação. Colocar-se quieto, sereno, e então contemplar as ideias, as
formas. Platão descreve a morte de Sócrates como a mais refinada ostentação de arte de
glorificação literária e metafísica. Vê-se um Sócrates disposto a morrer. O mestre de
todos os mestres converte seus últimos minutos em uma última lição. Críton observa
como que a vida que se esvai se transporta para um Além didático, onde se converte em
lenda que já não pode morrer. O significado de viver se manifesta naquilo que é o puro
tempo de ensino, tempo para explicar, provar as coisas à luz do logos. Aquilo que os vivos
chamam de tempo, mas Sócrates só tem tempo para aquilo que a vida é para ele: ensinar.
A melhor vida é ensinar, eu ensino ao morrer, logo, se morro, vivo conforme o melhor.
Ele ensina, apressa-se, morre. Filosofar é aprender a morrer nesse sentido: a cada dia
suspendo meus juízos de modo a tentar contemplar aquilo que é incorpóreo – as formas
– e então, um dia, pela cicuta, dou o passo fatal que me coloca do outro lado. Migro.
Parto e fico feliz em saber que não deverei voltar, pois realmente minha alma como forma
é uma forma como as outras formas, habitante de campo ontologicamente legítimo que

5
SLOTERDIJK, Peter. The Art of Philosophy. New York: Columbia University Press, 2012, pp. 23-24.
58

a filosofia de Platão postula. As formas são eidos, essências. A objetividade que se pode
alcançar na filosofia de Platão, portanto, não é uma objetividade de quem está imerso na
existência, de quem está acreditando que a existência determina a consciência, mas de
quem pode fazer a consciência, pela epoché, determinar a existência, aquele que salta
fora dela em treino, e que pula fora dela quando o treinamento, pela cicuta, se encerra.
Sócrates brindou sua morte, como Nietzsche bem observou, porque era um cansado da
vida. Sloterdijk conhece bem essa leitura que Nietzsche faz de Sócrates, mas a reconstrói
sob o nome não de cansaço, mas de ascetismo. O ascetismo que a filosofia exige é um
morrer em vida, o que se efetiva por meio das epochés. Sócrates quis a morte porque
entendia que estava pronto para morrer. Sabia que iria migrar para o mundo no qual se
sentiria em casa. Sócrates foi um homem que na hora da morte viu que a saudades de
casa, aquela vontade que Benjamin disse ser a saudade do futuro e da terra em que nunca
se esteve, era algo que ele iria satisfazer. Por isso ele morreu sereno e tranquilo. Por isso
ele recusou Críton e sua proposta de fuga. O treinamento havia acabado. As
transformações de viagem estavam feitas o suficiente para que se pudesse passar pela
transformação fatal, a da despedida do corpo. Afinal, como é sabido, em Platão o corpo
nunca foi outra coisa senão a prisão da alma. A preparação para a morte desemboca, ao
menos no caso do filósofo, para uma morte assumida como morte. A cicuta tomada
deliberadamente, ainda que por destino, é ingerida como um auxiliar farmacêutico para
que a viagem (um translado cinético) se complete uma vez que o passageiro já nem quer
mais a bagagem velha, aquela bagagem que serve para se chegar à estação, mas não
serve para pegar o trem final. O corpo é uma escada que se joga fora ao se pular do último
degrau para o campo real prometido ao filósofo. Sem essa passagem mística e ao mesmo
tempo racional e filosófica, não há platonismo, muito menos há a filosofia. “Filósofo” é
uma expressão vinda da confraria de Pitágoras, uma seita mística, e isso chegou a Platão,
de modo a colocá-lo como inventor da filosofia, segundo essa atitude racional e ao
mesmo tempo mística. Não podia Platão dizer para Eurípedes, que esta vida só é morte,
enquanto a morte abre a passagem para a verdadeira vida?
Hannah Arendt lembra que o único momento em que Heidegger cita Sócrates,
é para fazer uma metáfora do pensamento como ventania. Ela afirma que Heidegger
lembra Sócrates com aquele nunca teria feito outra coisa, até mesmo na hora da morte,
senão “se colocar no meio... dessa ventania”, ou seja, a ventania do pensamento, e então
59

ali se manter. Assim, segundo Heidegger citado por Arendt, Sócrates é o pensador mais
puro do Ocidente. Eis porque ele não escreveu nada. Pois quem sai do pensamento e
começa a escrever tem que se parecer com as pessoas que se refugiam, em um abrigo,
de um vento muito forte para elas. Todos os pensadores posteriores a Sócrates, apesar
de a sua grandeza, estar como estes refugiados. O pensamento tornou-se literatura. É
para essa característica de ventania, muitas vezes aludida pelos parceiros de Sócrates ao
que ele fazia ao pensar e conversar, que Arendt chama a atenção. É tomar a ventania
provocada pela formulação de conceitos. Trata-se de formular o geral e universal que
reúna os particulares. Tomar o pensamento como clássico.
O “lugar nenhum” do filósofo é, enfim, estar consigo mesmo. Nesse sentido, sua
vida subjetiva se amplia e se torna o que há de objetivo para ele. Por isso o filósofo
valoriza nos processos de produção do saber não o resultado, o saber que se torna
disponível, mas efetivamente o que seria o seu subproduto, que é o próprio pensador
que exerceu mais uma fez uma tarefa, repetiu mais vezes o que já fazia, se tornou mais
experiente (fez e refez) sua formação. A produção do conhecimento nem sempre traz
como produto melhor o conhecimento, mas uma melhor performance do conhecedor.
Nisso consiste a ascese. No conjunto das antropotécnicas que geram o homem há
antropotécnicas que geram o filósofo. Nesse aspecto, Sloterdijk traça sua aproximação
com Hannah Arendt. Enquanto uma de suas perguntas centrais é “onde se está quando
se está no mundo?”, a filósofa judia quer saber “onde se está quando se está pensando?”.
Sloterdijk utiliza-se da terminologia heideggeriana para explicar seu ponto de vista. Por
isso que Heidegger ao estabelecer o Da-sein, teve em mente a conexão entre a palavra
grega ekstasis e a latina existentia, ambas a tônica recai em uma agitação de que resulta
um “estar-fora-de”. Dessa, forma existir não significa começar em uma localização dada-
unívoca, mas estar em um estado de tensão daqui para ali. Quem existe é chamado ao
seu “lugar” a partir do “lugar-nenhum”. Da-sein corresponde ao “ser-posto-lá-dentro-do-
nada” (Hineingehaltenheit), ou seja, a existência não pode ser pensada sem ser
perturbada pelo “aberto” (Offene, espaço aberto, espaço livre). Os pensadores são
transpostos para uma esfera onde impera uma coisa: clarificar o sentido das palavras, de
frases que nos permitimos proferir quando queremos dizer algo verdadeiro. Pensar
significa aqui, em conformidade com antigas convenções, uma busca por um termo
verdadeiro para uma coisa. Para uma concepção platônica, este esforço não pode deixar
60

de conduzir a um resultado sólido, porque o discurso humano se ancora a outro mundo,


o mundo das ideias. Como ele sempre se remete deste duplo pertencimento (ao mundo
empírico e a um mundo supraempírico), entra em jogo uma subjetividade dupla. O meu
eu real e um ego ainda maior. O lógico platônico declararia: “penso, mas cada vez que
penso corretamente, não sou eu mesmo, mas a ideia em mim”. Platão propôs-se recolher
debaixo de um teto como as pessoas que se encontravam no precário estado de
completa entrega aos seus pensamentos. A Academia não é outra coisa senão uma nova
instituição com vistas a albergar (hospedar) as ausências que ocorrem na busca da
conexão desconhecida entre as ideias e, o estudo da conexão entre palavras e coisas.
Nesse sentido, a Academia foi o equivalente em termos de arquitetura uma epoché como
Husserl bem falou. Uma casa para desligamento do mundo. Um interior dentro de um
interior que funciona como um asilo (um retiro) para aqueles que lá convivem para ideias
e teoremas. De fato, Platão pretendeu uma retirada (se refugiar) para fora da cidade, mas
esse fora era novamente para a cidade, dentro dela: dentro da cidade e para dentro da
Academia. Entra aqui o termo de Michel Foucault, a heterotopia. Uma diferença político-
topológica significativa. Um lugar delimitado e circunscrito que faz parte do perímetro
maior da pólis, nesse lugar se tem leis próprias, regras, e ser frequentado por convidados
bem singulares.
61

Figura de um guerreiro com a clava e o “segundo eu”.


Parque Arqueológico de San Augustín na Colômbia.

A Modernidade banca o remetente à distância com seus gênios, ajudantes,


acompanhantes. Um companheiro. Vida próxima e vida distante é uma metafísica
ambiciosa. Os signos aparecem daqueles que vem de longe. Remitentes poderosos que
com o Humanismo, e as grandes culturas clássicas puderam florescer como a cultura
escrita. Com os clássicos, gerações futuras de pré-alfabetizados são domesticadas. “A
metafísica começa como telesimbioses; nela, graças a leituras disciplinadas, a inteligência
tardia pôde acoplar-se co-inteligentemente com a recente. Sou acessível por um
remetente distante da vida; vida remota e passada segue sendo legível por nós”
(SLOTERDIJK, 2006, pp. 455-456). Auto emparelhamento do indivíduo consigo mesmo
com o outro de si mesmo, que segue sempre desconhecido, e adquire a função de centro
ou absoluto residual. A filosofia clássica da tecnologia começa com a hipótese sugestiva
de que os "dispositivos" tecnológicos são essencialmente extensões de órgãos,
permitindo que os usuários desses dispositivos ampliem o alcance de seus sentidos e
extremidades. Assim, o telefone aumenta nossa capacidade de ouvir em um grau mais
elevado, microscópios aumentam em graus inimagináveis nossa capacidade de ver, os
62

sapatos, ruas e os automóveis aumentam drasticamente nosso potencial de mover-se


com nossos pés e pernas. Assim, pode-se falar de tecnologia, em suma, como uma
dimensão da extensão do homem, caso em que, se imagina o ser humano como o
conjunto de seus órgãos e tecnologia a soma de próteses ou extensões funcionais que
visam melhorar esses órgãos. O homo sapiens seria, portanto, o animal tecnológico que
desde o início procurou expandir o raio de sua ação e otimizar seus órgãos protéticos. À
primeira vista, pode parecer que a astronáutica, como se desenvolveu a partir de meados
do século XX, confirma fortemente a validade dessa abordagem. Qualquer um que
procura novas evidências para apoiar essa teoria expansionista e extensionista do ser
humano pode muito bem achar a realidade das viagens espaciais uma confirmação
bastante impressionante. Desde o princípio, os seres humanos têm estado à beira de
romper os laços ancestrais que os amarraram à Terra e expandir sua gama de ação para
o reino do espaço exterior. Onde mais os seres humanos operariam mais
“extensivamente” do que em suas expedições ao universo? Onde mais os seres humanos
mais impressionantemente perceberiam seu potencial sensorial e cinético? No entanto,
se olharmos um pouco mais de perto, perceberemos que a viagem espacial é muito mais
do que apenas mais uma prova de que os órgãos humanos podem ser expandidos. A
teoria da extensão de órgão não é mais tão plausível quando percebemos que os
designers, arquitetos e engenheiros de naves espaciais e estações espaciais, que
consideram o espaço exterior como um local possível e real para os seres humanos, não
apenas ampliam o escopo de nossa dotação sensorial e de nosso alcance cinético,
embora tal ampliação ocorra. Em vez disso, eles criam ilhas artificiais no universo que são
projetadas para acomodar vários habitantes que chegam da Terra, pelo menos por um
tempo. Reconhecemos imediatamente porque isso é muito mais do que apenas a
expansão da percepção e do movimento em escalas maiores.
Desde tempos imemoriais os seres humanos tendem a pairar acima do seu
estado natural nas asas da evasão idealista, mas o pensamento antropológico moderno
tem mostrado que eles sempre requerem inclusão em uma esfera que os sustente,
independentemente de se eles são relativamente emancipados de um determinado
ambiente. De fato, os seres humanos não apenas requerem uma esfera cultural, como é
de se esperar dos membros das espécies simbólicas, mas também precisam estar
conectados a uma esfera natural que assegure permanentemente suas funções vitais. A
63

dependência absoluta da vida em um ambiente adequado é mais óbvia onde não existe
tal ambiente - no espaço exterior. Qualquer um que deseje viajar para lá deve trazer
consigo seu próprio ambiente, se quiser morar em algum lugar. Embora isso possa
parecer trivial a princípio, tem implicações filosóficas e antropológicas mais profundas.
Em Esferas III: Espumas, Sloterdijk trata bastante das chamadas “ilhas absolutas”:
submarinos, aviões e estações espaciais. Com as viagens espaciais, a humanidade emerge
de um estágio em que o eu é experienciado através da extensão e expansão, e entra em
um eu em que é experienciado através do transplante e da implantação. No decorrer de
tal transição, os órgãos não são transplantados de um corpo para outro, como na prática
cirúrgica e transplantes. Ao contrário, na construção de estações espaciais, somos
confrontados com implantes e transplantes ontológicos, isto é, com a implantação de um
mundo onde antes nada existia e com o transplante de um ambiente adequado para
seres humanos em um mundo externo (contêineres). Um mundo da vida implantado em
um meio social hostil à vida. Por isso, devemos entender o homem como alguém que se
instala no mundo. A estação espacial tripulada se aventura no mar do vazio, no não
elemento.6 Nela não se leva em consideração a conquista do espaço mediante uma
repressão ao uso, mas sim, por uma implantação de um corpo que se estende como dono
de seu lugar no espaço sem concorrência alguma. Um implante espacial insular para
liberação do entorno na luta com a gravidade em manter-se completamente em si
mesmo. Extensão e repressão se unem na mesma coisa. No vazio os corpos liberados do
entorno podem por sua própria vontade alcançar sua própria vontade de extensão.
Enquanto que a situação natural o meio ambiente é o que nos rodeia e os seres humanos
os rodeados, a construção das ilhas absolutas se dá ao caso de que são os seres humanos
mesmos quem concebem e dispõe o entorno no qual devem viver mais tarde. Uma
inversão é necessária. Deveríamos pensar que o homem é quem deve contornar o
contorno, envolver o envolvente, sustentar o que sustenta e apreender o apreende. Não
devemos imaginar as ilhas como microcosmos, e sim, como implantes artificiais de
mundos para a vida. O microcosmos visto classicamente é uma repetição atécnica do
grande mundo (macrocosmo) no pequeno. Se via uma totalidade inexplorável refletida

6
SLOTERDIJK, Peter. Esferas III: Espumas (Esferología Plural). Traducción de Isidoro Reguera. Madrid:
Siruela, 2006, p. 245.
64

em outra. Agora, se trata de recriar artificialmente por meios técnicos um entorno


explorado para ele ser fornecido como habitat ou moradia aos habitantes reais.
Sloterdijk chega a dizer que a astronáutica é uma base ou um tipo de
“alfabetização ontológica” pela qual se pode descrever o mundo pelos elementos do ser-
em-no-mundo. A ilha absoluta nos oferece uma organização ontológica experimental
para o hominismo ou hominização. É o mesmo que dizer que a ignorância humano-
maníaca do fato bastante evidente que a coexistência dos seres humanos com seus iguais
tem lugar em um lugar efetivo porque os seres humanos nunca veem nus e sozinhos,
pois, levam sempre consigo mesmos uma escolta de seguranças e acompanhantes
(coisas, signos, convicções). Só a astronáutica se apresenta como um experimento de
uma empresa dos modernos, já que ela fala da coexistência de alguém com alguém em
um espaço comum. Um caminho para a leveza. A emancipação de algo, da matéria,
elementos, coisas ou do entorno. Hegel mesmo já havia dito em sua época que sem
negatividade, a vida se atrofia quando morto. A negatividade mantém a vida em vida. A
dor é algo constitutivo da experiência.
É justo dizer que, com esses procedimentos, a arte de construir próteses é
estimulada além do estágio de substituir e estender os órgãos a um eu que o mundo é
substituído e o ambiente ampliado. Contra esse pano de fundo, podemos filosoficamente
articular o significado da estação espacial à luz da “história mundial”. Assim que os seres
humanos terrestres são capazes de instalar implantes no vazio do espaço exterior e
preencher esses implantes com ambientes transplantados, eles também são capazes de
se deslocar temporariamente para essas imitações descentralizadas do mundo (o meio
ambiente), e para entrar em uma espécie de comunicação ontológica com aqueles que
foram realocados. Se Martin Heidegger, em sua obra histórica Ser e Tempo (1927),
interpretou a disposição fundamental do ser humano como ser-no-mundo ou sendo-no-
mundo, um filósofo a bordo de uma estação espacial falaria, portanto, de estar-no-
mundo. Através da construção real de tal estação, uma premissa oculta do ser-no-mundo
se torna explícita: a suposição de que a Terra é o único local possível para acomodar a
existência daqueles que habitam tecnológica e simbolicamente construções de mundos.
Assim que a estação espacial existe, a Terra deixa de ter o monopólio do apoio
aos encapsulamentos ambientais e culturais. A partir de agora, ele deve compartilhar
esse privilégio com o que foi implantado no espaço exterior, mesmo que isso requeira
65

apenas uma extensão mínima, medida em termos do volume da Terra. O que se chama
natureza ou ambiente em ser-no-mundo, é replicado pelo sistema de suporte (Life
Support System) à vida da estação espacial em ser-no-mundo.
Com o surgimento da estação espacial, não só temos provas de que existe vida
inteligente fora da Terra, mas a capacidade de se comunicar com essa inteligência
externa também é efetivamente demonstrada pela transmissão eletrônica de dados
entre a estação e a Terra (comunicação à distância com, obviamente, meios técnicos). Na
verdade, isso tem consequências históricas mundiais, já que os mundos baseados na
Terra (que também são chamados de culturas) podem, pela primeira vez, ver um mundo
compartilhado realmente existente além. A partir de agora, nos deparamos com uma
transcendência que os próprios terráqueos realizaram, e que pode ser distinguida das
instâncias religiosas ou metafísicas de transcendência tradicionais, Deus, simbolicamente
codificadas, por permitir uma comunicação bidirecional confiável. A assimetria metafísica
entre a transcendência divina e a participação terrestre nessa transcendência é
substituída pela assimetria posicional entre a estação espacial e o controle de solo. Sob
tal arranjo, a capacidade de ouvir vozes do alto não tem mais implicações extáticas. Pode-
se dizer, portanto, que a viagem espacial descobriu a solução mais elegante para o
problema metafísico mais antigo: resolveu o enigma da descontinuidade ontológica entre
acima e abaixo, postulando um continuum entre ser-no-mundo e estar-no-mundo.
Ainda mais importante, no entanto, é que o mesmo regime de inteligência
prevalece acima e abaixo na nova transcendência bidirecional. Assim, a tripulação abaixo
pode imediatamente levar a tripulação acima em sua palavra, isto é, porque a visão da
Terra do último tem a vantagem de uma posição descentralizada, ainda permanece
embutida no mesmo continuum ontológico. As posições neste contínuo são em princípio
reversíveis, em contraste com a transcendência religiosa. Se estou falando com Deus,
estou orando. Se Deus fala comigo em uma voz estrondosa, sou esquizofrênico. Em
contraste, se eu ouço Thomas Reiter ou Hans Schlegel falando alemão no espaço, posso
concluir que todos os sistemas a bordo estão funcionando sem problemas. Da mesma
forma, posso adotar a visão de mundo do astronauta, porque, como observado, as
perspectivas no continuum ontológico são intercambiáveis. E ainda mais importante: há
uma coerência de inteligência.
66

O que os astronautas sabem, veem e sentem também é algo que eu posso


conhecer, ver e sentir por mim mesmo. Se em nosso testemunho lá em cima, um homem,
vamos supor, não é capaz de esconder quão profundamente ele é movido pela unidade
fenomenal do planeta quando ele olha para baixo na Terra, então sua emoção também
é válida para mim. Neste ponto, o significado histórico-mundial da viagem espacial
tripulada no reino exterior foi pelo menos descrito sugestivamente. Suas implicações são
literalmente imensuráveis, na medida em que a viagem espacial aumenta
dramaticamente a posição do ser humano em um planeta globalizado. Ela oferece uma
prova de que a tecnologia colocou em movimento um processo civilizador que levará
muito além de qualquer coisa que possa ser estabelecida por diálogos interculturais,
inter-religiosos, sem falar nas políticas climáticas. Enquanto os defensores do
monoteísmo passarão os próximos cem anos discutindo as convergências e divergências
de seus sistemas, a astronáutica já forneceu uma forma pragmática de transcendência
universal, que orbita todas as formas de vida e sistemas de crenças baseados na Terra de
igual distância, e as examina equitativamente. Para entender isso, devemos lembrar que
a fabricação ou revelação dos deuses nas primeiras culturas asiáticas e mesopotâmicas
serviram a um objetivo psicológico extremamente importante. Os deuses acima
entraram em circulação quando os seres humanos se acostumaram a pensar que suas
vidas eram continuamente observadas por uma inteligência que era tão onisciente
quanto vigilante, um Deus que me observa, uma inteligência que também tinha o poder
de apresentar a todos o equilíbrio moral de sua atividade post mortem. Toda cultura
avançada baseia-se na ideia de que existe uma inteligência externa de observação capaz
de compreender sincronamente todos os processos da vida, mesmo aqueles que se
escondem na escuridão da ignorância ou da má vontade. A elevação de uma inteligência
de observação divina é acompanhada pela figura correspondente de uma inteligência
observada. Desde a antiguidade, isso foi chamado de alma, em termos um pouco mais
modernos, uma consciência. Ter consciência significa saber que uma pessoa é observada
de uma posição profundamente descentralizada e permeada por ela. Deus é
tradicionalmente um profundo observador, para quem todos os fatos estão na mesma
superfície. Ele vê tudo sincronicamente e de todos os lados, estejam eles acima ou
dentro. Incidentalmente, se o mundo moderno reprimiu a religião, isso não é o menor
porque os indivíduos reivindicaram o direito à privacidade, isto é, uma forma do mundo
67

em que até mesmo Deus, se houver um Deus, só pode entrar depois de receber
permissão: “permission to come on board?”. Quanto à observação de cima, a viagem
espacial assumiu, obviamente, pelo menos essa parte da atividade divina e a transferiu
para sistemas tecnológicos (satélite de observação) e inteligência natural (seres humanos
a bordo de estações espaciais). Esse ato de transferência explica parcialmente sua
importância que durará séculos. Na era da comunicação absoluta, até um Deus teria
também dificuldade em chamar a atenção, visto que, para se dar a conhecer, ou para ser
“perceptível”, ele teria de se conectar à rede e converter-se em uma mensagem
(message), uma tarefa que seria impossível no antigo estilo da reencarnação.
Sloterdijk (2008, pp. 68-69):

A linguagem universal da mundaneidade é um materialismo mediático,


incluindo a imaterialização; faz, graças ao dinheiro deiforme e supercondutor,
a conexão de tudo o que está elaborado em forma de informação e de
mercadoria com tudo o resto. Se a mundaneidade do mundo mediático tem
algum ponto fraco, este encontra-se aí onde a velocidade dos processos de
comunicação produz indesejados efeitos secundários; justamente os
comunicadores mais potentes são expostos aos sentimentos de irrealização
mais veementes; mas, por outro lado, fica mal a um mundo que deve ser tudo
o que se pode dar ao caso, aparecer como um espectro mediático ou um
artefato no ciberespaço; contra esta náusea da aceleração voltam-se, desde
há uma década, novas terapias retardadoras e “pós-modernas”, na sua maioria
convictos devotos ao mundo, que pretende introduzir velocidades à escala
humana nas operações monetárias e mediáticas de velocidade inumana. Por
toda a parte, a lentidão faz carreira como um equivalente funcional da
transcendência; tem o mérito de evitar o embaraço de ter de ir direto a um
público smart a lançar massivos sermões sobre Deus e a alma. Ao mesmo
tempo, o novo Go Slow implica um sucedâneo para a ascese perdida – este
sublinha o exercício da ausência de mundo dos esgotados de cansaço. A
lentidão, enquanto remake de Deus e da alma à escala do mundo, é quase tão
boa como o original – e quem sabe se mesmo este Deus e esta alma não seriam
já uma falsificação? Isto torna-se claro, por exemplo, no filme Jésus de
Montréal, de Denys Arcand, no qual o ator do Deus feito homem tem de se
oferecer post mortem como doador de órgãos. “Deus” já não opera aqui como
logos, mas como bioprótese, isto é, como fornecedor de peças de substituição
para os corpos defeituosos dos “próximos”. Devemos nos submeter ao
Vaticano, que apresentou, na sua encíclica Aetatis novae “Com o início de uma
nova era” (março, de 1992), a sua concepção de evangelização adaptado aos
novos media. Na medida em que ser homem na modernidade significa,
primeiramente, automediação e autoconexão à rede, os bons e velhos
conceitos metafísicos Deus e Alma apenas podem ser pensados no modo de
teorias: como desconexão à rede, interrupção da mediação, choque, pausa.
Tillich, o teólogo fronteiriço, expôs isto inequivocamente através de suas
metáforas divinas e expressionistas; segundo ele, Deus já só é possível no
cosmos autocentrado como um invasor furtivo; apenas como infrator e
perturbador é que ele pode manifestar como a diferença a respeito de tudo o
que se comunica e conecta com a rede. Neste ponto, Tillich está em linha com
o seu rival Heidegger que ocultava o seu catolicismo último numa teologia de
68

vibração. Como se pode ver na obra “Contribuições à Filosofia”, expressões


como: “O Ser é o estremecimento do divino...”.

O espaço de Heidegger é um lugar de duração. O seu “permanecer” é também


um sentido da possibilidade de “reunir”. Sua filosofia do enraizamento e da terra tenta
estabilizar o solo como a morada humana. A coisa de Heidegger está à margem do uso e
do consumo, é um lugar de demora, antes descansa em si própria. É um lugar de demora
contemplativa, por isso toma o jarro como exemplo da coisa, um recipiente para que algo
não caia ou derrame. Mas para residir é preciso ter uma região. Um habitar seria a
residência junto às coisas. Os homens sucumbem ao ruído dos aparelhos que tomam,
quase, pela voz de Deus. A atribuição humana de sua observação descentrada à sua
própria inteligência baseada no espaço exterior nos permitiu ter sucesso em representar
o parceiro externo da consciência, predominantemente com meios tecnológicos. Isso
produz resultados que não podem continuar a ser totalmente ignorados por muito
tempo. A educação, hoje e no futuro, visa cultivar uma consciência do mundo que, de
fato, só pode se desenvolver se a autoridade da observação descentralizada for profunda
o suficiente para ser capaz de contrabalançar o egocentrismo dos interesses locais. As
viagens espaciais, portanto, alcançam um significado que só pode ser comparado àquele
do drama em que os deuses emergiram, três ou quatro mil anos atrás, ao longo dos
primeiros impérios regionais. Os seres humanos na era global estão novamente olhando
para o céu noturno. No entanto, eles não apenas acreditam que estão sendo observados,
eles sabem disso, e levando esse conhecimento a sério, tornam-se capazes de agir de
acordo com sua consciência. As imagens que o nosso profundo observador nos envia
falam uma linguagem clara. Eles falam à nossa consciência sobre a Terra. O inconsciente,
no entanto, deve saber que sua falta de consciência já é visível do espaço sideral. Tais
imagens do inconcebível podem justificadamente ser apresentadas como provas
incriminatórias em um julgamento contra aqueles que ainda desejam não saber nada.
69

II – Capitalismo, Sociedade Moderna e Contemporânea

O filósofo alemão levanta a questão da tributação voluntária e responsabilidade


cívica, uma tese provocativa que em uma arrecadação de impostos obrigatória sociedade
democrática seria transformada em doações voluntárias. No horizonte das democracias
modernas e das instituições religiosas parecem ter perdido a capacidade de administrar
ou de se relacionar com a ira. Isso seria uma crise política? Parece necessário uma análise
psicopolítica maior em descrever a ira como algo que pode ser coletado. Para que se
possa coletar a ira é necessário transformar os afetos em “conservas de afetos”. Há um
ditado alemão que diz sobre uma pessoa que vive sem ressentimento, sua ira não vá mais
adiante da cena, não sobrevive, não acumula esse sentimento dentro de si, mas sim se
solta. Esta é uma maneira muito saudável de pensar a ira porque ela não deve ser mantida
como acumulação, mas a ira acumulada se transforma em ressentimento, ela acaba não
só sendo um envenenamento como uma “substância” negra que pode corroer. Essa é a
razão pela qual hoje não só psicologicamente, mas também, filosoficamente devemos
retornar para Nietzsche. Ele foi um dos “padres” fundadores da psicologia do
ressentimento, depois veríamos Max Scheler descrevendo de forma mais ampla um rol
de ressentimento na moral em geral. Afetos como a ira e a necessidade de vingança, mas
também, como esperança e o desejo de auto engrandecimento pode ser coletados em
“bancos de afetos”, onde se fazem “depósitos de afetos”. Obviamente é iminente saber
como se chamar esses locais ou “bancos” em que esses afetos são coletados. Se
aceitarmos a existência de um sistema bancário não monetário, então a observação de
que bancos de um tipo diverso, concebidos como depósitos centrais de afetos, podem
administrar economicamente a ira de terceiros tanto quanto bancos monetários
trabalham com o dinheiro dos clientes mostra-se elucidativa. A resposta é que essas
instituições são os partidos políticos. Os partidos são bancos para os afetos, quando estão
em bancarrota, vemos que no século XIX depositamos esperança em minha ira que no
partido é aclarado, purificado e transformado em discurso político que nesse cenário
pode representar uma realidade de sociedade, já não é uma ira individual, mas algo como
um implante de tratamento de afetos iguais destrutivos que dentro dos partidos são
processados por tempo suficiente que em determinado momento possam representar
70

demandas capazes de serem representadas, ou seja, politizadas e usadas em termos


políticos. Quando os partidos se dirigem aos eleitores e os indicam que eles devem
depositar seus ativos de afetos neles passa a existir um “fluxo de afetos” necessários
porque os partidos tradicionais são presos em sua própria retórica, e já não entendem
muito bem o que é ser um bom “banqueiro de afetos”, pois devem prometer também
rentabilidade que devem ser pagas em formas de “políticas exitosas” como as da
socialdemocracia em meios sociais (demandas institucionalizadas). Depois da 2º Guerra
Mundial, esta polaridade da terra entre se teremos mundo livre e Comunismo, o
Comunismo para a socialdemocracia ocidental, em especial, para as forças e governos de
centro-esquerda tiveram sorte porque o Comunismo forte deu a impressão de que
sempre a socialdemocracia era “o mal menor”, não havia porque lutar contra isso e
também porque os partidos conservadores em alguns lugares se converteram
estruturalmente em socialdemocratas senão o “mal menor” não poderia ser visto, daí a
ameaça maior ter implodido, e assim os chamados “partidos populares” da Europa estão
em decadência e surgem situações novas completamente caóticas onde os setores
bancários já estão desanimados porque já não têm mais rentabilidade. Imaginem que
durante 5 anos tenhamos depositado mil dólares em um banco. Depois desses 5 anos
vou ver que somente 1900 restou devido o pagamento dos bancos de interesses e
comissões são cobradas (taxas), é um setor onde está à beira de algo absurdo e os
“bandos afetivos” – os psicopolíticos também estão à beira do absurdo porque já não
pagam interesses nem prometer rentabilidades e surge um comportamento
experimental nos eleitores votantes. Uma hora votam assim, outra hora, assado. Se
observa que é uma mudança frenética de que tantas pessoas em tão pouco tempo
mudaram de um partido e para outro. Havia uma fidelidade entre partido principalmente
entre pessoas mais velhas, em especial, Alemanha e França. Hoje já vemos um “ping-
pong” porque as expectativas estão tão baixas que não conseguem criar uma credulidade
minimamente futura ou algum tipo de projeto estrutural a longo prazo. O cidadão não
acumula mais rentabilidade, mas sim, ilusões de momento. Isso é o indivíduo moderno,
liberdade enquanto acumulação de dívidas e débitos. As instituições democráticas,
sobretudo, os sentimentos democráticos, estão debilitados porque quando muitas
pessoas tem a impressão que a “estrutura democrática” atravessa um mesmo
denominador comum e vive uma sensação de tempo igual. Hoje já não temos a impressão
71

de que os eleitores e os partidos a cada ano podem dar suas impressões e seus
rendimentos anuais ou balanços anuais de maneira significativa. Um momento em que
os eleitores sentem que já não existem alternativas, mas unicamente mudar de lado, de
um lado de espectro político para outro. Não só a Alemanha e França passam por isso
atualmente, os brasileiros do século XXI não sabem nem sentem o que é melhorar ou
piorar, o que é um mal maior e um pior. É nesse momento que se cria a resignação, e
também o masoquismo político que não é uma “especialidade russa”. Essa relação de
masoquismo do povo e governo diz: “vocês não sabem o quanto nós podemos aguentar”.
Mas todos nós não estamos suficientemente mal? O caso venezuelano poderia se
encaixar perfeitamente aqui. “Por favor, siga nos torturando”. O intelectual que melhor
compreendeu esse fenômeno foi Serguei Eisenstein em seu filme clássico Ivan – O
Terrível, sobre a regulação onde Ivan estaria decepcionado com os seres humanos e o
poder e que estaria retirado em um convento. Ivan observa que o convento em meio a
neve está sendo cercado por uma caravana e suplicam que ele, por favor, siga oprimindo.
Esta é uma análise psicopolítica ampla para muitos fenômenos onde só se pode
compreender através de um “masoquismo político” ser uma categoria que se subestima
nos dias de hoje. É evidente que a III Internacional foi realmente um banco mundial da
ira, quase como um fundo monetário mundial da ira, obviamente que este banco mundial
administrou não só a ira, mas a esperança socialista. Deposito ira e recebo uma
rentabilidade de esperança e melhorias. Isso é um fogo de um negócio exitoso, sobretudo
no aspecto ocidental. Uma coisa é pressão, sobretudo o ganho de valores ocidentais, as
nessa época dos salários reais no mundo ocidental subiram generosamente gerando uma
sociedade de classe média que hoje novamente podem cair em uma época de
regularização, porque a situação de pressão é que dita uma mudança forte. Outro
fenômeno dominante no final do século XX seria o populismo. Como funcionaria o
populismo com o “banco de afetos”? Não estamos seguros se na modernidade não
descrevemos bem ou se não entendemos bem o populismo. Em primeiro lugar, esses
“fenômenos populistas” são compatíveis com a tradição da acumulação de ira, da fúria,
de esperança, protesto e os lugares de acumulação de capital de chamamos “bancos”.
Não são “bancos estatais”, mas “bancos populares”. Bancos são grandes tradições. Do
ponto de vista econômico se alguém está falindo o banco com seu depósito deve ser feito
em outro lugar. O caso do Brasil é significativo, aqueles que depositaram suas confianças
72

e esperanças no chefe de governo (Bolsonaro) querem em pouco tempo retirar esses


depósitos, mas fora disso, o populismo deveria ser uma forma de amabilidade, mas acaba
se transformando em uma agudização do executor bancário emocional em uma época
de vários interesses representam isso. Se em todas as partes há uma “política de
interesses emocionais”, então um banco popular afetivo, é em curto prazo, um
fenômeno que fornece um certo crédito ou confiabilidade. Daqui um tempo o populismo
terá uma similaridade com os sistemas de irrigação.
Isso não é muito distante do que vimos nas chamadas revoluções árabes. Um
reavivamento de energias pré-políticas e políticas que achávamos que tínhamos
esgotado na falsa paz chamada pós-história, nos foi assegurado o “fim da história”
(Fukuyama), se deduz disso tudo que a tranquilidade dentro de grandes sistemas e em
sistemas de pacificação da cultura ocidental até aqui com resultado bem sucedidos, se
pode interromper, vemos um ressurgimento dirigido por novos movimentos políticos que
advém da insatisfação política. O que se passa na África é um pouco diferente, é de outra
classe. Aqui aparecem as energias política primárias, energias sem filtro que podem ser
consideradas “anteriores à política”. A ira como tal, em princípio não é uma energia
política, mas mais uma “energia moral”. Aristóteles falava da ira em sua Ética como um
inevitável acompanhante da aspiração de justiça, uma pura justiça serena que não tem
um estímulo para procurar para procurar um direito – o sentimento da justiça unido à
um considerável “sistema de energia”, em certo sentido, como o criado nas relações do
criado que segue as ordens do amo. Esta é a ira por justiça não a seu próprio custo é o
que se sucedeu nos países principalmente do norte da África. Porém, temos também que
ter em conta, que a exigência (a demanda) por justiça seja moral ou política de sucesso
se mescla com um elemento de esperança. A esperança faz as pessoas zangadas- raivosas
a acreditar que provavelmente não serão satisfeitas. Essas pessoas vivem de uma forma
geral o que esses jovens revolucionários são a geração do Twitter e Facebook. Em geral,
a geração da internet está mantida de imagens de um atrativo visual de uma vida bela
que as televisões e propagandas dos países do norte da África transmitem. Para os jovens
essa imagem tem o efeito de prometer uma carreira que lhes levem a um interessante
posto de trabalho, uma carreira que lhes deveriam levar a uma situação onde
rapidamente teriam um carro e uma mulher bonita ao seu lado e que os olhe, ainda que
seja anterior à política em relação com essas revoltas, não só o que ocorrem na praça, é
73

assunto político. Em certo sentido se pode conceber a ira como algo da justiça, se pode
exercer uma posição do trono celestial. A instância colérica no mundo dos mulçumanos,
e no monoteísmo do Cristianismo é Deus mesmo (o próprio). As duas religiões são em
princípio apocalípticas. As duas religiões incluem a representação de que o final dos
tempos – o dia da ira terá lugar, é uma representação medieval muito forte. Dies irae,
Dies illa tollet mundo in favila significa que “no dia da ira, o mundo se apodrecerá-
decomporá em cinzas”. Então, aquele a quem corresponde a maior ira da história, é nada
além de Deus mesmo em sua qualidade de que leva a contabilidade moral, a história de
cada qual ao final de todos os dias anuncia ao Dia da ira, no qual todas as coisas se
cumpriram, e por assim dizer, o “rebanho humano” será devidamente dividido entre
ovelhas e cabras, entre bons e maus.7 Aqui Sloterdijk propõe o caminho para a
descoberta do banco metafísico da vingança. O Deus arcaico é uma representação não
determinada do que há do outro lado. Pode significar por um lado como um aliado,
auxiliador, conjurado e consanguíneo do clã. Por outro, como ameaçador, exigente,
imprevisível e rancoroso. Entre um e outro devemos incluir um elemento importante. Ele
é um sedento por vingança. Essa ambivalência é feita por um contrato entre mortos com
os vivos. Uma relação inerente aos espíritos do passado, não só atribuída a uma culpa
inconsciente dos vivos e as expectativas de vingança dos mortos. Os primeiros deuses são
mais que almas liberadas que figuram uma vingança privada, constituem amálgamas de
almas de mortos e forças anônimas nas quais se evocam como o culto. O Deus do antigo
testamento Yahweh (Yahvé) apresenta-se como um deus com máxima transcendência do
Ocidente. O Deus monoteísta como patriarcal deprimido, desconfiado, desequilibrado e
furioso. Essa sua maneira de ser atinge aqueles que pertencem ao seu círculo. A palavra
bíblica fundamental para ele é abençoar, pois o afetado pela benção sempre era
consciente de que ela na verdade poderia ser uma maldição. Basta ver que o mundo
bíblico é um reino da ética da diferenciação e que não tolera semelhanças desmedidas.
O próprio Zeus arcaico apresenta-se com características de cólera, uma potência
paranoica. Nos dois é possível ver uma violência natural. E o modo de governar de ambos
é em grande parte por um intervencionismo. A natureza como regra, sempre foi bastante
má com os seres humanos para merecer sua maldade. Na tradição latina, há uma bela

7
SLOTERDIJK, Peter. Ira e Tempo: Ensaio Político-Psicológico. São Paulo: Estação Liberdade, 2012b, pp. 95-
144.
74

imagem da natureza tida não como mãe, mas como madrasta. Então não é Marca, e sim,
Noverca. A natureza como madrasta é tida como arquétipo do pensamento sobre o
estranho dos homens, uma imagem antiga vinda dos românticos. Com isso, os alemães
têm uma dívida simbólica a carregar por essa questão: a ecologia sempre foi uma
metástase do idealismo alemão. O primeiro romantismo alemão no início do século XIX,
tinha um aspecto reprimido de madrasta que foi substituído por uma figura ideológica de
mãe. A relação de “seio” foi interpretada pela filosofia, em sua época clássica, como uma
relação de residência. O espírito humano pode habitar o mundo sem horror porque,
desde os gregos, “fez do mundo a sua terra-mãe”, desde Parmênides até Hegel que os
moradores da casa europeia do ser se sabem confederados em um “espírito comum de
pertencimento a uma terra-mãe”. O Senhor bíblico, portanto, não é somente um
sadistadifusionista que não quer permitir que se reúna que se pertence; ele é também, e
mais ainda, um Senhor da discrição, que dispersa e separa o que estava aglomerado de
forma nociva.
É muito interessante ver que os jovens africanos elegeram essa imagem de
linguagem tão tipicamente religiosa do Dia da ira, muito provavelmente sem saber o que
fazem, uma imagem nobre. Os alemães suspeitam de que haja algo nobre na ira. O
wutburger (cidadão zangado, enraivecido) foi tratado e deixado para os editores cínicos
e serenos que por sua vez alcancem ou se alcem sobre os cidadãos não cínico se não
serenos para perceberem que se enfurecem por motivos “baixos”, e dão lugar para a
intranquilidade política. Isto significa que a cólera (raiva) é propriamente política, porém
funciona em um “nível” dos afetos, das afeições do humor timótico, os que tem relação
com o orgulho e reconhecimento. Por isso, se vê a ira como uma “psicologia política” um
tanto esquecida capaz de repor a descrição de nós mesmos e do que fazemos levando
em consideração o thymos,8 ou seja, o “órgão” situado no peito dos heróis e dos homens
da Grécia antiga. Um escalão ainda mais profundo que a ira que tem relação com a honra
e justiça especialmente para os europeus. No homem não há só egoísmo, mas também
há altruísmo. Os melhores soldados que encontremos não são egoístas, um egoísta não

8
Aqui ficaria melhor perceber o thymos como uma espécie de força para mover-se. Algo extra indivíduo.
Ele diz respeito à autoestima e ao orgulho, mas isso por conta da harmonia que é cosmos (contrário do
caos), e que põe para cada um o destino. Um “fenômeno” de energia de enchimento (ou coleta) para
liberação ou descarga. Seria possível imaginar um “banco de depósito” ou um “caminhão de lixo” (como
local) de coleta.
75

vai para a guerra, só um altruísta vai para a guerra pela pátria, pela família e pela
liberdade. Um grupo de homens e animais podem se ajudar e se apoiar mutuamente.
Com isso nós podemos chegar a uma conclusão vulgar do darwinismo que diz que o
homem é mau, que o homem é egoísta demais. Não, o homem não é um egoísta a toda
prova. O homem não é um egoísta tolo, e o pior que o homem traz ao mundo não o faz
por egoísmo, ou só por ele, mas pelo altruísmo. O cuidado com o grupo pode levar ao
assassinato como egoísmo. Vale recordar de como o príncipe Kropotikin foi enterrado na
Rússia. Era muito popular, talvez o segundo homem mais importante ao lado de Tolstoi.
Era seguido pelos russos, e no início dos anos 20 era o último momento em que a
Revolução Russa acordou de seus conteúdos liberais porque todos aqueles que o
enterraram sabiam que havia escrito o livro “O Apoio Mútuo na Natureza, nos Animais e
no Homem” ou “Mutualismo: Um Fator de Evolução” (1902). É uma visão em que os
princípios da Revolução Russa tiveram um papel significativo, logo que a visão troskysta
e leninista triunfou porque, por assim dizer, “a política determinou o assassinato pelo
bem”, ou seja, das metas do próprio grupo. Esta nuance se vê bem na diferença entre
raiva e ira foi convertida em uma parte de nosso segredo psicopolítico. O thymos tem
relação direta com uma “afirmação de si mesmo” com o próprio valor de uma
personalidade. Uma energia de preenchimento dos afetos auto afirmativos, em outras
palavras, orgulho. Em alemão não se pode encontrar esta palavra como se vê no francês
(fierté e orgueil) como o bom e o mau orgulho (arrogância). Do ponto de vista semântico,
os alemães estão “orgullo impedidos” no sentido se não se deixar levar por ele, conforme
o cristianismo e o estoicismo e conforme a tradição moral ocidental. A psicologia
filosófica da antiguidade, em especial, a filosofia de Atenas explicou que o homem está
feito de maneira bipolar. De um lado é arrastado pelo desejo de possuir, de querer ter
coisas (avidez), que não raro vira avareza, no sentido erótico (Eros). Eros é a relação
sexual ou desejos de caprichos, esse é o impulso que o homem tem quando lhe falta algo
como uma outra pessoa – uma mulher que lhe falta e se quer, uma total, completa e
grande excitação de ter. Os catálogos dos pecados capitais nos fornecem uma imagem
equilibrada entre vícios eróticos e timóticos. Podemos atribuir a avaritia (avareza), a
luxuria (luxúria) e a gula (gula, desmedida) ao polo erótico e a supervia (soberba,
orgulho), a ira (ira) e a invedia (inveja, ciúme) ao polo timótico. Somente a acedia
(melancolia) é excluída desta classificação, já que expressa uma tristeza sem sujeito e
76

objeto. Eros não é exatamente um desejo no sentido moderno psicologizado, mas


funciona como uma espécie de atração. Já o thymos configura um segundo polo onde o
homem se sente como um ser que para o qual o mero fato de ser representa de certa
forma uma riqueza. As convicções dos homens antigos era de que seria impossível se
conceber como pobre, isso pelo fato existencial de existir, pelo fato de se estar no mundo
já era uma riqueza em sentido metafórico-ontológico. Alguém é ontologicamente pobre
quando se quer coisas, e ontologicamente rico quando se sente pertencente ao cosmos
e se passa a conceber a si mesmo como coproprietário do todo no “modo de ver”. Os
gregos pensavam que ver era o fato mais importante porque aquele que vê é rico, nada
mais que uma certa convicção aristotélica. A palavra cosmética ou cosmético está
relacionada com cosmos. O que vê o cosmos está diante do cofre de tesouro ou de um
baú de tesouros do ser como tal, e é por si, possuidor do mesmo, assim pode se alegrar
e estar orgulhoso de existir, e não deveríamos querer estas qualidades, mas sim vê-las
como algo que está ao nosso lado.
Não só queremos “nos mostrar” ou nos afirmar, mas queremos mostrar com
tranquilidade quem somos, não simplesmente uma pura auto-afirmação. caminha para
o seu acaso de um modo generoso. Só dá e nada recebe. Nietzsche foi o homem do
“heteronarcisismo”. Afirma a si, mas querendo afirmar os outros. As alteridades o
penetram para uma composição que o atravessa, o encanta, lhe tortura e o surpreende.
Essa conceituação é própria de Sloterdijk, mas nasce de sua observação sobre as noções
de individualidade americana posta por Emerson, bem conhecidas por Nietzsche. A
noção de sol, Sloterdijk a retira do próprio Nietzsche e de Bataille. Trata-se da ideia de
uma ressonância que gera a interpenetração de raios de generosidade. O sol dá sem pedir
em troca, garante a vida ainda que nisso venha a morrer – num futuro longínquo.
Nietzsche levou Emerson para todos os lugares. Ele descobriu a filosofia de
Emerson aos 17 anos e nunca ficou sem algumas de suas obras ao seu lado. O título da
Gaia Ciência foi influenciado pelo título auto referencial de Emerson como “professor da
Joyous Science”. Algumas das falas de Nietzsche em seus trabalhos famosos são citações
diretas de Emerson. Suas cópias de Essays e outros escritos tinham anotações dentro e
fora, algumas exclamações como "Bravo!" E "Ja!" ... muitas vezes cobrindo a capa com
anotações quando ele ficava sem espaço. No norte-americano Nietzsche – American
Nietzsche, livro de Jennifer Ratner-Rosenhagen, ela afirma que Nietzsche leu seu caminho
77

através de Emerson até suas próprias ideias sobre o espírito livre intelectual que deve
romper a cadeia da história, da tradição e da convenção”. Com o tempo, ele passou a se
identificar como um eu soberano que se recusava a exaltar os ideais herdados. Mas,
mesmo os soberbos devem, de tempos em tempos, inspirar-se nos outros. Ralph Waldo
Emerson representa ideais ao mesmo tempo individualistas e democráticos. São os ideais
americanos, elevados ao máximo de beleza e dignidade. Nessa mesma linha, em The
Ideas That Made America: A Brief History de 2019 Rosenhagen fala de antes de os Estados
Unidos serem uma nação, era um conjunto de ideias, projetadas no Novo Mundo por
exploradores europeus, com séculos de crença e pensamento a reboque. A partir desse
fundamento de expectativa e experiência, o pensamento americano e americano
cresceu, enriquecido pelas graças do Iluminismo, pelas filosofias de liberdade e
individualidade, pelos princípios da religião e pelas doutrinas do republicanismo e da
democracia. Crucial para este desenvolvimento foram os pensadores que o nutriram, de
Thomas Jefferson a Ralph Waldo Emerson, W.E.B. DuBois para Jane Addams e Betty
Friedan para Richard Rorty. As ideias que fizeram a América: uma breve história traça
como os americanos abordaram as questões e os eventos de seu tempo e lugar, seja a
Guerra Civil, a Grande Depressão ou as guerras culturais de hoje. Abrangendo uma
variedade de disciplinas, da religião, filosofia e pensamento político, a crítica cultural,
teoria social e as artes, Jennifer Ratner-Rosenhagen mostra como as ideias têm sido
grandes forças na história americana, impulsionando movimentos como
transcendentalismo, darwinismo social, conservadorismo e pós-modernismo. Na prosa
envolvente e acessível, esta introdução ao pensamento americano considera como as
noções sobre liberdade e pertença, o mercado e a moralidade - e até a verdade -
comandaram gerações de americanos e foram a causa de um debate acirrado.
Em "Autoconfiança", seu ensaio mais impressionante, Emerson chega a
defender o desprezo às obrigações familiares, o afastamento do círculo de amizades, a
ausência de qualquer dever com relação ao Bem, à Caridade. Culpa-se por dar esmolas a
um mendigo: “Não tenho obrigação”, diz ele, de remediar a vida dos pobres. "Acaso são
meus pobres? Eu vos digo, tolo filantropo, que dou de má vontade o dólar, os dez
centavos, o centavo para tais homens que não pertencem a mim e a quem não
pertenço... embora eu confesse com vergonha que por vezes sucumbo e dou o dólar, ele
é um dólar iníquo que com o tempo terei a virilidade de recusar”. A básica ideia de
78

interpretar coisas como clubes, associações como a quebra do individualismo para uma
espécie de aparência de “bom moço” que essas pessoas querem, no fundo, seguidores e
notoriedade. Zaratustra fala em tons semelhantes quando diz: “Não. Não dou esmolas,
não sou pobre o bastante para isso”. A metáfora do mar e da costa surge em muitos dos
ensaios de Emerson. Emerson se banhava no pensamento de ser "jogado" neste mundo
e estava constantemente nadando com cuidado para o centro de seu devir. Ele
compartilhou uma conexão profunda com o Infinito. Talvez Nietzsche já
antecipadamente soubesse que como ele mesmo diz: “Não estou à salvo de
falsificadores, tenho que estar sem precauções: assim o quer minha sorte”. Uma boa
forma de analisar as características especiais de Nietzsche enquanto designer de
tendências do individualismo consiste na possibilidade de compará-las com projetos
alternativos. Uma fórmula volta para nossa visão na expressão: “torna-te quem tu és”, e
da fórmula correspondente: “faze o que queres”. Dois projetos? Talvez a obra de
contraste com a de Nietzsche seja justamente Emerson. Nietzsche em A Gaia Ciência, às
vezes trata a obra de Ralph Waldo Emerson como “grande e magnífica natureza”, o
filósofo-escritor mais inteligente do século XIX. Enquanto em Nietzsche vemos o design
da vida ser desenvolvido na individualidade autocriadora sob o desígnio de “espíritos
livres”, Emerson se coloca em uma posição de que seu produto no mercado tenha o
nome de “não-conformismo”. Seu grande trabalho em Self-Reliance (Autoconfiança),
mostra como a filosofia americana construiu provas de sua existência perante
testemunhas maravilhadas. Este texto declara a independência do ensaio americano e
lança fora qualquer atitude servil dos americanos em relação ao cânon europeu e a
qualquer outro. Nesse mesmo sentido, poderíamos supor que Emerson já no fim da vida
se opunha mais abertamente e declaradamente contra a escravidão nos Estado Unidos.
Em St. Augustine, Emerson observou pela primeira vez a escravatura, e obviamente,
aquilo não lhe agradava. Emerson visitou Washington D.C. no final de janeiro de 1862.
Numa palestra pública no Smithsonian em 31 de janeiro de 1862, declarou: "O Sul chama
a escravatura uma instituição... eu chamo-a destituição... a emancipação é uma exigência
da civilização". Nele, assume contornos o programa anti-humildade, o qual se
comprovaria durante os seguintes cento e cinquenta anos como sendo o timbre da
liberdade americana. Esse timbre imperou até os anos 70 do século XX, antes que a
Academia americana se voltasse para as importações europeias como a Teoria Crítica.
79

Há uma certa prodigalidade no sol9 que há também em toda a vida. Antes que
economia e racionalidade, funcionamos no mundo por meio do gasto, esbanjamento e
capacidade de doação. Com trinta anos Zaratustra deixou sua aldeia e foi para as
montanhas. Lá ficou por dez anos, gozando de seu espírito e de sua solidão. Até que,
enfim, cansou-se de sua própria sabedoria e, ao nascer do sol, levantou-se junto com ele
e disse: “Ó, grande astro! Que seria de tua felicidade, se não tivesses aqueles que
iluminas? […] Olha! Estou farto de minha sabedoria, como a abelha que juntou demasiado
mel […] Quero doar e distribuir […] Por isso devo baixar às profundezas”. Chegando em
um bosque Zaratustra avista um eremita que o tenta convencer a não voltar para o meio
dos homens. “Trago aos homens uma dádiva”, mas o eremita diz que o homem é
imperfeito e que o mais sensato a se fazer é ficar, assim como ele, na floresta compondo
hinos a Deus. Homens-sois não doam apenas, emanam evangelhos, fazem boas novas
como dádivas, penetram e se deixam penetrar, fazem de si mesmo diversidades e,
portanto, mundo. Quando partem para o autoelogio, é para romper de vez com “as
coações da lógica tradicional bipolar”. “Eles rompem as coações da lógica tradicional
bipolar, a qual constrangia os falantes a fazer uma escolha entre duas partes: entre o
louvor a Deus, que implicava inevitavelmente uma “renúncia ao Eu”, tido como digno de
ódio, e o louvor ao Eu, o que implica a renúncia satânica a Deus” (SLOTERDIJK, 2004, pp.
71-72). Após andar muito, Zaratustra pediu de comer e depois dorme. Ao acordar, eis
que uma verdade lhe surge com os primeiros raios de sol: “Uma luz raiou para mim: de
companheiros necessito, que me sigam porque querem seguir a si mesmos – e para onde
quero ir. Uma luz raiou para mim: que Zaratustra não fale ao povo, mas para
companheiros! Zaratustra não deve se tornar pastor e cão de um rebanho!/ Para atrair
muitos para fora do rebanho – vim para isso. Povo e rebanho se enfurecerão comigo:
Zaratustra quer ser chamado de ladrão pelos pastores”. No fim da primeira parte, em “Da
Virtude Dadivosa”, Zaratustra se despede de seus discípulos. Estes dão a ele um bastão
de ouro, com uma serpente enrolada ao sol. Zaratustra assim diz: “como adquiriu o ouro

9
A vida aí, nesse caso, é algo sem travas, como de fato fez o cínico Diógenes, cuja melhor fala foi aquela
de pedir para Alexandre sair da frente do sol, para que ele pudesse continuar seu banho de luz. Nenhum
mesquinho, resguardado, com segundas intenções, falaria o que Diógenes falou. Ele extrapolou, esbanjou-
se, patrocinou e doou à exaustão. Enquanto Diógenes manifesta o “desejo”: “retira-te da frente do meu
sol!”. Os adeptos do cinismo moderno aspiram “um lugar ao sol”: nada mais têm em mente além do projeto
de disputar cinicamente, no sentido de o fazer explicitamente e sem constrangimentos, os bens deste
mundo, dos quais Diógenes justamente caçoa.
80

o valor mais alto? Por ser incomum, inútil, reluzente e de brilho suave; por sempre se
dar”. Em seguida, Zaratustra começa seu discurso sobre a virtude dadivosa. “incomum é
a virtude mais alta, e inútil, reluzente e de brilho suave: uma virtude dadivosa é a virtude
mais alta”. Aquele que tem vontade de superar a si mesmo é também aquele que quer
acumular a fim de se dar como um sacrifício. Mas para tornar-se um sacrifício valioso,
antes o homem deve acumular em si todas as riquezas, para depois desejar sua morte.
Zaratustra ama aqueles que querem seu fim, pois são estes que criarão formas e valores
novos. O ladrão de todos os valores se tornará esse amor dadivoso, um sadio e sagrado
egoísmo. A arte de presentear é, como Nietzsche expôs pela boca de Zaratustra, aquela
de doar de modo a não deixar o receptor em dívida para com o doador, extirpando-lhe
qualquer sentimento possível de humilhação. Faz-se o receptor aceitar a dávida sem que
ele contraia obrigações. Há aí, diz Sloterdijk, um “círculo narcisista”, onde entra em jogo,
sim, “um pouco de vaidade e um pouco de movimento”. O mecenato pode funcionar sem
Nietzsche, mas, acrescenta Sloterdijk, quem já experimentou sua condição de
patrocinador ou doador, sabe bem a importância da experiência do filósofo alemão na
prática da generosidade. O generoso produz o dissenso, a concorrência, e ele é diferente
do bom, do bonzinho, que produz o consenso. E essa generosidade do doador é
contagiante.

Usuradores. Quentin Matsys. (1520).


81

A nova “corrente solta” tem início em um gesto e movimento de dissipação


completamente isento de reservas e privações, porque o doador é aquele que não tem
outro caminho para romper o círculo da razão econômica a não ser o puro e simples
esbanjamento, até o esgotamento total. Somente por meio de uma dissipação completa
e integral é que guarda suficiente espontaneidade e força de empuxo para escapar da
força gravitacional da ganância e de seus cálculos eróticos. Poupadores e capitalistas
sempre esperam um retorno maior, é claro, ao passo que aquele que é o verdadeiro
patrocinador encontra a sua satisfação sem nenhuma pretensão de receber de volta, ou
ainda, com satisfação de lucro. Isto é válido tanto para as proposições como para
donativos. Aquilo que Nietzsche fala da inocência do “vir-a-ser”, é nada mais do que,
inocência do esbanjamento, do transbordamento de si mesmo, a inocência do
enriquecimento que é buscado tendo em vista o esbanjar. O salto para a generosidade
acontece através da afirmação da riqueza que se tem em si mesmo, e que está nos
outros, porque ele é a premissa necessária da generosidade. Um salto para uma
generosidade aberta e oculta. Aquele que tem a arte de presentear, pressupõe a ideia de
que qualquer doador não está mais apto para se ocultar, deve se mostrar, se revelar,
neste caso, a promessa não cumprida (a mentira) o tiraria do mundo e faria com que o
receptor entendesse algo que equivaleria a uma humilhação. Mas o que temos é o
contrário, quando se tenta estimular o receptor a aceitar a dádiva, deve-se comunicar
em uma linguagem de idiossincrasias e fragilidades, sem, no entanto, negar a nobreza da
dádiva. Isto só é possível com a “arte dos mestres da generosidade”. No heteronarcisismo
temos que ter um pouco de vaidade e movimento. Ela as introduz em sua gratidão pelo
dom de poder fazer dádivas. Para Nietzsche a vida parece ser, em resumo, a encarnação
do critonismo. Elevação de uma exigência, que vai até ao infinito, de tempo para as coisas
boas do mundo e procura, com astúcia espontânea, abreviações para o mal. Isso é o que
sabe a profunda meia-noite na canção das horas de Zaratustra. A vida é o sonho que pode
desejar duração e a própria força de desejo é a que sempre sabe procurar novas
perspectivas na permanência e na duração. O oposto do sonho não é o despertar, mas a
morte (A Gaia Ciência, § 54). A duração do sonho não quer dizer duração do mundo e da
vida. O tempo em que essa vida quer viver eternamente não é a eternidade morta da
metafísica, mas a linha infinita das autoafirmações da vida que se seguem mutuamente
82

através das inúmeras voltas de dor e prazer. A realidade da vida para Nietzsche, seria o
contínuo teste de força para a afirmação. Iluminação através de si. Quando Zaratustra
afirma a si mesmo e ao mundo, entra em cena uma linguagem de afirmação de força
provocadora e emanadora: autoelogiosa e desavergonhada. É por isso, que com esse
choque de linguagem, entra em cena, elementos terapêuticos. O choque através de
setas, provérbios, ditados e exaltações quase em tons proféticos e bíblicos, leva o leitor
a se deixar provocar para uma reação imunológica. Um nível de imunização moral. Aquele
indivíduo que já foi alguma fez patrocinador talvez diga que é possível um mecenato
funcionar sem Nietzsche, porém, aquele que ainda não foi, poderia experimentar o gosto
e o contágio no momento em que o confronta com a lembrança da possibilidade da
generosidade. Uma lembrança que o receptor não poderá fugir, na medida em que
precisa entrar no espaço de ressonância da nobreza e for capaz deste ato. Os não
receptores seguem seus próprios caminhos, buscando outros negócios, isto é normal,
mas a “virtude doadora”, é capaz de abrir uma fonte de pluralismos e irradiações capazes
de superar expectativas mais simplórias. Um “monopólio” patrocinador é um fracasso,
pois quem patrocina e o próprio patrocínio para ser o que é precisa de concorrência.
Antes uma rejeição do que uma imitação barata. É por isso, que os generosos se colocam
em contradição com os bons, os quais para Nietzsche são os decadentes porque eles
perseguem um sonho de monopólio da boa consciência como é revelado em Genealogia
da Moral. Para os decadentes é melhor uma linguagem do ressentimento, pois exige
deles uma fala e uma prova de que são bons, é tido como mau. Condições nas quais: “o
hipócrita é elogiado”. Os bons só são bons na falta de algo melhor. O ideal da decadência
só predomina no poder porque por bastante tempo “não houver concorrente”. Nietzsche
fez uma libertação da linguagem moderna na medida em que uniu auto-elogio com
propaganda. Simbiose louca, poética, propagandista. Por isso, as falas que dizem que
Nietzsche se aproximou do nazifascismo são sem sentido. O fascismo possui tons de um
ponto de vista procedimental. Uma cultura ressentida e não auto-elogiosa. Uma
publicidade como amostragem de ressentimento e vingança, os fascismos passados e
futuros sempre foram, politicamente, insurgências de perdedores magoados de energia
negras da cor do petróleo, dispostos a fazer modificações em regras para se
apresentarem como vencedores durante um tempo de exceção. Zaratustra afirma: “tudo
que toco se transforma em luz”. A morte como consumação, que é para alguns vivos um
83

aguilhão e uma promessa. O sol, o astro de Apolo desempenham uma função de profeta.
Somente os sóis podem falar assim de si mesmos. Gestos de esgotamentos e não
reservas, com a capacidade de perecimento como novas afirmações e sem lamento (o
amor fati não nos lembra um pouco isto?). Uma doutrina solar. O sol também não é
energia? Não a chamamos hoje de “energias alternativas” ou “energias renováveis”?
Nietzsche não nos fala de “flechas solares aniquiladoras?” Um sol e uma vontade
implacável de ser sol? Absorção e reemissão? Quem é penetrado, é. Quem brilha em ti,
portanto tu és. Um sol que perfura e vence. Um verdadeiro bissexual que deseja ser
transpassado. Nietzsche comemora um transbordamento de abundâncias, e de
elementos estranhos que é o mundo: “... enquanto meu pai, eu já morri, enquanto minha
mãe, eu ainda vivo...”. O homem se inclui, desde então, entre os mais inesperados e
emocionantes lances no jogo da “grande criança” de Heráclito, chama-se ela Zeus ou
Acaso. Nietzsche faz referência ao fragmento 52 de Heráclito que diz “o tempo é criança
brincando, jogando; de criança o reinado”. Ele desperta um interesse, um tesão, uma
esperança, quase uma certeza, como sem com ele algo se anunciasse, algo se preparasse,
como se o homem não fosse uma meta, mas apenas um caminho, um episódio, uma
ponte, uma grande promessa.
Para Sloterdijk, toda dádiva (presente, doação) implica, de algum modo, a
“estrutura da troca”, e a questão é o que ocorreria se a relação entre a dádiva e a contra-
dádiva fosse permanecer completamente aberta. Sua argumentação é de que a estrutura
da troca não invalida nada na doação, uma vez que a doação é sempre uma relação que
não estabelece nenhuma simetria sincrônica. Não se trata de uma nota promissória para
pagar num banco. Dádiva e contra-dádiva estão ligadas uma a outra, e por isso mesmo
toda dádiva de um bem, tem preço. Contudo, há muitas coisas que não tem preço, ainda
que precisem ser mantidas, que necessitem ser pagas. Nesses casos, um grande retorno
é esperado, mas protelado para a próxima geração ou talvez cinco gerações mais tarde.
Ninguém esperaria um ser humano se desculpando por uma tal demora.
Fukuyama (1992, p. 215):

O desejo de reconhecimento originado do thymos é um fenômeno


profundamente paradoxal porque o thymos é a sede psicológica da justiça e
do despreendimento, embora ao mesmo tempo esteja intimamente ligado ao
egoísmo. O eu timótico exige reconhecimento em razão do seu próprio sendo
do valor das coisas, tanto por si mesmo quanto pelos outros. O desejo de
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reconhecimento é uma forma de autoafirmação, uma projeção dos próprios


valores no mundo exterior e dá origem a sentimento de raiva quando esses
valores não são reconhecidos por outras pessoas. Não há garantia que o senso
timótico de justiça de uma pessoa corresponda ao das outras pessoas.

A posição fundamental do homem no-em ter e a posição timótica, é por assim


dizer, “abrir com muita tranquilidade os olhos” ao considerar o mundo ao redor de nós
mesmos e dar-nos conta de que somos parte dele, e por isso, se encontra uma posição
na qual é estruturalmente impossível que haja um armistício. Nesse sentido, a ira pode
ser despertada com a decepções de esperanças postas por esse sentimento de ouvir a si
mesmo no mundo. Quando alguém se sente rico e cheio é possuidor de orgulho, é o polo
timótico que se quer expandir. Quando estas esperanças timóticas de reconhecimento
não fazem o suficiente ou não são satisfeitas, e se experimentam, digamos, fracassos,
então, os sentimentos de valor são considerados feridos. Se origina uma reação da ira.
Por exemplo, vemos em Homero um descrédito mútuo de forma consciente porque se
se se faz o outro hesitar quando seu centro de orgulho se formou no mundo de antigos
lutadores – uma cultura do insulto, como pode hoje ser visto em culturas esportivas.
Tradições de mais de 2000 mil anos tentavam desestabilizar a base timótica do outro, por
conseguinte, a capacidade de luta do adversário enquanto seu ataque mental tem que
assumir o insulto. Desde o século XIX vivemos em uma sociedade de classes, portanto, se
há relações de insultos liberados, os que por seu status estão no alto da pirâmide social.
A priori parecem ser os grandes vencedores no jogo onde eles não querem perder nada
de tudo que tem mais. Há ainda hoje uma grande classe médica que tentam melhorar
sua situação são os dois grupos da assim chamada “sociedade burguesa”.
85

Diógenes e Alexandre. Johannes Platner (1780).

A sociedade burguesa que funciona bem é fundada em uma ampla base de


satisfação assegurada. A classe mais saciada ou satisfeita da sociedade, mas também uma
classe que está bem colocada ou se coloca a si mesma bem. Uma satisfação de que vem
uma oportunidade de se imaginar melhor enquanto possibilidade social. Mas temos um
grande grupo, e o faço aqui diferentemente do marxismo tradicional, que é uma
classificação psicopolítica: dos que se veem excluídos das oportunidades. No melhor dos
casos, apenas podem manter seu posto e se manter como autoconservação
(sobrevivência), porém vivem com temor, vivem intranquilos com o medo de perderem-
se. E há um grupo que cai em um tipo de fatalismo porque não tem nenhuma
oportunidade de participar nas oportunidades. Nessa tensão entre as ofensas congeladas
os homens têm que se descarregarem-desabafarem em meio a situação nas quais se
veem, é um tipo de reator psicopolítico que remove constantemente os afetos-afeições
coletivos-coletivas, e nesse movimento se decide os destinos da nação. Os modernos com
base nos partidos políticos e nas democracias conseguiram um “método” para se
trabalhar com essa inquietude. Poderíamos ver tranquilamente os partidos políticos
86

como bancos nos quais os cidadãos podem investir ou aplicar suas frustrações,
instituições ou locais de “administração da ira”. Locais de coleta da ira, como um banco
que é definido como o local de se acumular capital. Um centro de depósito de ira e
esperança. Quem não junta a raiva e a esperança não vai às eleições (se cai no
anarquismo) ou se afunda na clandestinidade ou em uma “sociedade eterna” concebida
como sem projeto. Enquanto se tiver perspectivas políticas devemos compreender os
partidos políticos como estações que fazem a coleta da ira e da esperança, todos
sabemos a confusão que essas duas coisas podem exercer sobre os discursos de partidos,
especialmente a tarefa dos políticos dentro dos partidos que consiste em canalizar esse
sentimento de inquietude-intranquilidade das massas, essas ondas ou correntes de
afetos, e lhes dar unidade (um discurso de ira) e (um discurso de esperança). Os partidos
têm que aumentar a ira e a esperança como os bancos (na metáfora de partidos) devem
investir ou aplicar a ira e a esperança em locais corretos. Um investimento bom satisfaz
a todos. Não pode haver a queima de operações de investimentos, por isso que temos
visto na França quando os jovens cheios de ira nos bairros franceses e os coletes amarelos
causando grandes desordens e queimando colchões, é uma forma de expressar a ira que
não varre o investimento. A metáfora do banco tem a grande vantagem de que este
primário psicopolítico. Não só os que estão acima, mas todos os que estão em uma
“situação” tanto materiais como os resultados de vida, lhes pertencem um excedente. Os
alemães que pagam impostos diretos deveriam pensar de novo sobre o fundamento de
sua relação com a essência comum. A Suíça poderia estar de acordo com este desafio de
abrir as portas, e na Alemanha e em outros lugares que conseguiram têm que ver de
alguma forma com que se foi exigido uma helvetização do mundo ou da Europa ao menos
porque é dito que o se o cidadão não aprende no “momento que é mais intenso”, o de
pagar os impostos, deve estar muito alerta e consciente do que faz. A vida se converterá
em uma realidade psicopolítica construída de maneira falsa. Os alemães a cada quatro
anos elegem um novo governo, pagam impostos a cada mês (a cada dia?), e nesse
momento em que eles patrocinam materialmente a essência comum (Welfare-State)
através do pagamento de impostos, nesse momento eles estão em uma situação atual
de que a maioria automatiza um sentimento de humilhação, lhe é pedido até os centavos
(cêntimo), no lugar se sentir-se cidadãos frente a sua essência comum, em um Estado em
que só em modo passivo observa a garra das finanças dentro do seu bolso. Deveríamos
87

dizer que os impostos são ou temos que pensa-los como um dom. Quando eu pago os
impostos nos limitamos a tolerá-los, isto não é um cidadão, é a simples verdade sobre a
relação entre cidadão e a essência comum. A mão que dá e a que toma. A orgulhosa mão
que dá e a nova questão social.10 Para nossos pêsames não temos uma filosofia fiscal.
Temos bibliotecas inteiras cheias de livros e literaturas, livros sobre economia, finanças,
porém nenhum de filosofia fiscal. Desde a Idade Média até a idade atual, não há nenhum
só tratado filosófico sobre o tema, nem ao menos “fiscalidade” como tema. Na Idade
Média se dizia que deveria se deixar pensar aos politólogos e aos ministros da Fazenda.
Isso seria que dizer: Ubi Fiscus ibi imperium – “Onde há o Fisco, há império (controle)”.
Onde está o fisco está o castelo do imperador-rei ou onde está o fisco, então o castelo
do rei, aí está o império, o que tem poder. Nesse nível se sabe é que se deve discutir o
problema dos impostos. Todos nos encontramos em uma zona de “cidadania fiscal”, em
que ao mesmo, somos castrados ou desestimulador através da fiscalidade moderna, e
em um ponto essencial no estado material – o da essência em comum. Vivemos em um
tempo anterior à democracia, e digo isto me dirigindo para um grande elogia da
fiscalidade Suíça porque em outros lugares a coisas funcionam de outra maneira. Lá há
uma grande competência fiscal entre os cidadãos, eles pagam os seus impostos com o
coração. Com que sentido deram seu cheque e o entendem foram congratulados com
uma carta da Fazenda. Em alguns cantos passa. Mas na Alemanha poderia ser o fim do
mundo se a Fazenda enviasse uma carta. Muitos se perguntariam: “Deixei de pagar algo?”
Ou na carta estaria escrito assim: “Querido senhor (a), expressamos nossos
reconhecimentos porque este ano você contribuiu tanto com o objetivo de que queres o
bem comum e sabermos valorar seu esforço”. Se algum alemão recebesse uma carta
assim, pensariam que era um sinal de que o fim dos tempos estaria próximo. Um sinal de
uma autêntica cultura cidadã se estaria construindo novamente, que passamos dessa
cultura de cidadãos passivos, a uma democracia participativa. Uma perspectiva de uma

10
ROCCA, Adolfo Vasquez. Sloterdijk: Posdemocracia Impositiva y Genealogía Del Orgullo (Thymos) –
Polémica en Torno a la Fundamentación Democrática de los Impuestos Capitalismo y Cleptocracia – El
Timótico Impulso a Dar. Conferência Inaugural do Seminário: “Peter Sloterdijk: Do Mundo Interior da
Capital até ao Útero Social”. Trama Interdisciplinar. São Paulo, Vol. 7, Nº. 3, 2016, pp. 201-206. Disponível
em:
<https://www.academia.edu/32010328/SLOTERDIJK_POSDEMOCRACIA_IMPOSITIVA_Y_GENEALOG%C3%
8DA_DEL_ORGULLO_THYMOS_POL%C3%89MICA_EN_TORNO_A_LA_FUNDAMENTACI%C3%93N_DEMOC
R%C3%81TICA_DE_LOS_IMPUESTOS_CAPITALISMO_Y_CLEPTOCRACIA_EL_TIM%C3%93TICO_IMPULSO_A
_DAR>. Acesso: 11. Mai. 2019.
88

democracia direta seria suficiente paro um Estado? Não teríamos que considerar
aspectos financeiros? A democracia tem um código para reclamar sua vida que não
estaria privada de esperança. Trata-se de um código existencial, se diz democracia, e se
quer dizer com democracia, uma vida suficientemente rica-cheia de atividades,
participações suficientes com as coisas boas da vida. Tudo isso se encontra atrás da
palavra “democracia”.

Página de título de Ausgabe des Fortunatus (1509).


89

Fortunatus e a donzela da sorte. Ilustração popular de um livro de 1509.

Se necessitam de aspetos financeiros porque o Estado funciona por si mesmo


como uma máquina de repartição tem que equilibrar essa diferença que há dentro de si
mesmo. É uma tarefa que de fato tem que cumprir, porém na mediada em que os
cidadãos entendem seus pagamentos de impostos como dom, e não como dívidas que o
Estado de alguma maneira inconsciente amontoado, no momento em que eu pago
impostos como dons, somos cidadãos que acompanham esse dinheiro com muita
atenção ao lugar em que ele será coletado (arrecadamento e retorno-contrapartida) e no
lugar de seu uso através das mãos do Ministério da Fazenda. Na Alemanha, a cada ano
se estabelece o diagnóstico de que ao menos um centavo do que há no público se esgota,
há a possibilidade de “vigiar” o desaparecimento do dinheiro. Todas essas coisas
“incompatíveis”, uma parte dos impostos deveria se “subjetivar” mais, queremos dizer
que pagar os impostos em certa medida, deveria “garantir” a liberdade onde deveria ele
estar em princípio, antes de que se gaste em algo, e não vê-los como uma dívida pura e
simples que tenho que pagar para satisfazer ao fisco tendo em vista penalidades e
sistemas legais pode-se dizer um “dinheiro inteligente”. Talvez Rousseau por tratar essas
pessoas e a propriedade privada com um peso de culpa tenha sido a pedra fundamental
do desenvolvimento do marxismo. Todas as esquerdas até então, trabalhariam com a
ideia de impostos. Se vermos a Social Democracia e as democracias Liberais
(neoliberalismo) de hoje, o pioneiro para digamos, a “legitimidade” de se cobrar impostos
é Rousseau. E que quanto mais rico o proprietário mais imposto devemos cobrar e ele
90

pagar. Aí teríamos uma espécie de compensação por um “crime” originário, tratado como
pecado (mamom bíblico): o cercamento da terra, a chamada propriedade privada. Se isso
é assim, impostos passam a ser dívidas. Os cidadãos têm que ver a diferença entre o
ministro do culto, isto é, um processo social de uma geração. As nações não só lugares
de capital, no ranking das nações decide a atratividade industrial, e em nível de sentido,
as nações não são lugares onde se têm propriedades? Nações são antes de tudo, lugares
onde ocorre a reprodução dos seres humanos, onde nascem crianças e filhos, não só
onde os interesses produzem interesses, e os cidadãos sabem que sobreviver depende
de um processo generacional e, deve ser investido em formação-treinamento. Os
grandes bancos nesse sentido, estabelecem previsões para execução ou para se executar
em momento futuro em que já não se trabalhará mais. Essa situação consiste pela
primeira vez em que há uma União Europeia que se converteu em uma grande unidade
política que não é um império, mas algo como uma sociedade assegurada politicamente
instrumentalizada, uma pura união política. Este é provavelmente o verdadeiro nome da
Europa que foi usado por um tempo, e está cada vez mais claro uma demografia negativa
onde a população é cada vez maior. Nietzsche chamou isto de “o último homem”. É o
que hoje há na Europa nas grandes cidades onde vivem entre 15% e 16% em casas
individuais-apartamentos (estilo single), o mesmo pode ser visto com os carros. Esta é
uma representação demográfica do “último homem” de Nietzsche. A reprodução
especialmente nas camadas médias não passou muito de 1.3 crianças por mulher
(Europa), mas é suficiente para eles se implicassem nessa exigência de processo
generacional. A decisão sobre o vencimento da vida é quando uma civilização falha.
Não se trata aqui mais de socialdemocracia versus liberalismo conservador. Faz
tempo que os melhores pensadores abandonaram tal dicotomia. Trata-se de buscar algo
como o lema: “iniciativistas do mundo, não temam, inventem, criem, cuidem”; uni-vos.
O combate da direita contra a esquerda foi por muito tempo o combate entre o
pesado contra o ligeiro. A esquerda correspondia ao desejo de aligeirar existência, a
direita, o de colocar cargas. É pertinente esta divisão quando nos perguntamos se há
nada mais ligeiro que o capitalismo atual? O capitalismo que propõe aliviar a vida e ocupa
o lugar da antiga esquerda cuja clientela básica a formava de quem sofria uma vida
demasiado dura. Assim se faziam de esquerdas para compartir a vida com aqueles que
não tinham algo fácil. No fundo é muito simples. Não se trata de moral abstrata, mas de
91

ideias concretas de luta e justiça. Porém, aí devemos apelar, para uma internacional de
empresários. Os empresários compartem o destino dos trabalhadores. Desempenham
um trabalho preciso e difícil. Não famoso da nova e frívola classe de líder, mas sim de
quem se compromete com a produção de bens concretos. Esses empresários se reuniram
com o antigo proletariado porque tanto uns como outros sabem que estão contribuindo
para a produção. Existe verdadeiramente uma nova oposição entre produção e
especulação. Para ser conservador, deve-se possuir bens que mereçam ser conservados.
Qualquer colecionador de vinhos sabe que não beberá suas melhores produções e
garrafas. Isso é válido para todas as culturas materiais suja superveniência podemos
deseja para as outras gerações de usuários. Essa é uma definição bastante elegante
convincente de um bom conservadorismo. se nada merece ser preservado, resulta em
vão lutar pelo acesso das massas aos bens das elites.
Podemos sim encontrar mecanismos de incentivo da criação, iniciativa e cuidado
nos mais diversos campos. Trata-se de uma política de solicitação de reconhecimento de
setores e indivíduos por aquilo que esses setores e indivíduos iniciaram, pelo qual se
arriscaram e cuidaram. Uma política de reconhecimento regada por um grande clima
timótico, e não mais meramente erótico. O capitalismo trouxe duas tendências para a
sociedade moderna: a) Gerou o ímpeto para o risco. A ideia da fortuna advinda das
navegações (também chamadas de capitanias) e movimentos primitivos de globalização,
a participação no jogo de sorte e azar que é requisitada a todos. b) Gerou a tendência
para o desarmamento geral, combinação de capitalismo e cristianismo fomentou
prosperidade nos negócios e acordos para a participação de todos na requisição da paz
(do ponto de vista sociopsicológico, é importante reparar no fato de que as épocas pós-
guerras normalmente durarem mais do que a própria guerra). A teologia e a ontologia
são desde o início doutrinas da forma recipiente redonda.11 É só com esse “modelo” da
forma esférica as figuras do reino e do cosmos podem ser pensadas de maneira
insubstituíveis. Essa totalidade de tudo é descrita por uma imagem de uma esfera.
Sloterdijk toma o globo como ponto inicial. Coincidentemente Nicolau de Cusa disse que
“toda teologia está contida no círculo”. “Por mais que os teólogos insistam em considerar
que seu Deus é mais profundo que o Deus dos filósofos, mais profundo que o Deus dos

11
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Bolhas (Microesferologia). Tradução: José Oscar de Almeida Marques. São
Paulo: Estação Liberdade, 2016, p. 61.
92

teólogos é o Deus dos morfologistas” (SLOTERDIJK, 2016, p. 61). Essas ideias de uma
redondez constitutiva e necessária do todo era infalível, e nos davam pistas sobre a
função e o modo de construção das ontologias políticas nos impérios pré-modernos. Não
há nenhum tipo de reino tradicional que não tenha sido um reino esférico, ou seja, suas
fronteiras são baseadas por meios cosmológicos adentrando nela uma imunologia
política. Para Sloterdijk a história do mundo é uma permanente história da guerra dos
sistemas imunológicos. As geometrias militantes. A primeira forma de religião foi forjada
na ideia do logos. Heráclito se dizia a voz do Lógos, que este falava por ele, e Heidegger
insistiu na ideia da linguagem como não sendo utilizada por nós, mas sendo algo do Ser
que se serve de nós. A linguagem é antes a casa do ser, pois ao morar nela o homem
existe (ek-sistiert), à medida que compartilha a verdade do ser, guardando-a. O que
importa, portanto, na definição da humanidade do ser humano enquanto existência (Ek-
sistenz), é que o essencial não é o ser humano, mas o ser como a dimensão do extático
da existência. Depois ele retoma à teologia cristã na ontologia da esfera, até a “tragédia”
morfológica num processo mais moderno de infinitização de Deus e do universo.
Nesse sentido, poderia ser descrito como o componente exotérico do projeto:
Esferas II – Macroesferologia. Ele examina a noção de que culturas mais antigas
imaginaram o mundo principalmente como um círculo infundido pelo espírito. Como a
geometrização do cosmos foi realizada pela primeira vez pelos gregos, depois
reconstruído a geometrização de Deus sob os filósofos neoplatônicos, o que nos dá a
sensação de reabrir um dos capítulos mais empolgantes da história das ideias. De tudo
isso resultou, como que por si só, uma história filosófica da globalização: primeiro o
universo foi globalizado com a ajuda da geometria, depois a terra foi globalizada com a
ajuda do capital.
A primeira globalização a 2500 anos deve ser vista como um processo com a
criação das primeiras grandes visões de mundo. Eram os primeiros matemáticos, os
primeiros filósofos, os primeiros cosmólogos que utilizaram o modelo cosmológico
(geômetras) da esfera para interpretar a realidade do todo. A globalização é o resultado
do compasso para reconstruiu a forma do mundo. Este êxito desencadeia um sentimento
de triunfo nesses primeiros pensadores porque pensam que eles encontraram o truque
de como Deus atua, e a inteligência humana se converte em uma sucursal da fábrica
“matriz” da inteligência divina. Esse entusiasmo põe em curso a primeira ilustração: a
93

Grécia. Onde a progressão desta ideia, os chamados geômetras, os geógrafos antigos, e


posteriormente, os cartógrafos desenvolvem pela primeira vez modelos de esferas
perfeitas para representar a forma do mundo. Poder-se-ia dizer que a primeira
globalização é um impulso dos intelectuais antigos introduzindo os modelos esféricos no
discurso humano para poderem recriar ou produzir uma representação de imagem lógica
e racional da totalidade. Começa a missão de conceber o inconcebível e medir o
incomensurável. Os seres pensantes da filosofia clássica da metafísica, foram os
geômetras do desmedido. Estes utilizaram-se de uma finta ontológica. Supuseram que
havia uma proporcionalidade ou uma extradição na totalidade das próprias relações. O
todo era pensado como se fosse uma figura geométrica – um círculo, numa linguagem
mais moderna, um sistema. Daí em diante, bastava apenas um tipo de habilidade para
“redescobrir” no próprio todo a forma inteligível do círculo ou do sistema.
A primeira globalização é grega e reside na racionalização da estrutura do
mundo pelos antigos cosmólogos, que, pela primeira vez, com seriedade conceitual,
melhor dizendo seriedade morfológica, construíram a totalidade do ente sob a forma
esférica, tendo oferecido essa imagem ordenada à consideração do intelecto. Seria uma
“globalização celeste” feita por filósofos e geômetras. Recordando nosso passado, revela-
se hoje um processo conhecido por globalização. Os gregos a tinham como um tipo de
interpretação filosófica do Universo. Foi nas cosmologias platônicas e dos helenistas mais
tardios que tiveram a ideia de representar a totalidade dos entes pela imagem
estimulante de uma esfera abarcante. A grande esfera se chama cosmos, um especial
objeto que foi referido com o nome de céu, Urano. O nome titânico representava a
impressão de uma representação da qual o mundo possui suas fronteiras finais numa
última abóbada etérea, o caos não podia ser perpetrado nem representado, já que essa
visão poderia ser também um nome de esperança. O céu fora tido como um grande vaso
que englobava as estrelas fixas sem que o medo humano pudesse considera-las em cair.
Em Aristóteles vemos isso, ele considerava o céu como um envelope redondo que tudo
contém, mas por nada era contido. É daí que vem as estruturas da imunologia metafísica,
a ideia de que o fora não existia, não era possível cair para fora do mundo. A forma
redonda foi uma resposta eficaz como sistema de imunidade cósmico. Não, a Terra não
é plana.
94

Em 2500 anos mais tarde, os marinheiros europeus levaram as consequências


práticas desse “exercício intelectual” dos antigos pensadores fabricarem os primeiros
globos terrestres. Um dos mais bonitos até hoje feitos foi adquirido por um comerciante
em Lisboa. Ele voltou com o globo. Essa poderia ser a segunda globalização, uma clara
introdução a uma época da captação da Terra até uma fase máxima de saturação da qual
já estamos cheios desde quase 60 anos. A era de um unilateralismo em ação como
apropriação assimétrica do mundo cujo germe ocorreu em portos, cortes, a vontade de
pagar débitos e nas ambições da Europa. Se como aprendemos nos livros de história
sobre uma “história mundial”, essa conotação precisa ser superada. Se como sabemos a
palavra “história” designa a sucessão de fases desse unilateralismo, então nós, cidadãos
da Terra vivemos em um regime pós-histórico. Como Cristóvão Colombo não havia
voltado da América no mesmo 1492, se vê a imagem correspondente ao estado de
acontecimentos de sua época. Os primeiros marinheiros que deram a volta ao mundo,
demoraram 3 anos até retornarem ao porto de saída próximo à Sevilla. Retornou 1 navio
em cada 5. 18 marinheiros de 280. Os demais haviam falecido na cruzada. Apesar disso,
era a prova de que a terra era redonda (a prova de sua redondez). Carlos V que recebeu
o caderno de bordo de Picasseta que o escondeu. O caderno ficava em um gabinete ou
gaveta fixa ao convés do navio e perto do leme, no qual a bússola é colocada, um registro
completo do navio, incluindo seus diários de bordo e documentação para realizar uma
inspeção e fotocópias. Depois de ler o documento, estava desanimado pelo fato de ter
se dado conta de não pode repetir novamente a experiência. Era uma aventura, um risco,
uma conquista praticamente impossíveis, não uma navegação regular. Tanto para ele
como para seus sucessores, era impossível dominar de verdade a navegação sobre um
planeta completamente inserido em água. Entre outros, Fernão Magalhães e Elcano
foram um dos primeiros a realizar a viagem de circum-navegação pelo planeta. Sloterdijk
toma o conceito de "globalização" em seu núcleo etimológico com maior seriedade do
que o que ocorre nas discussões públicas. Juntamente com os americanos, os alemães
têm a vantagem de usar o conceito certo nesta circunstância, a saber: globalização, ao
contrário dos franceses, que falam de mundialização, e isso é um conceito falso. Na
verdade, é o globo como tal. Mas o que é um globo? Em princípio, um globo nada mais é
do que uma construção matemática. O globo certamente não é uma patente alemã,
embora a primeira cópia preservada do globo, como você deve saber, venha das mãos
95

dos alemães. É no Museu Nacional alemão de Nuremberg: um globo que no ano decisivo
de 1492 foi construído de acordo com modelos portugueses pelo comerciante de
Nuremberg, Martin Behaim. Mostra o contorno pré-colombiana dos continentes, por isso
tem o retrato velho mundo ptolomaica três continentes, mas corretamente, ou seja, em
um planeta redondo. Para Aristóteles e seus sucessores, o centro físico do mundo era um
lugar funesto, uma cloaca cósmica, um local de movimentos finitos e morte, um local dos
cemitérios sublunares. Não é uma causalidade que os cosmógrafos católicos localizaram
o seu inferno no centro da Terra, no centro absoluto de tudo. A antiga imagem europeia
do mundo tinha uma visão satanocêntrica ou infernocêntrica e representa, um oposto a
qualquer construção central narcísica. É por isso que se pode dizer que Behaim estava
certo como Colombo. Descobrir a América e representar o globo são, pelo seu significado,
a mesma ação em dois meios diferentes. Entre os pioneiros da globalização terrestre
inicial, destaca-se o grupo de fornecedores de especiarias. Esses comerciantes à distância
são aqueles que acreditavam na capacidade de desenvolvimento do paladar europeu e
que montaram seus negócios com a convicção de que a modernização começa no palato.
O espírito da utopia e do empreendedorismo são, até agora, um e o mesmo, pois ambos
são fundações orais, ambos servem ao mesmo apetite que mostra claramente sua
insaciabilidade. O próprio Magalhães morreu nas Filipinas em um confronto
desnecessário. Vários navios foram perdidos de sua pequena frota devido a uma
tempestade e os amotinados, e apenas uma de suas fragatas que partiram, a pequena
Victoria, retornou à Espanha em setembro de 1522 com dezoito marinheiros quase
morrendo de fome a bordo. Ele chegou na cidade portuária de Sanlúcar de Barrameda e
confirmada por sua mera troca os terríveis acontecimentos em que todos modernidade
se baseia por um lado, que a Terra pode ser cercado em uma direção, o que
consequentemente oceanos formam um pano de fundo, estão ligados, e são navegáveis
globalmente, e também todo o planeta é rodeado por uma atmosfera que pode ser
respirado pelos navegadores europeus (que esta não era tão evidente antes de
experimentar, como mostrado em consideração uma retrospectiva dos mesmos). O que
os retornados da viagem de Magalhães trouxeram com eles foi uma indicação de que não
podia mais ser ignorado, unidade atmosférica de área de terra e sistema de tanto vento
e do tempo, em alguma medida confiável. Capital globalizado é o dinheiro que, para ser
lucrativo, precisa girar em torno de toda a Terra. Essa observação já reflete uma verdade
96

do início do século XVI. É difícil superestimar a importância desse fato. Neste contexto,
uma história da natureza caótica da globalização precoce precisa ser contada, mas
também é apropriado para refutar a tese de que é muitas se ouve: que a economia
mundial, só nos últimos vinte anos, entrou para o redemoinho de movimentos
especulativos de dinheiro. Estamos certos de que é antes a transposição das práticas e
mentalidades europeias sobre a ação de risco generalizada que produz a energia ofensiva
eficaz e surpreendente, quase misteriosa, das primeiras gerações de descobridores. O
gosto pelo risco de que dão mostras os novos atores globais são animados, em última
análise, pela necessidade de realizar lucros para apagar as dívidas associadas aos créditos
de investimento. Os europeus de 1500 não são mais cruéis, gananciosos, nem mais
capazes do que qualquer linhagem anterior a eles. Seu diferencial é que eles têm mais
gosto pelo risco, têm mais desejo de conceder crédito, do lado dos credores, e estão mais
dependentes do crédito, do lado dos devedores, o que corresponde a uma mudança ao
paradigma econômico, que passa da exploração antiga e medieval dos recursos a
economias fundadas no investimento. Com este tipo de ação econômica, a ideia dos juros
a pagar dentro do prazo é convertida em assunções de risco práticas e em invenções
técnicas. A empresa é a poesia do dinheiro. Tal como a necessidade aguça o engenho, o
crédito estimula a empresa. Se o exterior é também o futuro e o futuro poder ser
apresentado após a “invenção do mundo” como espaço de onde provêm o saque, a
riqueza e a bem-aventurança, os primeiros navegadores, sábios, príncipes, viajantes do
mundo e os primeiros comerciantes desencadearam essa tormenta de investimentos em
direção ao desconhecido, o desenvolvimento posterior do capitalismo informático atual.
A globalização nesse sentido mais cru é a futurização geral do comércio estatal,
empresarial e epistêmico. Ela é a submissão do globo à forma de rendimento. O lucro
significa algum dinheiro que inicialmente alguém arriscou e que regressou à sua conta
original após ter dado voltas aos oceanos. Hoje o dinheiro quer girar mais rápido que a
própria terra. A avidez por lucro tem consequência aceleracionistas evidentes. A
globalização terrestre é uma avidez para um cunho de espírito de empresa. O globo é a
mesa de jogo em que os investidores-aventureiros põem as suas apostas. O surgimento
do globo, a rapidez com que se impôs e a sua regular atualização simbolizavam o início
da era dos global players, em cujo mundo se veem naufragar muitos barcos, mas onde o
sol não se põe. Esse negócio internacional inaugurou a natureza eminentemente
97

especulativa dos processos de globalização capitalista, sob os auspícios do risco e do


oportunismo. Os capitais também se libertaram dos países. São jogadores que pegam um
globo nas mãos para superar seus concorrentes em tele-ver, tele-especular e tele-ganhar.
O que é de ontem é incessantemente desatualizado pela sua mobilidade, a partir do
próprio gesto da desatualização é que se vê lançada uma nova atualidade. Uma
transitoriedade expulsa a outra.
O império espanhol de ultramar foi construído com empréstimos de bancos
flamengos e genoveses cujos donos, faziam girar o mundo para construir os caminhos de
ida e de volta dos juros. Isso não lembra os atuais fluxos globais? Os europeus foram tidos
como os descobridores dos descobrimentos. Descobrimentos passaram a significar
domínio de rotas e colônias que permitissem a patrocinadores reais ou burgueses realizar
lucros sob forma de comércio, tributos e butins. Novos mapas e conhecimentos
oceânicos eram protegidos como segredos de Estado. A coroa portuguesa proibia sua
divulgação sob pena de morte. A parelha globalização-descobrimento virou sinônimo de
investimento e risco para reis e empresários que quisessem tentar fortuna. A sociedade
capitalista em formação já se dava conta de que tinha de tomar crédito, planejar,
inventar, arriscar, partilhar resultados e amargar quebras. Acabava, então, a ideia da
dívida como mancha moral, até porque, sem ela, não há capitalismo. São jogadores que
pegam num globo que bateram os seus concorrentes na tele-visão, tele-especulação e
no tele-lucro. Uma inclinação para o lema imperial Plus oulture (plus ultra), onde frotas
cruzavam os oceanos, inspirou a ideia de que não se quer ver e ir apenas longe, mas
sempre mais longe. A divisa imperial Plus Ultra, sob a qual a frota de Carlos V cruzava os
oceanos, estimulava um pensar que não somente de mirar à distância, mas mirar sempre
mais adiante. Por isso o princípio televisão não pertence somente a era das imagens que
se movem, estava dado desde que previsão e visão ao longe ou ao distanciamento, se
serviram o medium globo. Um meio que tem como princípio o aperfeiçoamento
constante. As imagens móveis do século XX pertenceram às imagens emendáveis na
grande época de mapas e globos. É impossível pensar em Joseph Conrad sem pensar no
mar, nas embarcações e suas viagens, no seu ambiente por excelência. Jean Echenoz foi
muito habilidoso, em Ravel, ao fazer seu protagonista ler justamente um romance de
Conrad enquanto atravessava o oceano de navio, assim como fez Thomas Mann em 1934
com o Dom Quixote. Também em outro polonês: a viagem de Gombrowicz à Argentina
98

em 1939, a bordo do Chrobry, experiência que está em seu romance de 1953, Trans-
Atlantyk. E Roger Caillois, que faz no mesmo ano o mesmo trajeto, mas partindo de
Cherbourg. Um pouco antes, em 1918, Marcel Duchamp também pegava um navio em
direção a Buenos Aires, o Crofton Hall. Borges, que nessa época morava em Genebra,
escreve o seguinte em seu Ensaio autobiográfico: "Em consequência da guerra, não
fizemos outras viagens, exceto aquela à Itália e excursões dentro da Suíça. Em pouco
tempo, desafiando os submarinos alemães e em companhia de apenas quatro ou cinco
passageiros, minha avó inglesa juntou-se a nós".
Não demorou muito para que o princípio televisão dominasse a época com suas
imagens animadas emergentes. Este era um dado esperado já que previsão e a visão à
distância do empresário se serviam desse meio que era o globo, um meio que por si só,
já necessitava de atualizações constantes. As imagens animadas do século XX são
precedidas pelas imagens renováveis da grande época do globo e dos mapas. As nações
integradas nesse tipo de economia após a Revolução Americana se reestruturaram cada
vez mais no sentido da democracia, tal deu-se depois de terem descoberto que os reis,
nos conselhos de administração desses coletivos de investimento político, passaram por
fatores improdutivos. A história recente é marca de um desemprego estrutural e de longa
duração dos monarcas. Desde o início, a aventura oceânica mergulhou em seus atores
numa competição pelas oportunidades ocultas em mercados longínquos e opacos. Já
incidia a famosa frase de Cecil Rhodes: “expansão é tudo”.

Plus ultra: Carlos VI entre as colunas de Hércules.

Spengler fez desta frase o axioma das épocas das civilizações que precederam
a morte das culturas altamente civilizadas. Ele diz em seu A Decadência do Ocidente que
99

a expansão é uma fatalidade, algo de demoníaco e temeroso, que se apodera dos homens
tardios da era mundial e o esgota. Aquilo a que os economistas, como Marx, chamaram
de acumulação primitiva era, frequentemente, sem dúvida, como o exemplo referido,
mais uma acumulação de títulos de propriedade, de opções e de reivindicações de
usufruto do que a gestão de instalações de produção com base no capital investido. O
globo moderno teve sucesso como relógio das oportunidades para uma sociedade
composta por empresários das longas distâncias e tomadores de riscos que entreviam
assim sua riqueza de amanhã nas contas dos outros mundos. Um relógio que mostrava
as horas do que ainda não existe, esses agentes da época moderna foram os espíritos
conquistadores, os mercados de especiarias, os pesquisadores de ouro, e os futuros
partidários do realismo político, que ouviam a hora a soar para as suas empresas, seus
empreendimentos e os seus países. O capitalismo não só cria aceleração, como também
o luxo, o refinamento, o toque final para uma situação global de conforto. Vê-se que a
noção de “descobrimento”, do ponto de vista epistemológico e político, foi o termo
dominante da época moderna, designava uma entidade autônoma, mas um caso
particular do fenômeno do investimento. O investimento por seu turno, é um caso
específico do comércio de risco. Quando os esquemas do comércio de risco se propagam
universalmente, atividades como: contrair créditos, investir, planificar, inventar, apostar,
arranjar seguros, repartir lucros, constituir reservas, surgem homens que querem criar
sua própria sorte e seu próprio futuro com o jogo de oportunidades, planejamento,
expectativas, acordos, promessas, que já não desejariam mais as receber apenas das
mãos de Deus. As evoluções que conduzem a ideias globais metafísicas são inseparáveis
do expansionismo dos povos e impérios primitivos e não são concebíveis sem um
aumento da transmissão de capacidades e conhecimentos. Sem uma penetração do
mundo de forma intensificada não há conceitos alargados de mundo. São os homens que
na nova economia da propriedade, monetária, e a atual, adquirem a experiência de que
os danos nos fazem inteligentes, mas as dívidas ainda mais. O personagem chave da era
moderna é o devedor-produtor (o empresário), que flexibiliza seus procedimentos
comerciais, as suas opiniões e a sua própria pessoa para utilizar todos os meios
autorizados e não autorizados, comprovados e não comprovados, alcançar lucros que os
permitirão reembolsar em tempo hábil os créditos que contraiu. Esses devedores-
produtores conferem à ideia de dívida contraída o seu significado inovador da época
100

moderna, um impulso moral faz uma relação economicamente estimulante, significante,


extasiante, gratificante. Não há capitalismo sem positivação das dívidas. São os
devedores-produtores que começaram a fazer a roda girar da permanente circulação do
dinheiro na “época burguesa”. A palavra burguesia refere-se ao homem-tipo que procura
a riqueza, não na amplificação do espaço interior, no empanturramento com conteúdo
que proporcionam o próprio ataviamento contínuo. O fato central da modernidade não
é que a Terra gira em torno do Sol, mas que o dinheiro gira ao redor da Terra. Um
princípio superior da revolução espacial da época moderna como um retorno do
investimento que corre a par do princípio do movimento do capital. O dinheiro que é
posto como bet, como um risco deve ser restituído à conta de partida, se possível em
uma quantia aumentada, uma fórmula mágica que exige o giro da Terra. Logo, o capital
do negócio é capital universal a partir do momento em que a Terra tem que ser uma
roleta para ser explorada. A loucura expansionista vira uma razão de lucro. A tomada de
uma posição de iniciativa, empreendedora, móbil, expansiva. O desencadeamento de
“energias visionárias” permite as aventuras náuticas e desses protocolos extáticos
surgem livros e diários de bordo. Entre os teóricos da situação marítima não é acaso
encontrarmos, por exemplo, Montaigne, que apreciava o Atlântico a partir de Bordéus,
ou mesmo Bacon, vemos ainda Plínio no pré-capitalismo, que escreveu uma história do
vento. Do outro lado, com um pensador continental, vemos William James contribuindo
para a fragmentação e liquefação da situação. Ele foi, a seu modo, assim como Nietzsche
e Emerson, um espírito multi-empírico, aberto ao mundo, um indivíduo que não se
destacou somente por suas metáforas náuticas Não podemos deixar de relembrar um
clássico da literatura mundial, o início de Moby Dick de Melville, em que se descreve um
fim de tarde de Nova Iorque, em que alguns homens estavam utilizando suas horas livres
para darem um passeio e algumas voltas pelo porto e observando o mar com os olhos
cerrados, olhavam o horizonte até onde seus olhos pudessem alcançar, como se algo
pudesse ser descoberto no exterior. Do século XVIII em diante a aventura marítima havia
sido normalizada paulatinamente. Os que se dirigiam para o mar, utilizavam trajes,
encarnavam espírito de investigador, descobridor, conquistador cognitivo, escritor de
viagens. Todas essas pessoas carregavam consigo uma proteção invisível, elas delineavam
os contornos de uma imunidade imaginária de alguém que desempenha o papel de um
cronista ou colecionador.
101

Diz Sloterdijk (2007, p. 161):

A globalização atual é consequência do movimento do capital especulativo


que, sob a forma de notícias, gira à volta da Terra à velocidade da luz. Por isso,
uma globalização deste tipo equivale a uma espécie de destruição do espaço.
O conceito atual de globalização tem, portanto, conotações ameaçadoras, por
muito que os pregadores do neoliberalismo a apresentam como uma grande
oportunidade para a humanidade. No fundo, ignoram os componentes mais
precários e enaltecem apenas as tendências que apontam para a condensação
do mundo e para as expectativas de lucro. Porém, não há dúvida que na sua
acepção atual o conceito mostra que estamos implicados num processo de
destruição de distâncias. Tudo isso leva-nos a ser arrastados por situações que
se desenrolam muito longe de nós, mas que nos afetam como se estivessem
muito próximas de nós, de tal modo que o espaço realmente discreto,
emancipador, separador, o espaço que se expande verdadeiramente, vai
sendo progressivamente destruído. No âmbito do nosso espaço cultural, a
maioria das pessoas sente muito distintamente a má notícia do acaso do
tempo, consequência da velocidade e da imposição absoluta do tempo.

Globo terráqueo, ca, 1688. Biblioteca do Convento da Ordem Beneditina, Melk.


Vincenzo Coronelli.
102

O mais antigo globo sobrevivente da Terra, foi construído por Martin Behaim
em 1492. Erdapfel (que significa “terra maçã” ou “terra batida” em alemão) era feito de
uma bola de linho, laminado e reforçado com madeira antes de ser coberto por um
mapa pintado por Georg Glockendon. Está repleto de imprecisões, deixando de fora as
Américas e ampliando as ilhas asiáticas e o Japão. Pode retratar as ilhas do Caribe sob o
nome de Saint Brendan's Island, uma criação mítica.

Algumas observações muito gerais sobre as consequências sócio-psicológicas da


globalização, podem nos mostrar, por exemplo, em ondas de migrantes. É, na verdade,
uma crise, uma crise socio-psicológica e uma crise de estilo de vida, de certa
profundidade. Pois não é fácil transformar seres humanos nacionais em seres humanos
pós-nacionais. Nos seres humanos "nacionais", entende-se um caráter social que emergiu
na Europa nos últimos duzentos anos e com o qual a vida nas formas do Estado nacional
se tornou uma segunda natureza. São pessoas que experimentam seu país e sua nação
como um contêiner de muros fortes, na maioria das vezes monolíngues, autóctones, de
pessoas que se sentem em casa em sua terra natal (a pátria) e comprometidas com um
modo de vida local e que não existe, exceto lá, e em nenhum outro lugar. Quando
personagens deste tipo são repentinamente requisitados, durante a noite, para atender
requerentes de asilo, que dinamitaram seu contêiner, como uma parte consequente da
103

globalização, devemos respeitar que, em princípio, responder com alguma hesitação. O


que estamos vivendo hoje é uma dramática crise de reforma. Pois o que a chamada
globalização faz com as pessoas nos estados-nação e, no final, reorientar-nos de uma
sociedade de paredes fortes, pode-se dizer também de uma sociedade de contêineres
fechados, para um modo de vida que pode ser caracterizado expressão: sociedades de
paredes estreitas ou “paredes finas”. Em outras palavras, entramos numa era em que
fronteiras fracas e paredes permeáveis se tornarão a característica definidora dos
sistemas sociais. Vemos como partes da população respondem a essa questão delicada
de uma maneira que pode ser melhor descrita do ponto de vista alergológico ou
imunológico. Tais reações são para ser levado a sério porque numa frente ampla do que
é hoje é reprogramar o comportamento humano imune, de orientação para a proteção
do estado abrangente para a orientação para autoproteção e autocuidado. Enquanto os
seres humanos no estado protetivo tradicional esperavam por suas contribuições de
ordem e assistência, é realista para o futuro apostar progressivamente em suas próprias
contribuições para a auto-imunização. Há cada vez mais pessoas que entendem que
ninguém vai fazer por elas o que elas não conseguem. Pode-se prever que problemas
imunológicos no sentido mais amplo da palavra serão tratados no futuro menos no nível
coletivo do que no individual. É isso que enche a sociedade atual de grande desconforto
em relação às suas condições futuras. No que diz respeito à esfera política como um todo,
o melhor cumprimento de suas tarefas nas novas condições do mundo de paredes finas
obter mais eles se distanciarem das exigências excessivas sobre ele projetou uma
sociedade utópica agitado. A superabundância, o desperdício, o luxo, conquistaram os
direitos de cidadania. Os seres humanos das nações ricas consideram o bem-estar e suas
premissas técnicas como conquistas que não são mais passíveis de abandono. Sloterdijk
ao fazer essa narrativa toma o partido de um imunologista teórico (também um
fenomenólogo). Esta é a filosofia contemporânea. Estamos pensando em como os seres
humanos projetam a arquitetura da segurança de sua existência, sejam elas psíquicas,
materiais ou simbólicas. Como você mora? Como você evita futuras coincidências e
catástrofes? Como você se defende? Como se integra em suas culturas, entendidas como
comunidades de luta? É uma mudança de paradigma: da filosofia para uma imunologia
geral.
104

Em nosso planeta as grandes linhas de ruptura são as linhas de necessidades


vitais. Teríamos que pintar mapas que ilustrem o grau de consentimento em todo o
mundo. Exceto pelo Sul, o Ocidente poderia ser considerado uma única estufa de
consentimento. Nele os seres humanos pos-heróicos são criados. É um modo de vida que
se depara com culturas em que prevalece uma vida muito mais dura, culturas de escassez
em que o humor existencial é completamente diferente. Enquanto pelo menos uma troca
climática não for tentada, em culturas com um clima de vida severo, mentalidades que
apreciam os ataques contra a estufa dos mimados estão sendo maciçamente procriadas.
Temos duas catástrofes climáticas que planejam na Terra: a atmosfera planetária e a
atmosfera moral. Se você não é uma nova técnica para aliviar a desigualdade entre ricos
e pobres uma espécie de efeito moral de monção, que é aquecida em uma extremidade,
enquanto em outros os juncos Wellness-, o século XXI será certamente pior do que o
vigésimo século. No século XXI, teremos o surgimento de uma narrativa em que as
“sociedades”, Estados, indivíduos, comunidades e as políticas terão que ter em mente as
futuras gerações. No sentido de que a ideia de respiração, gases, proteção de raios,
aquecimento, sistemas de vida, energias renováveis, etc. A unidade Life-Support, os
sistemas de comunicação, as instalações de navegação, os suportes de abastecimento de
energia e os laboratórios. A todos eles deveriam ser tratados como órgãos constitucionais
e, analogamente aos direitos humanos, deveriam colocá-los debaixo de proteção especial
do direito espacial mediante uma declaração do direito das coisas e dos sistemas. Sobre
esse pano de fundo fica claro em que sentido pode se entender a ilha habitada como
protótipo ou modelo de mundo. Se pode falar da existência de um mundo
suficientemente completo quando se cumprem condições mínimas de sustento da vida.
Life-Support significa exatamente isto: satisfazer a lista de condições debaixo das quais
um mundo de vida humano pode ser mantido temporalmente em condições de
funcionamento como ilha absoluta. Se a Terra é uma nave espacial, sua tripulação deve
se mostrar, antes de tudo, interessada em mantenimento de condições de vida no
interior deste veículo. O controle de (LLS) há a manutenção das atmosferas que se
transformam no primeiro critério da arte de pilotar. Devemos ter em mente o seguinte:
neste grande veículo não caem máscaras de oxigênio automaticamente do teto das
cabines no caso de o ar se fizer escasso. Também seria absurdo considerar que
mensagens de luz estariam nos apontando para as saídas de emergência – a nave espacial
105

Terra não possui saída, nem em casos normais, nem nos emergenciais. Essas placas
luminosas merecem atenção ou são apenas uma suave hipnose para passageiros com
medo de voar? O medo dos passageiros a bordo da Terra precisa ser mitigado por meios
mais concretos a atualizados. Para se tratar disso são precisos meios e procedimentos
cognitivos e técnicos revolucionários. Essa aprendizagem didática catastrofista à própria
custa identifica-se com o ato que temos à nossa frente no drama da história do gênero
humano. Dado que a humanidade percorre o caminho para o que nunca houve como um
aluno sem professor, teria de ensinar a si próprio aquilo não pode aprender com mais
ninguém. Se a didática da catástrofe projeta uma luz que esgana o Iluminismo, então
poderíamos dizer que, está em jogo uma agonia da verdade. Se como se diz hoje que
catástrofes “revelam alguma coisa” apenas nos pode tocar de modo sugestivo porque
como se sabe, associamos verdade com revelação, em grego, apocalipse.

Raio-x de uma boca humana.

Desde que a verdade, na medida em que “aparece”, é concebida como vir à luz
ou como estar-patente. Assim, qualquer forma de iluminismo termina um drama da luz
ou da iluminação. Sem esse elemento fotológico, não saberíamos o que significa o saber,
nem o conhecimento como lado luminoso das coisas, já que para nós, homens modernos,
a possibilidade de “conhecimento da verdade” está ligada à passagem para a luz,
desvelamento, descobrimento, de coisas anteriormente escuras. Entretanto, esse pacto
da racionalidade ocidental está cada dia que passa em extinção, desde que nós podemos
empregar que aquilo que traz a luz como sendo o que traz a morte. As metáforas para o
bem e para o mal ganharam contornos históricos. Na perspectiva fotológica, iluminação
106

natural ou artificial de corpos sólidos, sua reflexão autárquica que chegam à visibilidade,
transformação final dos corpos em luz – radioscopia ativa e invasiva dos corpos
(ressonâncias e raios-x). Mais uma vez metáforas medicinais e biológicas poderiam ser
associadas com militarismo e armas nucleares. Corpo em objeto, objetos para serem
iluminados, atravessados por luz ou transformados em luz. No Iluminismo ainda se tinha
um sentido de estádio médio (analítico) da lógica radioscópica. Com a física nuclear
moderna atingiu-se a transformação radical da matéria em luz. Luzes que quando se
acendem podem apagar toda uma espécie. Através do homem ocorrem processos de
explosão como guerra mundial, exploração total da terra e do vivente em áreas de
produção, poder, comércio, bens e consumo. Entra a questão fundamental da técnica se
olharmos mais atentamente a fenomenologia da política de morte com um olhar para
um relâmpago de destruição. Foi Jaspers na sua obra A Bomba Atômica e o Futuro do
Homem que interpretou de maneira mais profunda os eventos e acontecimentos
históricos do seu tempo, esse tempo em que os homens se converteram em lordes do
fogo nuclear, era evidente que ele compreendia a questão do Ser não podia, que ela não
podia ser separada da questão do poder e da técnica. A ruptura metafísica com o mundo
“superficial” da manifestação abrangeu, primeiro, os órgãos cognitivos da percepção
(para garantir o efeito de ordem), estes deviam se espiritualizar e se retirar da
perturbação do que é o presente e disponível. Esse foi o primeiro passo dado para um
“iluminismo” que conduz toda uma cultura da transparência, na qual todo o existente é
transportado do estado de iluminação ou de sombreamento natural para o da
translucidação lógica (etérea poderia funcionar aqui?). A princípio não sabemos bem se
estamos a falar de Iluminismo ou de misticismo. Por regra geral, entendemos o
Iluminismo ou pensamento experimental a contemplação de coisas claras ou auto-
evidentes, a apreensão daquilo que alguém vê por meio de descrições publicamente
acessíveis. Quando um primeiro olhar ou uma primeira visão não é suficientemente
profunda, descobrimos por onde devemos contornar e penetrar nas coisas e no seu
interior é então exposta à luz. Com isso, se tornou um gesto prático e típico fundamental
no Iluminismo, o de trazer o oculto para a luz do dia. Realizar clarificação,
desocultamento, uma época das imagens de mundo. Não vemos máquinas e dispositivos
humanos, especialmente os de captura, com luzes, lasers, sinais? E a metafísica da luz
como teologia não era com base na ideia de revelação? As grandes culturas sempre não
107

falaram sobre luzes? Astros e estrelas que brilham? Eclesiastes diz em uma passagem que
“O louco muda como a lua, o sábio é estável como o sol”, quis demonstrar que todos os
homens são loucos, e que o título de sábio pertence somente a Deus. Pela lua, os
intérpretes entendem a natureza humana (especialmente as mulheres, não usamos a
expressão “aquela pessoa é de lua” ao acreditar em diversas fases? Algo como mudanças
de humor constantes?), e, pelo sol, Deus, que é a fonte de toa a luz. Tudo o que se chama
matéria é definido por opor resistência à luz. Se a luz tem uma pura capacidade de
propagação, então só podemos tomar a matéria em consideração como um princípio de
obstáculo. Aqueles que pensam e se pronunciam contra os obstáculos têm de começar a
fazer sua eliminação. O chamado Iluminismo da era moderna também quis apresentar-
se como luta da luminosidade contra a obscuridade, uma constituição ingênua da
metafísica antiga da luz (João 8:12). É muito importante entender o conceito esférico de
um modo que indica uma tensão entre abertura e impenetrabilidade, a proximidade e a
impenetrabilidade estão relacionadas, pois só desta maneira se compreende qual é a
disposição falhada do idealismo, em outros termos, o fato de ter sempre associado
erroneamente a proximidade com a transparência e a distância com a opacidade.
Heidegger fez uma proposto de modo semelhante, mas com um aspecto
subversivo. Ele não só nos instiga a pensar e contemplar o que se revela à luz, como a
refletir no encontro entre a luz e as coisas, ou seja, nos convida a meditar sobre a clareira.
A clareira, é, portanto, um clarão que forja o mundo, mas quem o fixar diretamente cega.
Não é possível olhar fixamente nem para o sol nem para a morte, essas são as palavras
de um texto famoso de La Rochenfoucauld, na visão de Heidegger, tão pouco seria
possível fixar o homem ou a clareira. O humano seria algo que se sabe que se tem, já o
humanismo, um fundamentalismo de nossa cultura, funciona como um tipo de religião
política do homem ocidental globalizado como em uma atitude que deveria ser copiada
e imitada por outras culturas. Tem uma visão eminentemente edificante de si mesma,
hoje já rachada. Heidegger procurava fundar uma espécie de religião anônima, uma
religião da clareira. Quando ele mostra que o homem tem um espaço do Ente que se
coloca em geral a questão do Ser, Heidegger converte-se em um ontologista de uma
inospitalidade do homem na sua própria casa. Quando o homem se define como aquilo
que é, o faz de modo convencional, em termos de animal racional, limita-se em relacionar
dois atributos (é alguma coisa) com que está aparentemente familiarizado. Imagina saber
108

de si, por saber o que são os animais e crê entender o que é a ratio. Acredita ter adquirido
uma visão do assunto e sente-se em casa.
A tecnologia não é neutra. Ela é eminentemente capitalista. Talvez parece ser
sensato diz quer que as religiões, tal como as teorias e obras de arte, se tornaram, no
século XX, bens comerciais, se não for o caso de diz quer que são prestações de serviços
obrigadas a aceitar as condições gerais do mercado. Karl Mannheim chamou de “o influxo
da concorrência no domínio espiritual”. Podemos dizer que lidamos com produtos
forçosamente acomodados às expectativas de seus clientes. Teologias poderiam ser
grandes programas editoriais. A fé na percepção desinteressada das ciências naturais
modernas, ocorrida especialmente com os acontecimentos de Hiroshima e Nagasaki. A
até então rainha das ciências, a Física, perdeu sua inocência e foi relegada para o tumulto
das lutas de titãs. O filósofo Carl Friedrich von Weizsäcker, participou o desenvolvimento
fracassado da “bomba alemã” ao cunhar a fórmula “ciência e responsabilidade”. Com
tanto, não só se formulou uma máxima de cognição ética para as ciências da natureza na
civilização tecnológica, como também proporcionou abordagens à inesgotável de
redefinir a configuração esoterismo científico e do exoterismo político. A infiltração da
empresa acadêmica do discurso pela sociologia do saber, que escancarou a aparência de
teoria objetiva, demonstrando que todos os discursos habituais estão ligados a padrões
de sucesso acadêmico e aos jogos de linguagem das maiorias no poder. Com a
epistemologia e sociologia da ciência temos: Kuhn, Foucault, Latour, etc. Max Scheler, foi
quem no início do século XX, foi um dos primeiros a fazer uma síntese deste tipo de
investigação em seus estudos sobre sociologia do saber. Neles revelou que as ideias estão
indissociavelmente ligadas à interesse. Dessa forma teríamos: saber de formação, saber
de salvação e saber de dominação. Os três grandes complexos antropologicamente
possíveis de dedução, de interesses na formação, na salvação e na dominação. O
“interesse” palavra que funcionava como uma senha educada das paixões desde o século
XVII, consumou em uma catástrofe da teoria pura (poderíamos botar Kelsen na conta?).
Com a teoria dos paradigmas de Thomas Kuhn e a teoria do discurso de Foucault, vemos
que até hoje não fica claro como devemos ler estas explorações como etnologias
imparciais do campo teórico ou como denúncias críticas do conformismo discursivo. Em
caso de etnologia, ela seria um ótimo corretivo da sociologia.
109

Algo como a última luta da moralidade universal será encenada. A ideia de


imunologia se apresenta como uma catástrofe da cultura tradicional e de sua moral
holística. Sloterdijk diria “making the immun systems explicit”. A questão é se teremos
sucesso ou não definir pelo menos um princípio do bem-estar de efeito estufa global ou,
pelo contrário, vamos ter que se acostumar, de uma forma mais aguda, que a
desigualdade tem a última palavra como o rico, graças aos avanços da medicina e da
genética, são os donos do potencial antropológica felizes, com o resto da humanidade
excluída. Essa disputa ocorre dentro do Ocidente, porque é a cena da ambição
universalista. Não importa se isso vai ser chamado de fascismo ou não, todos esses
termos históricos acabam perdendo seu significado, o que é provavelmente uma
plutocracia (seleção anti-biológica), no sentido de que os ricos são os verdadeiros seres
humanos.

Francis Bacon. Gravura da capa do Instauratio Magna. Londres (1620).

A quebra das cosmologias clássicas leva a formas de vida individualistas. O globo


celeste representava uma contemplação divina do mundo para o uso doméstico do
homem. Mas com a quebra do firmamento no século XVI, a cosmografia clássica foi
condenada ao declínio. O globo celeste tinha data marcada para sumir, a Terra tinha
110

ficado de ficar só e os homens tiveram de se ajustar psicossemanticamente a uam


situação de isolamento cosmológico. de O individualismo é o reino dos seguros privados,
no lugar dos seguros divinos que compartilhávamos no passado. O cosmos não é mais
nossa casa. Os teólogos se vão e chegam os desenhadores.12 Nas esferas abrangentes
descobriram os antigos uma geometria da segurança, nesta desabrochava, como
indicado, o forte movens das produções metafísicas ou totalistas das imagens do mundo.
Numa madrugada que durou séculos, a Terra nasceu como único e real globo, que
constituía a base da globalidade das condições de vida, enquanto quase tudo o resto que
até aí passava por céu em parceria, cheio de sentido, se esvaziava. Este devir fatal da
Terra suscitado pela prática humana, com a concomitante desrealização das
anteriormente vitais esferas luminosas, não nos propicia o mero pano de fundo dos
acontecimentos a que hoje em dia chamamos globalização; ele é o próprio drama da
globalização. Tem o cerne na observação de que as condições da imunidade humana se
transformam radicalmente a partir da terra descoberta, reticulada, singularizada. Essa
situação desencadeou o que chamados de “globalização”, tirou os homens do
imobilismo. “A desrealização é o resultado psicossocial da “autorrealização” sistemática,
na qual o conceito antiquado de “realidade” se contrai logicamente até a função residual
do ainda-não-mobilizado” (SLOTERDIJK, 2002, p. 50). Passamos a expandir a
circunferência da esfera-globo por meios terrestre, aquáticos e aéreos. Eles tomaram
conta de que a maior parte do planeta era superfície aquática, essa foi talvez um dos
maiores serviços prestados à humanidade, os europeus que estabeleceram uma
navegação mundial regular. Vislumbramos onde nos poderia levar o total auto
encarceramento estratégico, informático e demográfica à escala planetária. Eles fizeram
navegável a totalidade da superfície marinha com meios bastante acessíveis e simples
numa acessibilidade total do planeta. Este segundo feito global deixou intacto o tamanho
da terra. A Europa é a parte do mundo, uma parte que não se limitou à sua geografia,
mas que exploraram o mundo, e que se dispersou e influiu sobre todo o globo.
Arendt (2015, p. 310):

É verdade que nada poderia ter sido mais alheio ao propósito dos exploradores
e circunavegadores do início da era moderna que esse processo de

12
SLOTERDIJK. Peter. Esferas II: Globos (Macroesferología). Traducción de Isidoro Reguera. Editorial Siruela,
2004a, p. 509.
111

avizinhamento; eles se fizeram ao mar para ampliar a Terra, não para reduzi-
la a uma bola; e, quando atenderam ao chamado do distante, não tinham
intenção alguma de abolir a distância. Somente a sabedoria da retrospecção
vê o óbvio: nada que possa ser medido pode permanecer imenso; toda
medição reúne pontos distantes e, portanto, estabelece proximidade onde
antes predominava a distância. Os mapas e as cartas de navegação das
primeiras etapas da era moderna anteciparam-se às invenções técnicas
mediante as quais todo o espaço terrestre se tornou pequeno e ao alcance da
mão. Antes do encolhimento do espaço e da abolição da distância por meio de
ferrovias, navios a vapor e aviões, deu-se o encolhimento infinitamente maior
e mais eficaz resultante da capacidade perquiridora da mente humana, cujo
uso de números, símbolos e modelos pode condensar e ajustar a escala da
distância física da Terra à medida do sentido natural e da compreensão do
corpo humano. Antes que soubéssemos como contornar a Terra, como
circunscrever em dias e horas a esfera da morada humana, já havíamos trazido
o globo à nossa sala de estar, para tocá-lo com as mãos e girá-lo ante nossos
olhos.

A Europa conservou a atitude própria dos romanos de saber que chegaram


deveras tarde, chegaram “depois de outros”, mas de outros que podem assimilar sua
superioridade. Os romanos são na história os que tiveram valor de aceitar que só eram
“novos ricos”, gente com sorte com a vitória contra os gregos e judeus. Souberam tomar
deles o que havia de melhor. A cultura grega e a religião de Israel que é o cristianismo.
Por isso pode-se chama “romana” a atitude do que sabe pôr em cima, uma fonte mais
interessante, mais rica mais fecunda, mais desdobradora, e por debaixo, em seu nível
mais elemental a barbárie. Uma barbárie que pode ser regada ou abafada com a cultura
grega e pela religião. Isto levou a Europa em uma constante reavivamento do
Renascimento, uma tentativa de reaparição ou ininterrupção de recepção da herança
grega. Por isso, até hoje pode-se considerar que o Renascimento ainda está vivo. Desde
a República de Weimar, o classicismo alemão com Goethe, Schiller que reapropriou a
cultura grega, e grande parte do movimento filosófico-literário europeu.
A terceira Globalização, a que se pode chamar de “contemporânea”, é a
consequência da introdução de “velocidades inumanas” nas relações humanas. Há aí uma
mudança ontológica significativa. Uma mudança na noção de globalização como
levitação. Nós nos metemos na aventura de uma tentativa de anulação das distâncias,
uma tentativa de comunicação à distância (telesimbiose-telecomunicação). Ela passa
pelos sistemas de satélites e pela eletrônica até chegarmos à uma situação do Palácio de
Cristal de Londres. Mais recentemente a humanidade chegou ao espaço, em planetas e
lua. Estamos numa mobilização infinita e saímos como os antigos conquistadores para
112

explorar esse oceano negro que é o espaço. Parece que nesse oceano tudo nos é ainda
desconhecido. Há uma diferença significativa em como se percebe as globalizações com
relação à globalização eletrônica. Suas diferenças vão de que existe uma diferença entre
medir uma esfera idealizada com linhas, formas, compassos, intersecções e, por exemplo,
percorrer uma esfera real com barcos, navios, criar imagens cartográficas, colocar aviões
em circulação, sinais de rádio na atmosfera do planeta, até no limite, de uma unificação
da Terra através do dinheiro, mercadoria, virtualização, número , moeda, imagem.
As experiências básicas do moderno e do pós-moderno, que constroem um
mundo baseado na mobilização e na flexibilização de encargos. Isso me permite explicar
o porquê e Sloterdijk ter dito que “A Teoria Crítica está morta”. Na sua opinião, a teoria
crítica da Escola de Frankfurt está ultrapassada e deve ser substituída por um discurso
completamente diferente: por causa de sua herança marxista, os teóricos críticos
sucumbem à tentação realista de interpretar a luz como aparência, e o pesado como
essência. A ideia de antropologia deficitária e o capitalismo-mercado como ideológico.
Outras associações poderiam ser feitas aqui: fascismo, melancolia, trabalho, pobreza,
fraqueza, desilusão, autoconservação, etc. O pensamento da modernidade, que por
tanto tempo se apresentou sob o ingênuo nome de “Luzes” (a filosofia ocidental da luz e
da vista tinha, em sua época de ouro nomes como Platão e Hegel, uma relação bastante
petulante com a realidade do ouvido) e o ainda mais ingênuo termo programático
“progresso”, destaca-se por uma mobilidade essencial. Nietzsche detectou, primeiro em
Platão, depois em Paulo, na Igreja Católica, depois nos círculos iluministas, uma facilidade
de retirada para um Bem sem concorrência. Como Robespierre mesmo disse: “a história
é animada pela ideia da liberdade, do progresso da razão humana”. O modo que
Robespierre falava na cerimônia de 1793 revela que “os progressos da razão humana
preparam esta grande Revolução e é a vós que especialmente se impõe o dever de a
acelerar”. Como seres diurnos, os homens tendem, desde tempo mais longínquos, a
realçar uma mística sobre a luz que ilumina o campo do mundo como o seu espaço de
ação. Sempre que segue seu avanço típico, ele executa um movimento pelo qual o
intelecto irrompe da caverna das ilusões humanas em direção ao exterior não humano.
Não é à toa que a virada da cosmologia, identificada ao nome de Copérnico, situa-se no
princípio da história recente dos conhecimentos e desilusões. A antítese poder e intelecto
é controlada pelo intelecto, como se foi visto, no futuro pegando desde a época de
113

Alexandre e Diógenes, o poder seria visto como uma forma de intelecto obscurecido que
espera as suas luzes. Esta figura mental ocidental só se desmorona com o aparecimento
da teoria do discurso pós-moderna de Foucault, com a qual o próprio espírito se revela
como poder obscurecido. A modernidade está baseada numa ontologia da experiência
através da qual a sóbria humanidade do Ocidente se liberta do torpor mediante os
fantasmas da metafísica da luz e do dia (Apocalipse de João, 21, 23-25).
Sloterdijk (2012, p. 443):

O Esclarecimento possui em seu cerne um realismo polêmico, que declara


guerra aos fenômenos: só devem continuar valendo as verdades nuas e cruas,
os fatos nus e crus. Pois, as ilusões, com as quais o iluminista conta, são, com
efeito, manobras refinadas, mas de qualquer modo, vislumbráveis
criticamente, passíveis de serem expostas. Verum et fictum convertuntur.13 É
possível desvelar as ilusões, porque elas são feitas por si mesmas. Aquilo que
se compreende neste mundo por si mesmo são coisas marcadas pelo engodo,
pela ameaça, pelo perigo, não pela abertura, pela oferta, pela segurança. A
verdade, portanto, nunca pode ser alcançada “simplesmente assim”, mas
apenas em uma segunda investida, como produto da crítica, que destrói aquilo
que anteriormente parecia ser o caso. Verdade não é “descoberta” de maneira
inofensiva e sem luta, mas conquistada em uma vitória cansativa sobre seus
antecessores, que são seu mascaramento e seu contrário. O mundo arrebenta
suas costuras de tantos problemas, perigos, ilusões, e abismos, logo que o
olhar moderno preponderam os bastidores, os solos duplos, os panoramas, as
imagens ilusórias, as caretas encobridoras, os sentimentos secretos, os
motivos velados, os corpos encobertos, que dificultam o acesso à “realidade
efetiva mesma”, justamente porque essa realidade se compõe cm uma
complexidade crescente de ações e sinais multissignificativas, realizadas e
pensadas. Isso obriga com maior razão a manter mutuamente afastados o
patente e o velado. Sou iludido, logo sou. E: eu desvendo ilusões, eu mesmo
iludo, ou seja, eu me conservo. Também se pode traduzir assim o cogito ergo
sum cartesiano.

O realismo que conhecemos nasce, afinal, da ansiedade e da acomodação triste


em relação às necessidades que o “sistema das necessidades” impõe aos seres
socializados. Portanto, praticam a crítica no estilo antigo, na medida em que "expõem" a
leveza da aparência em nome do peso do real. Na realidade, deve-se pensar que é através
da ocorrência de abundância no moderno que o pesado se transformou em aparência –
e o "essencial" agora reside na leveza, no ar, na atmosfera. Assim que isso for
compreendido, as condições de "crítica" mudam dramaticamente. Marx argumentou que
toda crítica começa com a crítica da religião. Eu diria que todas as críticas começam com

13
Sloterdijk altera nesta passagem a sentença latina verum et factum convertuntur (a verdade e o fato são
convertíveis) em verum et fictum convertuntur (a verdade e a ilusão são convertíveis).
114

a crítica da gravidade. Além disso, podemos reconhecer que a "Teoria Crítica" europeia
não sobreviveu a viagens através do Atlântico incólume. A Teoria Crítica autêntica "em
casa" era, acima de tudo, uma espécie de teologia secreta: ela tratava os fracassos da
criação (também conhecida como sociedade) e criticava a realidade no nome (sem nome)
do infinito.

O cartaz da White Star Line mostra o olímpico o navio gêmeo do Titanic lançado em
1910. Litografia de 1911.

Seja como for, esta expressão “globalização” tem a vantagem de sublinhar o


traço ativo dos acontecimentos mundiais atuais: quando ocorre globalização, é sempre
através de operações com efeitos à distância. Também com outra nomenclatura, poderia
se chamar modos de formação teleracional ou teleaceleracional do tempo.14 A ideia da
qual toda a história da mídia é uma história da transferência de pensamentos. Uma
história psico-esférica que antecipa uma “política esférica”.
Sloterdijk (1999, pp. 25-26):

14
SLOTERDIJK, Peter. Actio in Distans: Sobre los Modos de Formación Teleracional del Mundo. Instituto de
Sociales Contemporáneos, Universidad Central (IESCO), Bogota: Colombia, Nº 28, 2008a. Disponível em:
<http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/colombia/iesco/nomadas/28/02-actio.pdf>. Acesso: 09
Abr. 2018.
115

As hordas primitivas, assim como seus sucessores culturais tribais, socializam


seus membros num continuum psicoesférico e sono-esférico, no qual a
existência e pertença ainda são grandezas indiferenciáveis. A sociedade mais
antiga é uma pequena e tagarela esfera mágica – uma invisível tenda de circo
estendida sobre a trupe e que caminha com ela. Através de cordões umbilicais
psicoacústicos todo indivíduo está continuamente ligado, em maior ou em
menor escala, ao corpo sonoro do grupo – e a perda desse continuum
equivaleu a uma catástrofe: não foi em vão que algumas culturas mais antigas
declararam o desterro como uma espécie de pena de morte psicossocial.
Pertencer-se de fato, a princípio não significa outra coisa que ouvir juntos 15 –
mas aqui repousa o laço social quintessencial até a invenção das culturas
escritas e dos impérios. Encontramos aqui o peso daquilo que a palavra alemã,
deteriorada pelo romantismo, poderia querer dizer com Muttersprache
(língua-mãe). Os espíritos de hordas são corpos sonoros, nos quais os
membros estão encerrados como em cavernas de eco.

Quando a filosofia do início da era moderna verbaliza experiências e efeitos de


ressonância e infecção, usa espontaneamente a via das tradições magológicas. Com uma
reflexão sobre causalidades emocionais do tipo mágico já havia começado na antiguidade
o esclarecimento do conceito interpessoal (interdemónico) desde Platão é interpretado
como o trabalho de Eros. Nessa trilha os filósofos do século XV lançaram um novo
discurso erotológico cujos ecos chegam a situações de manipulações psicológicas do
início do século XIX as populares pseudoideas psicanalítica de hoje. A magia intersubjetiva
é baseada na complementaridade, como Platão transcrita convencionalmente no mito
das duas metades humanos apaixonadamente anseiam um pelo outro (amar é encontrar
o seu outro eu), o discurso de Aristófanes, no banquete. As forças unitivas (vinculantes)
ou forças centrípetas que atuam entre os amantes referem-se, segundo Platão, ao anseio
de querer corrigir a pena do amor constitutivo. A magia, para os pensadores do início da
modernidade, é a chave para a arte de pensar as coisas e os seres vivos como tomados e
penetrados por interações específicas. Em todos os planos do Ser, as relações de cada
coisa – ou, em termos magológicos, sua capacidade de vincular e de ser vinculada – têm
precedência sobre seu ser em si. Por isso, para Bruno, os seres mais obtusos, os mais
enclausurados em sua idiotia, são os que menos podem vincular, ao passo que os
indivíduos mais dotados de espírito vibram conjuntamente em uma consonância global
de vínculos e se elevam ao nível de operadores ou executores de efeitos criativos

15
Sloterdijk utiliza um jogo de palavras bem complicado: zusammengehören seria “pertencer-se” e
zusammen hören está mais para “ouvir juntos”.
116

múltiplos. Em termos de magia, a nascente modernidade concorda em propor aos


homens que empreendem coisas até então consideradas impossíveis. O que o século XVI
– esse grande período de legitimação e ascensão dos europeus – chama o “mago” é o
homem capaz de receber estímulos enciclopédicos, abertos, aberto ao mundo de forma
polivalente, formado na cooperação atenta e engenhosa com as interações discretas
entre as coisas, em um universo altamente comunicativo. O mago, como protótipo
comum do filósofo, do artista, do médico, do engenheiro e do informático, não é outra
coisa senão que o intermediário-operador no mundo das correspondências, das
influências e das atrações. Ele passa a ser um agente metapsicológico da alma do mundo
com uma extensão universal formando um princípio de levar em direção às outras coisas
todas as coisas. Nascemos como biunidades: aí está o segredo da intimidade e da
psicologia esferológica para uma posterior política esferológica. Temos que pensar desde
o início em algo que é no mínimo duplo, relacional, diádico afinado com o que mais tarde
irá se chamar subjetividade feita para a solidariedade. Poderíamos dizer que os homens
são seres que se encontram em globos ovais, o indivíduo faz parte de um par, um algo
duplo. O importante é se ater não tanto só no par patente, mas a estrutura do par como
um recipiente invisível ou virtual, ou seja, uma bipolaridade já seria de antemão nosso
começo: o conteúdo se contém a si mesmo. Um par consistente, é um contentor
autógeno, um receptáculo, um “local” de acúmulo de um dois unido, um interior que
esse dois construiu como espaço íntimo gerado. A questão do ser, que é tão
acaloradamente discutida por filósofos, pode ser feita aqui em termos da coexistência de
pessoas e coisas em espaços conjuntos. Isso implica uma quádrupla relação: o ser
significa alguém. O estar junto de alguém mais e com algo mais e dentro de algo. Essa
fórmula descreve a complexidade mínima que é preciso construir a fim de se chegar a
um conceito apropriado de mundo. Uma microesferologia vem antes de uma
macroesferologia e estas duas antes de uma esferologia plural. A psicologia esférica vem
antes da política das Esferas. A filosofia da intimidade deve fundar a morfologia
topológica política.
117

A Cidade de Trânsito. C. van Eestern e L.G. Pineau (1926).

Para entender a especificidade desse processo em relação aos novos fenômenos


medievais, um desvio é feito pelo pensamento arcaico e pela metafísica clássica, partindo
da ideia de que o meio primordial é o cérebro humano. A partir daí, analisam-se os
fenômenos atuais da profusão de informações, telecomunicações globais e
comunicações entre mídias aparáticas. É de certa forma revolucionário, enquanto
ameaçado e prometedor porque o que Deus havia separado em sua sabedoria, hoje está
reunido através da ciência eletrônica, “inumanamente rápido” (onipresença?). Um
período que não temos certeza do que esperar e nem de onde chegar. Este gesto de
raciocínio pode nos levar a avaliar os resultados da introdução dessas velocidades nas
relações com outras culturas e seres humanos, pois nos obriga a converter os vizinhos da
totalidade do resto do gênero humano. Devemos parar para perguntar: o que significa
isto? A palavra “vizinho”, em muitos idiomas, é sinônimo de inimigo, de invasor,
estrangeiro. Pouca gente suporta seu vizinho. O modelo base da sociedade
individualistamente condicionada, não são meras aglomerações de corpos vizinhos (que
compartilham separações), pesadas e maciças, mas multiplicidades de células mundano-
118

vitais que se esfregam umas nas outras sem aperto, as espumas limitam umas com as
outras, se empilham umas sobre e debaixo de outras, sem ser realmente acessível umas
para outras, nem efetivamente separáveis umas das outras. ”. Vizinhos são agora
aplicadores de meios simbólicos e análogos de instituições de imunização dos mesmos
patrões da arte, criatividade e de famílias. Já que vizinhos vivem distantes uns dos outros
a sua semelhança é a intoxicação ou infecções imitativas (intercâmbio transcultural).
Quando se chegam entre eles em uma decisão ou em uma compreensão mútua, a
assimilação das opiniões e de decisões é assim feita porque estão infectados de antemão
pelo analogamento imitativo e pré-sincronizado de analogias eficazes a respeito da sua
localização e instalação nele. É inegável que a arte da conversa como uma assimilação
mútua de negociação se crê na resolução disso em convênios escritos. Entramos em uma
era da vizinhança generalizada, considerando a hipótese de que países não têm mais
fronteiras em comum, espaços eletrônicos agora aproximam as grandes distâncias. Eis
que estamos no mundo atual, construído por um “dentro” de paredes finas.16
Já faz algumas décadas que a maioria das pessoas experienciaram uma
saturação de suas demandas por liberdade. O mercado por liberdade é agora
completamente supersaturado. Porém, o mercado de seguros ainda está aberto porque
os indivíduos podem sentir e terem a experiência de sentirem pânico facilmente do que
uma sensação se completa segurança. Se alguma coisa acontece em qualquer lugar,
todos rapidamente podem ser infectados com o sentimento se sentirem ameaçados.
Como descendentes de mamíferos somos equipados com um programa de stress onde
não possuímos qualquer meio confiável para avaliar a urgência dos perigos. Existem
apenas um tipo de perigo, ou seja, perigo de vida. Não temos nenhum órgão lógico para
reconhecer a diferença entre perigo e risco. A moderna cultura de massa está
doutrinando as pessoas de modo que o risco de vida confuso seja ao mesmo tempo
percebido como perigos para a vida. A modernidade tardia tem tentado consertar essas
divergências criando uma forma de vida de risco em conjunto com segurança máxima. O
risco calculado aparece no capitalismo por meio das Companhias de Seguro, que visam
reintroduzir no mundo caótico a força do destino e do plano traçado. Sloterdijk considera

16
SLOTERDIJK, Peter. Esferas II: Globos (Macroesferología). Traducción de Isidoro Reguera. Madrid: Siruela,
2004a, p. 863. Capítulo 27: La Gran Transformación Inmunológica - En Camino a las Sociedades de Paredes
Finas.
119

que o Estado moderno atual é uma espécie de monstro híbrido. O Estado democrático
moderno gradualmente transformou-se no estado devedor, no espaço de um século,
metástase em um monstro colossal – aquele que respira e cospe dinheiro. Ele é uma
mistura de um Estado semi-ssocialista ou socialdemocrata combinado com resquícios do
estado absolutista com o fisco.17 Assim, a exploração direta e egoísta de uma era feudal
transformou-se na era moderna em uma cleptocracia de estado juridicamente
constrangida e quase desinteressada. A biopolítica do século XX, que nos fez sermos
corpos biológicos (zoé) e não mais vida social ético-moral (bios) não venceu de todo o
ímpeto timótico.
A professora Carla Carmona, escreveu uma pequena introdução na edição
espanhola,18 onde trata das relações timóticas e de sua tradição nas comunidades
políticas preparando os leitores para as ideias que Sloterdijk que propõe a renovação do
sistema tributário como uma das formas de libertar o cidadão do caráter fantasmagórico
que adquiriu na atual democracia. As cidades são bolhas de imunização e de mimo, daí a
domesticidade do homem. Nesses locais, a própria linguagem não é algo essencialmente
do âmbito da comunicação (jogos de linguagem) com sentenças e palavras que ganham
sentido pelo uso e pela função interior e não por “correspondência com o real” como
trata Wittgenstein. Com as cidades como ambientes de integração de indivíduos, povos,
grupos, etnias, religiões, comportamentos, a professora Carla Carmona desenvolve uma
aproximação com Charles Taylor sobre a “política de reconhecimento”, criando assim,
um diálogo intercultural a partir de Sloterdijk e Wittgenstein. Só quando os cidadãos não
se considerarem mais como devedores e agirem como contribuintes orgulhosos
estaremos perante uma verdadeira democracia participativa, onde os políticos seriam
pelo menos um pouco obrigado a responder às exigências dos cidadãos. Não se trata do
chamado para uma redução de impostos, mas da intensificação ética e revitalização de
impostos como doações do cidadão para a comunidade. Às vezes você esquece que a
voluntariedade não leva à perda ou supressão. Sloterdijk neste trabalho nos convida a

17
Matéria: City Journal. The Grasping Hand: The Modern Democratic State Pillages its Productive Citizens,
2010. Disponível em: <https://www.city-journal.org/html/grasping-hand-13264.html>. Acesso: 11 Jan.
2019.
18
SLOTERDIJK, Peter. Fiscalidad Voluntaria y Responsabilidade: Ciudadana Aportaciones a un Debate
Filosófico Sobre Una Nueva Fundamentación Democrática de Los Impuestos. Traduccíon de Isidoro
Reguera. Madrid: Siruela, 2014, pp. 9-26.
120

nos livrar de pessimismo que corrói o pensamento de que a coerção entendida como a
única maneira, e aposta na possibilidade de um cidadão moralmente elevado19 como
Nietzsche já havia falado. O mais rico não precisa pagar mais imposto se a sociedade
estiver imbuída da ideia de que o rico é realmente rico, inclusive o rico. O rico realmente
rico é um empreendedor, um doador, um esbanjador em causas relativamente alheias.
O que normalmente vemos como otimismo e estado de ânimo filantrópico é a
conclusão do fato de que nas últimas décadas com a pergunta da antropologia e da
psicologia humana não só a luz de nossos contemporâneos – ensinamento psicológicos
de base como as que nos relacionamos e que estavam dominadas pela psicanálise, em
pontos vitais nós acabamos nos afastando deles, sobretudo com relação a dogmática
erótica e da libido. A libido deveria ser entendida pelo polo timótico de maneira clara
como o polo erótico, porém deve ser sublinhado com força em não ter nenhum caráter
narcisistas, de “ter para aparecer” ou “dar parar aparecer”. A relação entre a psicologia
filosófica e a psicologia psicanalítica essa construção do narcisismo de maneira geral que
deveria se dirigir de maneira injusta em grande quantidade de energia erótica perante a
dignidade do ser, se usa de modo secreto e equivocado para a utilização da energia em
minha própria imagem.
Tornou-se evidente pela magnitude que o Sloterdijk concede ao conceito de
dádiva, assim como pelo projeto alternativo que tal desenvolvimento teórico válida. No
coração da obra está o esforço em explicar de que forma é que será possível transformar
os impostos em doações voluntárias e, em que medida é que isso serviria como
reconfiguração psicopolítica, isto é, como alteração das condições psicológicas, afetiva,
de se viver politicamente, de se viver com os outros. Assim, segundo o autor, as doações
à comunidade teriam de ser voluntárias, porém, durante um tempo inicial numa
percentagem modesta, depois em proporções progressivamente mais altas, o que
reanimaria a sociedade anquilosada em rotinas de desgosto perante o Estado, conferindo
novo ânimo à consciência comunitária. Na última década, todo o seu esforço foi no
sentido de configurar uma psicopolítica da generosidade assente “desde o princípio no
horizonte de uma ética da dádiva”.20

19
NIETZSCHE. Friedrich Wilhelm. La Voluntad de Poder. Madrid: Editorial EDAF S.A., 1981, p. 73.
20
SLOTERDIJK, Peter. Fiscalidad Voluntaria y Responsabilidad Ciudadana: : Ciudadana Aportaciones a un
Debate Filosófico Sobre Una Nueva Fundamentación Democrática de Los Impuestos. Traducción. Isidoro
Reguera, Madrid: Siruela, 2014, p. 34.
121

Esta descrição faz uma grande quantidade de pessoas não entenderem a


natureza do que é o timótico. O thymos é o orgulho, e o orgulho não tem a ver com o
amar ou amor de si mesmo, e sim, com a experiência de uma originária, e absoluta
possibilidade de ser completamente no mundo em razão de nossa posição cósmica e
estática como participantes do mundo. Kant poderia fazer uma análise típica e muitos
outros sistemas, no fundo, estão diante da suposição do cristianismo seguindo uma
psicologia moral, e para sempre de condenar um suposto egocentrismo do homem,
muito egocentrismo em curas que falam do egocentrismo dos demais, e nos homens do
presente enormes reservas e não usadas pelo não reconhecimento de generosidade, e
também na sociedade, nas pessoas mais simples, se veem a si mesmos em uma situação
na qual podem saber em qual situação deveriam fazer maior uso da sua generosidade. O
pagamento de impostos tornou-se uma ação obrigatória, mecânica e automatizada dos
indivíduos em frente a essência comum. Vive-se na Europa um sistema que o absolutismo
chegou à democracia, pois de uma forma reformada, o absolutismo virou um sistema de
que uma parte dos bens dos cidadãos é subtraído porque o Estado gasta mais do de
deveria. Isto poderia ser correto, só seria necessário que a decisão fosse de cada um, e o
reconhecimento de que é uma ação de dar, uma ação de “querer bem”, no momento em
que vemos com essa ótica, já não seria uma dívida que teríamos que pagar. Estaríamos
em uma posição de ver isso como um “dar consciente”. Cada vez que da propriedade dos
cidadãos uma soma flui para o fisco, se dá uma relação ou ocasião reconciliadora, e
timótica de fazer algo. Este é o ponto importante. O Estado é hoje uma máquina de
destroçar e castrar o orgulho do cidadão – do ser cidadão. O cidadão é estruturalmente
generoso, e se vê obrigado à “maldade” o lugar do cidadão no momento que alimenta e
abastece o fisco, nesse momento se veem tratados pelo Estado como os mais sujos e
ignorantes; como um credor, quem sempre se pode ameaçar, e que tenderia sempre a
tendência de ocultar ou tomar ações e procedimentos escusos (ocultar dinheiro). Está
claro que, não se pode construir nenhuma democracia participativa em que os homens
não tomem a sério seu centro timótico. Não se trata apenas de uma ação desinteressada
e obrigatória. Na Europa desde 1789, na Suíça também se aboliu a aristocracia, porém
esta é uma empresa gigantesca. Se aboliu a aristocracia na medida em que ela era
considerada uma classe parasitária, e o seguinte passo seria helvetizar o mundo. Nada
mais que a sociedade como um todo seja elevada ao estado aristocrático ou ganhe um
122

status desse nível, e não, que todos os demais sejam levados até abaixo ao nível de um
frustrado terceiro ou quarto estado. Nessa oportunidade os europeus nos 200 anos
passados se têm comportado calando e dando um cala boca porque não se explica
claramente o que queriam dizer com os aristocratas, os quais se cortaram a cabeça na
Revolução Francesa. Por que se cortaram cabeças? Se trata só de uma forma de cultura
de sentimento-divertimento perverso? Um prelúdio do que temos hoje? Há algum
pensamento útil disso que podemos dar uso hoje em dia? Thymos também tem relação
com a autoestima. E a autoestima nos faz estimar outros, animais, instituições, obras e
atividades que são parte de nós. Nisso, empenhamos doação material, financeira,
espiritual, intelectual e, portanto, de tempo e vida. Esse pensamento de Sloterdijk sobre
uma sociedade voluntária ou uma ética da generosidade cria um reavivamento do thymos
como uma descrição psicopolítica moderna. Seria, portanto, através das relações
timóticas que se poderia instituiu algo, já que o thymos seria o elemento da criação de
mundos e das políticas. É somente onde existem processos de construção de verdadeiras
identidades é que existe a capacidade de comportar efetivamente os desejos de
autoafirmação das subjetividades em constante reconstrução até ao Estado. Uma
linguagem política em bases timótica. Recentemente, O lendário guitarrista do Pink Floyd,
David Gilmour, anunciou que leiloará 120 guitarras e violões da sua coleção particular
para fins beneficentes. Ao fazer isso Gilmour disse o seguinte: “Essas guitarras me deram
muito, e é hora de elas seguirem em frente e irem para outras pessoas que, espero,
fiquem felizes com elas, e talvez criem algo novo. Não quero ser uma pessoa nostálgica
e ter um monte de guitarras à minha volta. E, francamente, não tenho tempo para tocar
todas essas guitarras”.21
O que de fato surgiu e tornou-se cada vez mais sólido em sua consistência foi
uma organização para estimular, orientar, cuidar e administrar principalmente as
energias timóticas (baseadas no orgulho e na ambição) e secundariamente erótica
(ganância e libido). Sloterdijk se afasta da visão psicanalítica que reduz o sentimento de
ira a uma válvula de escape para desejos não realizados e redescobre a função desse
conceito para o século XXI. Traçando um panorama da ira na história do pensamento
ocidental, o filósofo resgata um olhar positivo sobre esse sentimento que já fora

21
Matéria: Disponível em: <https://whiplash.net/materias/news_759/296355-davidgilmour.html>.
Acesso: 31 Jan. 2019.
123

apreciado por ser a força motriz dos guerreiros e pedra fundamental no surgimento de
heróis. A ira é um fator que move os acontecimentos desde as mais antigas civilizações.
Não poderíamos excluída, mas revitalizada e aprender a usá-la nos dias de hoje
principalmente na relação Estado-cobrador e indivíduo pagador de impostos e tributos.

Bolsa-talismã ou globo-imperial-vudú. Guédé – Haiti. Alfred Métraux (1958).

Camponeses no Coletor de Impostos. Jan Massys (1539).


124

Aqueles que chegam por último são os que mais perdem. A sociedade moderna
é um sistema para o controle de risco existencial. A modernidade é uma época em que
chegam uma nova matemática no século XVII, uma matemática de seguros. Esta é a
criação mais original no mundo moderno e devíamos sempre ver de maneira simultânea
o Estado e os seguros porque o Estado tem esse nome a partir da discussão italiana da
res publica e se chama assim, pois tem a força da persistência das instituições. Um certo
estado de situação, que só se vê em uma sociedade moderna quando (não persistente)
surge uma dinâmica quase revolucionária entre reforma permanente e revolução
permanente, e o Estado poderia igualmente se chamar glissando, algo que desliza
constantemente, que move o próprio nome, o nome em si, é no fundo, algo utópico,
como algo que não pode existir de fato, pois já começa com um pseudônimo. Quando
Luís XIV diz: “Eu sou o Estado”. Então, o Estado já possui uma máscara: a máscara da
estabilidade que não pode ter. Mas tem uma medula. Um sistema fiscal e um de seguros.
Dois sistemas que tocam na questão dos riscos do mundo moderno, que asseguram o
mundo moderno. Os seguros asseguram os indivíduos e os Estados asseguram a
fiscalidade no sentido de contribuições de má política (no sentido de se sentir seguro).
Ao final, todo o Estado tem a estrutura de um grande sistema imunológico: um sistema
de seguros. Estes sistemas de seguros em largo período de paz aparecem são muito mais
visíveis que em tempos inquietos ou de guerras. As pessoas se orientam mais em valores
liberais, onde se assegura o crédito, a liberdade, a vida e a não guerra. Tempos de
seguridade com poucos riscos, onde a seguridade-providência consegue ser mais forte
que o da liberdade. A liberdade, principalmente a individual nos tempos contemporâneos
possui um caráter de autoconsumo, riscos, extenuação, esgotamento de si mesmo
através do trabalho, da experimentação de drogas (quanto mais avançada for a
sociedade, mais desamparada se vai encontrar perante a irrupção de drogas pesadas) e
sexo e do êxtase de esportes e atividades físicas, só que todas essas liberdades também
estão encobertas pelos seguros e previdência. A ideia de que a economia passa a ser o
leme da vida humana é algo baseado no sistema de crédito. No Parlamento Alemão se vê
poucos economistas. Algum tempo atrás a maioria consistia em professores-estudiosos
e a outra metade de juristas e homens do direito. Quase nunca se viu um dentista ou um
cirurgião, um arquiteto, engenheiro, e nunca um banqueiro (profissões livres). Isso é um
125

fato que temos que ver bem de perto e que se pode rastrear na Assembleia (sessão
plenária) de 1789 quando depois de uma pausa de 170 anos na França, reuniram-se pela
primeira vez, os estamentos que se chamavam também de (sita), logo, os Estado seguiam
uma lógica medieval na qual as corporações medievais se chamavam universidades
(vniuersitatis), e depois essas universidades em espanhol, se transformaram em
generalidades: os órgãos estatais, como as autoridades, etc. No idioma alemão, em
francês e em inglês, a única palavra na qual sobreviveram as corporações medievais sobre
a alcunha de universidades, sobre uma única universtas - vniuersitatis que saltaram do
medieval para a modernidade. Na França essas corporações de profissões livre se
reuniram debaixo destas estranhas palavras (sita) e (sitatis). Hoje em dia já não se vê a
diferença porque a letra maiúscula do Estado e os estamentos ou estados como
minúsculos. Porém, tem uma grande importância para a retórica revolucionária, se diz
que no terceiro estamento, é em si mesmo, a nação completa. O terceiro (sita-Estado;
em francês: tiers état) não necessitam nem do primeiro nem do segundo, uma semântica
revolucionária é também motivo de uma fundamentação estrutural do Estado moderno
onde a igreja e a nobreza são incluídas na Revolução Francesa. Ambos os representantes:
da igreja e da nobreza, se uniram ao terceiro estamento, depois de 4 de agosto se toma
a decisão de que a nobreza francesa renuncia voluntariamente seus privilégios, mas os
representantes do terceiro estamentos eram os advogados e a voz do povo é uma tribuna
para o povo na modernidade o intelectual público como Robespierre que era um
pequeno advogado de uma cidade da província do norte que de pronto representou o
arquétipo do discurso parlamentar, um discurso no parlamento não é um discurso de um
advogado enquanto um tribunal (mesmo que esteja diante de uma tribuna). Esse discurso
diante do povo na Assembleia Constituinte concretiza a tese de que o sonho da filosofia
se fez realidade, e se refere a ideia histórica de universalismo da humanidade. Nietzsche
mesmo em seu tempo havia feito considerações importantes de que o conceito
denotador de preeminência política sempre resultaria de um conceito de preeminência
espiritual, o fato de as castas mais elevadas serem simultaneamente a casta sacerdotal,
e, portanto, preferir, para sua designação geral, um predicado que lembre sua função
sacerdotal. É então, por exemplo, que “puro” e “impuro” se contrapõem pela primeira
vez como distinções de estamentos. Aí também depois, se desenvolvem “bom” e “ruim”,
num sentido não mais estamental.
126

Algo é bom quando pode estabilizar a ira, quando pode definir uma-em afeição
nobre e que perdura unido a um determinado partido que faz possível esses “bons
negócios”. Entra aí, o elemento da confiança. Nos últimos anos na Europa se viu um
grande crescimento de “circunstâncias americanas” que penetrou na sociedade e na
população, se sentiu uma perda da soberania dos estados nacionais em benefício do
centralismo de Bruxelas. Se sente como destruição que a maioria das pessoas se
encontram despolitizadas. Por isso, a metáfora dos bancos e partidos obtêm tão pouco
interesse, é como o livro de economia, quando obtenho pouco interesse de minha ira
posso confiar pouco em meu banco, e tenho menos energia para sonhar. A outra variante
seria a conversão em esperanças, uma variante reativa que se transformaria em
afetividade humana para a próxima solução particular, a ira é algo que originalmente não
está disposta para ser algo conservada. Antes se dizia de um homem que “ele não
conseguia manter sua raiva além do jantar”, isto significa que é sempre suficientemente
livre para no curso do dia ou de um novo dia para encontrar o necessário para reagir ou
encontrar uma reação do seu desgosto, e na noite subsequente estar em estado de
tranquilidade. Isso seria um arrependimento aristocrático, um desafogo, porém que não
é uma situação imprevisível pelas circunstâncias tão inevitáveis e repreensivas. Em uma
parte os aristocratas e os patriarcas, os homens notáveis e grandes tinham o privilégio de
descarregar seu mau-humor nos outros, e os demais teriam que se comportar, por isso o
movimento feminista no século XIX teve sua melhor fase não quando mostraram suas
exigências, mas sim quando pediram a possibilidade para a mulher de se desabafarem.
Isto politicamente teve como efeito que desapareceram as histéricas. Antes a expressão
dos afetos-carinho no mundo levou a uma grande crise do corpo. A feminilidade e a ira
saíram ao mundo levando a uma grande restruturação, até mesmo, uma mudança em
fundamentos psiquiátricos.
Recentemente, Peter Sloterdijk deu novo impulso aos amantes filosóficos pelas
utopias, ao falar de uma sociedade do “dinheiro inteligente”, a sociedade do “fisco
voluntário”. Ao invés da felicidade socialdemocrata (já empedernida, acomodada e
entediante), e muito além do conformismo do privatismo neoliberal, Sloterdijk defendeu
uma sociedade capaz de escolher ter orgulho de manter iniciativas em função de
objetivos nobres. Uma sociedade assim descarregaria suas “energias timóticas” na
guarda, manutenção, no management e criação de bens culturais e bens de serviço
127

segundo uma ótica da generosidade, não do dinheiro. A ótica que gastar dinheiro e gastar
bem vem antes do ganhar, esbanjar ou acumular dinheiro. Uma economia da doação, da
dádiva, teria de contar como um elemento central de quem quisesse refazer utopias. De
fato, temos dificuldade de imaginar uma sociedade só baseada na generosidade e no
orgulho de guardiões, não conseguimos uma fórmula intermediária? O que nos tem feito
não conseguir mais sonhar para além dos horizontes que temos? A concretização dessa
ideia civilizatória passaria pela ideia de Carnegie, de que “quem morre rico envergonha
sua vida”. Um novo ímpeto motivacional de uma civilização não passiva. Uma ideia de
que é necessário aos cidadãos estarem em um envolvimento timótico de financiadores
em relação ao que é financiado. Ou seja, o dinheiro precisa ser “dinheiro inteligente”, e
não dinheiro de impostos. Quem faz o trabalho de manutenção de um determinado bem
cultural ou atividade, de fato precisa estar interessado de modo identitário no serviço
prestado (atenção, cuidado, prestígio, reconhecimento). E para tal, precisa estar em
sintonia de orgulho com o que é financiado ou com aquilo que faz o bem. Caso contrário,
o que era mecenato (nosso dom, a mão de Midas ou se quiser “no toque de Midas”) se
transforma em imposto e o problema do dinheiro não inteligente reaparece.
Um exemplo mais recente a respeito disso se viu no leilão do quadro de Banksy,
“Menina com balão”. O quadro foi arrematado no valor de cinco milhões de reais. Ao
término dos lances, se bateu o martelo do leiloeiro e o quadro se autodestruiu, ao menos
quase totalmente, diante da plateia ali presente. Todos pensaram, então, que Banksy
havia dado um golpe no mercado, no leiloeiro e na capitalista rica (anônima) que o
arrematou. O valor se perdeu, o dinheiro se esvaiu, e Banksy inapreensível como pessoa,
teria dado o recado: minha obra também é inapreensível. “Minha obra não é de um”. A
obra teria imitado o autor. Mas ocorre que alguns segundos depois, a senhora que
comprou o quadro mandou avisar que ela ficaria com o resto dele, isto é, com a gravura
quase toda picotada. Afinal, após o ocorrido, o quadro real não seria mais só o de Banksy,
pintado, posto na parede, mas todo o episódio passado em todas as redes de TV do
mundo é que comporiam a obra, ou a nova obra produzida ali, ao vivo. A obra de alguém
que, até então, era famosíssimo, e que pelo episódio saiu mais famoso, mais valioso e,
enfim, deixando para o mercado uma obra picada mais valiosa do que quando estava
intacta. Nada escapa ao mercado. Nada sai do controle da forma mercadoria. Talvez o
recado de Banksy não tenha sido “o mercado não pega minha obra, como os policiais não
128

me pegam por eu pichar Londres”, mas sim, “eu tenho consciência que a minha liberdade
está presa”. Presa, ao menos pelos tempos, pela “época”, pelo modo como nos
enredamos na vida e a organizamos. Se há uma utopia, não a posso colocar, nada sei
fazer fora do mercado. Se há uma utopia, o máximo que faço é continuar minha
generosidade: um quadro de Banksy, alguém quer tê-lo em sua sala? Ora, mas é
desnecessário. Banksy é, no fundo, um pichador: suas obras estão espalhadas
gratuitamente pela cidade. Ao acesso de todos. Sua intenção também talvez tenha sido
a de mostrar-se preso à sociedade de mercado mesmo em um ato de afirmação da
liberdade, e, sendo assim, Banksy nada tenha dito (e nada querido dizer) senão isto: o
máximo que posso fazer para afrontar o mercado é lembrar que todos já têm minha obra
sem precisar comprá-la, pois ela está nos muros por aí afora. Todos habitantes da cidade
a possuem. Um leilão é uma situação ridícula. Uma obra que se autodestrói não se
reafirma? “Sumindo... sumindo... desapareceu”.
O cidadão já não se consideraria como devedor, e passaria agir como uns
contribuintes orgulhosos (tributação voluntária e responsabilidade cívica). Para Sloterdijk
cidadãos devem ser vistos como um patrocinador. Essa forma é necessária para se livrar
de "legitimações sutilmente mecânicas, humilhante e desmoralizadoras por trás do
sistema fiscal. Quem tem dívidas só as quer pagá-las, não acompanha o destino (do
dinheiro), nem a finalidade (políticas públicas, divisão setorial, redistribuição para
comunidade, etc). Caso contrário, corremos o risco de passar do absolutismo para a era
pós-democrática sem conhecer um sistema fiscal democrático ou mesmo um sistema
filosófico fiscal. Creio que Sloterdijk não questiona o pagamento de impostos. Não
devemos o tomar como um anarquista ou alguém os moldes de Rousseau. Ele os
considera um preço a pagar por viver em relacionamentos ordenados. No entanto, ele
não se para de perguntar por que o pagamento não pode ser civilizado? Por que o
pagamento é dívida, e quem paga é devedor, mais recentemente, se adotou uma
linguagem mais sutil: “contribuinte”, apenas de o fisco tratar como caso de crime
determinadas ocultações e não prestação de imposto de renda, por exemplo. Entre esses
países, estão França, Espanha, Bélgica que mais tocam os indivíduos. Vez ou outra, vemos
em jornais e sites de notícias jogadores de futebol com problemas com o fisco,
sonegação, possibilidade de prisão, pagamentos de multas, etc. Nesse sentido, Sloterdijk
chama de generosidade participação política e critica o endividamento progressivo do
129

Estado como uma característica da atual crise: é um mecanismo que empresta o cidadão
do futuro. Sloterdijk propôs o seguinte experimento mental: como devo pensar o Estado
para o cidadão, e como isso iria pensar para si mesmo, se os impostos, em vez de
obrigatório, eram voluntários? Que implicações cívicas éticos seria essa transformação
do sistema tributário?
Se é possível falar em uma “arqueologia da dívida”, isto é, na procura do solo
originário a partir do qual um saber estabilizado sobre a dívida se tornou possível, é
inevitável recuperar os ensinamentos de Nietzsche em seu Genealogia da Moral – Uma
Polêmica (1887). Em sua segunda dissertação Nietzsche trata em particular sobre a
“Culpa, má consciência e coisas afins”. A tarefa de Nietzsche neste ensaio consiste em
desvendar os índices genéticos que estão na origem do “animal-Homem”, como, o quê,
permitiu que determinado animal se humanizasse. Com efeito, para Nietzsche não
existiria Homem sem que, consigo, se tivessem formado a memória e o pensamento.
Neste sentido, começa por referir que o problema mais autêntico, relativamente ao
Homem, consiste em “criar um animal que pode fazer promessas – não é esta a tarefa
paradoxal que a natureza se impôs, com relação ao homem?” (NIETZSCHE, 2008, p. 47).
Como acontece que a Natureza se imponha uma tarefa tão exigente no respeitante ao
homem? Como lhe veio a ideia de gerar seres que para poder viver, têm de lançar-se na
aventura da sua própria criação? A resposta de Sloterdijk seria uma “filosofia do
nascimento”. Para responder a esta questão, é preciso conhecer a filosofia como
“introdução à ciência revolucionária universal”. Trata-se de uma teoria capaz de
arquitetar um tipo de narrativa explicativa a respeito de “grandes viragens” e de grandes
reviravoltas de todas as coisas. Heidegger ao utilizar a palavra “volta” (Kehre), apensar de
um tom religioso, tem como referência um movimento, onde a vaga da forço do sujeito
reflui para si mesma. Esse movimento não chegaria a ser executado sem a branda força
contrária do fracasso. Quem considera uma “volta”, não se atém ao fracasso como
colapso, mas como uma mão que acena vinda de um outro lado. Quem percebe e olha
para ela como direção já se virou e executou um movimento que o afasta do movimento
errado. Essa viragem é muito mais que uma mera mudança mecânica de direção de
planos (xyz), mas uma vazante ontológica de subjetividade. Tomemos par anos a imagem
de uma maré alta. A maré baixa só é feita quando a maré alta muda de ideia, assim logo
130

percebemos que o refluxo pode continuar como uma coisa cineticamente impossível
enquanto a vaga do esforço não tiver se dispersado-dissipado-esgotado por si mesma.
Hannah Arendt toma a ação com um caráter messiânico quando disse que o
milagre salva o mundo, o fato de a natalidade e a ação que os humanos são capazes de
empreender pelo fato de terem nascido. Fé e esperança, segundo ela, são expressões
que denotam um caráter de evangelismo quando se anuncia uma grande alegria: “Hoje
nasceu-nos um Salvador” (“Os Evangelhos anunciaram sua “boa-nova”: “Nasceu uma
criança entre nós”). Se quatro é o número dos monopolistas, o quinto evangelho, é o
número do espírito livre. O segundo radical da revolução da qual Sloterdijk se referiu no
passado: a experiência individual do nascimento, a dramática ruptura da criança para fora
do corpo da mãe em direção ao mundo. Isto permanece latente e presente em cada
indivíduo como cena primitiva constituindo a vanguarda das esperanças futuras de novas
rupturas em direção a condições de vida menos estreitas. Agora sabe-se que para o feto,
o meio ambiente materno é um corpo comum, sonoro que vela pelo continuum tanto
sonoro como opiáceo. O ser-aí no silêncio do mundo vira uma corda que vibra por
motivos de sua própria tensão, pode ser que os meditadores ao redor do mundo tenham
procurado reclusão no silêncio e quietude porque o ouvir-se do ser-aí no silenciamento
do barulho ajuda a alongar a corda. A música celebraria não apenas o reatamento com o
continuum, mas também algo do tipo sedativo ou narcótico, faz sempre lembrar o
silêncio cósmico da existência. O ar que respiramos se revela, em comparação com o
conforto da circulação comum entre mãe e filho, uma permanente situação de
carregamento de peso, uma tortura de privação de endorfina. A saída deste estreito canal
original no qual tudo poderia já ter chegado ao fim: isto é o protótipo subjetivo da
libertação. O homem, é na verdade, o ser vivo aporético sem saída. Ele é o ser que tem
que fazer de si mesmo algo diferente do que se é, para poder suportar a sua falta de
saída. A própria humanização só passa a ser inteligível como uma saída que o animal sem
saída fez na sua fuga para a frente. Os homens são desde o início, seres para frente,
rebentos da metáfora, da metamorfose. Enquanto eles, com intuito de acharem uma
saída, aceitarem qualquer esforço para se tornarem outros, mantêm em funcionamento
a história da espécie como trabalho para uma saída. Talvez fosse interessante aqui
observar um dos contos de Kafka chamado Um Relatório para a Academia (1917). No
conto em questão, um macaco, convertido a pouco tempo, presta contas da história de
131

sua humanização perante um público de formação burguesa. Como um novato da


espécie, o macaco pode fazer um reconhecimento peculiar da situação do homem de
uma forma diferente do que qualquer outro membro da raça humana. O macaco faz uma
viagem no tempo de sua época na vida animal. O macaco humanizado ganha consciência
do que perdeu e do que ganhou na jaula do barco pesqueiro, no trajeto da selva africana
para as cidades europeias. Grande parte do diálogo com os seus espectadores é no
sentido de falar que ele estava sem saída. Que estava encurralado, não tinha saída
nenhuma, mas tinha que arranjar alguma, pois sem ela não conseguiria viver. “Foi assim
que deixe de ser macaco”. A “saída” que ele fala não é a do sentido de liberdade para
todos os lados. Não era a liberdade, mas apenas uma saída. Talvez ele tivesse conhecido
enquanto macaco, talvez ele conheceu homens que tenham saudades dela. Ele só queria
uma saída do “ir mais longe”. Ele tinha que descobrir uma saída para viver, mas que essa
saída não se conseguia com uma fuga da jaula. A um macaco deve ser sempre possível
uma fuga. Ninguém o prometeu que se ele tivesse se tornado como eles (homens),
abririam suas grades. Ele não queria imitar os homens, apenas porque queria uma saída,
e por nenhum motivo a mais. Quando se quer uma fuga, aprende-se quando se tem de
aprender, aprende-se quando se quer uma saída. Graças a um esforço que até agora não
se viu igual, o macaco atingiu a formação médica de um cidadão europeu. Isso deve ser
algo, pois o ajudou a sair da jaula e a conseguir uma saída especial. A saída humana. Por
isso que uma história da humanização do macaco, deva ser para alguns, fazer mais
sentido do que uma humanização de Deus. Em sua linha, Sloterdijk está prestes a publicar
um ensaio sobre a arte de inventar Deus, chamamos isso de teopoesia. Entre os rebentos
da evolução, os esforçados animais construtores de história colecionam desconcertantes
experiências com o peso do mundo e têm de procurar o caminho entre as verdades da
leviandade e os da melancolia. A enormidade cria-se no interior do homem a partir do
momento em que do animal sedentário, surge, antes do estado e da escrita, o animal
metafísico da lonjura. O homem desnaturalizado e sobrenatural transforma-se em
potência mundial. Nietzsche nos lembra algo parecido. A evolução da espécie obedece a
um princípio do progresso na consciência da impossibilidade de escapar. Desde a
“revolução neolítica” onde os homens se tornaram sedentários, não se verificou nenhum
grande acontecimento que fosse comparável em alcance ao que está prestes a ter lugar
em nossos olhos. Viu-se nessa época um auto encarceramento do homem. Que se vê
132

circunscrito por um território ao mesmo tempo maldito e sagrado. Quando a vida


humana se torna mais autóctone, uma nova lógica aterrorizadora aparece. Surge uma
obsessão por genealogias, parentescos e conceitos de propriedade. Foi o
acorrentamento do homem à galeria da origem e da procedência. Isso demonstra que o
espírito da humanidade se movimenta em círculos, porque começamos como animistas
e agora as teses dos animalistas voltam a estar regidas por esse princípio. Mas ter uma
alma significa ser portador de exigências legais. De modo que não estamos falando
somente de animismo e de dar um tratamento adequado, e sim do que significa
reconhecer os animais como sujeitos. Não unicamente os animais. Ao tratar de humanos
devemos considera-los tão luxuosos que não são capazes de permanecer um verdadeiro
animal. Ele perdeu a capacidade de ser um animal. São falhas da natureza. Essa seria a
definição de humanidade: a incapacidade adquirida de permanecer no reino da
animalidade. Somos seres condenados a fugir para a frente e, nessa corrida, ficamos em
êxtase. Esse êxtase corresponde ao que Heidegger chamou de "abertura ao mundo". A
definição de ilha humana. Uma ilha é, porque é isolada, e o fato humano é o resultado de
uma grande operação de isolamento. O processo que leva à realidade humana é o
autofechamento de um grupo humano que transforma seus membros como macacos
são transformados em homens. Este processo começa com um uso perverso e particular
da mão do macaco, que se metamorfoseia em uma mão humana. Nós tocamos de
maneira diferente, como mostra Sartre em O Ser e o Nada de 1943. Quando fala sobre
carícias, a carícia é exatamente o gesto. A carícia é exatamente o gesto que prova que a
mão humana ficou em êxtase. Ele não está mais satisfeito com o gesto de pegar algo: a
mão se torna a antena do ser.
Diz Nietzsche (2008, pp. 110-111):

É certo que ele também inovou, ousou, resistiu, desafiou o destino mais que
todos os outros animais reunidos: ele, o grande experimentador de si mesmo,
o insatisfeito, insaciado, que luta pelo domínio último com os animais, a
natureza e os deuses. Ele, o ainda não domado, o eternamente futuro, que
não encontra sossego de uma força própria que o impele, de modo que seu
futuro, uma espora, mergulha implacável na carne de todo presente – como
não seria um tão rico e corajoso animal também o mais exposto ao perigo, o
mais longa e profundamente enfermo entre todos os animais enfermos?... O
homem frequentemente está farto, há verdadeiras epidemias desse estar-
farto (– como por volta de 1348, no tempo da dança da morte): mas mesmo
esse nojo, essa fadiga, esse fastio de si mesmo – tudo isso irrompe tão
poderosamente nele, que se torna imediatamente um novo grilhão. O Não que
133

ele diz à vida traz à luz, como por mágica, uma profusão de Sins mais delicados;
sim, quando ele se fere, esse mestre da destruição, da autodestruição – é a
própria ferida que em seguida o faz viver.

Turim, 3 de janeiro de 1888: Em plena rua, Nietzsche abraça o pescoço de um


cavalo caído no chão, brutalmente espancado por um cocheiro. O filósofo beija o animal
e começa sua loucura. Dizem que Nietzsche repete uma cena lida: no capítulo 5 da
primeira parte de Crime e Castigo, Raskolnikov sonha com camponeses bêbados que
batem em um cavalo até matá-lo. Dominado pela compaixão, Raskolnikov se abraça ao
pescoço do animal caído e o beija. Kafka não só transforma um homem em inseto como
também conta a história de Bucéfalo, o cavalo de Alexandre; a história da rata Josefina;
a história de como Joseph K. morre como um cão; a história do macaco que fala para a
Academia; a história do abutre que se afoga no sangue do homem que lhe deixou roer os
pés; a história da toupeira gigante que atravessa a vida do mestre-escola da aldeia; a
história de um animal singular, um cruzamento, metade gatinho, metade cordeiro.
Coetzee usa o macaco na Academia, de Kafka, em Elizabeth Costello (2003), usa também
a analogia dos campos de concentração nazistas como matadouros de gado. Desonra
termina com o abandono do cão que o protagonista tão devotamente havia cuidado. O
cão levado à morte marca o ponto que a narrativa abandona a si própria. O
acorrentamento do homem vai os princípios do pensamento genealógico, uma
submissão de toda a palavra em testamento.
134

W. G. Sebald no seu livro Austerlit (2001). No curso da narrativa, Austerlitz é comparado a


Wittgenstein. Primeiro, parece ser enigmático o que esses olhos podem representar. Com essa
comparação em mente, as imagens fazem sentido. Os olhos de Wittgenstein estão incluídos na
ilustração que retrata os olhos. O narrador compara os olhos dos animais com os dos
pesquisadores e filósofos, que usam a intuição e o pensamento para afugentar a escuridão, um
paralelo com Austerlitz.

O homem a quem seja lícito fazer promessas, afiar a tarefa que alude à
necessidade de que esse animal não esqueça os seus compromissos e, portanto, que haja
nele algo mais forte do que a capacidade de esquecer. Segundo Nietzsche, para que haja
ser humano tem de haver uma memória que se contraponha, que seja mais forte do que
a capacidade para o esquecimento. Não se trata, todavia, de fazer do homem um animal
incapaz de esquecer, mas de o converter gradualmente num animal que não queira
esquecer. Assim, precisamente antes que uma vontade de memória se produza, o ser
humano deve ter aprendido a separar o acontecimento necessário do casual, sendo
apenas o primeiro aquele que se encontra vinculado a essa memória, ou seja, aquilo
propriamente memorável, uma “memória da vontade”. Precisamente, este animal que
precisa esquecer no qual o esquecimento passa a ser uma força, uma “saúde forte”,
desenvolveu em si, uma faculdade oposta, uma memória, com cujo auxílio o
135

esquecimento é suspenso em determinados casos, nos casos em que se deve prometer.


Para poder dispor desse modo do futuro, o homem aprendeu a distinguir o
acontecimento casual do necessário, a pensar de maneira causal, em ver e antecipar a
coisa distante como sendo presente, em estabelecer com segurança o fim e os meios
para o fim. Graças a esta dupla operação de separação e memória, o homem vê-se capaz
de calcular, contar, confiar, mas para isso, o quanto ele não precisou antes de tudo
tornar-se ele próprio confiável, constante, necessário, também para si na sua própria
representação, para poder enfim, como faz quem promete, responder por si como porvir.
Afinal, já Nietzsche não considerava o homem uma promessa quando disse “Ele desperta
um interesse, um tesão, uma esperança, quase uma certeza, como sem com ele algo se
anunciasse, algo se preparasse, como se o homem não fosse uma meta, mas apenas um
caminho, um episódio, uma ponte, uma grande promessa”. Mas para que o homem seja
capaz de fazer promessas é necessário ainda normalizá-lo, neutralizar a sua
imprevisibilidade para que, submetido à uniformidade, se torne um “igual entre iguais”,
previsível. Para que essa previsibilidade seja alcançada foi necessário colocar o homem
sob o jugo do que Nietzsche denominou de “moralidade do costume” ou “moralidade da
moral”,22 isto é, do trabalho de imunização que, ao longo da História, o homem foi
realizando sobre si próprio, o conjunto das antropotécnicas às quais foi aderindo no
sentido de se adestrar, controlar os seus impulsos, racionalizar as suas energias, quer do
“social”, o conjunto de regras explícitas e implícitas que servem para organizar uma
comunidade. Um autêntico trabalho do homem sobre si mesmo desde os períodos mais
longos de sua existência (pré-histórico), encontra nisto todo seu sentido e tudo que com
ele vier, tirania, dureza, idiotismo, mas com a ajuda da moralidade do costume e de uma
certa “camisa de força social”, o homem conseguiu e foi realmente tornado confiável. O
homem que pode fazer promessas. O indivíduo soberano, igual apenas a si mesmo, o
indivíduo autônomo – supramoral. Aquele que pode fazer promessas e nele
encontramos, vibrante em si, uma consciência de poder e liberdade, um sentimento de
realização.
Nietzsche (2008, pp. 49-50):

22
Ver sobre isso, a nota de Rubens Rodrigues Torres Filho, no volume dedicado a Nietzsche na colação “Os
Pensadores (Abril Cultura), por ele traduzido. A nota encontra-se na página 159, também pode ser lido no
§ 9º de Aurora como “Conceito da Eticidade do Costume”.
136

Este libertino ao qual é permitido prometer, este senhor do livre-arbítrio, este


soberano – como não saberia ele da superioridade que assim possui sobre
todos os outros os que não podem prometer e responder por si, quanta
confiança, quanto temor, quanta reverência desperta – ele “merece” as três
coisas – e como, domínio sobre si, lhe é dado também o domínio sobre as
circunstâncias, sobre a natureza e todas as criaturas menos seguras e mais
pobres de vontade? O homem “livre”, o possuidor de uma duradoura e
inquebrável vontade, tem nesta posse a sua medida de valor: olhando para os
outros a partir de si, ele honra ou despreza; e tão necessariamente quanto
honra os seus iguais, os fortes e confiáveis (os que podem prometer) – ou seja,
todo aquele que promete como um soberano, de modo raro, com peso e
lentidão, e que é avaro com sua confiança, que distingue quando confia, que
dá sua palavra como algo seguro, porque sabe que é forte o bastante para
mantê-la contra o que for adverso, esmo “contra o destino” –: do mesmo
modo ele reservará seu pontapé para os débeis doidivanas que prometem
quando não podiam fazê-lo, e o seu chicote para o mentiroso que quebra a
palavra já no instante em que a pronuncia.

Nietzsche continua seu raciocínio perguntando como se cria essa sujeição, essa
memória, concluindo que, para que algo seja recordado permanentemente, há que
gravá-lo na memória a fogo, pelo que tem de doer sem cessar. Para gravar algo indelével
na inteligência voltada para o instante, o leviano, desde a pré-história do homem há a
sua mnemotécnica. Apenas o que não cessa de doer permanece na memória, ou melhor,
lhe fornece o seu elemento genético, a constitui. Só aquilo “cravado na pele” como uma
marca e uma cicatriz. Grava-se algo com o fogo para que fique na memória, um axioma
da psicologia antiga. Uma persistência do terror. A criação de uma consciência subjetiva,
inseparável do sangue, dos martírios e dos sacrifícios, quando o homem sentiu a
necessidade de criar em si uma memória; os mais horrendos penhores e sacrifícios (como
o do primogênito), mutilações, castrações, castigos, perfurações, religiões como sistemas
de crueldade, traduz-se numa ascética onde procedimentos e formas de vida são meios
para impedir que as ideias assim gravadas entrem em concorrência com as demais,
tornando-as inesquecíveis, um instinto que divisou na dor, o mais poderoso auxiliar da
mnemônica. Meios ascéticos em que algumas ideias devem se tornar sempre presentes,
inesquecíveis, onipresentes, insubstituíveis. De onde surgiu a ideia de uma equivalência
entre prejuízo e dor? O grande conceito moral de “culpa” teve origem no conceito
material de “dívida”? Ou que o castigo, seria uma reparação? Segundo Nietzsche, sobre
a base de uma penalidade prévia, de carácter excessivo e cruel, que tornou o homem
num animal capaz de prometer, isto é, que fez dele um ser devedor. A relação entre
credor e devedor é, portanto, tão antiga quanto à existência de “pessoas jurídicas”, as
137

quais, por sua vez, remetem igualmente a formas básicas que são as de compra, venda,
troca, em suma e as transações. Esse pensamento teve de servir para a explicação de
como surgiu o sentimento de justiça, segundo o qual o criminoso merece castigo porque
“podia ter agido de modo diferente”, é na verdade, uma forma bem tardia do julgamento
e dos raciocínios humanos. A margem de suposição de liberdade ou não liberdade e graus
dos mesmos. A possibilidade de o animal “homem” começar a fazer distinções entre
vontade livre e consciente, do intencional, do negligente, do causal, da responsabilidade.
Durante um grande período da história humana, não se castigou porque se
responsabilizava o delinquente por seu ato, ou seja, não somente por isso. Não somente
pelo pressuposto de que um criminoso ou culpado devia ser castigado, mas sim com
ainda hoje se vê nas relações entre pais e filhos. A relação de castigo e raiva. Pais castigam
seus filhos por raiva devido uma perda, um dano sofrido. Esta raiva se canaliza em quem
causou o dano, portanto quem causou o dano está em dívida, possui um débito. Portanto,
qualquer dano tem seu equivalente e pode ser realmente compensado, mesmo que seja
com a dor do seu causador. Há aí a equivalência entre dano e dor. Uma relação contratual
entre credores e devedores. A relação de proporção entre prejuízo (dívida) e dor tem o
seu duplo genético na relação credor-devedor, esta proporcionalidade entre dano
causado e retribuição configura-se como consequência de uma relação anterior,
primitiva, que organizaria o socius, a saber, a relação credor-devedor. É precisamente
nessa relação de credor-devedor que se estabelece uma memória. A memória é
conjurada pela relação credor-devedor, pelo desequilíbrio, pela assimetria que esse tipo
de relação estabelece. Aquele que promete o reembolso (o devedor), oferece uma
garantia (uma promessa) de que cumprirá com o prometido, não só para se credibilizar
ante o seu credor, mas se for o caso, também como pagamento e para “reforçar na sua
própria consciência a obrigação, o dever do reembolso”, que se consubstanciará no seu
corpo, na sua liberdade, em suma, em qualquer coisa como que um direito natural a que
lhe assiste.
Em caso de insolvência ou descumprimento, o credor vê-se compensado,
compensação que aludirá a uma equivalência com o dano causado, onde o credor se vê
no direito de receber uma indenização pelo dano sofrido da ordem da satisfação interior,
isto é, a satisfação de, sem remorso, poder exercer o seu poder sobre um impotente.
Assim, por intermédio do castigo, o credor cristaliza o afeto de superioridade. É a
138

possibilidade de castigo que cauterizaria dívida, a ferida, a assimetria. É nesta esfera das
obrigações que nasce o mundo moral: “culpa”, “consciência”, “obrigação”, “carácter
sagrado do dever”, “responsabilidade”. A gênese do mundo moral reside no castigo. Mas
como é que o sofrimento pode ser uma compensação para a dívida? O devedor para
inspirar confiança em sua promessa de restituição, para garantir a seriedade e a
santidade de sua promessa, para reforçar na consciência a restituição como dever e
obrigação, por meio de um contrato empenha ao credor, para o caso de não pagar, algo
que ainda possua, sobre o qual ainda tenha domínio e poder, como seu corpo, sua
mulher, sua liberdade ou sua vida. Sobretudo, o credor podia infligir ao corpo do devedor
toda uma gama de penitências, humilhações, dores, açoites, castigos, torturas. O
exemplo que Nietzsche utiliza é cortar tanto quanto parecesse proporcional ao tamanho
da dívida. E com base nisso, houve em toda parte avaliações precisas, terríveis de suas
minúcias, “avaliações legais” de membros e partes do corpo. Um progresso, prova de
uma concepção jurídica mais livre, mais generosa, mais romana, que a lei das Doze
Tábuas decretasse ser indiferente que os credores cortassem mais ou menos nesse caso.
Nietzsche (2008, p. 54):

A equivalência está em substituir uma vantagem diretamente relacionada ao


dano (uma compensação em dinheiro, terra, bens de algum tipo) por uma
espécie de satisfação íntima, concedida ao credor como reparação e
recompensa – a satisfação de quem pode livremente descarregar seu poder
sobre um impotente, a volúpia de “fair ele mal pour le plaisir de le faire”, o
prazer de ultrajar: tanto mais estimado quanto mais baixa fora a posição do
credor na ordem social, e que facilmente lhe parecerá um delicioso bocado,
ou mesmo o antegozo de uma posição mais elevada. Através da “punição” ao
devedor, o credor participa de um direito dos senhores; experimenta enfim ele
mesmo a sensação exaltada de poder desprezar e maltratar alguém como
“inferior” – ou então, no caso em que o poder de execução da pena já passou
à “autoridade”, poder ao menos vê-lo desprezado e maltratado. A
compensação consiste, portanto, em um convite e um direito à crueldade. –

Apenas porque o desprazer do lesado é trocado por um contra prazer: o de fazer


sofrer. A punição aparece, assim, como instrumento de compensação que providencia
um contra prazer ao prazer do qual o credor lesado se vê furtado. Esse contra prazer é
da índole da punição, da tortura, do sofrimento causado ao seu devedor. É que ver sofrer
dá satisfação, fazer sofrer dá ainda mais. Fazer sofrer era altamente gratificante na
medida em que o prejudicado trocava o dano e o desprazer pelo dano, por um
139

extraordinário contra prazer: causar o sofrer. Fazer sofrer como satisfação-solvência. Sem
crueldade não há festa. Nietzsche diz que naquela época a humanidade ainda não se
envergonhava de sua crueldade. É apenas o “animal homem”, apartado dos seus
instintos, que começa por se envergonhar deles, colocando o sofrimento como “o
primeiro argumento a marchar contra a existência”. O sofrimento contava como uma
escada da existência, um momento de amplificação da felicidade, um momento de
exuberância e festividade, um momento, portanto, onde a existência era levada ao seu
extremo porque, potenciando-a, o sofrimento elogia a vida, dava-lhe sentido. Quando
cresceu a vergonha do homem diante do homem houve um ensobrescimento do céu
acima dele mesmo. A moralização e ao amolecimento doentio, nas quais o bicho
“homem” aprende afinal a se envergonhar de seus instintos. Assim, Nietzsche avança
mesmo a hipótese de que o prazer despoletado pelo sofrimento não tenha sido
erradicado do mapa dos afetos, mas que tenha, por ora, sido alvo de uma sublimação,
sutilizado ou ainda ter sido suavizado. Isto é, teve que se fazer mostrar e aparecer no
âmbito do imaginário e do psíquico. Neste caso, o elemento de revolta face ao sofrimento
não reside no (em si) do sofrimento, na carne escalpada pelo gume, mas na ausência de
sentido que, hoje em dia, o sofrimento goza. Por fim, Nietzsche considera a gênese do
pensamento de maneira que está involucrada nas relações interpessoais determinadas
pela forma credor-devedor, comprador-vendedor (uma relação pessoal), pois é aí que,
primeiramente, “uma pessoa se mede com outra pessoa”. A mercantilização da vida, a
medição dos preços, o estabelecimento de valores, a procura de equivalências,
posteriormente, a barganha, a materialização das trocas, o cinismo, a ideologia foram
preocupações que não só marcaram o pensamento do Homem, desde os primórdios,
como, segundo Nietzsche, constituíram o pensamento. Assim, o Homem surge como
aquele animal que marca distâncias, que mede.23 Isso ocupou com tanta força o

23
SLOTERDIJK, Peter. O Sol e a Morte: Investigações Dialógicas – Diálogos com Hans-Jürgen Heinrichs.
Tradução: Carlos Correia Monteiro de Oliveira. Relógio D’água Editores, 2007, p. 270. Aqui seria
interessante retornar para a antropologia anfíbia da qual Sloterdijk fala que homens não são seres
monoelementais. A saída de animais aquáticos para a terra, os proto-símios podem ter relação direta com
a formação da má consciência. Não podendo mais saciar as antigas demandas que eram satisfeitas no
ambiente aquático, esses instintos contidos viraram um vórtice que se descarrega para dentro, causando
dor em cada um desses novos terrestres (tudo no terrestre passa a ser trabalho e esforço). Dor interna
como a dor da culpa, como o elemento central da má-consciência do homem ou de algum ancestral seu
antigo. Mas também, talvez daí tenha surgido de como o homem pode pensar metafisicamente por formas,
linhas e pontos. Disso passando para o campo moral do homem, aquele que mede, e se mede, lança, avalia,
marca distâncias, se vê superior, até a ideia de culpa. A ideia do homem como mais próximo dos anfíbios
140

pensamento dos mais antigos homens que em um certo sentido (constituiu) o


pensamento. Aí se cultivou a velha perspicácia onde se poderia situar o primeiro impulso
do orgulho humano, uma primazia diante dos outros animais. A palavra mensch (manas
– consciência em sânscrito) expressa até hoje algo deste sentimento de si: o homem
(mensch – em alemão) designava como aquele ser que mede, faz valorações, valora como
animal avaliador de cálculo e moral. Comprar e vender, juntamente com seu aparato
psicológico, são talvez mais velhos do que os começos de qualquer organização social ou
comunitária. Foi a partir dessas formas rudimentares de direito pessoal que o nascente
sentimento de troca, contrato, débito (em alemão – Schuld) e (em inglês – Should),
direito, obrigação, mas também dever, compensação, no sentido pessoal-patrimonial
foram transferidos para os primeiros complexos sociais, entrando a partir daí, o hábito
de comprar, medir, avaliar, calcular um poder.24
A relação de direito privado entre o devedor e seu credor, foi mais uma vez, e
de maneira historicamente curiosa e problemática, introduzida numa relação na qual
talvez seja, para nós, homens modernos, algo inteiramente incompreensível: na relação
entre os vivos e seus antepassados. Na originária comunidade tribal, a geração que vive
sempre reconhece para com a anterior, e em especial para com a primeira, fundadora da
estirpe, uma obrigação jurídica, e não um vínculo meramente sentimental, seria lícito
inclusive contestar a existência desta última durante o mais longo período da espécie

talvez seja mesmo uma boa sugestão e Sloterdijk não a deixa passar. Sloterdijk caminha por terrenos com
experimentos do pensamento e descrevendo como que noções sofisticadas do pensamento racional
podem estar inseridas em atos inicialmente primitivos, algo como proto-simióticos. Daí vem o elemento
terra e uma chamada antropotécnica: desconexão. O homem começa pela pedra, e ao lançá-la, lança a si
próprio. Essa pedra atinge um ponto qualquer no espaço o faz lançar de novo e de novo, surge então a
noção de causalidade ligada coma noção de previsibilidade. Assim, como a ida para o terrestre, o fez pensar
de maneira metafísica, por linhas, formas, retas, uma geometria psicológica. O que nunca aconteceria no
âmbito antigo aquático. Sloterdijk quando afirma que o homem não descende do macaco, mas da pedra.
É a pedra o verdadeiro início do processo de humanização e hominização, na medida em que seu uso
inaugurou a prototécnica humana através da produção de sentido ontológico com efeitos no espaço
aberto. É justamente o primeiro gesto do lançar da pedra que abre a clareira do ser antes de qualquer
linguagem, de qualquer palavra articulada. Haeckel havia dedicado, em 1874, a sua Anthropogenie, na qual
reconstruíra a história do homem desde os peixes do Siluriano até os macacos-homens ou Antropomorfos
do Mioceno.
24
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia. 1ª Edição. Tradução: Joana
Moraes Varela e Manuel Maria Carrilho, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 146. Aqui os franceses
caminhariam sem sentido parecido com Nietzsche, com efeito o social não se baseia no postulado que tem
subjacente a troca “onde o essencial seria circular e fazer circular”, mas é o lugar de “inscrição onde o
essencial é marcar e ser marcado”. Nietzsche diria que o social é o terreno da mensuração (medir e medir-
se entre si), mas para os franceses: a essência do socius consiste em mapear e dispor os corpos (tatuar,
excisar, incisar, cortar, escarificar, mutilar, cercar, iniciar).
141

humana. A convicção prevalece de que a comunidade subsiste apenas graças aos seus
sacrifícios e às realizações dos antepassados, e de que é preciso lhes pagar por isso com
sacrifícios e realizações: reconhece-se uma dívida (Schuld), que cresce gradativamente
com o tempo, pelo fato de que os antepassados não cessam, em sua sobrevida como
espíritos poderosos, de conceder à estirpe novas vantagens e adiantamentos a partir de
sua força. Um tipo de pagamento de hipoteca ou pedágio por nossa estadia
momentânea.
O que se lhes pode dar em troca? Sacrifícios (inicialmente para alimentação,
entendida do modo mais grosseiro), festas, música, homenagens, sobretudo obediência,
pois os costumes são, enquanto obra dos antepassados, também seus preceitos e ordens.
Não vemos isso em Caim e Abel? É possível lhes dar o bastante? Esta suspeita permanece
e aumenta de quando em quando exige um imenso resgate, algo monstruoso como
pagamento ao “credor” (o famigerado sacrifício do primogênito, por exemplo, sangue,
sangue humano, em todo caso). Segundo esse tipo de lógica, o medo do ancestral e do
seu poder, a consciência de ter dívidas para com ele, cresce absurdamente na medida
em que cresce o poder da estirpe, na medida em que ela mesma se torna mais vitoriosa,
independente, temida e venerada. Em contrapartida, quando mais degenerada, fraca,
debilitada, a estirpe o medo do espírito fundador diminui. Os ancestrais das estirpes mais
poderosas deverão afinal, por força da fantasia do temos crescente, assumir proporções
gigantescas e desaparecer nas trevas de uma dimensão divina inquietante e inconcebível,
o ancestral termina necessariamente transfigurado em um deus. Talvez esteja nisso a
origem dos deuses, uma origem no medo, portanto. Uma relação intermediária também
seria vista, quando se formas as estirpes nobres, as quais realmente restituíram com
juros, a seus criadores, seus ancestrais como deuses ou heróis, as qualidades que nesse
tempo haviam tornado evidentes nelas mesmas, qualidades nobres. Enobrecimento e
aristocratização dos deuses, o que não significa necessariamente, a sua santificação, viria
por um processo de evolução da consciência de culpa.
Esse traço de culto ao estranho é visto e se mantém enquanto o deus bom dos
monoteístas puder ser representado como suficientemente terrível. A propaganda do
“Deus do amor” só apareceria posteriormente. O deus dos filósofos e o deus dos místicos
neoplatônicos é dissolvido em fascinação (que produz temor), em familiaridade, mas
ainda escuro. Há a conversão de um deus na espécie de imanência ou radiação razoável
142

e vai se espraiando em um deus ocioso. Uma figura que Sloterdijk destaca nos theotopos
é a manutenção da distância aos deuses arcaicos pela forma de consciência de sua
reserva de caça que nos primitivos theotopos é a função de sacerdote. Eles funcionam
como uma “polícia de fronteiras” da esfera dos vivos, se encomenda a tarefa de limitar
certas incursões do outro lado. A forma de satisfação dos que estão no oculto ou do lado
de lá é visto na forma de oblação. Os do além requisitam e exigem uma parte de algo ou
alguém. Os homens arcaicos estavam acostumados em pagar um imposto aos mortos e
aos estrangeiros pertenciam as suas obrigações contraídas. As primeiras delegações de
fazendas foram, sem dúvida, as pedras sacrificiais paleolíticas, nas quais o medo
apreensivo satisfazia seus tributos. Veremos também coisas como um reembolso aos
mortos na forma de alimentos e carne, aceitando a possibilidade de que espectros e
deuses possuem fome e sede. Coisas como ofertas, oferendas e comunhões passariam a
ser predominantes. Deuses vistos como amos, aceitavam a contribuição como
submissão. Contribuições caridosas para certos deuses e deusas era lei porque eles
pareciam escutar o dialeto da automutilação dos seus amantes. Com as economias dos
templos se deu início a uma “política de redistribuição do espírito contributivo”. Algo
mais recente na conversão do theotopo para uma “caixa solidária”. Diante disso, a cultura
não é outra coisa que a história da interiorização da oferenda sacrificial.
Essa ligação com o mundo da vida para com os nossos vizinhos, os mortos e
deuses, mobiliza uma capacidade de tráfego fronteiriço. Nos olhos mais modernos seriam
disposições mediadoras, digamos, uma aptidão para profissões terapêuticas. A
capacidade de sintonizar com comunicações do indiretamente dado. Os deuses não
representam nada que meros espíritos do acampamento ou da tribo que vão se
transformar para o deus do povo. Funções fundamentais são tidas a eles. A capacidade
de ver ou prever o futuro e predizer coisas verdadeiras. A capacidade de encontrar meios
e caminhos de comunicação e curas (nos casos de enfermidade). E a capacidade de
inspiração poética como seria visto com as canções e vozes das Musas. Poesia e música
ganharam vida como theotopias e somente depois se transformaria as Musas de cultos
religiosos em práticas próprias sem conexão direta com transcendência. Se formos para
a esfera filosófica, foi Platão quem foi significativo para a mudança de comportamento
humano em theotopo. Ele pôs um modo modificado e novas maneiras de dar solução
para o bairro do “mundo da vida” com o mundo do espírito só que agora transformado
143

em céu das ideias. Academias e mais tarde igrejas, possuíam qualidades theotópicas.
Nelas se vê a tentativa de reduzir as possessões às convicções. Com a modernidade,
veríamos o desencantamento de ambas, assim como seus representantes seriam pessoas
mais comuns sem a estandardização para a popularização. No cristianismo ficou viva por
muito tempo a ideia de que, de tempos em tempos, os seres humanos, como meio de
um além não muito distante, tinham capacidades como a clarividência, poderes
curativos, etc. São Paulo falaria em “dons da graça” como uma exigência de subordinação
do culto ao Senhor, que também sob os auspícios cristãos os carismas são transformados
facilmente em possessões malignas. É o theotopo o distrito dos deuses. O Deus do
theotopo arcaico é uma representação não determinada do que há do outro lado. Pode
significar por um lado como um aliado, auxiliador, conjurado e consanguíneo do clã. Por
outro, como ameaçador, exigente, imprevisível e rancoroso. Entre um e outro devemos
incluir um elemento importante. Ele é um sedento por vingança. Essa ambivalência é feita
por um contrato entre mortos com os vivos. Uma relação inerente aos espíritos do
passado, não só atribuída a uma culpa inconsciente dos vivos e as expectativas de
vingança dos mortos.
Essa é uma perfeita representação do theotopo proveniente do thanatotopo. Os
deuses arcaicos são as categorias introjetadas de invasores e lecionadores com as quais
contam os grupos culturais existentes. Uma figura arcaica de um Deus é uma figura de
estresse que uma cultura dá a si mesma. Veremos em culturas que a soma de deuses e
feras permite uma propagação e uma conexão universal entre deuses sanguinários e
animais sanguinários com a insinuação de que em territórios humanos onde foram
vítimas de feras e bestas acabavam em uma transformação das mesmas em feras
fascinantes, em deuses da própria cultura. Uma domesticação simbólica das feras por sua
vítima potencial. Em consequência, o drama do processo da civilização estaria
prefigurado na transformação dos deuses de invasão e catástrofe em deuses de criação
e mantenimento. Uma metamorfose, que finalmente acabou no compêndio de todos os
deuses positivos parciais na constituição monosférica. Essa instauração do Um constitui
o maior documento justificado do caráter de sistema de imunidade da metafísica:
partindo da xenolatria fascinante e da veneração do estranho carnívoro nos cultos
sacrificiais locais, o exterior hipnógeno se incorpora progressivamente ao interior, até
que, ao final, haja um interior próprio super dilatado que, em seguida,
144

consequentemente, cede a entropia. Provavelmente, o culto aos deuses-animais-


domésticos, que, como Apis, o boi sagrado dos egípcios, já mostrava características de
suavidade e benevolência, significa um passo intermediário no caminho a sabedoria
imperial da inclusividade da grande cultura. A domesticação dos animais precede a
domesticação de deuses: até chegar a um cordeiro de Deus, que se deseja sacrificar
voluntariamente por amor aos renitentes seres humanos. E o cordeiro de Deus?
Por outro lado, no desejo do homem pela fascinação de deuses estranho. Alguns
outros teóricos iriam falar em catástrofes que desembocaram no nascimento de grandes
religiões sacrificiais. Algumas culturas primitivas interpretavam acontecimentos cósmicos
como nuvens gigantes de meteoritos sobre a terra e fenômenos celestes
correspondentes. Desse terror dos astros estranhos, surgiram deuses formidáveis. Por
exemplo, o fato de que uma estrela ou o sinal de uma estrela em sumério-babilônio seja
um ideolograma de Deus. Essas seriam as condições para um objeto sagrado em atuar
com êxito no registro afetivo masoquista do religioso. Os contornos do theotopo
aparecem quando uma “sociedade” formam relações com os mortos ou métodos de
consecução de saber. O interesse por assuntos de outro mundo cai em muito na
Modernidade. Os mortos como “reservatórios” superempíricos e de ideias e verdades
não desveladas passam a quase inexistir. O destino de algo invisível é bem perto de algo
dispensável, insignificante ou descartável. Dos mortos se pode esperar algumas coisas
como testamentos, dívidas, contas bancárias, heranças, mas dos últimos não mortos
agrupam seus descendentes neuróticos que a psicanálise toma de conta por perceber
que são mais uma empresa funerária de padres e antepassados que uma forma de
cicatrização. O valor de uso dos mortos como memória coletiva se limita ao papel de
assegurar um passado comum ao grupo de gente civilizada. O passado é, e serve agora,
de acampamento comum de quem faz seus projetos a civilização futurista. Quem quer
analisar a situação theotópica atual deve se ater aos monoteísmos marcados pela sua
decadência. A “profanação” consiste em devolver ao uso livre dos homens as coisas que
pertenciam aos Deuses, e que por isso, haviam sido subtraídas ao uso humano. Coisas
poderiam ser sagradas ou religiosas que de algum modo pertenciam aos deuses. Como
tais, elas eram subtraídas ao livre uso e ao comércio dos homens, não podiam ser
vendidas, nem dadas como fiança, nem cedidas, nem como usufruto ou gravadas de
servidão. O que se denominava de “sacrilégio” era qualquer ato que violasse ou que
145

transgredisse esta sua especial indisponibilidade, trazendo para um caráter ordinário


mundano do uso. Se “consagrar” (sacrare) era o termo que designava a saída das coisas
da esfera do direito romano, profanar, por sua vez, significava restituir ao uso comum,
restituir ao livre uso dos homens. Daí se tem o sacrifício como um dispositivo de se fazer
uma passagem do profano para o sagrado e da esfera humana para a divina com um tipo
de separação. Só é possível se ter religião com separação, subtração de coisas, pessoas,
animais, lugares. Por isso que se diz que algo que foi separado ritualmente pode ser
restituído mediante o rito, à esfera profana. Uma das formas mais simples de profanação
é o contato (contagione). Um caráter parecido com o contato de contaminação. O toque
torna a coisa profana, por isso, o mundo sagrado é um mundo como o de um museu,
onde o toque é a última coisa que se quer. Na terminologia de Sloterdijk, poderíamos
falar em “secessão” como ele utiliza o termo em You Must Change Your Life (2013).
Wittgenstein apontou bem claramente quando notou que “culturas são regras
monásticas”, o termo “cultura” foi encolhido para um resíduo peneirado. De modo algum
toda a forma de vida que aparece nas "sociedades" deve ser considerada cultura, apenas
as que podem existir sob uma regra monástica em termos de explicitação, rigor, vigilância
e redução ao essencial - e que permitem um modus vivendi cujo primeiro e último critério
é o alívio das consequências da sexualidade.
Agamben interpreta a religião como o relegere. O termo religio, segundo uma
etimologia menos técnica, não deriva do religare (aquilo que liga o humano e o divino),
mas de relegere, que indica a atitude de escrúpulo e de atenção que deve caracterizar as
relações com os deuses, a inquieta hesitação (um “reler) perante as formas e fórmulas
que devem ser observadas no respeito entre a separação sagrado e profano. Religio não
é o que une homens e deuses, mas aquilo que cuida para que se mantenham distintos. À
religião não se opõe a incredulidade e a indiferença com relação ao divino, mas sim, a
negligência, uma atitude distraída, desvinculada da religio das formas, diante das coisas
e de seu uso, diante das formas da separação e do seu significado. Portanto, a religião
significa estar atento, desperto, dar uma assistência para as coisas que são sagradas, ter
cuidado de que se mantenham separadas do ordinário. Uma separação se faz necessária.
O profanar seria abrir a possibilidade de uma forma especial de negligência, que ignora a
separação, faz dela um uso particular. Os homens passam a atuar como zeladores de
Deuses. Em consequência, a profanação consiste em exercer uma atividade de descuido
146

consciente frente àquela observância e pastoreio. Descuido frente ao dinheiro. Ao jogar


com ele, e ao fazê-lo e pedaços. A profanação do dinheiro dar-lhe um uso totalmente
distinto é um jogo. A profanação converte o dinheiro, que hoje se tornou tão fetichizado,
em um jogo profano. Estado de separação e perda radical, o capitalismo profana a
transcendência teológica e instaura o culto à mercadoria. A passagem do sagrado ao
profano pode acontecer também de outro meio. Por um uso, ou melhor, um reuso
incongruente com o passado. É o jogo. A maioria dos jogos que conhecemos derivam das
antigas cerimônias sacras, de rituais e de práticas divinatórias que outrora pertenciam à
esfera religiosa em um sentido mais amplo. É por isso que os tabuleiros lembram
bastante livros. Brincar de roda era um rito matrimonial, jogar com bola era reproduzir a
luta dos deuses pela posse do sol, jogos de azar eram práticas oraculares, o pião e o
xadrez eram instrumentos de adivinhação. Émile Benveniste ao analisar a relação entre
jogo e rito mostrou que o jogo não só provém da esfera do sagrado como de alguma
forma é sua inversão. A potência do ato sagrado reside na conjunção do mito que narra
a história com o rito que a reproduz em cena. O jogo quebra essa unidade, como um
ludus (por isso se diz que o jogo tem ludicidade), ou jogo de ação, faz desaparecer o mito
e conserva o rito, como jocus, jogo de palavra, ele cancela o rito e sobrevive somente o
mito. O sagrado é justamente a unidade entre mito e rito. Há jogo quando a unicidade é
apenas uma metade, quando apenas parte de uma operação sagrada é realizada, em
miúdos, só o mito em palavra ou só o rito em ações. Pode-se ver o tamanho cuidado que
na religião cristã se tem com a noção de transubstanciação no sacrifício da missa, e nas
noções de encarnação e manipulação de imagens, objetos e estátuas no dogma trinitário.
Um sistema religioso baseado no próprio Deus como vítima do sacrifício, e por isso, uma
introdução de uma separação. Duas naturezas em uma só pessoa, ou em uma só vítima,
a dualidade entre divino e humano que ameaçava paralisar a máquina sacrificial do
cristianismo. A encarnação, por exemplo, garantia que a natureza divina e humana
estivesse presente sem ambiguidade na mesma pessoa, assim como a transubstanciação
(pão e vinho) se transformassem sem resíduos no corpo de Cristo. A profanação é uma
práxis da liberdade que nos liberta da transcendência, de essa forma de subjetividade.
Isso significa que o jogo libera e desvia a humanidade da esfera do sagrado, mas sem a
abolir simplesmente. A profanação abre um campo, um espaço do jogo para a imanência.
Temos duas formas de pensamento. O que trabalha e o que joga. Tanto em Hegel como
147

em Marx, vemos que eles estão dominados pelo princípio do trabalho. Da mesma forma,
Heidegger em Ser e Tempo é, todavia, um devedor do trabalho. A “existência” em sua
“preocupação” ou “angústia” não joga. Somente um Heidegger mais tardio falará em um
jogo que se baseia na “serenidade”. Deste modo, interpreta o mundo como jogo.
Presente à “abertura de um espaço de jogo”. “O espaço de jogo do tempo” de Heidegger
remete a um espaço de tempo que está livre da forma de trabalho. É apenas um espaço
de tempo de acontecimentos no qual se supera a psicologia como meio de subjetivação.
Não seria no capitalismo esses livros e tabuleiros os nossos cardápios, contratos e menus
de pedidos?
As religiões como o Cristianismo e o Judaísmo atuam como administradores do
legado na própria casa: são religiões musealizadas. A museificação do mundo é
atualmente um dado de fato. As potências espirituais que definiam o homem – arte,
religião, filosofia, natureza, até mesmo o campo político retirou-se, uma a uma, para o
Museu. Um tipo de dimensão separada para a qual se transfere o que há em um tempo
era percebido como verdadeiro e decisivo, e agora já não é. Tudo hoje pode se tornar
Museu, no sentido em que esse termo indica a exposição de uma impossibilidade de usar,
de habitar, de fazer experiência. No Museu, a analogia entre capitalismo e religião se
torna evidente. Ele ocupa um espaço e uma função em outro tempo reservados ao
Templo como local de sacrifícios. Aos fies no Templo (ou aos peregrinos na Terra) de
Templo em Templo, de santuário em santuário, são hoje nada mais são que os turistas
que viajam em um mundo em Museu. Sofremos no século XX de uma inflação do
exponível. Em primeira instância, porque existe uma inflação paralela do produzível. O
aumento incrível dos meios de produção de todo tipo carregou consigo um crescimento
incomensurável do poder produtivo. Cada vez mais maiores fragmentos da realidade se
convertem em matéria-prima para a produção em material de partida para imagens, de
relações, transformações. Tudo o que foi produzido pode converter-se a sua vez em
matéria-prima para se rejuntar novamente como matéria sofrente dos efeitos do
trabalho. Tanto no caso de mercadorias móveis como imóveis, o processo de
modernização, em princípio é exponível como todo aquele que joga um papel nos
processos seculares de incremento do produzível. A exposição já não inclui só os
produtos imediatos de poder de realização de obras, também assume as matérias-
primas, os produtos auxiliares, os protótipos, os desenvolvimentos intermediários, os
148

desejos. Na linguagem de Marx significaria: não só se expõe produtos, mas também


meios de produção, inclusive relações de produção. As paisagens e os espaços habitáveis
já foram declarados também objetos de exposição. A estrutura social por completo aspira
a formar parte do museu. Isto não é de todo incompreensível. Se poderíamos pegar o
pincel com o qual Rafael pintou a Escola de Atenas, não podemos imaginar que impediria
aos diretores de museu expor esta ferramenta junto da obra. Mas assim, se os restos
mortais dos trabalhos de Rafael, foram conservados até nossos tempos, mumificados
segundo normas da taxidermia, quem poderia garantir que não se poderia admirar em
uma sala antiga? Tudo aquilo que tem a ver com a maravilha moderna da produção, de
obras pode ser incorporado na forma correspondente de revelação expositiva. A atual
inflação do disponível, do escenificável, tem um motivo mais radical na mesma dinâmica
das artes modernas. Ao mostrar a exposição moderna pela autorrepresentação da
capacidade de criar obras, no curso do século XX o âmbito do exponível estala mediante
uma revolução das artes. Por uma parte: mediante a radical autoliberação da expressão
e da construção por outra mediante a aplicação do incessante do conceito de arte. Junto
com suas diluições didáticas e suas disseminações político-culturais, ambas explosões
geram o efeito comum de uma tendência ao incremento da arbitrariedade que abarca
todo o século. A cultura contemporânea de exposições e férias de arte só se faz
compreensível como sistema de organização da arte para a transformação da
arbitrariedade artística ao aproximar-se a seu valor maior. Seu êxito consiste em
processar as flutuações da arte moderna de modo hermenêutico, museológico e
mercantil de tal maneira que o incremento de arbitrariedade possa coexistir com a auto-
aceleração do poder criador de arte. Todos os parâmetros tradicionais da obra podem
revolucionar-se, o que permanece fixo é a convertibilidade de forma de obra e de forma
de valor.
Disto, os jovens inversores no sistema versátil da arte não necessitam que se
lhes contem nada sobre o espiritual. Foram extraídas as conclusões da modernidade, a
equação entre forma de obra e forma de valor se transformando em estado puro. No
mais interno das obras brilha a possibilidade de ouro da possibilidade pura podertadora
de valor. Se se pode dizer de uma obra de arte que nela se enquadra um estado de poder
criador de forma de cristal de valor adequado para a apropriação. As obras são expostas
como ações versáteis estéticas. A ampliação do conceito de arte é imagem especular da
149

expansão de subjetividade do artista criador de valor. Por último, tudo quando toca a vida
do artista deve ser transformado em arte. O rei Midas está por toda parte. Se havia sido
juridicamente possível, Andy Warhold haveria vendido ao colecionador com sólidas
finanças partes inteiras de edifícios de Nova Iorque que havia transformado em obras de
arte ao passar por elas.
Por isso Benjamin diz que o interior representa o universo para o homem
privado. Naquele, reúne este o longe e o passado. O seu salão é um camarote no teatro
do Mundo”. Enquanto peregrinos e fies participavam no final de um sacrifício que,
separando a vítima na esfera sagrada, restabelecia as justas relações entre o divino e o
humano, os turistas celebram hoje, sua própria pessoa, um ato de sacrifício, que consiste
em uma experiência da destruição do uso. Profanar como quem devolve à comunidade
humana aquilo que foi subtraído através da sacralização. Profanar é um conceito romano
– significa tirar do templo (fanum) onde alguma coisa foi posta, ou retirar inicialmente do
uso e da propriedade dos homens. Por isso, a profanação pressupõe a existência do
sagrado (sacer), como um ato de retirar do uso comum. Surge aí a noção de que profanar
é tocar no que é consagrado para libertá-lo e libertar-se do sagrado. Profanar é assumir
a vida como jogo, jogo que nos retira da esfera do sagrado, sendo uma espécie de
inversão do mesmo. Convidando-nos a profanar, Giorgio Agamben alerta para o fato de
termos perdido “a arte de viver”, que a infância o período da mais total profanação da
vida, como Nietzsche já havia anunciado por seu Zaratustra. As crianças sabem jogar,
quebrar, brincar, enquanto os adultos ranzinzas perderam esta capacidade de serem
mágicos e de fazerem milagres com as mãos. Os novos religiosos do capitalismo não têm
pátria alguma, apenas residem na forma de separação. Por isso, o turismo é atualmente
uma das primeiras indústrias capitalistas do mundo que se conhece.
Han (2016, p. 110):

O termo “indústria” provém originalmente da expressão latina industria, que


significa “laboriosidade”. O termo inglês industry continua a manter hoje em
dia o sentido de “laboriosidade” e de “atividade”. Industrial School significa,
mais ou menos, “casa de correção”. A industrialização não só supõe a
mecanização do mundo, mas também a disciplinação do homem. Não se limita
a instalar máquinas, mas também dispositivos que tentam otimizar os
comportamentos humanos – até mesmo os comportamentos corporais – a
nível temporal e econômico-temporal. Torna-se significativo que um tratado
de Philipp Peter Guden, do ano 1768, exibia o título de Polizey der Industrie,
oder Abhandlung von den Mitteln, den Fleiss der Einwohmer zu ermuntern
(“Política da Indústria, ou Tratado para Promover os Meios e a Laboriosidade
150

dos Cidadãos”). A industrialização como mecanização aproxima o tempo


humano do tempo das máquinas. O dispositivo industrial é um imperativo
econômico-temporal que conforma o homem segundo o ritmo das máquinas.
Faz corresponder a vida humana ao processo de trabalho e ao funcionamento
das máquinas. A vida conduzida pelo trabalho é uma vita activa,
absolutamente separada da vita contemplativa.

Numerosos animadores, cantores, bartenders, massagistas propõem os seus


serviços de acompanhantes de viagem, inclusive as prostitutas também chamadas de
acompanhantes com seu novo atendimento, o de viajarem com seus compradores
momentâneos, estamos falando de uma viagem em direção a uma vida fluidificada. Se
como dissemos, o turismo é hoje, o fenômeno da mais alta way of life capitalista. Ele
representa, em todo mundo, junto com o petróleo (que permite tudo), o setor que mais
cresce em termos econômicos e realiza o maior volume de negócios (junto com cirurgias
estéticas e cosméticos). Fenômenos de viagens quase sempre precisam de uma
movimentação por espaços pacificados. Fora disso há o que se chama de “turismo de
risco”. O “mundo globalizado” diz exclusivamente sobre a instalação dinâmica que serve
de invólucro do “mundo da vida” à fração de humanidade com poder de compra. Dentro
dessa instalação, atinge-se constantemente novas altitudes de conforto, como se o jogo
vencedor das minorias que praticam consumo intensivo pudesse prosseguir
infinitamente contra a entropia. O estado de espírito de um cidadão dentro dessa
instalação é um “provincianismo em viagem”. Ele que dá ao espaço interior do mundo
capitalista o seu toque de abertura a tudo o que se pode obter em troca de dinheiro. De
país em país, de café em café, de cinema em cinema. Se o mundo aparecia antes
bloqueado, sua destrava e sua chave para adentrar em portas e instalações diversificadas
passa pelo número. O “espaço inteiro do mundo”, termo que Rilke utilizou no fim de um
Verão em 1914. Um modo de experiência do mundo que é típico de um narcisismo
primário. Quando esse estão de espírito se torna explícito, vemos o ambiente e o seu
prolongamento imaginário serem moldados a partir das experiências de calor e nas
suposições semânticas de um espírito ágil. Espírito que possui a capacidade protomágica
de transformar todos os objetos que toca em coabitantes animados do seu universo.
Bachelard atribuiria a atitude fundamental de Rilke à experiência da “imensidão interior”,
como se pode ver em A Poética do Espaço de 1957. Quando se consegue ter esse
sentimento, o espaço envolvente perde a sua qualidade de estranheza e transforma-se
151

em “casa da alma”. Desse espaço total animado, é possível dizer que já é em si, o “amigo
do ser”.

Cabra-cega. Goya (1797).

Entender isso é fundamental para acompanhar o pensamento que Nietzsche nos


apresenta. Certa semelhança com as análises feitas por Sloterdijk em Crítica da Razão
Cínica se clarificam mais. O olho humano passou a se posicionar nesta perspectiva que
“tudo tem seu preço, “tudo pode ser comprado”, “eu pago Hitler”, um dos mais velhos
cânones morais da justiça, o começo de toda “bondade”, “equidade”, “boa vontade”,
“objetividade”, “isenção” que existe. É bom recordar também que houve uma mudança
introduzida nas orações do “Pai-Nosso” pela Igreja Católica: “perdoai nossas dívidas,
assim como nós perdoamos aos nossos devedores” se transformou em “perdoai nossas
ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”. Nesse estágio inicial,
justiça é a boa vontade entre homens de poder aproximadamente equivalentes, de um
acomodar-se entre si, de entender-se, mediante um compromisso. E com relação aos de
menor poder, forçá-los a um entendimento, a um compromisso entre si. Mas a relação
entre credor e devedor é reativada, encontra uma nova forma: a dívida histórica “entre
os indivíduos do presente e os seus antepassados”. Existe uma espécie de obrigação
jurídica (uma obrigação moral) entre a geração presente e a geração fundadora baseada
na convicção de que a geração atual apenas “subsiste graças aos sacrifícios e aos
152

trabalhos dos antepassados” e que é preciso reembolsá-los por intermédio de sacrifícios


e trabalhos, o que significa a existência de uma dívida impagável que não só não pode ser
cancelada como continua sempre a crescer, uma vez que o espectro dos antepassados
não cessa de engrossar à medida que o tempo avança. Ora, este sentimento de dívida
aumenta em proporção direta com o aumento do poder do grupo, e não o contrário.
Quando o grupo se torna mais forte, próspero, senhor de si, ao invés de esse
assenhoreamento de si ser sintoma de autodeterminação, ele reenvia-se para o passado,
elogiando a salvaguarda que os seus antepassados lhes possibilitaram. A petulância, o
esquecimento, a diminuição do medo face ao poder do espectro do passado são signos
de degenerescência, o que reflete a forma como a deificação do passado se prende com
uma estratégia baseada no medo. A consciência de dívida para com os antepassados
resulta, então, em uma deificação progressiva destes até ao seu ápice, que culminou no
Deus cristão. Ora, este sentimento de dívida para com a divindade: divinização do
passado sobre a forma abstrata unitária é igual a Deus, não deixou de crescer, o que levou
à manifestação do sentimento de culpa. A fé em Deus é, assim, um prolongamento, um
aditamento deste sentimento proveniente da “má consciência”. Como se pode notar na
história, a consciência de ter dívidas para com a divindade não foi eliminada após o
declínio da forma de organização da “comunidade” baseada nos vínculos de sangue, a
humanidade recebeu com a herança das divindades tribais e familiares, o peso das dívidas
ainda não pagas, e o anseio de resgatar-se. A transição é perfeitamente visível quando
uma gama de populações de escravos e servos das glebas optaram e adaptaram-se por
cultos dos deuses senhores. O sentimento de culpa só passou a crescer por milênios.
Toda a história de vitórias, de luta, conciliação e fusão étnica, tudo que é anterior a
definitiva hierarquização de todos os elementos populares, em toda grande síntese racial,
passa a ser refletida no caos genealógico das religiões e deuses, vê-se sagas de vitórias,
lutas, ascensão, impérios universais, divindades universais. O despotismo com seu triunfo
perante a nobreza independente sempre abre um caminho para um Deus universal,
algum tipo de monoteísmo.
Agamben (2007, pp. 70-71):

O capitalismo é talvez o único caso de um culto não expiador, mas


culpabilizante [...] Uma monstruosa consciência culpável que não conhece
redenção transforma-se em culto, não para expiar com ele a sua culpa, mas
153

para torná-la universal [...] e para, ao final, envolver o próprio Deus na culpa
[...] Deus não está morto, mas foi incorporado ao destino do homem.
Precisamente porque tende com todas as suas forças não para a redenção,
mas para a culpa, não para a esperança, mas para o desespero, o capitalismo
como religião não tem em vista a transformação do mundo, mas a destruição
do mesmo. E o seu domínio é em nosso tempo tão total que também os três
grandes profetas da modernidade (Nietzsche, Marx e Freud) conspiram com
ele, segundo Benjamin, sendo, de algum modo, solidários com a religião do
desespero. “Esta passagem do planeta homem, através da casa do desespero,
para a absoluta solidão do seu percurso é o ethos que define Nietzsche. Este
homem é o Super-Homem, ou seja, o primeiro homem que começa
conscientemente a realizar a religião capitalista. Também a teoria freudiana
pertence ao sacerdócio do culto capitalista: “o removido, a representação
pecaminosa [...] é o capital, sobre o qual o inferno do inconsciente paga os
juros”. E em Marx, é o capitalismo “com juros simples e compostos, que são
função da culpa [...] transforma-se imediatamente em socialismo”.

Desde o profeta das rupturas de mundos (Nietzsche), vemos que ele disse que
o essencial com sua doutrina neocínica da transvaloração de todos os valores. Ela diz
respeito à tarefa humana e da natureza humana a si própria, esse “enroscamento em si
próprio” que na era da moral e da metafísica clássica e agro-imperial, sempre foi
condenado enquanto traição ao senhor, ao coletivo e à ordem das coisas. Desde que o
cidadãos dos Estados abastados modernos já não se concebem mais como súditos, mas
sim, como eleitores, livre utilizadores do dinheiros, portadores de direitos humanos, o
dever de participar no “todo” deslocou-se, do altruísmo proveitoso para o senhor e as
normas divinas, para a abertura de mundo às mercadorias e aos temas públicos, com o
efeito secundário, de entre os “sujeitos” se propagar uma tendência a tomarem-se a sério
como clientes, detentores de opinião e portadores de qualidade pessoais. Os teóricos
poderiam ir em Gaia Ciência de Nietzsche, ao passo que os seus excedentes em matéria
de representação do homem extravasam em forma de reivindicações do super-homem
(além-homem), hoje visto como do consumidor cosmopolita. Para Sloterdijk, a
metamorfose consumista do “sujeito” traz à consciência o direito de destruir os objetos
de consumo. A reavaliação de todos os valores tem seu modelo baseado no metabolismo
orgânico, na medida em que, tudo que existe se destina para ser absorvido e incorporado
pelo consumidor, neste quadro a mutação dos valores desembocaria sempre em
desvalorização. O advento de um Deus cristão só pode ser a clara constatação de um
deus máximo alcançado, nos trouxe junto com ele, um máximo peso e sentimento de
culpa. Noções de culpa, dever (pfilicht) e seus pressupostos religiosos. Com a moralização
das noções de culpa e dever com seu afundamento na má consciência, houve uma
154

tentativa de inversão das coisas. Um resgate definitivo. Se formos para o devedor, aquele
onde a má consciência se prolifera e multiplica, temos a impossibilidade de pagar a dívida,
logo, se concebe a impossibilidade de se conceber dor como pagamento. Extingue-se a
ideia de penitência, a ideia de fim do “castigo eterno”, entretanto, isto se volta até
mesmo contra o credor. Nas histórias do Antigo Testamento vemos a causa prima do
homem como começo da espécie humana, um ancestral amaldiçoado (caído). Adão:
pecado original, “privação do livre-arbítrio”. Até o limite máximo de culpa: o cristianismo.
Agora, é o próprio Deus que se sacrifica pela culpa dos homens, ele é o próprio que paga
a dívida a si mesmo. O Deus como aquele único que pode redimir o homem de suas faltas
e daquilo que o homem se tornou (impagável-irredimível-irresgatável). Temos um credor
que se sacrifica pelo seu devedor por amor, amor ao seu devedor. Tanto é verdade, que
o ato de Jesus se constitui com Pilatos em uma entrega: o cordeiro de Deus. Uma dívida
para com Deus virou instrumento de suplício. Quando se diz que precisamos ter fé, mas
em quê? Quando se diz que precisamos de confiança, mas em que ou quem? Em Deus?
Isso foge do âmbito da religião que é algo para o sossego, não preocupação. É preciso
que nós tenhamos fé. É preciso que tenhamos confiança. É preciso de crença. É preciso
que você dê crédito, e é também, uma promessa. O dinheiro não é um número com
vários zeros? Nós acreditamos nele. O credo como culto, como uma doutrina ao crédito.
Como promessa, crença, promete-se um título, a felicidade, um cheque, o pagamento de
uma dívida, uma nota promissória, o cartão de crédito. Se utiliza no âmbito do Direito a
expressão: Pacta sunt servanda. Brocardo latino que significa “os pactos devem ser
respeitados” ou mesmo “os acordos devem ser cumpridos”. É um princípio base do
Direito Civil e do Direito Internacional. Não há outra referência senão a de que você deve
acreditar em mim e eu devo acreditar em você, e para além disso, nós devemos acreditar
no papel. Lá em Erasmo de Roterdã, no chamado Elogia da Loucura de 1509 , temos que
a grande loucura de seu tempo é ver uma pessoa se auto-elogiando. Hoje em dia o eu
elogia a si mesmo, o eu fala do eu. “Isso não é uma loucura?”, diz ele. Isso é mais loucura
ainda quando um eu chamado dinheiro fala dele próprio para nós. Ele diz: “acreditem em
mim”, “me deem fé”. Crédito vem do latim credere, creditum. É πιστώσεις, em grego
pistóseis – confiança. O banco é um lugar de confiança. Fazem a administração da
confiança que nós temos na entrega de papel de um para o outro, nos dias de hoje os
zeros. Nós nos credenciamos para tudo. Somos pessoas crentes, por isso, construímos
155

uma subjetividade que exige fé. Tudo é o dar crédito. O capital dá crédito como
empréstimo, investimentos, rentismo, juros. Compra-se ações e vende-se ações. Se dá
crédito, se administra crédito, se gerencia crédito, se tem crédito. O homem adota o seu
papel de ator de todas as ações e fiador de todas as garantias. O capital passa, portanto,
em um tipo de confiabilidade futura, como algo que eu possa acreditar. Damos crédito a
tantas coisas como uma atividade de dar crédito e de adquirir débitos. É tão difícil não
dar crédito. Talvez se esse o motivo de nos darmos crédito aos políticos e para outras
tantas coisas, pois estamos enredados na essencial de dar crédito. Talvez seja tão fácil e
tão difícil romper com isso. É difícil não dar crédito. Se nós pudéssemos realmente chegar
para uma pessoa como Sérgio Moro e dizer “não acredito em você, não te dou crédito”,
“você não vale mais nada”. Ou ainda, se nos dirigirmos para Lula dizendo “não confio
mais em você”, “não tenho mais fé em você”. Seria libertador se chegássemos para o
dinheiro de falássemos “não estou nem aí para você. Não te dou crédito”? Você é uma
carta de promessa, uma coisa que dá crédito, mas você não tem crédito porque não se
refere mais a nada. É um zero. Temos fé em pessoas, mas uma fé maior nesse zero.
Cultivamos o ato de dar crédito, portanto, vamos creditando em tudo. No capitalismo, as
próprias dívidas não existem para serem pagas, mas para serem compradas e vendidas.
Descartes abre a modernidade dizendo que é mais fácil conhecer o “espírito que
o corpo”, ou seja, o meu eu pensante está mais disponível a mim mesmo do que a minha
ação corporal, minhas funções corpóreas e coisas assim. Essa posição tem seu
equivalente na ideia de Erasmo: “Quem poderá pintar-me com mais fidelidade do que eu
mesma? Haverá, talvez, quem reconheça melhor em mim o que eu mesma não
reconheço”?25 A diferença aí é que se em Descartes quem fala é ele próprio, um homem,
um filósofo, quem fala em Erasmo é um personagem, a Dona Loucura. E essa diferença
faz toda a diferença, inclusive põe características distintas entre o Renascimento e a
Modernidade. Parece que Erasmo sabia que iríamos, um dia, nos encontrarmos uns aos
outros para além do espaço de democratização das relações das cidades renascentistas.
Diz ele: “Ora, é próprio da Loucura dirimir todas essas dificuldades. Raros são os que
sabem que, para fazer fortuna, é preciso não ter vergonha de nada e arriscar tudo. Quero
observar-vos, além disso, que os que preferem a prudência fundada no julgamento das

25
ERASMO – MORE. Elogio da Loucura. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1988, pp. 8-9.
156

coisas estão muito longe de possuírem a verdadeira prudência”. Continua: “Invoco o


testemunho da Fortuna, essa deusa da felicidade e da desgraça que, embora caprichosa
ao extremo, tem sempre o prazer de secundar as minhas intenções. Com efeito,
exatamente como eu, não será ela inimiga capital dos sábios? Em compensação, confere
seus bens aos loucos e, por fim, ao vê-los dormindo, derrama-lhes no seio os seus
tesouros. Decerto já ouvistes falar de um certo Timóteo, capitão ateniense, cuja fortuna
foi tal que, mesmo dormindo, conquistou e saqueou cidades. Quando, porém, começou
a atribuir tanta fortuna ao próprio mérito, foi abandonado pela deusa e caiu na maior
miséria”. Fortuna, sorte e felicidade, eis nossa tríade moderna. Em Maquiavel com O
Príncipe de 1513 não é diferente. Este pequeno presente com aquele intuito com que o
mando, nele, se diligentemente considerado e lido, encontrará o extremo desejo de que
lhe advenha aquela grandeza que a fortuna e as outras suas qualidades lhe prometem.
Deveríamos abrir outros e maiores espaços, inaugurando uma era mais intensa na
escalada de “vitrinização” que, hoje, exemplificamos com os nossos diversos tipos de
mídia. Eliminamos a dicotomia “ser versus ter” para ficarmos com a ideia de que tudo é
parecer e aparecer, como escreveu Guy Debord no seu clássico Sociedade do Espetáculo
(§ 17). E ao nos tornamos isso, a pura vitrine, o puro acabamento, o rosto nu assume sua
nudez como única máscara. Assim, se somos a vitrine e não a loja, não somos mercadoria
no sentido tradicional, somos o visível, que também se mercadoriza como visível. Somos
antes papel de embrulho e embalagem. Ou, com mais status, somos brand. E sabemos o
quanto nosso mercado é antes povoado agora pelo brand, símbolo, que pela velha
mercadoria-produto. Ao estarmos vazios, numa subjetividade que volta a ser rasa (casca,
vitrine, clara, transparente, película) temos de preenche-la com a razão que não temos,
a razão do coach, do personal trainer, do psicanalista que substituiu o padre, do
apresentador do TV, da balbúrdia da mídia e, principalmente, do consultor, um
autocompletar da ferramenta do word. As mulheres jamais abrirão mão do salão de
beleza semanal, também um lugar de refazer a vitrine e dar algum conteúdo para a loja
vazia da consciência. Os três maiores amigos de uma mulher: o espelho, a bolsa e o gay,
ou seja, no limite, ela mesma. Uma promessa para si mesmo como um gift, um tesouro:
a felicidade – uma dádiva. Eis aí o lugar de excelência do auto-elogio, a atividade da
Loucura, retratada por Erasmo. Vivemos o tempo da consultoria como um tempo da
157

máxima valorização do designer de vitrine. O profissional do futuro seria o vitrinista de


gente.
Sloterdijk (2008b, p. 74):

O único slogan forte de desinibição que, após o empalidecer das ideologias,


abre em todo o mundo a passagem para a prática, leva, em resumo, o nome
de inovação. Raros são os que têm consciência do fato de que aquilo que assim
se apresenta é um vestígio das antigas “leis da história”. Desde que o Homem
Novo foi retirado do mercado numa operação de recolha de produtos
defeituosos, as novidades técnicas, as novidades de procedimento e as
novidades de design constituem as mais poderosas atrações para todos os que
estão condenados a perguntar: que fazer para chegar ao cume? Aquele que
inova pode estar certo: a qualquer momento, o lema da sua ação poderá
tornar-se o princípio de uma legislação universal. Desde que o divertimento,
como agente de desinibição, começou a ganhar terreno, a partir dos anos 80
do século passado, podemos até renunciar ao pretexto da inovação. Os atores
da cultura do divertimento, que se tornaram soberanistas do vulgar,
esponjam-se nas superfícies do seu bem-estar e consideram que o deixar-se ir
de livre vontade constitui motivação suficiente. Poderiam renunciar aos
consultores porque se dirigem diretamente aos seres sedutores; quando
muito, confiam no seu entertainer, no seu treinador, no que lhes escreve os
ditos de espírito. É soberano aquele que decide em que armadilha cair.

Capa do livro Elogio da Loucura. Erasmo de Rotterdam.


158

O capitalismo tornado como religião possui a tendência igual à do Cristianismo,


a de generalizar e absolutizar, em todo âmbito, a estrutura da separação que define a
religião. O que vemos é a ascensão do dinheiro e do capitalismo aos céus.26 Onde o
sacrifício marcava a passagem do profano para o sagrado e do sagrado para o profano,
está presente agora, um único processo de separação, que investe toda coisa, todo lugar,
e tudo o que é humano, para uma divisão em si mesma completamente indiferente à
cisão sagrado x profano e divino x humano. Há na religião capitalista uma pura forma de
separação que não tem mais nada a separar. É na verdade, uma profanação total e que
sem resíduos vira uma consagração vazia e integral. E como, na mercadoria, a separação
faz parte da própria forma do objeto, que se distinguiu entre valor de uso e valor de troca
e se transformou em fetichização (inapreensível), para agora sim tudo que é feito,
produzido e vivido, computa-se também o corpo humano, a sexualidade e a linguagem.
Acaba-se por se dividir e adentrando em uma esfera separada que já não possui mais
nenhuma substancialização, uma esfera que todo uso se torna impossível e infinitamente
impossível. Estamos falando da esfera do consumo. Se como Guy Debord nos disse que
o mundo capitalista é o mundo da “sociedade do espetáculo”, todas as coisas são exibidas
na sua separação de si mesmas, então espetáculo e consumo viram faces da
impossibilidade de usar. Entretanto, se como dito anteriormente, o que não pode ser
usado acaba por acabar, e como tal, entregue ao consumo ou à exibição espetacular. Mas
isso significa que o que temos agora em uma fase extrema do capitalismo como religião
é a impossibilidade de profanar, ou em alguns casos, procedimentos para tal. Profanar é
restituir ao uso comum, mas na religião capitalista, vemos uma religião que está voltada
para a criação de algo improfanável. O cânone teológico do consumo como
impossibilidade do uso foi fixado no século XIII pela Cúria Romana no contexto do conflito
que ela se opôs aos Franciscanos. Sua reivindicação de “Altíssima Pobreza”, os
franciscanos afirmavam a possibilidade de um uso completamente distinto da esfera do
direito, diferente do usufruto e do direito de uso. Era o uso de fato ou do fato. Nas coisas
que são “objetos de consumo”, como alimento e roupa, não pode haver um uso diferente
daquele da propriedade, porque o mesmo se define integralmente no ato do seu

26
KURZ, Robert. A Ascensão Do Dinheiro Aos Céus: Os Limites Estruturais da Valorização do Capital, o
Capitalismo de Casino e a Crise Financeira Global, 1995. Disponível em: <http://www.obeco-
online.org/rkurz101.htm>. Acesso: 05 Jun. 2019.
159

consumo, ou seja, o que se tem é uma imediata destruição (abusos). Temos um consumo
que destrói de imediato a coisa, não é senão a impossibilidade de usar ou a negação do
uso que pressupõe que a substância da coisa fique intacta. Um simples uso de fato,
distinto da propriedade, não existe naturalmente, não é, de modo algum, algo que se
possa realmente “ter”. Se vemos hoje consumidores na sociedade de consumo infelizes,
é porque não somente consomem objetos que incorporaram como propriedade (ou que
pensam que sim), ou que incorporaram em si a própria não usabilidade, mas também
porque acreditam que exercem seu direito de profanar o improfanável. Walter Benjamin
em sua obra Jogo e Prostituição diz que “o amor pela prostituta é a apoteose da
identificação de si mesmo com a mercadoria”. Podemos pensar no conceito do “indizível”
fazendo referência à noção freudiana de inquietante (Unheimlich), em primeiro
momento, uma ocasião para o olhar, mas também, o poder do observado sobre o
espectador, um poder que Walter Benjamin reconhecia no valor de culto dos objetos
impregnados de aura. Sua influência de Marx o fez ser um dos principais expoentes da
modernidade. Marx afirmou que a prostituição é somente uma expressão particular da
prostituição particular do trabalhador, e posto que a prostituição é uma relação na qual
entra não só ao prostituído, mas também o prostituidor, cuja infâmia é a ainda maior,
assim cai também o capitalista nessa categoria. Benjamin fala da imagem da prostituição
como uma sinédoque para o trabalhador sob a égide do capitalismo em geral. A
identificação da mulher como coisa é a identificação de si mesmo como coisa, um
resultado da reificação geral do vivo posta pela sociedade capitalista. Só mercadorizando-
se é possível se tornar o vivo. Um exemplo nos é dado pelo grande filósofo Aristóteles no
papel de um louco apaixonado. Uma anedota conta-nos que Aristóteles se apaixonou
certa vez tão perdidamente por uma hetera ateniense chamada Fílis, que perdeu toda a
vontade própria e se entregou aos seus caprichos de maneira totalmente irrefletida.
Assim, a célebre prostituta ordenou ao pensador que ficasse de quatro na sua frente. Ele,
então, voluntariamente submisso, se deixou de fazer de bobo e obedeceu. Com
humildade, agachou-se e serviu à sua senhora como animal de carga, uma situação
bastante desconfortável para os homens. Esse tema anedótico é registrado por Hans
Baldung Grien no ano de 11513, no tempo de Eulenspiegel – segundo o Lai d’Aristote de
um poeta francês medieval. O filósofo de barbas brancas se encontrou ajoelhado, com o
olhar voltado para o observador da imagem, andando de quatro em um jardim cercado
160

por um muro, enquanto Herphyllis se senta em suas costas com as largas nádegas e a
barriga protuberante. Vemos na mão esquerda, o arreio que atravessa a boca do
pensador com a cabeça erguida, e, na direita, em dedos pequenos, finamente separados,
um elegante chicote de montaria. Diferentemente do filósofo que olha de maneira
penetrante par ao observador ela olha para o chão. Sobre sua cabeça, de lado, uma touca
antigamente usada na Alemanha. Seus ombros caídos, seu corpo um pouco pesado,
gordo e melancólico. O sentido kynikos da história é que a beleza faz vibrar o seu chicote
sobre a sabedoria, a razão decai, o corpo vence a razão. A paixão torna o espírito dócil, a
mulher nua triunfa sobre o intelecto masculino. O entendimento não tem nada a oferecer
contra o poder do convencimento de peitos e bundas. O termo prostituta pode ter o
significado de “colocar diante”, “expor”, “apresentar à vista”, “pôr à venda”; prostituir,
“divulgar, publicar”, mas também o de prostrar, lançar-se ao chão em postura de súplica
ou adoração. No quadro de Grien, o fator da reflexividade do filósofo passou para a
companheira. Em verdade, ela também é apenas uma puta, mas ela lança mão, com isso,
de uma possibilidade de soberania própria. Quem cavalga Aristóteles pode ser
certamente uma mulher perigosa, mas é certamente uma mulher que permanece
sublime para além de todo desprezo. A história da “consciência feminina” só se acha por
intermédio das tradições masculinas. De qualquer modo, algumas anedotas nos foram
legadas e abrem um espaço para que possamos ao menos investigar uma perspectiva
kynike-feminina. Naturalmente, trata-se, em princípio, de histórias contadas a partir da
perspectiva masculina, que lançam desde o início um olhar cínico-senhoril sobre as
imagens femininas. Veríamos especialmente na literatura, histórias da mulher como puta
e como esposa pérfida em forma de dragão. No entanto, por vezes uma pequena
mudança no ângulo de visão é o bastante para as mesmas anedotas passaram a mostrar
um sentido pró-feminino. Em geral, elas refletem cenas típicas oriundas das “guerras
entre os sexos”, nas quais vem à tona o fato de o homem recair na posição do mais fraco.
Isso lhe aconteceria fundamentalmente em dois âmbitos. O âmbito da dependência
sexual e o da condução da administração doméstica.
161

Hans Baldung Grien. A beleza faz vibrar seu chicote sobre a sabedoria. Xilogravura
(1513).

Em Latim, “anima” significava “sopro”, “ar”, “brisa”, e certamente a partir daí foi
que adquiriu o sentido de “princípio vital, alma”, pois esta sempre foi encarada pelo
homem como algo imaterial como um movimento do ar, o ganho da animação. Afinal,
somos “sinais da escuridão” como bem disse Thomas Macho. Somos aqueles que estão
no Cosmos interagindo com o mundo. Daí vem à expressão “dar à luz”. Com conotação
das parteiras, mas também para filósofos. A metáfora das luzes ganhou os filósofos. “Dar
à luz” é uma expressão banal, se algo vem para ganhar luz, onde estava era o sem-luz, o
escuro, uma espécie de “caverna”. Sem dúvida um lar por um bom tempo. Não se pode
viver em um lar sem nada aprender. Durante um bom tempo nossa casa, a primeira casa,
foi nosso primeiro lar, o aconchegante escuro: o útero, a esfera do dois em um. O
primeiro “ser-em”. Curiosamente os teólogos deram a Deus um útero para ele vir para a
terra. Deus o todo-poderoso com todo seu poder só conseguiu ser humano se viesse por
um útero. Até mesmo Jesus (o homem - Deus) teve que para ser homem ter uma mãe
162

mesmo que seja de um útero não fertilizado. Um útero misterioso na sua gravidez, mas
no seu desenvolvimento um humano. Mesmo vindo de Deus ele é homem. Temos aí,
uma clara projeção elementar que advém do campo das representações da família e da
geração. Em religiões politeístas, encontram-se romances familiares confusos e simples
e assuntos que se conectam à procriação relativos às divindades, como é patente nos
estudos sobre deuses olímpicos, egípcios e hinduístas. A doutrina cristã da Trindade, uma
doutrina bastante rica e competente, não se mantém completamente isenta de fantasias
ligadas à família e à procriação. Seu ponto alto, fez com que Maria engravidasse do
Espírito Santo. A sátira reconheceu esse desafio. Deve-se, portanto, evitar com isso, o
fato de existir entre pai e filho um laço sexualmente fundado. O Deus cristão pode sim
procriar, mas não copular – razão pela qual o credo diz com um caráter sublime: genitum,
non factum (gerado, mas não feito). A ideia de autoria da criação, que se atribui em
particular aos deuses do alto e do interior da terra, é uma boa ideia e até bem próxima
da ideia de geração. Aqui se imiscui a experiência humana da produção, enraizada em
uma “empiria” camponesa, artesanal e oleira. Quando o homem está em seu trabalho,
ele experimentou a si mesmo de maneira modelar como criador, como um autor de algo
novo, um novo efeito, anteriormente inexistente. Quanto mais avança a mecanização do
mundo, mais se transpõe a representação de Deus da intuição biológica da geração
(procriação) para o da produção e do design. De maneira correspondente, o Deus gerador
tornou-se cada vez mais um fabricante do mundo, um “produtor originário”. Daí vem no
Gênesis e na própria obra adamítica da criação do homem através de um sopro que causa
uma vibração interna (em um recipiente que era oco) com uma ressonância dando vazão
ao espírito (surge a animação). Se Deus criou um boneco, os homens também criam
outros bonecos. Um local que será o deposito para espectros animistas penetrarem no
caso da mercadoria. Nisso, elas ganham um caráter espectral fantasmagórico e ganham
uma vida independente do homem. Um dom vampiresco onde não só se suga o suor, o
sangue, mas também, a alma do trabalhador-produtor. Nesse mundo sem homens, sem
deuses, gênios, anjos, vemos uma reserva de proteção da esfera do espírito contra o
impacto da reificação e das proletarizações. Como a prostituta com seus adornos e corpo
nu pode aparentar ser carne sensível se forma mercadoria. Não se diz “pagado bem que
mal tem”? A parcela da sociedade com poder de compra forma as condições de
desonerações que resultam na necessidade que se transforma em liberdade. Onde se
163

tinha necessidade vem o capricho. Percebemos hoje o quando é oneroso viver em uma
situação que sendo de desoneração contínua, adquirimos uma maior facilidade para
ficarmos cansados por pouca coisa. O gênio tem muitos nomes: autor, fantasma,
ausência, obra. Ele é ao mesmo tempo aquilo que torna o texto único e aquilo que
percorre todos os textos. O gênio é volátil. Responde pela força invisível que leva o
homem à negação de si e responde também pelo papel amarelinho, pela caneta especial
e pelos cigarros envoltos em papel preto, conforme o gosto pessoal exposto por
Agamben (Paul Auster também gosta dos cigarros escurinhos). É interessante como essa
zona de não-conhecimento, território do gênio e de suas mensagens sussurrantes,
também oferece espaço para essas materialidades neuróticas do cotidiano. O gênio
também está no patológico, na repetição nervosa do sintoma. A operatividade do gênio,
segundo Marx, estará sempre ligada a um contexto de trabalho e produção. O artista só
pode realizar aquilo que está tecnologicamente disponível para seu contexto histórico, a
partir dessas contingências, o artista armaria suas possibilidades. Quando Marx fala da
vacuidade da individualidade do trabalho científico e artístico, valoriza aqueles artistas
que sabem ler as demandas de seu tempo, reconhecendo que a esfera artística é apenas
mais uma ramificação das relações de produção. Quando Marx fala da organização do
trabalho parece estar falando da tática de proliferação maquínica de um César Aira, por
exemplo, ou dos cem mil livros de Mario Bellatin (ou a enfadonha versão da acumulação
de Gonçalo Tavares). Já em Barthes é como se o gênio pudesse ser escolhido, como se
fosse uma sombra eleita pelo escritor - um misto de ação e aceitação. Os biografemas
voam, pairam pelos textos, átomos epicurianos que caçam seus eleitos, uma espécie de
vida póstuma dos gênios que assombraram outros autores, outras camisas de linho azul.
O gênio ganha a feição daquele que mais admiramos, ou ganha uma feição tripla, quase
monstruosa: Sade, Fourier e Loyola para Barthes. Agamben afirma que a ação do Genius
se dá quando não há identidade fixa; Barthes afirma que no Texto há a destruição e
dispersão de todo sujeito. São movimentos análogos - e essa volta amigável do autor de
que fala Barthes pode ser, também, aquele abandonar-se de que fala Agamben, em uma
confluência de encontros fortuitos. O homem da má consciência como diz Nietzsche
“apreende” em Deus seus instintos não suprimidos, “instintos animais”, como culpa, aí
visto como: inimizade, violência, rebelião, insurreição contra o avô, o Deus pai, o Senhor,
o progenitor e princípio do mundo. Uma saída típica dos gregos seria “um Deus deve tê-
164

lo enlouquecido”, dessa maneira os deuses serviam para, até um certo ponto, justificar o
homem também na sua ruindade, eram causas do mal, bons tempos onde não se
tomavam para si o castigo, mas sim, o que é de mais nobre e virtuoso, a culpa. Não
deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? (A Gaia
Ciência, § 125).
As grandes culturas se tornam negatividades rentáveis conhecer a externalidade
destrutivo. Utilizam o monstruoso como hormônios de crescimento saindo a partir de
microesferas para formas de macroesferas. O homem tem que esperar, e sobreviver a
separação de seus próximos. Já em mais antigas formas de vida humana, hordas arcaicas,
a morte é imposta como uma compulsão para dirigir o olhar para os mortos. Quando o
ponto de vista do corpo e o aviso de choque no lugar vazio adquirir formas rituais, tudo
está organizado como uma lembrança. Se trata cultos aos antepassados e os mortos
como se eles induzissem o estresse metafísico inicial pesando em grupos humanos já nos
primeiros estágios de hominização. Reconhece-se que estes cultos sempre têm um lado
criador de espaço no sentido esferológico, de inclusão restaurativa, de reparação da
esfera psíquica quebrada pelo desaparecimento do outro importante, de um retorno à
normalidade cósmica, à bolha íntima da coexistência. Neste caso, ritual e simbólico.
Sloterdijk desenvolve a ideia da morte como a raiz da constituição e evolução
dos sujeitos, indo além de seu antecedente em Heidegger. A ideia da morte, pode-se
dizer, em retrospecto: a morte local, a morte global, morte pessoal, morte a que
corremos tudo, é o ponto de partida para examinar a gênese da macroesferas, que sob
outro registro pode ser chamado A Morte, também atesta nossa historicidade irredutível.
O homem, sujeito de alta permeabilidade, tendo incontáveis horas, protagonista de
proezas e histórias inoportunas é um ser que se mantém fiel a um arcano que não
escolheu, a certeza de sair ou ser abandonado na morte, onde sem saber se com respeito
a seu complemento íntimo será o primeiro ou o segundo, ali este fugitivo da normalidade
cósmica, sobrevivente de uma história de separação radical, precisará de uma formação
particular, do treinamento mais importante para o ser humano, a saber, aquele
necessário para apoiar a partida dos mais próximos, sobrevivem à perda do parceiro
íntimo, o abandono do "complemento essencial". Desta forma, o projeto Esferas também
pode ser entendido como uma tentativa de tornar visível, pelo menos em um aspecto
essencial, o projeto Ser e espaço, sub-temático implícito nos primeiros trabalhos de
165

Heidegger em Ser e Tempo. Indo ao encontro de Nietzsche, Deleuze e Guatarri


perguntam-se como é que o sofrimento pode ser a exata medida do reembolso? A
equação: prejuízo = dor, não tem nada a ver com a troca, mostrando que a dívida não se
confunde como modalidade da troca. O prazer que o olho retira é uma mais-valia que
compensa a quebra da aliança e do compromisso, assim como a marca física que não
inscrevera suficientemente fundo no seu corpo, os trâmites, as regras, as técnicas do
humano que deveriam conduzir a sua conduta. O crime, ruptura da conexão entre o
falado – acordo – e o escrito – tatuado no corpo –, é saldado pelo espetáculo do castigo.
Mas ainda, e uma vez mais em interlocução direta com Nietzsche, os autores encontram
uma nova formulação da dívida como traço de inscrição do socius, já não enquanto
dívidas locais, tópicas, móveis, parcelares, mas enquanto “destruição de todas as
codificações primitivas, tudo isso inserido numa nova engrenagem que se propõe a
tornar uma “dívida infinita”. Mas qual o meio de tornar a dívida infinita? O dinheiro, a sua
circulação, ou melhor o crédito, é o meio de tornar a dívida infinita, pois esta dívida
permanente e absoluta implica já um serviço de Estado, um serviço que apenas o Estado,
entendido como totalidade abstrata e monopolizador da força, pode, como uma cúpula
hierárquica, realizar e que se irá instituir como sua razão de ser. O Estado passa assim a
ser o credor infinito (sistema fiscal), mas também o devedor infinito (sistema de crédito)
substituindo as dívidas parcelares, móveis, finitas, das alianças primitivas, passando a
confundir-se – uma vez absoluto, abstrato, absolutista, despótico, com Deus, fazendo da
dívida infinita uma “dívida de existência”, dívida de existência dos próprios sujeitos. Aqui,
o credor já nada precisa de emprestar para que o devedor pague constantemente, pois
o pagar é um dever, mas emprestar é uma faculdade, sendo aí, como aglutinador, ponto
de concentração, tensor e codificador de fluxos, apropriando-se de todas as forças dos
agentes de produção, que o Estado se ativa e constitui. Estado como credor-devedor e
como devedor-credor. Uma mão que dá e uma outra que tira.
Os fiscalistas concebem os impostos que deverão pagar no futuro como “dívidas
ineludíveis dos cidadãos para com o fisco”, tratando-as como propriedade estatal real.
Assim, ao invés de se encararem esses impostos futuros como dádivas concedidas pelos
cidadãos ao erário público da comunidade, os fiscalistas veem como dívidas futuras que
podem ser executadas sumariamente, se necessário, ao abrigo de sentenças judiciais.
Sloterdijk (2014, p. 42):
166

O tempo da culpa é marcado pela perseguição do infrator pelas consequências


de suas ações... liquidar e pagar por uma falta são atos que colocam a
prioridade de retorno no ponto médio das transações. São as operações
objetivas cuja tradução acontece na sensação subjetiva de ressentimento.

A Teoria Crítica como um todo, principalmente a velha Teoria Crítica, até mesmo
quando, com Marcuse, quis lembrar as benesses do hedonismo, nunca ultrapassou o
muro do pessimismo, e, por conta deste o de certo conservadorismo. Um clássico livro
de Marcuse é "O Eros e a civilização", para Sloterdijk seria algo já ultrapassado. A de ainda
nos tempos de hoje considerar uma visão psicanalítica-filosófica do eros na civilização.
Eros é o deus do desejo e da posse e logo da inveja, ressentimento, mágoa. Marcuse faz
basicamente uma descrição psicopolítica do eros nos meios da arte, política, sexualidade,
família, etc. A força desejante nos homens, a carência, é fruto de eros, e impulsiona todos
nós para as tarefas individualistas e para o individualismo moderno, e não raro, de
satisfazer desejos entre elas de arrecadar dinheiro e acumular poder. Essa força esmagou
a outra, a de origem no thymos, a ponto de ser descrita, não raramente, como a única
existente, a base de toda a sociedade. Para Sloterdijk, a concepção obrigatória dos
impostos é ainda um vestígio “do pensamento pré-democrático”. A cultura da dádiva
obrigatória, mediante o dispositivo do imposto, não se trata de uma constante natural,
mas um produto, historicamente gerado, de coação, hábito, compreensão parcial e
resignação preponderante, o que nos leva no encalço dos modos tradicionais de
enriquecimento por parte do Estado. De acordo com o diagnóstico de Sloterdijk, o
primeiro modo de enriquecimento do Estado baseia-se no “saque da tradição bélico-
espoliadora”.27 Um segundo modo resulta da “tradição autoritário-absolutista das
imposições”, onde é sabido que os estados absolutistas vergavam as suas comunidades,
principalmente as mais pobres, com impostos férreos. Estas duas formas foram o
protótipo da fiscalidade, onde estabelecidas sem debate, seriam o preço justo da vida em
relações ordenadas. Mas há ainda um terceiro procedimento para a espoliação das
comunidades baseada na ideia de “contra-expropriação”; se a propriedade é um roubo,
só um contra-roubo pode recolocar a justiça no âmbito social, sendo “o órgão político de

27
SLOTERDIJK, Peter. Fiscalidad Voluntaria y Responsabilidad Ciudadana: Ciudadana Aportaciones a un
Debate Filosófico Sobre Una Nueva Fundamentación Democrática de Los Impuestos. Traducción. Isidoro
Reguera, Madrid: Siruela, 2014, p. 41.
167

contra-roubo o fisco”.28 Para além destes três caminhos impositivos, obrigatórios, para a
obtenção de dividendos por parte do Estado, Sloterdijk elenca ainda um quarto de raiz
totalmente diverso, de caráter opcional, facultativo, implicando não um mandato estatal
mas uma vontade individual, verificada através da atuação de doadores e criadores de
fundações, dentro da tradição filantrópica. Em todo o caso, ainda não teríamos atingido
um modo de funcionamento pleno da democracia, pois o modo de financiamento do
Estado ainda não é assegurado mediante dádivas livres, generosas e voluntárias por parte
dos seus cidadãos, mas através do punho de ferro da obrigatoriedade e da imposição. Se
nos deixarmos guiar pela imagem da efervescência, uma imagem que já tinha levado os
autores antigos a falar de furor, de ferver e de lançar-se arrojadamente para frente, então
veremos o quanto a noção de ira possui um traço marcado pela ação de presentear, sim,
um traço paradoxalmente generoso. Dito ao modo de Sloterdijk, o Estado que se
concedia a si mesmo uma autoridade superior, assim como o Estado que se pensa
enquanto agência moralmente autorizada de assistência social geral, o Estado
paternalista antigo e o Estado materialista dos nossos dias, entendem-se às cegas para
“formar uma maquinaria irresistível de tutela e assistência”. Assim, o que os impostos
voluntários preconizariam seria a intensificação e revitalização éticas dos impostos como
doações do cidadão à comunidade. Depois do longo período tenebroso em que o cidadão
era forçado à passividade, à impotência e à indignidade, uma vez reconhecido como
doador passaria a experimentar que profusão de vida significa ser responsável por
projetos levados a cabo por doações próprias. É que os impostos já são dons que apenas
esperam ser considerados uma vez por todas como tais.
Além das abundantes referências à literatura e à história da filosofia, o livro
fornece um registro confessional cuja ideia principal é analisar a dimensão psicopolítica
do momento atual. Para isso, Sloterdijk questiona o que sempre foi considerado
inquestionável. O filósofo procura para remover a poeira e teias de aranha que impedem
ver claramente o sistema fiscal, a fim de compreender e torná-lo mais propício à "ética
viver" sociedade. Especialmente a importância de entender o socialismo hoje como uma
dimensão funcional do Estado e não como uma ideologia. Ao abordar a questão da

28
SLOTERDIJK, Peter. Fiscalidad Voluntaria y Responsabilidad Ciudadana: Ciudadana Aportaciones a un
Debate Filosófico Sobre Una Nueva Fundamentación Democrática de Los Impuestos. Traducción. Isidoro
Reguera, Madrid: Siruela, 2014, p. 44.
168

tributação, Sloterdijk através de uma ampla gama de espaços que servem para
diagnosticar sociedade de hoje, desde elementos metafísicos, políticos, psicopolíticos. O
estudo da tributação, geralmente focado na análise econômica de impostos específicos,
cálculos de otimização e incentivos ao cumprimento, relega questões sobre o significado,
valores e implicações sociais para uma posição marginal, reduzindo a existência de
impostos a uma questão instrumental, e apenas determinação aritmética. Para uma ética
do Cada vez mais, no entanto, perguntas de ciência política, psicologia, sociologia e
filosofia política têm desafiado este paradigma, recordando a necessidade de questões
mais profundas em um contexto onde os regimes fiscais mostram sinais avançados de
erosão: fraude, evasão, políticas fiscais restritas para não assustar o capital, ceticismo
sobre o papel do Estado no financiamento de bens comuns, paraísos fiscais ativos no
século XXI, impostos de propriedade ineficientes ou inexistentes e dificuldades para
enfrentar as desigualdades de renda. Se há algo em que o pensador insiste, é a
democracia, que precisa do direito de ser reconhecida pelos outros e de fazer parte do
orgulho coletivo. Sloterdijk utiliza alguns aspectos de sua abordagem tributária (a
Alemanha) e da realidade alemã nos mostrando mais especificamente, e analisando as
bases do Estado fiscal, o domicílio ideológico que emerge de sua proposta, o contraste
entre obrigatoriedade versus tributação voluntária, a tensão entre o medo e a coesão
social e por que sua abordagem não representa uma defesa dos mais ricos. Peter
Sloterdijk pretende desativar a reação contra os impostos, que ele corretamente detecta,
mas crescente e indignado. Para combatê-lo, são necessários contribuintes genuínos, isto
é, pessoas que doam voluntariamente o poder que agora retira à força. A atividade típica
de Estado fiscal se faz mediante violência, uma atividade típica de “gatunos” ou
“saqueadores”, os cidadãos se veem quase que roubados. A violência não é apenas
insuficiente, mas pode ser contraproducente, e a persuasão deve ser usada para
cooperar com o Estado, dando-lhe o mesmo que agora, mas com voluntariedade, orgulho
e alegria.
Sloterdijk toma como inconcebível que a sociedade mais rica da história da
humanidade seja também “a mais mal-humorada, insatisfeita e desconfiada” que alguma
vez existiu em épocas de paz, sendo que o motivo do desgosto reside na humilhação
sistemática dos dadores por parte dos poderes tomadores organizados. Mencionando
Derrida, dirá que este nunca fez outra coisa para além de libertar a esquerda anacrônica
169

da sua infertilidade e estancamento conceitual, desenvolvendo uma nova lógica social


cuja consistência passaria a assentar sobre as virtudes doadoras. Por isso, Derrida ter
mostrado como a generosidade (na forma de dádivas incondicionais) encarnar a figura
da “unilateralidade positiva”, como tão bem nos mostram as mães relativamente aos
seus filhos (como já foi mostrado anteriormente no Esferas III) e os “bons samaritanos”.
Negri também é próximo de Sloterdijk neste sentido. Apesar de ambos concordarem que
a esquerda está petrificada, que é urgente repensar os seus conceitos, concluem
consensualmente que “o tema mais importante para a teoria política atual é o desenho
de um ethos para uma esquerda que esteja além do ressentimento”.29 Sloterdijk insiste
na ideia de que a sociedade mundial será um patchwork de comunas timóticas, ou não
será, querendo com isto dizer que é necessário um clima social diferente, assente na ideia
de orgulho. Para ele, chegou a hora de os dadores da comunidade chamarem a si a
responsabilidade de transformar a sociedade. Ter uma postura não só mais ativa como
orgulhosa. Já não se trata da revolução proletária, tampouco dos desempregados,
marginais ou precários que se rebelam contra um status quo que os mantém
aprisionados na condição de receptores. Agora chegou a vez de todos os doadores,
patrocinadores, dos ajudantes voluntários, com os seus pagamentos, enriquecerem “a
coisa comum”. A posição de Sloterdijk poder-se-ia condensar no “filantrocapitalismo”.
Em Efésios 4:28: “O que furtava não furte mais; antes trabalhe, fazendo algo de útil com
as mãos, para que tenha o que repartir com quem estiver em necessidade”.
O século XXI abrigará uma luta titânica entre a “razão da generosidade” e os
“cálculos dos pensamentos inferior”. Se a ética generosa puder ganhar essa luta, isso
ocorrerá por conta de uma pressão crescente de dependências mútuas dos jogadores
globais atuando em sua direção. “A sociedade mundial será um patchwork de
comunidades timóticas, ou não será”. Essa realização se fará por aqueles que já estão
nesse afã. Eles é que poderão “regenerar a consciência da coisa comum” e criar um clima
social diferente. São os doadores efetivos em todos os níveis da comunidade, que em
última instância, suportam todo o peso dos construtores sociais conectados em rede pelo
dinheiro, conectados em rede pelo saber, conectados em rede pela empatia, são os

29
SLOTERDIJK, Peter. Fiscalidad Voluntaria y Responsabilidad Ciudadana: Ciudadana Aportaciones a un
Debate Filosófico Sobre Una Nueva Fundamentación Democrática de Los Impuestos. Traducción. Isidoro
Reguera, Madrid: Siruela, 2014, p. 75.
170

pequenos, médios e grandes pagadores de impostos diretos e indiretos, os doadores, os


patrocinadores, os que fazem fundações, os ajudantes voluntários, os que trabalham por
facilitar a comunicação em rede (networker), os que dão ideias e todos os criadores
conhecidos ou desconhecidos em todos os âmbitos, os que com seus pagamentos,
impulsos e ideias enriquecem a coisa comum.
Obviamente não desmontar completamente o que temos hoje, mas reacender
a chama de “doações boas” ou de “dinheiro inteligente”. A era de pensar o contexto
social a partir da dádiva, mas uma dádiva visada fora de um contexto obrigacionista,
economicista e fiscal tradicional. Aquilo que se encontra juridicamente consignado como
“acordos de livre intercâmbio” ou “contratos livre de trabalho” entre empresário e
trabalhador, apenas na aparência se podem denominar intercâmbio-contratos, uma vez
que a apropriação, por parte do empresário, da mais-valia produzida pelo trabalhador, é
uma extorsão camuflada mediante o pagamento de um salário quando, na verdade, o
que acontece é um “tomar” sob o pretexto de se estar a “dar”. Assim, do ponto de vista
de Sloterdijk, o modelo econômico moderno não tem como referenciais antagônicos o
capital e o trabalho, mas a ligação antagônica entre credores e devedores, pois a
economia moderna está preocupada com a devolução do crédito. Assim que se percebeu
que na base das formas modernas de disciplina não se pode encontrar a relação de
“senhor e escravo” nem o antagonismo entre “capital e trabalho”, mas o antagonismo
simbiótico entre o credor e o devedor, terá que reescrever-se, mudando a raiz, a história
de todas as “sociedades” movidas pelo dinheiro.30 Quer se trate de amortização, de
insolvência, reforma monetária ou inflação, tornou-se claro o não-dito que está na ponta
da língua dos nossos economistas: o saque do futuro por parte do presente. O saque das
gerações vindouras tornou-se num assunto de Estado legítimo, e o único poder que pode
rivalizar com este tipo destruidor, com este dispositivo de subjetivação erótica, é a
reinvenção psicopolítica da sociedade via massificação da dádiva.
As “durezas” às quais se submetem grade parte dos grupos e sociedades na
modernidade foi visto a partir do interesse da autoconservação que possui uma dinâmica
própria tão fatal, que trabalham mais ao encontro de auto aniquilação do que da
segurança. Foi uma “economia da era militar”. Isso corresponde à era da “sociedade de

30
SLOTERDIJK, Peter. Has de Cambiar tu Vida: Sobre Antropotécnica. Tradução: Pedro Madrigal, Valencia:
PreTextos, 2012c, p. 469.
171

classes” própria a consideração marxista da história. Ela caracteriza-se pelo fato de, por
meio de enormes porções de mais-valia oriundas do trabalho escravo, do trabalho serviu
ou do trabalho assalariado ou mesmo do recolhimento de imposto serem mantidas
camadas militares e aristocráticas ou exércitos permanentes, que representam grupos
parasitários – no sentido clássico literal – de não trabalhadores. Para tanto, contudo, eles
recebem a tarefa de assegurar o espaço vital de seus grupos como um todo. Nessa
economia, é fixado um novo preço para a sobrevivência: a sobrevivência dos conjuntos é
paga com a submissão das massas a estruturas político-militares e com a prontidão dos
povos a ler o roubo da mais-valia e as chantagens fiscais como um manuscrito no qual a
“dura realidade” comunica aos povos suas intenções. A violência das guerras traduz-se
em um realismo que reconhece o fator guerra como “violência superior”. Um sistema de
necessidade, a necessidade de “pensar a guerra” formou nos últimos milênios o cerne
não maleável de um positivismo trágico. Este positivismo trágico sabe, antes de toda
filosofia, que não se precisa nem transformar, nem interpretar o mundo em primeira
linha, mas suportá-lo. Trabalho, por isso, significa hoje, quer se goste ou não, fomentar
um sistema que não pode ser de maneira alguma a longo prazo o sistema de nossa
sobrevivência. Há muito tempo não pagamos mais um preço pela sobrevivência, mas
criamos mais-valia em favor de uma máquina suicida. Esse conceito com mil vozes
responde o irracionalismo que pertence a superestrutura ocidental. Em meio a tentativa
de desatar os nós trazidos pelas contradições do sistema capitalista com o auxílio da
dialética marxista, o nó não apenas foi desatado, mas foi também tragado até a
absurdidade total. No embate entre as grandes potências, a fração marxista, que tinha
entrado em cena com a “solução” dos problemas capitalistas, se tornou bem
possivelmente até mesmo a parte mais desprovida de esperanças do problema. Se
buscarmos razão para tanto, então se mostrará o modo como o aspecto moralizante da
teoria da mais-valia sobrepujou o seu aspecto analítico. Pois aquilo que ela elaborou
como a “perfídia objetiva” do roubo de tempo capitalista junto às massas trabalhadoras
é ao mesmo tempo uma descrição daquilo que acontece em todas as sociedades com
superestruturas político-militares, ainda que elas se autodenominem dez vezes
socialistas. Nas experiências feitas a partir de movimentos marxistas “ortodoxos”, como
foi visto no leninismo, no stalinismo, no Vietcong, em Cuba e no movimento do Khmer
Vermelho, uma grande parte vigor cínico atual teve a sua origem. Foi o desenvolvimento
172

do Marxismo que, na ligação do Esclarecimento com o princípio da esquerda, utilizou


uma alcunha que não tem mais agora como ser negada. A degradação do marxismo em
ideologia de legitimação de sistemas despóticos disfarçadamente nacionalistas e
abertamente voltados para a conquista de hegemonia arruinou o tão afamado princípio
esperança e estragou o prazer na história que, sem esse princípio, se tornou difícil.
Também a esquerda aprendeu que não se pode falar muito tempo de comunismo como
se não houvesse comunismo algum e como se se pudesse de maneira isenta começar
novamente. Para quem estuda a situação das populações agrárias do século XIX, e, ainda
mais, a situação do proletariado industrial e crescente e o desenvolvimento do
pauperismo na época do domínio burguês, e, além disso, a situação das mulheres, dos
empregados, das minorias, etc., salta aos olhos o fato de que o recurso ao povo tempo
base um conceito estropiado e parcial de povo. Nesse ponto, movimentos socialistas se
tornaram possíveis e necessários; exigem que tudo aquilo que acontece em nome do
povo também aconteça por meio e para o povo; quem se reportasse ao povo também
precisaria “servir ao povo”; começando em não enredá-lo em “guerras populares”
assassinas, que são típicas da época na qual classes burguesas ou feudal-burguesas
dominantes governam “em nome do povo”; terminando com o fato de se conquistar uma
participação justa na riqueza que é gerada pelo seu trabalho.
Análise da mais-valia prospera ainda melhor em meio ao armamento levado a
termo pela estatização da propriedade produtiva, como bem o mostra o exemplo russo.
Essa doutrina era, segundo o seu sentido estratégico, essencialmente uma tentativa de
formular uma linguagem objetiva, ou seja, quantitativa (econômica), na qual pudesse ser
tratada uma relação moral-social (a exploração). Ela queria desenvolver o conceito de
exploração em termos calculatórios, a fim de demonstrar que não se podia prosseguir
eternamente explorando. Mas no fundo o problema da exploração não se assenta no
plano de reflexões quantitativas. Quem é que pretenderia “calcular” o que cabe aos
homens? Não há nenhuma matemática, como também não há nenhuma aritmética da
autoconsciência.
Sloterdijk (2012, p. 436):

Há milênios, os homens estão dispostos em sociedades militares e em


sociedades de classes por meio de educações voltadas para o enrijecimento e
para a produção da resignação, deixando-se chantagear e entregando a mais-
173

valia sob a pressão da dominação – e nos arquipélagos agrários russos de hoje,


eles não são em nada praticamente diversos dos antigos escravos e dos
membros da tribo árabe fellachen. Isso exige menos uma teoria da mais-valia
e mais uma análise da “servidão voluntária”. O problema da exploração diz
mais respeito à psicologia política do que à economia política. A resignação é
mais forte do que a revolução. O que seria preciso dizer sobre os amaldiçoados
da terra russa não provém de Lenin, mas da pena de Flaubert: “A resignação é
a pior de todas as virtudes”.

Vale (2016, p. 92):

Sloterdijk diz querer voltar à sua tese que ficou inaudível no fragor do debate:
apenas um sistema voluntário de doações pode funcionar como princípio de
receita para o Estado, pois só assim a população veria devolvida à sua
vitalidade moral, uma vez que apenas as pessoas que estão afeiçoadas à
dádiva despertaram moralmente, isto é, existem enquanto sujeitos morais.

O que Sloterdijk pretende é substituir o “clima” psicopolítico onde a priori se


contempla os cidadãos como devedores, para um “clima” em que se considere quem são
os grupos dadores. A sua proposta parece ser a mais séria, decisiva até, da nossa época.
Trata-se de substituir as condições psicopolíticas que tratam os cidadãos como devedores
para uma formulação em que os cidadãos sejam considerados dadores ativos,
contribuidores (e não contribuintes) para o bem-estar social da comunidade. A
obrigatoriedade dos impostos não se justifica porque “já não vivemos em condições
absolutistas e os cidadãos não hão-de ser tratados como súbditos” (SLOTERDIJK, 2014, p.
148). Partindo da tese antropológica de que os seres humanos são algo mais do que
meros tomadores avarentos, devemos entendê-los como seres, simultaneamente,
capazes de tomar, assim como, de dar. Sloterdijk obriga-nos a pensar o paradigma
americano, onde os cidadãos não creem que o êxito gere culpa. Onde o gastar dinheiro
gera o impulso de tomar dinheiro. Para ele, seria ideal que na Europa, a imagem do ser
humano avarento, “caçador de benefícios”, fosse substituída, através de incentivos pela
dimensão generosa da ação humana. Uma coisa é certa, as descobertas tecnológicas para
se desenvolver um Iphone não vem da ânsia de ganhar dinheiro se não existir, antes de
tudo, a ânsia por gastar dinheiro. Nenhum projeto ou tecnologia existiu sem antes o
gasto, talvez até de projetos impossíveis, alguns diriam (Projeto Apollo, Space X, etc).
Saber gastar não é um ato egoísta, é parte da generosidade que vemos todos dia, mas
que não queremos acreditar que existe em nós, pois preferimos nos martirizar. Quem um
174

dia acharia que youtuber seria profissão e poderia ser bancado por seus espectadores?
Não só através da monetização, mas também do Patreon (seja meu patrão). O famoso
“contribua com o canal” com doações, financiamentos voluntários. Vemos Causas
animais cada dia crescem ainda mais, museus patrocinados, pessoas financiando
esportistas, entre tantos outros casos. Nos Estados Unidos, numa sociedade movida pelo
prestígio, logo começa uma competição pelo lado do dar. Para Sloterdijk, o mérito de
Marcel Mauss consiste em ter percebido que o dom estabelece o nexo social primário.
Apesar da dádiva ser sobrevalorizada por aqueles que concebem a formação do socius
sob a tutela da equivalência, Sloterdijk vai, pelo contrário, considerar que devemos
pensar a coesão social a partir da dádiva, nomeadamente a partir da dádiva unilateral,
um tipo de mecenato, não por pena, mas por bem querer. É sua convicção, portanto, que
todos nós poderíamos ser dadores inveterados se as premissas culturais o favorecessem.
Esta aniquilação refrigeração de liberdade, esta nova versão da servidão
voluntária de Étienne de La Boétie, prossiga gradualmente como sujeitos nos oferecendo
cada vez menos resistência até que doar para o bem comum poderia, assim, ser
transformado ao longo do tempo em um hábito psicopolítico consolidado. Não só os
impostos nunca baixariam, mas poderiam subir, quando as condições climáticas coletivas
permitirem. Mas, é claro, eles não seriam mais impostos odiosos, mas regozijavam-se
com "propostas de contribuições". Neste sentido, em torno da ambivalência humana,
Sloterdijk diz ainda, em You Must Change Your Life aprofunda a característica bipolar,
dual do homem, em que este é um ser que gravita entre duas formas de ação, passiva e
ativa. No trabalho que todos fazemos sobre nós próprios (eu-designer ou cuidado de si),
de molde a imunizarmo-nos face aos atropelos do meio ambiente, temos um conjunto
de dispositivos de optimização dos nossos recursos prontos-a-usar que podemos assumir
para nós de molde a que a vida adquira conotações mais previsíveis, mais aceitáveis, em
suma, para que a vida nos surja menos violenta, mais aprazível, menos bruta. A ideia de
ascese ou autopoiese novamente aparece.
Em sentido amplo, poderíamos afirmar que aquilo que nós chamamos de
“Modernidade” não seria outra coisa que o momento em que tais práticas ascéticas
desdobraram-se em todas as sociedades ocidentais, sob a forma de um disciplinamento
generalizado. A perda de uma certa ritualizada religiosa, uma forma de ascetismo
desespiritualizado. A ascese desespiritualizada permitiu que algumas sociedades
175

europeias se transformassem e que, entre os séculos XIX e XX, outras sociedades do


mundo também fizessem o mesmo. O homem moderno é um ser que é acrobata, as
culturas seriam um esforço para um além e para um sempre mais. No calvinismo, viu-se
uma insistência que enfatizava o agir, uma resolução de fazer. O calvinista procurava sua
certificação da salvação agindo resolutamente. Não é vida contemplativa, mas vida ativa,
que aproximaria aquele que aspira à salvação da sua meta. Um ascetismo intramundano
do protestantismo relacionaria o trabalho com a salvação (uma ioga protestante do
lucro). Só o trabalho aumentaria a glória de Deus como objetivo vital, por isso, Weber
menciona em seu texto clássico o petista Zinzendorf, para quem não se trabalharia só
para viver, mas vive-se pelo trabalho, se não tiver de trabalhar, o destino só poderia ser
o sofrimento ou a morte.
Diz Sloterdijk (2013, p. 335):

O treinamento é metodismo sem conteúdo religioso. Portanto, a


predominância do Ocidente na evolução da sociedade mundial nos séculos
XIX, XX e XXI veio não apenas do "imperialismo" amplamente e corretamente
criticado; a razão mais profunda era que eram as pessoas nessa parte do
mundo que, por causa de sua iniciativa na prática, forçavam todas as outras
civilizações do planeta a se unirem aos sistemas de treinamento que haviam
introduzido. A prova: entre os países ultrapassados, apenas aqueles que
souberam implantar um grau suficiente de estresse didático por meio de um
sistema escolar moderno conseguiram avançar. Isso foi mais bem-sucedido
onde, como no Japão e na China, um sistema elaborado de condicionamentos
feudais facilitou a transição para as disciplinas modernas. Enquanto isso, os
Tigres Asiáticos recuperaram seu terreno, enquanto o modernismo do
Ocidente ergue o nariz em imitação e mimese, novos competidores em todo
o mundo construíram seu sucesso com base no mais antigo princípio de
aprendizado. Os ocidentais provavelmente só compreenderão o quanto um
antigo grande poder de prática como a China deve a esse princípio, quando os
institutos confucionistas do novo poder global penetraram nos confins da
terra.

Sloterdijk (2014a, pp. 16-17):

A prática, ou exercício, é a forma mais antiga e mais rica de consequências de


uma práxis autorreferente: os seus resultados não confluem em circunstância
externas ou objetos, como quando trabalhamos e produzimos, desenvolvem a
própria pessoa que pratica e põem-na ‘em forma’ como sujeito-que-pode. O
resultado da praticar mostra-se na “condição” atual, ou seja, no estado de
capacitação do praticante. Conforme o contexto, descreve-se como
constituição, virtude, virtuosismo, competência, excelência ou fitness. O
sujeito, visto como protagonista da sua sequência de treino, afirma e potencia
o seu poder-fazer ao submeter-se aos seus exercícios típicos, em que os que
têm o mesmo nível de dificuldade devem ser avaliados como exercícios de
manutenção, enquanto os de grau crescente de dificuldade serão
176

considerados exercícios de desenvolvimento. A askesis clássica, como os


atletas gregos chamavam ao seu treino (proporcionando assim aos primeiros
monges cristãos, que se autodesignavam atletas de Cristo, um modelo cujos
efeitos perduraram ao longo das épocas), foi sempre, desde o início, uma
atividade híbrida. A partir do momento em que forçamos o ato de praticar até
aparecer uma distinção entre teoria e práxis ou entre vida ativa e vida
contemplativa, perdemos de vista o seu valor intrínseco.

Pode-se dizer que toda a vida é acrobacia. Assim, a relação entre a optimização
que eu próprio realizo na minha pessoa e as melhorias na minha vida proveniente de
outras pessoas às quais aspiro são designadas de duas formas: o primeiro tipo de ação
designa-se por “operar-se a si mesmo”. Sendo o segundo tipo designado por “deixar-se
operar”. Neste duelo entre passividade e atividade, o sujeito vai sobrevivendo, criando o
seu mundo. Estas duas expressões designariam modos de comportamento
antropotécnico, isto é, modos de comportamento modelados por tecnologias imateriais
próprias do humano, que seriam competidores entre si.
Esposito (2013, p. 55):

Peter Sloterdijk afirmou recentemente que, para compreender esse aspecto


[a capacidade de automodelagem do sujeito] - situado na estreita margem ao
longo da qual o humanismo vai além de si mesmo -, é preciso abandonar o
lugar extático ao qual nos conduziu Heidegger. Ou, ao menos, atravessá-lo em
uma direção diversa daquela, hiper-humanística, no fim das contas, que ele
tomou para defender a absolutez ontológica do Dasein. Para fazer isso, é
preciso violar um duplo interdito, imposto pelo próprio Heidegger, relativo à
antropologia e à técnica, em favor do absoluto primado da linguagem. Uma
vez que é justamente a antropotécnica - e não a faculdade linguística - o vetor
de sentido mais extremo que, em uma vertiginosa transposição semântica, liga
o vocabulário ainda não moderno da Oratio ao nosso destino de animais pós-
modernos. E isso não porque a linguagem não faça parte dos instrumentos que
o homem deu a si mesmo a fim de alcançar a própria condição essencial, mas
porque ela não foi o primeiro nem o principal entre eles. Antes que pela
linguagem, embora não independentemente dela, o homo humanus, ou
sapiens, como se queira, forjou-se, de fato, por meio da técnica.
Primeiramente, a técnica pesada do golpear e do lançar, da pedra e do fogo;
em seguida, aquela leve, dos gestos e dos símbolos - assim como, antes da
linguagem, teve de habitar outra casa, outro invólucro antrópico, capaz de
abrigá-lo das potências predominantes.

Este conceito entra aqui apenas na medida em que significa a formação da


pessoa (sujeito) pela ação prática sobre si própria. Ao primeiro, corresponde a
modelagem de mim próprio do qual sou autor, visando-me mediante os meus próprios
meios “como objeto de uma automodificação direta”. Ao segundo corresponde a minha
exposição ao influxo exercido pelas operações de outros, deixando-me moldar por eles.
177

Neste jogo entre atividade e passividade, entre o “operar-se a si próprio” e o “deixar-se


operar” encontra-se a realização de todo o cuidado que o sujeito tem por si próprio.31
Sloterdijk concentra-se nos antigos sistemas de prática relacionados com a emergência
de éticas radicais no período a que Karl Jaspers chamou de “era axial”, ou seja, o corte
civilizacional marcado pelas mundivisões imperiais (e também as críticas do império) do
primeiro milênio antes de Cristo. Isso nada mais é, do que as culturas antigas de prática,
eram sobretudo, sistemas de autotransformação ética. As culturas da antiguidade eram,
sobretudo, sistemas de autotransformações éticas. Tinham por função se alinhar o
homem em uma constituição cósmica ou cânone divino, o que na Idade Moderna,
especialmente na Europa, se familiarizou com o nome um tanto equivocado de
“religiões”. O termo “religião”, é um tanto cristão-romano demais aplicável a estes
fenômenos; neutralizados pelas Luzes, o que o converteram em uma categoria
antropológico-cultural, que dificilmente é passível de se fazer justiça aos sistemas
indianos, chineses, iranianos, judeus, entre outros.
Segundo Sloterdijk, as relações modernas são caracterizadas pelo fato de que,
cada vez mais, os indivíduos (que são autocompetentes) usam as competências dos
outros, permitindo que influam neles próprios, se deixem penetrar pelas energias dos
outros. A retroação desse “deixar-se operar” sobre o “operar-se a si mesmo” é designado
por Sloterdijk como a curvatura autooperativa do sujeito moderno. Isto baseia-se numa
forte evidência; quem permite a outros que façam diretamente algo nele faz algo por si
mesmo, o que levaria a uma transformação nos modos de atuação, onde o padecer se
veria integrado no fazer. Um paradoxal “fazer passivo”, de uma passividade ativa ou
atividade passiva, de um deixar-se fazer, mas, ainda assim, um fazer, pois resultaria de
uma escolha, uma atenção, uma deliberação. O sujeito competente na tarefa de se criar
a si próprio no mundo, de criar o seu mundo, aqui entendido com forte tradição da
esferologia, tem de prestar atenção não apenas à ampliação do raio das suas ações, como
se vê também obrigado a desenvolver a sua competência passiva de “ser tratado por
outros”. Por outro lado, o sujeito baseado no erotismo toma o ressentimento como uma
energia fóssil. É uma antiga energia debaixo da terra, petróleo negro como massa. Meio
petróleo, meio carvão, que acende quando é queimado. Em Ira e Tempo (2012) temos

31
SLOTERDIJK, Peter. Has de Cambiar tu Vida: Sobre Antropotécnica. Tradução: Pedro Madrigal, Valencia:
PreTextos, 2012c, p. 477.
178

um método histórico de desviar-vertigem usual, comparando os usos políticos de raiva-


fúria e de emoções relacionadas como orgulho e ressentimento de Homero para o
presente. Nas sociedades pré-modernas, a vingança e as disputas de sangue
proporcionam uma ampla saída para esses impulsos. Mais tarde, a lealdade ao estado-
nação (com maior expoente o nazismo) desempenhou uma função semelhante e o
comunismo internacional conseguiu direcionar a ira de classe para projetos utópicos.
Especialmente no século XIX houve uma mistura de utopias com teorias e com projetos
políticos. Com o advento do capitalismo moderno isso se apresenta como um problema
particular onde indivíduos cada vez mais irritados e isolados se veem cercados de ofertas
impossíveis, e com esse desejo frustrado, "surge um impulso de odiar tudo". A partir do
fim da guerra, foram precisos mais ou menos 10 anos até que explodisse na República de
Weimar uma nostalgia militar propriamente dita. A palavra “front” transformou-se na
palavra mágica para a inequivocidade em questões políticas. Por volta do final da década
de 20, os horrores das batalhas também pareciam estar tão amplamente integrados ou
tão alijados para bem longe e tão reinterpretados, que muitos autores ousaram se
aproximar de uma exposição da guerra: Remarque, Renn, Glaeser, Zweig, Vring,
Goebbels, Schauercker, etc. Entre as pessoas de direita, há a presença de dois motivos
inconfundíveis: elas gostariam de ter de volta a vivência da camaradagem conquistada
no front, sobretudo, como antítese em relação ao estado de dissensão total entre as
correntes políticas e os partidos de direita; e elas tinham uma nostalgia do “front” com
aquela linha, onde ainda se sabia “quem se era”. Mesmo os conservadores e os jovens
nacionalistas tinham entrementes compreendido que guerra e política interna são duas
coisas diversas. Uma nostalgia militar: soldados são heroicos, claros, duros, corajosos,
obedientes, no servir e no resistir; em uma palavra, eles se mostram como viris. A política,
ao contrário, é maleável, fraca, obscura, ambígua, não viril. A nostalgia militar
representou entre outras coisas uma restauração da masculinidade. Não é de se espantar
que grande parte dos trabalhos de Heidegger (principalmente Ser e Tempo) tenham se
desenvolvido nas décadas de 1920 até 1940. Quem conseguiria falar sobre o Ser com
tamanha destruição e brutalidade em justamente obliterar completamente o Ser de
todas as maneiras possíveis com a guerra?
Sloterdijk (2008, p. 48):
179

Dessas reflexões se podem tornar compreensíveis, em certa medida, as


oscilações do pensamento de Heidegger entre heroísmo e a mística. Só em um
Heidegger mais maduro é que Heidegger se tornou um mestre do mergulho
cujas instruções são, em parte, fiáveis. No início e a meio da sua era, cometeu
inadvertidamente erros que são típicos do comportamento em absorção. Ele
interpretou erroneamente o ato de mergulho como resolução em aceitar o
destino do Ser, sem perceber que esta desembocava na ontologização do
masoquismo. O que fez passar por liberdade de se tornar necessário, através
de um mandato do ser de tonalidade política, era, na realidade, uma
candidatura forçada de si mesmo ao usufruto de grandeza através da fusão na
violência histórica. O primeiro Heidegger foi um Empédocles político que se
precipitou na cratera do fascismo para se demonstrar como um pensador
elementar. O seu mutismo, depois de 1945, apenas se pode compreender, em
última instância, como um gesto de pudor empedocliano.32 Quando a cratera
não engole o sábio, mas o cospe para fora e o condena à vergonha de
sobreviver, o sujeito tira daí, é certo, uma lição decisiva, mas a humilhação é
demasiado profunda para que se possa falar em público sobre ela. Apenas à
beira da cratera se ilumina o sentido da frase: pensar em grandeza significa
enganar-se em grande.

Georg Grosz possui um pensamento bastante interessante. Diz Grosz (1974, p.


143):

Todos eram odiados: os judeus, os capitalistas, os comunistas, o militar, o


proprietário, o trabalhador, o desempregado, as forças de defesas imperiais
em seus uniformes negros, as comissões de controle, os políticos, as lojas e
uma vez mais os judeus. Havia uma orgia de incitação e a república estava
fraca, pouquíssimo credível... Tratava-se de um mundo negativo, com uma
espuma colorida na superfície.

Exatamente assim, a análise heideggeriana epocal da consciência em Ser e


Tempo (1927).33 Ele concebe a consciência como o “clamor do cuidado”. “O que a

32
Se como muitos criticam Heidegger pela sua transição aproximativa da revolução nacional-socialista de
1933, tais acusações só fazem sentido se as encaixarmos no contexto da renúncia da filosofia moderna à
tradição da racionalidade, contemplativa, à qual, arrependido, quis regressar depois da queda. O seu caso
é instrutivo sobre os perigos da militância, o que levou muitos filósofos da modernidade a serem “órgãos
da revolução”, “órgãos da história” ou “órgãos do acontecimento”. Georg Lukács, ocupou uma posição
importante no século XX, que após a sua conversão ao marxismo, tentou abocanhar o “princípio da
consciência de classe” a priori de todas as atividades intelectuais. Considerou a academia europeia uma
“ciência burguesa”, onde qualquer ciência ou recurso não marxista seria cúmplice da “ordem reinante”.
Luckács colaborou com a glorificação da violência revolucionária, assim como desacreditou do pacifismo
lógico, com o qual como vimos banhava a heterotopia paleoeuropeia da esfera acadêmica com o inicial
pacifismo civil da república dos sábios. Dois textos que nos parecem interessantes são RORTY, Richard. O
Fedor de Heidegger. Tradução: Samuel Titan Júnior, 1997. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/4/20/mais!/15.html>. Acesso: 24 Abr. 2019 e AGAMBEN,
Giorgio. A Potência do Pensamento: Ensaios e Conferências. Tradução: António Guerreiro. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2015, pp. 281-290.
33
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 15ª Edição. Parte I. Tradução: Márcia Sá Cavalcanti Schuback. Editora
Vozes: Rio de Janeiro, 2005, pp. 165-178. Ver também: §§ 55-69.
180

consciência clama para aquele que é chamado? Considerando de maneira rigorosa –


nada. O chamado não enuncia nada, não dá nenhuma informação sobre eventos do
mundo... Ao si mesmo invocado, “nada” é aclamado, mas ele é conclamado a si mesmo,
ou seja, seu poder-ser mais próprio”. Observa-se na dialética populista uma figura
comparável de pensamento: o retorno ao “poder-ser-mais-próprio” da nação por
intermédio do nada da grande catástrofe. Heidegger explicita o vazio da consciência na
práxis social “avançada”. Sua análise soa como um eco dos movimentos de pensamento
do niilismo-antiniilista populista. Karl Jaspers, porém, toca de maneira mais precisa em A
Situação Espiritual do Tempo (1932). Ele eleva a problemática do front a uma
característica geral da vida “na ordem moderna da existência”. Ele constata que a função
do front – dizer aos homens em nome do que e contra o que eles devem lutar, com quem
eles devem se aliar contra quem e o quê – se perdeu. Na era da tática, tudo pode se
inverter repentinamente. O front diluiu-se no subtítulo: “A Luta sem front”. Menciona
Jaspers que (1979, p. 163):

Uma luta, na qual se sabe com que se tem de lidar, é uma luta aberta. Na
ordem moderna da existência, contudo, se é afetado a cada clareza
instantânea pela confusão dos fronts de luta. O que até bem pouco se
mostrava como adversário agora é aliado. O que precisaria ser adversário de
acordo com a objetividade do que se deseja se mantém junto; o que se mostra
como antagônico abdica da luta; o que parecia um front uniforme se volta
contra si mesmo. E, em verdade, tudo em uma confusão e em uma mudança
turbulentas. Estamos em uma situação na qual posso me tornar adversário
daquele que se acha aparentemente mais próximo de mim, assim como posso
me aliar a quem se acha mais distante.

Não é por acaso que Heidegger descobriu a “estrutura da preocupação” da


existência nos dias instáveis da República e Weimar. A preocupação absorve o motivo da
felicidade. Quem, como Ernst Bloch, falava de um “princípio esperança” devia ser capaz
de encontrar ao menos em si mesmo esse a priori atmosférico do Esclarecimento: o olhar
voltado para um céu sereno. E o que distingue Bloch da principal corrente da intelligentsia
é que ele de fato encontrou esse estado. Mesmo quando tudo se tornava sombrio,
conhecia o segredo privado da jovialidade, a confiança na vida, o livre curso da
expressividade, a crença no desabrochar. Era sua força de redescobrir a “corrente
quente”, que ele trazia consigo, em todos os lugares da história humana. Isso tornou seu
olhar para as coisas mais otimistas do que elas mereciam. É essa corrente quente que o
separa do espírito do tempo. Heidegger possui um elemento muito forte dos pré-
181

socráticos. Quem era um fenômeno paradoxal em si mesmo por ser um pré-socrático


vivente. O individualismo é o reino dos seguros privados, no lugar dos seguros divinos
que compartilhávamos no passado. O cosmos não é mais nossa casa. Nossa casa se
tornou nosso microcosmos. Se tudo passa para um campo aberto tudo isso é aproveitado
no mercado capitalista pela ideia de falsa sensação de segurança com os crescentes
mecanismo de companhias seguros, planos de saúde, Previdência Social e demais
elementos ligados com a biopolítica, ou seja, se na minha jornada ao desconhecido der
errado pelo menos perco pouco ou tenho um tipo de compensação. Com isso vai o
aumento da expectativa de vida e as possibilidades da medicina, remédios (grande parte
do salário dos idosos são para pagar remédios e psicotrópicos) e do ambiente do “prever
para prover” criando um tipo de ludicidade. O neoliberalismo nos diz que podemos
trabalhar sem carteira de trabalho, que podemos fazer um curso de empreendedorismo
seremos empresários, que não precisamos de cartão de ponto e somos nós que fazemos
nosso próprio horário. O Estado de bem-estar social, o Estado de providência, que de
certo modo criou a previdência, é um Estado adulto. É um Estado pedagógico. Foi criado
por adultos, e não por pessoas jovens. Quando se é jovem você imagina que nunca vai
ficar doente, que empregos aparecem instantaneamente, que você pode trabalhar em
qualquer emprego, que você não pode se inventar como também se reinventar. Mas isso
tudo quando se chega aos 50 anos é uma grande mentira. Olhando o caminho percorrido
foi este mesmo Estado de bem-estar que permitiu a sobrevivência (biopolítica), que deu
a chance de termos um mínimo de conforto. Quando se é jovem por mais que estudemos
e que nos achemos inteligentes, nós temos uma onipotência, uma sensação de
onipotência que nos faz burros. O Estado de bem-estar social é a nossa proteção para
quando nós recobrarmos nossa consciência e nossa inteligência que perdemos quando
jovens (burros).
Não por acaso, que o surgimento dos seguros europeus se dá no século XVII.
Uma forma de separar loucura de razão, ambas têm relação com técnicas de seguridade
e certeza. Já que eles estão interessados no controle de mercado e de capitais flutuantes.
Nisso vai junto imagens, fluxo de informações, pessoas, mercadorias, dinheiro,
concorrência, sinais e marcas. Todos estão relacionados pelo sentido aos sistemas
disciplinares modernos que Foucault investigou em seus estudos de ordem histórica. O
início dos seguros pertence aos precursores da modernidade. O termo “modernização”
182

se define como substituição adiantada de estruturas simbólicas de imunidade. São de um


tipo de “recentes interpretações” religiosas de riscos da vida humana por prestações
técnicas de seguridade. No âmbito dos negócios o seguro substitui Deus, ou seja,
promete uma previsão diante as consequências boas ou ruins que das trocas e das
movimentações financeiras pelos ventos do destino. Quando as notícias da existência do
que seria a América e suas novidades começaram a chegar, o espaço europeu de
animação ganhou novo ímpeto, e as características da fortuna se alteraram. Os europeus
passaram por isso no século XVI com as primeiras novelas econômicas, e os primeiros
contos de fadas que se expandiram na Europa, por exemplo: Doutor Fausto, Fortunatus
– o jovem que tem sorte, e se encontra com a deusa fortuna recebe uma bolsa mágica.
Quando abre a bolsa encontra 40 escudos de ouro. Uma promessa de felicidade
desconhecida. Dessa forma, os europeus tiveram que esperar 300 ou 400 anos para que
a promessa da bolsa se cumpra graças estado providencial contemporâneo. Peter
Sloterdijk assim descreve essa nova situação. A maioria dos jovens passam por esse
período de espera, e como a espera não é a melhor coisa que os humanos sabem fazer,
a ira tomará o protagonismo, os europeus, africanos, sul-americanos terão que ver essa
ira como ondas de imigrações – com efeitos que até agora não nos foi mostrado
totalmente. A Europa não será capaz de uma política suficientemente defensiva, os
europeus não têm o costume de praticar uma política tão feia, em outro sentido, a
América não será, e nem poderá ser feita por muros. Aqueles que desconhecem a história
básica das coisas não percebem que muros não dão certo. Muros no mundo antigo já
eram discutíveis, no mundo contemporâneo não funciona. O muro de Israel não
funciona, o muro de Berlim não funcionou, e o muro entre os EUA e o resto, numa era
como a nossa, e ainda mais no país que é formado pelo americano hifenado, ou seja, pelo
ítalo-americano, sino-americano, afro-americano. A essência do povo americano é não
ser americano. A América desenvolveu uma revolução chamada “estrangeiros do mundo,
uni-vos”, como Deleuze falou, para contrapor o proletariado do mundo marxista.
A Fortuna aparece em todos os lugares como a deusa da globalização par
excellence. Em Der Reich das Fortuna, Sloterdijk fala de como o Decameron de Boccaccio
lembra bem a reanimação pela novela, como este diz, no seu conteúdo, de como foi
tramado para enfrentar a peste negra que se abateu sobre a Europa. Tais relações, em
Sloterdijk, dará origem ao conceito de imunidade. Segundo o autor, pode-se admitir que
183

a sociedade europeia seja imune olhando para o Renascimento, quando todos venceram
a Grande Epidemia através da literatura de G. Boccaccio, em O Decamerão. Para ele, isso
traduz a verdadeira superação da dicotomia Fé/Razão. Trata-se, segundo essa
perspectiva, de uma espécie de counter culture: as novelas. As novelas revelam o
autêntico significado do Renascimento, pois integram a própria consciência moderna de
felicidade. La vita è bela. Foi a novela do cotidiano que fez com que se pudesse voltar ao
cotidiano. E isso segundo um novo modo de contar histórias, a história como história sem
separação entre o humano-cultural e o puramente natural. A partir dessa lição de colocar
na jogada as pequenas boas novas sobre a vida que continua, daí em diante a
modernidade herdou do Renascimento a capacidade de enfrentar as sucessivas pestes.
Foi essa fórmula que permitiu e que permite que se possa sempre deixar de lado os
sabichões realistas e voltar a apostar e si mesmos e no mundo, e continuar e seguir em
frente. Do ponto de vista filosófico, a cidade de Florença marcou a civilização ocidental
pelo fato de ter nascido ali uma nova forma de nós, seres humanos, nos reanimarmos
diante do jogo de contingências (benéficas e maléficas) da natureza. Convém ressaltar
que, na teoria literária, o romance Dom Quixote datado de 1605 seria o primeiro romance
moderno. Na proposta de Sloterdijk, essa inauguração da sociedade novelesca já se inicia
com o Decamerão no século XIV. O filósofo alemão fez a escolha desse livro pelo fato dos
personagens de Boccaccio se reunirem para contar histórias uns pros outros, quando
nem a medicina nem a religião davam conta de fazer o espírito humano suportar a vida
diante dessa catástrofe natural, a peste negra, causada por um tipo de bactéria. Assim,
os personagens reunidos que haviam se afastado da cidade assolada pela peste negra
narram as historietas do Decamerão, sem o intuito de achar uma solução para acabar
com a praga, mas sim para eles mesmos poderem conviver com um mundo. Da atividade
de contar diversas histórias do cotidiano, em que ora prevalecia a sorte, ora o azar do
personagem, nasce a sociedade novelesca. Por fim, os narradores do Decamerão
regressaram à cidade ainda doente. Ainda que eles estivessem jogados à própria sorte, a
civilização ocidental encontrou uma nova forma de imunização diante das adversidades
da natureza através desse marco inicial da literatura. Guilherme de Lorris foi outro. Era
um poeta francês da Idade Média. Escreveu o Roman de la Rose (O Romance da Rosa)
(ed. 1914). Pouco se sabe da sua vida, exceto que escreveu a primeira parte da obra
Roman de la Rose cerca de 1230. Este poema, fortemente influenciado pelo conceito do
184

amor cortês, teve grande influência ao longo de toda a Idade Média francesa. O poema
de Guilherme, deixado inacabado com cerca de 4000 versos, foi continuado cerca de 40
anos mais tarde pelo poeta Jean de Meun, que escreveu uma segunda parte de caráter
muito diferente. Em uma passagem de seu romance se percebe claramente a noção de
fortuna que emergiria numa situação de globalização e sorte. As figuras do Romance da
Rosa são bastante significativas. A Cobiça é quem faz tomar as coisas dos outros, roubar,
usurpar e vender mal, diminuir e enganar nas contas; é a criadora dos trapaceiros, dos
charlatães que, seguindo seu conselho, privam donzelas e jovens de suas justas heranças.
Esta imagem tinha as mãos encurvadas e retorcidas – é lógico ser assim, pois a Cobiça
sempre se esforça em tomar o bem alheio sem escutar razões, já que gosta
demasiadamente do que é dos outros. Para poder desfrutar da vida cortesã simbolizada
pelo Jardim do Amor seriam necessárias certas qualidades morais, além de dons naturais
e meios de fortuna suficientes. Esta é a razão pela qual às figuras do romance ficam do
lado de fora do Jardim. Aqui o poeta contempla a Avareza, como no texto, com uma bolsa
de moedas em uma das mãos e as roupas rasgadas.

Figura de Romance da Rosa. A Cobiça, aquela que incita as gentes a tomar, a não dar
nada, a juntar, grandes riquezas; é quem faz com que muitos emprestem com usura, pois está
sempre querendo reunir e juntar bens; é quem aconselha aos ladrões e aos malfeitores para
185

que se ponham em movimento. Ela é um grande erro e uma grande desgraça, pois através dela
muitos acabam sendo enforcados. Nas mãos da Cobiça nota-se uma bolsa.

Ao lado da Cobiça havia outra figura, chamada Avareza: era feia, suja, magra,
fraca e de má aparência, verde como um alho-poró, tão pálida que parecia doente e
morta de fome ou que vivia somente de pão amassado com água sanitária forte e
abrasadora. Além de estar fraca, vestia-se pobremente: trazia uma cota velha,
destroçada e cheia de remendos, como se houvesse sido jogada aos cachorros. Ao seu
lado, pendurada em uma fraca presilha, estava seu manto e uma cota parda. O manto
não era de boa linhagem: era de má qualidade, desgastado, de lã negra, aveludada e
pesada. A cota devia ter mais de vinte anos, mas a Avareza não se preocupava com suas
vestes. Ela não sentiria muito por esse traje, ou porque estava usado, ou porque já não
lhe servia, já que necessitaria de um vestido novo; pois a Avareza, aquela que não gosta
de gastar, prefere passar grande penúria a fazer isso. Ela havia escondido na mão uma
bolsa costurada e fechada com tanta força, que se passaria um bom tempo antes de se
tirar algo dela, embora isso lhe importasse pouco, pois ela não tinha a intenção de tirar
nada da bolsa.
A palavra fortuna com a conotação de sorte e prosperidade carregou-se da
semântica atual, ou seja, tornou-se sinônima de “montante de dinheiro”.
Posteriormente, na modernidade isso se institucionalizou com os jogos de azar, bingos,
roletas, roleta-russa, cassinos, megassena, etc. Nós modernos somos os que assumiram
essa descoberta do Renascimento de um modo ritual. Passamos a ver em tudo a Roda da
Fortuna ou Rodas do Destino: casamentos, mortes, guerras, aniversários, visitas
inesperadas, negócios, empreendimentos, colonialismo, viagens, prospecções várias,
empregos diferentes, mídia. Institucionalizamos a fortuna: loteria esportiva institucional
e a jogatina do sistema financeiro. Esse processo mostra a glorificação da fortuna. Só ela
é efetivamente uma deusa. E só vale a pena ser rico, ou seja, ter fortuna, se a riqueza é
de fato ter fortuna, vir pela fortuna.
Se formos para o escritor Neil Gaiman, as primeiras páginas de Entes Queridos
de 1991 servem como um prólogo, no qual presenciamos um chá de fim de tarde na casa
das três Moiras (entidades irmãs responsáveis por tecer os destinos dos homens e dos
deuses, também conhecidas como as Parcas). Escritor afeito a metáforas, cria sem suas
186

obras várias referências desde a mitologia grega, romana, latina e nórdica. Gaiman não
perde a oportunidade de iniciar aí várias referências ao próprio ato de contar histórias
(com isso, o primeiro quadro dos capítulos é uma metáfora visual para o “fio da história”,
ora na forma de um novelo, ora como um cabo de energia ou um fio de telefone). Além
disso, o roteirista sempre demonstrou uma fascinação por tríades femininas, e acabamos
revendo as três damas das primeiras páginas transfiguradas, mais tarde, nas Três Bruxas
(de Macbeth) e também nas temíveis Fúrias (da mitologia clássica), entre outras
entidades mitológicas. E a mitologia tem, de fato, um lugar central nessa trama. As
parcas, na mitologia romana (moiras na mitologia grega), eram filhas da noite (ou de Zeus
e de Témis). Divindades que controlam o destino dos mortais e determinam o curso da
vida humana, decidindo questões como vida e morte, de maneira que nem Zeus poderia
contestar suas decisões. Na Odisseia aparecem as “fiandeiras” com a atividade típica de
aranhas que tecem teias. Durante o trabalho, as parcas fazem uso da Roda da Fortuna,
que é o tear utilizado para se tecer os fios. Ao enrolar os fios da existência dos seres vivos
neste instrumento, cada pessoa se encontrará na posição mais almejada, o alto da roda,
ou em baixo, na parte menos desejada, simbolizando os momentos de boa ou má sorte
de todos.
O globo moderno sonha sua fortuna como um relógio de oportunidades para
uma nova sociedade de empresários à distância e corredores de riscos que foram vistos
nas margens de outros mundos sua riqueza de manhã. Quando os esquemas de
negociação com riscos se estendem de modo geral como inventar, arriscar, planificar,
apostar, repartir riscos, financiar, fazer reservas, entra em cena todo uma quantidade de
pessoas que querem procurar por si mesmas sua felicidade e seu futuro jogando com o
imprevisível e as oportunidades e que não deseja mais ser conduzida tão somente pela
mão de Deus. Na modernidade, entretanto, nasce inteligentemente a imagem da roda
do destino, dando piruetas e voltas. Estamos diante de uma “metafísica da sorte” que se
ajusta a suas mais peculiares e razões de existir movimentando-se. A história da fortuna
é uma marca no espaço europeu de animação, especialmente quando vemos o período
medieval e o renascentista. Temos o Consolação da Filosofia de Boécio, O Príncipe de
Maquiavel. Esses dois clássicos podem nos dar pistas bastante valiosas a respeito desse
tema. A formulação dada pela Filosofia a Boécio, a respeito do mal e só então,
percebemos a razão pela qual é a Filosofia que lhe aparece, e não Deus ou um anjo etc.,
187

isso inclui uma explicação do papel da Fortuna segundo duas outras figuras, a Providência
e o Destino. Não é sem razão que na identidade moderna, ou seja, o individualismo que
nos é típico, é visto por Sloterdijk como construído segundo um fio que vai da aventura,
da rotação do globo junto com a roda da fortuna e cultivo da sorte (própria do
Renascimento) para a ideia de divertimento (própria dos tempos contemporâneos). Se
vê a fortuna como uma mulher: as vezes vendada como a justiça, as vezes como uma
madrastra, as vezes como uma senhora caprichosa e injusta, que engana seus
admiradores guiando-os em círculo, as vezes como amor, romance, como trabalho, o
combate, o diálogo, o flerte, a oportunidade, os negócios. Estas são as formas principais
do êxtase que diverte. Essa metafísica se infiltrou para o ramo creditício, capitalista e da
globalização (animação de espaços). O ciclo ou círculo virtuoso gira sobre seu próprio
eixo e toma a forma, no sentido moderno, como autopotenciador e autoexpoencial
(acumulação, mobilização, processo, aligeiramento, empreendimentos – algo para mais
e mais para algo mais; é significativo que temos como tecnologias rodas, moinhos de
vento e água, azenha, usinas hidrelétricas como mecanismo capaz de aproveitar a energia
cinética da movimentação de águas como fluxo e tomando o giro constante da roda; não
usamos a frase “o consumo é o motor da economia?”). Não veríamos os Positivistas,
especialmente, Comte e Durkheim, este último com suas ideias de “solidariedade
orgânica”? Durkheim concebe as sociedades complexas como grandes organismos vivos,
onde os órgãos são diferentes entre si (que neste caso corresponde à divisão do
trabalho), mas todos dependem um do outro para o bom funcionamento do ser vivo. São
digamos, um relógio com correias, roldanas, polias que estão dispostas de maneira a
entrarem em movimento para que o todo funcione harmoniosamente. Vemos na
bandeira brasileira o lema: “Ordem e Progresso”. Também tem conhecimento de que o
positivismo foi uma doutrina forte entre os republicanos, tanto os civis quanto os
militares. A frase “ordem e progresso” entrou na bandeira com um corte, talvez
justamente porque a primeira parte da frase fosse uma camisa de força para pessoas que
deveriam, ao menos naquele momento de criação da República, dar combate ao Império,
em nome da nova ordem. Qual corte? Bem, a frase original de Comte era uma maneira
de sintetizar sua proposta filosófica: “amor por princípio, ordem como base e progresso
como fim”. Fazendo da filosofia da história de Hegel um esquema de teoria social, Comte
viu o desdobramento cultural humano segundo três fases: mítico-religiosa, metafísica e
188

científica. Os homens deveriam ir do mito para a filosofia e desta para a ciência. Chegar
ao progresso seria algo desejável, claro, e isso significaria entrar para a última e melhor
fase da humanidade. O progresso era visto por Comte como aquela fase na qual as
pessoas deveriam deixar de pensar miticamente e filosoficamente para abordar os
problemas da vida segundo procedimentos científicos. Mas isso não seria possível de ser
realizado sem um impulso motivacional tomado como princípio e guia: o amor. A força
da união entre as pessoas, um eco da fraternidade da Revolução Francesa, sempre teria
de estar presente.
O lema da bandeira veio sim da filosofia de Comte, e não tinha nada de
autoritário ou reacionário. Por sua vez, a ordem deveria ser tomada, por definição, como
contrário do caos, como a harmonia de uma etapa que segue outra. São os ideais
positivistas que, quando estudamos a história do século XIX, entendemos perfeitamente
dentro de um contexto afinado com tempos de esperança, de construção e reconstrução,
de generosidade utópica em Saint Simon e a Escola de Chicago, precursor de Comte,
inspirou os engenheiros que fizeram o Canal do Panamá onde a engenharia tinha de estar
voltada para a união da Humanidade. Progresso deveria lembrar a ideia de uma filosofia
da história no final do século XIX. A história viria por etapas, e as etapas posteriores teriam
de naturalmente serem melhores que as etapas anteriores. Os positivistas leram Hegel e
se tornaram, nesse progressismo, parentes próximos dos marxistas e outras filosofias
próprias do período, que queriam um futuro melhor.
Não seria o símbolo da aventura os ventos que sopram e que levaram pessoas
para locais inesperados. Catástrofes e situações que se fizeram presentes em um
acidente, em uma descoberta, em uma sorte? As vezes as pessoas erradas não estão nos
lugares certos? Nós não dizemos que "os ventos estão mudando" quando tentamos
acreditar em uma maré, uma onda, forças anímicas que criarão uma mudança brusca
direções, uma grande viragem, revoluções como quem espera ter uma certa dose de
sorte, interferência divina, o destino atuando para nós, como quem escreve certo por
linhas tortas, como quem está com a bunda virado para a lua, como aquele alguém, que
mesmo no erro, parece ser tocado por um dom de tudo dar certo, ou seja, não só as
coisas estão de passagem, mas pessoas. Um grande círculo, uma grande roda, um grande
globo que gira aleatoriamente, mas com uma iniciação empreendedora de metafísica
infecciosa de sorte, o espírito não fora já deflagrado como uma vitalidade flutuando,
189

pairante, mobilizadora capaz de ser afetada em busca de direções e novos horizontes?


Ninguém rejeita uma dose mínima de sorte. Não se diz sobre o trevo de quatro folhas?
Tudo indica que é por causa da sua raridade na natureza. Quem encontrar um será
agraciado e terá uma boa sorte. Presente na maioria das regiões temperadas e
subtropicais do planeta, o trevo normalmente produz apenas três folhas. Acredita-se que
o uso do trevo de quatro folhas como talismã tenha se originado com os druidas,
sacerdotes dos celtas, povo que ocupou a Europa no primeiro milênio a.C. Talvez não seja
acaso que são quatro os pontos cardeais, as estações do ano, os elementos alquímicos e
as fases da Lua. As autoridades medievais, por sua vez, nunca deixaram de avisar: só os
insensatos querem montar no carrossel da Fortuna, a Fortuna talvez não seja algo
domável. Ela parece estar mais para a oportunidade, o não ressentimento, o risco, a
coragem, a expansão em direções desconhecidas, a virtude, façanhas, o jogo, a sorte.
Vem à mente de Maquiavel, nesse tempo, para descrever a fortuna. Bignotto Newtondiz
que a ideia de fortuna em Maquiavel vem da deusa romana da sorte e representa as
coisas inevitáveis que acontecem aos seres humanos. Não se pode saber a quem ela vai
fazer bens ou males e ela pode tanto levar alguém ao poder como tirá-lo de lá, embora
não se manifeste apenas na política. Como sua vontade é desconhecida, não se pode
afirmar que ela nunca lhe favorecerá. Afinal, o “mundo dá voltas”. Não utilizamos até
hoje o cara ou coroa, um jogo simples, que consiste em se atirar uma moeda ao ar para
então verificar qual de seus lados ficou voltado para cima após sua queda. É uma forma
de apostar a sorte ou o azar com o lançamento de uma moeda para que ela destina nosso
futuro ou nossas ações muito comuns em jogos?
E como poderiam os homens viver felizes sem mim, se a Fortuna, essa deusa
que decide a sorte deles, está tão de acordo comigo que sempre foi a inimiga inconciliável
dos sábios, prodigalizando, ao contrário, seus favores aos loucos, mesmo quando
adormecidos? Certamente ouvistes falar de Timóteo, o general ateniense que deu
origem ao provérbio: Ele toma as cidades enquanto dormem. Conheceis também estes
outros provérbios: Ele nasceu com sorte; – Os inocentes são felizes em seus
empreendimentos. Pois bem, tudo isso só convém aos loucos; ao passo que é de um sábio
que se costuma dizer: Ele só encontra pedras no caminho; – Ele nasceu sob um mau signo;
– Ele é perseguido por um destino implacável. Mas basta de provérbios: poderiam pensar
que os tirei da coletânea do meu amigo Erasmo. Eu dizia, então, que a Fortuna ama os
190

insensatos, os homens ousados e temerários, os que dizem como César, ao cruzar o


Rubicão: A sorte está lançada. A sabedoria torna os homens tímidos. Assim é comum ver
os sábios constantemente às voltas com a pobreza, a fome e a dor, vivem na obscuridade,
desprezados e detestados por todos. Os loucos, ao contrário, nadam na opulência,
governam os impérios, em suma, desfrutam do destino mais feliz e mais próspero. De
fato, se fazeis consistir vossa felicidade em agradar aos soberanos e em ser admitidos no
meio brilhante dos príncipes e dos cortesãos, de que vos servirá a sabedoria? Esses
deuses da terra detestam-na e não a suportam entre eles. Quereis enriquecer? Que belo
lucro tereis no comércio, se, fiéis, às leis da sabedoria, não ousais cometer um falso
juramento ou um perjúrio, se corais de ser surpreendido em mentira, se encheis a cabeça
com os escrúpulos inquietantes que os sábios formaram sobre o roubo e a usura!34
A moça que vai ficar pouco com o cavaleiro, que deseja ser raptada para sentir
o prazer momentâneo. Trata-se da deusa da contingência, mas antes de tudo, de uma
virgem que representa agora não um tacão sobre a cabeça do homem, mas uma
oportunidade. Uma mulher que quer ser arrebatada e pressionada ao corpo, o cavaleiro
que assim fizer terá mostrado ser ele o proprietário sagaz da oportunidade. O homem da
sorte não é um calculista, é um oportunista. Assim abre-se a modernidade. O dinheiro
gera juros. Com dinheiro posso ter ativos e passivos. A fortuna faz fortuna, o dinheiro.
Nesse clima, os pecados foram se ampliando e se sofisticando. O globo gira para mais
dinheiro. Uma promessa nos vem com uma boa sorte.
Lorris e Meung (2003, p. 31):

O mesmo ocorre com a Fortuna, pois ela enche o coração das gentes de
amargura e logo depois os acaricia e afaga; rapidamente muda seu aspecto:
ora ri, ora está triste. Ela tem uma roda que gira e, quando assim o deseja,
coloca acima, na parte mais alta, aquele que estava embaixo e, com uma volta,
faz com que caia no barro aquele que estava acima na roda. E eu fui
derrubado! Em má hora vi os muros e as fossas que não me atrevia passar – e
nem poderia fazê-lo. Não tive nenhuma alegria desde que Doce Abrigo foi
encarcerado, pois todo o meu gozo e toda a minha cura descansavam nele e
na rosa que se encontrava presa entre os muros; seria necessário que ela
saísse da torre se o Amor quisesse que eu fosse curado, pois de nenhum outro
desejo receberia honra, bem, saúde e alegria.

Sloterdijk (2004a, p. 766):

34
DESIDÉRIO, Erasmo. Elogio da Loucura. Tradução: Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2003, pp. 111-112.
191

Rezar é bom, assegurar-se é melhor: desta instituição surge a primeira


tecnologia de imunidade, pragmaticamente implantada, da Modernidade; a
ela seguirão em todo o século XIX os seguros sociais e as instituições médico-
higiênicas do Estado de Bem-Estar. (O preço imaterial que os modernos pagam
por sua asseguribilidade é realmente alto, inclusive metafisicamente ruinoso,
pois, renunciam a ter um destino, é, dizer uma relação direta com o absoluto
como perigo irredutível, e se elegem a si mesmos como casos de um meio
estatístico que foi adornado individualmente; o sentido de ser [sujeito] se
reduz para eles a um direito de indenização em caso de acidentes, regulado
por normas). Além disso, a filosofia moderna só produz, em princípio, uma
reorganização da imunidade simbólica sob o signo da "certeza", ou seja,
modernização de provas. Talvez o símbolo das filosofias modernas não-
monárquicas e civis seja baseado na crescente demanda por provas de não ser
louco. Seus clientes não são mais serventias, os bispados, mosteiros e
faculdades teológicas, mas os que praticam projetos nas antecâmaras dos
príncipes mundanos e as cabeças empresariais na plateia – em aumento –
pessoas educadas em particular, e, finalmente, por isso, que com legitimidade
crescente pode ser chamado de publicidade científica. Talvez a corrente
racionalista de ligações filosofia continental com o emigrante Descartes só foi,
em essência, esta tentativa: colocar sob seus pés firmes, lógica e terra firme,
um novo tipo de cidadão de risco pedir empréstimos, especulam com capital
flutuante e têm prazos de amortização à vista.

O medo da velha Europa pela abertura do mundo, que se abriu de novo,


manifestou-se no temor das mentalidades agrárias e fisiocráticas enfrentadas pela
emergente indústria marítima e pela economia mundial. A antiglobalização mais
importante dos últimos séculos foram os caracteres oceanofóbicos. Por outro lado, as
amostras fóbicas são direcionadas hoje, em vez do mercado de ações globalizado, o que
de certa forma representa a continuação do jogo oceânico em outro nível. Sloterdijk se
empenha em mostrar como o espírito da sociedade que conhecemos hoje,
climaticamente ativa, defensora dos direitos humanos ambientais e biosféricos, tem
origem no Renascimento, muito em virtude dos efeitos colaterais produzidos pelo
comércio (navegações, créditos e globalização) na formação histórica moderna. Trata-se,
precisamente, de revelar uma explicação da idade moderna ou de seu surgimento a partir
das relações existentes entre mercados e bactérias.
Trata-se, precisamente, de revelar uma explicação (à la heidegger) da idade
moderna a partir das relações existentes entre mercados e bactérias. Em outras palavras,
trata-se de refletir sobre a história a partir de uma visão em que a natureza não está sob
domínio do capital e também é um player. El juego joga!35

35
SLOTERDIJK, Peter. Das Reich der Fortuna. In: El Reino de la Fortuna – Extremadura, Renacimiento,
Fortuna. Extremadura: Fundación Ortega Muñoz, 2013, p. 23. Desde 1348, os europeus sabem que grandes
192

Em um de seus opúsculos recentes, Sloterdijk inicia suas palavras com: “Nossa


excursão às fontes da consciência moderna de felicidade começará naquele século XIV…”.
Ele acredita que foi nessa época que surgiram os primeiros indícios do que é o ser-no-
mundo humano, como isso se configura hoje em dia. Ele rememora uma narrativa em
busca do homem do Renascimento. O historiador Jacob Burckhardt foi um dos primeiros
a falar com empenho do homem da cultura do Renascimento. Foi contemporâneo de
Nietzsche, filósofo que nunca gostou de época nenhuma da história, exceto a do
Renascimento. Sloterdijk faz uma “nova leitura” ou reler e reconceitua a própria
compreensão dessa época e sua articulação com a nossa vida atual. A ideia básica do
filósofo começa por Boccacio. Nesse caso, de modo inusitado, o homem do humor não
fala de humor, mas de desgraça. Seria possível não pensar em, por exemplo, peste negra?
Romances não correspondidos? Fome? Guerras e batalhas? Um caráter um tanto
novelesco da vida? Sloterdijk traça uma narrativa da célebre peste que assolou seu tempo
e, em especial, a cidade de Veneza. Do modo que Sloterdijk o a aborda, o autor do
Decameron faz essa sua obra quase que cumprindo aquilo que o próprio filósofo entende
ser uma descoberta do Renascimento, a prática de começar a incluir a história natural na
história humana. A história da reação à peste é a história da busca de construção de
novelas (pequenos contos) capazes de mostrar que, apesar de tudo, a vida é bela, que a
alegria pode surgir em meio ao número de cadáveres que indicou que metade da
população da Europa havia desaparecido em pouquíssimo tempo. Não se entendia o que
havia ocorrido, se eram influências dos astros ou a ira de Deus. O que se sabia era que os
pequenos contos eram a chance de um novo evangelho, uma nova e única forma de se
acreditar em uma boa nova – promessas de futuros vindouros melhores. A fórmula
perfeita de endereçar esperança. Em meio a esse evento da emergência da novela, veio
então a noção de que as rotas de comércio fazem cruzar homens e micróbios de diversos
lugares. Mais tarde, para se salvar disso, várias cidades instauraram a quarentena. Uma
prática hoje vigente na Europa e nos Estados Unidos, às vezes sem grande sucesso.
Quando pensamos nos muros diversos atuais (por leis ou por tijolos), contra correntes de
migração e refugiados, vemos o quanto a quarentena não evoluiu para uma ideia melhor.

cidades comerciais são espaços de infecção. Eles constituem zonas de risco em que eles misturam contato
desordenado e buscam por nós. Seus habitantes agora devem entender, em um processo de aprendizado
temeroso, que as riquezas e as infecções viajam juntas.
193

Somos assim, frutos da busca de uma felicidade por carta literária. Nessas cartas, nessas
novelas, surge a grande heroína do Renascimento, quase como santa ou fada: a Fortuna.
Hoje ela está secularizada, mas não menos importante. Tornou-se a peça chave do que
entendemos como a alavanca da verdadeira felicidade. A contingência e o inusitado
trazem desgraças, mas só estes, também, sob o nome de sorte ou fortuna, trazem a
riqueza que vale como riqueza. A novela conta isso. Desde aquela do herói Fortunatus, o
homem aventureiro da bolsa que sempre repunha seu próprio conteúdo em dinheiro,
até à literatura presente e ao que se chama novela de TV. A verdadeira riqueza é a que
se ganha sem trabalho, mas pela sorte. Essa ideia se entremeou com a peste. Colombo
foi para o empreendimento do risco, da sorte e do azar, e trouxe a notícia de que havia o
novo mundo. Mas os tempos eram tão difíceis, a peste tão assassina, que seu anúncio
caiu no vazio, e ficou por conta de um aventureiro de mais estilo marqueteiro que ele,
Américo Vespúcio, divulgar o novo mundo, um pouco mais tarde. Por contrabalanço do
tempo, a peste fez o nome da América ser América. O “Fazer a América” não é
exatamente lançar-se na aventura? Não é se entregar ao que dizem as novelas curtas, de
que a Fortuna é uma deusa que existe mesmo? Convivemos hoje com a noção de que
quanto mais controlamos tudo, menos sabemos do jogo de sorte e azar, de modo que
não há como ter esperança se não acreditamos que a nossa verdadeira felicidade se deve
a um ato da Fortuna.
Sloterdijk está falando nada mais que para se abrir tais espaços artificiais como
estufas chega a “paradoxos termopolíticos”, faz-se explodir em todas as regiões do
mundo os resquícios de uma fé e uma segurança em nome do “radical Iluminismo do
mercado”, um mundo da segurança e da promessa de uma vida melhor que rapidamente
se sente sem equilíbrio como numa corda bamba as normas imunitárias do proletariado
e das populações periféricas. Subitamente diversas massas encontram-se descampadas,
mas sem saber exatamente o sentido da sua expulsão. Na mudança de forma de mundo,
inúmeros indivíduos e famílias se veem abandonados por boas almas políticas. A
mobilização dos muitos por uma grande forma coerente acaba em lamento ou hipnose
sem sucesso. Basta ver recentemente o caso dos imigrantes. Eles vivem a ilusão do frio e
do desalento, mas com a imagem de mundo de algum tipo de calor pulsante volta a arder
neles na busca de um abraço que os circunscreva. Os movimentos fundamentalistas
mostram que a construção de “casas” e seguros privados, como sistemas de
194

solidariedade indireta, ainda não é capaz de atender às necessidades daqueles que são
simbolicamente e materialmente “sem teto”. Essa falta de diálogo será resolvida pela
política do poder, que, no caso, não é a do expansionismo, mas a do isolacionismo. A
Europa está aprendendo essa política cínica com o fechamento das fronteiras. Sloterdijk
defende um controle moderado da imigração. Uma abertura moderada. Dentro de 30
anos, metade da população europeia será idosa. É preciso uma atitude semelhante às da
Austrália e do Canadá, de acolhimento projetado. Uma política descontrolada de
imigração produzirá uma enorme tensão.

“A uns a Fortuna se mostra como uma boa mãe, a outros madrasta injusta”.
Emblemata nobilitatis. Frankfurt. Teodoro Bry (1593).
195

Debaixo dos pés da Fortuna. A grande fortuna ou nêmesis. Alberto Durero. (1501).

Grande parte dessas pessoas nunca será integrada à cultura europeia. Esse
sistema “nascente” de seguros é um dos precursores da modernidade sistêmica na
medida em que se define a modernização como uma gradual substituição de vagas
estruturas imunológicas simbólicas, do tipo das interpretações religiosas últimas dos
riscos da vida humana, por prestações de segurança social e técnicas calculadas. Essa
imprevisibilidade ou uma “jornada de aventura” tinha como acompanhante Deus. Mas
agora, em certos pontos essenciais modernos, o seguro de profissões, contratos,
negócios e vida tomam o lugar dos destinos que estava nas mãos de Deus. Como o sujeito
moderno não pode pensar na “própria morte” por razões psicológicas, ideológicas e
metafísicas (a filosofia de Heidegger parece se mostrar, em contrapartida, como um
corretivo imponente em relação a esse ponto), ele cai sob o peso da lei de que é preciso
evitar a morte literalmente com todos os meios. Em certo aspecto, todos os meios são
meios para não morrer. Consequentemente, obtém-se a partir daí um instrumentalismo
total, que engole tudo o que não se revela como o eu que gostaria de sobreviver. Esse
instrumentalismo fornece a base técnico-lógica para o cinismo dominante moderno da
196

“razão instrumental” (Horkheimer). Se o sujeito é a priori aquilo que não pode morrer,
então ele transforma rigorosamente o mundo em areal de suas lutas por sobrevivência.
O que me impede é o meu inimigo; quem é meu inimigo precisa ser impedido de me
impedir. Em última instância, essa vontade de prevenção significa a prontidão para
aniquilar o outro homem ou “o outro”. Em meio à alternativa “nós ou eles”, a escolha cai
imediatamente sobre a morte dos outros, uma vez que ela é, no caso conflitante, a
condição significativa, necessária e suficiente de minha sobrevivência. O não poder
morrer submete o mundo, tanto em seus âmbitos visíveis quanto invisíveis, a uma
transformação radical. Se o mundo se torna por um lado o palco do espetáculo das lutas
humanas por autoconservação, ao mesmo tempo ele se trivializa e se transforma em
bastidor material, por trás do qual não é possível supor senão a presença do assim
chamado nada. No Dadaísmo, os indivíduos realizam pela primeira vez conscientemente
a inversão padrão para toda a subjetividade contemporânea da relação eu-mundo
moderna: o indivíduo kynikos põe fim a pose do criador artístico baseado em si (gênio),
do empreendedor que se resgata. Eles deixam-se impelir muito mais pelo dado. “Se
aquilo que nos impele for brutal, nós também o somos”. O Dada não olha para o cosmos
ordenado. O que está em questão para ele é o presente do espírito no caos. Seria sem
sentido manter toda pose em meio ao tumulto assassino, tal como era usual nas filosofias
da vida pacatamente excitadas do tempo. O Dada exige do tempo uma coetaneidade
absoluta com as tendências do próprio tempo (vanguarda existencial). Só o mais
avançado vive em uma linha temporal. A guerra como mobilização e como auto
desinibição, os mais adiantados procedimentos destrutivos até o cerne das artes:
antipsicologia e antiburguesia. O “páthos” da verdade dessa corrente é ter o tempo nos
nervos e pensá-lo e vivê-lo em seu ritmo. Este parece ser um fator fundamental da moral
de esquerda. A sentença de Gustav Regler: “Quem não participa de seu tempo é pobre.
Esta tornou-se uma lei não escrita. Em seguida, uma pressão. Por fim, uma chantagem”.
Um eco filosófico vem aqui à tona: o Dada antecipa propriamente o tema da ontologia
fundamental heideggeriana, critica por sua parte em um nível conceitual extremo a
mentira “sujeito” característica da filosofia europeia dominante.
O eu, não é o senhor do mundo, mas vive no mundo sob o sinal do caráter de
jogado. Em todos os casos, fazemos “projetos”, mas mesmo esses projetos, por sua vez,
são “projetos jogados”, de tal modo que vige primariamente uma estrutura ontológica
197

passiva. Diga-se de passagem, o Dadaísmo anteciparia essa noção ontológica de


Heidegger. Basta vermos o manifesto Dadaísta, panfleto de 1918, ao dizer que “Ser
dadaísta significa deixar-se jogar pelas coisas, ser contra toda e qualquer, formação de
sedimentos, sentar-se por um momento em uma cadeira significa colocar a vida em
perigo...”. Pode-se dizer que a existência seria um acolhimento acadêmico da “dadasofia”
ou da “dadalogia”, sendo que Heidegger teria contestado com um sucesso gigante o lugar
do mestre Johnnes Baader como sumo Dada. O segredo de seu sucesso foi que ele tocou
no ponto que constitui o “fracasso” do Dada: a seriedade. Ao invés das produções que
brilham de maneira nada séria, própria dos artistas da vida “jogados” dadaisticamente e
de suas sátiras politizantes, o caráter de jogado participou da corrida em sua variante
séria. Um dadasein? Heidegger falou como a técnica dominaria todos os aspectos
humanos, mas também temos que entender a ideia de técnica pelo seu lado de
“entrega”. É possível se pensar algum ponto de contato entre filosofia e tecnologia?
Poderíamos dizer que sim. A moderna tecnologia surgiu a partir da filosofia. Com a
filosofia moderna tivemos os primeiros princípios do que apenas, e claramente e
distintamente pode ser conhecido é real (matematicamente). Existe uma famosa frase
de um físico alemão chamado Max Planck, que diz: “Realidade é apenas aquilo que pode
ser mensurável”. Este pensamento, esta realidade são apenas acessíveis para os homens
enquanto puder ser mensurada no sentido da física e matemática. É esse o pensamento
que determina toda a tecnologia moderna. Uma noção inicialmente delineada por
Descartes, o fundador da filosofia moderna. O famoso enunciado Cogito, sum pode ser
interpretado da seguinte maneira: ao abstrair-me do mundo, ganho-me a mim próprio,
retiro todo o conteúdo das minhas representações, o que restar, sou “eu”. O hábito de
garantia de um interior seguro de si através de abstrações do exterior supérfluo chegou
até Kant, esta fantasia a toca numa aula de metafísica onde ele fala sobre amputação.
Perguntou se o homem poderia cujo corpo foi aberto ver seus interiores e todas as suas
entranhas, portanto, esse interior é meramente um ser corporal e diferente do ser
pensante. Um homem pode perder vários membros e, no entanto, permanecer. Ele pode
dizer “Eu sou”. Pode perder um braço que foi cortado, o homem pode contemplar seu
próprio braço como objeto que já não pode utilizar. Ele, no entanto, permanece, é uma
fundação firme, seu ser pensante não perde nada. Essa ingenuidade de Kant, de que o
198

ser pensante possa estar, sem mais, pela alma foi revista por ele próprio na sua obra
crítica.
Heidegger dizia que o conhecimento tecnológico e científico era uma técnica de
fazer o que é implícito, interno, escondido, em explícito, isto é, trazê-lo ao descoberto.
Modernização significa, nesse sentido, "explicar" (modernização não é revolução, isso foi
um mal-entendido), mas não no sentido lógico comum de explanar, e sim no seu sentido
cognitivo de trazer à superfície.36 Enquanto o jogo da linguagem central da atividade
filosófica, e das ciências, consistia naquilo que seria o “justificar”, “explicar” ou fornecer
um motivo, a razão de algo (Begrïnden), a situação da epistemologia recente atual mais
por um procedimento antiético, por algo perto de uma desfundação ou um
“desfundamento” (Entgrüden). É de se espantar que a metafísica clássica alcançou seu
mais alto nível de influência no período em que a ideia de peso subia à cabeça dos
homens. Na Modernidade ainda se veria resquícios disso. Desejava-se que casas e razões
assentassem naquilo que se chama de “fundações firmes” ou “fundações sólidas” (não
lembramos aqui de Descartes?) Nessa força de buscar fundações, as próprias fundações
desabaram com o seu intuito. Devemos partir de outro princípio, o de inverter a atividade
de solo e o assentar em algo. Fundações são rígidas, pesadas, duras. Devemos formar,
conectar, flutuar, tensionar. Podemos constatar que o ar trocará a sua função com o solo
terrestre (Fuller, Archigram e Frei Otto, nesse sentido foi o que mais aplicou o princípio
morfológico da espuma). As condensações substituem as fundações (uma tradição
filosófica de edificações não viria daí – Rorty?). As culturas são sistemas atmosféricos,
dependem muito mais do ar do que de um chão de cimento. Não é daí que vem a ideia
de Sloterdijk em trabalha com clima, aclimatação? Heiner Mühlmann deixa pistas para o

36
SLOTERDIJK, Peter. A Mobilização Infinita: Para Uma Crítica da Cinética Política. Lisboa: Relógio D’Água
Editores, 2002, pp. 194-195. Sloterdijk considera que a revelação descobridora, através da qual tudo
quanto seja racional e relativo é patenteado, não é ela própria racional nem relativa. O “espaço” do
verdadeiro, enquanto não oculto, surge singularmente como uma ilha cheia de proporções comensuráveis,
do oceano do incomensurável, do desproporcionado. O descoberto concebível encontra-se no terreiro da
lethe, do desmedido, do inconcebível. Onde os homens permaneçam é sempre o terreno avançado do
monstruoso que está encoberto. As suas civilizações povoam uma zona que é, simultaneamente, jardim e
vulcão – um efeito ontológico do tipo Hawaii e Lanzarote (poderia surgir em nossa mente a imagem de um
iceberg). Como herdeiro hesitante ad metafísica europeia da luz, Heidegger recordou, com o seu conceito
e clareira, o singular abrir-se de um espaço inteligível para as proporcionalidades. Posto que, na clareira,
ele não vê o visível, mas também a visibilidade. Enquanto o iluminista exerce uma prática fosfórica,
portadora de luz, e emprega a luz como instrumento para examinar a fundo a matéria, o vidente
permanece junto aos “feitos e padecimentos da luz”. Imagina não é ver. Para aquele que vê realmente, o
olho é um ouvido da luz.
199

leitor como aqueles que ao lê-lo podem deixar para trás as bases onde construir deixa de
ser uma velha estática: muros, vigas, colunas. Com Fuller emerge a estática alternativa:
as tensegridades. O desenvolvimento das arquiteturas de tensão, possuem aplicação que
cabe às forças de tração ou tensão com uma imagem bastante móvel, ligeira, plástica,
leve e atrevida. Um híbrido construído pelo elemento de tensão e o elemento de
integridade. As "tensintegridades" são arquiteturas nas quais o todo é suportado pela
sinergia de elementos que não estão juntos no fundo. As forças que querem criar o
colapso do sistema são aquelas que, de alguma forma, o mantêm em pé. Uma construção
que flutua, é uma viagem para o adeus à massa, um tipo de arquitetura de vanguarda na
idade do ar. Os processos simbólicos e os ambientes da vida como produto primário
passam por uma instituição de um clima favorável, um clima interno. Uma constituição
atmosférica de culturas é o elemento decisivo e essencial, é nesse sentido,
“fundamental”. Quem quiser falar do fronteiriço deve avistar para investigações
biológicas numa certeza de psico-imunologia, é por aí que o futuro passará.
Ratio, significa cômputo, medida, relação, proporção, correspondência. A
racionalidade é o princípio de percepção das coisas que nos dizem respeito, sob o ponto
de vista da sua proporcionalidade, da sua mensurabilidade e calculabilidade. O
racionalismo é a tese dogmática, segundo a qual o próprio real seria, no fundo, o
calculável, o mensurável, o divisível, o pensável. A crítica tradicional da racionalidade é a
aplicação da racionalidade a si própria e reflexão sobre as possibilidades e limites das
correspondências e das adequações nos planos do conhecimento, da ação e do juízo. A
crítica radicalizada da racionalidade é a objeção contra a presunção do medir, dividir e
calcular e contra o descomedimento do racionalismo ao instituir escalas e campos de
medição. Em cada uma destas expressões do fenômeno ratio intervém a ideia de verdade
como proporção. Esta implica a adequação de pensamentos e atos a fatos e situações.
Mas, para que se possa dar a adequação, é preciso que anteriormente tenham vigorado
a não-adequação ou a discrepância. É somente no deserto do desencontro que se fazem
notar os oásis da coincidência.37 O oásis do qual Sloterdijk fala é o sítio onde as coisas
estão nos seus conformes, é o sítio privilegiado onde o ambiente é favorável para a
harmonização. A civilização seria a arte de instalar oásis, na medida em que,

37
SLOTERDIJK, Peter. A Mobilização Infinita: Para Uma Crítica da Cinética Política. Relógio D’Água Editores,
2002, pp. 180-181.
200

conscientemente e intencionalmente, cria o cultivo de correspondências. Tendo


começado como agricultura, ela deve a sua existência à possibilidade de cultivar campos
e terrenos como espaços vitais, espaços “corretos” para plantas selecionadas. O segredo
entre correspondência correta de plantas e solos, assim como a relação e a regulação
correta das sementeiras e das colheitas relativas às estações do ano. Foi somente mais
tarde que se disseminou as metáforas para outros campos. Existe uma função de verdade
que é ainda mais antiga que o cultivo de terras em forma camponesa. A “verdade” dos
caçadores e atiradores, para os quais é correto aquilo que eles acertam. Tentativa e erro.
Tentativa e acerto. O projétil, a pedra, o lançamento, ao encontrar seu alvo, realiza o tipo
de exatidão correspondente a acertar e ao acertar, que faz parte da história da
racionalidade humana. Quem acerta, acerta alguma coisa, têm-se um alvo. A nossa
linguagem fixou discretamente a conexão existente entre a função de verdade e o motivo
balístico. Além daquilo que os atiradores e caçadores consideram como acertado, existe
uma outra forma de arcaísmo da racionalidade, uma racionalidade dos colecionadores e
prospectores, que se verifica, quando eles encontram aquilo que “podem necessitar”.
Logo esse achado que as pessoas podem levar consigo é o certo que corresponde ao
coletar. Por isso, a Modernidade deve tanto a um tipo de exploração inconsciente de uma
função de verdade arcaica, pois o que ela empreende com as suas diversas expedições
ao longo da história das investigações científicas é uma continuação do coligir e trazer
para casa com meios modernos. Se evadiram da pequena ratio entre o procurar e o achar
e rebentaram formas de vidas. Essas investigações e submersões ao mundo sobrevivem
até hoje. Diz-se que existe um conceito de verdade dos farmacêuticos, que para quem o
correto é aquilo que ajuda. Para os alfaiates, aquilo que serve. Para os músicos, aquilo
que está afinado. Para os carpinteiros, aquilo que se ajusta. Para os pedreiros, aquilo que
está direito e se aguenta. Em todos esses casos, os homens experimentam experiências
como subverdades que estão acima da adequação das proposições aos fatos. Não
saberíamos o que é uma proposição que não está certa, se não soubéssemos medir, mas
não só medir, como também medir-nos, se não soubéssemos o que são calças que não
nos serve. Algumas teorias são erradas como tiros que falham. Outras confirma-se como
tiros que acertam o alvo. Tiro certeiros como notas que estão afinadas. Por aí vai, o tiro
certeiro, o achado, o encaixe, a ajustagem, a eficiência, a afinação são variedades de
fenômenos de correspondência que se tornam manifestos em nossas vidas, desde que,
201

tão logo tenhamos alguma experiência de mundo. Com essa força do que é evidente,
aparente, claro, medido, se coloca uma orientação nas funções complexas do espírito
humano nos domínios da teoria e da técnica, da prática e da arte. Múltiplas culturas de
correspondência e de adequação que já tinham preparado o terreno para que as
verdades das ciências, da metafísica, da ética, religião e estética pudessem se edificar. O
homem caído que se levantou logo fixa seu olhar para o horizonte, para frente com seus
pés e mãos apontados ao defronte, ao que está diante de mim para ser pegado, tocado,
experimentado, cheirado. O lançar-se já se constitui de certa forma, a tomada de uma
postura de quem quer “conhecer”.

Capa do livro Discurso do método de René Descartes.

Heidegger não só “sobressai”, mas também é o pensador do sobressair, do


estar-de-fora, do erguer-se, do levantar-se para a frente; no advento da verdade os
fatores denominados – descobrimento, emergência, clareira, desabrochamento, eclosão,
202

revelação, ele apreende ao Ser, uma metafísica enquanto uma cinética do Ser como vir-
para-a-frente, como jogado, um tipo de consciência ontocinética. Para obter, um ente
precisa ter saído para fora pelo nascimento, ter vindo para cima e de ter chegado à
linguagem. Será que cabe a nós a questão de saber o que são, os combates autonatais da
humanidade histórica senão esforços para obter compensação por um grande
inconveniente de todos os inconvenientes – o inconveniente de ter nascido. Para os
modernos, o nascimento configura uma catástrofe. Além de Beckett, Cioran também é
testemunha disso ao falar “Do Inconveniente de ter Nascido”, título de seu livro. Superar
a morte parece ser algo que conseguimos, mas o nascimento constitui-se como um
drama. Ele diz que o pior que nos pode acontecer está sempre no passado, fugimos da
catástrofe do nascimento mais do que tememos a morte. Pode-se dizer que é moderno,
aquele que negar alguma vez ter estado em um interior.
A tecnociência traz à superfície as condições de possibilidade da vida de modo
violento. Uma explosão do que era escondido na superfície. O abandono ou a situação
básica do abandono, surge quando nós mesmos somos impotentes, e devemos utilizar
elementos de confiança ou de confiar que outros dominem uma tecnologia, ou seja,
tenho que abandonar a mim mesmo quando vou a um hospital, por exemplo. Então,
passo a confiar e crer que o cirurgião sabe o que faz, em outras palavras, tem um domínio
técnico sobre um ato ou procedimento. Se subo em um táxi tenho que entregar-me
porque suponho que o condutor saiba como dirigir. Normalmente, o melhor teste da
entrega é que alguém está com uma pessoa que não conhece um veículo e deixa essa
pessoa para dirigir. Ao encontrar um motorista ao seu lado, você o questiona: sabe ou
não sabe dirigir? Creio que esta é a inevitabilidade da situação moderna de entrega como
algo que se demonstra e aparece a qualquer momento. Quando se sobe em um avião
tenho a confiança de que os pilotos sabem o que fazem. Um eu que quisesse saber e
fazer tudo se converteria em um eu paranoico. Em uma sociedade de divisão de trabalho
a confiança é a única possibilidade de reconciliação com o próprio não saber fazer ou de
reconciliação com o não saber ou não poder. Heidegger fala na posição de um pré-
socrático que faz a pergunta: se também para a humanidade contemporânea, existe a
possibilidade de algo como um Deus vindouro e, com isso, fala de algo que devia ser mais
forte que o culto moderno da autoafirmação tecnológica e superveniência tecnológica
porque Deus é uma metáfora de algo que é mais forte que o interesse de sobrevivência
203

do ser humano. Os seres humanos futuros, se tiverem sorte, irão conhecer algo que vá
os permitir superar esta maldição da sobrevivência pela sobrevivência. Todo o perigo
também há na salvação. Onde está a salvação? Também cresce o perigo. Os seres
humanos da modernidade têm boas razões de ter medo dos que salvam – da mesma
maneira dos que o colocam em perigo. Assim, poderíamos pensar o futuro e a esperança
com o qual Ernst Bloch trabalhou durante toda sua vida. Hoje o “princípio esperança”
emigrou da esfera cultural e da esfera econômica porque nossa maneira de articular a
esperança é, e se mostra, como um sistema creditício. Desde mais de cem anos é possível
ver uma utilização um tanto equivocada do termo porque o que as pessoas hoje chamam
de “capitalismo” na realidade não existe. Na realidade o capital hoje já não desempenha
um papel tão grande, mas o crédito sim. Deveríamos chamar esse “sistema” de
creditismo, não de capitalismo.
204

III – Aceleração e Mobilização

Poderíamos falar em “círculos modernos de êxito”. Quem algum dia se


perguntar pelo movens da aceleração típica da Modernidade deve se fixar em sistemas
de retroalimentação, para os quais Robert K. Merton (sociólogo), seguindo uma
passagem bíblica do Novo Testamento, criou uma expressão bastante certeira. Merton
fala em “efeito Mateus”.38 Segundo as palavras do Evangelho, nós vemos que elas dizem
o seguinte: “Porque àquele que tem, se dará, e terá em abundância; mas àquele que não
tem, até aquilo que tem lhe será tirado”. “E, atemorizado, escondi na terra o teu talento;
aqui tens o que é teu. Respondendo, porém, o seu senhor, disse-lhe: Mau e negligente
servo; sabias que ceifo onde não semeei e ajunto onde não espalhei? Devias então ter
dado o meu dinheiro aos banqueiros e, quando eu viesse, receberia o meu com os juros.
Tirai-lhe, pois, o talento, e dai-o ao que tem os dez talentos. Porque a qualquer que tiver
será dado, e terá em abundância; mas ao que não tiver até o que tem ser-lhe-á tirado
(Mateus 13:12 e 25-29).39 Se antecipa de maneira intuitiva, uma lógica de um círculo
autopotenciador de retroalimentação (vantagem cumulativa; self-reinforcement). Efeitos
desse tipo imprimem nas modernizações típicas a forma de um tipo de círculo virtuoso,
um círculo de sorte e aventura. É inegável que também na Modernidade se há um círculo
vicioso desastroso, a imagem de todo seu percurso, é até agora, de um nexo de círculos

38
MERTON, Robert King. Ensaios de Sociologia da Ciência. Sylvia Gemignami Garcia e Pablo Rubén
Mariconda. São Paulo: Associação Filosófica Scientiae Studia. Editora 34, 2013, pp. 199-231.
39
Para uma semântica mais fidedigna. A passagem ficaria mais bem interpretada para o espanhol. “A quien
tiene se le dará, y trendrá, pero a quien no tiene se le quitará incluso lo que tiene”.
205

de sucesso (bem-aventurados) cujos efeitos se acumulam em uma nova percepção de


tempo. Um dos seis processos circulares autopotenciadores, é o sistema creditício. É o
crédito quem decide. Vivemos em um sistema em que as promessas dos devedores de
pagar (de devolver o crédito) formam as estruturas de nosso futuro. Nosso futuro está
na promessa da devolução do crédito. O crédito é uma determinada forma de interpretar
como dinheiro, o futuro, ou seja, uma moeda de reserva (dar uma sensação de
segurança), supondo em algum momento, o regresso deste dinheiro com um tipo de
ganância (interesse-Zins). É o mesmo que dizer que hoje nosso mundo está
monetarizado, e enquanto ainda não foi (for) devolvido-pago, todos nós temos um
futuro. Os conservadores insistem em dizer que algum dia não existirão mais as dívidas.
Mas então o mundo vai afundar. Podemos estar seguros de que “quando eles pagarem a
última parcela, teremos chegado ao fim do mundo”. Quando não temos mais dívidas, não
teremos mais um futuro. Com as dívidas, digamos assim, é possível ter um acesso ou um
caminho estruturado em direção ao futuro. Está incluso aí, também a obrigação do
esforço ou a criatividade individual porque o que hoje chamamos criatividade, é no
fundo, uma expressão mistificada da necessidade de trabalhar melhor que até agora,
porque senão não pagaremos dívidas ou débitos. Perdemos o futuro na medida em que
as promessas não podem ser mantidas. Para o capital privado do século XIX, arcaico do
ponto de vista de hoje, com os seus proprietários pessoais patriarcais, grandes famílias,
centralizado e respectivos à clãs familiares e burgueses, vigoravam ainda os princípios da
respeitabilidade e da "solvência", à luz dos quais o recurso crescente ao crédito parecia
quase obsceno, quase o "princípio do fim". Na literatura ligeira da época está cheia de
histórias em que "grandes casas" (famílias na forma de seus brasões) caem por terra
devido à sua dependência do crédito, e Thomas Mann, em algumas passagens do seu Os
Buddenbrook de 1901, fez desse um tema laureado com o prémio Nobel. Naturalmente,
o capital que rende juros era desde o princípio indispensável como tal ao sistema que se
formava, mas não detinha ainda uma parcela decisiva no conjunto da reprodução
capitalista; e sobretudo os negócios de "capital fictício" eram considerados, por assim
dizer, típicos do ambiente de charlatanice de vigaristas e "gente desonesta ", dos cinismos
da esperteza e do aproveitamento à margem do capitalismo autêntico (mas a que já
então se juntava a honorável burguesia em tempos de ondas especulativas). Até Henry
Ford se recusou por muito tempo a recorrer ao crédito bancário para a sua empresa,
206

pretendendo financiar os seus investimentos apenas com capital próprio. Essa é a


verdadeira crise moderna, a de que o mundo está bloqueado por dívidas e pagamentos
das mesmas. A promessa de devolução que não pode ser satisfeita, talvez nem mesmo
querida pelos capitalistas. O livro que Maurício Lazzarato pode nos ser útil agora. Seu
título: O Governo do Homem Endividado de 2017. A tese central de seu livro é que o
homem atual é um homem que deve. Ele vai se movimentando da filosofia para
antropologia, da antropologia para economia. O centro de sua discussão é a economia.
Mostra que a cidadania, é uma cidadania do devedor. Para sermos devedores dentro do
capitalismo financeiro, o capital instaura crédito. O crédito vira moeda. Todo mundo
passa a estar amarrado em alguma dívida, um cartão de crédito, por exemplo. Com isso,
nossa condição de “indivíduos humanos”, cidadãos, é desconstituída para nos
transformar em humanos empresas. Não é um capitalismo que individualiza – atomiza
indivíduos. É um capitalismo que nos faz virar empresas. Sabe-se que estudantes
universitários norte-americano terminam seus estudos já totalmente endividados.
Portanto, seu futuro está hipotecado. A dívida é uma dívida de vida, não apenas
financeira. Daí vem a tese de que “A dívida é a técnica mais adequada para a produção
do homo economicus neoliberal”. Maurizio Lazzarato mostra como a guinada neoliberal
significa a subordinação da soberania política aos imperativos do mercado e das finanças.
A revogação das conquistas sociais, o achatamento salarial, o desemprego, a privatização
generalizada, a subserviência do sistema jurídico, a insignificância dos mecanismos de
representação, a força dos bancos. Eis alguns dos elementos do novo ordenamento
neoliberal. Só uma análise da função crucial da moeda hoje e dos novos “axiomas” do
capitalismo contemporâneo permite compreender a reconfiguração a um só tempo
econômica e subjetiva que vivemos. Apesar dos conceitos complexos que aborda, este
livro atinge o coração de nosso presente e multiplica as pistas para a recomposição de
um pensamento de esquerda. O homem endividado é o objeto da biopolítica. Todos os
indivíduos circunscritos por fronteiras e Estados estão endividados por meio da dívida
pública, mesmo que não tenham contraído nenhuma dívida pessoalmente. Esse
deslocamento da governamentalidade foi feito estrategicamente pelo capital financeiro
a partir do início da década de 1970. Ele não deixa de notar que no capitalismo
contemporâneo-financeiro, o conceito de governamentalidade (pode-se ver fortes tons
de Foucault) só é operacional se for compreendido como governo desse ciclo. Articula-
207

se em governamentalidade micropolítica (administração, contabilidade, gerenciamento,


gestão, empresa, educação, serviços para o bem-estar social, etc.) e governamentalidade
macroeconômica e macropolítica (gestão da moeda, da dívida etc.), produzindo ou
destruindo liberdades conforme a dinâmica da desvalorização do capital. As chamadas
“liberdades constitucionais” ou “liberdades individuais” foram frutos do capital. O
capitalismo do New Deal e, depois dele, a Guerra Fria geraram novas formas de liberdade.
As “liberdades” liberais, além de serem uma fabricação do capital, têm outra
característica fundamental que nem os liberais nem Foucault evidenciaram: elas são
estritamente indexadas pelo ciclo do capital. Sua existência e duração dependem das
transformações de processos de valorização. Ao se ter uma fase de valorização, a
governamentalidade consegue alastrar as liberdades dos governados. O contrário
também é verdadeiro. No momento em que uma crise impõe, as liberdades passam a ser
apertadas com a necessidade de encontrar novas fontes de lucro, o capital entra numa
fase de “desvalorização”, isto é, de destruição do capital constante e do capital variável
(a população). A destruição pode ir desde o desemprego, cortes de gastos,
contingenciamentos, suspensão de concursos, bloqueio de bolsas para pesquisas,
aumento de impostos, a queda do salário, reformas trabalhistas, criação de novos
impostos, redução dos gastos sociais ao deslocamento da produção, guerra civil e à
guerra. O interessante é que sempre que alguém perde outro alguém ganha e sempre
que alguém ganha outro alguém perde. A relação capital x trabalho pode ser vista dessa
forma. É no exato momento de reversão do ciclo que a governamentalidade produz
justamente o contrário da liberdade e da democracia. Ela gera o empobrecimento e
neofascismos. Um Foucault mais tardio diria que se a população é sempre a instância
pela qual o Estado vela em seu próprio interesse, fica claro que o Estado pode massacrá-
la em caso de necessidade. “A tanatopolítica é assim o reverso da biopolítica”. Uma
tanatopolítica pode ter como alvo uma série de fatores estatísticos ao visar tanto uma
população analfabeta quanto uma população altamente qualificada, na medida em que
não remete à ontologia do “capital humano”, mas, primeiramente, de relações
estratégicas. A estratégia do capital é absolutamente indiferente à “qualidade” da
população, não a toma como sujeitos ou indivíduos, mas os elevam à condição de serem
tratados como uma “tecnologia de poder ” ou uma “estatização do biológico”, onde a
principal função do Estado é a da gestão e administração da população, a regulação de
208

atividades econômicas e intervenção estatal no mercado, articulações e planejamentos


estratégicos da vida socioeconômica, principalmente quando o seu poder ou a sua
rentabilidade estão em perigo. Nas palavras de Branco (2015, p. 77):

As tomadas de decisão no campo da seguridade social podem deixar as


pessoas a condições de extrema fragilidade e impotência, e levá-las a viverem
um estado de constante temor. Fazer com que certas pessoas ou grupos
sociais passem a não ter mais direito a certos benefícios, ou, que o mais
terrível, a não ter mais direito a certos benefícios, ou, que é mais terrível, a
não ter mais direito a um determinado atendimento médico quando
eventualmente necessitar, eis uma situação à qual todos nós estamos
passíveis. [...]. O modo de vida das pessoas das pessoas passa a ser cerceado e
vigiado, padrões de normalização são crescentemente postos em ação,
pessoas cada vez mais dependentes e assujeitadas são postas e dispostas pelas
sutis tecnologias de poder existentes na era do controle e da
governamentalidade. Todos passam a ser responsabilizados pelos efeitos
médicos e legais da vida que levaram ou ainda levam – se contrários ao padrão
desejável – e podem ser excluídos, caso não se adequem às regras do jogo
burocrático e político. E essas regras de seguridade, lembremos, são fluidas,
móveis, e nunca deixamos de estar fora de uma possível e eventual situação
de risco, na qual podemos ser expostos a dificuldades e ao desamparo. Por
outro lado, temos a tendência à intimidação dos doentes que não seguem à
risca suas dietas e comportamentos durante um tratamento médico, que
podem passar a não ter mais atendimento, caso não se comportem como foi
determinado.

Em nossa época, o corpo biológico do cidadão veio a ocupar uma posição central
nos cálculos, administrações e estratégias do poder estatal. Na obra Em Defesa da
Sociedade (Curso de 1976), Foucault demonstra sua indignação pelo fato de que o Estado
moderno no século XX tenha passado a tratar sua própria população como “insetos” com
o intuito de eliminação de uma peste, o que contraria seus objetivos e sua razão de ser.
Como um poder como o biopoder, pode matar, mas se ele na verdade cuida
essencialmente de majorar a vida, de prolongar sua duração, de aumentar a expectativa
de vida, e afastá-la de acidentes, de compensar suas deficiências? Como nessas
condições, o mesmo poder político é capaz de matar, pedir a morte, causar a morte, fazer
morrer, expor à morte não somente os inimigos, mas também seus cidadãos? Esse poder
que tem o objetivo claro de fazer viver pode deixar morrer? A Política modificou-se para
Biopolítica, e o campo de concentração surgiu como verdadeiro paradigma político da
modernidade. O filósofo Agamben traz à tona o vínculo oculto que desde sempre ligou a
vida nua, a vida natural e não politizada, ao poder soberano. Nascendo aí, uma figura do
direito romano arcaico que é a chave que possibilitará uma releitura de nossa tradição
209

ocidental de política: o homo sacer. Todo esse aparato do “Welfare State”, do Estado de
bem-estar social está relacionado com a vida nua e não com a qualificada. O comum a
toda vida, o simplesmente estar vivo (zoé). Isso entra como sendo a vida e faz com que a
política não se dobre mais à vida qualificada social, mas se dobre a vida nua, puramente
biológica.
A sociedade do auto-esforço, onde todos têm que atuar sozinhos para vencer.
A sociedade do cansaço, como diria Byung-Chul Han. Não podemos mais ter
solidariedade, cada um deve se mostrar só, estar só, querer estar só e vencer sozinho. A
tão querida vitória já foi vista nos primeiros jogos olímpicos, com esportes inicialmente
individuais, a competição passou a ser uma competição com outros, mas consigo mesmo.
No fim, quero me superar, criar um novo eu, moldá-lo, transformá-lo. Em toda parte onde
o modelo cinético do êxito dos tempos modernos (movimento para uma mobilidade
acrescida) se aplica a um setor de atividade, surgem contributos focados para a grande
arrancada do mundo novo que separa e isola o seu modo de vida arcaico e mais primitivo.
Primeiro Antigo e Medieval, a Europa, depois o resto do mundo. Essa arrancada talvez
tenha tido início na Grécia Clássica com as práticas desportivas da inteligência sofística e
de uma intensificação cultural dos exercícios físicos nos Jogos Olímpicos. Milênios depois
as energias ocultas continuam a reaparecer. Depois na ascensão nos mosteiros da Alta
Idade Média, onde se viu a primitiva acumulação de subjetividade em suas fábricas. O
que se iniciava com exercícios de auto-intensificação ascética, virou movimento
autógeno para o incremento do movimento, concentração na concentração,
recolhimento no recolhimento, a prece suplicando trabalho, o trabalho na capacidade de
rezar – múltiplos movimentos para aumento da mobilidade própria. Vencer sozinho
significa que o sistema atual do capitalismo antecipa o nosso enterro.40 O tempo livre de
trabalho serve apenas para uma manutenção passiva, em que cada indivíduo recupera
fôlego do trabalho para poder retornar a trabalhar com as forças renovadas, em última
altitude, a sociedade do trabalho é uma sociedade compulsiva. A ideia de que todos
devemos ser empresários (empreendedorismo em geral), somos empresas como a
capacidade de ter créditos. Cada um deve ser uma empresa com capacidade de pagar

40
Matéria G1. OMS Define Síndrome de Burnout Como “Estresse Crônico” e a Inclui na Lista Oficial de
Doenças, 2019. Disponível em: <https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2019/05/27/oms-define-
sindrome-de-burnout-como-estresse-cronico-e-a-inclui-na-lista-oficial-de-doencas.ghtml>. Acesso: 27
Mai. 2019.
210

juros, sacar crédito, e, portanto, sustentar o capitalismo financeiro. Um pequeno passo


do empreendedorismo para o acionista. O capitalismo poderia também ter uma
terminologia chamada “empresa-banco”: as maiores porcentagens vão para acionistas,
compra de ações e manutenção da própria empresa; só uma pequenina parte fica na
atividade produtiva como forma de empregos-trabalho. Um exercício simples de visão
podemos sair hoje nas ruas e ver que diversos bairros onde as casas mais antigas estão à
venda ou empresas estão se deslocando para elas. Vemos até casas-empresas, a mistura
de domesticidade com empreendedorismo. A montagem do negócio está presente
naqueles que, no passado, eram apenas trabalhadores ou uma mera e simples família.
Somos homem se temos crédito, um cartão de crédito capaz de trabalhar com dinheiro
futuro e juros. Passar a vida endividado e estar endividado, significa ser gente. A
governamentalidade deve socializar o modelo econômico, o modelo da oferta e da
demanda, o modelo de investimento custo-lucro, para fazer dele, o modelo das relações
sociais e da existência mesma, bem como uma forma de relação do indivíduo consigo
mesmo, como tempo, com o seu entorno, como porvir, como grupo e com a família. Nada
mais que a socialização do modo empresa. Cada um de nós vai ser uma empresa em
todos os níveis, sempre com a ideia de que o que faz uma empresa? Vai ao banco pedir
crédito. Quem não tem dívidas não tem futuro. A arma fundamental: empréstimos e
cartão de crédito. Portanto, assumir um crédito, se ter um credor. A ideia básica do
neoliberalismo, não se dá apenas nos empreendedorismos, mas todos nós viramos
supostos ricos, por termos dívidas nos enquadramos em eternos devedores. Para tentar
neutralizar o conflito da grande fábrica, pesadelo do capitalista fordista, os liberais
sonham com uma economia e uma sociedade feitas de unidades empresas. Já o
neoliberalismo nos anos 80, a generalização de políticas do “capital humano”,
favorecendo formas de trabalho autônomo onde todos viram PJ, pessoa jurídica e
microempreendedores, modelo de subjetivação do neoliberalismo. O empreendedor de
si constitui uma espécie de uma individualização da empresa. Se é tão poderoso que
agora, se a Reforma da Previdência for aprovada, não se precisa contar com mais
ninguém. O chamado “regime de capitalização” possui este formato, valores depositados
em bancos serão utilizados pelos mesmos para a quebra da solidariedade na atividade
single. A moda e design tocariam nossa subjetividade na forma do empreendedorismo
como o processo de iniciativa de implementar novos negócios ou mudanças em
211

empresas já existentes. É um termo muito usado no âmbito empresarial e muitas vezes


está relacionado com a criação de empresas ou produtos novos, normalmente
envolvendo inovações e riscos.
Isto é muito visível em videogames. O jogo habita uma temporalidade particular.
Se caracteriza pelas gratificações e vivências imediatas de êxito. A ideia de que o avanço
no jogo depende de coletar moedas, potes de ouro, pegar ouro, pegar bolsas de
diamantes, abrir baús e tesouros, em alguns casos, até mesmo a sorte é um tipo de
habilidade. Somente com essas ações e com a manutenção de pagamentos e dívidas é
que se torna possível avançar e progredir de fase. As atividades típicas da modernidade
como trabalho vem como uma “quest”, um jogo de tabuleiro, um desafio, um favor, uma
orientação para um duelo, salvar a princesa, matar alguém como recompensa, com isso,
o caminho será desbloqueado ou mesmo algum ancião permitirá sua passagem no jogo.
Não muito distante de uma “roda da fortuna” que gira até lhe dar um item específico. No
tumulto pós-moderno, espíritos pré-modernos tomam para si a imagem da roda da
fortuna, muito mais significativo como símbolo do tempo histórico do que a escada do
progresso. Chegar longe é sinônimo de abrir a bolsa, comprar melhores armas,
automelhoramento. Dispêndio para se ter um futuro. Logo, logo, a figura do burguês
como um personagem dramático em alguns aspectos. Isso pode ser visto em Balzac na
figura do avarento no século XVII e XVIII. Balzac a transfigura para a figura do “banqueiro
demoníaco” para quem o ato de dar é uma tortura, pela encarnação humana do espírito
da acumulação. O começo da modernidade é baseado em um tipo de “sistemas de
aventuras”. Se antes tínhamos proteções como domos e redomas que arrodeavam a
Terra, agora temos simbolicamente, os sistemas de seguros, as estratégias da gestão do
risco e as garantias de conforto. Uma tentativa tanto anti-niilista como antecipatória e
emancipatória do acidental. De fato, Nietzsche já falava do ideal ascético (imunologia)
haver significado tanto para o homem se expressa no dado fundamental da vontade
humana, o seu “horror ao vácuo”: ele precisa de um objetivo. Os homens elegem
“demandas excessivas”. Ele preferirá ainda “querer o nada a nada querer”. Não é por
acaso que ele apresenta seu Zaratustra falando para as multidões “Inoculo-vos a loucura”
ou a famosa expressão “o que não me mata, me torna mais forte”. Metáforas que vem
da homeopatia e imunológicas, de uma certa tradição da filosofia naturalista romântica
– metafísica alemã da enfermidade. Nietzsche entendia toda a sua vida, o que
212

obviamente influenciou quase toda a sua obra, como uma espécie de inoculação de
substâncias tóxicas da decadência no sentido de organizar uma inoculação em forma de
reação de imunização. Quem quer ser médico precisa, inicialmente, ser paciente, ser
cobaia. Foi Nietzsche quem inventou a fórmula do “filósofo como médico da cultura”.
Para se poder formular um diagnóstico sobre uma época é necessário ser intoxicado por
ela. Uma intoxicação voluntária como alguém que pode dizer algo tomando potenciais
extáticos sobre sua época. É de se constatar que a história do pensamento moderna está
gravada de espectros sanitários e metáforas da farmacologia. As ideias mais dominantes
do século XIX e XX, que seria o conceito de alienação, aponta para uma terapêutica
universal, nisso Marx e Nietzsche se tocam em alguns aspectos comuns. A política e a
clínica caminham paralelamente durante anos de trajeto.
No âmbito da imunologia simbólica, é por isso que se utiliza a expressão:
“cover”, “cover your losses” ou “social security” para Previdência Social e seguros. Esse
sistema “nascente” de seguros é um dos precursores da modernidade sistêmica na
medida em que se define a modernização como uma gradual substituição de vagas
estruturas imunológicas simbólicas, do tipo das interpretações religiosas últimas dos
riscos da vida humana, por prestações de segurança social e técnicas calculadas. Essa
imprevisibilidade ou uma “jornada de aventura” tinha como acompanhante Deus.
O diabo é o primeiro realista pós-cristão. Sua liberdade de expressão parece
ainda infernal aos contemporâneos mais idosos. Quando o diabo abre a boca para dizer
a quantas andas de fato o mundo, a velha metafísica cristã, a teologia e a moral feudal
são varridas. E se lhe subtraímos o chifre e as patas, de Mefistófeles não sobra nada além
de um filósofo burguês realista, antimetafísico, empirista, positivista. Não é por acaso que
Fausto, a encarnação do pesquisador moderno do século XVI ao XIX, travou um pacto
com um diabo desses. Somente com o diabo podemos aprender “o que é o caso”.
Somente ele tem interesse de que nos livremos de nossos óculos religiosos para ver a
partir de nossos próprios olhos. Vê-se facilmente por que passa a ser supérfluo pensar
em “Deus pai, filho e Co”. Mefistófeles é uma criatura fluorescente, que vive inteiramente
em suas transformações. Sua proveniência é um cão. Para sua estreia, o diabo escolhe o
símbolo da seita filosófica kynike. Só para recordar: Fausto, no auge de seu “desespero
teórico”, decidira pelo suicídio. Os sinos e cânticos da Páscoa dissuadem-no no momento
mesmo em que aproxima seus lábios do cálice com veneno. Volta à vida. Durante a
213

caminhada da Páscoa reflete sua natureza, à qual pertencem duas almas. Podemos
interpretar seu pensamento como a profunda reflexão de um cientista burguês sobre si
mesmo: nele entram em combate realismo e insaciabilidade, pulsão de vida e desejo de
morte, “vontade de noite” e vontade de poder, sentido do possível e aspiração pelo ainda
impossível. A sequência das cenas oferece uma representação plástica da dialética do
senhor e do escravo: o diabo se apresenta de início no papel de um cão; em seguida, no
do serviçal, para, finalmente, assim ele considera, conquistar o domínio completo da
alma do sábio.
Mefistófeles é um mestre da máscara, o êmulo dos vigaristas ou espiões, pois a
condição do mal na era pós-cristã é o disfarce sob as máscaras do inofensivo, socialmente
aceitas a cada momento segundo a moda. A personificação medieval do “mal” num Satã
de carne e osso é, de certo modo, apresentada no drama irônico de Goethe. O “achado”
do diabo teatral em Goethe é sua modernização na figura de um grande senhor do
mundo, tendência que se prolonga ainda em Thomas Mann (Doutor Fausto). O diabo se
torna uma figura da imanência e o mal chega a inspirar simpatias por seus modos
corteses. No drama de Goethe, as bruxas também precisam olhar duas vezes para ver
seu junker Liederlich. Ora ele aparece como cortesão mundano com gibão e pluma no
chapéu, ora se veste, como na cena do estudante, como um grande erudito, numa
paródia à erudição, uma sátira inspirada pelo cinismo sábio - a mais cruel improvisação
de uma gaya ciência antes de Nietzsche. Em seguida apresenta-se na figura de um mago
elegante proseado espirituosamente com cafetinas e que, senhor das armas, ensina
Fausto a mandar para o céu o irmão da amada quando esse torna um obstáculo. A
insolência e o frio sarcasmo fazem inevitavelmente parte dos atributos do diabo moderno
e “imanente”, bem como o cosmopolitismo, a destreza com a linguagem, a cultura, o
conhecimento jurídico (os contratos precisam ser feitos por escrito).
214

Doutor Fausto, escrito por um dos maiores romancistas do século XX, Thomas Mann, vencedor
do Nobel de Literatura em 1929.
A ideia de que estamos cobertos por seguros, e por isso mesmo, seguros (agindo
por antecipação). O liberalismo, de um ponto de vista filosófico, é a tentativa da
emancipação do acidental, e que é o novo espírito de empresa senão uma prática que
visa corrigir a sorte? Toda localidade da superfície terrestre passa a ser um endereço do
capital. Uma situação inevitável para todos. Um tráfego em todas as direções. O
empresário, figura central da era moderna, sabe agora positivar sua dívida fazendo dela
algo estimulante como quem encarna um “espírito de aventura”, de risco e de destinos
não completamente calculados de retorno. Como um barco que se aventura pelos mares
os capitães iniciam um movimento característico da revolução espacial visto na idade
moderna. Sistema de crédito, seguros e confiança seriam a base da sociedade moderna,
e a base de uma sociedade saturada de técnica. A situação dos Estados Unidos é uma
situação de tamanha dívida que só a quebra total, a bancarrota pode salvar a nação. Com
esse cenário, a expressão “catástrofe de aviso” fez discípulos com o vocabulário dos
“homens alternativos”. É uma expressão que resume a esperança de que as catástrofes
possam penetrar como sondas em consciências de uma maneira incorrigível e suscitar
nelas novos discernimentos. Uma certa “pedagogia da catástrofe” é quando é preciso
que ocorra, de fato, o pior, para que se possa iniciar uma mudança de hábitos. A didática
da catástrofe precisa ser suficientemente má para que se alcance níveis de
215

desenvolvimento de cálculos tenebrosos. Até que ponto seriam as catástrofes razões


evidentes para grandes viragens transformadoras de mentalidades? As coisas têm de ir
de mal a pior até em que graus para depois melhorarem? Não foram os grupos mais
poderosos que mais investiram em “modernizações” tanto, política, econômica,
ideológica, tecnológica, nas técnicas de mobilizações mais perigosas? E que mesmo
acidentes mais ruinosos não conseguem suscitar dúvidas de princípio quanto ao caminho
e ao rumo no andamento do processo civilizador? Em poucos anos, principalmente no
fim dos anos 80, este esquema foi tomado oficialmente. No seminário do Instituto Aspen,
ocorrido em Berlim sobre “Perspectivas para o século XXI”, o Presidente da República
Federal, Richard von Weizsäcker, disse, a propósito do krach da Bolsa de Nova Iorque em
outubro de 1987, que este fora “uma dessas pequenas catástrofes, de que nós
precisamos urgentemente para perceber como podemos afastar as grandes catástrofes”.
Só com dívidas se pode caminhar e construir um futuro. Obviamente que as culturas
devem tomar uma certa proteção “ontológica”, não se tornar demasiadas endividadas,
isto porque, as pessoas em sociedades podem desenvolver uma forma inevitável de
simpatia pela catástrofe. Uma dimensão apocalíptica de nossa era. Uma simpatia
acompanhante desde os mais antigos nas épocas de impérios. Com eles nasce a
esperança de que o império colapse. O dia 15 de agosto de 1971 foi um dia histórico. O
dia da liquidação do sistema monetário Bretton Woods. Nesta data, o presidente Nixon
oficialmente anunciou que o (gold-dollar), que a paridade fixa de ouro-dólar foi
definitivamente abolida. Esse dia se tornou o dia da descida ao inferno do dinheiro pós-
moderno, e essa descida ainda não chegou ao seu fim. O dólar através da garantia do
governo americano, custava 35 dólares por onça fina. Em outras palavras, uma onça de
ouro fino 35 dólares. Você sabe quanto é o valor do dólar hoje? 1.300 dólares. Hoje o
ouro é barato. Dois anos atrás o preço era 1.900 dólares. Estes números são suficientes
para dizer onde estamos. Ou seja, estamos numa encosta muito escorregadia. Até a
Holanda que é conhecida por um país plano vive bem relativamente nesta encosta
escorregadia. A situação que estamos tentando descrever é que os “pós-modernistas”
são pessoas que derrapam (esquiam) em um movimento entrópico e que tentam definir
que isso uma normalidade. Tentamos descrever a desestabilização como um estado de
se estabelecer (de estabelecer a si mesmo). Uma cultura que vive inteiramente do jogo
da desatualização atual. Por isso que o “post” da pós-modernidade significa, o “depois”
216

(post), como algo característico do póstumo. O termo Nachruf significa necrológio, elogio
ou notícia fúnebre. É composta com o nach, que significa “depois”, o equivalente ao post
do latim. O princípio da cultura de escada rolante como necrológio, o qual no meio do
movimento permanente e da falta de clareza, recorda a última fato seguro, o de que o
passado não é presente. Quando ninguém pode saber o que será do amanhã, o fato de
ao menos o passado já ter passado aparece como significativo. Em seu recente livro Pós-
Deus de 2019 (será lançado em breve pela Editora Vozes), Sloterdijk descreve a
globalização, dos seus primórdios até seu (preliminar) desenvolvimento no fim do século
XX. Toma e caracteriza Deus como “simplesmente a maior fonte de cobertura de seguro”.
Essa suposição, válida para todas as religiões (pelo menos as monoteístas), libera
paradoxos que tiveram consequências devastadoras desde a Idade Média até os tempos
modernos: o fundamentalismo triunfante desde a virada do século é o seu pior efeito. No
entanto, quais são os desenvolvimentos associados à frase virulenta “Deus está morto”,
que reverbera desde, no mínimo, o final do século XIX? Aqui, as áreas da teologia e da
filosofia contemporâneas entram em jogo, bem como a política assassina do presente e
os desenvolvimentos culturais e técnico-científicos imediatos.
Isso possui uma força significativa muito grande em respeito à Revolução dos
Bastardos. O dinheiro também é uma força de mistura que se tornou operativa no mundo
por excelência. Devemos nos orientar pelas relações sociais que constroem a nossa
subjetividade dentro do capitalismo. Qual é o meio, o ar que respiramos no capitalismo?
O capitalismo é simplesmente uma produção de capital. Produção e reprodução de
capital. Mas o capital tem uma forma que é a forma dinheiro, valor incorporado em
dinheiro, o que faz com que as mercadorias sejam equivalentes umas às outras no
mercado. Mas o dinheiro é também gerado pelo valor das mercadorias, no capitalismo
financeiro ele é gerado por ele próprio. O dinheiro estava acoplado ao ouro, depois ao
papel moeda. Mas houve um homem chamado Nixon falou que os Estados Unidos não
mais farão dinheiro com lastro no ouro. O dinheiro agora é o dólar. O dólar é o ouro, ele
é o padrão. Os homens começaram a depender do número que se puser na Casa da
Moeda na produção americana. Com os avanços tecnológicos, especialmente os
computadores, a própria moeda física seria destruída para fazer com que o dinheiro seja
a coisa mais abstrata possível. Um número na conta de todos os trabalhadores que fez
um serviço para o Estado. Todos chegaram naquele estado de abstração máxima da vida.
217

Bandeira do Peru. De cor vermelha, em baixo, com uma cornucópia derramando


moedas, significando, com estes símbolos, as riquezas do Peru, nos três reinos naturais.

O mundo teve que se organizar não mais como câmbio fixo, mas como câmbio
flutuante. Dinheiro passou a ser algo que se troca, um dinheiro pelo outro a partir da
demanda como uma mercadoria qualquer. A economia do mundo passou a ser mais
dependendo da economia americana do que até então vinha sendo. Todos os bancos que
estavam servindo de credores para o Estado de bem-estar social passaram a ser credores
em dólar e seguindo taxas de câmbio e de juros de maneira flutuantes. Em geral, aquelas
que o mercado financeiro impôs aos Estados, coisas que variam desde lobby, influência
política, controle político nas democracias com eleições. No mundo globalizado, os
Estados nacionais perderam força, o dólar é a força que puxa o mundo. O mundo dos
negócios mudou a classe operária. O capitalismo foi transferido para a ideia de ganho do
dinheiro como dinheiro, crédito, juros, bolsa, especulação, deixando de ser um
capitalismo da produção. A empresa substitui a fábrica, as máquinas, os robôs, a
tecnologia substitui o operário, no fim, o produto imaterial como softwares, patentes,
ciência, conhecimento, vira algo imaterial no lugar do produto material. Todas as
empresas querem isso, o mundo quer isso e o mercado pede isso. O dinheiro se reproduz
por si mesmo em velocidade de maneira informatizada. A fábrica, o operário ficou em
segundo plano. A luta de classe virou uma luta social do mundo todo. Todo mundo virou
de algum modo trabalhador como não operário. Todo mundo passou a ter uma ação
218

política que é a biopolítica porque todo mundo está envolvido com o seu corpo em algum
nível de exploração – autoexploração, pois a ideologia da empresa que substitui a fábrica,
então, todo mundo passou a ser por si próprio o empresário de si mesmo. Há uma
distribuição do mundo da terceirização do serviço onde você vende o seu serviço e o seu
conhecimento. É este mundo que o Deleuze chama de o fim do mundo que o Foucault
estudou. Foucault estudou as disciplinas, onde a fábrica é o modelo para escola, o modelo
para a prisão ou a prisão o modelo para a fábrica, os hospitais. Um homem que é
disciplinado com o seu corpo disciplinada para o trabalho para a produção material. De
repente você não tem mais isso. Temos uma sociedade do controle como Deleuze diz em
1990 na sua obra Conversações. Uma sociedade do controle fluida, ligada a uma
produção imaterial, todos trabalham com a biopolítica na sua vida na venda de um
serviço e ela tem os Estados imitando a nova empresa, trabalhando como se você
empresa e não como fábrica, ou seja, trabalhando com a ideia de controle versus a antiga
sociedade fabril. O mesmo é reforçado por Michael Hardt e Antonio Negri no Assembly.
Dizem que o que o Deleuze está falando é a época do biopoder e da biopolítica. A
transição de uma época para uma fase da Modernidade em que toda a vida é subsumida
ao capital. Não é somente o trabalho que é subsumida ao capital. O capital financeiro
gerencia toda nossa vida diferente do capital industrial que gerenciava a vida do
trabalhador na fábrica. O capital financeiro gerencia através das finanças todo nosso
modo de vida. Ele traz o modo de vida social para o modo empresarial. Não há mais a
fábrica e nem mais o horário de trabalho. Só há o tempo livre, as pessoas vivendo que
estão produzindo de maneira imaterial através das suas inteligências, da tecnologia, das
ciências, informática, todo um trabalho imaterial que não possui mais local, mas que
também não tem mais horário, ele é toda a nossa vida, inclusive no descanso ou na folga.
Mesmo nessas situações estamos produzindo dentro das condições do capitalismo
financeiro, pois estamos ligados à alguma atividade empresarial, esta atividade
empresarial que por sua vez, está ligada à compra e venda de ações, do crédito, dá a
regra, edita e edifica a forma de todos nós vivermos. O dinheiro institucionaliza uma
relação social. A qualquer hora estamos com o smartphone na mão, por isso imaginamos
estar longe daquilo que chamamos de trabalho, mas o nosso expediente não terminou,
nós estamos nos divertindo e trabalhando ao mesmo tempo sem saber. A captura do
valor hoje atua em forma de se expandir a tempo de envolver todo o tempo da vida,
219

produzimos e consumimos em um sistema global que nunca dorme. Não há possibilidade


do sono, o expediente é um trabalho mesmo no jogo, fazemos parte de alguma empresa
que faz parte do capital financeiro. Não há mais parada, não há espaço nem horário da
extração da mais valia. Ela é social e durante todo o tempo. Cria-se um mundo
empresarial onde não há mais uma disciplina fabril. Há o controle sobre quem está
empresariado como empregado subalterno, empregado executivo, micro-empresa,
pessoa jurídica ou o indivíduo que acredita ser investidor na bolsa. Uma exploração não
mais pela mais-valia que todos conhecemos, mas explorados por uma mais-valia indireta,
de salários indiretos e de maneira social. Vemos nos serviços públicos dos mais diversos
e nos serviços que colocam como alvo a vida. A chamada biopolítica (bios). Uma ideia de
que toda uma sociedade está trabalhando em favor da vida pelas empresas que são
prestadoras de serviço e, ao mesmo tempo, investidoras no mercado financeiro.
Empresas de saúde das mais diversas: estética, psicológica, cura do câncer, vacinações,
campanhas contra doenças venéreas, etc. Proteção da mulher: varia desde os
cosméticos, leis específicas de proteção à vida, aborto, assistência social, seguridade
social, dias de folga, maternidade, roupas para o trabalho. Campanhas relacionadas à
ecologia, ao meio-ambiente e clima. Leis de proteção animal e aparatos para cuidado
com o meio-ambiente. Questões jurídicas que envolvem DNA, identidade, paternidade,
busca de preso, biogenética. Aparatos médicos contra as drogas e em favor de da outra
droga, a droga farmacêutica. A vida entra com peso enorme para sustentar a indústria
que não mais “indústria”. Ela vira simplesmente uma empresa que gera trabalhado
imaterial, intelectual e cognitivo que é uma prestação de serviços tão abstrata com
informática, patentes, produção de vídeos, softwares. Se tomarmos o exemplo do
Youtube, veremos diversas pessoas que se enquadram na empresa para haver uma
comunicação que variam das mais diversas, desde conteúdo político, entretenimento,
musical, informativo e games. Todos viram produtores de conteúdo. Quem produz, quem
assiste, os programadores, a internet, o Youtube. Todo esse conteúdo produzido não nos
coloca sob um chefe, nós estamos trabalhando como autônomos em uma grande
empresa. Estamos sob controle, não sob disciplina. Dependendo do conteúdo produzido
há restrições de idade, restrição de temas, conteúdos, monetização que não sobe,
bloqueio de atividades, expulsão. Estamos circunscritos ao que a internet quer e ao que
o Youtube quer que faça. Produção e consumo de produtos imateriais, pois todos
220

precisamos de saúde, de educação, cuidado com a mulher que vem por vias de serviços
públicos via impostos, mas que sustenta uma grande empresa que investe aqui, mas que
também investe em ações no capitalismo financeiro. Isso coloca a todos em uma situação
de insônia em que se vai a fábrica entra o neoliberalismo com a sedução do indivíduo que
não tem mais tempo livre e de folga. Não devem nada para os sindicatos. A empresa
trabalha o tempo todo. Um aspecto que muitas vezes se confunde com o jogo, uma
mistura de empresa-entretenimento. Vemos em alguns locais do mundo com empresas
que fornecem atividades de musculação, ginástica, leituras diárias de jornais, trabalho
em equipe, grupos de pesquisa, almoço com funcionários, Happy Hour, alimentação de
comidas boas, creches, seguridades, assistencialismo, etc. Toda uma preocupação com a
vida, a saúde e com a situação de velhice, de aposentadorias e longevidade. Os que se
divertem, mas estão trabalhando.
Se com a mercadoria tínhamos o fetiche (o corpóreo – matéria de uso e o
incorpóreo – trabalho humano embutido), mas o dinheiro tem só o tempo de trabalho
embutido no nada de matéria, apenas no número que nos é chegado à mão por numeral.
Ser vivo é ser incorpóreo. Se abandona o corpo e nos dizemos incorpóreos também,
muito antes do dinheiro porque somos um “eu interior”, almas. Trabalhamos com o
corpo que não sendo incorpóreos, sejam também imitações do incorpóreo. Eles
trabalham em um local de volatilidade. Cortamos, operamos, modificamos, colocamos
etiquetas neles. Tão voláteis como mercadorias e, talvez um dia, dinheiro. A forma de
realização do homem é a abstração. Já que o padrão abstração ser-dinheiro virtual
percorre todo o fluxo do globo. Nós somos iguais a este número que dá o padrão de vida.
Se o dinheiro pode escorrer para qualquer lugar imediatamente com apenas uma senha
de cartão, nós também podemos viajar e fazer, por exemplo, turismo somente apertando
números da senha do cartão e o número do quanto isso vai me custar. Nós nos
teletransportamos. Somos voláteis. Nós temos certeza que não somos números, mas pela
abstração dinheiro passamos a ser tão voláteis quanto ele. Não tem nada dentro a não
ser um número. Por que o meu eu enquanto registro é um número? O RG? DNA? Avatar?
Polegar? É aí que temos que dizer que “tenho algo dentro de mim, sou um eu interior.
Não sou só um número”, mas todos os dias ao usar o corpo como identidade nós
negamos esta possibilidade de ir para a abstração e ter que voltar para o corpo, então é
221

por isso que temos que mexer no corpo de modo a ajustá-lo na forma de uma massinha
tão abstrato quanto à possibilidade de não ter massa nenhuma que é o dinheiro.
Hoje a M.M.T vem ganhando espaço. A chamada Teoria Moderna do Dinheiro.
Se trata de uma economia em que não se pode comparar uma casa com o Estado. Os
liberais sempre explicam economia tentando comparar a casa com o Estado. Para eles, a
forma de entender economia é com base nisso. Não se pode gastar mais do que ganha.
Dizem eles: “está é a regra fundamental da economia”. Da casa e do país. A teoria do
dinheiro fala o contrário, os países não têm nada a ver com as casas porque casas não
imprimem dinheiro, os países é que imprimem a moeda, eles fazem a moeda. A moeda
desde os anos 70, especialmente nos Estados Unidos, não está mais vinculada ao padrão
ouro. Ela flutua na confiança que as pessoas têm no governo. Esta ideia tem um rastro
nos EUA do New Deal, da política do Roosevelt que tirou o país da recessão. Fez de 1920
até 1970 a maior redistribuição de renda da terra. O que ele fez foi chamar os sindicatos
propondo um pacto para que o movimento dos trabalhadores seja algo coordenado com
o dos patrões, gerenciou, fez governança na luta de classe. Pegou pessoas para andarem
nos EUA, principalmente nos municípios pequenos, propôs o diálogo em câmaras
municipais. Prometeu que o governo emitiria dinheiro, porque o governo não é uma casa,
onde tem que gastar o que ganha. O dinheiro nesse período ainda era papel, não, mais o
dinheiro de hoje que chamamos de magnético. A promessa era que o dinheiro iria para a
mão das pessoas para que elas gastassem com o que elas quisessem. O acordo tinha em
mente uma prestação de contas para depois se cobrar os serviços. O importante era se
fazer algo para juntar pessoas que pudesse virar algo comercial. Os economistas do
mundo todo ficaram com os cabelos em pé muito em virtude do regime pré-inflacionário
pré-guerra que gerou a inflação inclusive na Alemanha. Todo mundo começou a gastar e
a construir, consequentemente o dinheiro foi aumentando. Vem a pergunta: para que
serve imposto? Para queimar dinheiro. O governo emite dinheiro, mas ele também via
imposto tira o dinheiro, elimina ele. Foi o que Roosevelt fez. Eliminando a inflação. Depois
realocou novamente o dinheiro para o que era coletivo, universidades, saúdes, hospitais,
creches. Soltou o dinheiro paulatinamente sem deixar que a inflação viesse. Inspiração
de um filósofo John Dewey. Uma típica política americana.
A mesma coisa é no Brasil. Então, quando o Estado deve, ele pode fabricar
moeda para pagar. Basta que a ideia de impostos (ativos e passivos), receber impostos e
222

devolver políticas públicas, esteja equilibrado, até porque a taxa de inflação é uma
questão de crença e confiabilidade. Se países como EUA e Japão põe dinheiro no mercado
(“na praça”) e acham que vai aparecer inflação, não é necessariamente verdade, estes
países fazem este movimento e não tem inflação. No campo das esquerdas, muito em
virtude da Alexandria Ocasio-Cortez e de Sanders provavelmente ser candidato em 2020,
além disso, “o pai do Real”, André Lara Resende, trouxe esse debate para cá em um texto
recente sobre a crise da macroeconomia.41
A maioria dos governos nacionais cria sua própria moeda. Isso significa que eles
podem e devem se comportar de maneira muito diferente de todas as empresas, famílias
e governos locais que usam essa moeda. Quando as nações constituem um governo, elas
concedem a esse governo o poder de emitir uma moeda soberana. Os governos precisam
de recursos e trabalhadores para servir o público. A moeda é a ferramenta que os
governos usam para obter tais recursos. Hoje, isso é feito principalmente com
computadores e contas bancárias, onde os governos fazem todos os seus pagamentos
simplesmente criando depósitos em contas bancárias. Os países desejam desenvolver e
melhorar sua qualidade de vida e a moeda é sua principal ferramenta para fazê-lo. Um
governo monetariamente soberano é capaz de pagar pelas coisas que servem as
necessidades da sociedade como um todo e que desejamos ser providos a todos, não
apenas àqueles que podem pagar por eles. O governo pode fazer investimentos em coisas
como defesa, pesquisa, saúde e educação que atendem comunidades remotas e não
geram lucros. Além disso, quando o governo investe nessas coisas, o setor privado não
precisa se endividar para financiá-las. Isso permite que a dívida do setor privado seja
reservada para as coisas que são lucrativas ou não para benefício coletivo, enquanto o
governo faz os investimentos que servem à sociedade como um todo. Os países podem
usar sua moeda nacional para melhor utilizar seus recursos disponíveis, desenvolver a
capacidade produtiva doméstica e elevar os padrões de vida de maneiras que beneficiem
a todos.
Governos fazem pagamentos com aumento de depósitos da conta bancária. Os
bancos têm contas especiais com o Banco Central, um outro nome para isso é “Fazenda

41
RESENDE, André Lara. A Crise da Macroeconomia, 2019. Disponível em:
<http://www.pps.org.br/2019/03/11/andre-lara-resende-a-crise-da-macroeconomia/>. Acesso: 14 Abr.
2019.
223

Pública” (nome bastante sugestivo em uma situação agrária de depósitos-armazém;


também é sugestivo na noção de literatura, contos e na situação de achar tesouro pelo
mundo, sistemas iniciais de aventuras e jogo), “Tesouro Nacional” (a Reserva Federal nos
EUA) chamadas “contas de reserva”. Quando o governo paga um juiz federal, compra um
veículo militar ou envia um pagamento em nome de um paciente do hospital, o Federal
Reserve (FED, banco central americano) marca o saldo na conta de reserva do banco do
beneficiário. Esses depósitos bancários representam a moeda do governo recém-criada.
Em seguida, o banco marca o saldo do depósito da conta bancária do destinatário pelo
mesmo valor. Os governos fazem pagamentos simplesmente adicionando números a
contas bancárias com computadores. Não há razão para o governo precisar “pegar”
números antes de poder “adicionar” números. Ele não precisa de nenhuma pilha de
barras de ouro ou notas de papel que tenha coletado de pessoas antes de poder digitar
esses números. No processo de fazer qualquer pagamento, o governo simplesmente cria
saldos bancários maiores que representam sua moeda. Esta é, naturalmente, uma grande
responsabilidade e certamente, precisamos de processos públicos transparentes e
responsáveis para garantir que nosso governo use seus poderes de emissão de moeda
para servir ao público. Nem todas as nações têm plena soberania monetária, e isso pode
causar uma grande diferença.
Comparações simples entre o estado fiscal de países como os EUA e a Grécia ou
a Argentina são inúteis porque esses países desistiram da soberania monetária plena de
das seguintes maneiras: Abandonou uma moeda nacional. A Grécia e todos os países da
zona do euro desistiram de suas próprias moedas soberanas e agora são usuários do
euro. Uma moeda que eles não controlam e não podem criar sob demanda. Em certo
sentido, eles são um pouco como os estados dos EUA, em vez de nações soberanas. A
Grécia deve emprestar euros ou obtê-los através do comércio. Os EUA criam dólares
americanos a qualquer momento em que o Congresso dos EUA autorizar pagamentos.
Dívida externa: Países como a Argentina, que acumularam grandes dívidas em dólares
americanos, devem suas dívidas em uma moeda que não possuem e não podem criar.
Eles podem definitivamente entrar em dificuldades financeiras, já que eles têm que
ganhar dólares americanos por meio de comércio ou atrair investimentos estrangeiros
para fazer seus pagamentos de dívida e juros. A Argentina sofre com inflação alta há
décadas, mas a depreciação do peso, a moeda local, em 2018 alimentou os ajustes de
224

preços, incluindo tarifas de serviços públicos que são reguladas pelo governo, que ainda
permanecem. Em meio à crise cambial do ano passado, Macri buscou ajuda do Fundo
Monetário Internacional (FMI), com o qual acertou uma linha de crédito de US$ 56
bilhões. Troca fixa: os governos que prometem trocar sua moeda por outra moeda (ou
por uma commodity como o ouro) a uma taxa fixa podem enfrentar problemas
semelhantes. Eles devem manter grandes reservas de moedas estrangeiras, como o dólar
americano, para manter sua promessa de conversão, e muitos foram obrigados a ficar
inadimplentes ao longo do tempo. Alguns países conseguem sobreviver por algum tempo
com essas limitações, especialmente aquelas que têm grandes exportações, mas isso
raramente dura para sempre.

Divus Julius. Moeda comemorativa dos festejos da apoteose de César, durante os


quais dizem ter aparecido um cometa.

Moeda da prata de Tour Gros tournois, de São Luís, c. 1266.

Quando se envia um cheque ao Tesouro para os impostos devidos, o Federal


Reserve, agindo na sua qualidade de banco do Tesouro, debitará a conta de reserva do
225

seu banco pelo valor dos impostos. Seu banco, é claro, debitará sua conta bancária. O
efeito líquido de pagar seus impostos é a remoção da moeda do governo criada
anteriormente, na forma de uma redução no saldo de reserva de seu banco. Os bancos
atuam como agentes na adição e remoção da moeda do governo dentro e fora da
economia. Os pagamentos do governo criam saldos bancários: impostos reduzem saldos
bancários. Pagamentos do governo fornecem renda aos beneficiários: impostos reduzem
o poder de compra. Os pagamentos do governo são o que criam nossa oferta monetária
básica: a tributação reduz nossa oferta de dinheiro. A inflação não é, como
frequentemente se teme, um resultado automático do déficit do governo, e muitas vezes
está localizada em áreas específicas da economia. É melhor olhar primeiro para as causas
da inflação antes de fazer comentários gerais sobre a influência dos gastos do governo.
Se perguntarmos para nós mesmos se podemos construir um sistema ferroviário nacional
de alta velocidade? A resposta não é se temos dinheiro suficiente, mas se temos
engenheiros, trabalhadores da construção, matérias-primas e conhecimentos suficientes
sobre a tecnologia para projetar e construir tais sistemas. Temos a vontade política e o
apoio do público para isso? Estamos dispostos a usar o imóvel necessário para esse fim?
Se a resposta for sim, o Congresso pode aprovar o financiamento. O Congresso nunca
precisa “encontrar dinheiro”, já que controla a moeda. Países que carecem de todos
esses recursos terão que importar tudo, mas talvez trabalhem para construir um sistema
ferroviário de alta velocidade. Alguns podem ter relações comerciais suficientes para
poderem importar os trens e consultores. Outros podem precisar usar sua capacidade de
exportação para necessidades mais urgentes, caso em que ainda não podem pagar pelo
sistema ferroviário.
Uma regra do “teto da dívida” não faz sentido (poucos países até tentam isso),
uma vez que tenta impor um limite após o fato sobre decisões que o governo já fez com
relação a investimentos públicos e políticas tributárias. O tamanho de um déficit do
governo é resultado de fatores fora de seu controle, como um colapso repentino do
mercado e uma recessão ou uma expansão nos negócios. O déficit em si não é o que
devemos focar quando projetamos orçamentos públicos, mas sim o que queremos-
precisamos que nosso governo pague, e como fazê-lo de uma maneira que deixe a
economia em um equilíbrio saudável. Um teto de dívida é largamente usado como um
estratagema político e não serve a nenhum propósito útil em uma democracia funcional.
226

O governo cria uma nova moeda à medida que faz pagamentos por crédito em contas
bancárias, mas os bancos também criam novos depósitos bancários cada vez que
concedem crédito bancário a um cliente. Nas economias modernas, quase todo dinheiro
é criado pelo sistema bancário na forma de depósitos bancários. Os bancos
desempenham um papel importante na economia, tanto na ampliação do crédito
bancário quanto como agente dos fluxos de moeda do governo dentro e fora da
economia. Cada vez que uma empresa obtém um empréstimo para um novo
equipamento, ou uma família assina uma hipoteca para uma casa, o banco usa um
computador para aumentar o saldo do depósito na conta do cliente. Em outras palavras,
os bancos aceitam nossas promessas de pagamento e emitem seus próprios depósitos
bancários. Eles não "emprestam" o dinheiro de outras pessoas para "mutuários". Da
mesma forma, quando usamos um cartão de crédito para comprar mercadorias de uma
loja, a conta bancária da loja é creditada com o valor da compra. Mas as empresas de
cartão de crédito não "têm" dinheiro para "emprestar". Eles simplesmente aceitam nossa
promessa de pagar o saldo a cada mês e eles emitem seus próprios depósitos bancários
para a loja na forma de depósitos bancários (promessa não é dívida?). Cada pagamento
cria um novo depósito – novo dinheiro na economia. Reembolsar seu cartão de crédito
remove os depósitos bancários do sistema bancário, resgatando (ou extinguindo) o
depósito bancário. Podemos simplificar isso dizendo que os bancos “criam dinheiro”
quando expandem o crédito bancário e “excluem dinheiro” quando esse crédito bancário
é pago - o que pode ocorrer ao longo de muitos anos. Muitos de nós aprendemos que os
bancos coletam dinheiro dos poupadores e depois emprestam esse dinheiro para os
tomadores, mas na verdade não é assim que os bancos funcionam. Em vez disso, os
bancos têm uma licença do governo para criar depósitos em dólares sempre que aceitam
um "mutuário" digno de crédito.
Assim, o governo faz pagamentos criando novos depósitos bancários e os bancos
também criam depósitos cada vez que concedem crédito. Todo o dinheiro em nossa
economia vem do crédito bancário (a dívida de alguém) ou é facilitado pelos pagamentos
do governo. Há uma grande distinção que vale a pena notar nesta fase. Por exemplo, para
cada novo dólar de crédito bancário, o ônus da dívida do setor privado cresceu, talvez a
hipoteca da sua casa ou o financiamento de novos equipamentos da sua empresa. No
entanto, quando o governo gasta sua moeda na economia, nenhuma casa ou empresa
227

ficou mais endividada. Em vez disso, o destinatário recebeu um saldo bancário maior livre
de qualquer obrigação de compensação para pagar. Essa é uma distinção vital a ser
entendida: quando o governo paga por algum serviço público ou infraestrutura, o setor
privado não precisa se endividar para pagar por isso. E lembre-se de que o governo não
precisa tributar mais toda vez que iniciar novos investimentos, mas apenas se a economia
exigir algum ajuste fiscal para administrar a inflação ou outras preocupações públicas. O
sistema bancário é essencial para o funcionamento do nosso moderno sistema monetário
e há muito a dizer sobre como ele pode ser melhorado para melhor servir o público. Esse
tópico está além do escopo deste projeto atual, mas você pode procurar os trabalhos de
economistas do M.M.T como Bill Mitchell, Stephanie Kelton, Warren Mosler, Randall
Wray e Eric Tymoigne sobre o assunto, caso esteja interessado.
Os depósitos bancários têm ampla aceitação, em parte porque nosso governo
assegura depósitos bancários e apoia um sistema simplificado de compensação de
transações interbancárias. Os bancos têm um relacionamento especial com o governo
que pode ser visto como uma espécie de franquia público-privada da moeda do governo.
Essa perspectiva fornece informações sobre como e por que os serviços bancários devem
ser regulamentados para atender à necessidade pública de crédito e de um sistema de
pagamentos. Alguns países usam até mesmo um sistema bancário público, como o Banco
Postal, para fornecer esses serviços a todas as comunidades locais. Nós vamos daqui para
frente ter uma divisão, de um lado lutas identitárias, de outro, a política parlamentar para
questões de ganhos e perdas salariais, investimentos, dívida, índices econômicos de
melhoria de vida. A promessa dos atuais liberais e neoconservadores do Brasil fica cada
dia menos possível. Tanto em nível de Previdência Social como em nível de economia
interna e externa. Isso porque este tipo de economia capitaneado por eles não vem
funcionando (o neoliberalismo). Esse é o rumo que Laura Carvalho toma em seu livro
Valsa Brasileira: Do Boom ao Caos Econômico de 2018. Um livro que traz uma visão onde
a forte desindustrialização do Brasil nos anos 80 e 80. Entre 2006 e 2017, a economia
brasileira viveu numa montanha russa. Do segundo mandato de Lula ao impeachment de
Dilma Rousseff, o país passou por alguns dos anos de maior prosperidade de sua história,
mas também viveu uma crise. Uma crise em que somente os bancos ganham recordes.
Talvez a questão nossa seja de ousar, de dizer sim que o Estado pode dever, mas
desde que ele saiba quais investimentos fazer e como ele deve tomar conta da inflação.
228

A situação que o Brasil vive é de uma não política principalmente porque se acredita que
a Reforma da Previdência e a flexibilização das leis trabalhistas feita em 2018 vai criar
empregos, vai aumentar a economia e a produtividade. Ao definir as categorias políticas
que definem a vida contemporânea Lazzarato (2017, p. 1):

Prefiro falar de política da dívida, por ser um termo mais exato no que se refere
à nossa sociedade. A dívida, isto é, a moeda como capital financeiro, é uma
abstração de ordem superior àquela do trabalho, da representação
democrática e do poder político que se constituíram dentro do Estado-Nação.
Enquanto na fase expansiva da “valorização” a governamentalidade insufla
liberdades aos governados, no momento em que a crise impõe a necessidade
de encontrar novas fontes de lucro, o capital entra numa fase de
“desvalorização”, isto é, de destruição do capital constante e do capital
variável (a população). A única democracia que os liberais conceberam foi a
censitária, a democracia dos proprietários. A democracia “para todos” nunca
foi um objetivo do capitalismo nem dos liberais. Ela foi imposta, começando
pelo sufrágio universal, pelas lutas do movimento operário, no século XIX. O
declínio deste, sob os assaltos da finança, provoca uma queda vertiginosa da
“democratização”. A dívida é uma máquina de guerra composta por
automatismos financeiros, normas sociais e uma estratégia política.
Precisaríamos pensar as relações entre máquinas técnicas, máquinas de
guerra e estratégia.
229

Rex imago Dei; Deus Imago regis: Soberanos romanos e seus deuses acompanhantes
em duplo perfil; no alto, Póstumo e Hércules; no centro Probo e Sol invicto; embaixo,
Constantino e Sol invicto.
230

Moeda de Otaviano. 38 a.C.

Apesar do capital se adequar melhor em um ambiente democrático, o


capitalismo não precisa de democracia. Se formos para Byung-Chul Han ao se referir que
o neoliberalismo trata de uma forma de lidar com a ideia de que de fato cada um é cada
um, e que as diferenças individuais são nosso segredo de felicidade, e que podemos
então, nos lançar na “sociedade do rendimento” como empresários de nós mesmos,
veremos que cada um ganha o direito de explorar-se. Hoje cada um é um trabalhador
que se explora a si mesmo em sua própria empresa. Cada um é ao mesmo tempo escravo
de uma pessoa. Também a luta de classes se transforma em uma luta interna consigo
mesmo. Todos podem ser empresários e empreendedores de si mesmos. O
neoliberalismo, como forma de mutação do capitalismo, converte o trabalhador em
empresário. O neoliberalismo, e não a revolução comunista, elimina a classe trabalhadora
submetida à exploração. Hoje se tem a ilusão de que cada um enquanto projeto livre de
si mesmo, é capaz de uma autoprodução ilimitada. Com o modelo neoliberal e sua
estrutura, seria possível pensar que é impossível a “ditadura do proletariado”, porque
estamos dominados por uma “ditadura do capital”. Temos aí, uma auto-exploração que
afeta todas as classes, uma auto-exploração sem classe é algo completamente estranho
à Marx. Isto torna impossível a revolução social que descansa na distinção entre
exploradores e explorados. E pelo isolamento do sujeito de rendimento, como explorador
de si mesmo, não se forma nenhum “nós-político” com capacidade para uma ação
comum. Indivíduos são átomos, tornamos as pessoas individualizadas. Vemos uma
231

situação de isolamento tão acentuada que o famoso: “o inferno são os outros” de Sartre
não tem mais sentido. A tentativa de se retirar os infernos das pessoas, o alter-ego, o
outro, é talvez, o grande pecado de hoje. No regime neoliberal da auto-exploração cada
um dirige uma agressão contra si mesmo. Um sujeito que é ao mesmo tempo vítima e
carrasco. Um sujeito que se ilumina em transparência e vigia a si mesmo, está isolado
como um preso e guardião. Foucault desenvolve uma ética histórica do eu separada em
grande medida das técnicas de poder e de dominação. Ele mesmo faz referência ao
trânsito das tecnologias de poder para as tecnologias do eu. “Talvez eu tenha insistido
muito no tema da tecnologia de dominação e o poder. Cada vez estou mais interessado
na interação entre eu mesmo e os demais, assim como nas tecnologias de dominação
individual, a história do modo em que um indivíduo atua sobre si mesmo, ou seja, na
tecnologia do eu” (FOUCAULT, 1990, p. 61). A técnica de poder do regime neoliberal
consiste na realidade algo não visto pela análise de Foucault sobre o poder. Ele não
percebe que o regime neoliberal de dominação acabara totalmente com a tecnologia do
eu, sendo que a permanente optimização de si mesmo, o famoso “seja a melhor versão
de você mesmo”, “não pare de evoluir”, “seja positivo”, “se expanda”, não é outra coisa
que uma forma de exploração e dominação. O sujeito do rendimento neoliberal, esse
“empresário de si mesmo”, como ele mesmo fala na obra O Nascimento da Biopolítica
(2007) se explora de forma voluntária e apaixonada. O endividamento é a forma de
realização do indivíduo. Se cria uma subjetividade de culpa crescente. Onde a
oportunidade chega em forma de mais crédito e de mais débito, como contratos e
negócios. Mais crédito significa mais realizações, mais empréstimos significa um sopro de
vida e esperança para a positivização. O sucesso passa a ser mecanismo de pagamentos.
Cria-se a mentalidade de que todos fazem tudo por si e para si, a atividade típica de
acumulação empresarial, um homem-empresa é a forma de autoexploração de hoje com
cursinhos em forma de aprendizagem, reciclagem e melhoramentos. O crédito vem como
forma de sonhos. “Realize os seus sonhos”, “aproveite os seus talentos" Byung-Chul Han
retoma e completa o pensamento de Ehrenberg, observando que o atual sistema
econômico neoliberal explora para sua própria vantagem esse clima, tanto emocional-
psicologizado como intelectual, para lucrar o máximo do indivíduo que tenta se realizar.
Todos ficam responsáveis por tudo, mas como benefício pessoal ou como culpa pessoal.
A culpa logo vira dívida em uma diluição da nação. Podemos ver a capitalização com esta
232

ideologia. Se diz que ninguém vai mais pagar a aposentadoria do outro porque não cabe
a ideia de solidariedade não cabe mais na sociedade e nos dias de hoje. A culpa logo vira
inveja. A força de destruição em ver o outro se ferrando. O país como nação se atomiza
desconfigurando a própria noção de sociedade enquanto corpo solidário político. Não é
difícil entender isso com Durkheim falando que a própria individualização nasce do fato
de termos a sociedade. O atentado contra si mesmo torna-se a imagem refletida no
espelho. Se com Hobbes tínhamos uma “guerra de todos contra todos”, o neoliberalismo
instaura a guerra de todos contra si próprios. O sujeito vira autor de um atentado com o
alvo em si mesmo. O Leviatã, como imagem para a ordem social e força motriz das
promessas no horizonte, foi montado ao redor da necessidade histórica de reunificar
territórios, economias e expectativas. O “corpo social” seria o corpo do soberano. O que
antes era ameaça, o “todos contra todos”, hoje se coloca como pedra angular da
experiência, uma vez que a “competitividade” de todos contra todos já se tornou lugar
comum. A positividade reaparece um como traço decisivo. A negatividade do outro, o
seu caráter ameaçador, cedeu o lugar a uma ameaça em formato de culpa imagética que
hoje é o guia dos nossos comportamentos. A ameaça da indiferença generalizada e do
fracasso. O fracasso é o grande inimigo do sujeito que estabelece rendimentos. O medo
da desorganização social, revoluções de outrora perdeu peso, já que o neoliberalismo e
o desbotamento da modernidade, em vez de desordenar os laços sociais existentes,
simplesmente os desfizeram.
O cínico docilmente odeia. Ele está mais para o desdém que para o ódio. Sua
atividade é contra os que estariam trocando o natural pelo convencional para, em
seguida, chamá-lo de natural de idolatrá-lo. As práticas sociais são convencionais. Não se
deve naturalizá-las e muito menos, após isso, acreditar que por serem então chamadas
naturais são necessariamente boas. Sua militância é contra as convenções, a sociedade,
a rotina impensada da vida. O cínico teme o discurso e, principalmente, a escrita.
Também isso são práticas sociais, convenções, que podem assim vir a ganhar a fama de
naturais ilegitimamente. Desse modo o cínico, não raro, filosofa com o corpo e com o
comportamento corporal. Suas peripécias na cidade afrontam todos e com isso ele pode
colocar o dedo no nariz de cada um. Nada que é feito pelos homens não é possível de ser
enfrentado, desrespeitado e feito diferente. Nenhum lugar é sagrado. Nenhuma prática
233

é a certa ou errada por conta de um batismo. A vida do cínico é simples e desapegada de


ambições.
Enquanto Diógenes manifesta o “desejo”: “retira-te da frente do meu sol!”, os
adeptos do cinismo moderno aspiram a “um lugar ao sol”. Nada mais têm em mente além
do projeto de disputar cinicamente, no sentido de o fazer explicitamente e sem
constrangimentos, os bens deste mundo, dos quais Diógenes justamente caçoa. O
cinismo é um tipo de pragmatismo aplicado ao campo da reflexão ética. O cinismo antigo
era outra coisa, era simplesmente um naturalismo, uma reivindicação da natureza como
um regime razoável que regulava o movimento das estrelas e dos corpos celestes e que,
ao mesmo tempo, podia ser aplicado ao comportamento humano. Essa sorte do
naturalismo indicava que era necessário renunciar às necessidades criadas pela
sociedade e levar a vida de um cachorro feliz. Para consegui-los, literalmente todos os
meios são bons, até o genocídio, a pilhagem da terra, a devastação dos continentes e dos
mares, o massacre da fauna. Isso mostra que, no que concerne ao instrumental, eles
foram efetivamente além do bem e do mal. O cinismo dos meios que caracteriza nossa
“razão instrumental” (Horkheimer) é compensado apenas a um retorno ao kynismos dos
fins. Isso significa: despedir-se do espírito dos fins longínquos, reconhecer a ausência de
finalidade que caracteriza originalmente a vida, limitar o desejo de poder e o poder do
desejo. Numa palavra, compreender a herança de Diógenes. Não se trata de um
romantismo fajuto nem de uma exaltação da “vida simples”. O núcleo do kynismos
consiste numa filosofia crítica e irônica das supostas necessidades, na radiografia de sua
desmedida e de seu princípio absurdo. O impulso kyniskos esteve vivo não apenas entre
Diógenes e o estoicismo, encontramos igualmente em Jesus, o perturbador par
excellence, bem como em todos os verdadeiros descendentes do mestre, que, segundo
seu exemplo, chegaram a reconhecer que a vida não tem finalidade. A existência não tem
“nada a buscar” na terra além dela mesma. Mas, no império do cinismo, se está em busca
de tudo, menos da existência. Antes de “propriamente viver”, tem-se sempre outra coisa
a providenciar: preencher ainda uma condição, satisfazer ainda um desejo mais urgente
no momento, acertar alguma conta. E com esse ainda, ainda e ainda, nasce aquela
estrutura do adiamento e da vida indireta, que garante a marcha do sistema da produção
desmedida.
234

O “eu” como uma obra de arte possui uma aparência charmosa, enganosa e
sedutora que o regime neoliberal mantém para poder explorá-los totalmente. Esta
técnica de poder do regime neoliberal adota uma forma sutil. Ele não se apodera
diretamente do indivíduo. Pelo contrário, se ocupa de que o próprio indivíduo se volte
contra si mesmo. Que ele atue de tal modo que reproduza por si mesmo uma treliça de
dominação que é interpretada como liberdade. A própria otimização e submissão, a
liberdade e a exploração coincidem plenamente. Em Foucault se vê um vazio totalmente
uma técnica de poder que gera a convergência entre liberdade e exploração, o que na
verdade se configura como autoexploração. Se do lado de cá isto está posto, do lado dos
capitalistas veremos o sistema creditício com bancos e mercado financeiro. O Estado
“enxuga-se”. Como muito se diz aqui hoje no Brasil, o Estado “enxuga” o dinheiro dos
bancos para eles não terem prejuízos, por isso, assumem uma dívida que ele não pode
mexer, mas apenas atua como sistema de amortização para que não haja a geração de
inflação segundo a perspectiva dos bancos. Querendo ou não é uma forma de satisfazer
o capitalismo atual e financeiro. A regulação disso tudo foi perdida. Nós tínhamos o artigo
192 da Constituição Federal, que regulava inclusive, o limite da taxa de juros que não
deveria passar de 12% mais inflação. Houve um descontrole e um desmonte das bases
legais que era o Título VII: “Da Ordem Econômica e Financeira”, Capítulo IV “Do Sistema
Financeiro Nacional”, artigo 192. Ao vermos o que aconteceu, está escrito no texto legal,
que todos essas diretrizes foram revogadas. Não devemos esquecer que em 2012 para
2013, a então presidente da República Dilma, tentou baixar os juros, tanto a taxa SELIC
que decresceu para 7.25 como os juros por influência do Banco do Brasil e Caixa
Econômica Federal. Com Lula não foi diferente. Na Carta ao Povo Brasileiro de 2002, Lula
ficaria nas mãos dos bancos em um típico neoliberalismo (o que nas nossas contas já
beirariam os 25 ou 30 anos no Brasil, tanto em governos de esquerda como direita
somados). Lula foi bem especialmente em seu segundo mandato pelos chamados
commodities. Vendeu-se muito. A segunda parte foi feita com redistribuição de renda, no
chamado Bolsa Família. Depois desse período as coisas foram se deteriorando com o
neoliberalismo e capitalismo financeiro. As coisas acabaram não indo bem pela política
neoliberal, quando se quis fazer uma busca de empresários para que se investisse, o que
existiu foi uma desoneração deles pagarem impostos. O resultado foi que depois que
deixaram de pagar impostos, o país em crise, deixou de arrecadar mais ainda com o Fisco.
235

O capital financeiro permaneceu intocável. Parecem ser intocáveis e blindados. No


governo Fernando Henrique houve uma retirada das cláusulas que regravam essas
questões. O que se viu foi uma continuidade de uma política econômica desde Collor até
Bolsonaro. Entra presidente sai presidente são anos de neoliberalismo, não socialismo,
como muitos dizer por aí. Diga-se de passagem, Lula parece ou mente para si mesmo,
pois toda a bibliografia aqui mencionada diagnostica isso. Ele insiste em uma narrativa
errada, levando suas mulas e grande parte de esquerda do Brasil ao emburrecimento, e
pior, a um alvo errado.
Quando o Estado “enxuga-se” como corte de gastos, fim de cargos o que temos
é o uso de dinheiro público para pagamento de dívida, e não uma economia para o povo
ou investimento em setores públicos, isto se transforma em pagamento de dívida para
lucros em bancos: o “sistema da dívida”. Quem são nossos adversários? Onde está o
autor da história? Onde estão os personagens que fazem o destino? Quem estabelece as
regras do jogo? Entidades? Fantasmas? Um jogo com a ajuda do juiz? Uma hora o
capitalismo foi comercial, outra hora industrial, mas ele deixou de ser isso. O chamado
"sector terciário" dos chamados serviços em contínua expansão. Alguns economistas e
sociólogos deduziram daí a formação gradual de um capitalismo "pós-industrial" dos
serviços (Jean Fourastié e Daniel Bell, etc). Alguns já falam em “pós-capitalismo”. Fracos
ou fortes seguem o fluxo do crédito do dinheiro. A mágica que faz com que você não
trabalhe, não produza, não manufature, não crie empregos, não sue, não construa, mas
apareça um dinheiro multiplicado na compra de ações. Seguimos a análise perspicaz de
Marx nos passos decisivos: mercadoria e mercadoria; mercadoria e dinheiro, dinheiro e
mercadoria; passagem enquanto dinheiro para o dinheiro enquanto capital. Em meio a
essas considerações idílicas e formais de equivalência, mostram-se aqui pela primeira vez
aquelas tensões pesadas, que apontam para uma charneira de “contradições” no cerne
de todo o sistema de troca: dinheiro torna-se, agora e de uma vez só, por intermédio do
desvio pela coisa e da volta à forma do dinheiro, mais dinheiro. A partir de onde? Ele se
troca no sentido dos pressupostos como se estivesse fornecendo algo equivalente por
algo equivalente, ampliando-se por essa via. Marx, contudo, ao menos isto é certo, não
descreveu outra coisa senão a forma fundamental de toda circulação capitalista, que
repousa sem exceções nas expectativas de crescimento.
236

Um sistema de especulação sobre o valor de empresas, e não sobre o real das


empresas. Um nome curioso nos surge: “A Bolsa”. A bolsa de valores. Um local que é
indefinível porque ela está em todos os lugares. Muitos dizem: “O Brasil vai crescer. A
Bolsa está subindo”. Outros: “O mundo vai bem. A Bolsa explodiu”. A Bolsa começa a ser
o personagem de nossa história. Começa seu processo de humanização. Por isso, Marx
diz que “o capital é o sujeito da história”. O dinheiro estabelece uma comunidade de
relações que independe da cor, da raça, da língua, das tradições, etc. O dinheiro cria uma
nova comunidade que todos os que se dizem homens hoje participam, é o mercado. Uma
comunidade comandada por ele. O dinheiro (tomando aqui valor-moeda) penetra e é
dono das nossas comunidades, de modo que ele, nos põe no espaço e no tempo de
maneira nova. Nós que andamos em função dele. Nós moramos por ele. Casamos em
função dele. Comemos utilizando-o. Só temos se tivermos dinheiro. O dinheiro re-
comuniza, criando a comunidade do dinheiro. A famosa frase de Agamben vem em boa
hora. “Deus não morreu, virou dinheiro". Visão semelhante podemos perceber quando
Sloterdijk diz que “A verdade é que o dinheiro há muito tempo prestou as suas provas
como alternativa a Deus e que essa alternativa é um êxito operacional. Hoje em dia, o
dinheiro contribui mais para a coesão das coisas do que poderia fazer um criador do céu
e da terra” (SLOTERDIJK, 2008b, p. 224). O dinheiro trabalha. Não mais os homens. "Work
smarter, not harder". Estamos no arauto de um modo de fazer política e um modo de
fazer economia que não beneficia ninguém, nem mesmo os que pensam que estão sendo
beneficiados porque os ricos adquirem dinheiro, mas eles não podem gastar. Há um
limite de gasto para todo mundo. É aí que o capital se alimenta, é uma alimentação da
reprodução do por que os ricos não podem gastar mais que uma determinada quantia.
Chega uma hora em que a única opção dos ricos é re-investir, é aí que o capital sobrevive
e passa a ser uma entidade. Uma entidade reprodutora que faz a hegemonia do número
e da universalização. O capital, e não mais os partidos, os políticos, as classes, os
sindicatos, é o representante de todos nós. Todos nós começamos a trabalhar por ele.
Ninguém mais trabalha pelos e para os humanos, para os brasileiros, para a humanidade,
a universalidade se incorpora no capital. O capital, enquanto tal, é um assexuado. Como
Lazzarato aponta, o capitalismo financeiro não é um tipo de “desvio” do capitalismo. Não
é que o capitalismo “nasceu” para ser industrial e produtivo e de repente, ele tem um
ponto fora da curva e vira financeiro – improdutivo. O capitalismo financeiro é a
237

realização plena do capitalismo. O capitalismo industrial e comercial não completa ou


realiza a função do capitalismo. Quem completa o capitalismo é o capitalismo financeiro,
porque finalmente o objetivo do capital que é produzir a si mesmo da maneira mais
abstrata possível, é quando não se precisa mais produzir mercadorias ou ter alguma
manufaturação para produzir capital, mas o estar em um modo de suspensão do dinheiro
gerando dinheiro. A realização plena do capitalismo é essa. É fazer que o capital encontre
um local onde ele se reproduza sem passar por condicionantes históricos: homens,
pessoas, mercadorias, produtos. Quando ele se realiza, vemos que a função do
capitalismo é o acumular o capital.
Sloterdijk (2002, p. 29):

O capital cinético faz explodir velhos mundos, não porque tenha algo contra
eles, mas apenas porque é seu princípio não se deixar deter. Não pode fazer
outra coisa senão pôr as circunstâncias a dançar ao som de melodias
aceleradas. Põe rios de mercadorias a correr, frotas a cruzar, escadas rolantes
a deslizar, atmosferas a mudar, faunas a desaparecer. Já lá vão os tempos
ingênuos, em que era dado aos homens pensar que se tinham de mover para
que o mundo andasse para a frente. Entretanto, o movimento, o movimento
puro, passou a andar à solta. Enquanto os amáveis defensores dos avanços
alcançados nos tempos modernos se debruçam sobre teorias do
comportamento humano e discutem acerca de normas da fundamentação
(última) da ação (com certeza que em breve serão promovidos a diretores dos
Parques Nacionais da Modernidade, que hão-de ser criados dentro em pouco),
espalha-se pelo resto do mundo uma maldosa suspeita: talvez a cinética seja
o destino?

A acumulação maior e sem condicionantes, e talvez, sem controle. Byung-Chul


Han diria “O excesso de liberdade individual prova em ser um excesso de capital”. O
dinheiro que molda a sociedade, já que não se produz valores, dado que não se tem que
produzir mais mercadorias, nós ficamos com a essência do capitalismo em produzir valor.
Quanto mais a situação for abstrata, ou seja, colocar a mercadoria de lado, e apenas
induzir o consumo, por conta do fetiche do dinheiro, não mais das mercadorias. O
dinheiro cria uma situação de consumo acumulativo. Se compra 10 carros, mas não se
pode utilizar 10 carros ao mesmo tempo. Se o capitalismo nos dá infinitas possibilidades,
não se verifica infinitas possibilidades quando se exerce demandas finitas – uma pessoa
que pode exercer infinitas possibilidades. Um poder de vida e de comando sobre nós o
dinheiro exerce. O comando saiu da mercadoria e passou agora para o dinheiro. O
dinheiro enquanto número numa conta, ou que nós deveríamos ter. O cartão de crédito
238

vira o abridor de um leque das infinitas possibilidades. Um dinheiro sempre disponível


desde que paguemos os juros. A indução de demanda feita pelo dinheiro. O ápice da
reprodução onipotente. É aí que a teoria marginalista fraqueja. A lei de Pareto parece
não ver o capitalismo por essas vias. É a ideia de que um copo cheio d’água não tem valor
por ele, tem valor pela sua sede, então, um copo com pouca água pode valer mais do que
um copo cheio, isso se sua sede for maior. Não depende da sua sede. Se alguém tiver
pouca água, mas uma sede que aumenta, pronto, temos o mais-valor. Essa teoria não
trabalha o elemento central do capitalismo enquanto a indução de demanda feita pela
onipotência do dinheiro. Quando bebemos um copo d’água nos satisfazemos, o copo
d’água perdeu o valor para nós, segundo a teoria marginalista, mas no capitalismo isso
não funciona, pois dinheiro induz consumo. Induz aplicar nele para gerar mais, depois
para forçar uma subjetividade aos desejos mil, de modo que nós somos capazes de beber
não 2 copos d’água porque ele mata a sede. O capitalismo nos diz que não precisamos
da água, mas sim do refrigerante, da Coca-Cola. Não se mata a sede com Coca-Cola, pelo
contrário, quanto mais se bebe mais se quer, esse é o funcionamento de demanda, daí o
poder do marketing e daí o poder do dinheiro fetichizado sobre você porque ele induz
nossa subjetividade ser uma subjetividade desejante. A ideia de que o produto para a ser
auto experimental e auto-intensificante. Que o produto possui um tom de “produto feito
para você”, algo singular, especial, específico para cada demanda, para os diferentes
gostos, cores, raças, vontades e pessoas. A oferta é oferecida como algo que não se para
de querer. De modo que o fim nunca tenha consumo com o cartão de crédito. Chegou-
se ao ponto de que o consumo não precisa ser o consumo de mercadorias e serviços, mas
simplesmente, o consumo pelo consumo, o consumo de investir o dinheiro para realizar
desejos políticos, o de ter poder dizendo que se tem dinheiro. Indução do desejo pelo
dinheiro passado agora como fetiche do dinheiro. O número, e não a mercadoria, passa
a comandar todos. A compulsão não é mais para comprar, mas para gastar. É com essa
estrutura que todos estão presos pelo dinheiro. Uma espiral de gasto em forma de
retroalimentação de seus débitos e créditos, por mais que se abaixo os juros, mais
aumentaremos a compra de todos. Mesmo nos países em que os juros são baixos o nível
de consumo e de gasto é tão viciante quanto. A perpetuação do capitalismo, o
mecanismo giratório do interior do capital em forma de círculo espiral, um globo que gira,
talvez a imagem de que “expansão é tudo” de caráter marítimo globalizante em forma
239

de terras, vire depois colonialista e imperialista tendo como pressuposto o aumento de


consumo, o aumento de possibilidades de escolha, o aumento débitos e créditos para
todos, e colocar todos reféns do dinheiro. O mundo no interior do capital, a capa
envoltória onipresente que nos faz humanos. Onde se tem uma missão civilizatória do
capital. Os participantes onde todos são menos bárbaros, menos conflituosos, onde se
tem menos guerras, possibilita uma condição não uma guerra de todos contra todos, mas
uma paz perpétua, porque paz é bom para os negócios. Até a indústria da guerra participa
no grande cassino do capital. O dinheiro cria seus súditos e devotos. O globo foi envolto
por uma “capa” imunizante do dinheiro. O mundo no interior do capital foi visto como
grandes distâncias ficando menores, lentidão que se acelera, não comunicação em
telecomunicação, não comércio em comércio. Somente com dinheiro é possível se ter
vida e ser humano. Nossa sociedade inscreve como sujeito quem está dentro do mercado
seja como aquele que emprega seja como aquele que é empregado. Seja, assim, por qual
via for, é necessário ainda que seja um consumidor. Sem consumir, ou comprar, você não
é propriamente uma pessoa. Daí a marginalização dos pobres. Não têm emprego. Eles
não compram. Não participam da sociedade. Até porque quando estão (ou quando
estiveram) comprando era parcelado, e hoje, endividados. A situação mais mínima
existencial hoje é a de ter o que comer. Não temos o que comer se antes não tivermos
dinheiro. Dessa forma, a situação inicial de biomecenas passa pela ideia de abundância
para estabilização de vida. Em déficits antropológicos não teríamos chegado na situação
atual. Vemos tudo e todos se ajoelharem ao dinheiro. Casamentos, alimentação,
locomoção, moradia, internet, notebooks, livros, tudo passa pelo filtro do dinheiro e por
essa malha que arrodeia o globo. A participação de todos com todos se faz por uma voz
e uma língua que todos falam e entendem. Afinal com o dinheiro, dizemos hoje em dia,
“você está falando a minha língua”, quase sempre no sentido de um flerte, um
oferecimento (cinismo?). A língua universal que todos entendem, compreendem,
aprendem, apreendem. Dessa forma, todos aqueles excluídos dessa língua como índios,
drogados, sem tetos, moradores de rua, desempregados, imigrantes, os sem dinheiro,
lutam por uma participação e numa interiorização de um mundo como esse. No fim, o
que querem é adentrar nas bolhas de conforto. Fora disso são estranhos. Numa não
humanidade, eles poderiam ser considerados não humanos em sua abstenção da não
participação de global player. Por que o dinheiro deveria vir com uma menção a respeito
240

de Deus? Por que afirmar a fé, ou seja, a confiança em Deus, exatamente no dinheiro?
Por que a cada transação econômica aceitar junto a ideia de que se tem fé em Deus? Por
que quando as coisas vão bem, falamos “graças a Deus”? Não vemos a fortuna como uma
mulher? Não contamos com a sorte como uma loteria que nos premia aleatoriamente?
Não vemos em carros os dizeres “foi Deus quem me deu”? Por que Deus no dinheiro?
Por que nos empreendimentos pedimos ajuda a Deus? Comprar, vender, trocar, estocar
deixa de ser apêndice de algo chamado economia para se tornar expressão propriamente
humana. Não à toa nasce na modernidade uma antropologia centrada no trabalho (Marx)
e no empreendimento (Weber), Comte e Durkheim (Positivismo-Progresso) ambas as
atividades que aprendemos a naturalizar como aquilo que nos faz viver, ou seja, “ter
dinheiro”. Na pós-modernidade ou na contemporaneidade há o fim justamente das
metanarrativas com base em alguma ética de trabalho para termos o mercado e o
dinheiro como universais. Ter Deus, ter o elemento universal, pertencer a uma só família,
a humanidade, é tudo o que recebemos do dinheiro. Se o mercado capitalista
desaparecesse hoje e, com ele, a forma como o dinheiro está posto, não saberíamos
quem somos. Teríamos de buscar uma nova unidade, e certamente entraríamos por algo
com legitimidade pouco garantida. Lugares que tentaram abolir o mercado sentiram isso,
e criaram letargia, nacionalismo barato, culto a pseudo-deuses, burocracia emperrada e
desespero. Sabemos muito bem qual foi o fim do sistema soviético. Do mesmo modo que
há pouco tempo ninguém conseguia emplacar como humano se não era filho de Deus,
agora ninguém é gente se não receber a benção do dinheiro – e isso deve ser avisado
nele próprio, no papel moeda, lembrando todos nós que onde chega o dólar, chega o
novo pai que garante a todos que portam o dólar se dizerem irmãos. Se um dia as
transações forem de fato todas virtuais, sem nenhum papel moeda, já teremos absorvido
a ideia de que “Em Deus nós confiamos” como uma mensagem do dinheiro, não de Deus.
Com o arauto do capitalismo, o capitalismo financeiro, o capital se reproduz por
ele mesmo. No livro III do O Capital, Marx trata sobre o capitalismo financeiro que
naquela época era um setor do capitalismo não mais o mundo no interior do capital, o
capitalismo global como hoje. O Brasil, em especial os últimos governos abriram espaço
para o capital sendo ele um elemento corporativo. Bolsonaro não enfrenta nada e vai
cedendo a grupos e corporações, se constituindo em um mínimo eu, em um eu da
autoconservação, esguio, recolhimento, distanciamento, diminuto, que não aparece.
241

Walter Benjamin cunhou uma fórmula para explorar esse fascínio por aquilo que escapa
do humano e que, ao mesmo tempo, faz o humano “sex appeal do inorgânico”. A fórmula
de Benjamin abarca uma constelação de temas, do crânio descarnado como alegoria
barroca até o fetichismo da mercadoria tal como Marx define em sua obra O Capital. Em
comum, essa mescla de fascínio e repulsa pelo inanimado. Benjamin dá como exemplo a
moeda. O sex appeal do inorgânico não está apenas na visão do corpo humano como
manequim ou androide, está também no dinheiro. Alguma força deve novamente
aparecer e se dizer “representante dos brasileiros”, os brasileiros não estão só felizes em
representar o capital, só acumulando, é preciso gastar. É preciso reativar o dispêndio para
o gasto. Se os bancos possuem excedentes de dinheiro que o governo “compra” com
títulos da dívida, não poderiam eles gastar ou doar para não se ter, como uns dizem,
“risco de inflação”? As chamadas “operações compromissadas” não são feitas por sobras
de caixas em bancos? Por que eles não fazem dádivas, doam para o museu de Notre
Dame se reconstituir, usem o mais guardado para causas ambientais, construção de
hospitais, combate à fome? É aí que entra o M.M.T. A devolução da compreensão de que
podemos gastar sim, de que não temos medo de dívidas, de que não haverá inflação, de
que a confiança pode reconciliar uma sociedade. A felicidade de todos agora depende da
Bolsa. Ué, mas vocês são investidores? Se não são, porque a comemoração? Entra aí, o
capital financeiro. Se estamos jogando futebol, quem faz a história do jogo? Nós. Acabou
o jogo eles ganharam. Eles quem? Nós só olhamos o jogo e não o campo. O palco do jogo
é feito por quem? São relações sociais que se criaram transferindo o crédito da produção
para a especulação da bolsa. Aquela moedinha primeira que gera dinheiro por ela mesma
e faz a máquina funcionar.
Os gregos antigos nos ensinaram a narrativa da tragédia. Nela, nunca se disse
que não eram os homens os autores da própria história. Os homens eram de fato postos
como fazendo a sua história, mas, por mais que quisessem fugir do destino traçado pelos
deuses, pegando vários caminhos diferentes e mudando de percurso, sempre
terminavam por realizar o traçado desenhado pelas divindades. Até hoje esse tipo de
narrativa faz sucesso. A consciência popular diz: “ninguém foge de seu destino”, “Deus é
destino”. Os historiadores modernos, entusiasmados pela ideia de aventura, típica do
mundo do Renascimento, deram crédito para os indivíduos intrépidos. A tragédia se
separou da escrita da história definitivamente. Ela passou a contar para o teatro e tão
242

somente para o teatro. Os pensadores vieram a falar de um outro modo e estilo,


conferindo um poder de decisão aos indivíduos (noção esta então recém-criada) jamais
vista antes. Guardamos desse tipo de história, em nossos manuais escolares, as aventuras
de Cristóvão Colombo, de Vasco da Gama e tantos outros. É nessa linha que, até hoje,
falamos de Napoleão. Não raro ainda falamos de Stalin e Hitler assim. Nos dias de hoje,
quando a regra é a auto-intensificação, acreditamos na filosofia de Sartre em sua
colaboração maior com a ideologia do momento. Para entendermos como nos vemos
hoje em dia, vale aqui repetir Sloterdijk: “O indivíduo é simplesmente o homem sem
missão, o não-mensageiro”. Constitui uma espécie de produto semiacabado o que, de
resto, é precisamente aquilo que a educação moderna pretende fazer da criatura
humana: produtos semiacabados que devem trabalhar-se até se tornarem produtos
acabáveis utilizáveis – o que quase ninguém alcança. Foi Sartre quem forneceu a
ideologia deste fenômeno ao dizer que o importante é fazermos alguma coisa do que
fizeram de nós. O homem moderno é aquele ser inacabado, que por ser inacabado,
precisa de acabamento, reconstrução, em uma eterna auto-elaboração, projetos
pessoais, educacionais, culturais, biogenéticos. Não há casa comercial que não queira
colocar na TV uma propaganda a respeito do quanto pode oferecer “serviço
personalizado”. Serviços de bancos personalizados, serviços streaming, tudo passa para
uma forma do “make yourself”. O marketing contemporâneo aprendeu a apostar na
noção de indivíduo, no gosto das pessoas do nosso tempo de serem indivíduos. A noção
moderna de indivíduo inclui entre suas possibilidades a noção de sujeito, ou seja, o
indivíduo que se individualiza porque é cognitivamente autônomo e moralmente
responsável. É um conceito em filosofia e também uma típica noção liberal, nem sempre
criticada pela esquerda de uma maneira produtiva, culturalmente enriquecedora. Marx
atacou o liberalismo porque entendia que este prometia colocar na face da Terra o
indivíduo iluminista, mas, de fato, não poderia realizá-lo. O liberalismo não poderia
cumprir sua promessa, uma vez que estando atrelado ao capitalismo não permitiria
qualquer autonomia ao indivíduo e, então, funcionaria apenas como peça ideológica. No
entanto, os marxistas em geral não seguiram Marx nisso. Eles fizeram uma crítica menos
promissora. A esquerda se tornou mais próxima da crítica da direita, dos conservadores,
substituindo “indivíduo” por “individualismo” para, em seguida, tornar esta última
palavra pejorativa e então contaminar com ares pecaminosos a primeira palavra. Querer
243

ser um indivíduo foi tomado como um erro, uma vez que todo e qualquer indivíduo nada
seria senão cultivador e fruto do individualismo. O que a direita queria era jogar fora era
a autonomia. Como nunca foi muito sofisticada nos seus atos, a direita chacoalhou o
objeto e, vendo que a autonomia parecia não se desgrudar da noção de indivíduo, jogou
fora tudo. A esquerda foi no embalo. Afinal, no campo da mentalidade popular os
partidos fascistas e os partidos comunistas começaram a ficar parecidos na sua pregação
antiliberal. Não foram poucos os militantes que oscilaram entre estar em um em um ano
e estar em outro no ano seguinte. O que importava para essas pessoas era ficar contra o
“individualismo” da democracia liberal. O liberalismo foi tomado por tais pessoas como
a doutrina do darwinismo social. Liam a doutrina da democracia liberal como que
carregando a bandeira do “cada um por si e o estado para ninguém ou só para os ricos”.
A ideia de uma subjetividade autoconstruída, performática, prática, voltada para
o si mesmo, autodesigners na atividade de se autorrefazer e autocorrigir – Uma operação
que visa desempenho, gasto de tempo, preparação, investimento. A autoconstrução é
tanto uma promessa; quanto uma aposta; quanto um não-poder-ser-um-não-ser. Não sei
o quanto nós gostaríamos de responsabilizar Sartre pela ideia de que, agora, temos de
contar a história como sendo feita a partir de nossa intervenção pessoal e voluntariosa,
uma história de reconstrução pessoal, de reinvenção (como está na moda falar). Mas
sabemos bem que é assim que temos, ao menos alguns de nós, nos empenhado em
narrativas históricas. Essas narrativas são diferentes daquelas que Marx, também no
início da modernidade, exatamente por seu respeito a Hegel, nos ensinou escrever.
Narrativas como as atuais, que fazem sucesso entre nossas esquerdas, esqueceram
completamente de Marx, e passaram a gerar histórias em que os indivíduos agem como
protagonistas exclusivos dos feitos. Mas, o que é mais grave, ao serem postos como
donos de todo destino, logo esses indivíduos se apresentam também como senhores do
bem e do mal, agindo então como mentirosos espertalhões, que sem convencimento do
que dizem, enganam uma massa de tolos, ou seja, todos nós. Esse último tipo de narrativa
no livro de Jessé de Souza chamado A Elite do Atraso (2017). É uma narrativa em que nós
todos somos vistos como tontos, bobinhos, e a Lava Jato associada à Rede Globo, como
donos do mundo e do destino, e sendo formadas por pessoas de profunda má fé, e que
nunca fizeram qualquer denúncia séria sobre a corrupção. O que fizeram foi apenas
exercer suas funções de bandidos com poderes quase mágicos de contarem mentiras,
244

com o objetivo de nos levar a entregar a Petrobrás para estrangeiros milicianos. Esse tipo
de narrativa é, a meu ver, menos útil para mim. Não vejo como uma pessoa que a vive,
que se situa nela. Inclusive, uma narrativa assim poderia estar extremamente a serviço
de uma visão generosa demais para com os políticos da coalização governista imperante
nos últimos entre 2002 e 2018. Um trecho do livro do Jessé exemplifica bem o que quero
dizer. Ele menciona que a Globo, em associação com a grande mídia a maior parte do
tempo, e a Lava Jato fizeram o contrário disso tudo (proteger o patrimônio nacional) e a
nós todos de perfeitos imbecis. A título de combater a corrupção dos tolos, turbinaram e
legitimaram a corrupção real como nunca antes neste país das multidões de
imbecilizados. Nesse tipo de narrativa, a Globo e os homens da Lava Jato surgem como
deuses malévolos, enganadores, e nós, então, tontinhos que precisamos do grande Jessé
para deixarmos de sermos os imbecis que somos, para abrir os olhos e ver como que o
único objetivo de tudo era a entrega do nosso petróleo aos americanos. “O petróleo é
nosso” proclama Jessé, como se estivesse nos anos 50, servindo de bucha de Vargas que,
na verdade, tomou tal frase para si após ter prendido o real defensor dela, Monteiro
Lobato. Para escapar desse tipo de narrativa, que repõe a história de indivíduos
poderosos e a completa com chistes sobre mocinhos e bandidos, nada melhor que
reinvocar Marx. Para este, as relações postas pelo capitalismo invertem a relação sujeito-
objeto. As relações sociais e o dinheiro, que se completam formando o capital, saem da
condição de objetos e se transformam em sujeitos. Nós viramos os objetos. Somos
coisificados, mas não nos tornamos tontos. Marx fornece a narrativa em que o capital se
põe como sujeito e, então, não traça o jogo e o vencedor, nem chama os jogadores de
bandidos de um lado e tolo de outros, mas, o que o capital faz, e o que é o importante
de ver, é que, antes do jogo, ele traça o campo do jogo e a escolha do desporto praticado.
Quem faz essa escolha é o capital. Ele é o sujeito da história. Se não atentamos para os
seus deslocamentos, se não vemos que o jogo é jogado no campo do capitalismo
financeiro, e não mais no capitalismo comercial e industrial, ficamos perdidos, e
passamos a achar que a Globo e a Lava Jato são feitas de deuses que sabem tudo e
mentem, e que nós não sabemos nada e que somos enganados pela nossa idiotia. Eu
falaria assim para Jessé: “Desculpe-me meu caro, mas eu não sou idiota, eu não preciso
de sua narrativa pseudo-reveladora para entender um pouco da realidade que vivo”. Falo
isso por poder ver que os poderes da Lava Jato e da Globo não advém da mentira, mas
245

do fato de estarem na perspectiva fortalecida de quem é o sujeito da história, o capital.


Quando pegamos um livro como o do professor Ladislau Dowbor chamado A Era do
Capital Improdutivo (2017), temos o perfeito antídoto à narrativa de Jessé de Souza.
Nesse livro, o que interessa é o campo de jogo. Como o capital financeiro se fez presente?
E então, por sua obra, como ele fez pessoas simplórias, que pronunciam que a bolsa
aumentou o Brasil vai bem ou “Com a reforma da Previdência, o dólar vai baixar e a
gasolina também” acabam por ficarem ideologizados? Os que aparentemente mentem,
de fato não mentem não porque são virtuosos, mas simplesmente porque são simplórios
e acreditam no que fazem. Ou acreditam no que fazem porque estudaram e encontraram
na narrativa auto justificadora do capital um aspecto racional. Então eles, os poderosos,
falam coisas que acolhem muito da verdade. A corrupção denunciada pela Lava Jato
existiu. Essas pessoas simplórias que ganharam o poder e o prestígio e começaram a falar
grosso, durante um tempo, assim puderam agir porque falam a voz do capital. Jogam o
jogo traçado pelo campo posto pelo capital. Não destoam dos interesses do dinheiro-
que-gera-dinheiro-sem-que-ocorra-produção, que é o mundo da felicidade da Bolsa de
Valores.42 Se olhamos assim a história, pela via de Marx, então podemos tratar nossos
adversários políticos com seriedade. Entendemos a visão deles. Passamos a respeitá-los
diante do que acreditam, e nos qualificamos para a discussão com eles, invocando o
direito de fornecer nossa narrativa, por exemplo, para as mudanças das leis trabalhistas
e a reforma da previdência. Não fazendo isso, não poderemos sentar à mesa para
negociar e propor alternativas, pois, afinal, não teríamos o que falar para bandidos que
sabem que estamos certos, mas teimam em advogar suas saídas para a crise mesmo não
acreditando nelas. Os homens do governo atual, de Bolsonaro, e os seus intelectuais,
estão convictos que suas explicações da crise brasileira são corretas (se é que existe
crise). E em parte, para os interesses do capital, estão mesmo. Eles falam da crise gerada
pela necessidade de combater a inflação, não deixar a corrupção reaparecer, e então
fazer o “ajuste fiscal”. Nós, vendo como o capitalismo financeiro funciona, queremos
colocar que a crise é devido à dívida, que deveria ser auditada, e que se não trouxermos
o capital para o campo da produção, com algum controle sobre a financeirização, não

42
Matéria: G1. Uber Estreia na Bolsa de NY, 2019. Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2019/05/10/uber-estreia-na-bolsa-em-ny.ghtml>.
Acesso em: 10 Mai. 2019.
246

teremos chance de sobreviver. Podemos sentar para conversar e podemos pôr na mesa
a nossa narrativa, levando a sério a deles, porque não estamos nos sentando com gente
que sabe de tudo e que só nos ludibria com sacanagem, ainda que saibamos que os
adversários jamais seriam canonizados pelo Papa Francisco. Quando abandonamos o
capital na sua tarefa invertida de ser sujeito, e começamos a olhar só para o jeitão de
Dalagnol e William Waack (até você Waack que no documentário do Brasil Paralelo
chamado de: 1964 - O Brasil entre Armas e Livros diz que “a esquerda é amoral”, seus
cabelos estão ficando brancos demais) acreditando no poder enganador deles sobre nós,
e achando que isso é a história, pegamos uma via que não é a da minha preferência. A
narrativa de Jessé serve para a rede Globo fazer novela, ela até nos mobiliza
emocionalmente, mas ela ajuda pouco na hora de enfrentarmos a política.
Os investidores estrangeiros não esperam reforma política nenhuma. Eles são
rentistas, cotistas, fazem aplicações, investem em fundos, são acionistas. Com ou sem
reforma eles continuam ganhando dinheiro e fazendo uma retroalimentação do crédito
nesses locais. Reforma Previdência não vai criar empregos, e como vimos, nem a
flexibilização de leis trabalhistas. O indivíduo é tudo, a comunidade nada. Estamos
falando de um homem associal. Associa-se se quiser através de um contrato. Um contrato
social. Uma ficção que nos leva a acreditar que fazer um depósito individual todo mês
criará a possibilidade de receber previdência lá na frente. O capitalismo financeiro jogou
os empresários para fora da condição de empresários. Os empresários se retiraram de
suas empresas para colocarem no lugar grande executivos, administradores, coaches
para dirigir o capitalismo, com isso, os agentes do capitalismo (inicialmente empresários),
já não se importam mais com suas empresas porque eles se transformaram em acionistas
de outras empresas, Operações Binárias, aplicações, Holdings, traders como um
comerciante. É pessoa ou entidade, em finanças, que compra e vende instrumentos
financeiros como ações, títulos, commodities, derivativos e fundos mútuos na qualidade
de agente, hedger, arbitrage ou especulador ou vivem em um sistema de jogatinas (todos
participantes de um Cassino, vemos hoje em dia entretenimento como gamers sendo
profissão).
247

Guilherme de Lorris e Jean de Meung. O Romance da Rosa. Bodleian livraria MS Douce, folha
58r.

Quando Walter Benjamin viu o capitalismo funcionando no início dos anos de


1910-1930 teve um insight que a Escola de Frankfurt também tomaria para si. Eles viram
o Mickey do Walt Disney. “O aprendiz de feiticeiro”. Toda a Escola de Frankfurt teve a
intuição correta. O capitalismo é isso. É o aprendiz de feiticeiro. Ele solta as mágicas de
uma tal forma, que elas tomam conta do mundo. Se tornam imparáveis e incontroláveis.
Não é mais possível colocar as magias na caixa. Nós estamos vivendo isso. O capitalismo
está andando sozinho ainda mais do que antes. Como Agamben diz, a “profanação”
refere-se aos interstícios da cultura capitalista, na qual se expressa pela ultrapassagem
da economia de mercado pela sociedade de mercado, pela universalização do abstrato e
do fenômeno do fetichismo. É isso com que fez do século XIX, o século do progresso
tecnológico e o da proliferação do espiritismo. Neste século um caráter fantasmagórico
toma conta das coisas e da modernidade. Assim como a mercadoria escapa das mãos de
quem as produziu, deixando de ser produto, toda uma animização cria um espectro,
espíritos e coisas passam a se separar de sua substância própria e passam a dominar os
vivos, adquirem vida, animismo, vontade, subjetividade, humanização, automação e
independência. Ver o capitalismo como um conto de fadas não seria sua melhor
248

abordagem? Não se lê O Capital, sem ter Metamorfoses de Ovídio ao lado, além disso,
não se deve ler esses dois livros sozinhos. Todos os dias não seriam um Dia das Bruxas?
Quando os Portugueses chegaram ao Brasil, eles já carregavam uma série de problemas
em relação à outras religiões que não a cristã. Eles estavam imersos em um mundo
europeu que passou mil anos assistindo o embate entre, o paganismo nórdico dos
bárbaros, e o cristianismo, nascido do paganismo grego. Então, temos uma religião que
tem um medo, uma visão dotada de folclore às outras religiões que podem mexer as
coisas sem o contato físico. Enquanto o cristianismo trabalha com metafísica, e se
prepara para uma religião racional (a montagem da Igreja), as outras religiões do Norte,
trabalham com a ideia de magia, trabalham com a ideia de que se é possível mover coisas
extra fisicamente. Esta visão é tão predominante na Europa que temos até hoje aquele
desenho chamado de Asterix. O Asterix pertence a uma tribo pequena de gauleses de
influência nórdica que domina todo o exército romano antes da constituição da França
por conta da poção mágica de um druida. Uma poção mágica que dá para homens força
para a luta. Bruxas da floresta, todas elas com poções, livros, símbolos que não tem nada
a ver com o cristianismo, mas com o resto da invasão bárbara. Se voltarmos para a palavra
de origem africana “fetiche”, veremos comércio português com a África. Missionários e
portugueses comerciantes viram que na África Central haviam rituais bem peculiares
onde se faziam estátuas com traços humanos bastante horripilantes e praticavam um
ritual em que deviam dotar essas figuras, esses fetiches incompletos com as forças da
alma. O que mais tarde daria origem aos “homens de prego do Congo”. Cada prego no
fetiche é um tipo de maldição interiorizada no corpo do fetiche. Isso foi visto também na
1ª Guerra Mundial quando as pessoas cravavam pregos em estátuas e figuras em
Hindenburg. Cada prego uma doação. Mas a ideia de martelar pregos em um general de
campo, por exemplo, alguém reverenciado de serem autorizados a fazê-lo é interessante.
Uma encarnação de uma ideia elementar de uma figura, um gesto que apela até aos que
nunca tinham realizado isso. Então, as qualidades de pessoas reverenciadas e valiosas
são canalizadas às mercadorias pela divisão de trabalho e inconscientemente são
cravadas na mercadoria e depois retornam ao homem pelo ato da compra como
mercadoria. Mas também pode ser uma bala, um tanque Tiger. Como uma forma de que
um “gesto alienante” pode ser inserido em qualquer coisa, pode ser sedimentado em
tudo e todos. Como algo que flui para o produto. Algo que alguns pensadores da
249

Antiguidade já haviam pensando com o conceito de impulso para designar este fluxo de
intenções subjetivas até e no produto. Digamos que isso seja uma visão de um
antecedente oculto da noção moderna do trabalho. Já que se parte da observação
mecânica do trabalho de que quando um objeto é atingido retém a energia cinética que
recebeu. A tendência é, portanto, quando uma bola de bilhar por exemplo, é lançada e
atinge a outra, a que foi lançada possuir energia cinética, velocidade e perder energia. E
a bola que foi tocada, se move, ganhando velocidade, energia cinética. Essa transferência
de energia tem algo de “místico” ou misterioso. O português depois trazendo o africano
para o Brasil, ele reproduz todo este mundo que está incrustado na mentalidade dele (o
português), como algo que precisa ser combatido, a magia dos demônios. O estranho é
que o português não faz a mesma coisa com os índios. Eles só fazem a chamada
catequização, isto porque, quando os índios dizem que acreditam no Sol, na Lua como
entidades demiúrgicas, para com isso, o português não vê problema. Mas quando o
africano mata o animal ou faz o chamado vodu, o espírito, a magia negra, aí se vê como
um problema. Aí surge o medo. As pessoas que mais têm preconceito com as religiões
afro e semelhantes (despachos, macumba, terreiros, animais mortos, etc.) são
justamente aqueles que temem os espíritos, são os evangélicos e uma certa parcela de
católicos. A ideia geral que as pessoas têm das religiões africanas, passa por um tipo de
contato com deuses poderosos do cotidiano, eles movem coisas pelo pensamento, pela
alma ou pelo desejo. Latour registra que houve um conflito quando do contato dos
portugueses com as primeiras sociedades acerca do sentido da palavra fetiche. Segundo
Latour, os portugueses não entendiam como um objeto feito pelas mãos dos homens
poderia conter nele um poder sobrehumano. Ironicamente Latour diz: “Pena que os
africanos não tenham devolvido o elogio. Teria sido interessante que eles perguntassem
aos traficantes portugueses se eles haviam fabricado seus amuletos da Virgem ou se estes
caíam diretamente do céu” (Latour, 2002, p. 17). Se tem no imaginário coletivo que eles
são entidades malignas capazes de causar a desgraça do outro, de penetrar na casa do
outro, de criarem um “chama” para coisas ruins, de não estarem afeitos à Deus. Talvez
daí tenha surgido um dos preconceitos que temos hoje. De associar o preto como alguém
que tem dons de Houdini. Aquele que usa de sua mão para pegar coisas sem ser visto,
aquele que possui uma “mão leve”, quem consegue transferir coisas de lugares sem ser
visto (o furto, o roubo, de uma bolsa?), ou aquele que consegue escapar de situações
250

inescapáveis (de perseguições com fuga, artimanhas, molejo, gingado, a malandragem,


mandinga). Donos de escravos que deixaram seus escravos presos, amarrados, e no dia
seguinte, encontram as correntes vazias não pensariam que haveria aí algo de mágico?
Não poderia vir disso a ideia de que o preto tem um gingado, um jeito de ser que
consegue, por exemplo, de fugir da lugares e coisas? Não é por acaso que Papa Midnite
é um personagem fictício da série Hellblazer publicado pela editora Vertigo da DC
Comics? Midnite é um vodu xamã e empresário, que vive desde a Revolução Americana.
Aliás, Fumaça e Espelhos é o título de um livro de Neil Gaiman, um dos maiores escritores
da atualidade. Fumaça e espelhos não são as ferramentas mais utilizadas pelos mágicos?
Mágicos não fazem truques com moedas? Não as fazem desaparecer e multiplicar? Para
Heráclito, a luz da zona elevada nasce do logos de quem se diz dirigir o mundo. Pensar
em conformidade com o logos quer dizer pensar numa sonda lógica como pertença
extensiva e grandes nexos de união. Uma logos-vigília diferente da vigília da maioria dos
(hoi, polloi e kakoi – medíocres). Seu ódio maior dirigia-se aos xamãs e aprendizes de
feiticeiros como alógicos, pois se regozijavam no escuro e insocial, magos – iniciados em
mistério que andam e vagueiam na noite. O espaço de vigília da cidade era um espaço de
paz surtido pela convivialidade que tem de ser continuamente distanciado da guerra e da
demência. Por isso, Heráclito observa com fúria as tendências que levam à destruição do
mundo de vigília de comunidade: a noite seria o estado em que cada cidadão descia e se
isolava para um descer ao “próprio mundo”, a inclinação para a noite das opiniões
privadas; o surgimento de feiticeiros e hipnotizadores que traziam para a cidade
divindades extasiantes que tinham sido deixadas de lado a fim de tornar impossível a
claridade do discurso da Ágora; a passagem de mestres em drogas e ilusões que, sob o
pretexto de ofereceram iluminações mágicas aliciavam os cidadãos para ausências
malignas extremamente mais profundas até deixarem-nos perdidos para a finalidade da
vida comunitária na cidade. Os que “descem ao seu próprio mundo”, são idiotas, isolados,
adormecidos anônimos, apolíticos, alógicos, eles descem ao Hades sob a cidade. Os
homens que deixam de ser cidadãos e reúnem-se com seus mortos, no local privado,
renunciam ao comum, dormem, são sonâmbulos que se fazem passar por uma condição
de vita citadina. As forças ocultas emergem da noite e levariam um cidadão atrás do
outro, onde tais forças tomam o leme é o fim do ideal da vida-polis, onde a liberdade de
todos seria uma função da sabedoria (sophon – o dia é o sábio divino que se mantém em
251

si mesmo numa ininterrupta claridade do saber do Uno) dos cidadãos já não vigoraria o
axioma “compreender é a suprema virtude” – sophronein. O mesmo ocorreria com a
hybris. Com inspirações noturnas através de demônios privados, este desvario prepararia
a inundação do público pelos distintivos e intervenções autoritárias de uma vontade de
magia, idiota, excessiva. Ela desintegraria a coligação primordial das inteligências
humanas que deveriam se juntar para a vida comum, uma exteriorização do delírio como
forma de utilidade pública. O protocomunismo da atenção de Heráclito tomaria a cidade
onde só se pode manter como forma do mundo numa espécie de transição do velar ao
saber.
A atividade típica da filosofia como uma reflexão, não é re-fletir? Quem não
reflete, não são os espelhos, e nós mesmos ao darmos “voz aos pensamentos”, uma
atividade de se voltar, de se refletir para si mesmo? Somos duplos porque temos a
capacidade de re-flexão. Nós pensamos, mas ainda pensamos que pensamos. Nós
sabemos de uma coisa e sabemos que sabemos, além disso, perguntamos para nós
mesmos e esperamos respostas novas. Embora, devêssemos saber já a resposta já que a
pergunta á para nós mesmos. Temos um outro dentro de nós, a chamada alteridade (o
alter-ego). Este alter-ego é formado pelo fato de nós sermos duplo antes de nascermos.
Já nascemos de início como duplos (não chamamos a professora de tia? A escola não
seria uma extensão da mãe? A professora não é tia e mãe ao mesmo tempo?). É por isso
que a linguagem aparece lá pelos dois anos. Ela não aparece porque nos socializamos,
mas porque nos socializamos a partir de sinestesias internas. Uma espécie de psicologia
esférica, política esférica e biologia esférica. Simbolicamente na modernidade veríamos
uma perda dessa noção antiga de duplicidade. A modernidade é a quebra com isso. A
ideia do ser se bastar por si mesmo, individual, isolado. Vemos os aventureiros solitários
(como Cristóvão Colombo). Depois o burguês solitário, o self-made man (o se fazer por si
mesmo), depois o proletário solitário (o homem que sai e perde seus instrumentos e vai
para a cidade sozinho vender sua força de trabalho), composições de um lema moderno
do liberalismo. Rastros como esse nos apresentam a psicopolítica moderna de como nós
fomos nos individualizamos. Demos um passo para que a individualização funcione como
a ideologia do isolamento (televisão, espelho e internet).
Marx em O Capital de certa forma, cria uma teoria de sistemas de aventuras.
Anselm Jappe e Guy Debord foram fortemente influenciados por Marx e pelo marxismo.
252

Não é curioso que Jappe tenha colocado o título de sua maior obra de “As Aventuras da
Mercadoria” e Debord “A Sociedade do Espetáculo”? A viagem pelo mundo da alma é
sobreposta pela viagem no mundo do dinheiro que consiste em um mundo na concepção
de metamorfoses. Assim entramos em um mundo que na concepção de James Royce
consiste inteiramente de metamorfoses. Uma história sem fim? A melhor forma de
representação da análise de Marx sobre o capital é através de uma teoria do conto de
fadas (Os Três Cabelos de Ouro do Diabo). E nos contos são as mulheres, no caso, a avó
do diabo que ajuda o menino que nasceu com sorte a conseguir os três fios de cabelo.
Essas figuras “auxiliares” podem ser vistas como artifícios, mas também como amuletos.
Marx foi o primeiro a compreender que a mercadoria nunca é o que aparenta ser, mas
sim, apresenta-se com um caráter de amuleto. Na mercadoria se ocultam muitas pessoas
nela ou atrás dela. E todas as coisas, são na verdade, pessoas encantadas. Só um
verdadeiro contador de histórias poderia penetrar completamente no mundo de Marx.
Kafka nos deu uma enigmática definição sobre a magia, ao escrever que, se chamarmos
a vida com o nome justo, ela vem, porque “esta é a essência da magia, que não cria, mas
chama”. Um utensílio que temos hoje em nossas portas é o chamado olho mágico, ele
não faz nós vermos coisas através de uma porta? Aqui o olho mágico é aquela pequena
abertura nas portas da frente para se olhar quem chega em sua casa. A campainha não é
outro utensílio para se chamar alguém. O ding-dong? Tele-comunicação? Comunicação
à distância? Não seriam as sirenes vindas das sereias com seus cantos? A palavra sereia
ou sereias em inglês é siren ou sirens. Para uma tradução para o português, as sereias
deram origem às sirenes que basicamente tem a função de tocar e despertar algo, um
alerta, um alarme ou mesmo uma canção ou barulho. O nome sereia tem sido dado às
máquinas uivantes em fábricas, sinagogas, alarmes ou em guerras quando o inimigo está
vindo ou num iminente ataque aéreo. Não se pode ver isso no filme Dunkirk (2017)?
Parece que ouvir uma sereia pode despertar um tipo de pulsão primitiva nos ouvintes,
um “alarme coercitivo” funcionando como uma desinibição do sujeito. Por essas
considerações é que Descartes no seu cogito cartesiano pressupõe um não ouvir que se
toma por um puro pensar. O não ouvir refere-se à voz do pensamento que deambula
pelo pensador. Ele fica absorto no conteúdo do pensamento sem nunca reparar no som
da voz na sua mente pensadora. Ele não percebe de que o seu eu, é um eu-penso-eu-
existo que significa, eu ouço algo em mim, falar de mim ou dos outros. O sentido do cogito
253

se visto por esses ouvidos se modifica. O som interior da “voz do pensamento”, se é


ouvido, torna-se íntimo, esta deveria ser, e é, a primeira e única certeza que se pode
ganhar ou ter na forma de auto experimentação. “Ouço algo em mim, logo, existo”. Estou
certo de poder concluir minha existência a partir do ouvir em mim, um cogito sonoro. O
cogito sonoro como audição interior, nos oferece uma espécie de certeza com a qual,
pura e simplesmente, não se pode nem deve fazer nada enquanto durar a intimidade do
ouvir-se. A ambição também ensurdece na teoria do conhecimento. Uma definição já
vista anteriormente na tradição cabalística e necromante, segundo a qual a magia é,
essencialmente, uma ciência dos nomes secretos. Cada coisa, cada ser possui um nome
manifesto e um nome secreto, ao qual não pode deixar de responder. Ser mago significa
conhecer e evocar (conjurar) esse arquinome. Uma grande lista de nomes surge em
livros, pergaminhos, escrituras, com as quais o necromante garante para si o domínio
sobre potências espirituais. O nome secreto é para ele apenas a sigla de seu poder de
vida e de morte sobre a criatura que o traz. “A lista é vida”, frase de um grande filme.
Uma das qualidades dos ajudantes não é a de serem tradutores? Em Michael Ende, não
vemos os três personagens roídos pelo nada como aqueles que desempenham um papel
de auxiliares? Primeiro, na função de advertência, depois na indicação de caminho. O
ajudante é de casa. Ele soletra o texto do inesquecível e o traduz para a língua dos surdos-
mudos. Em semelhantes formulações, evidencia-se o movimento que durante todo o
século XX, se introduziu na analítica do nada. O nada foi o grande ator com carreira no
plano ontológico popular desde romances, histórias, contos, fantasias, sonhos. O nada
foi tido como uma “matéria” de destruição em massa. Uma lepra ontológica, ele corrói
personagens, como uma morte metafísica das florestas torna as árvores transparentes,
como se a luz que as atravessasse fosse um agente do nada. Otto Rank em O Mito do
Nascimento do Herói (1909), faz uma ruptura das análises mitológicas através das
estratificações dos sintomas secundários e da sua interpretação. Sua grande
originalidade consiste no drama da criança que escapou à morte, aquela que se salvou
por milagre de um pretérito atentado à sua vida, e que mais tarde, se pôs em marcha a
tentativa de sua conversão, de uma criança até então “rejeitada”, em um sujeito de plena
possessão da verdade das suas origens e procedências. A paleontologia do Eu de Rank
volta até à fronteira que separa vida intra-uterina e ser humano pós-parto, se trata do
nascimento da subjetividade heroica do espírito a partir da oculta tentativa de
254

infanticídio. O “padrão comum” é o abandono de recém-nascidos em locais desertos,


montanhas distantes, rios perigosos. Na maior parte das vezes os futuros heróis são
objetos de vontades homicidas por parte do pai ou da mãe, ou de ambos. As vezes
acontecem os abandonos em situações de conflitos políticos e religiosos, desde guerras,
bastardos, perseguições a famílias, crimes. Édipo e Moisés poderiam se encaixar bem.
Uma outra coisa curiosa que reforça o “padrão comum”, é a sorte no meio do azar.
Através de alguma situação milagrosa, sub-reptícia, o acaso, um desígnio, intervém um
outro benfeitor, encontra-se uma mãe piedosa, uma mãe substituta, uma cabra, uma
loba, um pastor, um casal que não pode ter filhos. Esses assistentes providenciais salvam
os entregues à sua própria sorte cujo destino era a morte. Levam os “rejeitados” para
dentro de suas residências, cavernas, palácios. Dão alimento, roupa, educação, nome, os
arrodeiam até perto da fase adulta. É a partir daí que começa a vida do herói. Por algum
motivo, o futuro sujeito descobre, é avisado da sua verdadeira origem e do seu próprio
sangue. Ele segue os rastros passados até o local do crime primeiro. Dessa forma, tem
regresso do abandono e de sua rejeição. Por razões do texto mítico, descobre seu
verdadeiro propósito. Converte-se em um proprietário exemplar, um titular do título que
lhe fora negado. Não raro, sobe para uma condição de sucessor do pai, guerreiro,
soberanos em funções, como se viu em outras histórias até à posse sexual da mãe,
conforme vemos em Freud com o Édipo, que lhe deu um lugar de destaque ao primeiro
lugar de todos os heróis (apesar de sua união com a mãe ser exceção à regra, enquanto
abandono traiçoeiro da mãe ou a separação violenta e quase mortal – representa a
regra). O esquecido se enche de vitalidade, retoma seus direitos, para uns um chefe, para
outros um redentor, já outros um defensor da bondade. A vítima abandonada vira um
homem de ação, a autodescoberta vira uma recrutadora dos que encontra e escutam a
si mesmos, vê-se uma profecia na história de sua vida que nasceu de uma dor passada,
por isso os mitos são muitas vezes proféticos. O drama de uma mágoa em uma memória
sofrida silenciosamente, mas ainda ativa de reflexão. Eles vêm do longe mar para fincar
o Eu em terras. É com eles que têm início a aventura da civilização enquanto colonização
da terra firme do Eu, viver e reinar no novo continente. Eles são os pioneiros da cultura
com o seu querer-poder, arbitrariedades, saber. São heróis do Ser-Eu, lutam para
erguerem-se a si próprios e para a conquista do nome, desde logo são protagonistas, a
primeira luta, de certa forma, não deixa de ser consigo mesmos (Jon Snow?). Com o
255

crescente aumento dos homens, também se verificou posteriormente, a descoberta de


si mesmo no decurso não heroico de vida. Vê-se traços de ressentimento. Por isso
Nietzsche chegou a dizer que o ressentimento é uma “potência de primeira ordem”.
Esses sujeitos são dados a si mesmos como dotes difíceis. A insuportável existência que
sempre liquidificam e remoem as consequências do abandono inicial.

Terra Nutrix. Michael Maier. Atalanta fugiens. Oppenheim (1618).

Daí nasce a “gesticulação” dos ajudantes, seu semblante mímico como Sloth em
Os Goonies (1983), O Corcunda de Notre Dame (1939) ou Igor em O Jovem Frankenstein
(1974). Normalmente são cômicos e desastrados, mas atrapalham do que ajudam. Mas
dizem o que não pode ser dito e colaboram com uma irresponsável ingenuidade. O Dr.
Frankenstein tenta dar vida a sua criatura pela primeira vez com raios de uma
tempestade. E diz: "Dê a minha criação, vida!" Igor imediatamente fala: "O céu virou
negócio? (céus significam negócios?)". Se falamos anteriormente de espectros e magia
negra, os demônios não são aqueles que possuem muitos nomes? Como vimos em
Hereditário filme de 2018? Um chamado pelo nome de Paimon. Lorraine no filme
Invocação do Mal 2, lembra que ela escreveu o nome do demônio (Valak) em sua Bíblia
durante a sua visão em sua casa, quando perguntou seu nome em Amityville. Ela entra
256

na casa e confronta Valak, abordando-o pelo nome e com sucesso condenando-o de volta
para o inferno. Valac é conhecido por dar respostas verdadeiras sobre tesouros
escondidos. Ele revela onde podem ser vistas serpentes e entrega-as de forma inofensiva
para o mágico. Ele é descrito como um menino pobre, com asas de anjo e montado em
um dragão de duas cabeças. Lorraine nos explica que saber o nome do demônio que os
persegue lhe dá poderes sobre ele. Não era Pazuzu em O Exorcista (1973) um demônio?
Quatro anos depois de ter sido libertada pelas forças do mal, a jovem Regan MacNeil em
O Exorcista II (1977) vive agora em Nova Iorque. Entretanto, ela volta a ouvir vozes e ter
delírios. Com a ajuda de uma psicanalista, tenta se curar, mas só mesmo com a ajuda de
um exorcista poderá afastar de vez o demônio. Desta vez, entra em cena o Padre Philip
Lamont que, a pedido da Igreja, pretende investigar a misteriosa morte do Padre Merrin,
ocorrida quatro anos antes. E assim, utilizando um dispositivo psicanalítico que permite
sincronizar duas mentes através da hipnose, é descoberto que Regan ainda está sob
possessão do demônio e que na sua mente se processa constantemente uma luta entre
o Bem e o Mal. O Padre Lamont então, com o objetivo de libertar Regan de uma vez por
todas, vai, mesmo com as objeções da Igreja, até a África, onde procura um doutor que
já havia sido possuído pelo mesmo demônio anteriormente, o qual o auxilia a
compreender o Mal que está enfrentando e assim combatê-lo.
Em Hellraiser (1987) vemos Frank Cotton comprando uma antiga relíquia em
forma de cubo, conhecida como a Configuração do Lamento. Segundo a lenda, este cubo
é capaz de abrir uma passagem para um reino de prazer sensual inimaginável. Em troca
do prazer, o cubo exige a alma do usuário. Assim que Frank resolve o quebra-cabeça e
abre o cubo, quebra-cabeça (um jogo) ele entra em uma outra dimensão povoada pelos
Cenobitas, criaturas deformadas, vestindo couro preto, que sentem prazer na dor. O
chefe dos cenobitas era conhecido como Pinhead. Seu nome significa Cabeça de Prego
em inglês, pois apresenta como característica principal, pregos fincados alinhadamente
em seu crânio. Para se inspirar e criar um visual realista para os Cenobitas, Clive Barker
(criador do projeto) afirmou ter pego referências, dentre outras coisas, na cultura punk,
no catolicismo e em visitas a clubes de sadomasoquismo em Nova York e Amsterdã. A
partir daí, a figurinista Jane Wildgoose criou as roupas baseada naquilo que o diretor
descreveu como “glamour repulsivo”. Já no caso de Pinhead, o cineasta disse ter visto um
livro contendo fotos de fetiches africanos, no qual encontrou esculturas de cabeças
257

humanas cravadas de pregos e espinhos (vodoo) ou mesmo em “O Mundo Sombrio de


Sabrina”, seriado da Netflix de 2018. Na 2ª Temporada, Episódio 3: Lupercália, uma
boneca-fetiche aparece.
Sloterdijk (2016, p. 190):
Na linguagem da tradição, isso aparece como a lei da simpatia, que estipula
que o amor não pode deixar de despertar o amor, que o ódio gera igualmente
a resposta que lhe corresponde; que a rivalidade infecta nos que competem
por um mesmo objeto a avidez vibrante dos concorrentes. Quando a Filosofia
da modernidade nascente expressa em palavras esses efeitos de ressonância
e de contágio, ela serve espontaneamente do vocabulário das tradições
magológicas. Ao refletir sobre causalidades afetivas de tipo mágico, a
Antiguidade já havia começado a explicar esse acordo interpressoal ou
interdemoníaco que, desde a época de Platão, tem sido interpretado como
obra de Eros. Nos rastros de Platão, os filósofos do fim do século XV
inauguraram um novo discurso erotológico, cujo eco chega até às
maquinações das psicologias profundas do início do século XIX e às
semirreflexões da psicanálise popular dos dias de hoje.

Não vemos espelhos também no Palácio de Cristal? A psicopatologia de Ficino


descreve o amor vulgar entre indivíduos do mesmo sexo e de sexo distinto como
resultado de infecções sutis através do olho (“infecções oculares”). De acordo com a
teoria platônica, ver não consiste apenas em ser tocado por uma impressão de objetos
iluminados, mas em dirigir raios visuais ativos sobre as coisas. O olho é solar, na medida
em que ilumina as coisas com uma luz única. Como projéteis de uma artilharia visual e
cognitiva, os raios visuais irrompem do olho, e, quando atingem seu alvo, o que está à
frente, na frente, no horizonte é percebido. No encontro de olhares de seres humanos,
o espaço entre seus olhos se condensa em um campo de irradiação extremamente
carregado, tornando-se um teatro de dramas energéticos. Entre o olhar e o olhar de
retorno, desenvolvem-se interpenetrações nas quais o olhar mais forte é o que injeta no
olho do outro seus conteúdos, sobretudo espíritos vitais na forma de uma névoa muito
fina: vapores ou vapours. A flecha ocular quando lançada envenena e penetra pelos olhos
e, dado que ela parte do coração de quem a atira, penetra no coração da pessoa atingida,
e, portanto, naquela região que lhe é peculiar e originária. Brota um duplo encantamento
(duplex fascinatio).
258

Efusão do Espírito Santo. Igreja de San Nicolás de Kalkar. Johann von Kalkar. (Século
XVI).

Medalha de Luís XIV (1674).

Se chama mago o homem capaz de receber estímulos enciclopédicos, aberto ao


mundo de forma polivalente, formado na cooperação atenta e engenhosa com as
interações discretas entre as coisas, em um universo altamente comunicativo (as
extensões da tecnologia modernas, passariam por atividades, entre outras, de
telecomunicação, ou comunicação à distância). O mago, como protótipo do filósofo, do
artista, do médico, do engenheiro, do informático, não é nada mais que o intermediário-
operador no mundo das correspondências, das influências e das atrações onde o meio é
a própria mensagem. Sloterdijk apontou que nós vivemos em um "tempo de anjos vazios”
259

ou um “niilismo midiático", no qual nós esquecemos a mensagem para transmitir


enquanto os meios de transmissão se multiplicam Este é o próprio “disangélio”. A palavra
"disangelio", que Sloterdijk tira de Nietzsche e Dostoiévski destaca, em contraste com o
"evangelho". O caráter vazio das mensagens distribuídas pelos meios de comunicação e
culminando na famosa frase de Marshall McLuhan: "O meio é a mensagem". É por isso
que, neste tipo de sistemas de telecomunicações inflado: exprime o novo conteúdo, o
que significa que a transferência de pensamentos entre estranhos não é mais possível na
forma de empatia participativa, mas por comunicações explícitas que excedem distâncias
e para o qual os participantes pagam preços elevados do uso do símbolo sistemas apenas
tem que pensar sobre os enormes custos de alfabetização inicialmente, os custos que
hoje em dia todo mundo tenta reprimir, porque eles já foram socializados. O mago é um
agente e o metapsicólogo da alma do mundo, cuja extensão universal produz um
movimento de cada coisa em direção a todas as outras. Os textos de Giordano Bruno
sobre a velha magia florentina da intersubjetividade culminaram na ontologia geral da
atração que encerra a psicologia da ação recíproca em um sistema abrangente de magia
natural. Ao lado dos textos magológicos de Bruno, é sobretudo na obra de Shakespeare
que culminam as primeiras ideias filosóficas da modernidade sobre a influência e a
correspondência. René Girard mostrou em seu estudo sobre a dramaturgia
shakespeariana, as peças do mestre de Stratford-on-Avon compõem uma súmula de
ensaios sobre a capacidade do ser humano de inflar-se pelos “fogos do desejo”. Os atores
de Shakespeare operam sobre um princípio de bateria psíquica que se carregam por
conexão à tensão vinda da rivalidade. Desenvolve uma análise sombria da peste mimética
que faz de seus infectados instrumentos de inveja e das crescentes pressões de
emulação. Os sociólogos da literatura não estariam de todo errados ao pretenderem ver,
no universo dramático de Shakespeare, um reflexo da uma nascente sociedade de
concorrência, burguesa e imperialista. O presenta aparece como um tempo da
possessão. O conglomerado do magnetismo animal, sonambulismo artificial e hipnose se
desdobrou principalmente na França e Alemanha entre 1780 e 1850, em um universo
terapêutico e literário, ligando-se a numerosos vínculos de tradição e doutrinas
erotológicas cósmicas e psíquicas do início da modernidade. Isso vale desde a antiga
tradição dos conceitos magnetosóficos que vieram de magos da Renascença, Paracelso,
Gilbert e Van Helmont, Jakob Böhme e Athanasuius Kircher, Newton e Mesmer. Quanto
260

às teorias e práticas erotomágicas do princípio da era moderna, elas tiveram desde o


início, na Igreja Católica, um adversário que podia impor seu controle aos círculos
mágicos fora de sua alçada, utilizando o argumento da feitiçaria. Para a Igreja, todos os
efeitos psicógenos da intimidade profunda estavam ligados a influências demoníacas ou
a pactos com o diabo. No século XX, o movimento de contracultura dos anos 1960, que
se pôde ligar a seus predecessores tanto românticos como vitalistas, rompe-se agora ante
o individualismo exacerbado do atual impulso telemático para a abstração, assim como
ante o neoisolacionismo estético da propaganda pós-moderna do “estilo de vida”.
A Branca de Neve é um conto sobre o advento dos tempos modernos. Diz
respeito à história da emergência e dos desdobramentos da subjetividade moderna. O
conto é dos irmãos Grimm publicado em 1812, a partir de versão oriunda da tradição oral
germânica medieval. A versão feita por Disney para o cinema tornou-se um clássico dos
filmes de animação. Lançada em 1937, o conto se proliferou entre o público infantil e,
provavelmente, é a versão da referência popular de nossos dias. É suficientemente
conhecida para que se possa sempre falar dela sem precisar expor seus traços
fundamentais. Uma história das vicissitudes da subjetividade moderna porque, nas
personagens de Branca de Neve e da Rainha, o que se estabelece é a transformação do
espírito no sentido da proto-individualidade para a individualidade subjetiva em suas
agruras, as nossas agruras. A Branca de Neve está longe de compor um indivíduo
moderno. Sua esfera íntima não é propriamente uma esfera na qual se mostra um sujeito
moderno, no sentido pedido por Sloterdijk. Ela age como uma menina-mãe para com os
anões e se relaciona com os bichinhos da natureza, e nisso se dá a ressonância entre os
polos de sua esfera. É uma esfera que protege uma intimidade cujos traços evolutivos
deixam a desejar. Não há a gestação da mãe de Branca de Neve. Não há nada que
substitua o elemento placentário na companhia do bebê. Nem mãe e nem pai. Não há
infância. Branca de Neve não constrói sua esfera íntima. Branca de Neve já aparece como
mocinha e suas relações íntimas não são bem o que podemos chamar de uma verdadeira
intimidade. Quem pode cultivar alguma intimidade morando diante de uma madrasta má
e, depois, com sete anões desajeitados que funcionam como estereótipos de ogros de
uma floresta europeia perdida? Por isso mesmo, ela é o personagem que não aponta na
direção da modernidade, é a parte reacionária da história, que emperra o advento das
relações modernas. Aliás, isso fica claro ao final, quando segue a tradição do casamento
261

e da vida nobre. Por sua vez, a Rainha compõe a figura do que mais se aproxima do sujeito
moderno. Ela é solitária e sua companhia, seu parceiro na esfera íntima, é o Espelho
Mágico. Os espelhos são um produto moderno. Eles deram a possibilidade da facialização
se acoplar a algum tipo de reflexão necessária para que um sujeito possa ser um sujeito.
Todavia, a completude desse sujeito deixa a desejar ou, melhor dizendo, se realiza
segundo uma pseudorreflexão, típica da função do espelho. O indivíduo moderno
enquanto sujeito deveria poder desinibir-se a partir de narrativas próprias, consultadas
por ele de modo a fazê-lo passar da teoria consultada, a justificação da ação, para a
própria ação. A Rainha tenta isso, mas só consegue o consultor exterior, ou seja, o célebre
Espelho Mágico. Um espelho não dá nenhuma resposta senão o que nós mesmos
balbuciamos, como cópia. Um espelho mágico faz, de fato, o trabalho do consultor de
empresas, governos e pessoas modernas: ele diz o que não sabe ou diz o que diz para
todos os concorrentes, levando-os ao imbróglio do mercado, todos com a mesma opinião
e, portanto, sem nenhuma estratégia particular para vencer o outro. O jogo de mercado
encontraria seus mesmos resultados sem ele. Todavia, o Espelho Mágico, ou seja, o
espelho fetichizado, eleito como consultor como se fosse realmente uma voz interior (a
voz da consciência), que imita então a atividade da reflexão, mas claro, não é ela
plenamente. Um espelho no qual Branca de Neve jamais se olhou não poderia dizer dela,
somente da Rainha. Mas o espelho fala para Rainha alertando-a da beleza superior,
praticamente absoluta, de Branca de Neve. Caso a Rainha estivesse agindo na condição
de um sujeito pleno, como manda o figurino iluminista, ela, com os seus poderes de
feiticeira, simplesmente se arrumaria, fazendo-se a si mesma bela, e se tornaria de novo
a mais bela. No entanto, como a reflexão aí é uma pseudorreflexão, porque o que se está
obedecendo é um espelho, ou seja, um consultor externo que sabe menos do que quem
o consulta, a Rainha fica suficientemente atordoada para seguir as piores escolhas.
Primeiro faz aquilo que não se deve fazer nunca: mandar matar. O assassinato é algo que
não se manda fazer, deve-se executá-lo com as próprias mãos. Segundo, dando errada
essa opção, então a nova tentativa de solução do caso é pior ainda: ao invés de ficar mais
bonita que Branca de Neve, com suas poções, a seguidora do Espelho Mágico se
transforma numa bruxa velha horrenda com uma maçã envenenada nas mãos. O
resultado é trágico, como para todo empresário que confia em seu consultor. A bruxa é
descoberta e morta pelos anões, que a jogam de uma ribanceira. Branca de Neve, então,
262

virgem e sem muito o que dizer de si mesma, uma vez que só sabia dar ordens aos anões
e escutar bichos, casa-se com o tal príncipe que, como sempre nessas histórias, chega
sem dizer nada e vai embora com a moça dizendo menos ainda. Claro, ele é menos
indivíduo moderno que a própria Branca de Neve. A individualidade da Rainha salta aos
olhos. Mas sua subjetividade não se completa ou, melhor, se completa como a nossa se
completa (é incompleta). Na sua completude falsa, ou na sua completude possível dentro
de sua estufa, o liberalismo, tudo que ela faz termina tosco.
Sloterdijk (2016, p. 186):

Assim começa a história do ser humano que deve e quer estar só. Os
indivíduos, no regime, individualista, tornam-se sujeitos pontuais que caíram
sob o domínio do espelho, isto é, da função refletora que se completa a si
mesma. Eles organizam cada vez mais sua vida na ilusão de que poderiam
agora, sem participação de um Outro real, desempenhar ambos os papeis no
jogo da esfera de relação bipolar, e essa ilusão se condensa no curso da história
europeia dos meios de comunicação e das mentalidades até atingir uma
situação em que os indivíduos se considerem a si mesmos, de uma vez por
todas, como o Primeiro substancial, e suas relações com os outros como o
Segundo acidental. Um espelho em cada quarto de cada indivíduo é o atestado
dessa situação na vida prática. É verdade que o jogo da autocompletação dos
indivíduos diante do espelho (e diante de outros meios egotécnicos, em
particular o livro, tanto o que se lê como o que se escreve) perderia sua atração
se não estivesse a serviço da elevada ficção da autonomia – esse sonho do
domínio sobre si mesmo que, desde o início da filosofia antiga, introduziu-se
na imagem condutora da vida sábia.

Afinal, como iria um elemento morto pensar? O fetiche não pensa, ao contrário,
atiça em nós a aderência às mágicas tolas. Sabemos bem isso quando apelamos para
fetiches no sexo. A Rainha diante do espelho faz tonteiras como nós com uma boneca
inflável, com o sapato de uma amada ou sua calcinha ou coisa mais ridícula ainda, se é
que há algo mais ridículo. O rosto que se vê diante do espelho entrou em uma relação
pseudointerfacial com um outro que não é um outro. É uma ilusão de se ver a si mesmo
em um campo fechado de visão que expulsou o Outro e os outros de seu espaço interior,
substituindo-os por meios egotécnicos da autocompletude, os meios de comunicação
tipicamente modernos em suas funções. Dessa forma, o mundo fica dividido entre um
interior e exterior, um Eu e não-eu. É só quando tais exclusões se tornem regra e a
hospedagem, a salvaguarda conscienciosa do outro, a exceção, é que pode surgir uma
sociedade estruturalmente moderna, habitada de indivíduos, que na sua maior parte da
vida e do tempo, estão imersos em uma ficção real imperante, uma fantasia de uma
263

bolha, de uma esfera íntima que contém apenas um habitante, esse próprio indivíduo.
Henri Michaux já havia dito “Tu és autocontagioso, não esqueças disso. Não deixes a teu
“Tu” a primazia”, a ilusão óptica real que sustenta relações individualistas ao garantir a
individualidade de cada um em uma bolha conectada à rede. A expressão autosimbiose
cai como uma luva. Ela se manifesta no sentido de que a estrutura diádica da esfera
primitiva possa ser re-exercitada formalmente pelos indivíduos abaixo de circunstâncias
determinadas. Quando estes disponham dos acessórios mediadores necessários para se
adaptarem completamente a situações orientadas de autocomplementação. Do ponto
de vista esferológico, isso se revela como uma virtualização da díade mediante
autoemparelhamento, autocuidado, autocomplementação, automodelação. Por isso,
que os apartamentos podem ser considerados como oficinas de autorrelações, como um
asilo para indeterminações (uni-biunidade). Uma sociedade de auto-observação e
autoajuste se faz determinante para a forma de vida em sua totalidade. Um estado
antecipado por Elias Canneti de “uma sociedade na qual todo ser humano é pintado e
reza ante sua imagem”. Seria coincidência que Le Corbusier na sua juventude fez uma
visita a Dema em Certosa di Pavia, perto de Florença, e se sentiu atraído pelas formas de
vida dos monges cristãos? Ele disse: “Eu gostaria de habitar toda minha vida o que eles
chamam de suas células”.
O mundo como tal, está configurado por processos transmitidos pelo capital, há
que se constatar que o curso atual das coisas se antecipou em Dostoiévski sobre uma
situação global de palácio de cristal. Tudo o que acontece nos tempos de hoje acontece
com o poder de compra é configurado em uma realidade de interiores (indoors)
generalizado. Onde quer que vamos os telhados de vidro estão suspensos sob nossas
cabeças. Negri e Hardt, marxistas tardios, voltaram a percorrer o palácio capitalista do
mundo sob o nome de Empire, mas se abstiveram de delinear sua fronteira exterior, para
provavelmente, invocarem uma aliança orgânica entre os opositores do exterior e os do
interior, não constitui uma estrutura tipicamente arquitetônica, não é uma entidade
semelhante à um prédio de habitação, está muito mais para uma instalação de conforto
com a qualidade de estufa, um rizoma ou uma cápsula acolchoada que foram um único
continente artificial. Talvez esta seja a razão e o motivo de Hard e Negri terem
abandonado a toupeira como animal totem do extremismo de esquerda, colocando em
seu lugar a serpente, um símbolo bem escolhido para a esquerda gnostizante, que se
264

segue ao fracasso do sonho das revoluções proletárias. O universo indoor materializa


raramente suas fronteiras sob materiais duros, como no caso da barreira que separa
México e EUA e a barreira de segurança entre Israel e Cisjordânia. As divisórias mais
eficientes são as instalações de conforto que se concretizam por discriminações, ou no
caso de hoje, as barreiras econômicas. Muros constituídos pela possibilidade de acesso
ao dentro, à capacidade financeira que separam os que possuem e os que não possuem,
possibilidades de vida, empregos. É o que podemos chamar de imunidade global, como
conforto de altitudes estáveis e em expansão. Do lado de fora, a maioria tenta sobreviver
visando suas tradições e improvisações. Uma separação econômico-cultural de difícil
resolução. É por isso que na atualidade contemporâneos trouxeram da herança judaica,
a visão de que na Grande Instalação, o habitar e a viagem entram em simbiose, tal se
reflete nos discursos sobre o regresso do nomadismo. Após a viragem para as relações
monetárias, os acessos resultam muito mais de atos de compra e de acoplamentos a
ofertar ou a endereços abertos. Dos que obtém êxito, espera-se deles que possam deixar
as suas pertenças para trás. Há uma contradição que reflete o dilema formal da situação
atual do mundo através dos mercados e da mídia global, estamos testemunhando uma
guerra entre os estilos de vida e entre os bens de informação. Onde tudo é centro, não
pode haver um verdadeiro centro. Onde tudo emite, o suposto centro emissor é perdido
entre as mensagens misturadas. Vemos, então, que era, o maior, o único círculo unitário
que abrange tudo o resto tem irrevogavelmente terminou. A esfera não é mais a imagem
morfológica do mundo polisférico que habitamos, mas a espuma. Em todo caso, esse
espaço vital está cada vez mais ameaçado. A crescente situação pânica com catástrofes
e as preocupações climáticas firmam um horizonte de grande preocupação político-
cultural. O ar que respiramos é condicionado, filtrado, purificado. Após o uso de gases
mortais, esse ar virou um elemento ameaçador como possivelmente escasso no futuro.
O ar e o meio ambiente fazem parte da estratégia militar e, como os homens precisam
ser imunizados contra esses perigos isso acelera a construção de esferas de proteção,
sejam eles espaço aéreo, nossas cidades com ar condicionado ou nossos escritórios e
apartamentos. Nosso mundo ocidental gostaria de ser um imenso palácio de cristal. O
Ocidente substituiu o mundo da metafísica por um grande espaço interior organizado
pelo poder de compra. O capitalismo liberal que só tende a se expandir incorpora a
vontade de excluir o mundo exterior, de se aposentar num interior absoluto, confortável,
265

decorado, luxuoso, grandioso, brilhante, grande o suficiente para que não nos sintamos
trancados. Walter Benjamin já disse isso na época da Restauração na França, quando
falou das galerias comerciais e das ruas comerciais de Paris. Para ele, construindo essas
passagens, o regime de Napoleão III mostrou sua verdadeira natureza tentando
transformar o mundo interior em uma espécie de fantasmagoria. Uma grande sala aberta
onde se recebe o mundo sem ser forçado a sair de sua casa. Para ele, esse era o fantasma
burguês básico. O de querer aproveitar a totalidade dos frutos do mundo sem sair de
casa. A cidade que é “a sala de visita onde a burguesia faz seus negócios”, enquanto
discute normas no Parlamento, as verdadeiras decisões são tomadas nos corredores. A
decisão é a forma política do exercício do governo capitalista, no momento em que o
poder precisa desfazer-se do direito. Uma decisão é nada mais que estabelecer quais as
partes da realidade do homem e do mundo se encontram sob a regulamentação do
direito, nada mais escapando ao poder discricionário de um soberano. Em função desse
objetivo, a globalização dos meios de comunicação de massa ajuda enormemente,
porque é possível trazer o mundo para sua casa sem ter que se mudar. Distâncias,
pessoas, coisas passam a não estar mais longe. A casa vira um mundo ao alcance das
mãos. As periferias subdesenvolvidas do mundo são usadas para passeio e praticar
caridade. Para dar uma boa consciência. Isso é o assunto de um homem pós-moderno.
Se o modernismo foi a época da construção da grande estufa de vidro. O pós-
modernismo é vida após sua inclusão total na grande estufa. Devemos que ter cuidado
para que ela não vira um efeito estufa. Não temos boas razões para crer que a grande
estufa pode acabar, porque no grande palácio de cristal há uma tecnologia baseada que
não é sustentável. Isto é, em energias fósseis. Na história da humanidade, o fossilismo
terá sido um episódio de apenas 300 anos. No ritmo o globo está girando, nós temos
energias fósseis ainda por 100 a 150 anos no máximo. De qualquer forma, nosso prazer
não é mais o mesmo. Será praticamente demolido, porque os combustíveis fósseis só são
agradáveis quando são baratos. Esse tempo pode acabar para sempre. Na crise fóssil isso
se tornará impossível. Isso nunca vai voltar. Quando tudo fica caro, não há mais conforto,
porque a democratização do luxo é impossível. Os dons da natureza terminam aí. Agora
os homens se perguntam como esses dons podem ser substituídos. A verdade é que o
homem detesta o trabalho. Os homens fingem trabalhar, mas trabalham sonhando com
um presente, com um tesouro que procuram permanentemente. O trabalho é apenas
266

uma espécie de intermédio que é aceito até o grande presente. Agora, com o fim das
energias fósseis, o trabalho retorna como um fardo insuportável. Depois disso, o leitor
poderia achar difícil entender por que muitos declaram Sloterdijk como um conservador,
ele se declara otimista sobre o futuro do homem. Temos uma boa chance de administrar
esta grande virada para uma tecnologia que seja ao mesmo tempo barata, compatível
com as demandas da democracia e, acima de tudo, acessível para os países que estão
agora na periferia. Essas pessoas aproveitarão a situação quando as novas tecnologias
solares estiverem disponíveis a preços razoáveis. Esses novos recursos permitirão uma
estrutura de civilização completamente diferente.
Sloterdijk diz (2008b, p. 213):

“O espaço-interior-do-mundo do capital”, em contrapartida, deve ser


compreendido como uma expressão de topologia social, utilizada aqui para a
potência de criação de interior associada aos media contemporâneos da
circulação e da comunicação: define horizontes das possibilidades de acesso
(aos lugares, às pessoas, às mercadorias e aos dados) abertas pelo dinheiro –
possibilidades, essas, todas decorrentes, sem exceção, do fato de a forma
determinada da subjetividade no seio da Grande Instalação ser definida pelo
poder de compra. Quando este assume uma forma concreta, aparecem
espaços interiores e raios de ação específicos – são as arcadas do access aonde
se dirige toda a espécie de passeantes dotados do poder de compra. A intuição
arquitetônica que levava antigamente a instalar os mercados em pavilhões
teria forçosamente de dar origem, no início da era global, à ideia de pavilhões
em forma de mundo – segundo o modelo do palácio de cristal; o recurso à
forma de pavilhão para o concerto do mundo no seu todo é seu resultado
coerente.

Adam Smith e Rilke encontraram-se sob o firmamento técnico. De um lado, o


pensador do mercado mundial, do outro, o poeta do Grande Interior. Adam Smith
apresenta um discurso em hora ao primeiro-ministro Lord North, o Glasgow Toast,
discurso também conhecido como o “discurso do alfinete”. Que poderia ter sido
pronunciado após Smith ter sido nomeado diretor das alfândegas da Escócia em 1778.
Rilke escrevera uma carta que deve remontar do início de 1922. O tema central dos
nossos amigos autores é que não há capitalismo sem animismo. No discurso, Smith fala
que: “Pedi algum esforço aos vossos olhos e levai o tempo que quiserdes, pois o que vos
mostro para explicar o alfa e o ômega da ciência da riqueza das nações é mesmo um
alfinete. Sim, vistes e ouvistes bem, um alfinete, um objeto como não hão outros mais
profano, mais caseiro, mais humilde. Afirmo, porém, que nesta coisinha tão fina se
dissimula a soma da sabedoria econômica do nosso tempo, para quem a observa
267

corretamente... Não será uma gigantesca aventura o fato de os empresários e


comerciantes de uma nação terem decidido fabricar exclusivamente produtos que só
veem o dia no fito de serem trocados por outros valores? Uma loucura, é um fato, mas
uma loucura racional e uma sabedoria arriscada! Inúmeras pessoas já se converteram a
ela, por um motivo que facilmente se lobriga, pois, desta vez, há mais razão na audácia
do que na prudência inerte. Entendei-me bem, gentlemen: nesta ordem de coisas, cada
fabricante de bens deve estar individualmente disposto a fazer depender inteiramente a
sua felicidade e a sua infelicidade das necessidades de outras pessoas que, pelo seu lado,
suspendem o seu destino das necessidades de terceiros. É loucura, mas não lhe falta
método... A produção de alfinetes tão sólidos e tão numerosos nunca poderá funcionar,
seja nesta nação, seja noutra, se não tiver amadurecido na alma do primeiro empresário
o projeto de ligar todo o seu futuro à produção desse bem que faz parte deste mundo.
Que perspicácia, quando esse produtor percebeu pela primeira vez que um novo grande
mercado prometia abrir-se aqui...! Espantai-vos, pois comigo, com este acontecimento
tão simples, e contudo, tão incompreensível, o fato de milhões de alfinetes seguirem o
seu caminho desde a mina de ferro até as fábricas siderúrgicas, dessas fábricas, até as
manufaturas, das manufaturas aos armazéns e casas de comércio, das casas de comércio
aos ateliês e aos lares, onde dão numerosas provas de sua utilidade por mais triviais que
pareçam. Num capricho poético, poderíamos ceder à crendice e aceitar a ideia delirante
de que, num mundo superior que participasse no nosso, existiria um povo espiritual de
alfinetes que, quais demônios bem benfazejos, acompanham os alfinetes terrestres na
sua metamorfose. Mas afastemos a tentação das imagens poéticas e olhemos
sobriamente a coesão das coisas, tal como se desenvolve nos mercados deste mundo!
Essa coesão, será ela menos enfeitiçante quando a olhamos com o olhar da ciência? Claro
que não, gentlemen! Quanto mais secamente encaramos as coisas, mais a nossa
admiração vai aumentar ao observar que não só os alfinetes, mas também dezenas de
milhares de produtos seguem o seu caminho com a mais espantosa pontualidade, como
se uma mão invisível os guiasse ao seu lugar de destino. Em certo momento, o capitalismo
financeiro chegou a desconfiar que Lula não era confiável, que a política monetária
poderia mudar, já fazia tempo que a política monetária precisaria mudar. Não se deve
abrir mão do rentismo diz o capital. Foi nessa hora que a ruptura dos partidos de
esquerda e os banqueiros existiu. As coisas a partir daí passaram a funcionar quase como
268

um grande cérebro, mas não, o capital funciona com uma cabeça vazia. Por isso, Adam
Smith ficou com a impressão da mão invisível. É que o capital funciona de uma tal maneira
que as vezes ele nos dá a impressão de que tem uma mão invisível. Adam Smith
acreditava que essa mão invisível era organizadora, mas a mão é desorganizadora. Cria o
capitalismo como um tipo de regime de anarquia. Isso não pode ser humano. É humano?
Só pode ser mágica, o monstruoso.
Smith nos fala que objetos podem ter alma, força vitalista. É como se existisse
um povo de alfinetes sobre esse povo. Uma alma comandando o que estão embaixo. Um
povo de alfinetes suprassensível de espectros fantasmagóricos e daimons, comandando
os alfinetes embaixo para que eles que não possuem mente nem alma pudessem fazer
este caminho tão correto e incessante. O caráter sensível e suprassensível do alfinete.
Nós que os criamos somos esquecidos, basta observar que ele não cita os homens. Foi
um trabalho de alfinetes, um trabalho solitário de almas e como cada alfinete fosse
sensível e suprassensível. O objeto inanimado, sem vida, parece ter vida dentro do
mercado, e ao mesmo tempo, se transforma em algo útil. É o fetiche. O alfinete está
fetichizado, possui fios invisíveis onde adquire vida de boneco que é um fantasma,
sensível e suprassensível, é de ferro, mas possui alma. Tal prosperidade surge
obrigatoriamente se os governos se conformassem em não entravarem o grande tear e
a mão invisível que o move. Smith fala, mas não explica o motivo de isto ocorrer. Ele
apenas descreve o fenômeno. Quem explica é Karl Marx. Se notarmos bem O Drácula de
Bran Stoker (irlandês), é de 1897. Quase 100 anos depois da fala de Smith. O Frankenstein
de Mary Shelley (londrina) é de 1818.
A ideia de monstros e fantasmas que povoa a literatura do século XIX, talvez não
aparecesse se o mundo não ficasse tão fantasmagórico por conta desses alfinetes que
andam sozinhos por aí. E de tantas outras coisas sozinhas que andam por aí. Objetos
começam a se movimentar e se impor sobre os homens. Nós viramos os mortos na
fantasmagoria da mercadoria. Quando o século XIX se apresentou para Marx, ele o fez
como um reino mal-assombrado, o lugar de mortos vivos. Referindo-se a Marx, agora em
nossos dias, Peter Sloterdijk não consegue evitar de qualificá-lo como o filósofo “exorcista
do trabalho morto”. Depois da Segunda Guerra mundial, a filosofia continental se
converteu em uma espécie de hermenêutica da catástrofe. Entender esse acontecimento
é um aditamento ao abismo, foi a missão principal do pensamento. E os filósofos
269

deveriam comprometer-se em que seus textos jamais pudessem servir de pretexto para
os horrores vindouros. Daí a orientação fazia um tipo de “filosofia gótica”, ao fim dela os
ingleses tinham denominado certo tipo de literatura, que faz do horror o sublime do
povo. No século XIX, na literatura, música, contos e inclusive no campo das ideias se havia
desenvolvido o sentido do entretenimento através do anúncio do terror. Por trás da
guerra, a situação geral do pensamento propiciou a volta ao gótico no plano teórico. O
livro Crítica da Razão Cínica tenta romper com essa estratégia intelectual de uma
fraternidade do terror.
Comenta Sloterdijk (2012, pp. 85-86):

O núcleo da sua crítica da economia política é necromancia: como herói que


emerge do reino dos mortos a fim de lutar com sombras de valores, Marx
permanece atual par ao presente de modo inquietante. O não morto que
como valor monetária anda entre os homens e como comunicador risonho
subtrai aos vivos tempo e alma, domina ainda hoje quase sem objeções as
sociedades avançadas. Trabalho, comunicação, arte e amor, pertencem aqui
totalmente ao fim de partida do dinheiro. Estes constituem a substância do
tempo atual dos media e da aventura. Porque o dinheiro precisa de tempo
para a sua valorização, a chamada grande história também avança de modo
espectral. Toda a história tornou-se tendencialmente história da valorização;
é um jogo em que se joga sempre para o prolongamento. No entanto, tal
história já não é o diálogo dos vivos com os mortos sobre os bens do mundo,
mas sim a impregnação cada vez mais radical dos vivos pelo espectro
economizado. Da subjetividade humana do nosso tempo antolha-nos sempre
a alma do dinheiro, desvelada: uma sociedade de compradores comprados e
de prostituição prostituída introduz-se nas relações globalizadas do mercado.
O clássico laissez-faire liberal explicita-se no sugar pós-moderno e no deixa-se
sugar. É cada vez mais difícil distinguir a telecomunicação do tele-vampirismo.
Tele-ver e tele-sugar vão haurir a um mundo liquefeito que já mal sabe o que
seria uma vida capaz de resistência, ou seja, uma vida própria. Não poderia
suceder que estivesse iminente um tempo em que quem não quiser falar do
vampirismo deve calar-se também sobre a filosofia? Se isto se confirmasse:
seria em qualquer caso o tempo da segunda oportunidade de Marx.

Uns falam de como esses anos trouxeram levas de pessoas do campo para a
cidade, gerando uma classe média que veio a morar em casas com serviçais que podiam
aparecer aqui e ali no meio da noite - expondo os novos habitantes a situações a que eles
não estavam acostumados. Outros acrescentam o aparecimento da iluminação feita na
base de gases que, sabe-se bem, tinham lá seus efeitos alucinógenos (ópio em burgos?).
Há ainda os que lembram que nesse período surgiu a comunicação à distância, que deu
margem a todo tipo de imaginação aos interessados em “espíritos”. De fato, foram os
vitorianos que inventaram o costume de dizer que haviam recebido mensagens do
270

mundo dos mortos por meio de Código Morse. Também é dessa época o surgimento da
fotografia e, com ela, os chamados “fotógrafos de espírito”, que usavam as chapas já
queimadas antes, boas para se obter resíduos de tom espectral por detrás de imagens.
Aliás, diga-se de passagem, a morbidez foi uma característica marcante dos tempos
vitorianos. Tirar fotos de mortos e a expô-las pela casa tornou-se algo comum. Uma
prática iniciada pela própria Rainha Vitória, e que conquistou a Europa da época. A
amostragem de pessoas com defeitos físicos em praças e circos atraia muita gente.
Jornais capazes de entreter o público com notícias novelescas de crimes bárbaros
também se tornaram corriqueiros. Especialmente se os crimes pudessem se repetir. O
cenário de uma Londres sob neblina e fuligem da revolução industrial revelou-se um
clássico da iconografia da urbanidade vitoriana. Jack o Estripador fez fama. Em 1888 ele
aterrorizou a periferia londrina, e desde então reinou como um ícone da vida sob neblina,
ou melhor, da morte. Em uma nota de rodapé ao seu Espectros de Marx de 1993,
Derrida43 solicita estudos investigativos a respeito do que seria uma “vaga” que, na falta
de outro nome, poderia ser chamada de “mediúnica’. Ora, não precisamos ir longe. Os
historiadores da literatura nos informam que o período vitoriano (1818-1901)
corresponde à ampliação da literatura sobre fantasmas. Eles mesmos, esses
historiadores, tentam explicar essa situação. Lançam mão de elementos dispersos. Essa
articulação entre a literatura e a "ressurreição dos mortos" leva em direção a outro livro
escrito sob o signo napoleônico, O Coronel Chabert (1832) de Balzac. Apesar de vivo, já
em sua primeira aparição surge "a sensação desbotada dessa fisionomia cadavérica",
como escreve Balzac. Elas atingem seu ponto máximo nas chamadas “Grandes
Exposições”. Como se vê em Londres, Paris, Rio de Janeiro, onde os prédios ficam bem
conhecidos a partir do prédio matriz feito de vidro, chamado palácio de cristal que tinham
ar-condicionado, funcionava como local de exposição de compra e venda de mercadorias
e possuía uma abóbada em seu teto para dar uma cor azul em seu ambiente interior,
quase para nos dar uma sensação de reclusão interior, uma sensação de liquidez, fluidez,
algo do âmbito do translúcido como água de piscina com o sol. Um tom de em um mundo
interior de um paraíso onde o tempo não passa. Um tom de surrealismo.

43
MILAN, Betty. Derrida Caça os Fantasmas de Marx, 1994. Disponível em: <
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/6/26/mais!/24.html>. Acesso: 22 Jun. 2019.
271

Conto de Edgar Allan Poe. O Retrato Oval.

Como Smith diz “a cidade é uma feira permanente onde aflui a região adjacente
para praticar o comércio e estudar inovações”. Feliz o mundo que um dia será uma única
feira repleta do ruído, do caminhar dos mercadores e dos compradores. Para Smith, a
liberdade significaria nada mais que um reflexo das coisas móveis no mercado, que
adquiriram a liberdade pelos preços, se assim se pode exprimir. A liberdade significa para
as coisas a possibilidade de mudarem de proprietário, de invadirem casas, pensamentos,
em contrapartida, a liberdade para as pessoas significava que se libertaram pelo resgate
do serviço que deviam aos poderes feudais, a fim de se tornarem os seus próprios
proprietários. A grande libertação seria produzida quando não servimos já um senhor que
conhecemos, mas as necessidades de terceiros situados ao mesmo nível que nós, e os
quais, na sua maioria, são desconhecidos para nós. Rilke em sua carta diz: “Estar sempre
sob tetos que construímos pelas próprias mãos, é ser prisioneiro de uma passada
liberdade. O céu estrelado, ah, enviámo-lo para junto de um Deus longínquo que lamenta
já ter-nos amado. Em seu lugar, erigimos uma abóbada de orgulho e prudência. Lá onde
outrora as vigas se tendiam entre as estrelas sobem hoje as redes audaciosas das forjas.
272

Vidros sem mistério substituem o nobre azul, paredes construídas cm as nossas mãos
formam o horizonte como se o universo tivesse de se acabar ali onde a obra do homem
toca a sua fronteira... Outrora, mas lá fora, ao ar livre tão velho que cresce em torno a
nós ao correr dos milênios quando nenhum engenheiro não tinha mais poder do que um
pequeno animal que sente constantemente a onipotência do aberto, quando segue as
pistas da proximidade, lá fora, digo, e outrora, era a pura verdade, quando o verso me
falava: o espaço único passa por todas as criaturas. Encontrei nele todas as coisas
conjuradas para coexistir, todo o estante vacilando no seu lugar, imperceptível, no
mesmo sopro. E, como um vento que deixou a casa do Verão para trazer o Outono mais
rico, o ser um para o outro percorreu os corpos das coisas separadas. O espaço, o único,
reinava como majestoso coletor, o Deus mais expansivo, que distribuiu almas a todos
como são distribuídas as prendes pelo povo nas bodas dos príncipes, para que até os mais
pobres participem... Todas as manhãs ativas a alma escapava-se dos cabos das
ferramentas para as mãos do que partilhavam com esse mobiliário tão tranquilo os seus
quartos, assim como os homens roídos pelo tempo partilha o leito com o perfume
inexprimível das mulheres fáceis. Mas eis que um destino nos afasta dos seres com alma.
Tudo que que é adquirido, gritei, a máquina o ameaça. Vivemos numa máquina, e o
interior tornou-se semelhante ao exterior, como se a alma não fosse mais do que um gás
de escape que sai, incômodo, de um motor furioso... Onde viviam almas, veio a
insolência, os animais ingênuos pendem, carne esfriada, desolados, nas vitrinas, esses
nobres seres vivos, testemunhas precoces da nossa existência, deixaram de nos fitar de
tal forma que nos faltam hoje as testemunhas que teriam podido dizer em silêncio a jura
de que nós, como eles, estamos vivos, a escutar ao longe, tão longe, no interior. Tudo o
que se está isolado na claridade dos pavilhões ostenta agora um preço, tudo desalmado
e prisioneiro disso. Cada coisa nos grita como é jovem e importante e tão concupiscente
como aquilo que, barato, faz de objeto de luxo. Ah, hoje em dia, é ter esquecido a
pertença à vida. Comprar significa trazer levianamente para casa coisas, convidados
duma só noite que saudamos, que utilizamos e que nuca mais vemos”.
Como Smith, que viu os alfinetes comandados por daimons, ou como Rilke, que
reclamou dos gritos e chamados das coisas, Marx notou o mundo das mercadorias se
pondo na condição de quase viventes. O trecho célebre de Marx, relativamente
273

equivalente aos dizeres de Rilke e Smith, com certeza é o da mesa. Vale a pena repeti-lo
aqui, ainda que por demais conhecido.
Diz Marx (2018, pp. 146):

É evidente que o homem, por sua atividade, altera a forma das matérias
naturais de um modo que lhe é útil. Por exemplo, a forma da madeira é
alterada quando dela se faz uma mesa. No entanto, a mesa continua sendo
madeira, uma coisa sensível e banal. Mas tão logo aparece como mercadoria,
ela se transforma em uma coisa sensível-suprassensível. Ela não se contenta
em manter os pés no chão, mas põe-se de cabeça para baixo em relação a
todas as outras mercadorias, e em sua cabeça de madeira nascem minhocas
que nos assombram muito mais do que se ela começasse a dançar por vontade
própria

Como fica claro no texto, Rilke fala sobre operações de comprar, vender, tomar
ou ceder de aluguel, pedir ou conceder empréstimos. Essas operações seriam o limite do
mundo hoje, que dizem respeito a todos os aspectos da vida que se abre como um leque
na Grande Instalação, é obrigatório, portanto, que dinheiro seja sinônimo de
acessibilidade de coisas, que por transferência, produza um sentimento de mundo que
seja sua contrapartida. A coincidência entre espaço interior do mundo e o espaço do
poder de compra torna-se verossímil, o que se reflete nas coisas que nos cercam
diariamente. Se muitas coisas anteriormente inacessíveis são arrastadas para o lado do
que pode se comprável e logo que certas indisponibilidades surjam inopinadamente
como disponíveis e reversíveis, impõe-se esse exagero nascido da crítica da cultura,
segundo a qual, todos os valores tradicionais estão sujeitos à reavaliação e à
desvalorização. Vemos o caráter espectral tomar conta do século XIX com a possibilidade
de combustão na forma de movimento, vapor no formato de gases e fumaças na medida
em que como sujeitos modernos, entende-se a priori a liberdade como liberdade de
movimentos, o progresso não seria nada mais que a capacidade de uma movimentação
ou um movimento mais elevado. Se entende que o espírito, teve uma relação precária
com o mundo, salvo dizer-se a seu respeito que ele sopra onde quer (inspirados?), os
critérios em conjunto garantem o efeito “pleno de espírito”: contextualidade (o espírito
compreende aquilo que anda à solta fora dele), autopercepção (como ele próprio está,
se encontra ou em passagem), autolimitação (nota quando é o bastante e o suficiente),
reversibilidade (tem folga, pode aquilo que pode para frente, para trás) e espontaneidade
(pode não só continuar fazendo alguma coisa, mas começar de novo, a surpresa pode
274

advir de uma necessidade). É por isso que no século XIX, se pôde ver a conexão entre
pensamento histórico e melancolia. Pensar historicamente significou, instalar-se numa
situação em que a vida já não está à altura da sua própria reflexividade. Disso também
trata a filosofia europeia da alienação, com seus discípulos de Hegel. Como crítica gira
em torno de que a vida descobre que possui mais moral do que vitalidade, mais
recordação do que espírito de empreendimento, mais inibições do que incitamentos e
instigamentos. No historicismo, todas as vidas se sentem tarde demais, se sentem vindas
em um sentimento de atraso. Essa descoberta traduz-se nos espíritos rebeldes pela sua
fuga para frente.
O Sociólogo alemão Hartmut Rosa debruça-se sobre a seguinte contradição: se
podemos ganhar enormes quantidades de tempo com a tecnologia, por que não
dispomos mais de tempo para a vida? Temos uma paradoxal falta de tempo no mundo
moderno. É possível imaginar um mundo em que os avanços tecnológicos possibilitassem
aos humanos uma enorme economia do tempo. Mas o que vemos é que as pessoas
parecem dispor cada vez mais de menos tempo. E daí surge o paradoxo ao qual o
sociólogo alemão Hartmut Rosa se dedica. O efeito inicialmente libertador e fortalecedor
da aceleração social moderna, que está conectado com o aumento da velocidade técnica
de transporte, comunicação ou produção, ameaça se transformar em seu oposto na
modernidade tardia. Dessa questão nasce suas duas principais obras que são
Beschleunigung. Die Veränderung der Zeitstrukturen in der Moderne (Aceleração: A
Transformação das Estruturas Temporais na Modernidade) de 2005, traduzido pela
Unespe de 2019 e Social Acceleration: A New Theory of Modernity (versão em inglês de
2014). Hartmut Rosa, diz que gostaria de propor, uma definição. A de que “uma
sociedade é moderna quando apenas consegue se estabilizar dinamicamente; quando é
sistematicamente disposta ao crescimento, ao adensamento de inovações e à
aceleração, como meio de manter e reproduzir sua estrutura”. Ao longo de quatro
grandes eixos, Rosa trafega sistematicamente pelos conceitos de aceleração da dinâmica
das condições sociais, conceituando, para isso, os processos de alienação e ressonância,
e investigando as causas e os impactos dessa escalada. Em suas obras é possível ler sobre
a existência de três motores externos e independentes que impulsionam a aceleração
social. Nomeadamente, os motores econômicos (tempo é dinheiro – capitalismo:
alienação e aceleração; a competição e à concepção de boa vida), o cultural (a promessa
275

moderna de aceleração) e o estrutural (temporalização da complexidade). Por isso para


ele, haveria de se considerar que a Modernidade caminha e continua a caminhar para
uma dessincronização ou para uma sociedade dessincronizada, para uma aceleração
social, destemporalização e alienação. Marc Augé também poderia ser uma boa pedida
do leitor.
Não seria surpresa que o “dinamismo moderno” tenha contribuído para uma
manutenção da rigidez mais desprovida de espírito sob formas supermóveis. Antes, os
tempos medievais há o libertas, que a liberdade de ser senhor de si mesmo e de não ter
de obedecer a outrem. Pode-se notar isso nas práticas do duelo, do assento ao cavalo e
ao trono. Os modernos, por sua vez, numa visão mais completa de Sloterdijk,
introduziram o conceito de liberdade no sentido de articular motivos centrais de uma
“autoexperiência reconquistada por meios ativistas”. Trata-se aí da capacidade para ser
causa de novos empreendimentos ou autor de produções artísticas originais. Não à toa,
então, os modernos fizeram da ideia de liberdade algo que tem a ver com a capacidade
de iniciativa e expressividade (por um bom tempo a arte). Daí também o direito de
mobilidade ou livre circulação. Mas, no século XX, o conceito de liberdade tinge-se de
alguns rasgos sombrios até historicamente desconhecidos. Agora se lhe junta a liberdade
de explosão como liberdade de dispêndio de energia. Aparece em Nietzsche e em Balzac,
a vontade humana como sendo vista a partir da máquina a vapor à energia do fogo de
um canhão. Estão postas aí as metáforas de situações festivas (bombas, fogos de
artifícios, estouro de champagne, palmas, estourar balões; em conjunto usaríamos esta
ideia para a noção de calorias do corpo humano). Tomando no sentido gestual, os
movimentos pela liberdade são sempre passos para a liberdade de movimentos, mesmo
no sentido de autodeterminação, sempre se pensa em movimento próprio.
Ontologicamente, a Modernidade, é puro-ser-para-o-movimento. O processo
fundamental da Modernidade remonta como “movimentos de autolibertações da
humanidade”, um processo que nós, não podemos não querer e de um movimento que
é impossível não fazer. A tecnologia ocidental reside na técnica de explosão aplicada à
combustão e à destruição, muito diferente da energética da natureza, com um tipo de
procedimento mais implosivo ou desconstrução gradual. A libertação de energia através
da explosão é de fato uma marca nas experiências históricas. Os atuais sistemas de
propulsão possuem por enquanto, o princípio explosão por combustão ou na produção
276

de pressão por meio do calor. Isto é algo que não se verifica na natureza. Uma ideia da
nossa civilização de se aproveitar das explosões para fins técnicos e vitais para a produção
de trabalho útil. Microcatástrofes para serviços e projetos culturais. O sujeito moderno
poderia ser um metabolizador de alto rendimento, atua quase em um princípio de auto-
eliminação e auto-esforço. Entra em ação, um certo automatismo cinético, que não só
nos “condena à liberdade”, como também, ao constante movimento de libertação. Esse
sujeito da iniciativa que refina a si próprio, é o moleiro no “moinho que se mói a si
mesmo” dos tempos modernos, como bem afirma Novalis em 1799, em seu ensaio sobre
a Europa e o princípio do funcionamento do complexo homem-natureza-fábrica. Um
conceito cinético da mobilização perpétua, uniu dois conceitos do “moinho em
movimento” que é “movido pela correte do acaso e vai flutuando sobre ela”, como
movimentos de tipo automovimento endógeno e o heteromovimento exógeno, numa
mobilidade comum, elemento dinâmico (seria estranho pensar que depois disso
surgiriam automóveis?). Se tomarmos isso como verdade, a Modernidade não poderia
de maneira nenhuma conceber algum tipo de sujeito sem movimento – o seu
movimento, o Eu e o seu automóvel estando metafisicamente imbricados como alma e
corpo da mesma unidade de movimento. O automóvel pode-se dizer, foi o substituto
técnico do sujeito transcendental ativo. Não vemos a associação de automóveis com a
propaganda de liberdade de movimentos e de deslocamentos? Nos dá a sensação de
engrandecimento, poder, controle para habitar todo um universo de vias rápidas, uma
vida que nos mesmos controlamos (auto intensificação como aceleração?). Parece que
os grandes engarrafamentos (tráfego), indivíduos sentados nos ônibus, quedas de
energias elétricas, os roteadores de internet desconectados podem ter significativos
valores filosóficos perante os quais bem se pode ficar pensativo. A Modernidade
enquanto processo reporta-se a um modelo cinético, que é suscetível de se identificar
como o de uma mobilização. Por isso quando se tem automovimento para mais
movimentos, uma tendência para a motorização seria criada. Será que o leitor não
levantará suspeitas com a conotação militar que a expressão “mobilização” tem? A
impressão é correta. Em seu livro Mobilização Copernicana e Desarmamento Ptolomaico
de 1987, vemos às expressões “mobilização” e “desarmamento” com profundas relações
de origem militar e descrevem manobras de grandes exércitos ou exercícios de tropas. A
ideia implícita nessa imagem é a de grande organização de vários níveis de mobilização
277

que precisam sincronizar-se para construção do sentido de uma ação. Ou seja, a ação
precisa ser regida de maneira concatenada, como uma marcha em movimento seguindo
padrões e normas de comprovação dos mais simples aos mais complexos, a fim de que
milhares de componentes possam operar em sincronicidade. Mobilização poderia ser
uma categoria do universo bélico que abrange processos críticos graças aos quais
potenciais de combate em estado de repouso são levados à prontidão para entrar em
ação. Obviamente que o modelo básico desse procedimento, enquanto auto-atualização
para entrada de ação, não é exclusiva ao setor militar, mas ele traduz para tempos
modernos, os princípios fundamentais dos empreendimentos modernos de
automovimento. O pensamento ocidental entrou numa lenta e gradual mobilização em
diversos níveis de ação na construção das narrativas modernas. Por isso, o “modernizar”
ou as “modernizações”, para nós, homens desse tempo apresentam sempre do ponto de
vista cinético, esforços ou caráter de mobilização. Processos fundamentais político-
cinéticos. O leitor mais uma vez levantará suspeitas para talvez pensar em fascismo? Não
podemos deixar de mencionar Ernst Jünger como algumas obras mal vistas, ele já nos
anos 30 havia separado o fenômeno da mobilização de sua acepção militar para deslocá-
la para o moderno processo social no seu todo. Foi justamente porque esse conceito de
mobilização guarda um sentido positivo, também se presta para descrever e servir de
mecanismo “civilizador” que utiliza acréscimos constantes como poder e saber em
mobilidade, precisão e eficácia para processos de endurecimento e mortificação,
armamentos, guerra, expansões, dominação, neutralização, plenos poderes e romper
conexões e eras. Paul Valéry reforça a ideia num texto intitulado A Crise do Espírito de
1919, cuja primeira frase ficou famosa: "Nós, as civilizações, sabemos neste momento
que somos mortais e que o abismo da História nos afeta a todos". Um diagnóstico
catastrófico, não sob aspectos morais, mas no caso de Valéry, tecendo considerações
sobre a técnica como um poder universal em tons de uma teoria da civilização. Ele
compara de tal modo a mortalidade e a civilização que chegou a antecipar o problema
ecológico. "A crise econômica", explica Paul Valéry, "perante o espetáculo do Velho
Continente arrasado pela guerra, é visível em toda a sua força; mas a crise intelectual,
mais subtil e que, pela sua própria natureza, assume os aspetos mais enganadores (tudo
se passa no verdadeiro reino da dissimulação), essa crise dificilmente deixa transparecer
a sua verdadeira natureza, a sua fase”. Em toda a parte, onde o Espírito Europeu
278

dominou, viu-se aparecer um máximo de necessidades, de trabalho, de capital,


rendimento, ambição, poderio, modificação da natureza, relações e de trocas. Esse
conjunto de excessos, é o conjunto de máximos enquanto Europa (ou a imagem dela). É
digno de nota que o homem europeu não seja definido pela raça, língua, costumes, mas
pelos desejos, vicissitudes e pela ampliação da vontade. Todas as culturas, os coletivos
no seu estilo de existência, as sociedades avançadas tecnologicamente devem a partir
deste princípio ter uma relação onde não se podem furtar com a sua própria finitude.
Quando se vive em antecipações, vem também o perigo de autodestruição imanente à
cultura, os homens não podem deixar de tomar posição de modo cada vez mais
ponderado e sereno a questão do poder e da forma como o exercem. Desde a 1ª Guerra
Mundial, pelo menos, estão obrigados a fazer e a responder questões de se fomos ou não
capazes de aprender qualquer coisa sobre nós próprios a partir daquilo que aconteceu:
guerras, catástrofes, destruição, poluição, morte, corrupção, acidentes. A revolução
política estaria ligada à revolução industrial. Ambas se fundem e movem através das
mesmas crenças. Uma entrada da enciclopédia de Brockhaus sobre os caminhos de ferro
relaciona, em tom de heroísmo, a revolução industrial e a política. Diz que o caminho de
ferro se transfigura num “triunfal vagão a vapor” da revolução. Máquinas que ganham
vida, na sua melhor forma, navios e trens. É bem visível que um dos principais sistemas
de energia do século XIX, a máquina de tração dos caminhos-de-ferro, recebeu o nome
de loco-motiva, um instrumento de mover de lugar: a sua mobilização constitui
inicialmente uma etapa notável na indiferenciação do espaço de coordenadas. Os
técnicos do século XX sabiam que a ultrapassagem do espaço pela locomoção a vapor
estaria intimidante conectada à “vaporização do espaço” pela telegrafia elétrica, cujos
cabos seguiam por linhas do caminho-de-ferro. A situação inicial da mobilização infinita.
É certo que as pessoas ficam mais pálidas e os objetos mais coloridos.
Sloterdijk (2007, pp. 260-261):

É preciso ler a história da libertação energética paralelamente à história das


formas de subjetividade modernas: atrever-me ia a dizer que entre os séculos
XVI e XIX o problema da liberdade pode interpretar-se basicamente sob o
paradigma da viagem oceânica e o da escrita sob o da Galáxia Gutenberg.
Viajar pelo mar equivale a “empreender iniciativas de liberdade” com força
eólica, enquanto escrever significa “expressar-se livremente” com tinta; uns
navegam no alto mar, outros na folha de papel virgem, mas todos produzem
experiências de liberdade ou, mais precisamente, experiências de poder e
experiências eficazes que contagiam o resto da sociedade. Com estas
279

tecnologias possibilitadas pelo dinheiro, põem-se em marcha a revolução do


ativismo. É então que a sociedade moderna começa pouco a pouco o processo
de mobilidade e alfabetização. Já em 1848, Marx e Engels constatavam como,
por causa dessa desaforada mobilidade do dinheiro, “tudo o que é sólido e
permanente se volatiza no ar”. No século XX juntou-se a isto a liberdade dos
motores de gasolina, o que gerou mais efeitos contagiosos do que qualquer
coisa. Estes motores democratizaram a utilização das máquinas e canalizaram
a vontade de poder como vontade de viagem. O mais interessante disto tudo
é o modo como tem lugar a liberdade do movimento espacial ampliado.
Trabalhar e circular: estas são as cenas fundacionais das novas culturas do
poder. Mas quanto mais o século avança, mais o fato de viajar aparece como
uma desculpa que perdeu a sua razão de ser. A atual cultura de massas celebra
o dispêndio puro, um potlach energético absoluto que deixe de ser concebido
como transporte. É então que entra em cena a vontade de poder como uma
vontade de detonação. Se quiséssemos escrever uma teoria da cultura de
massas à altura dos atuais movimentos energéticos, seria necessário tentar
proceder a uma crítica da explosão. Esta deveria partir da observação de que
a cultura de massas contemporâneas é apenas uma competição pelo
dispêndio. Da mesma maneira que a arena antiga era um templo dedicado ao
dispêndio de homens e seres vivo, a arena moderna é um templo dedicado ao
dispêndio energético.

O conceito de essence, utilizando aqui no sentido de combustível, com a


gasolina, em francês “essência”, alude uma época em que compreendemos a ideia de
matéria, como algo essencial, como um princípio de energia ativa. Para indivíduos como
nós, a gasolina (Benzin) e o urânio são as “essências” da nossa época. O que entra em
jogo é a ideia de que a matéria essencial está disposta a trabalhar em nosso favor. Há
uma profunda relação entre essence (todos os derivados do petróleo; entre todos os
produtos usados por nós uma grande maioria possuem derivados de óleos e petróleo) e
a liberdade, no âmbito da subjetividade, uma relação entre energia suscetível de
dispêndio e autorrealização – deixar explodir a “essência” rica em energia, é no fim,
desenvolver a substância enquanto sujeito. Na Modernidade, utilizamos o conceito de
liberdade como articulação de motivos fundamentais de uma auto-experiência
reconquistada por meios ativistas. Basicamente, a capacidade de ser causa de novos
empreendimentos, como uma espécie de ator da criatividade, autor de produções
artísticas originais. A liberdade seria a capacidade de iniciativa e a expressividade (talvez
desde 1789 no âmbito da política isso tenha se materializado na política com o
Parlamento). Possui fortes tons expansionistas e agressivas, como uma não-impotência e
pela falta de apego ao solo, adquire-se uma mobilização, um direito de desenvolver
forças: mobilidade e circulação livre – liberdade como um direito fundamental, direito
Humano, direito Constitucional.
280

Mas os incolores são chamados a escolher as colorações das estações. O mundo


vira um cardápio de possibilidades e de variantes em formas na metamorfose e no
camarim do capitalismo: a metamorfose técnica e monetária do mundo. Vários
observadores da época, Baudelaire, que Benjamin convocou como testemunha principal,
narram que as coisas esfriavam e mostravam uma cara enganadora, uma manha. Como
que animadas por um motivo malvado e autônomo, esforçavam-se para ir entre as gentes
em lugar de ficarem junto de um único proprietário. Haveria uma traição no ar, como se
as coisas, tornando-se mercadorias, pudessem cometer infidelidade. A proposta de
Benjamin, por clara tradição de Marx e Baudelaire, visava estabelecer a considerar que a
prostituição não era apenas a exploração profissional da ilusão sexual, mas também um
modo geral de ser das pessoas e das coisas no mundo animado pelo dinheiro, acolhia
esses nexos sensorialmente, fazendo um retorço de uma forma que, também ela, não
estava desprovida de ilusões. Na medida em que dava ao dinheiro um caráter injusto por
ser meio de admissão de objetos de desejo, sustentava-se a ideia anarquista segundo a
qual as melhores coisas deveriam no fundo ser gratuitas, com isso, ninguém imaginou
que o acesso por pertença, no qual o princípio utópico da gratuidade tem seu modelo, é
de longe, o mais oneroso de todos. A tradição de Benjamin fornece uma visão histórico-
filosófica de um fantasma de homem melancólico que vinha acoplada ao caráter duplo
de messianismo e marxismo, onde as putas e outras superfícies ilusórias e lisas se
reduzem ao modo de ser do puro valor de uso. Marx já acreditava que a sua reconstrução
da condição moderna do trabalho já havia descoberto a lei geral do movimento das
sociedades de classes contemporâneas. Nestas sociedades, seja o que for que se mova
nos aspectos políticos, culturais, sociais, psicológicos, não pode haver mais nada, senão
um movimento secundário, que em último caso, seria regido pelo movimento econômico
primário. As atividades humanas para a reprodução material foram amplamente
abrangidas pelo processo capitalista como atividades no processo material da vida
através da criação de valores do capital. Autovaloração do valor, enquanto produção de
produtividade, é uma das numerosas maneiras de uma mobilização girar em espiral nos
tempos modernos como movimento para mais movimento. Marx acerta quando
descreve o capital circulando em torno da sua própria multiplicação como uma grandeza
que procede de modo demiúrgica que por causa de sua multiplicação conservadora de si
mesma, sujeita ao seu ritmo abstrato os atos concretos da vida dos que trabalham.
281

África Ocidental: Voodoo.

Chaves-amuleto de prata. Século XVIII.


282

Árvores magnetizadas. Desenho de capa de Brockmanns Archiv. (1787).

Há ainda uma outra tradição, segundo a qual o nome secreto não é tanto a chave
da sujeição da coisa à palavra do mago, sobretudo, quando o monograma que sanciona
a sua libertação com relação à linguagem. O nome secreto era o nome com o qual a
criatura é restituída ao inexpressivo. Por isso, a magia chamaria por felicidade. O nome
secreto passa a ser gesto. A magia em última instância seria gesto, desvio em relação ao
nome. Não vemos crianças inventando uma língua secreta própria? Quem inventa um
novo nome encaminha sua felicidade. Ter um nome é a culpa. A justiça é sem nome,
assim como a magia. Livre de nome, a criatura bate à porta da aldeia de magos, onde só
se fala por gestos. A própria noção de luta de classe (se é que ainda existe) mudou. A
frase do Manifesto Comunista de que há um fantasma nos rondando, e que se trata do
comunismo, nunca foi tão atual. De fato, fantasma é algo que pode assombrar, mas está
morto. E, na verdade, depois do surgimento de Gasparzinho – “O Fantasminha
Camarada”. O termo camarada aí, sempre foi uma grande gozação política), nem as
criancinhas se assustam com espectros. Ectoplasmas que se virem. Mortos são mortos.
283

O mundo atual é um mundo mais desencantado. O pano de fundo mais geral para essa
discussão de ciência e valores é o reconhecimento de Weber de que seu mundo, o mundo
moderno, está desencantado. O único encantamento dele que restou, e já basta, é o
dinheiro e seu fluxo, e a capacidade dos governos de apagarem fogos em momentos que
são cada vez mais imprevisíveis.
Sloterdijk (2008b, p. 191):

Uma vez tendo aceite a metáfora do “palácio de cristal” como emblema para
as ambições finais da modernidade, podemos refundar a simetria muitas vezes
assinalada e muitas vezes negada entre o programa capitalista e o programa
socialista: o socialismo/comunismo era muito simplesmente o segundo
estaleiro do projeto do palácio. Encerrado o seu ciclo, torna-se evidente que o
comunismo era uma etapa na via do consumismo. Na sua interpretação
capitalista, as correntes do desejo conhecem um desenvolvimento de potência
incomparável – o que também começam a admitir pouco a pouco os que
tinham comprado ações do socialismo na bolsa das ilusões, ações de que se
conservarão alguns exemplares, como essas notas de mil milhões de marcos
do ano de 1923. Do capitalismo, porém, só agora se pode dizer que
representou sempre mais do que uma “relação de produção”; desde sempre,
a sua pregnância ultrapassou amplamente o que a figura intelectual do
“mercado mundial” podia designar. Ele implica o projeto que consiste em
transpor a totalidade da vida do trabalho, dos desejos e da expressão artística
dos seres para a imanência do poder de compra.

O “espectro do comunismo” serve apenas para que o retardado mental fale


dele, a favor ou contra, e se mostre um retardado mental (Zizek?). Que deu declarações
quase fascistas sobre um “campo de refugiados”. É por isso que Zizek não tem a mínima
chance no debate com Peterson. Zizek é político demais em seus textos e falas. Peterson
me parece as vezes muito blasé, e fala coisas extremamente psicologizadas, mas é
inegável que o tema do debate o favorece: um antagonismo entre capitalismo e
marxismo sobre um tema suspeito, a “felicidade”. Nessa batalha o capitalismo sempre
ganhará, metafisicamente mais rico, filosoficamente mais ingênuo, mágico,
antropologicamente superior, economicamente consegue ainda andar, e demos uma
colher de chá para Zizek, já que não colocamos aqui uma coisa chamada: estatísticas. O
termo species, que significa “aparência”, “aspecto”, “visão”, deriva de uma raiz outra que
é o sentido de “olhar” e “ver”, que também pode ser visto em speculum, espelho,
spectrum, imagem, fantasma, ou ainda expecto, feitiço – como o Expecto Patronum de
Harry Potter (uma fumaça branca), perspicuus, transparente, que se vê com clareza,
speciosus, belo, que se oferece à vista, specimen, exemplo, signo, spectaculum,
284

espetáculo. Na terminologia filosófica, species é utilizado para traduzir o grego eidos


(como genus, ou seja, gênero, para traduzir genos), daí o sentido que se usa nas ciências
naturais (espécie animal ou vegetal). Na língua do comércio, o termo significará
“mercadorias”, particularmente no sentido de “drogas”, “especiarias”, iguarias, açúcar
(Sombart) e é claro, mais tarde, dinheiro (espèces). Cabe uma pequena observação em
uma palavra bem pouco conhecida. Ela é a palavra charlatão. A expressão vem de um
tipo de pregoeiro de mercado que surgiu em plena Itália renascentista, na cidade de
Cerreto, cidade bastante conhecida pelos seus terapeutas, os chamados cerretani, são
vendedores de ervas medicinais, de onde passa um desvio, para a expressão em francês
charlatan. Essa poderia ser uma relação antiga que chegou para os modernos da práxis
médica entre operar e praticar magia.
Do francês fetiche, significa “sortilégio, amuleto” e do latim factitìus, que
significa "artificial, fictício". Significa da língua inglesa spell como feitiço, encanto, magia,
spell como atividade típica de soletrar nomes, ou spell enquanto espelho. O espelho que
reflete um feixe de luz: mirror image. O espelho é o lugar em que nós descobrimos que
temos uma imagem e, ao mesmo tempo, que ela pode ser separada de nós, que a nossa
“espécie” ou imago não nos pertence. Entre a percepção da imagem e o reconhecer-se
nela há um intervalo que os poetas medievais chamavam de amor. Sloterdijk comenta a
insistência da psicanálise com a imago, iniciada já com Freud e Jung, que transforma o
termo em conceito. Ele torna-se também título de uma revista, American Imago, que
Freud funda em 1939 com Hanns Sachs, e ressalta que é precisamente esse ponto, essa
fascinação quase a priorística com a imagem que faz da teoria psicanalítica de Lacan algo
de "criptocatólico" e "aproximado ao surrealismo", nas palavras de Sloterdijk. É digno de
nota que Sloterdijk continuamente remeta a psicanálise ao mesmerismo e vice-versa. Ele
dedica um longo capítulo de Bolhas à Mesmer, e às teorias do magnetismo, e que nesse
ponto ligue Lacan ao surrealismo, pois nos lembra que foi justamente a atividade de
Mesmer que nos remeteu aos procedimentos do surrealismo em geral e aos de Marcel
Duchamp em particular.
Sloterdijk (2007, p. 141):

Seria desejável que a psicanálise pudesse aprender a desembaraçar-se um


pouco do seu fetichismo em relação ao imago e do seu delírio relacional com
o objeto, bem como o romanticismo da psicose que germinou como uma erva
daninha no momento áureo da seita lacaniana. Mas agora a força do
285

movimento psicanalítico reside no fato de poder prosseguir o seu trabalho


criativo levando em conta os erros do mestre. Os processos psicológicos de
aprendizagem, que desbrava caminho para o moderno conhecimento do
homem, vão mais longe do que as biografias dos seus grandes construtores
particulares; mais ainda, obtiveram o estatuto de uma autêntica instituição
pedagógica que ultrapassa o tempo de vida de uma geração de investigadores
e possibilita um processo duradouro a longo prazo; por isso, a questão do
psíquico e do saber que lhe está ligado não chegou ao seu termo;
provavelmente teremos uma ou outra surpresa. Neste campo, avança-se
fundamentalmente através de erros geniais. O meu trabalho pertence a esta
fase de correção do passo em frente dado por Lacan e outros.

No romance chamado A Árvore Mágica: O Surgimento da Psicanálise no ano de


1785 - Tentativa Épica com Relação à Filosofia da Psicologia de 1988,44 do filósofo alemão
contemporâneo, narra a história de Jan van Leyden, um jovem médico vienense que se
encontra em Paris nos dias efervescentes da Revolução Francesa. Ele viaja para lá a fim
de aprender as novas técnicas terapêuticas de cura atribuídas a Franz Mesmer e seus
discípulos: o magnetismo animal, mais tarde conhecido como mesmerismo. A análise que
se segue ao comentário interpretativo discute a respeito dos personagens e cenários
históricos criados por Sloterdijk a fim de ambientar sua hipótese épica: a de que a
psicanálise surgiu no ano de 1785, cerca de 100 anos antes das primeiras publicações dos
trabalhos de Freud. Além disso, serão apresentados alguns dos personagens do livro que,
em algum momento, entraram em contato com Van Leyden.
A proposta é mostrar ao leitor como esses personagens são usados por
Sloterdijk para figurar ideias relacionadas à filosofia da psicologia e à psicanálise. Até
mesmo em Esferas I algumas passagens dizem muito a respeito desse tema.45 Coisas
como o círculo de energia curativo entre o magnetizador e um paciente ou teorias e
práticas erotomágicas do princípio da era moderna. Um caso emblemático foi Os Fatos
no Caso do Senhor Waldemar (1839) de Edgar Allan Poe (publicado pela primeira vez no
American Review, dezembro de 1845)46 e na novela de E.T.A Hoffmann, O Magnetizador
(1813). Uma história macabra que documenta a difusão do magnetizador no âmbito do

44
SANTOS, Maria Siqueira. A História das Ideias Em a Árvore Mágica de Peter Sloterdijk. IV Seminário de
Pesquisa. Programa de Pós-graduação em História Social, 2010, pp. 443-453. Disponível em:
<http://www.uel.br/pos/mesthis/arqtxt/ANAISIVSEMINARIOPPGHS08022011MESTHIS.pdf>. Acesso: 27
Mar. 2018.
45
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Bolhas. (Microesferologia). Tradução: José Oscar de Almeida Marques. São
Paulo: Estação Liberdade, 2016, p. 189. Capítulo 3.
46
POE, Edgar Allan. Contos de Terror, de Mistério e Morte. Tradução: Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1981, p. 223.
286

oculto e desconhecido. Uma tendência que se manifestou no Renascimento e se


disseminou no sob o Império com sua recepção Russa e Americana. Na história temos um
conto macabro de se magnetizar um homem à beira da morte e como resultado sua alma
ter ficado presa sete meses em um corpo fisicamente morto. Essa cena é bizarra porque
após uma tentativa de ressurreição, a alma aprisionada continuava a falar com os vivos,
mas em um corpo em putrefação que estava se desfazendo aos pedaços. No caso
Hoffmann, há a descoberta de um traço moral no lado noturno da natureza, pois quem
poderia impedir que nesse espaço para o uso magnéticos se processe uma transição
entre o uso médico do poder e a aspiração ao poder político ditatorial?
Albano, personagem do conto, tem a obstinação e uma vontade incontrolável
de poder, pois para ele realizar tratamento simples como dores de cabeça ou pequenos
incômodos fisiológicos de pessoas com o magnetizador era pouco. Esse tesão
magnetopático lhe afasta de um simples meio para ser uma condição de existência e de
poder. Com esse magnetizador teremos não mais pacientes, mas vítimas. As vítimas não
são permitidas sair desse círculo mágico. Sair do encantamento não é uma opção, logo,
é mais fácil haver mortes que fugas. O que temos aí, é o nascimento das psicosseitas
modernas baseadas na exploração da intimidade. No âmbito burguês teremos, paródias
terapêuticas entre senhores feudais e vassalos. No século XX isso apareceria como um
totalitarismo aurático de Stefan George, cuja palavra “círculo” devia ter uma carga
espiritual e sociológica. O feudalismo também teve influências aqui com sua metafísica e
psicologia de alteração dos espaços.
O círculo é sua aura, e nenhum dos membros tem ou procura a mísera ambição
de ser obstinada e conscientemente, uma “personalidade”, pois sua tarefa é construir ar
e elemento. O mesmo princípio que faz do soberano o centro de uma esfera vital, o
impulso para a unidade, esse mesmo impulso relaciona, no reino do espírito, os que
governam e os que servem.47 Tudo isso com seu ápice na modernidade ganhou caráter
“místico” vamos encontrar inúmeras atividades anticlericais e de “inovação cultural” que
reivindicavam estar “ao lado da ciência”, feitas pela aglutinação de pessoas desses
grupos. Clubes de fotografia, centros de mútua ajuda, centro de palestras em prol da
ciência, centros de cultura operário ou italiana etc. Uma onda tardia de restos de

47
SAFRANSKI, Rüdiger. E.T.A Hoffmann. A Vida de um Cético Fantasioso. Munique/Viena, Hanser, 1984, pp.
294-310.
287

iluminismo e romantismo vieram com os ventos republicanos. Veremos pessoas tomando


“poções” no sentido de ter experiências místicas, algo não muito longe da psicografia.
Nessa época, sabemos, apareceram os que queriam mensurar espíritos, pesá-los, obter
a imagem do ecotoplasma por meio de fotos (a lente da máquina não se enganaria,
diferente do olho humano). Há hoje na cultura pop, filmes, séries, programas que tentam
captar efeitos materiais, visíveis, através de câmeras em casas sem ninguém, ditas mal-
assombradas. Pessoas que estudam “fenômenos místicos”, cadeiras que se movem,
aparições fantasmagóricas, ET’s, óvnis, etc. Claro que, depois, exorcistas de todo tipo
aparecem por lá, para “resolver” o problema. Não se trata de fazer ficção, mas sim, de
algo na mesma linha desse movimento da transição do século XIX para o XX. Uma reação
posterior à Mesmer e do movimento a respeito do “magnetismo animal” do século XIX.
Sloterdijk (2012, pp. 87-88):

Puységur já sabia, de modo semelhante ao de Mesmer, que sua personalidade


constituía nas curas hipnóticas o agente propriamente dito – em uma
formulação mais exata, o agente era a ligação íntima que se produzia entre ele
e o paciente. Essa “ligação” – em uma terminologia mais recente: a
transferência – servia como meio de uma prática metódica e exitosa em
termos de psicologia profunda. No mínimo até a metade do século XIX esse
procedimento foi constantemente desenvolvido e praticado de formas críveis.
Schopenhauer afirmou que essa descoberta seria bem possivelmente a mais
importante em toda a história espiritual do homem, ainda que ela mais
apresentasse do que resolvesse de início enigmas à razão. De fato, aconteceu
aqui a irrupção de um movimento em direção a uma psicologia profunda
secularizada, que conseguiu livrar seu saber da psicologia religiosa e pastoral
tradicional (cuja competência psicológica tinha com certeza se confirmado à
luz de um acesso não sacralizado ao inconsciente). A descoberta do
inconsciente toca naquele âmbito, no qual as contraintuições da antiga
esotérica confluíram para a estrutura do saber especificamente moderno,
construído à sua maneira e a princípio de modo contraintuitivo; naturalmente,
porém, de qualquer modo os dois precisam buscar pôr fim a articulação com
a “experiência direta”.

Entre os humanos o fascínio é a regra e o desencanto, a exceção. Como criaturas


que desejam e imitam, os seres humanos experimentam o anseio do outro. Na linguagem
da tradição, isso aparece como a lei da simpatia, estipula que o amor não pode fazer nada
além de despertar o amor. Da mesma forma, o ódio gera sua resposta agradável. A
rivalidade infecta os interessados no mesmo objeto com a vibrante ambição do
competidor. Sloterdijk sustenta que é simpatia, participação em um círculo mágico de
atrações, fascinação, que caracteriza nosso espaço existencial mais real, o ar em que
"vivemos, nos entrelaçamos e somos", como diz São Paulo em seu discurso às
288

areopagitas. Nós percebemos dentro de nós uma dimensão que é ao mesmo tempo que
nos rodeia. Em mim é o que eu respiro, o que eu compartilhar, que do qual sou parte e
contraparte. As esferas são espaços de simpatia, espaços tuning, espaços de participação.
Se não pressupõe a sua existência, não poderíamos compartilhar uma palavra com o
outro, e assim tomar por pressuposto, também equipar-nos com uma nova intensidade.
Mesmo a interação mais banal envolve a nossa participação na constituição de campos.
Sem eles não haveria famílias, comunidades existenciais, comunas, equipamentos,
pessoas. Ninguém suportaria passar um dia no mesmo quarto com outro homem se os
dois participantes não têm a incrível capacidade de se conectar através de frequências
comum, sintonizarmos.48 Não é de admirar que na introdução de Esferas, Sloterdijk
refere-se a duas inscrições que Platão colocados na entrada da Academia. A advertência
a aqueles que não eram geômetras; mas, por outro, mais escondido, ele convidou
afastado para aqueles que consentisse em manter dramas amorosos. O vínculo que une
estas duas máximas ou avisos é explicado rapidamente, e resumido em outro termo
apenas no século XX tornou-se importante: a transferência. Isso explicaria o fato de uma
onipresença das retóricas familiares em todas as grandes estruturas sociais, deuses e
animais também entram aqui, até mesmo aquelas estruturas que não tem tantos traços
com as famílias como o Estado, Igrejas, Exércitos, Universidades. Como se sabe, Hegel em
sua embriologia filosófica, faz uma ligação entre o antigo conceito de gênio e o mais
avançado estado de investigação psíquica laica. Hegel chegou a dizer que “a mãe é o
gênio da criança”. O chamado magnetismo animal que retorna à Mesmer e à sua escola.
Hegel ao fazer isto aponta para a possibilidade de um mediunismo civil. Para o
pensamento arcaico, estar-no-mundo equivale a um estar-ampliado-na-mãe. Só na era
metafísica isso viraria um estar-em-Deus. Depois, na pós-metafísica faria disso um estar-
lançado-no-mundo – aqui surge pela primeira vez um exterior real.
Foi com o mesmerismo que o desencantamento das relações de seio passou
para o domínio das possibilidades humanas, um esoterismo democrático como psicologia
profunda com o transe magnético, sonambulismo artificial, da relação hipnótica, temos
afirmações sobre a magia natural de transfusões anímicas puras que podem ser
remetidas ao modelo do habitar fetal (com Nicole Malebranche). Estava inaugurada a era

48
SLOTERDIJK, Peter. Experimentos con uno Mismo. Conversaciones con Carlos Oliveira. Traducción Germán
Cano. Editorial Pre-textos. Valencia, 2003, p. 93.
289

do pensamento evolucionista e curricular, como complemento dos programas didáticos


e histórico-filosóficos do Iluminismo, desenvolveu-se a partir do século XVIII, uma
psicoterapêutica que se consagra na correção dos processos de formação interrompidos.
O aparecimento de formas iniciais hipnóticas, magnetopáticas e fluidísticas da moderna
psicologia profunda (reeducação de almas malformadas). Apesar de seu ceticismo sobre
os fenômenos sobrenaturais, o próprio Freud também estava interessado no oculto. Por
isso, pode não ser surpreendente que vários primeiros freudianos tenham tentado
estudar as alegações de telepatia e outros fenômenos psíquicos supostamente
espiritualistas. Por exemplo, escreveu Gyimesi, Sándor Ferenczi, colaborador próximo de
Freud e fundador da Escola de Psicanálise de Budapeste, que conduziu experimentos com
médiuns e clarividentes. Ferenczi argumentou que a transferência de pensamento era
comum entre seus pacientes. Em uma carta de 1910 a Freud, ele escreveu que estaria
lendo os pensamentos de meus pacientes (“em minhas associações livres”). Esse método
seria o mais adequado para capturar os complexos mais ativos do paciente no trabalho.
Freud, sempre profundamente preocupado com a reputação da psicanálise, advertiu
Ferenczi de que estava “lançando uma bomba no edifício psicanalítico”. Mas, apesar de
seu ceticismo em relação aos fenômenos sobrenaturais, o próprio Freud também estava
interessado no ocultismo. Em uma carta de 1921, ele escreveu que não é daqueles que
rejeitam de início os estudos dos chamados “fenômenos psíquicos ocultos” como não
científicos, desacreditados ou mesmo perigosos. Se ele estivesse no começo e não no
final de uma carreira científica (até porque Freud morreu no mesmo ano de 1939), ele
poderia talvez, escolher esse campo de pesquisa.
O mais famoso defensor de uma expansão da teoria psicanalítica para o reino
do ocultismo foi o discípulo favorito de Freud, Carl Jung. O interesse de Jung pelo
sobrenatural se desenvolveu antes de conhecer Freud; vários membros da família de sua
mãe reivindicaram habilidades sobrenaturais. Em suas palestras profissionais, Jung
criticou o pensamento puramente materialista como “morte intelectual”. Ele
argumentou pela existência de uma alma imortal, com uma presença fora do espaço e
do tempo. Gyimesi escreve que a teoria de Jung desexualizou as bases motivacionais da
psicanálise e postulou uma força vital obscura e pouco racional no centro da psique
humana. Jung recordou uma conversa em que Freud pediu que ele se comprometesse a
nunca abandonar a teoria sexual. Que isso deveria se tornar e se fazer um dogma disso.
290

Uma luta contra a maré negra da lama: do ocultismo. Em 1986, Avital Ronell publica um
livro intitulado Dictations: On Haunted Writing, dedicado justamente à permanência
(fantasmática, espectral) das Conversações de Goethe e Eckermann. À maneira do livro
de Jacques Derrida, o projeto de Ronell poderia muito bem ter sido chamado Espectros
de Goethe, já que a autora defende a ideia de Conversações como uma sorte de
mensagem polifônica de Goethe do além-tumba (como as Mémoires d'Outre-Tombe de
Chateaubriand, lançadas em 1849-1850). Ronell salienta os momentos em que Goethe,
em suas conversas, remete ao fluido e ao imaterial, aos sonhos e sensações, nuvens,
fantasmas e transmissões telepáticas, rastreando esse tipo de atenção até, por exemplo,
Freud e sua Psicopatologia da vida cotidiana.

No Romance da Rosa temos Ociosa. Ela o primeiro personagem que o poeta conhece e que vive
no interior do Jardim. Ela tem um espelho em uma das mãos, que pode ser associado à luxúria,
já que é um atributo de Vênus e, Ociosa é sua representação, embora na tradição de André
Capelão (séc. XII), a luxúria está descartada do amor cortês. Quando Ociosa mostra o espelho ao
poeta, está lhe ensinando o reflexo do mundo que existe dentro do Jardim, sendo, portanto,
também a representação da água (o rio do início do poema). Além disso, associa-se com o mito
de Narciso, que surgirá adiante no texto. Com a aparição de Ociosa, o poeta se insere na
tradição da poesia amorosa, pois Ovídio diz que devemos fugir da ociosidade para evitar as
flechas de Cupido, ideia adotada também por André Capelão. Ociosa é uma mulher rica,
291

afortunada, leva uma vida agradável, pois com nada se ocupa senão gozar e desfrutar, pentear-
me e fazer tranças (a Ideia tanto moderna como a de luxo no capitalismo atual; luxo e
capitalismo são forças que se atraem como se percebe em Sombart).

O espelho de Narciso é, nesse sentido, a fonte de amor, experiência inaudita e


feroz de que a imagem é e não é a nossa imagem. Temos o mito de Narciso, que
justamente não deve ser lido como indício de uma relação natural do ser humano com
sua inquietante estranheza da reflexão facial. A tentativa de se favorecer uma
substituição do “estágio do espelho” pelo “estágio da sereia” seria bastante adequado.
Esse é um dos pontos mais conhecidos das obras de Lacan, mas também o mais frágil.
Em Lacan percebemos uma certa leitura com sentimentos mitigados, aspectos
antipáticos em seu estilo de escrita. Como todos sabem há uma excessiva valoração e
certeza do imaginário, tão veementemente reforçada pelos psicanalistas vieneses e
seguida pelos franceses (não tomam para si a constituição psico-acústica). No Oriente,
percebe-se uma crítica do Ego metafísico que parece caminhar junto com Sloterdijk. Não
é um acaso que a história seja transmitia por Ovídio. O infortúnio narcísico é nada mais
que um acidente da autorreflexão. Quando eliminamos esse intervalo, nos
reconhecemos sem nos termos desconhecido e amado na imagem, isso significa já não
poder amar, acreditar que somos senhores da própria espécie, que coincidimos com ela.
Ao prolongarmos incessantemente o intervalo entre a percepção e o reconhecimento, a
imagem é interiorizada como fantasma, e o amor recai na psicologia. Pessoa significa
originariamente máscara, ou seja, algo especial. Para mostrar o sentido dos processos
teológicos, psicológicos e sociais que revestem a pessoa, nada é melhor do que o fato de
os teólogos cristãos terem reconhecido esse termo para traduzirem o grego hypostasis,
ou seja, para ligarem a máscara a uma substância (três pessoas em uma substância). A
pessoa é a captura da espécie e a sua vinculação a uma substância com o objetivo de
tornar possível sua identificação. Vemos nossos documentos de identidade que contêm
uma fotografia, um outro dispositivo de captura da espécie.
Diz Kittler (2016, pp. 194-195):

O mesmo Balzac, que pretendia criar suas figuras fictícias como


daguerreótipos, disse a seu amigo Nadar, o primeiro e mais famoso fotógrafo
de retratos da França, que ele mesmo tinha pavor de ser fotografado. Balzac,
292

com suas tendências místicas, só conseguia imaginar o ser humano como um


ser que consiste em muitas camadas ópticas - como uma cebola -, das quais
cada fotografia retira e arquiva a camada superior, descascando-a, portanto,
da pessoa fotografada. A próxima fotografia retira a camada seguinte etc - até
causar o desaparecimento da pessoa retratada, transformando-a em fantasma
sem corpo. Edgar Allan Poe, que também escreveu sobre o milagre da
fotografia, generalizou essa fantasmagoria, levando-a à tese de que as
imagens em geral seriam fatais para seu objeto ("The Oval Portrait").49 O pintor
de Poe retrata sua amada sem perceber que, na medida em que o retrato a
óleo adquire a cor da carne humana, a amada se torna cada vez mais pálida.
Com seu handicap da deterioração dos pigmentos a pintura aplica seu efeito
fotoquímico contra o próprio ser humano. Quando o pintor de Poe completa
seu quadro fictício, a amante morre. Mais uma vez, resta à análise midiática
enfatizar como as fantasmagorias ou (como diria Jürgen Link) os símbolos
coletivos históricos se apoiam em tecnologias. Os medos de Balzac ou de Poe
descrevem o fato evidenciado pela teoria de Arnheim, segundo a qual surgiu
com a fotografia uma técnica de arquivamento que, pela primeira vez,
reproduziu o objeto representado em sua materialidade inconcebível.

Pinturas sobrenaturais estavam presentes na literatura inglesa desde o romance


de Horace Walpole O Castelo de Otranto, de 1764. Mas na década de 1880 ocorreu uma
inundação de contos e romances nos quais retratos mágicos tinham papel de relevo.
Oscar Wilde não se baseou em nenhuma dessas histórias exclusivamente, porém
incorporou em O Retrato de Dorian Gray uma verdadeira coletânea de temas associados
com a ficção de retratos mágicos. O romance de Wilde é o coroamento de uma tradição

49
Marx propôs o fim do mercado. Por que Marx precisaria do fim do mercado? Aí entra a análise filosófica
da preocupação com a visão que ele tem: é a visão da emergência dos fantasmas. A época em que Marx
viveu possibilitou ele ter a noção da metafísica aliada ao valor-trabalho (horas de trabalho) para a
mercadoria. Essa época foi marcada por uma literatura fantástica, onde se viu diversos contos, temas,
histórias sobre ectoplasmas, espiritismo, espectros se movendo pelo mundo e pelas casas. De 1840 até
1920 é um período de uma literatura onde se queria falar, ver, capturar, tirar fotos com fantasmas. Nesse
sentido, vemos o suspense ganhar elevação no cinema. Sobre isso indicamos o conto Flor, Telefone, Moça
de Carlos Drummond de Andrade, no livro “Contos de Aprendiz”. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
Vemos a ideia de que os mortos se utilizam de objetos tecnológicos, onde objetos criam vida e fazem o
papel de fantasmas está presente no século de Marx. Porque a própria mercadoria para o Marx é um
fantasma. É uma situação fantasmagórica como aparição. Marx pensou a mercadoria fantasmática sensível
e insensível ao mesmo tempo. Ela é da ordem espiritual, mas ao mesmo tempo ela tem um corpo. Não é o
espírito habitado o corpo, ela é da ordem espiritual que forja algo corpóreo como um espectro. Entra a
noção de valor de uso e valor de troca e trabalho abstrato em termos de horas embutido nela. Por isso que
somente terminando com o mercado, a ideia de fetiche e reificação do homem seria o caminho para a
volta da humanização do homem. Há uma inversão do fetiche do objeto com o homem. O mercado seria a
inversão entre sujeito e objeto. É a desumanização do homem, pois deixa-nos em uma situação de se estar
vivendo-comprando com um pé do espírito sugado e interiorizado na mercadoria. O vivo é a mercadoria.
Não um vivo como vivo, mas como fantasmagórico, o homem que era o vivo passa a ser o morto,
obedecendo os fantasmas (spectrum-spectaculum). Esta inversão é a ideologia que não passa pela cabeça,
mas algo sedimentado pelo mercado enquanto prática, e não um texto que vai conquistar você. O fim do
mercado no limite quer que o homem volte e saia da ideologia para enxergar a verdade sem o viés
ideológico, a prática do mercado que faz com que nós fiquemos à mercê dos espectros. Marx antes de
tudo, é um filósofo, e como tal, possui um projeto epistemológico na cabeça com uma nova ontologia, uma
ontologia onde o homem se ponha como controlador dos objetos e não um ser controlado. A proposta do
comunismo passaria metafisicamente por estes termos.
293

que inclui trabalhos consagrados como "Prophetic Pictures" de Nathaniel Hawthorne


(1837), "O Retrato Oval" de Edgar Allan Poe (1842) e "O Retrato", de Gógol (1835). Wilde
foi, sem dúvida, fortemente influenciado pelo livro Melmoth The Wanderer (1820),
escrito por seu tio-avô materno, Charles Maturin, no qual um retrato do malevolente
Melmoth (que negociou com o demônio uma vida mais longa e uma aparência não
modificada), fica escondido num armário e tem olhos que se movem. A Pele de Onagro
(1831), de Balzac, também afetou Wilde no romance. Uma imagem de Cristo exerce
sinistra influência e uma pele de asno se torna um registro objetivo e visível da
degeneração de seu dono. Curiosamente, Balzac publica em 1835 seu Melmoth
apaziguado, uma espécie de continuação para o romance de Maturin. É curioso também
que Hawthorne tenha publicado em 1828 um romance chamado Fanshawe, seu primeiro
trabalho, e que o protagonista se chame justamente Dr. Melmoth. Fanshawe" é também
o nome de um dos personagens de A Trilogia de Nova York de Paul Auster. E Melmoth
retorna também em Nabokov, em Lolita - "Melmoth" é o apelido que Humbert Humbert
dá ao seu carro (claro, o errante, o desvirtuado). Até certo ponto, são histórias nas quais
a vida é transmitida, geralmente com a ajuda do demônio a um objeto, um talismã, que
vai aos poucos absorvendo a carga vital do tempo que se encadeia (um quadro, um
pedaço de pele, um carro). E também pode ser "Melmoth" o nome de Rousseau, errante
em seus Devaneios do Caminhante Solitário (1782).
A linguagem é um tema fundamental para Coetzee, mas no sentido de uma
operatividade e de uma consciência da linguagem como mediação, como
problematização da vida. Está em seus ensaios, em sua ficção e em suas intervenções (daí
sua proximidade com Beckett, sua leitura técnica e acadêmica de Beckett na década de
1960). Na primeira metade do Diário de um Ano Ruim (2008), há um capítulo que se
chama "Do uso do inglês". Na segunda metade do mesmo livro, um capítulo nomeado
"Da língua-mãe", temos nele escrito: "às vezes tenho a inquietante sensação de que
aquele que eu escuto não é aquele que eu chamo de eu; é mais como se alguma outra
pessoa (mas quem?) estivesse sendo imitada, acompanhada, até arremedada. Larvatus
prodeo". E mais adiante: "talvez todas as línguas sejam línguas estrangeiras, estranhas ao
nosso ser animal". De novo o latim de Age of Iron (A Idade do Ferro de 1990). Temos
"larvatus prodeo", eu caminho mascarado, "título de uma obra breve de René Descartes,
de 1618", afirma o tradutor José Rubens Siqueira em nota (curioso que a edição original
294

não apresenta qualquer tipo de esclarecimento - Coetzee a pensou assim, uma


interpolação inexplicada). Quanta História, densidade e erudição em duas palavras, como
que jogadas no fim de um parágrafo. Porque essa máscara textual, essa citação, é já em
si uma máscara, é um encobrimento já na ocasião de sua emergência, uma revelação que
se dá coberta, escondida pela língua estrangeira, pela dificuldade de compreensão e
leitura, que é justamente o que está em questão no comentário de Coetzee ("Da língua-
mãe"). Larvata, "mascarada", do latim larva, larvae, máscara teatral, boneco, espantalho,
espectro, demônio que se apodera das pessoas (Agamben fala disso em Infância e
História de 2008). A interpolação de Coetzee em seu texto não só exemplifica a discussão
(sou um estranho no uso da língua), como a presentifica, fazendo circular um fantasma,
um espectro de anacronismo (o latim, a mensagem cifrada). O uso da língua como uma
possessão, as línguas "estranhas ao nosso ser animal", como um boicote à natureza. A
subversão parece já estar em Descartes, que transforma uma frase corriqueira: larvatus
pro Deo, que significa coberto, escondido diante de Deus em uma frase de inquietude –
larvatus prodeo, o eu dissimulado, capcioso (captio, pegar, armar, armadilha). Sutilezas
profanatórias que eram muito apreciadas não apenas por Beckett, mas principalmente
por James Joyce (os jesuítas, os rituais, as almas, os mortos, as línguas, as nações, Introibo
ad altare Dei, etc).

American Imago.
295

Imagens de O Manifesto Comunista. Graphic Novel de Martin Rowson. (2018).


296

Imagens de O Manifesto Comunista. Graphic Novel de Martin Rowson. (2018).

O capital financeiro é tão abstrato que ele diluiu o próprio conceito de burguês.
Quem vai para o capital financeiro é um empresário. Mas ele abandona sua empresa para
ficar na bolsa, então ele já não é mais nada, pois nem formar uma burguesia ele consegue.
Ele transforma o conceito de classe em gases em espumas diluídas. Será que estamos
lutando contra espíritos? Lutamos contra pessoas invisíveis? Elas mesmas já não se
reconhecem mais como sendo burguesas; “donas dos meios de produção”. Um poder
tão sedutor que pessoas de classe média acreditam na Bolsa agindo de modo
ideologizados, onde produzir não é mais importante, mas aplicar é a nova onda. Os
“trabalhadores” agora não se identificam mais com essa alcunha. O neoliberalismo é
sedutor demais para formar um tipo de luta. Não se reconhecem como estando em um
“conjunto de trabalhadores” (fora o crescente aumento de pequenos empresários). O
mesmo ocorre com os burgueses. Os donos de meios de produção e de empresas vivem
olhando seus monitores. Uma situação de transposição de mundo exterior enquanto
todo para uma imanência mágica, transfigurada pelo luxo, pelo cosmopolitismo (cidadãos
não do universo, mas sim do capital), pelo museu. A revolução do aligeiramento passa
pelo monitor. O coração pragmático da Idade Moderna clama por nova ciência da
assunção de riscos. O globo é o monitor no qual se pode apreciar em conjunto o campo
de jogo do negócio generalizado de investimento. É um painel no qual os investidores
consigam suas apostas e sobre o qual movem suas perdas e ganhos. Ninguém mais sabe
o que fazer com as lutas sociais. Por isso, Jessé tropeça. Ele quer identificar grupos que
já não são mais passíveis de personificação, e talvez, até mesmo de existência real. O
capital se reproduz sem precisar do trabalho. Ele só precisa que a empresa esteja lá, não
importa se ela vai bem ou mal, mas a oscilação no mercado financeiro (crise, notícias de
investimento, novos governos, progresso econômico, novidade tecnológica, etc). Temos
a alta e a baixa da Bolsa, onde pessoas ficam ganhando e perdendo nesse jogo giratório.
Reprodução sem trabalho de trabalhadores, e sem trabalho de empresários. Uma
metáfora para o Tio Patinhas (“Os Caçadores de Aventuras”) e sua moeda número 1. Esta
moeda fazia com que o seu dinheiro sempre aumentasse, por isso, era uma mágica. Tanto
é verdade que era uma “mágica nova”. Enquanto isso, a Maga Patalójika que fazia mágica
velha sempre queria roubar sua moeda número 1. Ela era uma bruxa que
297

constantemente tenta roubar a Moeda Número 1 de Tio Patinhas, a qual, segundo a


Maga, terá uma importância vital para conduzi-la à mesma riqueza fabulosa de seu
proprietário. Aquela bolsa do Gato Félix de onde ele tira tudo como mágica poderia ser
interpretado como o “eu” humano do liberalismo. Tudo se tira desse eu interior como
mágica. Dentro de um estilo clássico de desenho, apesar da nítida evolução com o tempo,
Félix é um gato preto, com uma silhueta levemente recurvada, normalmente gentil e
alegre, que sempre se mete em confusões. Costuma usar o próprio rabo como
ferramenta, algumas vezes retirando-o do próprio corpo, sendo este um dos exemplos
mais famosos e antigos dos poderes esdrúxulos dos desenhos animados. Quando o rabo
não é suficiente para a realização do feito, ele rapidamente usa sua bolsa mágica (Magic
Bag of Tricks) para criar desde uma mesa até um carro, navio ou avião. Felix nunca se
separa da bolsa mágica e, embora muitos vilões, como o Professor e seu ajudante Rock
Bottom, tentem roubá-la, Felix sempre escapa. Ele também conta com a ajuda de
Poindexter, um menino gênio, que, ironicamente, é sobrinho do Professor. Outro vilão
que vez ou outra atormenta Felix é o Mestre Cilindro (Master Cylinder), um robô malvado
que foi enviado à Marte. Há também o Gênio da Garrafa, que quer colocar Felix na
garrafa, mediante algum plano diabólico. É engraçado que durante um bom tempo as
filosofias do sujeito deram tamanha importância para a chamada espontaneidade do
sujeito. Quiseram tatear nela o rastro da liberdade. É verdade que as filosofias do sujeito
não estão tão interessadas na liberdade quanto na abertura de possibilidades de saída
para o esforço-que-eu-sou. Aquilo que se chamou de “espontaneidade”, é na verdade, a
tensão dada de antemão, para o esforço que germina e fermenta no sujeito como energia
cinética.
298

Empresa Capital Câmbio. A marca da empresa se utilizou dos dois (C) do Capital e do
Câmbio, criando assim, o C em forma cifrada dando a ideia de moeda, valor e dinheiro. Os
serviços da referida empresa vão desde Moedas Estrangeiras, Câmbio Comercial, Câmbio
Estrangeiro, Cartão Multimoeda, vistos, passaportes, encomendas internacionais, importação
de mercadorias, seguro viagem, etc. Na fachada da loja vemos diversas siglas das moedas desde
Bitcoins, Dólar, Euro. A metafísica da sorte passaria ao longo da modernidade desde moedas,
bolsas, carteiras, mochilas, cartão, até chegar somente o número.

Imaginemos que eu tenha uma moeda em meu bolso. Vou em uma daquelas
máquinas que vendem refrigerantes (Soda, Coca-cola). Coloco a moeda na máquina e a
máquina me dá o refrigerante. O capitalismo financeiro funciona por princípios
parecidos. Ao invés de essa máquina ser uma “máquina de refrigerante”, ela passa a ser
uma máquina que reproduz dinheiro. Coloco a moeda na máquina e outras duas moedas
me retornam. Agora possuo duas moedas em minhas mãos, quando anteriormente, só
tinha uma. Repito a operação. Deixo uma moeda no meu bolso e coloco a outra na
máquina. Novamente outras duas me são dadas. Agora possuo três moedas, com isso
posso repetir a operação diversas vezes até com uma simples moeda inicial conseguir
encher os bolsos. Agora é possível colocar diversas moedas em diversas máquinas para
299

que cada máquina me devolva mais duas moedas. Uma máquina na China, outra nos
Estados Unidos, outra no Brasil. A questão não é mais o que fazer com o dinheiro, mas
onde colocá-lo para que ele se multiplica e onde colocá-lo como acumulação para render
ainda mais. É o deslocamento das finanças que comandam o resto do capitalismo, não é
mais a produção que comanda, mas a valorização feito a partir de finanças do rentismo.
Uma outra imagem poderia ser a seguinte: imaginemos que uma você encontre uma
lâmpada mágica esteja dentro do seu guarda-roupa. Um gênio aparece. Ele diz que um
único desejo será atendido. Qual o seu pedido? Se Jesus multiplicou pães, seu desejo será
o poder de multiplicar dinheiro. Todos conhecem a ambição desmedida do Tio Patinhas
pelo acúmulo de moedas de ouro. Em um dos episódios, os sobrinhos de Tio Patinhas
descobrem uma máquina que faz replicar qualquer coisa. A máquina aparente ser um
tipo de arma. Claro que os três pestinhas logo pensam em multiplicar o dinheiro.
A regressão da Fortuna correspondia ao sentimento do mundo possuído pela
moderna ontologia da sorte, um sentimento que se materializava classicamente no
oportunismo de Maquiavel, na enunciação de Montaigne e no empirismo-experimental
de Bacon. Também o neofatalismo de Shakespeare tardio pertencente aos
autoenunciados característicos de uma época que, em seus momentos mais sombrios,
percebe o ser humano como um corredor de riscos infectados pela competência,
obcecado pela inveja, sinalizado pelo fracasso, aqui, os atores sobre o cenário do mundo
aparecem como bolas com as quais dispõe seu jogo as forças de ilusões. A Fortuna
aparece em todos os lugares como a deusa da globalização par excellence. Vendo as
coisas em conjunto, é a transformação das mentalidades e práticas europeias em um
“negociar generalizado” com riscos, é onde surge a surpreendente, e quase misteriosa
força agressiva das primeiras gerações dos descobridores. Essa disposição aos riscos é
propulsionada pelo imperativo de conseguir riqueza para saldar dívidas de créditos de
investidores. Devido a este procedimento os interesses de pagar a prazo se traduz em
façanhas práticas e inventivos científicos. A empresa é a poesia do dinheiro. Assim como
a miséria torna-se inventiva, o crédito faz o negócio de um empresário. Toda a campanha
da globalização é uma guerra constante de estados de ânimos e uma luta por meios
hipnóticos e grupais de orientação. Isso se deve em grande parte pelo poder
programático visto nos meios de massas e pelos poderes consultivos das empresas. A
figura chave da nova era é “produtor-devedor” – mais conhecido pelo nome de
300

empresário, que flexibiliza permanentemente seu modo de fazer negócio, suas opiniões
e a si mesmo, para, por todos os meios permitidos e não permitidos, experimentados e
não experimentados, fazer ganâncias que lhe permitam amortizar a tempo seus débitos
e multiplicar seus créditos. Estes produtores-devedores aportam um significado
revolucionário, moderno, a ideia de dívida culpada. Uma falta moral se converte em um
estímulo econômico inteligente. Sem a positivação das dívidas, nenhum capitalismo. Os
produtores-devedores são os que começam a girar a roda da permanente revolução
monetária na “época da burguesia”. O assunto primordial da idade moderna não é que a
terra gira em torno do sol, e sim que o dinheiro o faz em torno da terra. O dinheiro, que
torna tudo totalmente comprável, suprime todo o traço incomensurável, toda a
singularidade das coisas.
Nas palavras de Marx – emancipação, por isso que a antropologia de Marx em A
Ideologia Alemã ainda era a de que segundo ele: “Os próprios homens começam a ver a
diferença entre eles e os animais assim que começam a produzir os seus meios de
existência”. Todos agora vivem e se transformaram em capitalistas financeiros que nada
mais tem a ver com o mundo do trabalho (estilo moderno: Marx, Weber, Robert K.
Merton e conservadores). Se antes tínhamos máximas como: “o trabalho dignifica o
homem”, “o trabalho edifica o homem”, “o trabalho liberta”. O mundo do trabalho é algo
hoje completamente desinteressante para eles. Não se importam mais se há ou não
sindicatos. Se no Brasil se paga 13º salário, se a Previdência é um sistema solidário. Se há
muitas leis protegendo os trabalhadores. Se há sindicatos patronais ou não é algo
indiferente. O crédito-capital se deslocou para o âmbito financeiro. Basta ver a Bettina.
Os capitalistas agora pegam seus lucros 10 20 30 milhões e aplicam, ganham 50 100 300
mil. É quase um "capitalismo improdutivo", expressão utilizada por Ladislau Dowbor.
Dowbor (2017, p. 303):
A exploração dos trabalhadores e dos “99% em geral se dá por meio de três
mecanismos básicos: o pagamento de salários baixos, a redução de acesso a
bens e serviços públicos e a exploração por meio de juros elevados. O
pagamento de baixos salários nos é familiar, gera a mais-valia para os
proprietários de meios de produção. A redução de acesso aos bens e serviços
públicos afeta indiretamente a renda da população: na Suécio ou no Canadá
os salários podem ser mais baixos do que nos Estados Unidos, mas o salário
indireto sob a forma de educação, saúde, infraestruturas públicas de lazer e
outros, com acesso universal gratuito, mais que compensa a diferença, porque
a educação privatizada, por exemplo, drena os salários dos trabalhadores. Os
planos privados de saúde igualmente. A exploração pelas taxas de juros
elevadas, drena a capacidade de consumo das famílias, a capacidade de
301

investimento das empresas, bem como investimento em infraestruturas e


fornecimento de bens e serviços públicos por parte do Estado pelos juros
elevados. Se o juro é mais elevado do que o impacto produtivo gerado, está se
drenando a economia real em proveito de atravessadores financeiros.

Dowbor possui um ensaio que propõe uma mudança radical de como pensamos
as transformações atuais do capitalismo. Diz ele que “está nascendo um novo animal”.
Em vez de acrescentar adjetivos ao capitalismo industrial que conhecemos: global,
financeiro, etc, que tal pensar que tipo de novo animal está nascendo? Em vez de olhar
como o antigo se deforma, procurar desenhar o novo que se forma. Um outro modo de
produção está emergindo? O conhecimento tornou-se o principal fator de produção,
abrindo espaço para economia imaterial, a fábrica perde protagonismo frente às
plataformas, a apropriação da riqueza migra para os sistemas financeiros, as relações de
emprego se desarticulam, o espaço da economia tornou-se planetário, a democracia
aparece como dispensável. A mudança é sistêmica, apontando tanto para novas ameaças
como para novas oportunidades.50 Coloca em seu ensaio um esboço do futuro, ou seja,
um capitalismo de juros, de rentismo, de alugueis (sem produção, sem manufaturação,
sem trabalho). Não é de se espantar que grande parte dos Estados hoje querem “fazer
economia”, ou falam “o governo gasta mais do que recebe”. Tudo isso é feita de uma
economia equivocada. Os governos pagam juros sobre juros de dívidas que vem de uma
política monetária errada. Os dados apontam que o déficit está no Banco Central. O custo
da política monetária atual provocou a crise em que estamos: juros elevados (14,25%);
monopólios bancários, remuneração da sobra de caixa de R$ 1 trilhão de reais dos
bancos; prejuízos com Swap Cambial e outros prejuízos do Banco Central; Emissão
excessiva de títulos da dívida interna; dívida interna que saiu de R$ 732 bilhões em 11
meses de 2015, enquanto o investimento federal em 2015 foi de R$ 9,6 bilhões de reais;
déficit nominal e juros nominais provocado pelas despesas com juros e não por suposto
excesso de gastos sociais. Os bancos colocam juros elevados para ganhar, com isso, ele
não empresta para as empresas. Como esses capitalistas que estão nessas empresas são
os antigos donos (que viraram rentista), eles não se importam que não haja investimento
na empresa. A empresa é um problema dos executivos, eles estão ganhando “lá em

50
DOWBOR, Ladislau. Uma Nova Arquitetura Social?, 2018. Disponível em: <http://dowbor.org/blog/wp-
content/uploads/2018/11/AlemdoCapitalismo_novembro2018.docx>. Acesso: 18 Jun. 2019.
302

cima”. A ação de emprestar com juros altos faz com que sobre dinheiro no caixa, logo, há
o medo da inflação, já que se tem mais dinheiro sobrando. O caso do Brasil é assim. O
Banco Central pega essa dívida e emite “título da dívida” que fica na mão do credor, na
mão do banco. Este dinheiro fica um dinheiro que não pode ir para o mercado. Ele não
investe. Mas o guarda. Para justamente não ter dinheiro no mercado porque o banco
avisa que vai haver a inflação. O dinheiro morre ali. Fica um crédito para o banco e uma
dívida para o Estado que se apresenta em dívida sobre juros que deve ser paga com a
economia do Estado (reformas em Previdência, diminuição de cargos, “diminuição do
Estado”, privatizações, etc). Se diminui o Estado porque há a crença que gastamos muito,
mas se gastando muito já era deficiente, agora ele menor, o serviço ficará ainda mais
deficiente. Essa é uma ideologia do neoliberalismo, a de que sai um regime de
compartilhamento mútuo da aposentadoria (onde várias pessoas pagam) para o “pague
você mesmo”. Que audácia ter uma aposentadoria paga por seu empregador e pelo
Estado. Você é merecedor disso? Use agora a “capitalização”, alguns dirão. Você paga a
sua. Você só depende de você. Você vai estar investindo no futuro em você. Sozinhos
somos melhores. Explore-se. Corte seus pulsos. Quando chegar do seu trabalho à noite,
faça o planejamento para o seu próprio negócio. Se mate a noite. Na modernidade cresce
a ideia de que somos autônomos, indivíduos por sermos e queremos estar sozinhos.

Loteria Pote de Ouro.


303

Mickey.

Tio Patinhas. Moeda Número 1.

Essa foi a grande tradição dos judeus. Do judaísmo, o mundo herdou a ideia da
resistência. Essa ideia estava viva no povo judeus como tradição messiânica, uma tradição
que olhava para frente cheia de esperanças. No profetismo hebraico, o sentido de vigília
não é entendido como o dia-logos grego, o espaço de vigília judeu é impregnado pela
ideia de aliança com um ser vivificador que se oculta sempre no precário nome de Deus,
mas que o “velar judeu” significa um sempre aguardar a vinda de um salvador, aguardar
o vindouro que se cumpre a esperança de um amanhecer de um mundo melhor. Durante
o período imperial romano, os cristãos se tornaram a tropa nuclear de uma resistência
interna. Ser cristão teve um dia o sentido de não se deixar impressionar por nenhum
poder do mundo, muito menos pelos imperadores-deuses romanos arrogantes, violentos
e amorais, cujas manobras político-religiosas eram por demais óbvias. Assim, a
consideração judaica da história contém um princípio político explosivo: descobre a
perecibilidade dos impérios alheios. A consciência primária “teórica” kinyke-cínica
(também cínica, porque em aliança com o princípio mais poderoso, o que significa: com
304

a verdade histórica e com “Deus”) é a consciência histórica: fato de tantos e tantos


impérios grandiosos terem se transformado em pó. O otimismo apocalíptico consiste em
que o império pode desaparecer – que o império se afunde, e que Deus vigiará para que
se afunde no momento em que se quer. Isso pode ser considerado uma “providência
divina”. Os impérios dos demais têm que afundar a tempo. A literatura mulçumana
apocalíptica dos últimos 20 anos não fala nada mais além disso. Agora rezam para que o
Ocidente caia.
O nervosismo contemporâneo sobre a globalização espelha o fato de que o que
se entendia como Estado-nação, o que antes era a maior escala possível de moradia
política; a sala de estar e de conferência de povos democráticos (ou imaginários), está
agora sujeita à negociação, e que essa sala de estar nacional já tem alguns rascunhos e
“intrusos” muito desagradáveis, sobretudo nos lugares em que altas taxas de
desemprego convergem com rotinas de lamentação de alto padrão. Olhando para trás,
podemos ver mais claramente a extraordinária conquista do Estado-nação, que era
oferecer à maioria das pessoas que lá viviam, uma forma de domesticidade, uma
estrutura imune simultaneamente imaginária e real, que poderia ser experimentada
como uma convergência de lugar e self, ou como uma identidade regional no sentido
mais favorável da palavra. Este serviço foi realizado de forma mais impressionante onde
o estado de bem-estar social domesticava com sucesso o estado de energia. A construção
imunológica da identidade político-étnica foi posta em evidência, e é claro que a conexão
entre lugar e eu nem sempre é tão estável quanto os folclores políticos do territorialismo
muito visto nas antigas culturas agrárias ao moderno estado de bem-estar social, fingiu
enfraquecer ou dissolver o elo entre lugares e “eus” pode nos permitir ver as duas
posições extremas que revelam a estrutura do campo social em um estado quase
experimental de desintegração: um eu sem lugar e um lugar sem um eu. É claro que todas
as sociedades realmente existentes sempre tiveram que buscar seu modus vivendi em
algum lugar entre os polos (ideais) tipicamente na distância mais favorável de cada
posição extrema, e pode-se entender facilmente que no futuro também toda
comunidade política genuína tem que dar uma resposta ao duplo imperativo da
autodeterminação e da determinação do lugar. O primeiro extremo da dissolução (o eu
sem lugar), provavelmente é abordado mais de perto pelo judaísmo da diáspora dos dois
milênios anteriores, que não foi descrito injustamente como um povo sem terra. Este é
305

um fato que Heinrich Heine colocou em poucas palavras quando ele afirmou que os
judeus não estão em casa em um país, mas sim em um livro: a Torá, que eles carregavam
com eles como uma "pátria portativa", portátil ou portável. Esse comentário profundo e
elegante ilumina um fato que é frequentemente repassado: grupos "nomadizantes" ou
"desterritorializados" constroem sua imunidade simbólica e coerência étnica não – ou
apenas marginalmente, de um solo de suporte. Em vez disso, suas comunicações entre si
agem diretamente como um "vaso autógeno" ou um receptáculo autógeno,51 no qual os
participantes estão fechados e permanecem em forma, enquanto o grupo se move
através de paisagens externas.
Um povo sem terra enraizado em uma tradição escriturística, portanto, não
pode ser vítima do equívoco que se impôs a praticamente todos os grupos estabelecidos
ao longo da história humana: entender a própria terra como o recipiente do povo (um
continente) e enxergar seu solo nativo como o a priori do significado de sua vida ou a sua
identidade.52 Essa ideologia territorial perdura como uma das heranças mais eficazes e
problemáticas da era sedentária, como o reflexo básico subjacente a todas as aplicações
aparentemente legítimas da força política. De fato, o que é denominado "defesa
nacional" está diretamente relacionado a ele. A defesa nacional é baseada na equação
obsessiva do lugar e do eu, o erro lógico axiomático da razão territorializada que atingiu
a grande maioria dos cidadãos israelenses depois de 1948 como desejável. O espaço
dessas pessoas deslocadas, no entanto, nem precisa se fixar definitivamente em algum
lugar. Os peregrinos o carregam, de certa forma, no interior da sua alma, que é um
refúgio protegido por um sistema imunológico. Podemos pensar indiretamente em
efeitos sistêmico-imunizadores quando ao deus dos luteranos se cantou como um castelo
firme e como uma boa arma e defesa. Não serve de ajuda a constatação etimológica de
que a palavra romana inmunis não significa outra coisa no começo que “livre de impostos
e tributos”, uma manifestação antecipada de falta de solidariedade. As analogias entre a
diagnóstica médica moderna e as maquinações dos serviços secretos saltam (até o nível
do detalhe linguístico) fortemente aos olhos. Uma “linguística” militar, jurídica e médica
andariam no tempo moderno quase de mãos dadas. A tão famosa “imunidade

51
DEBRAY, Regis. God: An Itinerary. Translator: Jeffrey Mehlman (London & New York: Verso, 2007), pp.
83f.
52
SLOTERDIJK, Peter. Esferas II: Globos (Macroesferología). Traducción de Isidoro Reguera. Madrid: Siruela,
2006, p. 866.
306

parlamentar” tem suas raízes na tradição romana e latina. As imunidades parlamentares


têm origem no direito dos países europeus. Na Roma Antiga, já se falava em imunidade
ao Tribuno da plebe, representante do povo diante do senado da república romana. Os
tribunos eram invioláveis (sacrosancta) e ninguém poderia acusar, prender ou punir os
tribunos, pois eles exerciam um cargo sagrado de defesa dos interesses da plebe. O
direito inglês inaugura esse instituto de defesa da livre existência e independência do
parlamento através da proclamação do duplo princípio da freedom of speach (liberdade
da palavra, pois o parlamentar – tinha a ideia de local de fala ou fala, como aquele que
não pode ser impedido de se expressar) e da freedom from arrest (imunidade à prisão
arbitrária) que constavam no documento histórico Bill of Rights de 1688. Tais princípios
ditavam que os parlamentares poderiam se expressar livremente pelos seus votos e
trocarem opiniões sem terem uma discussão em juízo ou impedimento da sua expressão.
Os deputados são invioláveis por suas opiniões palavras e votos no exercício das funções
do mandato. Após o regime de Getúlio Vargas, em 18 de setembro de 1946, foi
promulgada a Constituição Federal que também contemplava a imunidade parlamentar,
em suas formas material e formal. No direito norte-americano, a doutrina e
jurisprudência se consolidaram no sentido de a freedom from arrest ser um instituto que
proibia apenas as prisões cíveis.
Se as comparações entre ótica médica e a ótica própria ao serviço secreto se
impõem para medicina diagnóstica, então analogias polêmicas ainda mais claras se
encontram vigentes no caso da medicina operativa. A cirurgia tem em comum com o
militarismo o conceito de “operação”. E a imunização é tomada no seu sentido mais
rasteiro como eliminação do estranho, como paralisar o invasor, destruir o terrorista,
realizar uma operação com sucesso é somente se houver neutralização sem danos
colaterais. “Missão cumprida” sem quedas ou perdas. Por outro lado, conceitos como o
de corpos estranhos, bubões, focos purulentos, envenenamento, podridão, etc.
estabelecem uma ponte entre os mundos da representação da medicina e da polícia. O
combate aos crimes usa há muito tempo um jargão médico. O mal, que encontra na
medicina, na polícia e no exército os seus combatentes, não aparece apenas nas diversas
manifestações também podem facilmente se transformar passando de uma forma a
outra. Mesmo a medicina moderna é, mais ainda do que qualquer uma de suas
antecessoras, uma empiria negra. Ela fina pé na condição a priori, segundo a qual entre
307

o sujeito e sua doença não poderia existir nenhuma outra relação senão a de inimizade,
“ajudar” o sujeito significa, por conseguinte, auxiliá-lo a alcançar uma vitória sobre o
agressor “doença”. A doença aparece a partir dessa ótica de hostilização
necessariamente como uma invasão, e é por si mesmo, compreensível o fato de não
haver com ela nenhuma outra lida senão a lida polêmica, defensiva e agressiva – não uma
lida integrante ou compreensiva. A doença precisa ser pensada como o outro e o
estranho, e esse elemento é tratado pela medicina como isolamento e objetivação, de
maneira em nada diversa da que os órgãos de segurança interna tratam os suspeitos e as
instâncias de interdição moral tratam as pulsões sexuais. A medicina de uma sociedade
como a nossa no fundo pensa o corpo como um risco de subversão. Nele, o risco de
doença faz tique-taque como uma bomba-relógio. É suspeito como o assassino
presuntivamente futuro da pessoa que mora nele. O corpo é meu autor de um atentado.
Se na época das primeiras assepsias, os bacilos e vírus de maneira demonicamente, se
tornaram o símbolo para tudo aquilo que desperta o mal (exatamente como algumas
palavras com carga semântica poderosas – Aids, cisto, tumor, câncer, etc).53 Até um
ponto em que políticos passaram a identificar seus adversários como bacilos (a retórica
fascista, de maneira semelhante à comunista, nos fornece exemplos disso: uma profusão
de bacilos judaicos, marcados por raças estrangeiras, revisionistas, anarquistas,
decompositores, uma contaminação), hoje, na era da segunda assepsia, não é apenas o
“corpo estranho” (o agente patogênico), mas também o próprio corpo que é concebido
como um inimigo presuntivo. Esses temores se reorganizaram com o esmaecimento da
metafísica europeia cristã (especialmente com o diabo). A ideia de imunologia se
apresenta como uma catástrofe da cultura tradicional e de sua moral holística. Só
podemos compreender melhor a construção de imunidade se irmos para categorias
como a medicina e bioquímica que logo se desenvolveram no âmbito jurídico, político,
militar, psicossemânticos e religiosos. A medicina e o militarismo desenvolveram uma

53
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da Moral: Uma Polêmica. São Paulo: Editora Companhia das
Letras, 2008, p. 120. Nietzsche diz que o Weltschmerz (dor do mundo) europeu, o “pessimismo” do século
XIX, é essencialmente resultado de uma mistura de classes absurdamente súbita, ou determinado por uma
emigração equivocada, uma raça chegada a um clima para o qual sua capacidade de adaptação não basta
(como os hindus na índia), ou consequência de velhice e cansaço da raça (pessimismo parisiense de 1850
em diante), ou de uma dieta errada (alcoolismo na Idade Média) ou a degeneração do sangue, malária,
sífilis e semelhantes (depressão alemã após a Guerra dos 30 anos que infectou metade da Alemanha com
doenças ruins, preparando o terreno assim para a servilidade alemã, a mesquinhez alemã).
308

linguagem paralela. As analogias entre a diagnóstica médica moderna e as maquinações


dos serviços secretos saltam (até o nível do detalhe linguístico) fortemente aos olhos. O
médico empreende em certa medida uma espionagem somática no corpo do paciente.
O corpo é o portador secreto, vigiado por tempo necessário para que se conheça tanto
as suas circunstâncias internas quanto as “medidas” a serem tomadas. Como na
diplomacia secreta e na espionagem, na medida também se “sonda”, se investiga e se
observa muito. “Faz-se entrar clandestinamente” nos corpos aparelhos auxiliares,
cateteres médicos, injeções, termômetros, tais como agentes, sondas, câmeras, peças de
junção, injeções, lâmpadas e canalizações. O médico observa o corpo como alguém que
escuta com o ouvido colado na parece. Reflexos são anotados, segredos (secrets) são
arrancados, tensões medidas, valores orgânicos enumerados. Enunciados quantitativos,
seja por meio de números de produção, contingente de tropas, valores urinários por
causa de sua “objetividade material”. Para o médico, assim como para o agente, também
não resta com frequência outro caminho senão resolver em secreções e dejetos, porque
as investigações precisam acontecer regularmente de maneira indireta, sem perturbar o
funcionamento normal do corpo ou da corporeidade espreitada. Com frequência, o corpo
até mesmo cortado diretamente e o cofre, esvaziado, desnudado. E assim como os
agentes, os médicos também projetam uma grande ambição na decodificação de suas
informações, para que o “objeto” não saiba o que se sabe sobre ele. A codificação e a
manutenção do segredo caracterizam o estilo médico próprio ao serviço secreto; os dois
exercem formalmente práticas de inteligência análogas. Se falamos de Algodiceia
significa uma interpretação doadora de sentido para a dor. Ela entra em cena na
modernidade no lugar da teodiceia, e como a sua inversão. O que está em jogo na
teodiceia é: como é possível compatibilizar o mal, a dor, o sofrimento e a injustiça com a
existência de Deus? Agora, a questão é: se não há nenhum Deus e nenhum nexo de
sentido mais elevado, como é que ainda conseguimos suportar a dor? Imediatamente se
mostra a função da política como um substituto da teologia. Os nacionalistas não
hesitaram na maioria das vezes um instante em afirmar que os imensos sofrimentos de
guerra teriam sido significativos sacrifícios em nome da pátria; o ímpeto de tais
afirmações só foi barrado pelo fato de a guerra perdida e de o ditame de guerra tanto
quanto a revolução desanimadora terem colocado em questão a dotação de sentido
nacionalista. Pois o fato de que a Alemanha perderia a guerra era algo que seria possível
309

imputar como possível de reconhecimento pelo mais estulto dos nacionalistas. No


entanto, admitir que “tudo” tinha sido “em vão” e que as aflições imensuráveis não
tinham em geral sentido algum, isto era insuportável demais para muitos
contemporâneos. A lenda da punhalada não era nenhum mito ingênuo, mas uma
autoilusão desejada pelos homens de direita. A “sorte amarga” de Hitler também atesta
o seu empenho. Quem perguntou por sentido em face dos sofrimentos da guerra
mundial, viu-se arrastado por sua pergunta para o interior da região na qual se encontram
política, filosofia da natureza e cinismo político médico. Não há quase um orador que
prescinda naqueles anos de metáforas medicinais: doença, mal do câncer, operação ou
cura por meio da crise. Hitler em Minha Luta (1925) falou da violenta catástrofe que seria
preferível à tuberculose política sub-reptícia. As metáforas medicinais dos homens de
direita procuravam eliminar a doença como o inimigo no interior com “aço e raio”. 54 O
que Hitler expõe em sua obra é um programa de primitivização da consciência. Em graus
elevados da consciência ensina-se como é que a experiência pode ser extinta nos
homens. Experiência exige diferenciações, divergências, reflexões, pluralidade, dúvidas e
a tomada de consciência de uma plurissignificância. O que Hitler expõe é uma gramática
do emburrecimento, uma ação de um esclarecimento involuntário.
Também se pode ver imunidade como quem tem em mente uma pessoa
liberada do serviço militar. Um pano de fundo sobre o qual se formou o sentido jurídico
posterior de imunidade como não incriminação de pessoas em cargos políticos. Não
podemos falar entre combate interno entre invasores microbianos e anticorpos próprios
do sistema. De modo algum é uma descrição de fenômenos em uma dimensão
endocrinológica reguladora. O pensamento metafísico já havia tratado de uma ontologia
do limite que é estreitamente unida em uma ética de defesa. Apareceria um conceito
preterritorial de limite que possui relações com a noção de imunidade. Aquilo que deve
garantir não são linhas de limites ou demarcatórias pedaços de terra e domínios do solo,
e sim, uma comunidade de animação e energia, composta nesse caso, por um âmbito
nuclear central e por uma periferia vulnerável. Com o conceito de psyche se obteve uma
proposta de maior repercussão em forma de latência imunológica na era metafísica. Era
a conversão de forças defensivas na conservação da forma. Curiosamente, o primeiro

54
SLOTERDIJK, Peter. Crítica da Razão Cínica. 2ª Edição. Tradução: Marco Casanova. São Paulo: Estação
Liberdade, 2012, pp. 606-607.
310

atributo de uma alma é sua imortalidade, mas também com expressões como
indeformável e incorruptível. Por isso se entende os filósofos com a correspondência da
verdade como os primeiros imunólogos do ser porque aletheia (o paradigma ontológico
da verdade como conflito entre latência e ilatência é imediatamente, em Heidegger, um
paradigma político – por isso ele fala no curso sobre Parmênides, que a polis é definida
precisamente pelo conflito. É porque o homem advém na abertura de um fechamento,
que algo como a polis e uma política são possíveis) corresponde a desvelamento,
desocultamento de acordo com uma estrutura profunda, no mesmo que inmunitas, falta
de compromisso (conceito jurídico e político medieval da libertas como liberdade de
deveres, privilégio ou direito especial), falta de enredo nos destinos e tarefas comuns dos
mortais, e por isso são considerados como o bem supremo. Descobrir a verdade significa
captar o fundamento não cotidiano da invulnerabilidade da vida. Ou mesmo na visão das
muralhas como uma proteção anti-niilista. A paz como diz Espinosa, não é a ausência da
guerra, mas uma virtude conseguida pela prática que surge da fortaleza que deve ser
consolidada pela prática da alma pensante.
Esse erro tem sido cada vez mais exposto depois que uma onda de mobilidade
transnacional sem precedentes começou a garantir que os povos e territórios em todos
os lugares qualificassem sua ligação. A tendência para um self multi-local é característica
da modernidade avançada como a tendência para um lugar poliétnico ou
desnacionalizado. O antropólogo cultural indo-americano Arjun Appadurai chamou a
atenção para esse estado de coisas com sua criação conceitual da "etnostopografia",
permitindo-nos examinar questões como a desterritorialização progressiva das conexões
étnicas ou a formação de "comunidades imaginárias" fora das nações-estados e o
compartilhamento imaginário das imagens de formas de vida de outras culturas entre
inúmeros indivíduos.55 A palavra Heimat (pátria) forma parte de um núcleo linguístico
carregado atmosfericamente que constitui algo intraduzível, próprio da territorialidade e
da língua alemã. Assim, aquele que denomina não deveria ver com uma via
especificamente alemã do ser-no-mundo. Todas as línguas das culturas altamente
desenvolvidas são capazes de expressar o conceito de “pátria” com seus próprios meios,

55
APPADURAI, Arjun. Global Ethnoscapes-Notes and Queries for a Transnational Anthropology, em Richard
G. Fox (ed.), Recapturing Anthropology: Working in the Present (Santa Fe: School of American Research
Press), 1991, pp. 191-210.
311

até quando a cor sonora das expressões varia de país em país e de língua em língua. A
razão dessa capacidade comum podemos encontra-la em experiências análogas do
desenvolvimento cultural. Assim, com conceitos como “terra”, “povo” e “mãe pátria”
(pátria-mãe), os povos que na revolução neolítica começaram a cultivar a terra
caracterizavam o lado positivo de seu sedentarismo nas diferentes expressões que davam
ao espaço com ele que se haviam familiarizado, os povos sedentários articulavam sua
simbioses com um solo que, cada vez que os alimentava, era o depositário de seus
mortos. Nas palavras que expressam as vantagens de ter um espaço de residência
próprio, esses povos manifestavam seu patriotismo agrário.
É por isso que a palavra Heimat forma parte de uma reserva de signos cuja época
de validez principal evidentemente havia terminado: isto é, o vocabulário guia da
sociedade agrária, com sua política e sua metafísica. Quem diz pátria ou sobre a pátria
reclama um direito de poder florescer como uma planta de segunda ordem debaixo de
vegetações do solo que habita. O sujeito que se define por sua referência a uma pátria é
como um animal que havia feito seu o privilégio das plantas de fazer raízes e de enraizar-
se. Fica claro que esse animal com raízes representam uma imaginária forma híbrida que,
debaixo de condições históricas distintas, deveria pagar o preço pela sua impossibilidade
biológica. O início dessa mudança histórica decisiva marcou as grandes doutrinas da
Idade Média Asiática e Europeia, nas quais o assento da existência humana passou do
enraizamento nacional para o desenraizamento e dos usos e costumes autóctones da
ética mundial. Desde então, as raízes e o lugar de residência se encontravam embaixo de
uma reserva espiritual (numa situação agrária, residência, moradia e local de trabalho
coincidiam) já que uma ética espiritual mais elevada haveria de se desenvolver contra
todo tipo de etnocentrismo, racismo e racinismo (do francês racine: raíz). Nesse sentido,
harmonizam o budismo, que criava uma cena de um ascetismo do abandono do lugar, o
estoicismo, que deseja promover um exílio global da alma e o cristianismo, que propõe
uma ética da peregrinação. É fácil compreender que essas elevadas doutrinas
permaneçam sobre um nível quando são apresentadas aos enraizados. O destino do
sujeito definido por sua relação com uma pátria solo haveria de cumprir-se até o mundo
moderno que mediante a revolução anti-agrária, conduziu a “cidadanização” e a
mobilização das formas de vida. O fim da civilização sedentária inaugura uma época de
crise permanente do conceito de pátria. Como foi que essa afetação, esta transformação
312

na consciência do homem atual dos países mobilizados modernos aconteceu no que diz
respeito às suas condições de residência? É fato que o mundo moderno havia criado uma
nova política do espaço e uma dinâmica particular enquanto falamos das formas de vida
e sua residência. Na nossa época, todas as perguntas sobre identidades, identidades
sociais e pessoal se apresentam desde o ponto de vista de como, em macromundo cheios
de movimento e rasgos, pode ser possível estabelecer formas viáveis de residência, ou
de estar-consigo-e-com-os-seus Filosoficamente, residir significa formar parte de um
sistema imunológico espacial ou, nas palavras de Hermann Schmitz, é a cultura dos
sentimentos em um espaço de desassossego.
O nervosismo globalizador atual reflete o fato de que, ademais dos Estados
nacionais, também as que até agora eram as melhores condições políticas possíveis de
residência, digamos que, a sala e o salão de conferências dos povos democráticos, se
tornaram intercambiáveis e nessa sala nacional, aqui e ali, começa a entrar uma corrente
muito desagradável. A conquista cultural do Estado nacional moderno foi, como pôde ser
visto, um fazer dado, uma espécie de calor de lugar a maioria de seus habitantes, essa
sorte de estrutura imunológica, as vezes real e imaginária que, no sentido mais favorável
do término, pôde ser vivida como ponto de convergência entre espaço e si-mesmo, como
uma identidade regional. Essa proeza foi realizada de forma mais impressionante onde o
Estado de poder logrou ser controlado de melhor maneira e se transformou em um
Estado de benfeitoria (benfeitor). Porém, justamente esse efeito de calor de lugar
político-cultural é o que se vê afetado pela globalização – com a consequência de que
incontáveis habitantes dos Estados nacionais modernos não se sentem estar consigo
mesmos em sua casa, e estando consigo mesmos tampouco se sentem em casa. A
construção imunológica da identidade político-étnica sofreu um cambaleio. Sobretudo,
pode-se apreciar cada vez mais claramente o que o vínculo entre espaço e si-mesmo não
é tão estável quando as condições mudam, se modificam como promulgou o folclore
político do territorialismo, desde as culturas agrícolas arcaicas e antigas até o Estado
nacional moderno. Quando a interdependência entre espaço e si-mesmo se afloram ou
desaparecem, podem aparecer duas situações extremas nas quais a estrutura do campo
social pode registrar-se com uma exatidão quase experimental, a saber: a de um si-
mesmo sem espaço e de um espaço sem si-mesmo. Todas as sociedade realmente
existentes deviam buscar até agora seu modus vivendi entre esses dois polos, seja de
313

forma ideal, o mais perto possível de ambos os extremos, e é fácil de compreender que,
também no futuro, toda a comunidade política real caminhará e terá que dar uma
resposta ao duplo imperativo da determinação pelo espaço e a determinação pelo si-
mesmo. Não é sem razão que Heinrich Heine havia dito que o povo judeu é um povo sem
“fundamento”. Essa perspicaz observação põe descoberto um fato de validez geral
poucas vezes notado entre os contemporâneos, pois os grupos nômades ou
desterritorializados não constituem sua imunidade simbólica e sua coerência étnica em
um solo, talvez o façam de uma forma secundária em relação a um solo sustentador, mas
sim que suas intercomunicações fundem-se diretamente como um “recipiente
autógeno”, pois significa dizer o mesmo que, os participantes contém a si mesmos e
mantem “em forma” o grupo se destaca através de paisagens externas. Nos recipientes
autógenos, ao igual que em comunidades fortes, se experimenta uma forma direta a
prioridade que a autorreferência tem sobre a territorialidade. Um povo sem-terra não
pode ser vítima do sofisma que enganou a todos os povos sedentários ao largo de uma
vasta história, isto é: que a terra é o recipiente do povo e o próprio solo o princípio do
qual deriva o sentido de sua vida e de sua identidade. Essa foi uma miragem que durou
por diversos tempos e anos. Essa falácia territorial – a falsa conexão entre o território e
seu proprietário, é até hoje um dos legados mais efetivos e problemáticos da era
sedentária, já que nela se afirma o melhor reflexo básico de todo uso aparentemente
legítimo de violência, a assim chamada “defesa da pátria”. Esta falácia repousa sobre a
obsessiva equiparação entre espaço e si-mesmo, a falácia original de uma razão
territorializada. Esse erro fatal foi posto cada vez mais ao descobrimento desde uma onda
de mobilidade transnacional e civilizacional sem precedentes na história, relativizou a
ligação entre povos e territórios. A tendência para um si-mesmo mutilocal é a
característica da Modernidade avançada. Do mesmo modo que a tendência ao espaço
étnico plural, multifocal, multicultural ou “desnacional”. Quando o discurso da
Modernidade fala da pátria se refere a um ponto de partido de movimento até o espaço
terreno aberto e não a uma claustrofobia regional inelutável de antes. Foi assim que o
antropólogo indo-americano Arjun Appadurai chamou até pouco tempo a atenção sobre
essas coisas ao criar o que se entende por "etnoescape", que permite compreender
processos como a "desespacialização" progressiva (desterritorialização) com rasgos
étnicos, a constituição de "comunidades imaginarias" fora de toda referência ao nacional
314

e, a participação imaginária de inumeráveis indivíduos nas imagens de outras formas de


vida próprias de outras culturas nacionais. Desse modo, podemos descrever de que
maneira as formas de residência modernas vinculam desenraizados ao contato com o
solo. No que toca ao Judaísmo durante o seu período de exílio, fica claro que sua
provocação consistiu em uma pátria portátil. Uma paradoxal e aparente realidade de um
si-mesmo sem espaço pode existir de fato. O outro polo, que adquire cada vez mais
contornos aos olhos dos homens contemporâneos, constitui o fenômeno de um espaço
sem si-mesmo. O judaísmo durante o período de exílio, possuía uma provocação que
residia no fato de que ele constantemente lembrava aos povos do hemisfério ocidental
do aparente paradoxo e escândalo real de um eu factualmente existente sem um lugar.
No outro extremo, o fenômeno do lugar sem um eu torna-se cada vez mais claro. As
regiões inabitáveis da Terra como calotas polares, altas montanhas, ilhas, selvas, desertos
arenosos são paradigmáticos dessa extrema "abnegação". Esses locais constituem
lugares com os quais as pessoas geralmente não desenvolvem nenhum relacionamento
de cultivo, e muito menos tentam qualquer identificação. Isso se aplica a todos os espaços
de trânsito-tráfego, ou seja, de instalações destinadas ao tráfego, como estações de
trem, portos e aeroportos, estradas, praças e shopping centers ou complexos projetados
para estadias limitadas, como aldeias de férias, excursões, cidades turísticas, instalações
fabris ou abrigos noturnos. Esses lugares podem ter suas próprias atmosferas, mas eles
não dependem de uma população ou de um eu coletivo que estaria em casa nelas.
Assim, as "sociedades" globalizantes e mobilizadoras aproximam-se
simultaneamente do polo "nômade", de si mesmo sem lugar e do polo do deserto, um
lugar sem um eu – com um meio termo cada vez menor de culturas regionais e
contentamentos fundamentados. A crise formal das modernas "sociedades de massa",
que agora é vista principalmente como uma perda de significado para o Estado-nação,
resulta da erosão avançada das funções de contêineres étnicos. O que antes era
entendido como "sociedade" e invocado com ele não era, na verdade, nada mais que o
conteúdo de um contêiner de paredes grossas, terrestres, assistidas por símbolo e
geralmente monolíngues, isto é, um coletivo que encontrou sua autoconfiança em um
certo hermetismo nacional e floresceu em redundâncias próprias (que nunca poderiam
ser inteiramente compreendidas por estranhos). Por causa de suas qualidades
autocontidas, tais comunidades históricas, conhecidas como povos, permaneceram no
315

ponto de intersecção entre o eu e o lugar e usualmente dependia de uma considerável


assimetria entre o interior e o exterior; isso geralmente se manifesta em culturas pré-
políticas como etnocentrismo ingênuo e, no nível político, na diferença substantiva entre
política interna (doméstica) e externa (externa). Os efeitos da globalização nivelaram
cada vez mais essa diferença e assimetria; a imunidade oferecida pelo recipiente nacional
é percebida como cada vez mais ameaçada por aqueles que lucram com isso.56
As regiões da terra desabitadas são em primeiro caso os desertos brancos
(mundo polar), grises (altas montanhas), verdes (selvas), amarela (arena) e azuis
(oceanos). Neste contexto, os desertos externos têm menos importância que esses
espaços "quase sociais" onde as pessoas se reúnem sem por ele querer ou poder
estabelecer um vínculo entre sua identidade e a sua localidade. Isto pode ser aplicado a
todas as zonas de passagem, em estrito e amplo sentido do término. Elas são localidades
destinadas ao trânsito, como estações, portos, aeroportos, avenidas, praças, ferrovias,
centros comerciais, bases de lançamento, Estação Espacial, ou se trate de instalações
desenhadas para uma estância limitada como os centros turísticos de cidades, plantas
fabris ou asilos noturnos. Tais espaços podem colocar e transpor sua própria atmosfera,
ou seja, sua existência não depende de uma população regular, podemos pensar no
chamado si-mesmo coletivo que estivera enraizado neles. Sua própria condição de
existência é não deter seus visitantes ou seus tráfegos. São terra de ninguém, as vezes
cheia, as vezes vazia. Desertos de passagem que se destacam nos centros sem núcleo e
nas periferias híbridas das sociedades contemporâneas.
Nessas ditas sociedades podem reconhecer-se sem maior esforço analítico o
que até agora constituía sua normalidade, a vida em condições de esvaziamento massivo,
seja regional ou nacional, incluídos os fantasmas e o narcisismo etnocêntrico foram
alteradas de maneira decisiva pelas tendências da globalização. A licença expedida desde
tempos imemoriais para confundir país e si-mesmo não pode renova-se infinitamente.
Por um lado, as sociedades modernas afloram seus vínculos com o espaço, no entanto,
as grandes populações se apropriam de una mobilidade sem precedentes na história. Por
outro lado, aumenta dramaticamente o número de zonas de passagem onde as personas
que as frequentam não podem estabelecer uma relação de residência. Dessa forma, as

56
CAMPBELL, Timothy e Sitze, Adam. Biopolitics: A Reader. Duke University Press, 2013. Ver capítulo 15:
SLOTERDIJK, Peter. The Immunological Transformation on The Way to Thin-Walled “Societies”, pp. 310-316.
316

sociedades globalizadas e móveis se cercam simultaneamente tanto al "polo nômade",


ao si-mesmo sem espaço, como ao polo desértico, ao espaço sem si-mesmo – com um
terreno intermédio que vai encolhendo ou que sobre colocando sobre as culturas
regionais que floresceram e às satisfações fiéis ao espaço. A crises formal da moderna
sociedade de massas (que atualmente se discute como crise dos Estados nacionais) tem
as suas origens na erosão avançada, na falta de adubo e na mobilidade do capital das
funções étnico-regionais do continente (como aquilo que contém). O que anteriormente
se entendia, e compreendia, por "povo" ou "sociedade" na maioria dos casos não era
senão o conteúdo de um recipiente de paredes grossas, territorial e sustentado por
símbolos, no qual quase sempre se falava um idioma. Um coletivo que encontrava sua
autocerteza em um sistema nacional fechado e oscilava dentro de suas próprias
redundâncias, a qual dificilmente poderia ser compreendida por estranhos.
Tais comunidades históricas que se situavam na interseção entre o si-mesmo e
o espaço, os assim chamados povos, se encontravam, devido as suas características de
autocontenção, a maioria das vezes sobre um maior declive entre o interior e o exterior
(um estado de coisas que nas culturas prepolíticas criaria um reflexo de um inocente
etnocentrismo y, em nível político, como diferença substancial entre o interior y o
exterior). É justamente essa diferença e esse declive são os que hoje em dia, e devido aos
efeitos da globalização, se nivelam cada vez mais, e a situação imunológica do continente
nacional se vive cada vez mais como algo problemático e traumático pelos usuários de
condições de vida anteriores. Se bem é certo que quase nada que conhecemos como
privilégio da liberalidade moderna deseja, como condições militante, a volta do reinado
do Estado nacional, ao menos um retorno da autohipnose totalitária, característica das
formas de vida tribais, para muitos o sentido e perigo da tendência para um mundo de
paredes porosas e delgadas, como sociedades mescladas copertinentes e coparticipantes
é incompreensível.
Roland Robertson opina em sua obra Globalization: Social Theory and Global
Culture que é certo que a globalização é um processo ao qual acompanha um protesto,
“a basically contested process”. Porém o protesto contra a globalização é, também a
globalização em si mesma. Ela faz parte de uma reação imunológica imprescindível dos
organismos locais contra a infecção provocada por um formato mundial mais elevado. O
grande centro psicopolítico da era global consiste em não ver o debilitamento da
317

imunidade tradicional e a ética do continente como perdida de forma e decadente, mas


como uma ajuda ambivalente ou cínica para a autodestruição. O que está em jogo para
os pós-modernos são os desenhos exitosos, planejados, tentados e as condições de
imunidades dignas de ser vividas. Isto é justamente o que nas sociedades de paredes
delgadas pode voltar a se constituir de múltiplas formas, mas como sempre não para
todos. Esse contexto pinta um sentido imunológico revolucionário para as tendências
atuais de formas de vida individualistas, pois pela primeira vez na história das formas de
vida hominídeas e humanas, nas sociedades avançadas os indivíduos, são tanto
portadores de propriedades imunológicas, se desprendem de seus corpos socias (até
agora essencialmente protetores) e aspiram a procurar a sua felicidade e a sua desgraça
do estar-em-forma da comuna política.
Essa tendência encontra sua melhor encarnação na nação piloto do mundo
ocidental, os Estados Unidos, onde o concepto individualista "pursuit of happiness", “way
of life”, “make yourself” ou “american dream” desde 1776 e início dos anos 1920,
constituem o fundamento do contrato social. Os efeitos centrífugos dessa orientação
fazem da felicidade individual uma forma de compensação mediante energias da
comunidade y da sociedade civil, de tal forma que a prioridade imunológica tradicional
do grupo frente ao indivíduo parecia também haver encarnado na síntese do povo
constituinte dos Estados Unidos. Porém, com o passar dos anos houve uma inversão, pois
em nenhuma outra parte, em nenhuma outra nação, em nenhuma outra cultura, o
indivíduo se faz tão responsável, em grande medida, de suas necessidades biológicas,
psico-étnicas e religiosas na medida em que a abstinência do terreno político vai
crescendo. Nas eleições presidenciais dos anos 2000 nos Estados Unidos se registrou pela
primeira vez uma participação abaixo de 50%. Nas eleições para a Câmara de
Representantes e para o Senado, em novembro de 1998, por volta de dois de cada três
votantes não foram votar. Para os experts, o nível de participação na votação de quase
38% foi um resultado relativamente bom. Ele nos revela uma situação na qual a maioria
dos indivíduos crê poder desolidarizar-se do destino de sua comunidade política
imaginando, com bom fundamento, que, de agora em diante, a optimização imunológica
do indivíduo não se encontra (o solo em poucas exceções) no coletivo nacional,
parcialmente, funciona como um sistema de solidariedade de sua minoria ou
318

comunidade. Onde mais claramente o encontramos é na asseguração de forma privada,


seja no terreno religioso, dietético, ginástico (gimnástico) ou as companhias de seguros
O axioma de ordem imunológica individualista se propaga nas massas de
indivíduos centrados em si mesmos como uma nova evidência vital. A de que nada fará
por eles senão que eles não farão por si mesmos. As novas técnicas imunológicas são
altamente recomendadas como estratégias individuais-existenciais em sociedades
constituídas por indivíduos para os quais a larga marcha até a flexibilidade, o
debilitamento da “relação de objeto” e a licença geral para manter relações de
infidelidade ou relações reversíveis entre pessoas e espaços, até alcançar a sua
culminação lógica. Em um mundo assim, a antiga sabedoria do imigrante: ubi bene ibi
patria, será obrigatória para todos. E é que a pátria como espaço da boa vida é cada vez
menos fácil de encontrar aí onde, por um acidente de nascimento, cada um está. Não
importa onde se esteve, a pátria deve ser reinventada permanentemente mediante a
arte do saber viver e das alianças inteligentes.
Nos séculos cristãos da Europa a existência humana foi representada por uma
forma de caminhada. O ser humano é essencialmente um caminhante. Não alguém que
caiu, mas que já caiu, porque com a expulsão do paraíso, o pecado original, nós já somos
caídos, mas logo após nos levantamos e nos tornamos caminhantes. Uma tradição bem
influente explica a origem da consciência humana pelo pudor. O mito do Protágoras era
que se roubasse o fogo e entregasse o fogo aos homens. Mas só com fogo não dá para
os homens montarem a cidade. Outros deuses pegam mais duas coisas dadas pelas
divindades para os homens, uma delas era a justiça, e a outra, era o pudor. O mito bíblico
do Pecado Original e a Expulsão do Paraíso nos diz que a formação do sujeito está
imbricada com a percepção da nudez, dela surge “de si mesma”, o ímpeto de ocultar as
partes visíveis, o monumento da diferenciação. A vergonha de se estar nu e de ser
diferente, a sexualidade passaria a ser algo vistoso e consciente. Para seres que se deram
conta de si mesmos, o pudor passa a ser uma retirada para o discreto e não visível. O
envergonhado que estar longe do palco em que primeiro teve lugar sua expulsão
enquanto Ser pleno. O pudor junto com a culpa e a separação seriam as mais antigas e
poderosas da autorrevelação onde os indivíduos constroem uma imagem de si mesmos.
Rasgos do Ser como falta existente. Kant mesmo disse que a prova da liberdade do
homem consiste na sua capacidade de se envergonhar. Kant confirma assim,
319

diferentemente dos românticos, que o homem é um ser que afirma sua dignidade,
confirmando assim que é um ser de razão, ou seja, um ser que não se dissolve na
natureza. Isso pode ser observado na chamada Crítica da Faculdade de Julgar, cujo título
é Da Estimação das Coisas na Natureza, Necessária à Ideia do Sublime, §26 e Da Natureza
Como Poder, § 28.
Ele considerava como sentido do sublime a capacidade da alma humana de, a
partir do desmedido, do mais exterior, do mais estranho, regressar a si própria. O sublime
para ele é a consciência humana da própria dignidade em residência contra as mais totais
tentativas de se render ao avassalador. Por isso, que segundo Kant, os corpos nus e suas
representações necessitariam de uma cobertura, uma folha de parra, para poupar o
sujeito decente a sua lembrança do instrumento pelo qual e com o qual, sem o
consultarem e de forma nada burguesa foi fabricado. A culpa e a vergonha fazem os
sujeitos virarem contra si mesmos como objetos de negação (autonegação). Uma cena
que encerra, talvez uma anterior, uma antiga autodeterminação. Determinações são não
apenas operações lógicas, mas paixões, marcas, tatuagens, e “programações” primeira
da alma. Com isso, a subjetividade determina uma anexação da vergonha em si enquanto
ação própria. A diferença antropológica entre o conceito e a realidade do ser possuidor
de razão tem seus precursores na diferença teológica entre o homem como imago Dei e
o “pecador” dissidente de Deus.
A história do homem é a história da autonomia das coisas, não do homem. O
sonho da autonomia como prerrogativa humana de fato se realiza, mas como maldição,
uma vez que só se efetiva de fato no que rodeia o homem e o que é criado por ele. A
verdade é que o homem está contaminado ao descontrole, pois, ele próprio por ser
invenção de Deus, entrou em curto circuito. Deus então, se viu traído e desligado deste;
ou seja, viu sua criatura se rebelar. É da ordem divina essa situação do homem, de ser o
criador do que não pode, depois, colocar freios e amarras. O próprio homem, quando
inventou a si mesmo, por meio do pecado original, ou seja, o ato de comer da árvore do
conhecimento, ganhou o descontrole inscrito em seu próprio corpo. A obsolescência
programada antes de ser programada para produtos foi programada pelo Criador: com o
pecado original. Adão e Eva passaram a não ter mais a vida eterna.57

57
Cf. Die Gnosis. III Volume. Der Manichäismus. Edição de Alexander Böhlig. Zurique e Munique, 1980, pp.
107-108. O luminoso Jesus aproximou-se do ingênuo Adão e despertou-o do sonho mortal para o libertar
320

Adão pediu companhia, e Deus lhe deu Eva. Era companhia, não era para sexo.
Ao desobedecer a Deus e comerem da árvore do conhecimento, o casal do Paraíso logo
se sentiu nu. Estavam envergonhados. Tomaram posse do conhecimento do mal e do
bem. Tornaram-se morais. Até aí, é Bíblia. Depois disso, é Agostinho. A interpretação de
Agostinho põe a libido na jogada. No mundo medieval, o conceito de liberdade adquire
uma carga semântica onde os teólogos precisam levar em conta o livre-arbítrio, como
liberdade de vontade, para manifestar o privilégio metafísico do ser humano criado à
imagem e semelhança de Deus, mas para algo mais. Para fornecer uma explicação para
a corrupção da natureza humana. Assim, a liberdade nos moldes de Agostinho é sempre
uma liberdade mal aproveitada, uma promiscuidade para o pecado e a rebelião contra o
Bem. O homem seria livre enquanto pode optar pelo mal. Conhecer o bem e o mal é não
mais se reproduzir pelo despejo do sêmen com as mãos, mas por meio de manifestações
involuntárias das partes do corpo, pênis e vagina. E isso já é o próprio castigo pela
desobediência. Pois o homem e a mulher passam a sentir no corpo a desobediência dos
membros como Deus sentiu a desobediência do casal. E o homem é fadado a se ver vítima
da libido, que o coloca a todo momento acreditando que o prazer momentâneo o sexo é
a paz de Deus. Mas não é, pois, uma vez satisfeita, a libido volta a cobrar do homem mais
copulação. E eis que surge o vício, a dependência do homem numa busca desgraçada de
mais e mais prazer. A vida do vício que não cessa é, sem dúvida, uma desgraça. Assim,
em certo sentido, uma das marcas da dependência de drogas vem da sua procedência
por uma metafísica falhada. Todo o caso de dependência contém um testemunho sobre
a dificuldade de construção do mundo nos tempos modernos. Agostinho sexualizou o
pecado original. O homem é uma espécie de “Deus da reificação”. Tudo que toca
transforma em coisa. Isso porque o homem aprendeu com a pedra. Sua mão, na visão de
Sloterdijk, se encaixou bem na pedra e logo ele conseguiu excluir todo o seu corpo do
âmbito do seu arredor. Passou a colocar entre o resto do mundo e o seu corpo a pedra.
Bateu, cortou, lixou com a pedra. Depois lançou a pedra. O lançamento é sempre para o

dos muitos espíritos [...] Assim se passou com Adão, pois o amigo encontrou-o mergulhado num sono
profundo. Acordou-o, deu-lhe movimento, animou-o, e expulsou dele o espírito confuso [...] Então, Adão
sentiu-se a si mesmo e reconheceu quem ele era. E mostrou [...] que era devorada por aqueles que
devoraram, absorvida por aqueles que absorvem [...] Pô-lo de pé e deu-lhe a provar da árvore da vida.
Depois disso, começou a ver; e, então, Adão chorou e gritou em voz alta como um leão a rugir. Puxou pelos
cabelos, bateu contra o peito e disse: “Maldito, maldito, seja quem formou o meu corpo e quem encarcerou
a minha alma [...].
321

aberto, para o fora, para o mundo não conhecido. E nisso, acertou a caça com a pedra.
“Os limites de meu mundo são os limites de meus lançamentos”. Lançamentos de pedras,
escreveu Sloterdijk ao se referir a uma frase de Wittgenstein, “os limites de meu mundo
são os limites da linguagem”. Como escreve Wittgenstein: “imaginar uma linguagem é
imaginar uma forma de vida”. De fato, Sloterdijk vê as frases como sofisticações de
lançamento. Se lanço e acerto o que quero, tenho algo que será uma frase com valor de
verdade. Toda a palavra humana é um tiro no espaço em aberto, já que o excesso
campeava em qualquer lado no comportamento humano, preconizavam a medida e a
moderação. Esse processo de geração do homem o trouxe para “o aberto” de um modo
a se tornar o deus da coisificação, o ser do império reificado. A reificação passa, portanto,
pelo pensamento, um certo design. Tudo que tocamos vira instrumento, e logo,
banalizamos tudo que tocamos. Tudo vira uma cultura do descarte e da sucata. Nosso
próprio corpo passa por isso e passará ainda mais com as antropotécnicas. Tudo que o
homem toca vira ouro. Igual o Rei Midas, mas com o preço de ser algo morto, o metal, o
sem vida.
322

A Expulsão do Paraíso. Afresco de 1427. Capela Brancacci, Florença. Tela de Masaccio.

A forma cristã do caminhante é o peregrino que sempre está em caminho ou a


caminho de um lugar de peregrinação, em uma última interpretação poderíamos dizer
que está a caminho de sua própria tumba. Todos os homens caminham-peregrinam para
sua própria tumba na interpretação tradicional da “condição humana”. A edificação da
metafísica e a experiência de morte foram um complexo, o tempo e a morte não são duas
experiências diferentes, mas uma única, cujo centro de gravitação seria na
temporalidade. Aquele que nasceu no tempo fica devedor de uma morte para com a
Natureza. O mito grego de Cronos, devora os seus filhos, fixa por assim dizer, uma
concepção de morbidez pairante. A vida ligada ao tempo implica numa inescapável
autofagia. O pensamento metafísico mais antigo tinha certeza quanto ao fato de o tempo
de Cronos correr a direita a caminho da morte. O tempo que corre, é sofrimento,
carência, fracasso, um prazo para a ruína do final. Chronos: a fusão de Cronos – o titã
canibal, com Cronos (Khrónos) – o tempo que passa, foi efetuada desde a Antiguidade.
Sobretudo a metafísica cristã, sabia que todos nós como mortais, zumbis, mortos-vivos,
323

que andam por aí no seu próprio cadáver com a horrível pretensão de estar vivo. A vida,
no fim, está à mercê do tempo que tudo apaga e que tudo transforma. Não só se vê
morrer continuamente, como tem também, desde já, de se imaginar como aquele que
terá morrido. O indivíduo como aquele que é vítima de Chronos, não só
retrospectivamente, mas também de antemão. Quanta fome e voracidade Cronos possui.
Aquele que ganha temporalidade ou aquele que consegue imaginar o decurso do tempo
aplicado à sua própria imagem e existência vê a sua própria carne se putrefar, eram de
antemão expropriados por Chronos. O mesmo pôde ser visto pelo abalo do efêmero na
lenda budista da primeira saída de Gautama para fora do palácio de seu pai, o jovem vê
com seus olhos, pela primeira vez, a natureza sofredora da vida submissa ao tempo na
forma do doente, do mendigo e do morto. Cioran é uma testemunha dessa sensibilidade
de nossa época com seu texto Paleontologia, sentiu o arrepio na carne, de um metafísico
não redimido, mas também menciona o cinismo – demora sarcástica da consciência junto
do nulo e efêmero. A simbologia dos ossos ganha na metafísica sua alternativa ao que é
efêmero, através da carne, a substância óssea do existente se mantém como resíduo
superior ao tempo. No princípio, era o fogo o encarregado de fazer o trabalho da alquimia
metafísica. Aquilo que passou pelo fogo levou a cabo essa última análise. Aquilo que
passou por ele e que subsiste é a essência imperecível. Dos corpos vivos nada perdura,
no fim, só temos cinzas e espírito, pó, mineral e luz, velas e túmulo. É dessa matéria que
é feita a eternidade. A força do tempo penetra até mesmo seus destilados finais. A
metafísica sempre procurou entender como decurso final irreversivelmente para a
morte. Sua pílula em forma de antídoto para a fugacidade deu-se como resposta a
eternidade, a vitória sobre a morte enquanto imortalidade. A maioria dos elementos da
Modernidade ainda está impregnada por histórias que englobam a insatisfação humana
com o mundo caduco à mercê do tempo. Do osso para a pedra. Foi em construções de
obras de pedra que a alternativa metafísica se exprimiu mais gigantescamente.
Construções bem altas, menires, obeliscos, pirâmides, templos, pórticos, torres, colunas,
menires, tornam materialmente presentes as ideias de lei – de duração e de perenidade
divina. Nessas arquiteturas, a metafísica se ilustra como tese, segundo a qual a ferida do
tempo só se cura por meio da pedra eterna. É nele que o elemento físico adquire
conteúdo metafísico. Esse exercício metafísico seria trabalhado no sentido de uma
“mineralização” da alma. A metafísica antiga não suporta o que é movido, fervilhante,
324

cíclico. Por isso, em linguagem filosófica, identifica-se Deus como motor imóvel. Como
homens querem se tornar semelhantes a ele; ou de restaurar uma semelhança perdida.
O remédio da fobia metafísica do movimento seria a forma da estática de liberdade à
existência da sua mobilidade que leva em direção à morte. Por isso, só se pode vencer a
miséria da vida juntamente com sua mobilidade. Assistimos a uma deseternização e a
uma mobilização tão penetrantes que parece não estarmos aptos para pensar conceitos
opostos hoje em dia aos conceitos dominantes de movimentos e de acontecimentos –
“Tudo que era sólido se desmancha no ar”. Em algumas traduções: “Tudo o que era sólido
e permanente se volatiliza”. Nesta fórmula, Marx manifesta como um pensador
inteiramente da mobilização em ação, que não em vão forneceu a meio mundo
racionalizações para fazer história. Um culto ao movimento foi instituído cobrindo o
pensamento e a ação dos modernos. Tudo que está parado não tem possibilidade de
sucesso, de vitória, de vida. Só o movimento é capaz de atividade.
A expressão “condição humana” é ela mesma, parte de uma antropologia
católica, porque a palavra “condição” (conditio) não significa neste contexto fitness, mas
algo no sentido de fragilidade e a condição humana ou ainda se pensarmos que desde o
século XVII a “condição humana” mudou drasticamente no sentido de que os homens
europeus daquela época estavam marcados pela experiência de uma guerra que não
começou em sua própria vida e, provavelmente, dure mais tempo que sua vida, significa:
o mundo mesmo é que se transforma em um cenário de guerra. Se transforma em um
“Theatrum belli” e o indivíduo já não pode estar seguro de morrer de uma morte natural.
Já não é um peregrino que caminha para sua tumba, mas que provavelmente um
indivíduo que morrerá de uma morte não natural em um campo de batalha, e as pessoas
que morrem em campos de batalhas se chamam nas línguas europeias pelos generais de
“os caídos” ou “caídos”. No fundo este “phatos” dos caídos vem das tradições romanas
de arenas. A arena romana voltou, assim como um novo teatro da crueldade. Uma nova
arena geral e virtual da sociedade midiática de entretenimento. Uma metarena
totalitária.
Algo que vai muito mais além da sociedade do espetáculo de Guy Debord e que
serve para dirigir o ressentimento das massas. O próprio Sloterdijk fala que “ao cair um
dia em descrédito, fui um desses cristãos primitivos com problemas no momento da
ressurreição porque havia sido devorado pelos leões e excretado por seus intestinos”.
325

Recuperar a forma original nessas condições é muito difícil. Os primeiros romanos foram
uma cultura de massas e entretenimento, eles foram os primeiros (a filosofia romana) a
estabelecer uma diferença teórica entre “estar de pé” (em espanhol estar parado) e
“estar deitado” (em espanhol acostado), porque não é de se estranhar que depois da luta
de gladiadores encontramos em toda parte, vemos seres humanos deitados ou caídos no
chão. São os que caíram nas batalhas, enquanto só um dos dois seguem de pé depois da
batalha. E deles diz Sêneca: “este será o filósofo que permanece em pé quando todo
mundo caiu”. Porém, logo generaliza a situação da arena e a converte em metáfora da
vida humana em geral, ou seja, a vida é uma luta em uma arena, o mesmo que dizer que
nascemos sem missão. A palavra “missão” significa neste contexto, incluído antes da era
cristã, o poder sair da batalha, o que na arena romana isto significava o dedo polegar para
cima ou para baixo. Mas “sine missione nascimur” poderia ser que desde que nascemos
entre vida e morte, não nos podem deixar sair da arena sem que todos nós lutemos até
o final. A ideia de “sustancia”, se chama sustancia na filosofia latina, vem “do que está de
pé até o final” (no fundo, vem da ideia de arena romana).

A constatação permanente da diferença ficar caído e permanecer de pé.


326

Vic (tor): Imago et Victoria convertuntur. Mosaico de solo de uma vila em Tusculum
(século III D.C)

Deveríamos trabalhar aí com uma ontologia da levitação. Um “novo modelo” da


Affluent Society só seria melhor observada a partir do final dos anos 1950. Os
acontecimentos do século XX só poderiam ser interpretados por uma época de evasão
da “sociedade” moderna das definições da era da pobreza e do esforço. O início de vários
trabalhos intelectuais passou a adotar o vocabulário “sociedade de consumo”,
“sociedade viva”, “a sociedade do gasto”, “cultura do aparecer”, entre outros que
funcionariam como diagnóstico precoces dos tempos vindouros como clima do cenário
da “sociedade” contemporânea. Nosso espaço abandonou as cargas de pobreza, da
psicossemântica da necessidade da Internacional Miserabilista. A psicopolítica que
Sloterdijk trabalha nos leva ao giro antropológico-semântico, no qual, segundo ele,
deveria ser o de emancipação da penúria frente uma novidade e para uma interpretação
política da riqueza. A Affluent Society (1958) de Galbraith proporcionou a discussão de
falar sobre uma “sociedade” rica de sua riqueza com implicações morais e éticas.
Haveriam tensões para o bem querer do bem-estar. O tema da redução das horas de
trabalho, muito europeu, é significativo. O ano tem umas 8.600 horas, os franceses
trabalham 1500 e os alemães 1650. Por conseguinte, dispõe de uma liberdade
desconhecida desde a idade da Pedra, no sentido de que sua vida não está estruturada
pelo trabalho. Depois de 8 horas de sonho e 7 de trabalho, lhes cai quase a metade do
dia. Se tomarmos em conta os 104 dias de fim de semana e 30 de férias, vemos que
durante muito tempo mais da metade da nossa existência nenhum patrão pode decidir
o que devemos fazer. Todos aqueles balanços de guerras, crises econômicas e políticas
327

tinham um só destino, o cinismo. A civilização contemporânea sabe como proteger a


todos seus membros de acidentes, doenças, infortúnios, pobreza, fracasso e
desemprego. O sofrimento debaixo das teorias de exploração e alienação não seriam
mais dramas do presente nem guias para representações. A mentira da miséria já não é
tão suficientemente contada nem acreditada. Uma oposição frente ao ressentimento e à
penúria, desenharia uma existência do espírito livre (Nietzsche), aquele que é
naturalmente rico como uma riqueza que se manifesta pela primazia da doação (de certa
forma autoconsumo), a primazia do dar (economicamente, moralmente, culturalmente).
Podemos questionar o mito da propriedade Rousseauísta, segundo o qual o primeiro
proprietário é o primeiro ladrão. Nessa visão, temos a ideia de que a origem histórica da
propriedade é ilegítima criou uma poderosa corrente continental de pensamento e ação
para a qual uma ordem justa só pode ser restaurada pela "expropriação de
expropriadores". Uma aliança perigosa de idealismo e ressentimento teria levado a
prática – da Revolução Francesa ao Leninismo – deste propósito. O crime não é dizer “isso
é meu”, e inventar a propriedade privada, mas sim taxar a propriedade. Segundo um tal
critério, querer assumir como pecado original, como Rousseau fez, o “cercar a terra”, é
um delírio e um distribuidor ilegítimo de culpa. Por conta disso, pagamos por tal pecado
de maneira literal: pagamos impostos para um estado que vai nos perdoando por essa
mácula de origem. Por essa linha de raciocínio, o “marxismo” seria apenas instrumento
de um objetivo rousseauísta que, no fundo, seria um objetivo religioso de purificação de
um tipo de pecado original. A fúria pertence às energias renováveis, quando as
circunstâncias são ruins o bastante a fúria é renovável quase como no aspecto da energia
solar.
328

Bernardino de Sousa Pereira. Primeira tentativa de voo de globo de ar quente de Bartolomeo


Laurenzo de Gusmão diante do Rei João V. (1709).

As sociedades modernas foram veículos. Deveríamos as ver como veículos


paradoxais porque foram postos em caminho ou em movimento antes de se instalarem
freios, em outras palavras, o veículo da sociedade pode andar em diferentes velocidades
para adiante, e não há nenhum tipo de dispositivo com o qual alguém possa abrandar a
viagem em uma forma não catastrófica. Estamos não só condenados à aceleração como
ao impulso ascendente.
Com semelhanças vemos Byung-Chul Han falando algo parecido, mas com
conotação em seu trabalho em outro sentido. Segundo ele, a aceleração não é a única
explicação possível do desaparecimento do sentido. Podemos considerar um cenário
diferente. A força da gravidade que marca o vetor e a trajetória das coisas vai sumindo
vagarosamente. As coisas, livres das suas referências de sentido, começam a flutuar e a
tropeçar sem direção. Do exterior, esta cena poderia dar a impressão de que as coisas,
devido à aceleração, se libertam da força da gravidade. Na realidade, todavia, escapam-
se da Terra e afastam-se umas das outras à falta de gravitação de sentido. Tendo em vista
os séculos XIX e XX em retrospectiva é constatável que os maiores acidentes possíveis
ocorreram nessa época. Poderíamos citar o caso de Apollo 1 (1967), Chernobyl (1986),
dirigível Zeppelin (1937), ônibus espacial Challenger (1986), fora alguns outros como
Ayrton Senna (1994) na Fórmula 1 e Michael Schumacher que quase morreu quando
329

estava esquiando. A pergunta é: se vamos os repetir? Ou se há uma legalidade em virtude


da qual as catástrofes passadas são postas em cenas remontadas. Durante toda a metade
do século XX, vimos sequências de acidentes máximos porque tem sentido aplicar o
termo de “acidente” também para as guerras. O alarma apocalíptico ecoa, já não
pressupõe nenhum profeta, nem avisos de declínios. A atual consciência dos homens
caracteriza-se com uma relação pragmática com a catástrofe. Somente com a
proximidade de experiências pânicas, é possível se pensar em culturas vivas. Talvez as
forças que produzem a catástrofe e, ao mesmo tempo, se querem pôr a salvo dela,
acumulam-se de repente em si próprias, não é o salve-se quem puder ou o S.O.S, mas o
“conhece a situação”, que passa a ser o lema de nossa época. Cria-se assim, uma situação
pânica, com diversos botões de emergência apertados, em que a consciência pânica
poderia se transformar em cultura. Por isso, a “história” de uma cultura pânica seria
também um fim da história. A cultura pânica começa onde acaba a mobilização enquanto
fuga eternamente para frente, nela os móvitos cinéticos, que disseram a história até o
presente, seriam domados para uma cultura em que o esforço contínuo seria o de
impedir a irrupção de novos impulsos historicistas, devido seu conhecimento pós-
histórico acerca da catástrofe vida da mobilização histórica. Dessa forma, a cultura
pânico-extática pós-histórica seria uma única alternativa à civilização da mobilização
histórica que, mesmo agora, já não tem história a sua frente, mas apenas uma contagem
regressiva. O “privilégio” dos contemporâneos, neste período tardio da era moderna,
consiste em saber que o horizonte do mundo como história já não está mais aberto. A
claustrofobia própria de nossos tempos como fim dos tempos, que nos rodeia torna
inevitável o adeus da Modernidade ao preenchimento histórico-progressista do aberto.
Temos tido a oportunidade uma vez ou outra para afirmar que a história não só se faz de
grandes homens e tampouco por estruturas, mas a história, a força básica que faz a
história é o acidente ou o erro. A banalidade faz a história. Graças ao iluminismo histórico,
o mundo encontra-se agora com um olhar de uma ciência triste, o que não é
transfigurável na ideia de que a melhor memória é a que tem o pior olhar. Como
resultado, toda a história vira uma história amarga, toda a história é disangélio – a história
são más notícias. Um exemplo para ilustrar: tomemos a Primeira Guerra Mundial, entre
outras coisas. A guerra explodiu porque o condutor do automóvel no qual estava o
sucessor do trono austríaco estava, não passou pelo caminho normal que estava pré-
330

estabelecido. Já havia passado por onde estava o assassino, que por sua vez, estava em
uma condição onde não poderia disparar. Pouco depois, se escutou uma explosão, por
isso, o motorista condutor deu a volta e passou por uma segunda vez ao lado do futuro
assassino, mas desta vez com o sucessor do trono e sua esposa diretamente na frente da
pistola. O assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do Império Austro-
Húngaro junto com o de sua esposa, a duquesa Sophie. Moral da história: o erro faz a
história. Um chofer austríaco tem culpa da Primeira Guerra Mundial. Todo o depois é
uma cadeia causal. Quatro semanas depois, por uma diplomacia tonta houve uma
escalada. No princípio, ninguém acreditava na guerra. O imperador austríaco, primeiro
que ele foi de férias para Bad Ischel como todos os anos, durante quatro semanas, e nada
pensou na possibilidade da guerra. O imperador alemão, com seu iate o Hohenzollern,
um barco de 110 metros, se foi por três semanas aos fiordes noruegueses. E da guerra
mundial...nada? Dois dias antes da declaração de guerra, o imperador Guilherme e o czar
Nicolás trocaram mensagens: “Querido Willy” e “Querido Niki”, não havia uma grande
causalidade que obrigaria a aquilo. Em resumo, eram pequenas bobagens, pequenos
erros, em nenhuma parte havia uma coerção real.

Foto de 28 de janeiro de 1986 mostra a explosão da espaçonave Challenger.


331

Charlotte Buff. Trans-formações XXV, Revistas, Redes (1992).

Ilustração da figura de Fausto. Século XIX.

Aquela ideia de Pound de que os artistas são a antena da raça cabe


perfeitamente no caso de Edgar Allan Poe, mas com um desdobramento essencial, que
332

não está na exposição de Pound: Poe não só recebe as ondas artísticas, os estímulos
estéticos, metodológicos e procedimentais que chegam de todos os cantos (e mesmo do
futuro), ele não só recebe, ele também transmite, ou seja, capta, processa, transforma e
retransmite (para o outro lado do oceano, para Baudelaire e mais tarde Paul Valéry, o
que não deixa de ressoar na própria trajetória de Pound e também de Eliot). Poe também
captou o frenesi dos balões; a inovação tecnológica, a liberdade, a possibilidade de
transmissão, deslocamento e travessia (como Julian Barnes com relação ao canal). Em 13
de abril de 1844, Poe publica uma história-notícia-relato no jornal The Sun, de Nova York.
Tratava da travessia oceânica feita por Monck Mason em um balão de gás em 75 horas,
uma ficção tomada por verdade, que mais tarde levou o título de "The Balloon-Hoax". A
notícia da travessia se espalhou e logo uma multidão cercava a sede do jornal procurando
por exemplares. Uma retratação foi publicada no dia seguinte. Mas a ideia já estava no
ar. Consta que essa ficção-científica primitiva de Poe influenciou diretamente o trabalho
de Jules Verne, confesso admirador de Poe. Ele não só escreveu Cinq semaines en ballon
e Le tour du monde en quatre-vingts jours, mas também um ensaio intitulado Edgar Poe
et ses oeuvres de 1864, trabalho que só foi possível por conta das traduções feitas por
Baudelaire. Mas a história de Poe sobre o balão, em 1844, tem raízes em outro conto seu,
de 1835. O "The Unparalleled Adventure of One Hans Pfaall", a história de um homem
que chega à lua viajando de balão. Essa mescla do balão e da lua, e mais o tom soturno
que Poe frequentemente dá a suas histórias, evoca o desenho de Odilon Redon, usado
por McEwan na capa de Enduring Love, referido por Barnes em Levels of life, e utilizado
também como imagem de capa em uma das coletâneas de histórias de Poe.
333

O olho flutua como um estranho globo no infinito. Odilon Redon. Litografia. Ilustração para
Edgar Allan Poe (1882). O olho voador causa a impressão de balão junto com a cabeça de Poe
sendo segura por cabos.

A fascinação pelo voo e pelos balões entra pelo século XX e atinge, entre outros,
Kafka ("Os aeroplanos em Brescia", conto publicado em 1909) e Robert Walser. Walser
publica em 1913 o conto Ballonfahrt, "Viagem de balão". Num primeiro momento, a
viagem de balão e o deslocamento aéreo não combinam com aquilo que Walser mostrava
em sua vida e em sua poética - se há movimentação em Walser, ela é quase que
exclusivamente pedestre, no rastro de Rousseau e dos andarilhos medievais. Em um dos
ensaios de seu livro Logis in einem Landhaus - A Place in the Country de 1998, Sebald
ressalta justamente esse aparente paradoxo, argumentando que é nesse momento de
exceção que Walser mais se revela: "o único momento em que vejo o viajante Robert
Walser livre do peso de sua consciência é nessa viagem de balão". Na história de Walser,
três pessoas estão no balão: "o capitão, um cavalheiro e uma jovem moça". O balão é
334

uma "estranha casa", abaixo deles está "o abismo arredondado, pálido, escuro", as casas
parecem brinquedos inocentes, e as florestas parecem cantar canções obscuras e
antiquíssimas. O cavalheiro, que talvez seja uma versão de Walser, usa, por um capricho,
um chapéu de plumas dos tempos da cavalaria medieval. A viagem dura a noite inteira e
mesmo assim não termina. Começa no entardecer, atravessa a noite, encontra o nascer
do sol e segue. Certas passagens dão um tom quase ritualístico, como o de um pacto com
a morte e com o vazio.58 Kelvin Falcão Klein diz que o próprio Odilon Redon, o autor do
desenho que mistura o olho ao balão, era também um leitor de Poe, tão dedicado quanto
Baudelaire e Valéry. Em 1882, Redon lança um pequeno volume pela editora G.
Fischbecher, de Paris, contendo 6 gravuras e intitulado A Edgar Poe. O volume se abre
justamente com a imagem do balão-olho, L'oeil, comme un ballon bizarre se dirige vers
l'infini. É claro que Redon não ilustra as histórias de Poe, o que parece estar em questão
é uma espécie de transposição, ou ainda, um tipo de convivência subjetiva que extrapola
a lógica convencional do tempo e do espaço. A prática artística de Redon é articulada em
contato direto com a literatura, não apenas Poe e Baudelaire, mas sobretudo o Flaubert
de La Tentation de saint Antoine de 1874, numa nota relacionada, é possível relembrar
Julian Barnes, que foi quem primeiro falou de Redon, outro leitor de Flaubert que não
procura a ilustração, e sim, a construção criativa de um espaço de convivência com aquilo
que não existe mais. Dario Gamboni, professor de história da arte na Universidade de
Genebra, dedicou um livro inteiro à relação de Redon com a literatura chamado La Plume
et le pinceau, de 1989 (mais uma vez, a ênfase de Gamboni não está na possibilidade de
ilustração ou adaptação entre texto e imagem, e sim, no espaço de convivência possível
em fins do século XIX e início do XX no que diz respeito às várias formas artísticas). Tom
Stoppard, McEwan e Julian Barnes usam uma mesma referência (balões), ainda que o uso
feito por McEwan seja bastante indireto, limitando-se à ilustração da capa da primeira
edição de Enduring Love. Em Altos Voos e Quedas Livres (versão em português de 2014),
Barnes faz um comentário à imagem em questão, de autoria de Odilon Redon. “Mas o

58
WALSER, Robert. Viagem de Balão. Absolutamente Nada e Outras Histórias. Tradução: Sergio Tellaroli.
São Paulo: Editora 34, 2014, pp. 22-24. Como a terra é grande e desconhecida, pensa o cavalheiro com o
chapéu de plumas, o que parece indicar que, para Walser, a viagem de balão é uma espécie de estímulo e
confirmação de sua tendência deambulatória anterior e primordial, ainda há muito terreno a ser
percorrido. E o final aberto: "o voo segue sempre adiante, o sol magnífico enfim surge, e, atraído por esse
astro orgulhoso, o balão dispara rumo a alturas mágicas e atordoantes. A moça solta um grito de medo. Os
homens riem”.
335

artista que fez a imagem mais atraente de balonismo foi Odilon Redon, e ele divergiu”.
Redon tinha visto O Gigante (o balão de Nadar) voando e também o "Grande Balão
Cativo" de Henri Giffard, que brilhou nas Exposições de Paris de 1867 e 1878. Nessa
segunda data, ele fez um desenho a carvão chamado Balão Olho. À primeira vista, ele
parece apenas um truque visual: a esfera do balão e a esfera do olho estão fundidas
formando uma só, enquanto uma grande órbita paira sobre uma paisagem cinzenta. O
balão olho está com a pálpebra aberta, de modo que os cílios formam uma franja ao redor
do topo do dossel. Pendurado no balão há um cesto onde uma figura hemisférica está
agachada: a parte de cima de uma cabeça humana. Mas o tom da imagem é novo e
sinistro. Não poderíamos estar mais distantes dos sentidos figurados normalmente
utilizados para o balonismo: liberdade, exaltação espiritual, progresso humano. O olho
eternamente aberto de Redon é profundamente perturbador. O olho no céu, a câmera
de segurança de Deus. E aquela cabeça humana nos convida a concluir que a colonização
do espaço não purifica os colonizadores, o que aconteceu foi apenas que nós levamos
nossa imoralidade para um outro lugar. O balão aparece na ficção de três autores
britânicos: Julian Barnes, Ian McEwan e Tom Stoppard. Em Levels of Life, traduzido no
Brasil como Altos Voos e Quedas Livres, Barnes usa o tema do voo e do balonismo como
estratégia para lidar com o luto pela morte da esposa, o luto como uma situação extrema
que o faz ver o mundo de uma perspectiva antes inimaginável. É isso que ele procura
também em três pioneiros do balonismo: Felix Nadar, Sarah Bernhardt e o menos
conhecido coronel Fred Burnaby. A abertura de Levels of Life é significativa: "Você liga
duas coisas que nunca foram ligadas antes. E o mundo é transformado". Luto e
balonismo, por exemplo. No caso de Barnes, os temas do balonismo e da ligação ressoam
um pouco mais, numa dimensão bastante material e geográfica. A transposição do Canal
da Mancha, por exemplo, atividade aparentemente simples, mas carregada de drama
histórico (Burnaby, inglês, é o único dos três pioneiros que atravessa o canal – English
Channel para ele e para Barnes). Não foi sempre esse um dos desejos de Barnes? Mostrar
que a travessia é possível? O exemplo imediato é O Papagaio de Flaubert, mas existem
outros. Em Lord Malquist and Mr. Moon, seu único romance, publicado em 1966,
Stoppard arma uma trama tão bizarra que é impossível de ser resumida. Nota-se que no
romance Stoppard faz uso intenso de sua condição "extraterritorial", nem tcheco, nem
súdito britânico, mas intensamente ambos, pois se os cenários e os personagens de Lord
336

Malquist são londrinos (em seus gestos e termos), o encadeamento absurdo de fatos e
ações, além do permanente tom entre onírico e debochado, nos coloca diretamente no
universo de Hrabal e Bruno Schulz. Mr. Moon, seu personagem, coloca uma bomba
caseira dentro de um balão que sobrevoa Trafalgar Square. Nele está escrito GOD SAVE
THE QUEEN, e, quando explode, a multidão vai ao delírio. Mr. Moon passa o romance
esperando a oportunidade para detonar sua bomba, que leva no bolso, como esforço de
denúncia da "modern life". Eis uma constelação que leva aos terroristas/anarquistas de
Dostoiévski e Conrad vindo da Suíça, ao Caminho de Ida de Piglia, ao belíssimo romance
de Aleksandar Hemon, O Projeto Lazarus de 2008.
Com a “sociedade” legaliformizada, teremos uma constante optimização de
rotinas que são movidas por dinheiro, arcabouços político-legais e em um “estado de
mundo” (Hegel) onde a mudança dos contextos de seriedade e proporções de peso
existenciais se fazem presente. Um certo tipo de condição ontológica levitada ainda não
foi muito bem encontrado pela “sociedade”. A descarga alcança todas as coisas, seja
linguagem, condições materiais ou estado de coisas. Seus estados de ânimos agora que
foram liberados da incerteza na sua saída do universo da pobreza são também
importantes porque eles serão fundamentais para a abertura de um caminho ao alívio da
penúria. A condução ao Estado de Direito dá uma efervescência de modos de existência
mais ligeiros, livres, frívolos e efêmeros. O significado da ambição dos modernos em se
instalarem no espaço aéreo.
Sloterdijk (2006, p. 542):

Em torno de 1750 um aforístico podia ter afirmado que a antigravitação, a


elegância e a máquina constituíam as grandes tendências da época. Os
fenômenos falam por si mesmos: não tinha delirado todo o século XVIII,
poética e tecnicamente, por ele “arte-ar-navio”, pela navigation aérienne, por
máquinas de Dédalo e balões aerostáticos? Não havia chegado realmente à
véspera da Revolução Francesa o momento em que os seres humanos se
sentiam maduros para emancipar a existência do triste costume de sua
pesadez e para arrebatar aos deuses seu último privilégio, o puro capricho?
Com a exibição exitosa de um balão de ar quente realizado pelos irmãos
Mongolfier o 19 de setembro de 1783 no pátio do castelo de Versalhes na
presença de Luís XVI se deu o sinal oficial para o começo da levitação: um
acontecimento rodeado de jubilo, no qual um cordeiro, um galo e um pato
foram os primeiros habitante animais da Terra que gozaram do prazer da
subida a uma altura de mais de 120 metros.
337

Durante esse período, a política de antigravitação havia dado partida, sob a


forma de republicanismo, navegação aérea, de estética e terapêutica, industrias e tráfego
de grandes distâncias estavam em latência de criar seus próprios meios e máquinas.
Assim, quem não quer falar desse impulso para cima, deve-se calar diante da
Modernidade. Isso fornece a fórmula dos processos de modernização. Progresso é
movimento para o movimento, movimento para mais movimento e movimento para a
capacidade ou possibilidade de movimento incrementada. Uma utopia cinética, onde
todo o movimento o mundo deve passar a ser uma realização do plano que nós temos
dele. Nossos próprios movimentos vitais passam a ser, progressivamente, iguais ao
próprio movimento do mundo, o processo mundial, em seu todo, coincide
progressivamente com a nossa manifestação de vida. Na Modernidade, a ética pode
provir diretamente da cinética. A cinética passa a ser a ética da Modernidade. As coisas
acontecem conforme se pensa, porque aquilo que acontece cada vez mais se realiza por
nós o fazermos. Uma denominada “prática” como um braço técnico do pensamento
intervém ao andar do mundo. O caráter de projeto próprio desta nova era resulta na
pressuposição de que ela possa fazer correr a marcha do mundo de uma tal maneira que
só se mova aquilo que nós queremos, racionalmente, manter em movimento pelas
nossas próprias atividades. Já não há imperativos éticos do tipo moderno que não sejam,
concomitantemente, impulsos de transição, impulsos cinéticos. Um imperativo
categórico da Modernidade poderia soar desta maneira: para atuarmos continuamente
como indivíduos de progresso, devemos ultrapassar (contornar) todas as situações em
que o homem seja um ser amarrado (travado-emperrado) nos seus movimentos.
Imobilizado em si mesmo e desprovido de liberdade fixada pateticamente. Por isso, Marx
foi o primeiro que descortinou a mistificação moral do elemento cinético. Achou que a
"lei moral" kantiana não corresponde tanto a interioridade a uma consciência do dever,
mas que a própria consciência é suscetível de ser mobilizada enquanto dever para a
revolução. O imperativo categórico é, por conseguinte, uma norma menos ética do que
cinética: diz menos aquilo que tu deves fazer do que aquilo que tens de derrubar para o
poder fazer, nomeadamente todas as circunstâncias que entram o potencial cinético do
homem. Para Peter Sloterdijk, o homem tem a necessidade do receptáculo imunológico
inicial – a primeira esfera. Exatamente porque somos jogados no mundo, nós precisamos
do outro e da proteção esferológica. Interpretando a ruptura do nascimento biológico
338

como um ato de vir-ao-mundo, Sloterdijk acredita o ser humano como criatura fracassou
em seu ser-animal (Tiersein) e em seu permanecer-animal (Tierbleiben). Ao fracassar
nesse sentido, esse ser indeterminado tomba para fora de seu ambiente e com isso ganha
o mundo no sentido ontológico.
Sloterdijk (2002, pp. 102-103):

Presença é movimento, no sentido de um drama da chegada, da produção e


da entrada. A experiência da presença faz parte dos elementos distintivos da
existência humana, porquanto os homens são os seres por excelência da
chegada e da entrada – predispostos a despertar, a sair, a produzir e a
começar. Só há presença onde houver existência humana, onde se der o
humano vir-ao-mundo. A presença é o aguilhão do nascimento inacabado [...].
Na medida, porém, em que os homens participam da presença, são seres
natais nos quais prossegue o movimento da vinda-ao-mundo. A presença,
enquanto conceito dramático, inclui, portanto, um duplo movimento: o abrir-
se do mundo, como chegada-do-exterior, e o manter-se voltado para o mundo
por parte do sujeito, como espaço de chegada. A presença é, por isso, sempre
acompanhada pela consciência de uma dupla felicidade e de um duplo temor.
Um dos pares de felicidade e temor provém da irrupção das forças exteriores
e da chegada de dádivas inesperadas, o outro resulta da euforia e da dor do
próprio êxodo humano. Por ser presentista, a segunda alternativa está
inteiramente sob o signo da natalidade. O presenteísmo natal não pode dar
crédito ao motivo da progressão para a própria morte; por isso, ele é, em
conformidade com o seu movimento fundamental, radicalmente distinto do
ruinoso ser-para-a-morte de tipo metafísico ou existencialista. É que a
presença, enquanto permanência no aberto, só surge graças ao movimento
do humano vir-ao-mundo, e onde quer que esse movimento se inicie, o natal,
o presente e o aberto adquirem o seu perfil num único processo. Presentista
é a vida que nota que tem algo “diante de si”.

Se “está” no aberto, em primeiro lugar, por nele se estar inseguro. O aberto dá-
se a conhecer pelo fato de nele se “existir”. O aberto, seria a tensão ou o campo de forças
que se constrói em torno da excêntrica “posicionalidade humana”. Seria no limite, a
percepção do êxtase existencial enquanto perplexidade inata. É nesse campo de força
que está nosso lar, aquilo que na tradição clássica se chama poiese. Um vestígio da saída
natal para a presença. Esse vir-ao-mundo extático e essa “outorga” para o ser estão
postas desde sua constituição. Se o homem está-no-mundo, é porque toma parte de um
movimento cinético que o traz ao mundo e o abandona ao mundo (é jogado). Esse êxodo
transacional geraria apenas animais psicóticos se, com a chegada ao mundo, não se
efetuasse ao mesmo tempo um movimento de entrada naquilo que Heidegger chama de
“casa do ser”. Entraria aí, o elemento das linguagens tradicionais do gênero humano que
possibilitaram a capacidade de ser vivido o êxtase do estar-no-mundo, ao mostrar aos
339

homens como esse estar no mundo pode ser ao mesmo tempo experimentado como
estar-consigo-mesmo. Assim, a clareira é um acontecimento de espacialidade e
historicidade vibrátil nas fronteiras entre as histórias da natureza e da cultura, e ao
chegar-ao mundo humano toma desde cedo a forma e os traços de um chegar-à-
linguagem. Entretanto, a história da clareira não pode ser tomada e desenvolvida apenas
como uma narrativa de chegada do vir-ao-mundo, nem no estar-no-mundo e nem da
chegada dos seres humanos às casas da linguagem.
No momento em que os humanos falantes começam a conviverem em grupos e
juntos, se ligam não só às casas da linguagem, mas também a casas construídas, eles
ingressam em um caminho de um campo de força do modo de vida sedentário. Daí em
diante eles estão não apenas resguardados por sua linguagem, mas também
domesticados por suas habitações (solidariedade, educação pedagógica, pastor-ovelha-
rebanho). Justamente o homem é chamado pelo próprio ser para pastorá-lo (escolhido
para sua guarda). Por isso, homens possuem a linguagem (o buraco no dasein), não como
algo somente para entender-se e domesticar-se mutuamente. Tanto a abertura da
clareira quanto a humanização em geral, possuem algo a ver com a domesticação e, por
consequência, com a intimidade doméstica do Homo sapiens. O ser humano entra aí, e
passa a ser incluído (concebido) como a clareira do ser – em uma domesticação e
estabelecimento de amizade. Seres humanos como pastores e vizinhos do ser, e a
linguagem como a casa do ser, isso faz com que o homem se vincule ao ser em uma
correspondência radical (restrição e confinamento), o pastor como sempre nas
proximidades ou na vizinhança da casa, um tipo de servidão. A humanização foi um
acontecimento espontâneo de autocriação. O que fica como centro da questão é que os
homens passaram a ser criaturas que surgiram de uma história de mimos, de excessos,
de excedentes. O homem é por excelência, um animal que vai para lá da reação, uma
expedição. Ao criar a arte é sobre-reagir, pensar é sobre-reagir, casar-se é sobre-reagir.
Todas as atividades humanas são excessos, uma tendência para sair dos eixos, para o
excesso. Nesse sentido, homens podem ser intitulados como “animais domésticos”
(Haustiere). Viver em casas (Wohmen) conduz para situações de mimo (Verwöhnungen).
A monstruosidade do homem e da improbabilidade das formas de vida do sapiens
precisou ser compensada com esforços retirados de si mesmos e encaminhados para a
formação do homem. Não é sem razão que as culturas avançadas travaram dilemas
340

incessantes sobre a educação e a domesticação dos homens. É neste contexto que


devemos entender a afirmação de Nietzsche sobre o homem ser “o melhor animal
doméstico dos homens”. Tradição vinda do caminho da pastoral platônica. O “parque
humano” como metáfora é utilizada por Sloterdijk em seu livro como uma paráfrase de
Platão com um sentido de Playground, Disney, a Ilha da Utopia de Moore – parque
temático, parque de diversões, parque de máquinas. São apenas metáforas que nos
permitem evocar uma realidade antropológica que existe, com ou sem essa metáfora.
Porque o habitat do ser humano não é pura natureza ou a casa em seu estado puro. É
uma organização intermediária, que se parece com um zoológico. Uma cidade que era
apenas uma cidade seria uma espécie de prisão. As cidades habitáveis são como
zoológicos. Um zoológico humano é simplesmente uma metáfora que se refere à
qualidade urbana do ser humano. O pensamento dos seres humanos em relação aos
animais é dominado por essa zoofobia, esse racismo da espécie. Os homens fazem suas
próprias projeções nessa terminologia, acreditando que Sloterdijk faça uma redução da
humanidade à animalidade, quando é exatamente o oposto. Voltando à eugenia,
Sloterdijk acredita que há sim uma eugenia de luxo. Grande parte do volume de Espumas
é sobre esse tema, o do ser humano como um fenômeno de luxo, quase milagroso,
aparecendo de forma aleatória. Essa criatura carrega um fardo hereditário de doenças
genéticas que são inúteis, mas que nos acompanham. A única questão eugênica que as
gerações futuras poderiam fazer seria suprimir, graças à engenharia genética, alguns
desses companheiros. Já vemos isso de forma amena em clínicas estéticas, medicina
preventiva, biogenéticas, anabolizantes, etc. Em 50 ou 100 anos, é certeza de que a
maioria da humanidade concordará com essas técnicas. Mas isso não tem nada a ver com
a eliminação da eugenia. É necessário se acostumar a pensar no homem como um ser de
luxo, mesmo quando a dogmática não deixa de nos dizer que o homem é homem apenas
em função de suas necessidades. O eugenismo faz parte do pensamento moderno. É a
base do progressismo. O eugenismo é uma ideia da esquerda clássica, retomada pelos
nacionalistas após a Primeira Guerra Mundial. É o progressismo aplicado ao campo da
genética. Todo indivíduo razoável é eugenista no momento em que se casa. Toda mulher
é eugenista, se preferir se casar com um homem que tenha qualidades favoráveis em sua
aparência física. É o eugenismo de todos os dias. O eugenismo ordinário. Sloterdijk
mesmo disse que deveríamos ver o darwinismo não mais como aquele animal mais
341

adaptado, mas como o mais estético com os rostos mais charmosos. Não se é
inconsciente quando alguém se casa com uma mulher bonita. A preferência pela beleza
nos assuntos eróticos não é inconsciente – é a própria consciência. Como Platão disse em
O Banquete, é a vontade de gerar beleza. É o ato mais consciente e mais razoável do ser
humano. Então o eugenismo não é fascista. Nunca houve um eugenismo fascista. O que
houve foi um extermínio racista. Essa vontade de matar nunca teve a menor relação com
o conceito de eugenia concebido como um meio de refletir sobre as melhores condições
em que a próxima geração será criada. Os nazistas aproveitaram alguns pretextos
pseudocientíficos para eliminar pessoas doentes. Isso não tem nada a ver com eugenia.
Foi um abuso total de linguagem para chamar isso.
O tema da ontologia fundamental heideggeriana, critica por sua parte em um
nível conceitual extremo a mentira “sujeito” característica da filosofia europeia
dominante. O eu, não é o senhor do mundo, mas vive no mundo sob o sinal do caráter
de jogado. Em todos os casos, fazemos “projetos”, mas mesmo esses projetos, por sua
vez, são “projetos jogados”, de tal modo que vige primariamente uma estrutura
ontológica passiva. Diga-se de passagem, o Dadaísmo anteciparia essa noção ontológica
de Heidegger. Basta vermos o manifesto Dadaísta, panfleto de 1918, ao dizer que “Ser
dadaísta significa deixar-se jogar pelas coisas, ser contra toda e qualquer, formação de
sedimentos, sentar-se por um momento em uma cadeira significa colocar a vida em
perigo...”.
Os europeus nessa época acreditavam que não haveria nenhum iceberg. Nessa
época o que se queria eram “ateístas” com respeito à icebergs que flutuavam na região
na qual também navegavam os barcos e navios europeus, eles pensavam que tinham
saído da era da colisão com possíveis icebergs. Uma cultura muito distinta seria vista
pouco após a da prudência e cautela. Se fala na política e em muitos outros contextos –
como no Direito Ambiental do princípio da precaução – um princípio da obrigação de
precaução. Assim, nasceu toda uma ciência de futurologia e de prevenção de riscos para
a previsão de anos futuros e décadas à frente. Uma ideia de que é possível viver
contingências e experimentar uma vida o mais leve e suave possível e o mais pouco
acidental possível para que nossos movimentos futuros gerassem menos catástrofes
possíveis. Uma doutrina seria possível se pensar: a de que na modernidade se está
proibida a lei da aterrissagem. Somos autodidatas da navegação espacial. A nave que
342

estamos agora é um se estar consertando em pleno voo. Se faz necessário recordar um


texto de Buckminster Fuller de 1969 chamado “Manuel de Operações Para a Nave
Espacial”, daí ele levou em consideração uma reflexão muito útil e sutil ao dizer que
somos todos astronautas na nave “Terra”. Se a jornada na Modernidade viria través de
marinheiros, navios (ships) e oceanos, hoje temos astronautas, espaçonaves (spaceships)
e o nada. Nossos navios do espaço estão no espaço. Um jogo de palavras bastante
interessante. As espaçonaves são nada mais que navios ou submarinos (barco destinado
a navegar abaixo do nível das águas) mais avançados. São o arauto da mobilidade no
nada, são ilhas artificias, são cápsulas insulares, campos imunitários. Uma suposição de
que o tempo teria amadurecido nos sistemas sociais o suficiente como para uma entrega
das competições de pilotagem, por parte dos políticos e financeiros, até os
desenhadores, arquitetos e engenheiros. Nave no sentido atmosférico e aéreo, mas ao
mesmo tempo “Terra” uma palavra do terrestre do espaço embaixo, no chão. Na nave
Terra, não nos foi dado nenhum manual de operações-instruções nem de autoajuda.
Portanto, resta ao homem, inventar a arte de navegar a Terra e teremos que aprender
isto no transcurso da navegação de maneira autodidata. A característica psicossocial dos
grupos bem-sucedidos de conforto o espaço-interior-do-mundo do capital diz respeito à
conversão de pertenças em opções. Esta é uma reforma no estatuto ontológico das coisas
e das pessoas que se exprime cognitivamente pelo construtivismo. Temos
constantemente que provar que compreendemos o essencial, seja qual for a coisa que
nos apresentem como encontrada, ela passa a ser, uma coisa feita. De todas as naturezas
aparentes ou coisas dadas, podemos, após a leitura de um revê manual de instruções,
pôr a nu a sua “construção”, a sua “invenção”, as suas “politics.
Seria como a analogia da imagem do filósofo Schlick, ou melhor de Neurath no
anos 30 que todos enquanto científicos estão condenados a remodelar ou reparar o
barco no alto-mar em plena navegação, mas sem que possamos chegar a um porto onde
se poderia levar à cabo reparações estas de maneira totalmente seguras (sem a
possibilidade de acidentes ou naufrágio). A suposição de Fuller se baseava no diagnóstico
segundo o qual os membros do primeiro grupo (como todos os especialistas), eles não
olham para a realidade, mas através de um pequeno buraco, que não lhes permite ver
nada além de uma parte. Esse escrito de Fuller virou quase uma espécie de
“contracultura”. Se deu uma nova definição do planeta pátrio, a partir daquele momento,
343

não poderíamos mais conceber a velha terra como uma dimensão natural, e sim, como
um gigantesco artifício. Já não era fundação alguma, e sim construção. Já não era base
alguma, mas um veículo. O inevitável junto com o irresistível. Sinaliza ao mesmo tempo
a ameaça aguda a bordo da nave espacial Terra, o fato de que a falta de conceitos mais
precisos, essa ameaça não permita evasão alguma a falta de compromisso poético, como
se pode ver comprovadamente com o fracasso das cúpulas climáticas. Edgar Morin em
recente artigo e entrevista para o Jornal Folha de São Paulo diz que “seguimos como
sonâmbulos e estamos indo rumo ao desastre”. Aqui os dois filósofos se tocam.
Poderíamos dizer que “estamos no mesmo barco”? Marx talvez não dê um nó
complicando a conversa? Parece que independentemente de classes, grupos, interesses,
etnias e religiões, estamos todos trabalhando todos sob um teto em comum, uma bola
que se desloca no espaço. Será que estamos realmente nesta condição? Talvez essa ideia
pode não ser verdade. Talvez tenhamos que pensar que mesmo estando na nave espacial
e no mesmo barco, estamos inseridos em compartimentos divididos por classes,
compartimentos de 1ª Classe e 2ª Classe nessa navegação. Esse Titanic é diferente do
verdadeiro. Nosso Titanic tem dobras. Ele é mais parecido com uma nave espacial do que
imaginamos. Talvez ele cria mecanismos onde seja possível se descartar pedaços. Grand
redomas podem preservar os ricos e deixar simplesmente que a Terra se acabe para os
pobres. Uma vida artificial pode ser criada em redomas. Uma Amazônia pode ser levada
para outro planeta. Por que os ricos um dia não poderiam se mandar? Os ricos do Brasil
não se mandam constantemente para a Europa? Por que não se imaginar que esses ricos
um dia possam pegar ônibus espaciais para abandonarem de vez a Terra? Voltarem aqui
só para visitar, fazer um leve turismo. Se estamos no mesmo barco e o capitalismo nos
divide por poder de compra, temos determinados espaços onde só alguns podem pagar.
Um avião, por exemplo, não possui a classe econômica, a classe executiva e os próprios
aviões privados? Por que não pensar que um dia os bilionários simplesmente não se
ejetem a Terra em chamas através de cápsulas e foguetes e vivam suas vidas? Talvez só
alguns possam sobreviver ante o desastre quem serão e como se fará uma política ou
biopolítica dos que vivem e dos que morrem nesse cenário? Não teremos redomas no
espaço? Quem tem acesso no espaço nos dias de hoje não são grandes empresas do
ramo tecnológicos? Se voltarmos na tese do Manifesto Comunista de que a história do
homem é a história da luta de classes tenha se tornado algo banal e mesmo que o Popper
344

tenha dito que ela não é científica, mas filosófica, no fim, o próprio Sloterdijk quando
batiza o século XXI como o século das espumas. Sloterdijk utiliza uma frase que nos
remete ao velho Marx. Diz que ele, que nas passagens sobre o uterotopo e o termotopo,
há a formulação da tese de que “toda a história é a história das lutas entre comunidades
de bem-estar”. A história da luta de classe também não estará presente no século XXI e
XXII? Os homens apodrecerão o planeta, e sim, alguns irão nos deixar aqui para irem
embora. Nós os pobres é que ficaremos para trás, nossos filhos e netos. Não vimos isso
no filme Elysium de 2013? Os ricos mais que ninguém sabem formar grande redomas. A
ideia de redoma é algo fantástico. Ela vem das grandes utopias, vemos Stan Lee no início
da sua era na Marvel para que desenhistas fizessem Atlântida, a cidade perdida do
príncipe Namor. Aquilo é uma redoma. Construir algo assim está no projeto cultural do
homem. Não. Não estamos no mesmo barco. Um mesmo barco ou uma mesma nave
pressupõe uma sociedade comunista. Com a sociedade que temos estamos em
compartimentos diferente. Caso a nave ou o barco se esborrache uns vão afundar outros
vão seguir sobrevivendo de maneira sofisticada como vemos em bairros. Os milionários
já possuem isso em mente. Já está posta uma luta de classes dentro do plano sideral. Não
vimos os russos, os americanos na corrida espacial? Não vemos hoje a Estados Unidos,
Rússia, China, a índia com grandes projetos públicos e privados nesse setor? Os ricos vão
ocupar outros espaços. Alguns outros serão apenas empregados no espaço, mesmo que
se esteja numa situação de robôtica. Mesmo com os robôs teremos uma luta de classe
entre homens e máquinas. No horizonte não aparece a Humanidade? O comum não
salvará a Terra? Mas uns não querem o comum. Mecanismos de escapes. Lembremos
das construções subterrâneas de Stálin para escapar e se salvar de uma possível guerra
nuclear? Esse pensamento ainda vive de outra forma. Para outros lugares escapar da
catástrofe ecológica, escapar de uma contaminação, escapar de uma guerra mundial,
escapar de tudo aquilo que os ricos criarão para matar a todos, os pobres e eles mesmos.
Sim. Eles vão escapar. Sim eles já escaparam. Na nova Humanidade, teremos uma divisão
dos herdeiros dos pobres e dos herdeiros dos ricos muito maior da que temos hoje.
Nietzsche (2015, pp. 197-198):

Ali está o barco – por lá talvez se vá para o grande nada. – Mas quem quer
embarcar nesse “talvez”? Nenhum de vos quer subir ao barco da morte! Então
como pretendem estar cansados do mundo? Cansados do mundo! E nem
sequer vos tornastes desprendidos da terra! Sempre vos encontrei ainda
345

cobiçosos da terra, ainda enamorados do próprio cansaço da terra! Não é sem


motivo que tendes o lábio caído: – um pequeno desejo da terra ainda se acha
nele! E no olhar – não paira uma nuvenzinha de não esquecido prazer da terra?
Há muitas boas invenções na terra, algumas úteis, outras agradáveis: por elas
já que amar a terra. E muita coisa tão bem inventada existe nela, como os seios
da mulher: úteis e agradáveis ao mesmo tempo. Mas vós, cansados do mundo!
Vós, preguiçosos da terra! A vós deve-se bater com varas! Com golpes de varas
devem ser animadas nossas pernas! Pois: se não sois doentes e decrépitos
coitados, de que a terra está cansada, então sois esperto os bichos preguiçosos
ou gatos deleitados e gulosos. E, se não quereis tornar a correr alegremente,
então deveis – partir de vez! Não se deve querer ser médico de incuráveis:
assim ensina Zaratustra: – então deveis partir de vez! Mas requer mais
coragem dar um fim do que fazer um novo verso: todos os médicos e poetas
sabem disso. –

Ideias desenvolvidas por filósofos59 e engenheiros, metáforas do risco que


apontam que todos nós, em relação com nossas tarefas, aos nossos deveres sempre
chegamos tarde, seria o mesmo que dizer, o pensamento, por um lado na medida que é
fantástico, se adianta às circunstâncias, mas de fato, sempre chegam atrasados, porque
já estamos no mundo e aí recém começamos a pensar. É por isso que Descartes na sua
obra pouco conhecidas, e tardia, estreou este tratado sobre as paixões da alma (Les
Passions del’ âme) e fez uma lista de sentimentos mais fortes que agiram a alma, começa

59
Diga-se de passagem, Ralph Waldo Emerson, Nietzsche e Júlio Verne foram mestres nisso. Filosofias ou
histórias enquanto reformulação náutica (águas, oceanos, horizontes, barcos, embarcações, navios, terra
natal, um infinito, liberdade, montanhas). Neles voltam a aparecer as tonalidades agressivas do precoce
período europeu da liberação de limites em tradução transatlântica. A ideia de passageiros. No caso de
Júlio Verne, há uma mudança no trânsito. O viajante universal renuncia à sua profissão documental e se
converte em um puro passageiro. É um típico cliente de um serviço de transporte que paga para que sua
viagem seja uma mera questão de tempo e não se converta em experiência alguma. Um herói da
pontualidade. Seu único interesse com as paisagens e imagens que transitam por ele é atravessá-las. O
clássico turista prefere viajar com as janelas fechadas. Temos um “hermético viajante” que transita pelos
espaços sem se fixar em nenhum canto. Não há nenhuma relação digamos de “terra natal”. O hominídeo
como lançador, operador e cortador é um quase “produtor do claro” para usar uma expressão de
Heidegger. O lançamento da pedra permite, o alargamento dos limites do mundo enquanto limites de
alcance do lançamento. A primeira forma de teoria, enquanto mirada prévia ao lançamento. A
compreensão existencial enquanto antecipação e projeção de possibilidades de acerto e a primeira
concepção de verdade enquanto êxito (e a falsidade enquanto erro). Os arremessos formam no destaque
entre o horizonte como fundo destacado da ação rumo a algo, passa a vigorar a partir dessa dinâmica entre
o alvo e o fundo, entre o patente e o latente (o que está a vir), o que está no interior do mundo humano e
o horizonte exterior de possibilidades. Dessa forma, implica, a partir da espacialidade (circular), uma noção
de temporalidade: o horizonte, o inalcançável, é tempo originário, mítico, o não conhecido, e ao mesmo
tempo, futuro, porvir, o tempo, “mortalidade”. A metafísica entendeu a posição humana que condiciona o
ter-algo-diante-de-si como mortalidade, o que é apenas uma outra forma de dizer que interpretou o
aberto-“diante”-de-nós como tempo, mais precisamente como futuro. Neste contexto, nasce o sentimento
humano elevado das experiências de êxito dos antigos artilheiros e caçadores. Resquícios disto ainda vivem
até hoje no orgulho dos artilheiros, em parte, nos sempre espetaculares orgasmos daquele que marca gol,
acerta o alvo. Aqui repetem-se arcaicos sentimentos elevados de formação do eu perante o objeto vencido.
A partir de derivações de semelhantes experiências, os metafísicos metacósmicos do Oriente e da Grécia
irão postular a possibilidade de vencer o mundo, a vida, a morte.
346

ele dizendo significativamente com o que chama o éstonnement, ou etonnement como


se diria mais tarde, o assombro. Para ele é o que há de mais forte, a sensação mais
desagradável que a inteligência humana pode sentir. Deveríamos então, mudar e inverter
as considerações de Aristóteles que devemos começar a filosofia com o assombro-
espanto, e que o assombro é um sentimento de criatividade. Descartes o inverte, e
considera o assombro uma coisa realmente desagradável que atenta tanto o pensamento
como o assombro. Descartes retoma o lema estoico que diz: “nihil admirari”, isto é, não
se assombre mais com nada. O assombro é um excesso de admiração, que é sempre e
forçosamente ruim. Assombrar-se funciona como uma enfermidade no pensamento, um
estado de perplexidade, logo, algo que deve ser evitado. É o mais potente afeto negativo
da alma. Diz que quando estamos nos assombrando, obviamente por seu caráter do
“pensamento que funciona pensando” ou “da razão mais ser a coisa mais bem distribuída
entre os homens”, o pensamento funcionaria aí como o motivo patológico, e o
pensamento deve continuar até que tudo seja explicado e depois, para que chegue a
calma da alma serena que vivemos quando temos êxitos em boas explicações. Descartes
quer que esta calma estoica, uma forma de restabelecê-la, com os meios da ciência, por
isso ele tem este “phatos” de uma absoluta fundamentação do pensamento. No mundo
moderno, temos a impressão do contrário. Vemos uma instituição contra o assombro. A
filosofia nasceu do assombro, que é um aspecto que tem um componente de estupor e
horror, e outro, de admiração. Será Descartes quem mais tarde refletirá, de maneira
subversiva, sobre essa questão. É ele quem observa que na origem da filosofia há
espanto, mas também quem diz que o assombro é o começo do infortúnio, e considera
que devemos fazer todo o possível para superá-lo. Com o tempo, é esse aspecto negativo
que se impõe, e é o terror que põe em marcha o trabalho de Hobbes e o pânico que
desencadeia a filosofia de Heidegger. Toda uma campanha de resistência à perplexidade.
A cultura científica contemporânea se apropriou da antiga doutrina do não se assombrar
com nada. Enquanto que hoje nós abandonamos em grande medida esta pretensão, e
melhor, aconselhamos as pessoas que toleram a incerteza, suportem o assombro e
superem esta enfermidade do pensamento, com decência, ao menos na medida em que
fazem dela um motivo de criatividade. O assombro se poderíamos dizer que não é, senão
outra coisa, o assombro do primeiro ser humano que caído se levantou, e se levantou,
também levantou sua cabeça e olha para o horizonte. Galeano ao se referir sobre as
347

utopias disse que a utopia está no horizonte, mas todos sabemos que nunca
alcançaremos. Se caminharmos 10 passos, ela se afasta 10 passos. Quanto mais a busco,
menos a encontrarei porque ela vai se afastando na medida em que me aproximo. Para
que serve? Para caminhar. O pensamento sempre começa com este momento-
movimento patológico no qual entendemos que chegamos tarde, ou seja, não estivemos
aqui desde o princípio e abrimos os olhos em um momento no qual tudo já está
simultaneamente conosco. Nós olhamos para fora e descobrimos toda a circunstância,
todo o estado de coisas que chamamos “mundo”, mundus, e entendemos que estamos
em meio de tudo isto, e que não temos o princípio. Este terrível vazio que um vê, quando
se dá conta de que chegou tarde e o trem do mundo já estava em marcha andando e eu
estou dentro e, no fundo, não posso sair. Não só chegamos como pegamos o bonde
andando. Nestas situações os seres humanos começam a narrar e contar para dizer o que
havia no início-princípio. No fundo, só podemos diferenciar dois tipos de cultura. Umas
que fecha-cerram o vazio do princípio com narrativas míticas e as outras que o fazem
com narrativas-teorias da evolução. Temos inúmeras culturas que não têm teorias da
evolução, e que aceitam neste caso, as narrativas mitológicas dos inícios. Estas culturas
são ideologicamente muito nervosas, vulneráveis, pois quando escutam a linguagem das
teorias da evolução, atentam contra as mesmas, as querem mortas. É claro, que nessas
narrativas, não pode haver uma simultaneidade, porque estamos falando de um
equivalente no mesmo lugar porque a teoria da evolução também enche-preenche este
vazio do início. No geral, o que fazem é narrar de uma forma suportável o assombro
insuportável.
348

IV – O Poeta, o Filósofo e o Antropoceno

Sloterdijk poderia ser um “filósofo indigente”? Filósofos são “gente estranha”?


Filósofos substituem a posição dos adultos pela das crianças que estão em um lado de
um parque, enquanto que os outros estão brincando como loucos. Há uma tendência
para a observação, passa a ser uma consequência de se retirar do mundo e de um
superávit observacional, não se está completamente absolvido pelas situações da vida. A
união entre escritor e o filósofo é um fato moderno. Platão como fundador, do
desenvolvimento propriamente filosófico mereceu a dupla designação (escritor e
filósofo), mas logo percebeu que a filosofia era o melhor meio para trazer a linguagem
aos deuses que o decadente teatro a seu tempo, fica claro que ele praticou os dois
gêneros. O teatro e com o Banquete escreveu a melhor novela da antiguidade, e de
quebra estabeleceu os fundamentos da filosofia ocidental. Hoje a tradição filosófica se
desgastou do componente literário com a seca prosa de Aristóteles, escreveu algumas
obras de teatro, e alguns diálogos, mas a tradição o excluiu, nesse sentido a tradição foi
uma juíza estrita. Se não tivesse sido provavelmente não nos teríamos gostado. No século
XX, se chegou ao ponto dos artistas separados – filosofia e literatura se tocaram de novo
com fortes exemplos na França e alguns alemães. Os filósofos não podem se deixar pelas
rotinas, a perda da oferta de relações delicadas e atentas. A vida é uma série de
repetições, e quando as repetições são conscientes, isso se chama exercício. Repetição
consciente como exercício permite ao homem mudar sua vida, um dos grandes
descobrimentos das técnicas ascéticas mais antigas que por uma via conduziu para a
filosofia moral, pela outra via aos esportes que no século XX seria tomado em grandes
proporções (o atleta de tudo). Aquele que encontra sua própria disciplina, no sentido de
que um “atletismo interior” pode ser desperto. Ele não com isso “a existência”, antes
afirma a sua existência, faça-se eu! Mas o poeta chega mais cedo que o filósofo?
Cronologicamente, é visível que sim. Os poetas chegam antes dos filósofos. Porém, não
se chamavam de “poetas”, se chamavam de xamãs, além de estarem em uma categoria
diferente. Então, o mundo não se explicava, mas sim se cantava. Um pré-socrático pouco
como Tales de Mileto tinha se manifestado: “tudo está cheio de deuses”. Já a filosofia
349

surge, basicamente, quando os xamãs chegam à cidade. A filosofia nasceu quando os


descendentes dos magos se estabeleceram na polis e tiveram se adaptar às regras da
intermediação e de expansividade urbanas. A narrativa cria mundo do nada. O mundo
também passou a ser lido como imagem. Tudo ocupa seu lugar, quer dizer, tem seu
sentido numa ordem na qual se insere em harmonia (cosmos). Se alguma coisa se afasta
de seu lugar, é-lhe devolvida. O tempo guia-a, é ordem, é justiça. Quem move as coisas
de maneira arbitrária morre, para se restituir a ordem eterna. De repente, a extática ficou
submissa à retórica, foi aí que se desenvolveu toda uma “magia civil” cujos discípulos
pudessem começar a seguir profissões sóbrias como políticos, psicólogos, oradores,
educadores, professores, juristas, teóricos. Na cidade já não se pode falar sobre o mundo
com cantos, mas sim que se fala em prosa. O mundo clássico conhecia, porém outra, e
mais antiga acepção do termo “paródia”, remetendo à esfera da técnica musical. Uma
separação entre canto e palavra, entre melos e logos. Na música grega, de fato,
originalmente a melodia tinha que corresponder ao ritmo da palavra. Diz-se do citarista
Oinopas que ele introduziu a paródia na poesia lírica, separando também nesse caso, a
música da palavra. A separação entre música e linguagem aparece completa em Calias,
que compõe um canto em que as palavras cedem lugar à soletração do ABC (beta alfa,
beta eta, etc.) Se a ontologia é a relação (mais ou menos feliz) entre linguagem e mundo,
a paródia, como para-ontologia, expressa a impossibilidade de a língua alcançar a coisa,
e da coisa de encontrar seu nome. Seu espaço, a literatura é, portanto, necessária e
teologicamente marcada pelo luto e pelo gesto de escárnio, como o da lógica é marcado
pelo silêncio.
Os filósofos, em certo sentido, são poetas decantados-desiludidos ou poetas que
vivem na abstinência de drogas ou que tiveram que passar por isto, e agora, argumentam
em vez de cantar. Vê-se na literatura moderna, e também na filosofia moderna, depois
de Nietzsche é claro, que há uma saudade ou uma nostalgia pelo regresso do mundo
poético e no prólogo de seus primeiros escritos sobre no nascimento da tragédia do
espírito da música, Nietzsche escreve em uma intensiva autocrítica: “Minha alma deveria
ter cantado, não deveria ter argumentado”. Numa modernidade desenvolvida veríamos
o pano de fundo mais geral para essa discussão de ciência e valores é o reconhecimento
de Weber de que seu mundo, o mundo moderno, está desencantado. Diz que não é mais
necessário recorrer a meios mágicos para dominar ou implorar os espíritos, como fez os
350

selvagens, para quem tais poderes misteriosos existiam. Meios técnicos e cálculos
executam o serviço. Isso acima de tudo é o que significaria intelectualização.
Nietzsche (2008, pp. 92-93):

Examinemos aqui a curiosa, e para certos tipos de gente fascinante, posição


de Schopenhauer diante da arte: pois, evidentemente, foi sobretudo graças a
ela que Richard Wagner passou para o lado de Schopenhauer (como se sabe,
convencido por um poeta, Herwegh), e isso ao ponto de fazer surgir uma
contradição teórica entre a sua crença estética inicial e a posterior – a primeira
expressa, por exemplo, em Ópera e drama, a última nos texto que publicou a
partir de 1870. Em especial, e o que talvez mais surpreenda, Wagner modificou
rudemente seu juízo sobre o valor e o status da música mesma: que lhe
importava que até então tivesse feito dela um meio, um médium, uma
“mulher” que para crescer necessitava absolutamente de um fim, um homem
– isto é, o drama! Compreendeu de imediato que com a teoria e a inovação de
Schopenhauer podia-se fazer mais in majoren musicae gloriam [para maior
glória da música] – isto é, com a soberania da música, tal como Schopenahauer
a compreendia: a música separada de todas as demais artes, a arte
independente em si, não, como as outras, oferecendo imagens da
fenomenalidade, mas falando da linguagem da vontade mesma, diretamente
do “abismo”, com sua revelação mais própria, mais primordial, mais imediata.
Com essa extraordinária elevação do valor da música, que parecia decorrer da
filosofia schopenhaueriana, também a cotação do músico subiu
prodigiosamente: tornou-se um oráculo, um sacerdote, mais que um
sacerdote, uma espécie de porta-voz do “em-si” das coisas, um telefone do
além – já não falava apenas música, esse ventríloquo de Deus – falava
metafísica: como admirar que um dia falasse em ideais ascéticos?

Em suma, não deveria desenvolver a dialética de Apolo e Dionísio e prosa, seria


mais aceitável uma ópera, mas isso já havia sido feito por Richard Wagner, então, só ele
tinha ido embora o papel da triste teoria. Nietzsche havia caído na conta, em suas
investigações sobre os fundamentos referentes ao modo de função da consciência
humana, da existência de um sistema defensivo mental, do que reconheceu como se
coloca eficiente e dissimuladamente a serviço de um centro-si-mesmo dominante e de
suas necessidades de sentido. Deste ponto de vista pode se considerar Nietzsche, após
preliminares como as de Mesmer, Fichte, Schelling, Carus e Schopenhauer, o autêntico
descobridor do inconsciente operativo (em Schopenhauer, consuma-se a ideia de uma
ruptura a partir da qual o próprio fundamento do mundo, a vontade, é representado
como imediatamente musical. Ele continua cativado pelo encanto de uma estética
clássica, enquanto atribui à música um papel de um medicamento e subestima a sua
capacidade, comprovada na modernidade, de participar na emergência do terrível no
próprio meio tonal). Em sua obra capital crítico-moral Além do Bem e do Mal: Prelúdio a
351

Uma Filosofia do Futuro que apareceu em agosto de 1886, escreve: “A força do espírito
para apropriar-se do estranho se manifesta em uma forte inclinação a assimilar o novo
ao velho, simplificar o diverso, a passar por alto e rechaçar o totalmente contraditório.
[...] A essa mesma vontade serve uma [...] decisão repentina pela ignorância, pelo
trancado, um fechar suas janelas, um dizer-no interior a esta coisa ou a aquela, um não-
desejar-que-se-aproximem, uma espécie de estado defensivo frente a muitas coisas
aprendíveis, uma satisfação com o obscuro, com os horizontes que se fecham, um dizer-
sim e dar por boa a ignorância”. Como Nietzsche mesmo disse, é lícito imaginar uma
“filosofia do futuro” porque com ela se consumou uma abertura ao paradigma
imunológico da crítica da razão, a partir desse limiar funciona o pensamento além do
“conhece-te a ti mesmo”. Que parece algo como supressores de ideias ou anticorpos
semânticos, dispostos a eliminação de representações incompatíveis, surgidas do âmbito
da consciência. Há de saber que agora temos uma compreensão para propriedades
repelentes e não integráveis de numerosas representações verdadeiras. A teoria do
conhecimento se converteu em uma filial científico-cognitiva da alergologia.
O ideal ascético é um tal meio: ocorre, portanto, exatamente o contrário do que
acreditam os adoradores desse ideal, a vida luta nele e através dele com a morte, contra
a morte, o ideal ascético é um artifício para a preservação da vida. O espírito livre recorre
um largo programa de vacinas e bionegatividade. Quando a modernidade se abre nós
temos Descartes falando da distinção corpo e alma que são duas substâncias agrupadas
ao homem, mas que são coisas diferentes, que deveríamos dar status diferentes para
elas. Uma está no espaço tempo, a outra não está no espaço tempo. O pensamento não
está no espaço tempo, a menta não está no espaço tempo e o corpo se encontra no
espaço tempo. Descartes trata então, o corpo como máquina. Começa a pensar que o
corpo pode ser aberto e estudado. A Igreja não queria, pois considerava o corpo sagrado.
Ele está associado à alma, eles não podem ser separados assim. Descartes então, toma o
corpo como algo meramente mecânico, ele é meramente máquina. La Mettrie nesse
mesmo período estaria publicando um livro chamado L'Homme Machine - O Homem
Máquina (1748). Descartes começa a fazer dissecações em corpos humanos escondidos
da Igreja. Em particular, as ciências cognitivas e a inteligência artificial determinaram o
declínio da “alma” – entendida como a mente, a inteligência ou como quer que se queira
indicar a subjetividade criadora do ser humano – em favor de um processo em que o
352

desempenho do espírito se transfere para as máquinas e a inteligência artificial. É por


isso que a ciência moderna descreve a natureza como uma hipermáquina que se constrói
a si mesma. A isso podemos denominar uma corrente de autoconstrução que é a
evolução. Dentro desta construção maquinal física, ocorrem dois processos de
construção maquínica. Por um lado, constroem-se máquinas vitais por meios e
procedimentos autoplásticos e autopoiéticos. É inquietante que isto continue em marcha
e não se limite apenas a “ser”, como sinta e se ponha em movimento graças a uma
sensibilidade sensorial e dos órgãos, graças a uma condição vegetal, graças a um processo
de animalização, se construa no mundo algo tão pontual como uma abertura no mundo
com valor de início. Não é de se estranhar que átomos – tão insensíveis e sem razão, se
mostrem ao ponto de se comprometerem com a capacidade de coisas como a dor, a
capacidade nervosa e a memória muito antes do homem? Por outro lado, temos o fato
de que para além do que diz respeito à máquina vital, surgir no homem, por vias
evolutivas, como que uma máquina espiritual, a possibilidade de pensar e deixar que o
pensamento se abra ao mundo como mundo. Se comparativamente ao todo existente, o
homem pressupondo sempre que “abre”, eleva a cabeça e existe, teríamos de vê-lo como
uma espécie de órgão ontológico, um sentido do mundo ou uma sensibilidade à
totalidade, que só é própria de nós, de que mais nenhuma animal a tenha. É assim que
devemos interpretar a célebre obra Os Conceitos Fundamentais da Metafísica (1929-
1930) de Heidegger, especialmente na sua brilhante exposição sobre a falta de mundo
da pedra, a pobreza de mundo do animal e a criatura que forma o mundo que é o homem.
No final do século XX, Nietzsche vem com uma conversa diferente de Descartes.
Ele diz que existe a pequena razão. Em uma das passagens do Zaratustra ele diz que
existe: “a pequena razão e a grande razão”. A pequena razão é o meu Eu, ligado aos
aspectos do pensamento, mas “a grande razão” é o meu corpo. É ele que determina se
eu penso ou se não penso. É ele que diz que “estou febril, não consigo pensar, não
consigo trabalhar”. Nietzsche começa a trazer de novo o Eu para o corpóreo. O introdutor
do perspectivismo na teoria epistemológica aponta sérios impasses para a existência de
um observador dotado de um olho divino e que poderia ver de maneira neutra a
realidade (como um tipo de macrocosmo). Para ele, o observador olha sempre de uma
perspectiva, sua localização em relação ao objeto irá influenciar em sua descrição da
353

realidade observada. Sendo assim, todo o fazer ciência é antes uma confissão do
investigador.
É claro que outros dois pesos pesados participariam de narrativas distintas em
momentos relativamente próximos. Marx não acreditaria muito no que Nietzsche
propõe. Esse Eu talvez não seja corpo. Não é suficiente trazer o corpo e juntar com a
mente para dizer que é o Eu. Isso porque o Eu está fora do corpo e da mente. Ele está
nas relações sociais. O Eu, o grande Eu, a grande razão, é o capital. Este é o pioneiro da
primazia da práxis em detrimento da vida teórico-contemplativa. Marx é o pensador que
aponta a essência do real como sendo produção material e luta pelos meios de produção.
A luta de classes, como é sabido, é outro ponto importante de sua teoria. Após as
formulações teóricas marxianas qualquer colocação teórica seria lida como a fala de
alguém proveniente de certa classe e com certos interesses inerentes desta classe. A
máxima marxiana: “Onde havia contemplação, deve haver mobilização”. Freud se
espanta com as proposições dos outros dois e diz que todo mundo está errado. O
verdadeiro Eu é o subconsciente. Freud dividiu as Conferências introdutórias à psicanálise
em duas partes: as 14 primeiras lições foram proferidas no semestre de inverno de 1915-
1916, as 14 lições restantes, no semestre de inverno de 1916-1917 (as Novas
conferências vieram só em 1933). Na lição de número 19, sobre o recalque, Freud
apresenta uma concepção espacial da consciência: o sistema do inconsciente como "um
grande salão de entrada", no qual os impulsos psíquicos "se empurram uns aos outros".
Junto a este salão de entrada existe uma segunda sala, menor, "a consciência". No limiar
entre as duas salas, "um guarda desempenha sua função": examina os diversos impulsos
psíquicos, "age como censor" (a imagem de alguém abrindo a porta para você entrar na
portaria de um hotel é bem-vinda). O que está no salão do inconsciente deve permanecer
invisível ao consciente - mas se há infiltração no limiar e se o guarda entra em ação, surge
o recalcado. Entretanto, escreve Freud, "os próprios impulsos que o guarda permitiu que
cruzassem o limiar, não são, também, só por causa disso, necessariamente conscientes";
serão conscientes se conseguirem chamar a atenção da consciência. A segunda sala passa
então a ser o "sistema do pré-consciente". Para qualquer impulso, porém, "a destinação
do recalque consiste em o guarda não lhe permitir passar do sistema do inconsciente
para o do pré-consciente".
354

Que aquele tenha podido dispor e apoderar-se dos homens da maneira como a
história ensina, em especial onde se impôs a civilização e a domesticação do homem,
nisso se expressa uma grande realidade: a condição doentia do tipo de homem até agora
existente, ao menos do homem domesticado. A luta fisiológica do homem com a morte
(com o desgosto da vida, com a exaustão, com o desejo do “fim”). O sacerdote ascético
segundo Nietzsche é a encarnação do desejo de ser outro, de ser-estar em outro lugar, é
o mais alto grau desse desejo, sua verdadeira febre e paixão. Mais precisamente, o poder
do seu desejo é o grilhão que o prende aqui. Por isso ele se torna o instrumento que deve
trabalhar para a criação de condições mais propícias par ao ser-aqui e o ser-homem,
precisamente com este poder mantém apegado à vida todo o rebanho de malogrados,
desgraçados, frustrados, deformados, sofredores de toda espécie, ao colocar-se
instintivamente à sua frente como pastor. Este aparente inimigo da vida, este negador,
ele exatamente está entre as grandes potências conservadoras e afirmadoras da vida. O
homem é mais doentio, inseguro, inconstante, indeterminado que qualquer outro
animal, não há dúvida, ele é o animal doente. É certo que ele também inovou, ousou,
resistiu, desafiou o destino mais que todos os outros animais reunidos. É ele, o grande
experimentador de si mesmo, o insatisfeito, insaciado, que luta pelo domínio último com
os animais, a natureza e os deuses. Ele, o ainda não domado, o eternamente futuro, que
não encontra sossego de uma força própria que o impele, de modo que seu futuro, uma
espora, mergulha implacável na carne de todo presente. Como não seria um tão rico e
corajoso animal também o mais exposto ao perigo, o mais longa e profundamente
enfermo entre todos os animais enfermos? O Não que ele diz à vida traz à luz, como por
mágica, uma profusão de sins mais delicados; sim, quando ele se fere, esse mestre da
destruição, da autodestruição, é a própria ferida que em seguida o faz viver. O homem é
uma corda esticada entre o animal e o übermensch, uma corda sobre um abismo. A
grandeza do homem é em ser uma ponte vertical e não um objetivo. O que no homem
você pode amar é que é um trânsito em tensão, êxtase e experimentação.
Com ele, teve lugar o anticorpo até então, mais largo de formas de racionalidade
da cibernética, que pergunta por condições internas e externas de funcionamento das
consciências. A natureza bloqueou o ser humano em um cúmulo de ilusões. Este é seu
próprio elemento, para a conclusão de que só a ruptura com o meio da ilusão o das
disposições legitimamente humanas abre o acesso à esfera do conhecimento. Foi
355

Nietzsche quem inventou a fórmula do “filósofo como médico da cultura”. Nietzsche diz
claramente que os seres humanos modernos necessitam de seus cérebros, um para
reconhecer a verdade e outro para fazer poesia, um tipo de sistema bicameral do
pensamento se reflete também em sua própria obra, uma importante obra em prosa.
Chega a dizer que a inquirição sobre a origem de uma obra concerne aos fisiólogos e
vivisseccionistas do espírito, “jamais absolutamente aos seres estéticos, aos artistas”.
Sobre o problema estético, Schopenhauer fez uso da concepção kantiana. Kant
imaginava prestar contas à arte, ao dar preferência, entre os predicados do belo, ou seja,
aqueles que constituem a honra do conhecimento como impessoalidade e
universalidade. Belo disse Kant, “é o que agrada sem interesse”. Nos salta aos olhos “sem
interesse”. Compare-se esta definição com uma outra, de um verdadeiro “espectador” e
artista: Stendhal, que em um momento chama o belo de uma “promessa de felicidade”.
Nisso é rejeitado e eliminado precisamente aquilo que Kant enfatiza na condição estética:
o desinteresse. Quem tem razão, Kant ou Stendhal? Kant, consciente de uma visão
conjunta do mundo, distinguiu 3 reinos entre si. No terceiro reino temos o “sentimento”;
da subordinação dos objetos da experiência à finalidade, graças à faculdade do juízo,
trata-se do reino do estético e do que é conforme. O belo para Kant "é o que agrada
universalmente, sem relação com qualquer conceito". A satisfação só é estética se
gratuita e desligada de qualquer fim subjetivo (interesse) ou objetivo (conceito). O belo
se põe como fim em si mesmo: agrada pela forma, não está vinculado à atração sensível
e nem ao conceito de utilidade ou de perfeição. No juízo estético verifica-se a harmonia
ou a síntese entre a sensibilidade e a inteligência, o particular e o geral. Nossos estetas
dizem, a favor de Kant que sob o fascínio da beleza podemos contemplar “sem interesse”
até mesmo estátuas femininas despidas, obras magníficas, então nos será permitido rir
um pouco de sua ingenuidade, as experiências dos artistas são, neste ponto delicado,
mais “interessantes”. Não foi Pigmalião, na mitologia grega, um escultor que se
apaixonou por uma das suas estátuas femininas que criou? Em todo caso, ele não foi
necessariamente um “homem inestético”. Kant não já não havia exaltado a peculiaridade
do tato? Quem olha não quer tocar? Voltemos a Schopenhauer. Ele interpretou a
expressão “sem interesse” da maneira mais pessoal, a partir de uma experiência que para
ele devia ser das mais regulares. Sobre poucas coisas Schopenhauer fala de modo tão
seguro como sobre o efeito da contemplação estética, para ele, ela age precisamente
356

contra o interesse sexual, ele nunca se cansou de exaltar esta libertação da “vontade”
como a grande vantagem e utilidade do estado estético. Seríamos mesmos tentados a
perguntar se a sua concepção básica de “vontade e representação”, o pensamento de
que uma salvação da “vontade” é possível somente através da “representação”, não tem
origem numa generalização dessa experiência sexual. Em O Mundo como Vontade e
Representação, III, Seção 38, ele fala em tons de alívio, escutemos o tom, o sofrimento, a
felicidade, a gratidão com que foram ditas estas palavras: “Esse é o estado sem dor que
Epicuro louvava como bem supremo e estado dos deuses; por um momento nos
subtraímos à odiosa pressão da vontade, celebramos o sabá da servidão do querer, a roda
de Íxion se detém...”. Schopenhauer descreveu aqui um efeito do belo: o efeito
acalmador da vontade, será ele regular? Stendhal, como vimos, natureza não menos
sensual, mas de constituição mais feliz que Schopenhauer, destaca outro efeito do belo:
“o belo promete felicidade”, para ele, o que ocorre parece ser precisamente a excitação
da vontade (do interesse) através do belo. E não se poderia, por fim, objetar a
Schopenhauer mesmo que ele errou em se considerar kantiano neste ponto, que de
modo algum, compreendeu kantianamente a definição kantiana do belo que também a
ele lhe agrada o belo por “interesse”, inclusive pelo mais forte e mais pessoal interesse,
o do torturado que se livra de sua tortura? Eis aqui ao menos uma primeira indicação: ele
quer se livrar de uma tortura. Aqui seria a vontade, a libertação da vontade como
vantagem do estado estético: um efeito do belo, portanto, um agir (vontade) por
“interesse”. E, para voltar à questão de Nietzsche sobre: “que significa um filósofo render
homenagem ao ideal ascético?”. Sua resposta é fatal e conhecida. São testemunho da
pior ascendência que possa atribuir-se a uma coisa. “Mau” é para ele o que provém da
atitude enviesada, envenenada, rancorosa e da vida inibida perante os fatos da
existência. Para Nietzsche, nada é pior do que o ressentimento que alcançou o poder, o
ressentimento que emana da inveja negada, da inferioridade rebelde e do desejo adiado
de vingança de uma casta de clérigos e agitadores sedentos de poder. Com isso,
Nietzsche faz recair de forma inequívoca a origem suspeita sobre toda a esfera de
influência dos valores cristãos convencionais e suas secularizações políticas. Ao mesmo
tempo, nada é mais compreensível, realizado, humana, política e culturalmente, bem-
sucedido, que este mesmo ressentimento dos desfavorecidos. Nietzsche quis consumar
a transformação epocal das tendências que negavam o mundo e a vida em virtudes
357

afirmativas. Nietzsche já tinha percebido que historicismo e niilismo são aliados, uma vez
que a reflexão histórica levada até seu fim de nada mais pode tratar senão da história da
irresistível inibição niilista da vida, que em nome da grande religião, da moral e da
civilização, se impõe no mundo inteiro a partir da Europa. A história do ocidente cristão
revela-se como um suicídio retardado. Todos os impulsos negadores da vida penetram
peçonhamente em todas as formas de pensar, sentir, artes, instituições como algo que
mete medo. O conceito psicológico correspondente a este processo chama-se:
ressentimento, o biológico: decadência, o religioso: cristianismo, o filosófico: niilismo. A
história universal do ressentimento cristão é, para Nietzsche, a história da desvalorização
do mundo e da vida até as últimas consequências. Uma encenação histórica que é uma
negação radical de tudo, de todos os “valores” onde ele vê atuar o niilismo. A vontade de
se chegar ao nada como sentimentos negadores da vida ao invés dos auto-afirmadores
vitais. Junto com Sócrates e Jesus, Nietzsche foi um grande mestre da ética da tradição
ocidental.
Não seria interessante uma abordagem mais “fenomenológica”? Já havia algum
tempo que Edmund Husserl se convencera da possibilidade de que o comportamento
contemplativo podia liberta-se da posição de atividade indolente de segundo plano. O
chamado “método fenomenológico”, que se manifestava desde 1900, é uma soma de
argumentos a favor da tese de que o tempo estava suficientemente maduro para uma
filosofia que se erguesse para uma ciência estrita. O método fenomenológico exige a
tomada de posição em relação a toda a objetividade que divirja essencialmente do
natural, muito próxima daquela atitude e comportamento que nos coloca a sua arte,
puramente estética, em relação aos objetos representados e ao mundo da arte na sua
totalidade. A percepção duma obra de arte puramente estética produz-se com a
supressão estrita de qualquer posição existencial do intelecto e de qualquer posição de
sentimento e vontade que aquela posição existencial pressupõe. Ou melhor: a obra de
arte transpõe-nos (e força-nos) ao estado da pura percepção estética que exclui a tomada
de posição. Quanto mais do mundo existencial ressoar numa obra de arte, ou nela for
ativamente introduzido, quanto mais a obra de arte exigir uma tomada de posição
existencial. Por exemplo: como aparência sensorial naturalista – verdade natural da
fotografia, menos esteticamente pura será a obra. O mesmo é válido para qualquer tipo
de “tendência”. A atitude mental, da vida real, é totalmente “existencial”. As coisas que
358

estão sensorialmente ante nós, as coisas que são o assunto do discurso atual, quotidiano
e científico, somos nós, que as postulamos como realidades e nesses postulados de
existência “assentam” atos do espírito e da vontade, “alegria porque, isto é”, “tristeza
porque aquilo não é”, “desejo porque passa a ser”, etc. Isso é igual a uma tomada de
posição do espírito, uma antítese da atitude de percepção estética pura e do seu
correspondente estado de sentimento. Mas também, e não menos, da atitude mental
puramente fenomenológica, a única segundo Husserl, é possível a resolução dos
problemas, pois o “método fenomenológico” exige a supressão de todas, e a total, falta
de tomada de posição existencial. Assim, toda a ciência e toda a realidade, incluindo o
próprio eu, tornam-se meros “fenômenos”. Resta apenas sua “clarificação” do sentido
imanente, puro olhar como pura análise e abstração contemplativa, sem nunca
transgredir os “meros fenômenos”. Para o artista, ao observá-lo, o mundo torna-se
fenômeno, a sua existência é-lhe indiferente, exatamente como para o filósofo (na crítica
da razão). Husserl não teria com isso, tido uma visão absolutamente platônica que vida e
reflexão pertencem a campos estritamente separados? A ânsia de pureza de Husserl não
uniu esforço de uma relação plenamente “contemplativa” com os dados da consciência?
O “método fenomenológico” não é um reestabelecimento de uma vida que passa de um
modus vivendi contemplativo que devia se basear em um modus cogitandi
correspondente? Chega a ser simplista demais, Husserl achar que teve de filosofar
porque, caso contrário, não teria podido viver neste mundo.
Segundo Husserl, a “atitude natural” em relação a tudo na vida real significa
sempre “tomar posição”, o que implica envolvimento nas coisas da vida e ao quotidiano,
a decisão sobre a possibilidade de um comportamento contemplativo ou “puramente
contemplativo” depende de se provar que se consegue evitar a maldição do “ter-de-
tomar-uma-posição”. Para isso, a teoria para ser pura, deveria ter capacidade de dissolver
a fixação do seu portador na existência real, quando muito, suspendê-la
temporariamente. Husserl utiliza a palavra “existencial” à expressão “tomar posição”,
que pouco depois, com Heidegger, seria uma abordagem completamente oposta, que
ocuparia o centro de um pensamento já não contemplativo. Esta nova filosofia
“existencial” não só acentuaria a primazia do “cuidado”, mas também seria decidida, a
deixar-se arrastar pelos imperativos do momento histórico, como derrelição
(geworfenheit) existencial, uma condução a ser-se arrastado pelo grande
359

“acontecimento”. Não seria essa uma consolidação de uma zona sem vento, onde o
pensar, livre das impertinências do existir, possa gozar e ter “acesso” do seu trabalho
sobre os fenômenos? Não seria aqui uma tentativa de Husserl em se alguma vez houve
uma feliz ocasião para observarmos a prática da teoria, seja como filosofia ou como
ciência, sob o seu caráter de prática, exercício performático, como pureza teórica e teoria
pura?
Sloterdijk (2019, p. 1):

Não é capacidade como tal. Mas não ocorrem as circunstâncias vitais que nos
permitem afastar e ganhar distância. Para Husserl e sua fenomenologia era preciso
sair do tempo impetuoso da vida, o dispositivo mais elementar era sempre dar um
passo atrás. Essa ação permite que você se transforme em observador. Sem uma
certa distância, sem uma certa desconexão a atitude teórica é impossível. A vida atual
não convida a pensar.

Husserl tinha em vista a chamada “colocação entre parênteses”, “desconexão”


da “posição natural”. Seria uma tentativa de luta pela possibilidade de ausência de luta.
Uma luta travada para conseguir algum tipo de neutralidade para-existencial ou extra
existencial, por meio de uma retirada da consciência de seus próprios assuntos, a
aquisição do hábito de contornar desinteressadamente as próprias coisas. Assim sendo,
se a ciência ou a arte (enquanto atitude teórica), de que pode brotar uma ciência
específica, deve ser vista inicialmente como prática, exercício cardinal, como se diz do
latim cardo, gonzo, charneira, dobradiça. Isto teria de ser um exercício de retirada. Seria
uma acrobacia performática em não tomar posição, uma desexistencialização, uma
tentativa na arte de suspender a meio da vida a participação na vida. Só assim é que se
poderia se suspender, e o pensamento poderia entrar em uma fresta da pura observação
onde nós e as coisas passam de ser afetadas e de nos afetar. Se havia um eu que toma
posição, agora se tem um eu que observa. Assim, o pensamento “puro” não deve ser
senão uma investigação de ilustrações que encontramos quando encontramos uma
página aberta de um livro com imagens e ilustrações, uma página da consciência, como
se durante todo esse tempo pudéssemos ter esquecido que a única consciência que
temos acesso é a nossa própria. Mas mesmo a existência que me pertence deveria ser
considerada meramente como caso particular de uma interconexão essencial geral. Se a
minha vida constitui apenas uma fonte de informação adicional, um ponto de uma curva
360

de que me interessaria somente uma equação funcional. Husserl é um tipo de


“fotógrafo”. A fenomenologia não é mais que um processo de “desenhar com luz” sobre
algum material sensível, não seria coincidência que no final do século XIX a produção de
imagens deu salto gigantesco na era tecnológica? Uma primeira arte mediática moderna
na esfera mental, ao praticar um processo que transforma olhares sobre o ambiente ao
redor e conteúdos de vida visíveis e palpáveis em imagens interiores fixas desprovidas de
contexto. Uma impressão mental. A fenomenologia apresenta-se como teoria da
consciência do tempo interior. As imagens formadas são tomadas como um tipo de
câmera noética. Se as películas já foram expostas à luz e retiradas do banho de água de
fixação da contemplação interior, as tomadas de imagens adquirem importância
filosófica consideráveis (em nível arquivístico e museográfico). Esse exercício consiste em
revelar como fenômenos imagens capturadas da existência. O arquivo passa a ser uma
coleção cujo conteúdo consistem em objetos que foram libertados da carga de ligação
com à vida. Assim como o tempo, cada vez mais “coisas” se libertam, se desanimam, se
descontextualizam, o arquivo como um processo incessante de crescimento. O que se
expande é a “zona de coisas” libertadas da imposição de serem reais. Se Hegel pensou o
esquema do museu clássico, Husserl pensou o museu da Idade Moderna. Alain Badiou,
filósofo francês marxista, levanta quatro pontos onde este mundo em que vivemos
parece que o corta, o impossibilita. Desejos que não cabem nesse mundo. Um deles é a
revolta. Não que ela não exista, mas porque o mundo ensina, ou pretende ensinar, que
ela já é em sua forma final, livre, e a liberdade já o organiza. Não há necessidade de querer
ou esperar um mundo melhor no sentido radical. O outro é a lógica. Porque parece que
está submetido à dimensão ilógica da comunicação. A outra é a universalidade. Vivemos
no particular, basta ver a dificuldade de hoje se transmitir conceitos. O universal acabou
se realizando na forma dinheiro como equivalente universal. Algo só é universal quando
passa a ser trocável. Por fim, temos um mundo impróprio para apostas. Para decisões
casuais porque é um mundo em que mais ninguém tem os meios de se entregar ao acaso.
Na fenomenologia, se diz que é possível praticar o não envolvimento. O não
envolvimento consigo próprio. Os resultados são as naturezas-mortas (captadas) dos
dados da consciência que ficariam conservadas em uma coleção permanente. O melhor
fenomenólogo seria aquele que fosse o melhor arquivista. Se fala então, de epoché para
designar o gesto de distanciamento pela pertença direta ao teatro do mundo. É o passo
361

atrás de todas as formas de envolvimento existenciais. Uma resoluta distanciação em


relação às ideias provenientes da existência, o colocar entre parênteses da tomada de
posição existencial, a fenomenalização de coisas, um processo de “idealização” de se
investir um significado no conteúdo da consciência para se formar os pressupostos para
uma descrição em que os “fenômenos” estão presentes na esfera noética. Neste
contexto, a epoché pode ser vista como um comportamento de um cliente que
perambula pelo mercado sem comprar nada. Husserl batizou o seu termo com antigas
tradições do vocabulário cético grego. Era uma atitude antiga de abstenção de juízo,
como o pairar entre doutrinas de escolas já estabelecidas para evitar falar de ficções dos
comerciantes no mercado e de marinheiros. É por isso que Husserl vem de uma tradição
de Descartes e Hegel. Ambos integram a dúvida (metódica ou existencial), no coração das
suas maneiras de fazer, a fim de gerar o máximo de certeza, uma vez superada a incerteza
mais extrema. Esse sofrimento causado por se ser incapaz de decidir entre alternativas
essenciais prepara a decisão, ou pelo menos uma aparência desta. Este é um passo a mais
do que os céticos antigos. Em Husserl não há um mero pairar entre as teorias das
principais tendências filosóficas como se vê na cosmovisão neocética de Dilthey. Mas
também quis ir mais além de Descartes já que o “eu penso”, “eu sou”, “o ser (eu) é”,
“Deus é” era pesado demais. Quis eliminar evidências vitais que lhe davam o próprio
sentimento de eu-sou (insinuações dogmáticas do existir), todo o complexo das
afinidades e interesses capturados pelo ego, para se recolher completamente ao
laboratório interior onde as tais fotografias mentais fornecem presenças (figurações e
aparições) precisas. Por isso se utiliza o termo “época” no sentido histórico e não no
sentido cético ou fenomenológico. Foi a partir do momento em que começamos a
compreender o mundo como entidade histórica (movida pela história), o termo “época”
passou a ser amplamente utilizado como uma ideia de que na “evolução” deve-se
diferenciar “condições mundiais” múltiples. A epoché em sentido histórico não é mais do
que um corte gerador de distância, uma ruptura petrificadora, que tem como efeito que
acontecimentos posteriores já não possam ser vistos como uma direta continuação dos
anteriores. Quer então, a “redução fenomenológica” ou a suspensão das crenças, que
em grego é epoché (seccionar um momento, uma época, e segurá-la suspensa). Trata-se
de colocar entre parênteses toda a experiência e descrevê-la tendo suspendido
pressuposições e assunções a respeito dessa experiência. Seria como uma espécie de
362

procedimento para buscar a coisa em si. Ela quer o que aparece. E faz de tudo para limpar
os pré-aparecimentos. Nesse período que chamamos de “época”, há os eventos
separadores que são rupturas, saltos, revoluções, transformações (tecnológicas),
catástrofes. Trata-se do lugar-nenhum como conceito. Os conceitos são universais, os
universais nós sabemos não encontramos na rua. Não se encontra “o homem”, “a casa”,
na rua. Encontramos o particular. Estamos pensando alhures. Para além de qualquer
lugar, logo, em todos os lugares, portanto, em lugar-nenhum. Esta é a condição básica da
Filosofia. Nós temos que fazer esse trabalho, mas isso significa um desengajamento.
Entretanto, toda a filosofia moderna é uma Filosofia do engajamento. Quem quer um dia
pretender estar à par de seu tempo, tem de se datar, a si e à sua comunidade local-
regional, pelo último corte decisivo. O método de Husserl quer no fim, ser um fazedor de
época, tirando o pensamento da sua era ingênua e conduzindo-o para a reflexão. Assim
sendo, as ontologias vulgares que vem das considerações de Marx de que o ser determina
a consciência desenganam-se. A consciência é que mantém o ser à distância,
respondendo de vez em quando seus pedidos e considerações “sem dar muita bola”.
Temos a indiferença. Para o artista o mundo torna-se um fenômeno, a sua existência é-
lhe indiferente, exatamente como para o filósofo. Mas a indiferença metodológica de
Husserl descritora de fenômenos está separada por um abismo profundo da indiferença
estética. Uma redução estética segue leis próprias.
Sem dúvida, Nietzsche representa o estado mais elevado do idioma alemão, e
talvez, há também uma obra rapsódica que vai mais adiante da prosa e na qual realmente
canta como Zaratustra. O afrouxamento paródico dos vínculos tradicionais entre música
e logos é que torna possível, com Górgias, o nascimento da prosa de arte. O rompimento
é que causa ou liberta um parà, um espaço ao lado, onde se instala a prosa. Prosa.
Zaratustra está aliado com a vida porque está secreto o eterno retorno. Ele está
convertido totalmente em um ser que diz sim, um ser afirmativo, que inclusive a dor, a
negação o põe na balança da afirmação. Os escritos ditirâmbicos mais tardios de
Nietzsche trazem de volta esses ritmos em alto tom, em tom quase bíblico. Nietzsche no
fundo é um parodiador da Bíblia usando o alemão de Lutero para estabelecer versos
dionisíacos. Ele desenvolveu uma forma de paródia que leva para o alto-vertical.
Normalmente, a paródia é uma forma de colocar os tons altos em baixos, mas Nietzsche
inverte, ele parodia em alto, introduz o tom mais agudo na prosa do mundo moderno,
363

como somente conhecemos em um ritual de coroação ou em hinos eclesiásticos. Uma


busca de reativar o elemento da linguagem que na modernidade se fez impossível, na
verdade: um “phátos” muito elevado. Construções com palavras catedrais e está
plenamente consciente disto. É comum em Assim Falou Zaratustra (1883), Nietzsche
dizer: “Eu construo montanhas, montanhas cada vez mais altas”. Temos aí, montanhas
sobre montanhas elevadas, nada mais que uma dinâmica vertical incrível e a tentativa de
desta maneira de fazer mais suportável a prosa da vida moderna que, a partir destas
tensões anímicas, reconquista o-um “phatos” mais elevado. “Quem um dia ensinar os
homens a voar, deslocará todos os marcos de limites; os marcos mesmos voarão pelos
ares, e esse alguém batizará de novo a terra – de “a Leve” (NIETZSCHE, 2015, p. 183).
Nietzsche cometa (2015, p. 145):

Eu sou um andarilho e um escalador de montanhas, disse para seu coração, eu


não gosto das planícies e, ao que parece que não posso estar muito tempo
parado. E, seja lá o ainda me aconteça, como destino e como vivência, -
sempre haverá uma caminhada e uma escalada de montanha: afinal, vivencia-
se apenas a si mesmo. Passou o tempo em que me podiam suceder acasos; e
o poderia ainda me tocar que já não fosse meu? Ele apenas retorna para casa,
regressa para mim – meu próprio Eu, e o que dele há muito tempo se achava
no estrangeiro, disperso entre coisas e acasos. E ainda uma coisa eu sei: agora
me acho diante de meu último cume, e daquele que mais longamente me foi
poupado. Ah, devo encetar meu caminho mais duro! Ah, comecei a mais
solitária caminhada! Mas quem é de meu feitio não foge a esta hora: aquele
que lhe diz: “Agora segues o teu caminho de grandeza! Cume e abismo –
Juntaram-se agora num só! Segues teu caminho de grandeza: tornou-se teu
último refúgio o que até então era teu último perigo! Segues teu caminho de
grandeza; essa deve ser agora tua maior coragem: que não haja mais nenhum
caminho atrás de ti! Segues teu caminho de grandeza; aqui ninguém te
acompanhará furtivamente! Teus próprios pés apagaram o caminho atrás de
ti, e acima dele está escrito: Impossibilidade.

Continua Nietzsche (2015, pp. 199-200):

Eu traço círculos e sagradas fronteiras em torno de mim; cada vez menos


homens sobem comigo a montes cada vez mais altos – eu construo uma
cordilheira de montes cada vez mais sagrados. – Mas aonde quer que desejeis
subir comigo, ó meus irmãos, cuidai para que um parasita não suba convosco!
Parasita: é um verme rastejante, insinuante, que quer engordar em vossos
cantos enfermos e feridos. E esta a sua arte, adivinhar, nas almas que sobem,
os pontos que se acham cansadas: em vosso desalento e mau humor, vosso
delicado pudor ele constrói seu ninho nojento. Onde o forte é fraco, onde o
nobre é suave demais – ali dentro ele constrói seu ninho nojento: o parasita
habita onde o grande tem pequenos cantos feridos. Qual a mais alta espécie
de tudo que existe, e qual a mais baixa? O parasita é a espécie mais baixa; mas
quem é da mais alta, alimenta o maior número de parasitas. Pois a alma que
364

tem a mais longa escada e pode descer mais fundo: como não se acharia o
maior número de parasitas? – A alma mais ampla, dentro da qual mais se pode
correr, errar e vagar; a mais necessária, que por prazer se precipita no acaso:
– a alma que é, e que mergulhar no vir-a-ser; a que possui, e quer lançar-se no
querer e ansiar: – a que foge de si mesma, que a si mesma alcança no círculo
mais amplo; a alma mais sábia, à qual a tolice fala do modo mais doce: – a
mais amante de si mesma, na qual todas as coisas têm sua corrente e
contracorrente, seu fluxo e refluxo: – oh, como a alma mais elevada não teria
os piores parasitas?

Creio que isto é um gesto que, para todo o tempo posterior, foi continuado de
maneira bastante importante porque comprova, que também no tempo da prosa
absoluta, o heroico e o sublime, todavia, são possíveis, apesar de que já parece
impossível. Nietzsche mesmo diz claramente que: “temos a arte para que a verdade não
acabe com nós todos”. A música é uma companheira muito antiga da civilização.
Antropologicamente é difícil de ver civilizações sem algum tipo de música. A tendência
global parece ser que, os seres humanos, desde que sabem falar, também fazem música.
Mesmo que seja uma música implícita, na melodia da linguagem propriamente dita, ou
como Agamben suscita cantamos porque perdemos nossa voz. Para um europeu que não
conhece o português, a primeira ideia sobre a língua portuguesa é que ela parece ter uma
intensidade melódica, uma melodia desconhecida pelas línguas europeias. É como se em
todos os brasileiros, houvesse um cantor, como se todas as conversas fossem cantadas.
Mas isso está longe das preocupações de Nietzsche quando ele distinguiu o elemento
apolíneo do dionisíaco para dizer que a música pertence ao espaço dionisíaco. Ensinava
um direito natural dionisíaco, o direito da vida a seguir outas motivações que não as
morais. A música é daimônica, porque, do ponto de vista psicanalítico, aciona os
processos primários. Os processos primários no ser humano, são as áreas onde residem
sua loucura, porque ele entra em um estado prévio ao de se tornar "eu". Isso ocorre
bastante na música popular contemporânea, em que o ritmo se tornou muito dominante.
A batida intrauterina parece uma linguagem musical do mundo. Por todo o globo, onde
as pessoas dançam a música pop, nós podemos ver que elas entram e se movimentam
sob um estado de liquidificação pré-natal (a ideia de um’a antropologia como onto-
rítmica). É até difícil de imaginarmos uma música sem som, sem batida, sem ritmo. Uma
música assim seria como se você estivesse lendo um texto na sua mente. Antes da
individuação ouvimos antecipadamente, isso significa que, o ouvido fetal antecipa o
mundo. Um ouvido que não conhece nenhum defronte, não cria nenhuma vista frente a
365

um objeto, se tem uma partida de uma teoria do ser-em como intimidade que se torna
universalmente sensível na vigília humana. Ouvimos uma totalidade de ruídos que está
sempre a vir, orientado em direção ao mundo, uma “frente” inevitavelmente par ao
futuro. Depois da formação do eu, ouvimos para trás, o ouvido quer é desfazer o mundo
enquanto totalidade, por isso, tem saudades da interpenetração arcaica do interior
escuro intramundano, ativa um suspiro de entusiasmo extático-eufórico que nos
acompanha até o fora. Reminiscências íntimas nobjetais. Onde o mundo ainda nem pode
ser apontado como mundo: “este mundo”. Assim, a música, seria a todo momento uma
dialética de duas aspirações. Um nada positivo, da ausência de mundo, do interior, mas
que marcha para o mundo, vem ao mundo. E o outro, de uma plenitude, dissonância da
sobrecarga, de volta a ausência do mundo, liberto-interiorizado. No gesto primário de
toda a música existe um dualismo de partida e de retorno a casa. Representam-se, com
razão, os anjos como músicos celestiais, apenas tocam, não ouvem nada. Se fossem
ouvintes seriam algo perto de nós.
Sloterdijk considera Nietzsche um apolíneo, e não um dionisíaco. Como por
exemplo, ele não era um apreciador de vinhos, o que não é muito bom para um autor
que se remete a Dioniso. Nietzsche era um bebedor de água. Entre outras razões, ao
menos toda vez argumentava para esclarecer e escrever sua maravilhosa prosa. O
apolíneo também o tenho, tenho a sensibilidade de me agradar com frases charmosas se
encontra em cada livro um par de paisagens bastante bonitas e um par de frases
extremamente bonitas que chegam a ser bonitas demais para ser verdade. Isto tem
relação de por um lado, em 100 páginas desde a prosa está indo para ária, quer mudar
para fazer uma transição para a ária.
366

A Confusão das Línguas. Gustav Doré. (1865).

Vaso de Volci. Século V a.C. As sereias voam em torno de Ulisses como


mulheres em forma de pássaros.
367

Apolo com uma lira representada em uma Kílix do século 5 a.C.

O espaço público no qual as pessoas se encontram hoje e se articulam hoje, é


um espaço que se abre graças ao encontro das pessoas, o que se inaugurou através do
encontro de pessoas que mutuamente se veem e se reconhecem como iguais. Fora disso,
quando existe uma forte hierarquia, os políticos e os homens poderosos representam sua
existência ante um público ou antes espectadores, eles existem ante o público e não no
público. O espaço público moderno tem a capacidade de permitir em uso recíproco de
linguagem, e estabelecer um ir e vir, uma simultaneidade e equivalência real e virtual.
Isso faz também diferença de um espaço público alto-baixo e baixo-alto. Veremos o
porquê os chamados filósofos pré-socráticos foram tão muito interessantes novamente
para os modernos, poderíamos dizer, um renascimento do pensar que não se remonta a
Platão. Isso significa que por volta do final do século XIX, temos uma situação de
renascimento. Nosso Renascimento oficialmente começa no século XIV, e de certa forma,
nunca terminou completamente. Isso pode ser visto, entre outras tantas coisas, o fato de
que as figuras mais importantes da antiguidade não só foram revitalizadas, mas ainda
perduram na cultura. As artes plásticas mostram uma organização nova na Europa desde
o ponto de vista histórico. O que se chama de Renascimento é a consequência de uma
auto-intensificação progressiva durante século da capacidade artística nas oficinas da
Itália, Flandres e Alemanha, até que finalmente nos séculos XVI e XVII, graças uma
368

retroalimentação contínua positiva, alcançou um apogeu maestral, nomes como


Caravaggio, Tiziano e Rembrandt. Uma arte virtuosa.
Nos séculos XV e XVI todas as figuras da Grécia Antiga foram ressuscitadas nas
figuras dos humanistas: o pintor, o escritor, o artista, o escultor. Só faltava a figura chave
do atleta. Em nosso caso, voltou no século XIX, o retórico, o filósofo mundano, o orador,
o diplomata, o pintor, o escultor, entre outras figuras parecidas. Se pegarmos o conceito
de maestro da tradição europeia dentro das instituições acadêmicas foi abolido, somente
seguiu-se no âmbito da música onde, todavia sem corar pode-se dirigir a alguém
chamando-o de “mestre” (maestro em espanhol) na academia já não existe mais essa
relação de discípulo – professor, e isto por algumas razões. Porém, isso também tem a
ver com o fato de que sempre é mais claro que há uma preeminência do discípulo, do
aluno: é o discípulo que converte o professor e que o escolhe porque é um bom aluno, é
alguém que tem um grande pressentimento de si mesmo. Um bom discípulo é um jovem
que presente o advento de sua própria capacidade e inteligência. Ele sente que nele há
um enorme espaço vazio, e que esse espaço vazio é preenchido pelo mestre-professor,
e se deixa também explicar por ele toda a dimensão de antecipação e então assim o
professor pode se converter em professor porque se toma a sério a si mesmo na relação
com o discípulo. A inteligência mesma passa a ser uma força antecipatória e quanto mais
longe projetamos a antecipação tanto mais difícil é alcançarmos ela. Porém, na medida
da admiração que um sente pelo professor, passa a ser possível deduzir dele quão
distante vamos chegar e isto é uma forma de ensinar e de aprender que hoje,
basicamente, só existe na música. Nesse meio (com músicos jovens) é possível se criar
um clima de admiração gigantesco, e a estes jovens músicos foi mostrado o quão distante
e o quão alto o espaço de crescimento é no qual se podem desenvolver sem suas vidas
em um futuro. Como homens científicos de hoje, deveríamos buscar uma relação quase
musical com os alunos. Hoje dificilmente se poderia dar um fenômeno de cultura
contemporânea em que não se pudesse comprovar vestígios de técnicas quase musicais
de distanciamento do mundo. O mais recente cocooning, a emigração em massa de
sujeitos modernos para o interior inacessível de retiros, trips e simbioses seriam
impossíveis sem o mergulho no menu tonal da aparelhagem sonora. Um distanciamento
do mundo é o denominador mínimo de uma sociedade poli-escapista como a nossa.
369

O movimento olímpico pode ser visto hoje como o exemplo mais nítido da
desespiritualização da ascese (o constante estar em forma; exercícios). Com um atraso
de 400 anos ele é a figura que retorna. Foi a figura mais popular e perigosa da antiguidade
com ele vem também a ideia da antiguidade ou a antiguidade da physis, do corpo forte
que desde o Renascimento ainda não terminou. O renascimento não só não terminou
como ainda continua na literatura. Se pensarmos com minúcia, o Renascimento inventa
a novela ou a novela curta, uma forma não legendária de narrar, depois a novela se
converteria na novela moderna. É bem claro, que se trata de um dos gêneros literários
mais fecundos já existentes, e por isso, ainda sobrevive. O interessante é que com o
intercâmbio das culturas começamos a participar da antiguidade de outras culturas. Um
indianista francês, por exemplo, que fala ou falou de um renascimento asiático ou índico
do qual, hoje como pessoas ocidentais podemos participar também. Também podemos
participar da antiguidade centro-americana e sul-americana, as antiguidades das
diferentes culturas antigas, também da China, todas estão aqui hoje. Com boas razões
hoje, é possível se pensar em um livro como “O Museu Imaginário” de Malraux, a ver a
simultaneidade dos diferentes passados das culturas (leituras-escritas), um pluralismo
das antiguidades. Quando nos damos conta disso, e neste nível começamos a dar um
intercâmbio, que vai além das diferentes trilhas da modernidade. Os museus são hoje os
locais mais vivos que podemos encontrar no espectro das instituições culturais porque as
universidades e os museus são os únicos lugares em que se encontra vida. O museu não
é mais somente um arquivo, um lugar onde se mantém o passado. O museu moderno é
um local onde aparece o contemporâneo em uma forma agudizada, ou seja, sensível, mas
que em qualquer outro lugar, e por isso, ali não está o guardião, mas sim, o curador que
é um intelectual público por excelência. O Museu imaginário de Malraux é de 1951, bem
como An American in Paris, de Vincente Minnelli. No ano seguinte, 1952, Erich Auerbach
publica o ensaio "Filologia da Weltliteratur", ou ainda, "Filologia da Literatura Mundial",
em um volume coletivo publicado em Berna em homenagem ao professor, filólogo e
teórico Fritz Strich (o que nos faz lembrar do ensaio sobre Van Gogh que Meyer Schapiro
publica em 1968, dedicado a outro professor alemão, Kurt Goldstein). O ensaio de
Auerbach é rico em associações, tomando frequentemente o aspecto de um panorama
experimentativo. Um ensaio, enfim. Auerbach cita um trecho de Adalbert Stifter (1805-
1868, referência fundamental para Sebald, que a ele dedicou dois ensaios), de seu
370

romance. Der Nachsommer, publicado em 1857 (o mesmo ano em que Flaubert e


Baudelaire foram processados por atentado à moral). Auerbach retoma Stifter dentro de
uma argumentação que o aproxima do projeto visual de Malraux. Eis o trecho de Der
Nachsommer citado por Auerbach.
“Seria muito desejável que, depois do fim da humanidade, fosse dado a um
espírito reunir e contemplar toda a arte do gênero humano, desde as suas origens até o
seu desaparecimento”. E Auerbach comenta: "Stifter pensa aqui apenas nas artes
plásticas, e creio que ainda não se pode falar de um fim da humanidade. Mas parecemos
ter atingido um ponto de conclusão e virada que oferece ao mesmo tempo possibilidades
inéditas para uma visão de conjunto”.60 Quando lemos imagens, de qualquer tipo,
pintadas, esculpidas, fotografadas, edificadas, encenadas, atribuímos a elas o caráter
temporal da narrativa. Ampliamos o que é limitado por uma moldura para um antes e um
depois e, por meio da arte de narrar histórias, conferimos à imagem estática uma vida
infinita e inesgotável. André Malraux, que participou como soldado, romancista e
ministro da vida cultural e política na França do século XX, argumentou com lucidez que,
ao situarmos uma obra de arte entre as obras de arte criadas antes e depois dela, nós, os
espectadores modernos, tornávamo-nos os primeiros a ouvir aquilo que ele chamou de
canto da metamorfose, ou seja, o diálogo que uma imagem trava com outras imagens,
dispersas no tempo e no espaço. No passado, diz Malraux, quem contemplava o portal
esculpido de uma igreja gótica só poderia fazer comparações com outros portais
esculpidos, dentro da mesma área cultural. Nós, ao contrário, temos à disposição
incontáveis imagens de esculturas do mundo inteiro que falam para nós em uma língua
comum, de feitios e formas, o que permite que nossa reação ao portal gótico seja
retomada em mil outras imagens. A esse precioso patrimônio de imagens reproduzidas e
incorporáveis, Malraux chamou museu imaginário.
A ideia olímpica e dos esportes do século XX, inclui com notável lembrança das
academias contemporâneas e com o crescente movimento tecnológico, fisiológico,

60
AUERBACH, Erich. Ensaios de Literatura Ocidental. 2º Edição. Tradução: Samuel Titan Jr. e José Marcos
Mariani de Macedo. Editora 34, 2012, p. 361. O Ensaio em questão é “Possibilidades Inéditas Para Uma
Visão de Conjunto”. "Seria muito desejável que, depois do fim da humanidade, fosse dado a um espírito
reunir e contemplar toda a arte do gênero humano, desde as suas origens até o seu desaparecimento". E
Auerbach comenta: "Stifter pensa aqui apenas nas artes plásticas, e creio que ainda não se pode falar de
um fim da humanidade. Mas parecemos ter atingido um ponto de conclusão e virada que oferece ao
mesmo tempo possibilidades inéditas para uma visão de conjunto”.
371

suplementar, alimentar e substâncias anabolizantes no final dos anos 70


(autossuperação). Deste cenário, as duas maiores invenções arquitetônicas do século XX
é o apartamento e o estádio desportivo onde se vê relações diretas sociopsicológicas e
psicopolíticas com tendências para a liberação de indivíduos, que vivem sós, mediante
técnicas habitacionais e midiáticas individualizantes, e a aglomeração de massas,
igualmente excitadas, mediante acontecimentos organizados em grandes construções
fascinógenas. Sobre os apartamentos modernos, eles configuram uma materialização de
formações de células e de moradias de um espaço individualizado. Uma visão clara do
que Gabriel de Tarde havia falado sobre “o ser humano civilizado ter uma possibilidade
de renunciar o apoio humano”. Hoje o sonho dos muitos solteiros como (um) é o
apartamento que também é (single). O espaço vazio deve ser preenchido mesmo que
seja pelo single. Os apartamentos são a tomada de consciência do indivíduo da sua
individualidade, que nada mais é que o individualismo.
Houellebecq (2002, p. 18):

Debaixo dos nossos olhos, o mundo se uniformiza; os meios de comunicação


de massa avançam; o interior dos apartamentos se enriquece de novos
equipamentos. As relações humanas tornam-se progressivamente
impossíveis, o que reduz, na mesma proporção, a quantidade de peripécias de
que se compõe uma vida. E, aos poucos, o rosto da morte aparece, em todo o
seu esplendor. O terceiro milênio mostra a sua cara.

Um indivíduo liberado, com tempo livre para uma flexibilização do fluxo de


capital em que aproveita, e se dedica em relações consigo mesmo. Não vivemos uma
época de compra de produtos “para se mostrar”, mas uma época em que a mercadoria
já passou do produto para a marca. A marca nos dá a identidade da auto-intensificação,
a identidade pessoal que ela nos proporciona. Sai o consumo de inveja, pois o próprio
consumo não tem mais a ver com o olhar do outro, mas com a nossa própria curtição
solitária. No neoliberalismo o que temos é um excesso de positividade individual.61
Quando assistimos as propagandas atuais, veremos que elas refletem esse mundo. Um
mundo onde não existe a inveja, pois a inveja é uma relação com o outro. Então, no
mundo fordista, se compra para mostrar para o outro, mas no mundo atual não se
compra mais para mostrar para o outro. Compramos para curtir sozinho, curtir sozinho,

61
Netflix: Filme Cam (2018).
372

comer sozinho. Uma ideia antihumana de que nascemos sozinhos. Sem a negatividade o
espírito não pode existir. Uma ideia não antiga. Os antigos sempre souberam que não
nascemos sozinhos. Nascemos com o outro. Nos moldes de Sloterdijk a sinestesia do
lugar-com (dentro) da placenta. Lipovetsky provavelmente diria “o império do efêmero”
ligado também à “sociedade moda”. Uma sociedade moda completamente
reestruturada pelas técnicas do efêmero, da renovação e da sedução permanentes.
Assim, o princípio-moda “tudo o que é novo apraz” se impõe como rei, a neofilia se afirma
como paixão cotidiana e geral. É soberano quem decide a cor da estação. Os profissionais
da moda. São eles que devem decidir a cor da estação: os estilistas. “A moda é a derrota
do costume”, escreveu Gabriel Tarde. Se estamos em um regime de monetarização é
exatamente essa vitória do efêmero e sazonal, da “temporada”, da “estação”, da “moda”,
do “em alta” que põe os estilistas como chefes a respeito do que pode e não pode ser
utilizado em determinados períodos. São os profissionais mais importantes do que é
efêmero, da frivolidade séria, daquilo que passa e vai voltar depois diferente. Os desfiles
de moda são desportos. São sérios não como arte, mas como desporto. Nisso se fazem
exercícios que precisam ser levados por personagens da androgenia vide. Fenômeno
também visto nos esportes, e mais recentemente, dos anos 90 para cá no campo da
estética-fitness e da moda-pop. Da silhueta do travesti incorporado em figuras, ídolos,
atletas, ícones femininos e da cultura pop. Ser e estar em forma cada vez são mais
equivalentes. É um símbolo de uma nova era. O futuro será do fitness (da colocação da
forma), ou do se colocar em forma que começou com os gregos e a palavra “paidea” que
significa “formação”, em francês corresponde mais ou menos à palavra alemã “Bildung”.
Bildung contém Bild – imagem. Expressão uma intuição profunda, segundo a qual, o ser
humano precisa ser construído. No período que passamos nas instituições educativas se
alonga excessivamente. No século XVI, os jesuítas, pedagogos protestantes, entre outros
passaram por uma clara revolução pedagógica da Europa, que é a primeira, e verdadeira
revolução europeia, “sequestraram” a juventude das nações, das “confissões”, antes das
nações haviam as “confissões”. O recrutamento em grande parte, feito pelos partidos
religiosos, os integraram em um sistema de formação sistemática. Pensaram que não
valia a pena esperar o momento em que o indivíduo estará cansado da primeira parte de
sua existência com 20 ou 30 anos, não merece esperar, deve ser feito com que os jovens
entre 5 até os 8 anos passem por “quarteis” de formação, instruí-los desde cedo como
373

os cadetes ou soldados em escolar militares ou como foi feito em monastérios com os


monges. Os alunos são as primeiras vítimas do “giro ascético” da primeira modernidade
até o século XVI. Vivemos e seguimos esta evolução. Praticamente 1/3 ou metade da
população das nações modernas são enviadas aos “quartéis generais” da formação que
chamamos de escolas, institutos, academias, yogas, etc. Toda sua vida gira em um centro
(seu centro) de gravidade, a preocupação do “cuidado de si”, também visto como um
“tomar nota de si” ou autoconhecimento por meio de números. No início dos anos
oitenta obviamente Foucault se preocupa com as “tecnologias do eu”. Estava retomando
um termo estoico: “cura sui”. “As práticas sensatas e voluntárias pelas quais os homens
não só fixam regras de conduta, mas também buscam transformar a si mesmos,
modificar-se e seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que apresenta certos valores
estéticos e responde a certos critérios de estilo” (FOUCAULT, 2005, pp. 13-14).
Não existe um modo de vida que não se delimite uma forma de se viver, assim
como também "não se pode nem não praticar a vida nem não aprender a viver"
(SLOTERDIJK, 2013, p. 59). “Onde estiver teu tesouro, estará também teu coração”,
algumas referências nesse sentido poderiam ser também o oráculo de Delfos: “Conhece-
te a ti mesmo”; e Terêncio: “Sou o mais próximo de mim mesmo”. Nada mais que a
vontade de transformar a própria vida, nos dizeres de Sloterdijk: “você deve mudar a sua
vida”. As atitudes são, quanto ao seu sentido, sempre atitudes de expectativas à
estabilidade de mundo e ao respeito de promessas. A posição do sujeito como aquele
que se mantém e se suporta a si próprio, o sujeito não pode de maneira nenhuma deixar
de persistir em atitudes que tendem a ser alheias ao mundo, opostas ao mundo, atitudes
mesmo que momentaneamente, auto operativas. Como já se disse, o sujeito vive apenas
e graças ao seu esforço para se criar e se levar por diante, arranca de si, agarrando-se
pelo seu autonascimento promessas próprias ou de que se apropriou. É assim que
devemos entender uma subjetividade na tradição de Sloterdijk. Já que o esforço constitui
o centro da subjetividade, a filosofia, como fenômeno de esforço, também não pode
nunca se livrar da subjetividade, independentemente de negações, subversões ou
estratégias suicidas. Uma hipótese está de prontidão: reside na serenidade, mas uma
serenidade que começa por uma espera para se deixar fadigar pelo real, resta apenas o
esforço para passar além do que exige esforço (um tipo de esforço que sou). É
perfeitamente possível considerar que par ao sujeito, para além do seu limite de esforço
374

encontramos, em primeiro momento, apenas aquilo que é vítima de uma exaustão – ele
próprio na forma colapso. A filosofia como ponta lógica da subjetividade nos pontos mais
excitantes, mais fatigantes e loucos. Se ele próprio é cansado, esgotado, extenuado até
os limites de sua resistência, ele encontrou-se para além do seu limite mais uma vez
consigo próprio, então as posturas revelam-se nunca sustentáveis, desfiguradas e suas
promessas inconsistentes. O nada poderia ser a insustentabilidade do prometido a
avançar abertamente, é uma redução de todo o existente em um dispositivo de retenção
para posições insustentáveis. É o local onde a vaga do cansaço da vida se passa por
promessas quebradas e onde os corpos passem a ser tão pesados. Nenhuma crítica
externa pode ser mais fiel do que a apreensão do sujeito de seus sintomas e da sua
própria exaustão. É na forma de desmoronamento de suas posturas que se torna
compreensível par ao sujeito como todas as suas atitudes autonatais precisam de
pretextos que desembocam à sua autonomia. É com o colapso, onde ele se aproxima do
chão, que está na base de todos os levantamentos – constantes desabamentos e
levantamentos. Estar deitado, é o modelo cinético da serenidade – o deixar-se levar. Era
aquilo que Heidegger designava como “esquecimento do Ser”, correspondente na
consciência cinética, um esquecimento do ser-levado, que é nada mais que a condição
prévia da cólera da autonomia. Certamente, esse esquecimento não é um “verdadeiro
esquecimento”, pois resulta da recordação que o corpo possui de episódios reais, nos
quais se sentiu não levado, abandonado, asfixiado, esquecido, encarcerado no seu
próprio desespero e naqueles momentos onde acumulou motivos para contar apenas
consigo mesmo (de certa forma o estar deitado é apenas uma outra forma de estar
suspenso). O sujeito dos filósofos possui uma forte tendência para uma possibilidade de
auto-ereção. Na colocação de uma autonatalidade, está constantemente, um ação
dinâmica de virilidade como ímpeto-impulso-“vontade” para a sua própria posição
vertical. Masculinidade que cria ilusão de ereção autônoma. É possível se dizer que a
atividade do sujeito para se manter a si próprio é inesperável de uma dose de autocriação
oposta ao mundo sob a fórmula de um serviço, de uma vinda-ao-mundo intensificada.
Nietzsche em sua Genealogia da Moral fala da tarefa que a Natureza atribuiu a si mesma
sob uma forma de mãe ambiciosa que possui uma herança de triunfo por intermédio de
seus filhos. Em sua retórica, da intensificação e da criação vem caracterizada pela forma
de um processo autonatal e da vida intensificada por atração das promessas mais
375

elevadas. Desde Platão, os fenômenos da vocação para o nascimento por si próprio, da


exaltação viril e da auto-intensificação existencial estão imbricados no pensamento –
animação enquanto erotismo vertical. Não é por acaso que Sócrates tenha a tradição
metafísica da maiêutica, como obstetrícia para a subjetividade que tem de lutar para sair
do corpo, que é matriz e túmulo, a fim de se manter a direito nas alturas das ideias.
Obstetrícia filosófica que desenvolveu a autofabricação do humano. A maiêutica, a
metafísica e a técnica são apenas tantos outros aspectos de um só fenômeno: os aspectos
do nascimento por si próprio do homem. Ela é a conquista da vertical, revolução da
soberania autonatal contra a paleo-natal, rejeição de uma antiga natureza e afirmação
de uma obstinação fálica contra a ditadura das mães. O sujeito que se reporta a si mesmo,
um grande mestre de obras de mundos próprios em mobilização. Hannah Arendt,
complementou o olhar heideggeriano na direção da morte e da finitude pela percepção
da “natalidade” do homem (nessa mesma linha Hans Saner). Em uma de suas palestras,
Heidegger anunciou que os homens têm de se tornarem “seres mortais”. Eles devem se
tornar seres natais, como aqueles que vêm ao mundo, o caráter de temporalidade seria
tomado como o indivíduo que sabe de sua morte em vida, somos seres fascinados e
intimidados pela mortalidade. O Cogito da morte parece ter tido predominante até bem
pouco tempo. Hans Saner esclareceu que na obra magna de Heidegger Sein und Zeit havia
indícios de uma consciência de ser “nascido”. Não basta aos homens terem nascidos para
virem ao mundo, nós estamos condenados a nos entender como aqueles seres de
chegada. Os mais profundos desconhecimentos que os homens têm si mesmos está no
fato não de relacionar e de se recusarem a reconhecer que morrerão, mas o contrário,
no fato de evitarem, por toda força, a ideia de “eu sou por nascimento”. Negadores da
vida, não da morte. Algo assim é extremamente problemático, pois seria necessário
descrever situações, lugares cujas origens não podemos recordar. Nos homens, o
esquecimento do nascimento constitui um rasgo existencial. Estamos no mundo e não
temos a capacidade de ter presente em nós mesmos nosso próprio começo. Não
conseguimos ser testemunhas do nosso próprio começo. Se não houvesse o cordão
umbilical como uma pista, poderíamos dizer que uma pré-história subjetiva seria
resumida por uma expressão que é “passou sem deixar rastro”. O mundo é um
compêndio de tudo que seja possível fazer experiências quando estamos no exterior. Se
ficássemos na clausura materna, estaríamos imersos em um determinado tipo de
376

experiências, mas um tipo de experiência em forma de uma segurança ontológica. Com


uma catástrofe de saída, se colocam protótipo de experiências novas, já que não temos
lembranças delas. O nascimento seria o mais absolutamente real, e por isso, ao mesmo
tempo, o que mais se retira. É algo que se põe em ação, mas que não necessariamente
se “conhece”. Ninguém quer admitir ter estado presente, quando do acontecimento
prometido que nos trouxe à luz do mundo. O “ter nascido” é algo que só acontece aos
outros – Hans Blumenberg, entre outros contemporâneos, revelou que até onde pode ir
essa vontade de não ter estado presente, sua obra Weltzeit und Lebenszeit, afirma em
tons fenomenológicos que “Todo o ser humano só sabe que nasceu, porque lhe
contaram, já que não esteve lá para presenciar...”. Sloterdijk amplia essa perspectiva
quando procede na direção de uma topologia da relação da díade, mãe-filho. Sua
“uterologia” já começa no ventre da mãe e mergulha literalmente nos movimentos, sons
e sentimentos daquele que está por vir e depois como transposições de situações
materna fora do útero na forma de espaço tempo. A vida prática, é antes de tudo, um
contínuo de atos auto persuasivos. Uma transformação em uma obra de arte. De uma
imagem que precisa ser feita. Você mesmo precisa fazê-la. Por isso, a clássica frase
“conhece-te a ti mesmo” exige da vida aquilo que Tales tinha designado como “o que é
difícil”: conhecer a si mesmo. Por isso, a filosofia clássica, centrada no “conhece-te a ti
mesmo” é, em sua essência, exercício e pedagogia. Começa um estado de operação
psíquica de nutrir um estado atual e um estado de expectativas ou de estados potenciais
(autoajuste, auto-observação e autovigilância). As moradas como unidades de células são
habitações de autocorreções que se leva originalmente como noção de alerta e atenção.
Essa novidade estaria impregnando o estado psíquico. Na célula monacal se materializou
o individualismo ascético extramundano. Na cultura contemporânea do apartamento,
com os meios de comunicações e os aparatos egotécnicos, fortalece o individualismo
hedonista intramundano, que também é ascético. Foi no começo das culturas liberais
ocidentais no século XVII que vimos populações de tendências individualistas cada vez
mais marcantes.
Vemos um modo da habitar por empilhamento de unidades-cápsulas. Um
grande estacionamento de casas-habitações que seriam inacessíveis sem que a criação
de acessibilidade de comunicação como corredores, escadas, elevadores não fosse feita
entre eles. Bairros poderiam ser grandes unidades cápsulas como uma estação espacial.
377

Se uma luta contra a falta de ar se verificasse, toda uma modificação política, ética e
espacial seria não só refeita, mas planejada. Vemos isso no filme Rua Cloverfield, 10 de
2017, com a integração de espaços em Life Support System. O apartamento é uma célula
de habitação que representa num plano atômico o campo das condições de habitar. O
átomo-habitat e o espaço isolado-conectado. Uma bolha privada de mundo do habitante
que vive só. Como forma egosférica, devemos tomar o apartamento como o lugar da
simbiose familiar e como constituição, desde os mais antigos tempos, de comunidades
habitacionais primárias que flui em favor do indivíduo e em sua simbiose consigo mesmo.
No cenário contemporâneo, esse modo da habitação torna uma época em que se vê um
epidêmico autodesdobramento do um em si mesmo e na multiplicidade de espaços e
outros interiores virtuais. Funciona aí um conglomerado de mecanismos vitais que evoca
situações globais esféricas de coexistência seja familiar, seja desenvolvida
tradicionalmente, seja em totalidades indistintas com associações sonambúlicas que
caem durante o século XX para forças centrífugas que dispersam o indivíduo. A separação
do indivíduo em células de mundo próprias, vistas como, micrototalidades imunológicas.
Deste ponto de vista, a socioanálise por desintegração e isolamento corre paralelo à
psicanálise por auto-exploração em uma situação diádica artificial”. Estamos falando da
existência enquanto egosfera. Os habitantes desenvolveram costumes elaborados de
auto-emparelhamento e se movem em um processo constante de diferenciação de si
mesmos e intensificação de si mesmos: processos de vivências.
A não simbiose com os outros que é a prática dos que vivem em apartamentos
deve ser interpretada como uma autossimbiose. Neste, a forma de par ou casal encontra
o indivíduo, por um processo de diferenciação de si mesmo, que se remete a um
interrupto si mesmo, como se fosse um outro interior ou de uma pluralidade de sub-eus.
Nesses casos voltamos para o caso de voltar-se para si mesmo. A convivência single se
modifica para uma mudança constante de situações nas quais o indivíduo se experimenta
a si mesmo. A individualidade do saber de si mesmo e do experimentar de si mesmo.
Veremos que o caráter das filosofias modernas teria traços fortemente presentes de
exercícios ou de filosofias da atividade e da ação como mostra a obra de Peter Sloterdijk
Morte Aparente no Pensamento. Para o sucesso do auto-emparelhamento devemos
pressupor os meios egotécnicos. São meios que são suportes mediadores usuais de
autocomplementação de vida que permitem aos seus usuários um regresso permanente
378

ao si mesmo e para a formação de um casal ou par consigo mesmo como companheiro


interior. As antropotécnicas estão para o homem e sua hominização, assim como, as
egotécnicas para o homem moderno e sua contemporaneidade. O individualismo
liberado é uma virtude de forma de existência em que viver seja uma existência mais
divertida que sabem em virtude das mediações na tentativa e possibilidade de atuar
sempre como auto-acompanhantes. Se o genus malignus quer uma reconstituição,
podemos dizer o homem contemporâneo sempre está em má companhia, vide a cultura
de single e solteiros do nosso século. Como vimos, estamos imersos em uma ilusão
individualista que na Modernidade virou algo sólido numa ontologia da separação, que
só pode ser materializada como evolução moderna das noções de meios. Meios
enquanto meios egotécnicos, que envolveram os indivíduos em novas rotinas de regresso
a si mesmo. Inicialmente, podemos imaginar as técnicas de leitura e escrita que foram
exercitados continuamente e de maneira inovadora de um diálogo consigo mesmo, um
diálogo interior, auto-exame, autodocumentação e autodomesticação, o consumo,
telecomunicação, inclusive com a possibilidade de amigos à distância. A materialização
da alfabetização como cultura ou do humanismo desenvolveu exercícios particulares de
auto objetivação e outros elementos de reunificação do “consigo mesmo” mediante a
própria apropriação do objetivado. A mente isolada, "tesouro cheio de representações",
cerne inexpugnável da subjetividade, argumenta Sloterdijk, é uma novidade em termos
"paleopsicológicos", uma recente penugem sobre maciças camadas de realidades
psicológicas mais antigas. A noção de que haveria um interior privado no qual o sujeito
poderia fechar a porta atrás de si, não surge antes da primeira vaga individualista na
Antiguidade. E, ainda assim, não conseguimos nos movimentar fora desse espaço da
inviolabilidade do pensamento, por mais recente que seja. A culpa, segundo Sloterdijk, é
da escrita: a escrita. Para o “observador” aparecer, ou seja, a invenção do homem capaz
de epoché, é preciso ter em mente quatro coisas. A primeira diz respeito à situação
política da pólis. O estabelecimento institucional da filosofia com a abertura da escola de
Platão em 387 a.C foi uma reação contra o colapso do modelo atenienese da pólis. A
política como necessidade deixará de ser uma suprema necessidade do coletivo e do
espírito. Houve um “fim da cultura da pólis”, se Hegel falou do “fim da arte”, podemos
falar aqui do fim do político enquanto “modo de ser”. Se a pólis perde força, surge um
mercado cosmopolita de teoria e ética em que uma intelectualidade pós-política se refaz
379

de pessoas particulares. Os ventos mudaram para tendências monárquicas e de impérios.


O platonismo nos ensina a observar o mundo a partir de cima para o baixo, que
obviamente deve ser entendido como uma metafísica política da era monárquica. Nesse
mundo os pensadores estão agora interessados em totalidades imperiais, causas
primeiras, a ideia como vimos de Sloterdijk da esfera.
Segundo uma importância de aspecto psicológico votada para os indivíduos. Os
chamados proto-psicólogos (como Aristóteles), registram que haviam indivíduos que
tinham uma tendência a criar distância do mundo, a criar uma distância deles e do que
estava ao seu redor. A filosofia original na antiguidade era algo ambivalente. Temos os
dois topos: Heráclito, que chorava, e Demócrito, que ria constantemente. Esse traço
comentado de ambos pelas fontes aparece até mesmo em suas estátuas. Para Platão, de
uma tradição diferente, pensar é o prazer mais elevado. Isso por uma razão: a essência
do pensamento é lembrar e o que devemos lembrar é o fato de que estivemos muito
próximos da essência divina e a única coisa que deve ser feita para eliminar os obstáculos
que não te permitem alcançá-la é lembrar claramente. Basicamente, deveria se tratar de
felicidade. Se você está em uma situação, por assim dizer, de paz, você pode pensar em
algo mais elevado, e então você tenta não apenas sobreviver, mas você tem outras
aspirações vitais. Nessa sociedade de consumo, todos os homens comparam sua
felicidade entre si. É por isso que se tornou muito difícil dizer quando você está feliz ou
pelo menos você está feliz. Você pensa constantemente que poderia ser mais feliz do que
você. O conceito de vida alcançado é um conceito perigoso, porque é o conceito de vida
alcançado pelos outros. Mas não funciona assim porque, certamente, na antiguidade os
pensadores eram conhecidos por ter sempre um rosto triste. Eram mais respeitados por
isso, seus compatriotas esperavam que tivessem aspecto melancólico e o cenho franzido
(ri). Era um truque muito bom, porque ninguém sentia inveja de alguém triste. É melhor
esconder sua boa sorte. O que me lembra uma frase de Walter Serner, o dadaísta, autor
de Manual Para Enganadores, que dizia que sempre que você se mudar a uma nova
cidade deixe que o rumor de que você tem câncer o preceda, isso reduz a inveja. Seus
competidores já não te levarão tão a sério. Poderia se chama até de uma certa
“melancolia”. Na tradição antiga já havia se atribuído uma tendência para filósofos
chorões como Heráclito de Éfeso. O próprio Aristóteles falou de que todos os grandes
homens tinham sido melancólicos. Cuidado mental e espírito triste seria uma síntese e a
380

receita para a produtividade. Aqueles que por sua natureza se afastam do mundo
parecem estar destinadas e dominadas por visões e intuições. Não seria raro que
posteriormente se veria pessoas perdidas no mundo, aquelas que têm muito a contribuir
com o social através do desvio que passa pela sua vida interior. Quem se retira par ao seu
próprio interior toma uma inclinação espontânea em realizar uma transição de estar fora
do sítio para um processo metódico de distanciamento. Não veríamos aí uma
transformação habitual da colocação entre parênteses das suas condições de vida
concretas em epoché natural? Na terminologia de hoje, imagens desse tipo seriam
localizadas na região das estruturas esquizoides, em termos psicanalíticos, pessoas que
não “acabaram de nascer” completamente. Um tipo de pessoa angustiada, mas também
produtiva, se manifesta na aliança entre melancolia e potência empreendedora. É bem
conhecida a relação da família Wittgenstein com o suicídio. Três dos irmãos de Ludwig
Wittgenstein cometeram suicídio e ele próprio sempre esteve próximo da ideia ao longo
de sua vida. O suicídio estava na corrente sanguínea europeia nos fins de XIX e inícios de
XX (Otto Weininger, autor de Sexo e caráter, livro tão importante para Wittgenstein, se
matou com um tiro em 1903, pouco depois de publicar o livro. Será que a semente está
mesmo no Werther de Goethe e mesmo na declaração tardia do autor de que o
romantismo carregava consigo uma doença? Esse bacilo da morte passa de metáfora a
materialidade na Montanha Mágica escrito em 1924 de Thomas Mann (outro autor
seduzido pela ideia da morte) e todas as radiografias de caixas torácicas com "pontos
úmidos". Efetivamente, ficou comprovado pela descoberta do hipnotismo que a forma
de ser sugestionável não fica arrumada de uma vez por todas com o nascimento e a
entrada do sujeito à idade adulta A aplicação do magnetismo em adultos evidenciou de
maneira clara que pode haver uma pós-vida contínua do nível de vibração fetal, o que
pode ter congelado os contemporâneos e seus primeiros hipnotizadores com a ideia do
abuso da relação magnética. Na novela de Thomas Mann chamada Mário e o Mágico de
1929, o calafrio atingiu um ápice, o abuso da relação pôde surgir como condição
psicológica da possibilidade do fascismo. Em Joseph Roth, a morte aparece
constantemente (suicídios, duelos, a guerra). Existe também em Roth a contínua
elaboração desse peculiar costume dos oficiais do Exército do Império, ou seja, o costume
da honra, da manutenção sempre tensa dessa honra tão frágil, qualquer arranhão deve
levar a um duelo ou a um suicídio (e em muitos casos o evento é o mesmo). Em Roth, o
381

próprio Império é um cadáver. Uma ideia que será mais tarde reelaborada na ficção de
Andrzej Kusniewicz.
Em 29 de abril de 1912, Wittgenstein joga tênis com o amigo David Pinsent,
numa tentativa de se livrar, ainda que temporariamente, da melancolia e da angústia.
Wittgenstein, contudo, escreve o biógrafo Ray Monk, chegou à conclusão de que o que
precisava "não era diversão, e sim maiores poderes de concentração". Para atingir tal fim,
continua Monk, ele estava preparado para fazer qualquer coisa, até mesmo a hipnose, e
tinha sido de fato hipnotizado pelo Dr. Roger. Wittgenstein preparou uma série de
perguntas sobre lógica, pontos de sua teoria que ainda não estavam claros, e deu ao
médico, para que lesse quando ele estivesse em transe mesmérico, ao que parece não
deu muito certo.
Terceiro seria fundamental se criar pessoas capazes de não ir para a guerra.
Trata-se da “diferenciação” do sistema educativo (como Luhmann diz), ou, segundo
Bourdier, o estabelecimento do “campo pedagógico”. A pedagogia germinou de rebentos
da sofística. Da retórica política do conflito da cidade democrática. A paidea,
originalmente tinha como pressuposto a instituição helênica da dupla paternidade. Os
pais biológicos deviam autorizar em entregar os seus filhos de certa idade para um “guia
de rapazes” que funcionaria como um segundo papel de pai, o pai espiritual. As
instituições originárias em matéria de orientação de rapazes seria o pretexto para na
paidea proliferarem e em todos os cantos da Grécia. Os jovens das escolas seriam aqueles
que deveriam ter práticas de ouvir. O ouvido para a configuração de uma alta cultura é
fundamentalmente para um adestramento do homem pelo homem, do se prestar
atenção às palavras e em quem as profere (professores e mestres). O ouvir passaria a ser
considerado como uma “inteligência” para a figura do discípulo. Sem ele não é possível
se compreender a formação da alta cultura. Os homens têm conhecimento do que
podem ser através de uma corrente contínua de presságios, designações e proclamações.
Os homens anunciam outros homens quando falam das possibilidades humanas. É uma
língua do melos, mythos e logos na qual os homens convidam seus semelhantes a
converterem-se em homens. Quem responde a esse processo de convite vai parar no
centro do processo de humanização. Ao serem penetrados por discursos, os indivíduos
experimentam um impulso não só de serem ouvintes da palavra, mas de se converterem
em seus autores. Desde sempre, a humanização foi um acontecimento no qual os
382

oradores eminentes ditavam aos seus semelhantes modelos de humanidade, histórias


exemplares dos heróis, antepassados, de grandes homens, artistas, santos. A esta força
da palavra devemos chamar de promessa. O homem precisa ser, digamos, prenunciado.
Antes mesmo de nascermos já não temos nomes que nos são dados e prometidos? O
homem tem de se prometido ao homem antes de colocar à prova, em si mesmo, o que
pode vir a ser. Desde cedo, foram os homens excelentes os grandes receptores, ouvintes
que levavam a sério uma predição ou promessa: Alexandre Magno com sua audição sobre
os heróis de Homero, Carlos XII com a tentativa de ser mítico em tempos modernos, sem
ler Plutarco, Francisco de Assis como bom imitador de seu maior mestre, o maior homem
que já existiu, Deus feito homem, ou as histórias rabínicas de um Messias vindouro que
traria a libertação do povo judaico. Ainda hoje, não vemos que as pessoas esperarem o
retorno do Jesus?62 O centro do profetismo não é a predição do futuro, nem a contenda
moral, mas o anúncio de que um dia, talvez em breve, pode aparecer um profeta, um
novo Messias, talvez tu. O discípulo é alguém que cede ao jogo da dependência

62
Jesus é o modelo original do sujeito que anula toda a pertença a um seio maternal. O que lhe dá a
consciência de apostolado nasce da façanha extremista de se legitimar completamente na dotação de
potência a do ser própria de um seio paternal urânico. A irradiação das palavras de Jesus divulgadas pelos
evangelhos canônicos é ativada, sobretudo, por transmitirem as mais claras afirmações uranofáticas dos
últimos milênios. Com as variantes gnósticas vemos isso ainda mais claro. Falam, como se o céu pudesse
dizer Eu. Nas palavras de Jesus, o céu é não o tema, mas o sujeito do discurso; as frases de Deus feito
homem são “manifestações”, substancialmente celestes, solúveis, no céu e naturais dele. Nietzsche
entendeu muito bem isso. Ele interpreta a semântica jesuítica de “pai”: o “sentimento de transfiguração
global de todas as coisas”, o “sentimento de eternidade, de última perfeição”, como também criou um
gêmeo e cúmplice do céu, o texto uranofático mais impressionante até hoje criado, vemos no Antes do
Nasce do Sol, na terceira parte de Assim Falou Zaratustra. NIETZSCHE, Friedrich Willhelm. Assim Falou
Zaratustra: Um Livro Para Todos e Para Ninguém. Tradução: Paulo César de Sousa. São Paulo: Companhia
das Letras, 2015, pp. 156-159. Quem está no céu sabe o que significa falar a partir dele. Na medida em que
o céu possui energia de seio, produz-se a autocomunicação da sua produtividade aos seus rebentos. A
partir desta seio-plenitude-consciência de acento masculino, pode-se compreender a metafísica do logos
do Evangelho de João na sua força sugestiva radiante através de milênios. A certeza de seio paterna parece
ser o segredo energético daqueles no mundo. A Oração do Senhor, também conhecida como o Pai Nosso,
é a oração mais conhecida do cristianismo, seu início começa com: “Pai nosso que estais no céu...”. Eles
são os verdadeiros existencialistas – indivíduos que sabem ser radicalmente de dentro para fora. O
elemento oceânico tanto a partir dos seus atributos envolventes e salvadores, como dos emanantes e
produtivos. Anoto à margem que a meditação da montanha de Heidegger realça a característica do mar
maternal no elemento seco telúrico. Gebirge – montanha, cuja primeira sílaba “ge”, alude a Gea, a deusa
Terra hesiódica, criadora dos céus, montanhas e mares. Béla Grumberger referiu-se a uma implicação
teológica do domínio do seio: a palavra hebraica rakh’mime, é traduzida, em abstrato, por “misericórdia”,
designa um dos atributos da “divindade” e corresponde, em si, ao plural de rekh’em, que significa “útero”.
Para os judeus, a Deus, que é tanto pai como mãe, corresponde, entre outros, o nome determinante el
male rakh’ mine, que significa “cheio de misericórdia”, mas literalmente, “cheio de útero”. Aqui há uma
aproximação direta entre divindade e útero – órgão que contribui para esta sinestesia e que,
simultaneamente, envolve o seu portador.
383

intelectual em nome de sua independência futura sob o risco de nunca mais se libertar
da sujeição escolástica. A exercitação de atenção e da receptividade disciplinar é
acompanhada de uma paralisia motora. Seria o começo de uma sedação via do estar
próximo e do sentar-se aos pés do mestre, é aqui que surge o homem sedentário no
sentido escolástico. Um sedentarismo diferente do termo mais habitualmente utilizado
como o do campo e camponeses com os seus assentos. Para se aprender é preciso,
digamos, “estar parado por um momento”, “estar com os ouvidos abertos”, estar em
silêncio, ver e escrever. Na Filosofia da Índia antiga, o sujeito desinteressado que está na
raiz de toda a existência interessada chamava-se de atman, que significa tanto “sopro”
(hauch, fôlego, sopro, hausto) como “espírito” e tem parentesco com a palavra de origem
alemã aten (hausto, pneuma, respiração). O budismo opõe uma espécie de concentração
“sem respirar” (atemlos). Se pensarmos modernamente, a revitalização da vida
contemplativa abriria um espaço de respiração (Atemräume), talvez o espírito deva a sua
origem a um excedente de tempo, a um otium, uma respiração pausada. Poderíamos
reinterpretar assim o pneuma, que tanto quer dizer “respiração” como “espírito”. Quem
fica sem fôlego, sem alento, fica sem espírito. Os paralelos com o fenômeno do
eremitismo cristão devem ser vistos, e a afinidade entre a prática atlética-somática e a
preocupação espiritual do yoga (se trabalha com as máximas mobilizações de energias
no sentido da fisiologia mística, o foco da consciência reside sempre na ascensão para a
tranquilidade) e espiritual é óbvia. A reverência mostrada para o silêncio tanto na Índia
(onde o homem santo é conhecido como o muni, que significa "homem silencioso") como
nos desertos egípcios aponta na mesma direção. Em ambos os centros de ascetismo, as
pessoas entenderam que qualquer forma de discurso comum equivalia a uma profanação
que mais uma vez envolvia a alma na mesma coisa da qual sua retirada era para libertá-
los. Pode-se dizer que quem está imerso não anseia por experiências. O “nascimento da
alma através da água”, desempenham um papel fundamental, no resgate da recordação
mística do seio protetor. O sujeito imerso é capaz de sentir o presente enquanto um
fluído envolvente. Em variantes não-psicopáticas de experiências íntimas místicas, o
motivo da imersão possui uma contrapartida por um componente de respiração ou forma
pneumática. A imersão mística não é um auto apagamento antecipado, mas uma
profunda inspiração. As chamadas práticas taoístas da “respiração embrional”,
permanecem por razões óbvias, inacessíveis aos europeus e por grande parte de nós.
384

Mas a associação entre imersão e respiração encarregam-se da emersão no meio da


imersão. A livre respiração é responsável por que o místico ser-todo-em-um-único-
elemento mantenha o sentido de ser-todo-em-liberdade. Um breve olhar sobre o
vocabulário com aqueles articuladores havia articulado seus objetivos espirituais desde
os tempos antigos já mostra quão radicalmente a espiritualidade indiana é baseada na
elaboração de motivos de secessão. Os primórdios da antropotécnica indiana referem-se
a um processo mental e psicológico arcaico que pode ser atribuído ao período pré-ariano.
Não é coincidência que um dos nomes mais antigos para o asceta seja shramana, "o
trabalhador". Uma palavra que lembra diretamente os ponos gregos e os atletas que se
orgulhavam de sua filoponia. Supostamente a palavra ashramas, que é atribuída ao O
shram da raiz sânscrita e coletivamente refere-se aos quatro estágios do Brahmaman,
inicialmente referindo-se aos exercícios dos ascetas e dos eremitas da floresta; Isso
também parece ser a origem do termo “a shram”, que originalmente denotava a
erradicação, um lugar de prática do asceta, antes de se ramificar em todos os tipos de
locais para retiro meditativo, incluindo os assentamentos parecidos com mosteiros em à
vizinhança de um professor espiritual.
Os platônicos latinos (como São Paulo) adotaram a figura do homo interior, que
é uma instância mental que fica depois da retirada do homem externo, um tema que
Husserl repetiu em suas experiências mentais sobre a autoconstrução do mundo através
da destruição do mundo. Os estoicos delimitaram o resíduo mental com a imagem da
“estátua interior”, cuja elaboração deve comprometer-se a vida prática. Os místicos
medievais iriam falar de uma centelha da alma ou do sutil residente da cidadela-muralha
interior. Na idade Moderna, Adam Smith introduziu na sua teoria dos sentimentos
morais, o chamado “observador imparcial” interior, que tinha como função aconselhar o
indivíduo na tomada decisões em conflitos emocionais e sentimentais. Os idealistas
alemães falariam em sujeito transcendental, que é interpretado as vezes como um
avanço de um espírito absoluto no sujeito individual. Os chamados “pós-idealistas”
convocam um sujeito crítico que é capaz de ver no escuro e consegue invadir os
“contextos ilusórios” (ideologias na maioria das vezes) da catástrofe geral. Na versão mais
recente do mito da testemunha vemos a teoria dos sistemas com Luhmann, temos em
tela um observador que observa de maneira inteligente as ações de outro observador,
em que o pensamento, sem relação com pontos externos de ancoragem da “verdade”, é
385

visto como um diferencial entre observações de primeira e segunda ordem ou superior.


Não menos importante, no âmbito da estética temos o esquema de morte aparente
cognitiva na obra de Paul Valéry que em 1894, queria reunir características
intelectualizadas em um personagem chamado de Monsieur Teste, um nome bastante
curioso, pois possui duplo sentido. Pode ser “cabeça” e “testemunha”. Uma figura
artificial que incorpora um platonismo e dandismo. Esse romance é uma filosofia
experimental que explora o primado da teoria sobre a vida e a separação do espírito
pensante do seu suporte biológico. Sabemos que Valéry estava irremediavelmente
envolvido com a questão do pensamento como artefato maquínico e seu posicionamento
físico no interior do crânio, tudo isso mediado por Descartes, cujo crânio Valéry teve em
suas mãos. Em Monsieur Teste, Teste também pode ser lido como cabeça (tête, testa) e
como texto (texte), e as duas tentativas se complementam, fiéis ao mostrar o projeto de
Valéry de uma ficção pura, autorreferente como uma máquina. A ficção de Valéry toma
a cabeça como cenário (o pensamento, o cogito) e, nisto, é precursora de Beckett, que
apresenta o cenário de fim de partida como um crânio sem pele e sem carne, por onde
passam fantasmas e figuras mortas (duas janelas como olhos e a porta como a boca
escancarada). Por isso que Agamben fala de Teste também como (testis), testemunha, no
ensaio "L'io, l'occhio, la voce", em La Potenza del Pensiero.63
A cultura é um sedativo não químico. Ajuda para permanecer sentado como uma
consequência de uma relação com o mundo em postura sentada. É inegável tanto em
filmes, seriados, histórias que os mestres têm um certo “autoritarismo” por postura e
disciplina, principalmente corporal e a do silêncio. Por isso, o Eu dos heróis e dos profetas
é originalmente aparentado com o dos sujeitos hipocondríacos e dos que sofrem
enxaquecas. Aqui se atingiu o ideal e o auge com o estoico da aphátheia. A instituição do
“tempo escolar” também contribuiu para a produção de homens capazes de epoché, o
tempo passado na escola era entendido como libertação de outros afazeres. E se O
Pensador (a famosa estátua de um homem sentado com a mão com queixo) fosse, na
verdade, um ouvinte? Ou melhor, se fosse pensador na medida em que se instaura como
ouvinte? Existe uma lenda do século VI que diz que João Clímaco, psicagogo cristão, que
se consumiu durante quarenta anos no seu retiro desértico em Tola, dividiu a cela com

63
AGAMBEN, Giorgio. A Potência do Pensamento: Ensaios e Conferências. Tradução: António Guerreiro.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015, pp. 83-95.
386

um monstro marinho, com um corpo selvagem e pesado. Os sujeitos do presente,


compartilham as suas quatro paredes com um outro monstro selvagem, este cérebro
inquietante, desenfreado e prenhe de futuro. No tratado Sobre a Vida Contemplativa,
Fílon de Alexandria discorre sobre a relação entre silêncio e escuta e sugere a escolha (o
cultivo) de uma postura fixa para o ritual da escuta. Foucault comenta esse tratado em
uma conferência dada em 1.982 nos Estados Unidos, seriam "as técnicas de si". Em Sobre
a Vida Contemplativa, Fílon de Alexandria descreve os “banquetes do silêncio”, que não
têm nada a ver com esses banquetes de devassidão, em que há vinho, rapazes, orgias e
diálogo. Aqui, é um professor que oferece um monólogo sobre a interpretação da Bíblia
e dá indicações muito precisas sobre a maneira como convém escutar. Por exemplo, é
preciso assumir sempre a mesma postura quando se escuta. (Ditos e Escritos, Volume IV,
texto nº 363). É significativo que o projeto inicial de Rodin tenha sido o de abarcar, nessa
imagem, a partir de Dante, tanto o poeta quanto o pensador, pois na estátua temos
também Dante diante do Inferno, ou ainda, Dante simultaneamente diante do Inferno e
de seu poema. Se lhe chegam vozes vindas do Inferno, e se essas vozes configuram a
espessura poética da Comédia, é precisamente aí que o pensador se instaura
necessariamente como ouvinte, dois lados entre muitos na emergência contingente do
poeta. Pose e situação são análogas àquelas do Moisés do Antigo Testamento, em parte
figurado por Michelangelo, o pensador-poeta-ouvinte sentado na pedra, a mesma pedra
que feriu com seu cajado para dela extrair água, ouvinte em sua relação com o povo
(essas vozes vindas de uma espécie de Inferno, o deserto), poeta em sua relação com
Deus (é ele quem porta a palavra). Não é Moisés um dos principais modelos de Freud?
Ao abrir seu Traumdeutung, sua interpretação dos sonhos, Freud não evocou justamente
Virgílio na epígrafe, aquele mesmo Virgílio que serviu de guia a Dante? Freud resgata uma
frase da Eneida, Flectere si nequeo superos, Acheronta movebo, se não dobro poderes
elevados, moverei o Inferno, ou seja, atento ao abismo do inconsciente, pensador-
ouvinte (escuta-dor, diria Lacan? ou Joyce?), sempre na mesma postura, com essa
"atenção flutuante" de que fala Freud em Recomendações ao Médico que Pratica a
Psicanálise, de 1912, uma sorte de escuta contemplativa, aberta e porosa àquilo que
ainda não se sabe, aberta àquilo que não se espera. Os psicólogos não são hoje os maiores
escutadores que temos?
387

Em suas cartas a Fliess, Freud frequentemente reforça um tema recorrente em


sua obra: a ideia de que a psicanálise toca forças arcaicas com um instrumental moderno.
Na carta de 17 de janeiro de 1897, diz Freud (1986, p. 225):

O que diria se eu lhe contasse que toda a minha novíssima pré-história da


histeria já era conhecida e foi publicada mais de cem vezes, embora há muitos
séculos? Você se lembra de que eu sempre disse que a teoria medieval da
possessão, sustentada pelos tribunais eclesiásticos, era idêntica à nossa teoria
de um corpo estranho e da divisão da consciência? Mas por que será que o
demônio que se apossava das pobrezinhas invariavelmente abusava delas
sexualmente, e de maneira repugnante? Por que é que as confissões delas,
sob tortura, são tão semelhantes às comunicações feitas por meus pacientes
em tratamento psíquico?

Na carta seguinte, de 24 de janeiro de 1897, escreve Freud (1986, p. 228):

A ideia de trazer as bruxas à cena está ganhando força. (...) A história do


demônio, o vocabulário dos palavrões populares, as cantigas de roda e
costumes de infância - tudo isso vai agora adquirindo significado para mim. (...)
Estou começando a apreender uma ideia: é como se, nas perversões, das quais
a histeria é o negativo, estivéssemos diante de um remanescente de um culto
sexual primitivo (...) uma religião demoníaca primitiva, com ritos praticados
em segredo, e compreendo a terapia rigorosa aplicada pelos juízes das bruxas.
Os elos de ligação são abundantes. Outro afluente dessa corrente de ideias
provém da consideração de que existe uma classe de pessoas que, até os dias
de hoje, conta histórias como as das bruxas e as de meus pacientes; ninguém
lhes dá crédito, mas a confiança que essas pessoas tem em suas histórias é
inabalável. Como você deve ter adivinhado, refiro-me aos paranoicos.

Freud apresenta, portanto, uma espécie de sobreposição da prática psicanalítica


no contexto medieval das bruxas, e o paralelo indicaria, por exemplo, a possibilidade de
pensar a transferência entre juiz e bruxa, ou ainda, a carga de "realidade" nas "confissões"
das bruxas (assim como se pode pensar a carga de "realidade" nos relatos de abusos e
violações nos pacientes de Freud). Esse é o nó central de parte das pesquisas iniciais de
Carlo Ginzburg: em Os Andarilhos do Bem, por exemplo, de 1965, ele escreve que "a
riqueza da documentação friulana permite reconstruir esse processo", ou seja, o
processo progressivo de distorção dos relatos das "bruxas" em direção a uma
demonologia oficial, desenvolvida pela Inquisição, "mostrando como um culto de
características nitidamente populares, como o que tinha o seu centro nos andarilhos do
bem, foi pouco a pouco se modificando sob a pressão dos inquisidores. Mas essa
discrepância existente entre a imagem proposta pelos juízes nos interrogatórios e aquela
388

oferecida pelos acusados permite alcançar um estrato de crenças genuinamente


populares, depois deformado, anulado pela superposição do esquema culto.
Por fim, a “invenção do indivíduo” nas assim chamadas grandes culturas só foi
possível pela introdução de práticas de sossego e silêncio. Para isso foram decisivos a
escrita e o exercício subsequente de leitura sossegada. Não existe o ser humano interior
antes do produzido pelos livros, as celas dos conventos, células monacais, monges,
monastérios, os desertos e as solidões, atividades e práticas típicas de uma topologia de
retiro e solidão. Quem está só em sossego pode pensar melhor. Só depois que o próprio
ser humano se converteu em cela ou camera silens pode habitar nele a razão com sua
voz suave. Ela é o que torna possível que indivíduos se retirem da sociedade para se
completarem a si mesmos com as vozes dos autores: quem pode ler também pode ser
só. Apenas a alfabetização permite a anacorese: o livro e o deserto estão ligados. A obra
de Jacques Derrida cintila sob a sugestão desse comentário desde a Farmácia de Platão
temos os indivíduos que "se retiram" da sociedade, a relação entre leitura e solidão, até
Mal de arquivo: completar o "si" com as "vozes dos autores", a articulação livro e deserto,
arquivo e vazio. A instituição do “tempo escolar” também é importante, porque o tempo
passado na “escola” era entendido como libertação de assuntos e obrigações. O ócio e a
escola passam a ter parentesco (schola, scholé). A cultura escrita deveria ser o conceito
em que a bíos theoretikós deveria ser pensada sempre em conjunto com a formação de
atitudes mentais pela nova conquista da realidade pela palavra escrita. O modo de
“olhar” o mundo dos primórdios é condicionado pelo modo europeu de ler. Mundo e
livro passam a ser análogos. Nossa tradição de livros em geral seria altamente
predominante por período superior a 2000 anos. Vemos papiros, manuscritos,
pergaminhos, epístolas, tábuas, a Bíblia, Constituições, Leis, Códigos, Cartas, diários,
livros, menus, etc.
389

O Pensador. Famosa escultura de bronze do escultor francês Auguste Rodin.

O indivíduo, no sentido usual das “sociedades modernas”, é uma criação tardia


das altas culturas. A emergência do indivíduo em sociedades posteriores requer que em
um determinado momento tenham surgido novas práticas de silêncio também chamadas
de endoretóricas. Mas como essas práticas começam nas culturas mais avançadas? Foi
apenas com a escrita e o consequente exercício da leitura silenciosa que esse momento
decisivo ocorreu. A Individualidade capaz de reconhecer em si pressupõe que os
membros do grupo podem ser removidos para certas “ilhas de tranquilidade” ou
interiores silenciosos (campos, cavernas, quartos, rios, etc), não seria essa uma
modificação para os tempos de hoje de spás, massagens, pessoas procurando campos,
lugares tranquilos, turismo, casas de campo, estâncias de férias, e-villages e gated
communities? Só assim é que chamaram a atenção para uma possível diferença entre as
vozes do coletivo e as vozes interiores, uma das quais se destaca, finalmente, como se
fosse próprio. Todo esse complexo de noções sobre o confinamento dos pensamentos
no interior do sujeito pensante adquiriu na história recente da aparência privada uma
importância absurda. Seria ainda mais atrevido pensar que foram justamente essas
noções que ajudaram a criar a aparência privada.
Assim se fez a Academia de Platão. As regras dali não pareciam em nada com as
regras da cidade de Atenas ou de qualquer outro local do ambiente. Eram regras especiais
390

da liberdade de conversação dentro do lema indicativo na porta: “que só entre quem


sabe geometria”. Temos a história de sete sábios juntos olhando uma esfera em um tipo
de templo. Mostra-nos o estudo de um mosaico do século I antes de Cristo conhecido
como “Mosaico dos Filósofos da Torre Annunciata” em que sete homens idosos em um
cenário idílico, não muito distante de uma cidade Grega chamada Akrokorinth ou Atenas.
Os sete estão reunidos em torno de uma Esfera, um mundo e uma esfera divina
representando o símbolo de plenitude de Parmênides e Empédocles. Um pódio e uma
caixa acabam recebendo a função de altar. O Globo nos diz uma mensagem: “venha e
pense eu! E cumpra-se em mim”. Sobre as cabeças dos filósofos reunidos está pendurado
um relógio de sol. O mosaico pode ser interpretado como uma “schola” (escola) na qual
esses filósofos provavelmente conheceram o “protofilosofo” Tales (de Mileto).
A filosofia nasceu (e se separou da política) de uma atividade de confraria de
amigos, um lugar dos eleitos, escolhidos, um campo chamado skholé – a escola. É por
isso, que escola pode significar uma “casa de ensino”, mas também, em sentido original,
uma filiação entre pessoas que fazem investigação conjunta, ainda que, não raro,
distantes umas das outras no espaço e no tempo. Os livros são cartas dirigidas para
amigos, mas amigos desconhecidos. A escrita, a linguagem, as palavras poéticas ou
religiosas foram o caminho pelo qual, desde os antigos, iniciou-se a formação humana. O
homem foi sempre um exercício de reclusão. Se não quer falar, pode escrever. Isso é o
que hoje denominamos de Humanismo, já decadente: as formas de domesticação do
homem porque o homem fala de si mesmo. Estamos no umbral de um novo compromisso
da cultura na qual o humanismo tradicional deveria ajustar suas contas com a terceira
cultura, da qual jamais deveria ter tomado nota. E a terceira cultura não são nem as
ciências puras nem as humanidades, mas todas as engenharias. Quando Wilhelm von
Humboldt e alguns outros inventaram a universidade moderna na época das guerras
napoleônicas (o que viria a se chamar neohumanismo prussiano), se criou um diálogo
entre França e Alemanha, um diálogo de grande transcendência sobre o modo em que
haveria que educar essa nova época. A resposta foi uma mistura de neoclassicismo e
neorrealismo. A batalha cultural do século XIX consistiu em sela a paz entre os sábios e a
tradição clássica, em reconciliar o humanismo de Weimar com a cultura das máquinas.
No futuro teremos uma nova fórmula potente que integre os conhecimentos teóricos,
391

técnicos e a cultura das engenharias nessa corrente base que é a literatura, a primeira
arte da escritura. O progresso nunca nasce da renúncia.
Mas, acima de tudo, na Europa Central, no norte da Europa, o poder educativo
do humanismo clássico acabou. Nos anos 50 e 60 do século passado, houve na Alemanha
um renascimento do humanismo clássico, que reagiu contra a era bárbara nazista. Então
a modernização generalizada, que começou após a Primeira Guerra Mundial em todo o
mundo ocidental, foi imposta novamente. Desde então, nem o livro nem a Igreja
desfrutam de poder como educadores. Esse lugar é agora ocupado pelo capitalismo. A
pedagogia que formou o homem com a palavra escrita e a palavra de Deus foi substituída
por outra em que prevalece a voz do mercado e do dinheiro. Hoje em dia há apenas um
grande tema de estudos, são os estudos de Capital (estudos da capital) ou os estudos do
dinheiro (estudos do dinheiro). Todos os universitários são transformados pelo poder
educativo do mercado, incluindo medicina ou ética. Desde que existe como gênero
literário, a filosofia recruta seus seguidores escrevendo de modo contagiante sobre amor
e amizade. Ela é não apenas um discurso sobre o amor à sabedoria (polymathie), mas
também quer impelir os outros a esse amor. O acesso da Europa antiga ao mundo da
experiência está pré-configurado por adestramentos gramaticais, com efeito, nesta zona
de cultura escrita, a própria matéria do mundo é formada segundo a sílaba, a linha, a
página, o parágrafo e o capítulo, colocando a nós, os leitores, em uma situação de que
somos observadores que guardam distância. Cícero inventou o conceito de “cultura”
ainda hoje válida para comparar o cultivo da alma com o cultivo do campo. Para ele era
óbvio que a melhor maneira de cuidar do campo da alma era com a literatura. Ler
funcionaria como uma forma de colher no campo do saber, o homem que ler vira um
adestrado discreto que pode ter a capacidade, por exemplo de epoché. Quem aprendeu
a olhar para rolos escritos e páginas impressas está já praticar distâncias em relação ao
escrito, que por sua vez, mantém distância ao falado e ao experimentado. Se Heidegger
falava em que pensar o agradecer formavam um par, o ler e colher não seria diferente.
O leitor precisa antes de tudo, saber ler, ou seja, ter sido ensinado a ler. A partir disso,
ele se torna um agente de uma nova forma de concentração, ele não colhe apenas, mas
torna-se ele próprio uma coleção, uma pessoa que se encheu de saber e que anda de um
lado para outro entre silos internos e externos. Homens podem ser bibliotecas internas
com os mais diversos livros, inclusive o livro da sua própria vida. É por isso que como
392

homo humanus no momento em que negocia a sua existência, como ser-posto-adentro-


do-nada na antecâmara entre memoria interior e arquivo exterior. O Humanista é aquele
quem pode dizer que “sou um homem”, pois nada do que está escrito lhe é estranho. O
indivíduo seria um diário vivo ou um “bloco de notas de milagres”, no qual todo o
relatório das suas experiências estaria gravado-registrado como uma crônica neural.
Quanto mais preenchida, mais as experiências novas vão sendo possíveis como título de
anotações anteriores. Indivíduos, nesse sentido, são portfólios vivos da memória de si
mesmos. São arquivo, e ao mesmo tempo, arquivista de sua história individual. Cada um
tem também a possibilidade de se desligar da aquisição de novas informações e de
mergulhar em trabalho de “arquivos interiores”, numa linguagem mais comum,
“experiência de si”. Ao consultar o arquivo do Eu, se utiliza a propriedade da memória de
não guardar apenas os “conteúdos” ou informações, mas também recordações das cenas
ou situações informativas nas quais os “conteúdos” foram gravados.
Além disso, a argumentação de Sloterdijk nessa digressão se aproxima das
questões levantadas por Derrida na Gramatologia: a "transmissão de pensamento" de
que fala Sloterdijk é um dos tantos nomes da metafísica da presença, na medida em que,
culturalmente, o Ocidente tem a necessidade de manter seus "finados reis divinos" e
"deuses", que "mantiveram em marcha a história do mundo como uma série de guerras
entre esses grupos de possessão fundados na telepatia e na psicose da influência, mais
bem conhecidos como “culturas”. A transmissão de pensamento liga-se, como
procedimento, forçosamente à presença de um iniciado, um mestre. Um sistema
hierarquizante de isolamento do sujeito, um modelo de dependência, contrário àquele
da escrita, que forneceria uma fenomenologia do isolamento comunicativo/produtivo. É
significativo, portanto, que Sloterdijk encerre a Digressão com uma menção a Freud e à
cena analítica, dentro da qual o próprio Freud, segundo Sloterdijk, eram reativadas certas
"funções paleopsicológicas". Freud possui uma conhecida, mas não muito expandida
ideia de tentar definir o homem como um enigma topológico, como uma criatura que
nunca pode deixar de se perguntar: onde estou na realidade? Assim, surgia uma nova
filosofia topológica, da localidade, que se distribuiu nos espaços da trinca do espaço
anímico: Id, Ego, Supergo, que quer oferecer uma orientação filosófica para a pergunta
do – onde está o homem? Obviamente que, a resposta para uma pergunta como esta
não depende da psicologia, mas da teoria do espaço compartilhado. A psicologia
393

ocidental é uma das formas científicas do individualismo metafísico, ela está preocupada
com a interrogação sobre o “quem” e o “como”.
É somente com uma retirada do espaço social vazio que a noção de Deus como
primeiro leitor de pensamentos se tornou tão poderosa. Ao caminhar para o deserto,
forço Deus a me vigiar e dar atenção para mim. É exatamente para o deus dos eremitas
que se transfeririam os restos da função participativa íntima nos grupos primitivos. É ele
que garante que o asceta no deserto não está sem deus parceiro e acompanhante, que
o envolve, o observa e o espreita. Só com a escrita se explodiu as linhas do círculo mágico
da oralidade e emancipou os leitores do totalitarismo da dala em seu imediatismo
espaço-temporal. A era oral do mundo coincidiu com a pré-história mágica e
manipulativa das almas, pois a situação normal era exatamente a possessão imediata
pelas vozes e ruídos dos membros das ilhas antropogênicas. Os humanos advêm de uma
situação de separação. Uma ilha é uma ilha porque está isolada e a realidade humana é
o resultado de uma grande operação de isolamento. O processo conducente a realidade
humana é na autorreclusão de um grupo humano, ela transforma os habitantes do grupo.
Inicialmente não é a linguagem, todavia, porém, nós nos fechamos dentro de uma
campana sonora especificamente humana: descendentes de uma seita acústica. Vivemos
em nosso ruído e, desde sempre, o ruído comum foi a realidade constitutiva do grupo
humano. Hoje, pela primeira vez na história, os humanos estão rodeados de isolantes
acústicos. Em outras palavras, o habitante de cada departamento decide o que ouvirá e
o que não ouvirá. Isso é uma grande realidade de nossa época. Basta vermos o “total
chamamento” de eventos pop, do Festival de Música em Paris. Nesse momento, homens
decidem submergir no ruído de um grupo ocasional, perdem a capacidade de decidir.
Pela manhã, quererem fazer participação ao se levantarem dentro de um apartamento
onde estão sós e, em princípio, reina o silêncio matinal. Seu gesto constitutivo, sem seu
ciclo de vida cotidiana, consiste em eleger uma música ou uma frequência de rádio que
lhe permita romper o silêncio noturno. Pela primeira vez, existe, uma espécie de desjejum
acústico. Os mediólogos do século XX, McLuhan e Debray, fizerem notáveis notas acerca
da compreensão das realidades insulares que mencionamos
Pela própria natureza do assunto as chamadas curas psicanalíticas, como visto
antes no magnetismo animal e no mesmerismo, deveriam exibir efeitos participativos
pré-verbais, que a ilusão individualista havia deformado e convertido em mistérios de um
394

lugar extravagante. Outras qualidades inseparáveis da individualidade também estão


ligadas à possibilidade de se distanciar e acessar a calma e o silêncio. Uma cultura que
permite que as pessoas se retirem do ruído do grupo compensa seus representantes com
o acesso ao que pode acontecer em suas próprias cabeças. A separação do público e do
privado, esses dois conceitos, tão importantes na política, refletem a diferença entre os
ruídos familiares modestos e o tumulto nos grupos. O que mais tarde será chamado de
política não é, no começo, mais do que uma forma cultural do hábito de gritar. Assim, os
seres humanos vivem sintonizados em um círculo mágico de proximidade onde a lei
fundamental é a intersubjetividade, tal como foi concebida na era pré-moderna, é a do
fascínio do ser humano pelo ser humano.
O silentium conventual trabalha com essa diferença para reconhecer a voz suave
de Deus e a voz alta dos humanos. In interiore homini habitat veritas (no interior do
homem habita a verdade). Sócrates em seus transes extáticos eram um sono da razão
que não gerou nada além de vozes interiores, ideias e teoremas. Santo Agostinho insiste
em que, com o corte do silentium, a verdade só pode encontra-se onde as coisas sucedem
suavemente: junto ao jardim platônico entram aqui em consideração, sobretudo, as casas
de Deus. Grupos de especialistas surgem com o comprometimento de verdades difíceis
e de difícil acesso. Eles tomam a verdade como uma responsabilidade própria
transfigurados na imagem do mago, do erudito, do ancião, sabem daquilo que está
coberto, do presente, do futuro. Consiste em satisfazer as evidências de primeira ordem
com as experiências e opiniões coletivamente armazenadas. Uma figura primeira que
aparece é o xamã, o sacerdote, o profeta, o vidente, escriba, o filósofo. Como figuras
secundárias teremos os simples membros das tribos, das ilhas, os analfabetos, o paciente,
o crente, do leitor, o espectador. Não haveria existido nenhuma “sociedade”, nenhum
“povo”, nenhuma “cultura”, se, ao menos tentativamente, não teria desenvolvido os
traços de um sistema bicameral de acessos a verdade, cujo primeiro elemento represente
uma House of Common Knowledge, com os sábios comuns como membros, e uma House
of Cognitive Lords, onde deliberam os mais sábios, os magos, os especialistas e
professores. O deixar-se ver cria um terreno de confiança no qual a vigília se transforma
em saber. Nele, o animal-homem luxuoso pronto para o alarme passa para o campo
humano. A formação humana sucede em virtude de a metamorfose da vigília animal
como co-saber humano de coisas, que um dia, se chamará de mundo. O luxo torna os
395

homens possíveis e, neles, o mundo consciente. Se acreditarmos que os homens são


desde seu princípio, animais que, reciprocamente se habituam mal e se deixam ao seu
arbítrio, como desde sempre, velam e zelam por si e a si mesmos e se dão mutuamente
mais segurança e conforto. Assim, a humanidade nasce de uma secessão da natureza
anciã. Um nascimento do homem por um “espírito de vigilância”. Nas hordas primitivas
teríamos a crescente incubadora de atenção, onde veríamos empatia, cumplicidade,
compartilhamento de sons, etc. Uma cumplicidade para a máxima proximidade. Através
da vigília enquanto grupos humanos iniciou-se a conversão dos homens em promotores
de homens mais sensíveis. O alegre velar, transforma o homem em mecenas do universo.
Todo o luxo provém de velar os outros. A própria existência do despontar do mundo entre
os homens tem como pressuposto o precário tornar-se aberto ao mundo que se
consumaria na evolução de luxo do animal da atenção chamado homo sapiens. Um
comunismo primitivo de atenção formador de uma evolução em tornar o individualismo
da consciência do mundo e de si próprio. Nesse contexto a chamada “cultura” é sempre
um descendente de um mecenato. O fomento do homem por ele mesmo. Um conceito
que foi inicialmente introduzido por Dieter Claessens em Das Konkrete und das Abstrakte:
Soziologische Skizzen zur Anthropologie (O Concreto e o Abstrato: Esboços Sociológicos
Sobre Antropologia) de 1993. Um animal mais desperto despertou mais que os restantes
por ter colocado em sua volta mais distância que todos os outros à sua volta. Nessa
distância com o meio-ambiente que garantia o velar coletivo começou-se a descolar e
florescer o supérfluo, o excedente, o interessante, o risco. Quando os primeiros homens
proferem a primeira palavra para o mundo, eles traçam linhas imperceptíveis em torno
de tudo que há, para que os olhos do animal de luxo possam abarcar, circunscrever, o
todo, o seu todo. A primeira palavra para o mundo poderia ser: grego (kosmos; joia),
latino (mundus; cavidade circular), russo (mir; aldeã), germânico (wereld; geração).
Sloterdijk (2008, pp. 195-196):

A própria existência do despontar do mundo entre os homens tem como


pressuposto o precário tornar-se aberto ao mundo que se consuma na
evolução de luxo do animal de atenção homo sapiens. A partir do comunismo
primitivo da atenção pode-se, graças à mais arriscada de todas as evoluções
tornar o individualismo da consciência do mundo e de si próprio. Neste
contexto, a cultura tanto a “avançada” como a primitiva, é sempre
descendente do mecenato, i.e., um efeito do fomento do homem pelo
homem. O mecenato primitivo consiste na mútua dádiva de vigilância
396

mediante a qual se pode estabilizar o clima favorável a evoluções improváveis.


Em tempos posteriores que hoje chamamos de antigos, a dádiva primitiva de
atenção tornou-se, sob o título de amizade, um tema da humanidade, o que
aponta para um tornar-se problemático da intimidade nos antigos mundos de
relação macro-urbanos e imperiais. A saber, não é a interioridade protegida
pelo poder que cria a atmosfera óptima de cultura avançada – como sugeriu
Walter Benjamin numa arriscada observação sobre a cultura burguesa tardia,
mas a intimidade protegida pela atenção. Já na polis ideal de Platão salta à
vista a conexão entre a cultura avançada e o ofício de vigilância.

É sabido que a evolução humana passou por várias fontes de atenção. Uma delas
pode ser vista pela significativa teoria da rivalidade mimética de René Girard. Os
fenômenos da atenção parecem capazes de uma tripla explicação: I – descreve a atenção,
em parte mórbida, do rival em relação a um objeto desejado por outro que não ele; II –
assinala a atenção fascinada que é dada pelos membros de um grupo agitado pela crise
ao assassinato do bode expiatório, à agora numinosa vítima de violência que o origina o
sagrado ; III – fundamenta a atenção com que nas sociedades pré-modernas, deve ser
assegurada a consideração geral perante as proibições de imitação preventivas de crises.
As duas obras quem podemos observar isso é A Violência e o Sagrado (1972) e Coisas
Escondidas Desde a Fundação do Mundo (1978).
Poderia se possível dizer que a “humanidade” no seu contexto de todo, é um
produto da intensificação revolucionária luxuosa da atenção, portanto, a subjetividade
humana ganha contornos para além, ou talvez, para anteriormente, pensarmos de uma
autoconsciência individualizada, mas a partir de uma colisão primitiva de simbiose da
vigília do indivíduo e a vigília dos seus co-veladores. De agora em diante, devemos
trabalhar com a ideia de uma unidade, a mais mínima que seja, de autoconsciência ser já
uma díade, com o próprio eu e o seu velador e o indivíduo vigilante e o outro eu velado
por ele. É por isso que Heidegger trabalha com a imagem de um discurso pastoral ético.
Ele toma essa condição de duas formas, uma: da imagem do bom pastor cristão que faz
por suas ovelhas. E outra: metáforas bucólicas-campestres do jovem pastor. Os homens
têm de prometer a si a vida, antes de poderem conduzi-la. É decisivo para nós, que
acontece sob uma situação de promessas dispensadoras de vida, estamos desde o início
até o nosso fim, obrigados ao respectivo cumprimento. Sem uma canalização em forma
de afluxos constantes de afirmações que nos prometem e confirmam nossa vida, não
poderíamos existir. O custo de nossas vidas sempre vem hipotecado em forma de
promessas. Promessas que quase sempre são impossíveis de serem cumpridas. Quando
397

as mães tomam seus filhos em seus braços e lhes afiançam que “tudo vai ficar bem”, elas
prometem mais do que é possível cumprir, mas também não podem deixar de o fazê-lo,
se não quiserem, em má ocasião, deixar as crianças mergulhadas na insegurança. Os
homens não chegam ao mundo como indivíduos sólidos em mundos robustos, antes o
contrário, o mundo abre-se aos poucos para eles, por terem nascido um pouco ao lado e
terem sido expostos no não dado, no inquietante, no estranhamento. Foi Nietzsche quem
formulou apenas até meio esta questão ao falar do niilismo como um visitante sinistro
que assedia a existência moderna. Estas circunstâncias ficam compreensíveis por que a
razão a vida só involuntariamente e sob extrema coação consegue prestar contas a si
mesma quanto à sua lugubridade inicial. É que o sentido usual das “contas prestadas”
está em certificar que a vida é algo calculável, razoável, familiar, segura. A promessa
inicial da vida se chama razão, pois consiste em protestar contra o não cumprimento de
promessas e “dívidas” e insistir que a razão cumpra aquilo que promete. Nesse sentido,
a antropologia ganha quase um caráter “edificante” ao construir formas de vida em cima
de promessas. O homem é esse ser que é leviano por não ser um animal que se atreve a
entrar no mundo que apenas é “dado” por promessa. Platão em O Político fala
particularmente nas noções de reprodução e domesticação que o próprio Nietzsche
usaria. Na tentativa de fazer uma definição sobre o político, uma série de considerações
é estabelecida sobre a relação entre seres humanos e animais que culminará em uma
primeira definição do político como pastor do rebanho humano. Platão distingue com
precisão entre a criação de seres humanos e a criação de animais, para então estabelecer
que dentro dos animais seria doméstico e selvagem. Nesse sentido, Platão ressalta que
uma ciência que está procurando, ou seja, um político, e sobre os animais submetidos à
domesticação, isto é, aos domar. O resto seriam animais selvagens. O homem seria uma
criatura sem criador, mas com cuidadores. Já que uns tomam conta dos outros (rebanho
e pastor) ou uma espécie de guardiões uns dos outros (biopolítica-biopoder misturado
com ética). O homem é que é chamado pelo ser para pastorá-lo. Linnaeus atribuía ao
homem uma não identidade específica senão a de poder reconhecer-se, mas definir o
humano não por meio de uma nota característica, mas por meio do conhecimento de si,
significava que é homem aquele que se reconhece como tal, que o homem é o animal
que deve reconhecer-se humano para sê-lo. No momento do nascimento, diz ele, a
natureza gerou o homem “nu sobre a nua terra”, incapaz de falar, conhecer, caminhar,
398

nutrir-se, se tudo isto não lhe fosse ensinado. Ele só se torna si mesmo caso se eleve
acima do homem. Como fundador da taxonomia científica moderna, Linnaeus tinha uma
queda por macacos. Uma nota ao Systema naturae liquida a teoria cartesiana que
concebia os animais como automata mechanica (autômatos) com a afirmação de que
“Certamente Descartes jamais viu um macaco”. Em um escrito posterior, Menniskans
Cousiner, primos do homem, ele fala do qual difícil é identificar, do ponto de vista natural,
uma diferença específica entre os macacos antropomorfos e o homem. Uma obra
bastante séria como a Ichthilogia de Peter Artendi (1738), enumerava a sereia ao lado
das focas e dos leões-marinhos, o próprio Linnaeus, em seu Pan Europaeus, classifica a
sereia (que o anatomista dinamarquês Caspar Bartholin), chamava de Homo marinus,
junto do homem e dos macacos. O Homo sapiens não é, portanto, nem uma substância,
nem uma espécie definida, é sobretudo, uma máquina ou um artifício para produzir o
conhecimento de si mesmo como conhecimento humano. A máquina antropogênica (ou
antropológica), é uma máquina óptica, tal como o dispositivo escrito no Leviatã, de cuja
introdução talvez Linnaeus tenha retirado sua estrofe. Nosce te ipsum, read thy self (ler
o outro), como Hobbes traduz este saying not of late understood (ditado bastante usado
hoje em dia), é construído de uma série de espelhos nos quais o homem, olhando-se, vê
sua própria imagem que é desde sempre já deformada com traços de macaco. O Homo
é um animal constitutivamente “antropomorfo”, isto é, “semelhante ao homem”,
segundo os termos que Linnaeus usa, que deve para ser humano (homo sapiens sapiens:
homem que sabe; homem sábio), reconhecer-se em um não-homem. Na iconografia
medieval, diz Agamben, “o macaco tem um espelho”, no qual o homem pecador deve se
reconhecer como macaco de Deus (simia dei). Na máquina óptica de Linnaeus, aquele
que recusa reconhecer-se como macaco se torna um, fazendo referência à Pascal quando
diz “qui fait l’homme, fait le singe (quem faz o homem faz o macaco). Linnaeus na
introdução ao Systema, definiu o Homo como o animal que é somente se ele próprio
reconhece a si mesmo não ser, deve suportar que macacões em trajes de críticos subam
pelos ombros para dele zombar: Cartesius certe non vidit simios. Como sua criação se deu
sem um modelo definido, ele não possui propriamente uma face e deve moldá-la a seu
desejo de forma divina ou bestial. É nessa definição de uma “ausência de face”, funciona
a máquina de Linnaeus em classificar o homem entre os Anthropomorpha, isto é, entre
os animais “semelhantes ao homem”. Enquanto não há essencial e nem vocação
399

específica, Homo é um não humano. A descoberta humanística do homem é a descoberta


da sua falta a si mesmo, de sua irremediável carência de dignitas. Dignitas, que significa
a “condição social”, embora inapropriadamente se chame ao fazer referência ao homem
(hominis dignitate – dignidade humana). Essa instabilidade e inumanidade do humano
corresponde na inscrição na espécie Homo sapiens da variante, como Linnaeus diz, do
Homo ferus, que parece desmentir elemento por elemento as características do mais
nobre dos primatas. O caminhar sobre quatro patas, desprovimento de linguagem,
coberto de pelo. A lista na edição de 1758 especifica a identidade civil. Trata-se dos
enfants sauvages ou meninos-lobo, de que o Systema regista aparições em 15 anos. Um
jovem de Hannover (1724), dois pueri pyrenaici (1719), puella transisalana (1717) e a
puella campanica (1731). No ponto em que as ciências do homem começam a
representar os contornos da sua face, os enfants sauvages (garotos selvagens),
significado parecido com banda Gojira ao possuir uma música chamada L'enfant Sauvage
– A Criança Selvagem de 2012), que aparecem próximos dos limites de vilarejos
europeus, são mensageiros da inumanidade do homem, testemunhas da sua frágil
identidade e da falta de um rosto próprio. Não seria essa a deixa para Rousseau? Carolus
Linnaeus, sueco, com Systema Naturae de 1735 e Rousseau, suíço, com Emílio, ou Da
Educação de 1762. Na crítica de Rousseau ao homem social é possível ler a consequência
de sua descoberta da antinaturalidade. Ela possui um aspecto crítico negativo e outro
utópico positivo, poder-se-ia dizer: uma política destrutiva e uma pedagogia construtiva.
Rousseau diagnostica na sociedade do século XVIII uma degradação total, uma
decadência completa do homem em relação à “natureza”. Tudo aquilo que há de
espontâneo é desnaturado pelo convencional, toda ingenuidade é substituída pelo
refinamento, tudo o que diz respeito ao coração é recoberto pelas fachadas da lida social,
etc. A nitidez de Rousseau em relação a isso é tão aguda quanto uma percepção burguesa
ofendida, que procura anunciar direitos vitais, só pode existir em uma ordem social
artificializada. A teoria da vítima inocente, aparece em Rousseau talvez a mais importante
figura de pensamento do Esclarecimento moral e político. As peças de apresentação do
pessimismo político: o criminoso, o louco, o antissocial, em uma palavra, o homem
menor, não são por natureza assim como as pessoas os veem agora, mas se tornaram
assim por meio da sociedade. Diz-se que eles nunca tiveram uma chance de ser como
seriam segundo a sua natureza, mas foram pressionados pela pobreza, pela coerção e
400

pela ignorância para a situação na qual eles agora se encontram. Eles são vítimas da
sociedade. Essa defesa ante o pessimismo político em relação à natureza humana é de
início arrebatadora. Ela tem o seu favor a superioridade do pensamento dialético em
relação ao pensamento positivista. Ela dilui os estados e as qualidades morais em
processos. Não há nenhum homem brutal, mas apenas brutalização do homem. Não há
nenhum homem menor, mas apenas a vítima de uma tutela. O que o positivismo político
supõe como sendo a natureza, não é, em verdade senão a natureza falsificada: repressão
das oportunidades humanas. Rousseau conhece dois ajudantes, que precisaram ilustrar
sua visão, antes da perversão: o bom selvagem e a criança. Em torno dessas duas figuras,
a literatura esclarecida desdobra as duas de suas paixões mais íntimas: a etnologia e a
pedagogia. Já se observava em Rousseau um refinamento duplo, que buscava esconder
uma dupla moral. O fato de ele ter feito a união a natureza e a infância em uma nova
ideia de educação. A passagem do animal ao homem, apesar de ênfase predominante na
anatomia comparada e em achados ósseos, era, na realidade, produzida por meio de uma
subtração de um elemento que não tinha nada a ver nem com os outros, era em vez
disso, pressuposto para a marca do humano: a linguagem. Em uma análise filosófica, fica
a pergunta quando criamos o conceito de infância? Criança sempre existiu, mas infância
é algo novo. O infante é aquele que não fala, enquanto não fala há infância. Esta é a ideia
inicial de infantil, infante, infância. Há aí a preocupação com aquele ser que não fala,
alguém que precisava ser cuidado. Locke punha, por exemplo, para uma boa escola coisas
do tipo “quem poupa a vara, odeia a criança”. Alguém consegue imaginar isso nos dias
de hoje? Uma propaganda com esses dizeres? O bater é alguma coisa do endireitar, do
disciplinar. Não se faz isso com adultos, a não ser no caso dos escravos. Tinha-se uma
noção de infância, mas não como a de hoje. A noção de infância que temos hoje está
mais para a do século XVIII, com Rousseau. Rousseau diz que devemos proteger a
infância, tirarmos ela do contato da cultura e não a macularmos com elementos da
cultura. Nós vamos proteger a capacidade da criança de ser pura e verdadeira. Quanto
mais se alonga a infância, mais o homem convive com a verdade até chegar um momento
em que ele vai ter que passar para o mundo da cultura onde vai aprender a mentir, não
considerar a verdade. Há mais chances, digamos, de o indivíduo ser sincero, um claro
projeto filosófico. Isso muda a visão do século XVII, porque aí a tendência é expandir a
infância para além da nomenclatura. A infância não é só ao que não fala, mas a um tipo
401

de longa fase que coincide com o desenvolvimento da psicologia onde se fatiaria esta
fase: infância, pré-adolescência, adultos, idosos, etc. Convivemos com um Romantismo,
ou um pré-Romantismo Rousseauniano hoje em dia na psicologia, medicina e
puericultura. Poderíamos pensar: uma escola que transmite conhecimentos merece,
desta perspectiva, ser conservada? Para isso, devemos entender que a educação em si
mesma é uma atividade conservadora. Um professor progressista é um conservador que
esconde o lado retrógrado de sua atividade. A um verdadeiro educador não lhe ocorre
propor, como fez em 2003, o novo Ministro da Cultura da Alemanha, a introdução da
música pop na grade e salas escolares. Essa loucura progressista oculta um núcleo vazio
ou reacionário. Em resumo, haveria que ser conservador com as riquezas adquiridas. Não
se pode pertencer a uma civilização que se despreza. A civilização não consiste só em
saber fazer, mas sim apreciar a riqueza. E ser de esquerda equivale a combater a pobreza
em todos os seus âmbitos.
Dentre os diversos tipos de produções artísticas que Le Brun dedicou o seu
talento, estão estes trabalhos onde ele se aventura na arte do estudo da fisionomia. Hoje
entendemos a palavra “fisionomia” como o conjunto de características físicas do ser
humano que podem ser descritas. Porém, fisionomia foi uma área de estudos das
características físicas aparentes que tentava entender não só o caráter, mas também a
alma do ser humano. Na Inglaterra do século XIX, Charles Darwin (1809-1882) deu
continuidade à tradição em seu trabalho “The Expression of The Emotions in Man and
Animals”, A Expressão de Emoções no Homem e nos Animais de 1872. A visão de Darwin
neste trabalho foi um marco para sua teoria da evolução pois assim ele demonstrou de
uma vez por todas que o Homem não era uma espécie separada e criada divinamente, e
não diferente dos outros animais. O resultado foi um estudo de expressões que tentou
identificar os específicos estados mentais e emocionais bem como as suas
correspondentes expressões, para depois mapear os seus descendentes comuns através
de grupos de organismos relacionados. Se isso pudesse ser realizado, humanos como o
amor, raiva, medo, e luto poderiam ser tratados como hábitos físicos e provados como
tendo paralelos claramente reconhecíveis, talvez até mesmo suas origens, no mundo
animal. Também foi no século Xix que aparências físicas foram adotadas na área da
criminologia com o italiano Cesare Lombroso (1835-1909) desenvolveu o estudo
402

“Antropologia Criminal” correlacionando “anormalidades físicas”, especialmente o


crânio, com características fisiológicas baseadas no comportamento moral.

L. J. Morel d’Arleux, Dissertação Sore um Tratado de Charles de Brun, concernente às


Relações da Fisionomia Humana com a dos Animais. Paris (1806).

Agamben (2017, pp. 61-62):

Vejamos a máquina antropológica dos modernos. Essa funciona – nós o vimos


– excluindo-se de si como não (ainda) humano um já humano, isto é,
animalizando o humano, isolando o não-humano no homem: Homo alalus, ou
o homem-macaco. E basta avançar algumas décadas em nosso campo de
pesquisa e, em vez desse inócuo repertório paleontológico, teremos o judeu,
isto é, o não-homem produzido no homem, ou o néomont (neomorto) e o
paciente em estado de coma profundo, isto é, o animal isolado no próprio
corpo humano. Exatamente simétrico é o funcionamento da máquina dos
antigos. Se, na máquina dos modernos, o fora é produzido por meio da
exclusão de um dentro e o inumano animalizando o humano, aqui o dentro é
obtido por meio da inclusão de um fora, o não-homem por meio da
humanização de um animal: o macaco-homem, l’enfant sauvage ou Homo
Ferus, mas também e acima de tudo o escravo, o bárbaro, e o estrangeiro
enquanto figuras de um animal em forma humana. Ambas as máquinas podem
funcionar apenas instituindo em seu centro uma zona de indiferença, na qual
deve aparecer – como um missing link sempre ausente porque já virtualmente
presenta – a articulação entre o humano e o animal, o homem e o não-homem,
o falante e o vivente. Como todo o espaço de exceção, essa zona é, na verdade,
perfeitamente vazia, e o verdadeiro humano que deve surgir é apenas um
403

lugar de uma decisão incessante atualizada na qual a separação e sua


rearticulação são sempre descoladas e adiadas novamente. Isso que deveria
assim ser obtido não é semelhante nem a uma vida animal nem a uma vida
humana, mas somente uma vida separada e excluída de si mesma – apenas
uma nuda vida.

Como todos sabemos a ideia de desinfetação foi algo que surgiu no século XX.
Com o Nacional Socialismo isto seria tomado literal e metaforicamente. Estariam eles
assim agindo em legítima defesa. Tanto a desinfetação no sentido de acabar com o meio
de existência ou meio de vida de uma praga, como a desinfetação física dentre outros, os
judeus. Uma anotação aforística do diário do ministro de propaganda do Reich, Goebbles,
de 2 de novembro de 1941, confirma a estável associação entre o âmbito entomológico
e político de representação: “Os judeus são os piolhos da humanidade civilizada”. Um
atestado claro de uma assepsia e da animalização do humano. Vemos uma exclusão de si
como não-humano um já humano, uma “classificação de outra espécie” (imigrantes?). O
Holocausto: humanos subjugados por um Estado totalitário (o nacional-socialismo como
uma máquina antropológica muito específica em sua política racial e biológica (o alemão
é a terra e o sangue), exterminados em matadouros. Haushofer, geopolítico nacionalista
alemão não tinha falado de “espaço vital”? Uma clara postura defensiva da preeminência
alemã e a doutrina de ampliação de espaço. A analogia talvez não seria com gado, como
queria Paul Singer e Elizabeth Costello, mas com uma infestação de insetos: baratas,
cupins, formigas. Está no termo usado por Hitler (Ungeziefer) que Ricardo Piglia observa,
em Respiração Artificial de 1980, ser o mesmo utilizado por Kafka para denominar o
inseto no qual Gregor Samsa havia se transformado. Na época, haviam relatos médico-
militares de que os judeus eram quase todos portadores de epidemias. O não-homem
produzido no homem e pelo homem. A vida nua de Agamben junto com seu estado de
exceção – tomamos a vida como “zoé”, a vida nua, e não mais a vida enquanto “bios”, a
vida dentro da sociedade, em Sloterdijk fica imunologia. Uma tese que reúne topologia
com uma imunologia base. Instalações de lugares para estar consigo mesmo é uma
medida antecipatória e preventiva de prováveis transtornos que o bem-estar possa sofrer
fora da esfera própria. Chegamos em uma dinâmica da casa-habitação como sistema
espacial de imunidade. Essa explicação transcende os muros e as paredes próprias que
olhamos em fronteiras, salas de espera, de consultórios ou sala públicas, como geradoras
de hábitos e situação emergente (indoors).
404

O Palácio de Cristal. Da chamada arquitetura do ferro em Madrid. É uma estrutura de metal e


cristal situada no parque de El Retiro, tendo sido erguida em 1887 para a Exposição das Ilhas
Filipinas, celebrada nesse mesmo ano. Foi construído por Ricardo Velázquez Bosco e o seu projeto
de construção foi inspirado no Crystal Palace, de Paxton. Foi projetado inicialmente para
funcionar como uma estufa gigantesca para abrigar plantas tropicais, mas atualmente é uma sala
de exposições.

Identificava-se o homem falante como um posto fora de si, como já não mais
humano, o próprio mutismo. A infância é, por definição, uma época (histórico-
transcendental em Agamben, e não uma época empírico-psicológica) em que não temos
fala. O in-fante é aquele que não fala. Todavia, na infância temos fonemas, voz, que
depois são transformados na nossa fala enquanto linguagem. Mas a linguagem não é a
nossa voz. A linguagem é o que vem no lugar da voz que não veio, que se perdeu. Não
somos como os animais, que possuem voz. Somos os sem-voz, que falamos a linguagem,
um “elemento de razão” que está pronto, e que nos toma. Adquirimos a linguagem antes
dos doze anos ou não teremos mais fala. Não à toa Heidegger notou que é a linguagem
quem fala pela nossa boca, nós mesmos, de certo modo, estamos mudos, ou sem voz
própria. Sair da infância é, então, cantar e cantar exatamente na medida em que não se
tem mais voz, e sim linguagem. Cantar é o modo de escapar da prisão da linguagem, da
“escravização da semântica”. Sloterdijk trabalha com a antropogênese e a antropotécnica
chamada neotenia. A neotenia é a incorporação de traços infantes e juvenis no fluxo
sanguíneo DNA (filogênese da espécie – a partir da história da espécie) e da ontogênese
405

(da história do indivíduo). O homem passou a ser um animal com traços eternamente
joviais. A neotenia é uma “teoria da fetalização” ou de retardamento. Os humanos
mantêm características joviais na idade adulta vem função de um tipo de retardamento
no crescimento do cérebro. Nunca paramos de aprender e não nascemos "prontos", nove
meses é pouco para nós. Isso nos dá um guia da existência humana em 3/7 da fase de
gestação bio-psicologicamente fundamental em meio do organismo materno, os outros
4/7 em uma situação de nicho estável ou “estância no exo-útero”. O ponto fundamental
entre uma e outra é que ambos os estados criam uma dinâmica de transferência que
nunca pode ser levada até o final. Teríamos então, 9 meses e 12 meses, visto como
endogestação mais exogestação que combinadas possibilitam as condições de entrada
de mundo. O ser-em-no-mundo começa no homo sapiens com o fato de que os recém-
nascidos chegam com uma demanda intransferível de repetição da posição uterina no
exterior, o absolutismo da exigência ou necessidade infantil tem aqui forma de uma
ordem ditada pelo desamparo. Uma interação entre essas duas “instâncias” formadoras
de envoltura e complacência do companheiro para sua animação. O um visto como o
meio necessário para a imaturidade e como convite ao ar livre. Um estímulo para o
descobrimento do mundo que é um estranhamento do mundo para as primeiras lições
da experiência.
Propomos uma resposta para essa questão que certamente vai soar à maioria
dos leitores como evidentemente absurda. Os bebês humanos nascem como embriões e
como embriões permanecem durante os nove primeiros meses de vida. Se as mulheres
dessem à luz quando “deveriam”, depois de uma gestação de cerca de ano e meio, nossos
bebês teriam as mesmas características precoces de outros primatas. Sloterdijk diz que
os humanos vieram ao mundo com um grau de madurez análoga aos dos primatas e que
necessitaríamos de 21 meses de gestação, o que obviamente, torna-se impossível tanto
neurológica como endocrinologicamente. Isso significa, que o desenvolvimento humano
é lento se comparado com outros animais, em função disso, o homem pode conservar
características fetais até a fase adulta. É possível afirmar que devido esse inacabamento
biológico o homem consegue marcar sua realidade por uma multiplicidade de condutas
diversificadas originais, ao contrário de outros animais já biologicamente desenvolvidos
e “estagnados”. Poderíamos pensar em antropotécnicas até mesmo na conservação
dessa jovialidade como filhos e mães cada vez mais parecidos, uso de cosméticos,
406

cirurgias, produtos para retardar o retardamento jovial. Esse centro fundamental da


evolução e das configurações entre espaço mãe e filho de hominídeos para os primeiros
humanos tem como maior característica o prolongamento da fase infanto-juvenil como
unidade de processamento em uma precocidade do momento do nascimento. Digamos
que nascemos ainda verdes. O verde não é a cor do dinheiro que cria uma subjetividade
do acabamento? Verde como o dólar? Prematuros – um aborto crônico.64 Os homens são
seres mamíferos vivíparos que têm de resolver um problema de espaço, um
condicionamento de virem de um interior e serem defrontados com o estranhamento do
exterior, face a uma situação nova, como um “estar-em-algo-maior”. Se vieram de um
interior, vêm demasiado cedo, pois são criaturas entregues ao êxtase do mundo, ficamos
marcados pelo nascimento prematuro e pela imaturidade. Desse modo, engenharias que
adentram o corpo humano não são exteriores a nós, ao nosso fio condutor histórico como
grupo social, mas apenas um grau a mais de nossa evolução, um tópico a mais dentro dos
tópicos das antropotécnicas. Mas é preciso notar, também, que já faz algum tempo que,
ao menos nos Estados Unidos, as clínicas médicas especializadas realizam nosso trabalho
de puericultura, pedagogia, educação, serviços especializados para crianças, comércio
específico de placentas para a indústria cosmética, engenharia genética e robótica não
são coisas separadas de nosso trabalho de organização política, ou melhor, de biopolítica,
diríamos agora, com Foucault ou Agamben.
O homem e os animais domésticos – a história dessa formidável coabitação
ainda não recebeu um tratamento apropriado, e por isso mesmo os filósofos até hoje não
souberam convir quanto a seu papel em meio a essa história. Só em poucos lugares
rasgou-se o véu do silêncio filosófico sobre a casa, os homens o animal como complexo
biopolítico, e o que então se ouviu foram vertiginosas referências a problemas que são,
por enquanto, demasiado complexos para seres humanos. Dentre eles, o menor é ainda
a íntima conexão entre domesticidade e construção de teoria – pois se poderia
perfeitamente chegar ao ponto de definir teoria como uma variedade de serviço
doméstico ou, antes, como aparece em suas antigas definições, assemelha-se a um olhar
sereno para fora da janela: ela é sobretudo uma questão de contemplação, ao passo que
na era moderna – desde que saber passou a significar poder – assumiu inequivocamente

64
SLOTERDIJK, Peter. A Mobilização Infinita: Para Uma Crítica da Cinética Política. Tradução: Paulo Osório
de Castro. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2002, p. 124.
407

o caráter de trabalho. Nesse sentido, as janelas seriam as clareiras das paredes, por trás
das quais as pessoas se transformaram em seres capazes de teorizar. Também os
passeios a pé, nos quais movimento e reflexão se fundem, são derivados da vida
doméstica. As mal afamadas caminhadas meditativas de Heidegger por campos e
bosques não deixam de ser movimentos típicos de quem tem uma casa atrás de si.65
Heidegger, por outro lado, é definido por Derrida como "aquele que podia
permanecer", que tinha uma casa atrás de si - e que fazia tanto da casa como do retorno
premissas de seu pensamento. É responsabilidade da casa formar adequados
construtores de casas futuras, eis o papel do administrador, do sábio, Heidegger. O
reverso da moeda está não só em Extinção, com a fuga e depois a liquidação, mas
também em O Sobrinho de Wittgenstein, de Bernhard, em que a casa ganha sua feição
menos edulcorada e se transforma na Instituição Psiquiátrica. Esse é o lado perverso da
casa que começa a surgir em Robert Walser. Ele também um caminhante meditativo, e
explode nos anos de castigo de Fleur Jaeggy (aqui a instituição também é liquidada, como
a casa de Bernhard). Pode-se pensar na casa paterna em Kafka, uma mescla de
manicômio, prisão e museu de história natural.

65
SLOTERDIJK, Peter. Regras para o Parque Humano: Uma Resposta à Carta de Heidegger Sobre o
Humanismo. São Paulo: Estação Liberdade, 2000, pp. 36-37.
408

Heidegger, o filósofo da floresta. Cabana na Floresta Negra. Heidegger ficou conhecido, assim
como Nietzsche, em fazer caminhadas, no caso de Heidegger, nas chamadas florestas negras. No
Brasil, temos sua obra Holzwege – Caminhos de Floresta de 1950.

Em um ensaio sobre o conto de Kafka, Márcia Schuback, tradutora de Ser e


Tempo para o português, relembra Heidegger e sua conferência intitulada "Bauen,
Wohnen, Denken": construir, habitar, pensar que circula pelo mesmo campo semântico
de Kafka que chama Der Bau, Bauen. Retorna aqui também toda a discussão de Peter
Sloterdijk acerca da casa, do ser e da domesticação, da relação do homem com o animal
como um complexo biopolítico e principalmente, o contato do ser com a linguagem
através da clareira, esse espaço de emancipação e de iluminação. Porque também essa
clareira é danificada por Kafka: sua construção deixa em suspenso tanto a entrada quanto
a saída, a fuga e o retorno, o dentro e o fora.
Com uma fenomenologia das espumas, nos é dado uma figura de maneira
conceitual e imagética para o rumo de uma amorfologia política que explora até seu não
fundamento as metamorfoses e paradigmas do espaço solidário numa época de mídias
múltiplas e dos mercados mundiais voláteis. Nenhuma outra ciência se vê tanto a
potência da morfologia das espumas que a biologia celular. De cada um dos lugares na
espuma abrem perspectivas ao adjacente, mas não há a disposição de visões
panorâmicas gerais, no caso mais ambicioso dentro de uma bolha se formulam
hipérboles, que resultam úteis em numerosas bolhas vizinhas. Seletivamente é possível
a transmissão de mensagens e notícias, porém não há saídas ao todo. Onde a ciência
clássica via um todo unitário, como um mundo único onde o espaço habilitaria o estar-
junto, compreendia dentro de si a totalidade das espécies viventes e hierarquicamente
ordenada. Ao contrário, na modernidade, é estabelecida uma complexidade mais
profunda que aquela possível sob a clássica noção de unidade. Nós não podemos nos
esquecer que a metafísica é o campo de sólidas simplificações e que, portanto, possui
um efeito consolador. A estrutura da espuma é incompatível com um mindset
monoesférico, o todo não pode mais ser retratado como um todo redondo e abrangente.
Por volta de 1920, em suas reflexões sobre os fundamentos da Biologia Teórica, Jakob
von Uexküll já tinha afirmado sobre a impossibilidade de uma bolha de sabão
completamente abarcante. O próprio Le Corbusier utilizou a imagem da bolha de sabão
409

para explicar a essência de uma boa construção, diz ele que “A bolha de sabão é
completamente harmônica, caso o sopro nela contido seja distribuído igualmente, e bem
regulada internamente”. Esta declaração poderia ser considerada o axioma da
esferologia: o espaço vital só pode ser explicado em termos da prioridade da parte de
dentro.
Uexküll, caminha por estabelecer, em sentido contrário, uma variedade e uma
infinita possibilidade de mundos perceptíveis, igualmente perfeitos, válidos, ligados entre
si. Não à toa ele faz suas reconstruções do ambiente do ouriço-do-mar, amebas, águas-
vivas e anêmonas-marinhas. Frequentemente diz ele, nós imaginamos por um bom
tempo que as relações que um determinado sujeito animal mantém com as coisas de seu
ambiente têm seu lugar no mesmo espaço e no mesmo tempo daquelas que o ligam aos
objetos de nosso mundo humano. Essa ilusão é baseada na crença em um único mundo
no qual se situaria todos os seres viventes. Uexküll mostra com seus trabalhos de zoologia
e um dos fundadores da ecologia, que um tal mundo não existe, assim como não existe
um tempo e espaços iguais para todos os seres viventes. Animais possuem diferentes
formas de interação com o ambiente, abelhas, crocodilos, coelhos não se movem no
mesmo mundo em que nós os observamos. É por isso que o vimos ingressar na
Universidade de Hamburgo, fundando o Institut für Umweltforschung, lhe garantindo a
notoriedade. Nome bastante curioso e predominante no século XX, especialmente, nos
estudos de ontologia. Uexküll começa por distinguir o Umgebung, o espaço objetivo no
qual vemos mover-se um ser vivente, do Umwelt, o mundo-ambiente que é constituído
de uma série mais ou menos ampla de elementos chamados “portadores de significados”
ou de “marcas”, que são os únicos que interessam ao animal. Esse Umgebung é, o nosso
próprio Umwelt, a que Uexküll não atribuiu nenhum privilégio específico e que pode
variar segundo o ponto de vista do qual observamos. Não existe uma floresta como
ambiente objetivamente determinado. Existe uma floresta para um caçador, uma floresta
para ativistas, uma floresta para bruxas, uma floresta para botânicos, uma floresta para
empresas privadas, uma floresta para turistas. Assim como, na utilização de mínimos
detalhes como a forma que uma formiga utiliza as folhas de uma floresta, uma borboleta
que se pendura em uma folha, uma vaca que se alimenta, mastiga e engole. Seria como
se cada ambiente funcionasse como uma unidade fechada em si mesma, que resulta da
seleção prévia de marcar ou elementos, que são, o ambiente do homem. O observador
410

de uma vida animal deveria reconhecer os portadores de significado que constituem o


ambiente. Imaginemos um mundo da mosca e da aranha. Os dois mundos perceptíveis
da mosca e da aranha são absolutamente incomunicáveis e, todavia, estão perfeitamente
de acordo consigo mesmos. As teses e pesquisas continuariam no século XX com Paul
Vidal de la Blanche em seus estudos sobre as relações entre as populações e seu
ambiente de 1903. Friedrich Ratzel com o Lebensraum, o chamado “espaço vital” dos
povos de 1897, que modificariam a ideia de geografia humana. Não podemos deixar
desapercebido, que a tese central de Heidegger em Sein und Zeit (Ser e Tempo) sobre o
ser-no-mundo como estrutura humana fundamental pode ter relações profundas com
essa modificação da relação tradicional entre o vivente e o seu mundo-ambiente. A
investigação ampla sobre a relação do animal com o seu ambiente e do homem com seu
mundo. Com a relação de “pobreza de mundo” (Weltarmut) do animal e o homem
“formador de mundo” (weltbildend), Heidegger situa a própria estrutura fundamental do
Dasein, o ser-no-mundo em relação ao animal e, dessa maneira, interrogar a origem e o
sentido da chamada “abertura de mundo” – a clareira produzia no ser vivo com o homem.
Como é sabido, Heidegger rejeitava a definição metafísica tradicional do homem como o
famoso “animal racional”, o ser vivo que possui linguagem, ou a razão, quase no sentido
de que seria um erro recair no humanismo e da ideia de que o homem pudesse ser
determinável por meio de um adicionamento em seu nome quase como um qualificativo.
Nos parágrafos 10 e 12 de Ser e Tempo, vemos que ele procura mostrar a estrutura do
ser-no-mundo do Dasein como algo sempre pressuposto em qualquer concepção, seja
no sentido filosófico, seja no sentido científico da vida, de modo que ela pode ser obtida,
na verdade, “pela via de uma interpretação privativa”. A ideia tripla de que a pedra é sem
mundo (weltlos), o animal é pobre de mundo (weltarm), o homem formador de mundo
(weltbindend). Heidegger chama de das Enthemmende, o desinibidor, aquilo que Uexküll
definiria como “portador de significado” (Bedeutungsträger, Merkmalträger) e
Enthemmungsring, o círculo desinibidor, o que o zoólogo chamava de Umwelt, ambiente.
A “fórmula” ontológica do ambiente animal poderia ser assim: ela é offen, ou seja, aberta,
mas não offenbar, revelada, “passível de abertura”. O ente para o animal é aberto, mas
de maneira inacessível. É aberto numa impossibilidade de penetração, numa opacidade,
em uma não relação, uma abertura sem desvelamento nos dá o resultado da “fórmula”
em pobreza de mundo do animal em relação à formação de mundo tipicamente humano.
411

O animal não é só pobre de mundo, desprovido de mundo porque, enquanto é aberto


ao-no atordoamento, deve, diferentemente da pedra, desprovida de mundo (precisar,
necessitar, entbehren), isto é, pode ser determinado em seu ser por uma pobreza e uma
falta. Em virtude de esse ter, ele pode renunciar, ser pobre, ser determinado em seu ser
pela pobreza. Este ter, não é possuir um mundo, mas um ser absorvido pelo cerco
desinibidor, é possuir o desinibidor. Mas porque este “possuir” é o ser aberto para o
desinibidor e, todavia, deste ser aberto é subtraída a possibilidade de se ter revelado o
desinibidor enquanto ente, então, o possuir do ser aberto é um não-possuir, um não-ter
mundo, já que ao mundo pertence a possibilidade de desvelamento do ente enquanto
tal.
As influências não terminariam por aí. A filosofia de Heidegger sobre o
“enraizamento” é uma tentativa para que o homem recupere a terra (reterranisieren) e
a facticidade (refaktizieren). Elas também seriam sentidas por Deleuze com seus rizomas.
De maneira análoga a certos musgos e liquens que se distinguem pelos seus contornos
imprecisos. Essa referência de uma associação plana se reconhece na rizomática de
Deleuze e Guatarri, diz ele que até animais o são, “sob sua forma de matilha; ratos são
rizomas”, as tocas o são, com todas suas funções de hábitat, de provisão, de
deslocamento, de evasão e de ruptura. Na realidade, não demos ainda uma maior
atenção na linha da ideia de árvore e na sua influência do motivo arbóreo nas mais
diferentes civilizações, especialmente, entre as subculturas de nossa própria tradição, nas
teorias epistemológicas, modelos genealógicos e ontológicos. Sempre que se pensa em
linhagens e ramificações, vemos também crescer troncos, intermediários maciços. A
árvore fusiona com o universo um dos fantasmas de origem. Isto faz sentido com a ideia
de útero e raiz que surgem em todas as culturas com imagens de uma agrometafísica do
mundo.
Os estudos até aqui mais interessantes da lógica e da ontologia arbórea se
encontram em Thomas Macho e na segunda parte de O Anti-Édipo, Capitalismo e
Esquizofrenia de 1972 feito por Deleuze e Guatarri. Na parte que diz respeito à crítica das
ideologias, a árvore vira uma espécie de vilã da história. A nova imagem diretriz: o rizoma,
com uma espécie de arvorofobia. O motivo é fácil de saber, pois Deleuze não tolera a
ideia de proceder de raízes, sobretudo de raízes que servem como espeques e formam
um órgão originário. Um tipo de compêndio quase totalitário de todas as forças que
412

brotam de um único canal, um “solo” monopolizado. A árvore com sua raiz parece com
o Uno, o Privilegiado, O monótono, atributos que devem ser superados. Por isso, Deleuze
e Guatarri trataram de substituir o paradigma da árvore por uma ramificação
subterrânea, um tipo de rede imbricada em forma de fungo, uma vida reticular de bolbos
vegetais com excessos laterais. Não se pode negar que a árvore possui uma complexidade
aristocrática, ramifica-se a partir de um centro orgânico e não teme as alturas, já os
rizomas representam um tipo de complexidade anarquista e não hierárquica. As relações
de afinidade são transformadas por relações de vizinhança, até mesmo como como
aquilo que se coloca em rede, o que desenvolveriam as metáforas modernas horizontais
e de prolongamentos de carpetes em tons antigenealógicos. Os rizomas são
poliorganísmico, pois se arrodeiam de associações democráticas de base, no sentido
contrário, a árvore seria retratada como mono-organísmica como uma forma de
simbologia monocrática ou totalitária. A árvore é o Estado e o rizoma o subsolo. No seu
ensaio chamado Rizoma, os dois filósofos escreveram no abandono da crença em
árvores, em vez disso falam sobre rebentos transversais, raízes aéreas, impulsos laterais,
frutos anárquicos, celebram a clonagem e a internet, que eles ainda não poderiam
conhecer em 1980 quando da publicação de Mil Platôs. Com a leitura dessas obras
compreendemos como que a lógica da clonagem e da internet correm paralelamente,
ambas funcionam através de cópias em anexações transversais.

Donna Cox/Robert Patterson, NSFNET. Fluxos de Tráfegos sobre a América do Norte


(1995).
413

O projeto italiano The Capsula Mundi é uma representação perfeita desse conceito.
Desenvolvido pelos designers Anna Citelli e Raoul Bretzel. É uma vagem em forma de ovo, uma
forma antiga e perfeita, feita de material biodegradável, onde nossos entes queridos são
colocados para o enterro. As cinzas serão mantidas em pequenas bioletas em forma de ovo,
enquanto os corpos serão colocados em posição fetal em vagens maiores. A Capsula será então
enterrada como uma semente na terra. Uma árvore, escolhida na vida pelo falecido, será
plantada em cima dela e servirá como um memorial para os que partiram e como um legado
para a posteridade e o futuro do nosso planeta. A família e os amigos continuarão a cuidar da
árvore conforme ela cresce. Poderemos contar ainda com os mortos agora no formato de
árvore com nome (pai, mãe, sobrinho).

Também em Vilém Flusser, de “espaço vital” como uma “caixa longa e larga, mas
baixa”. Se formos para Gabriel Tarde veremos que uma nação que fora tão alta como
larga superaria em muito o âmbito respirável da atmosfera e a crosta da terra não
ofereceria materiais suficientemente sólidos para as construções titânicas desse
desenvolvimento vertical de cidades. Essa interpretação como aglomerações humanas
com um olhar para as condições estáticas, formais e atmosféricas da coexistência de
seres humanos no espaço nos leva para uma condição analítica de associação como
compreensíveis com configurações planas de agregados do tipo “sociedade” humana.
Nesses apontamentos a “sociedade” aparece como carpetes interconectados e sua
414

dimensão mais importante é sua capacidade de prolongamento espacial lateral. As


“sociedades” se compõe de seres que estão dentro e fora de sua associação. Para a
esferologia de Sloterdijk, especialmente nas espumas, que aceita o ser-em-na-espuma
como uma determinação primária da situação, as supervisões que chegam à conclusão
do mundo único. são completamente inacessíveis e talvez impossíveis e nem desejáveis.
Como já mencionado, se falamos das espumas devemos abandonar a metafísica clássica
com a ideia de monoesferas centrais, totalizantes e omni-compreensíveis. Como sistemas
de bairros assimétricos entre estufas de intimidade e mundos próprios geralmente de
tamanhos médios, as espumas são meios transparentes e são meios opacos. A situação
da espuma é uma montagem relativa de visão ao redor e de cegueira. Todo o ser-em-no-
mundo, entendido como ser-em-na-espuma abre um claro no impenetrável. Com o giro
da ontologia plural, foi tomando de conta provisoriamente na moderna biologia e
metabiologia, graças a noção do conceito de “entorno”. Sloterdijk acredita que
sociedades sejam “sociedades”. Uma não massa. Para haver a “sociedade”, é preciso que
a espuma fica um pouco seca. Por isso o tomo das Espumas é visto como uma
fenomenologia do ar e a atmotécnica. A espuma molhada tem um leve “enxugamento”,
vira uma espuma seca. Um amontoável número de células habitáveis. Através do tema
da célula habitada, podemos manter o imperativo esférico que se aplica a todas as formas
de vida humana, mas que não pressupõe totalização cósmica. O amontoado de células
em um bloco de apartamento, por exemplo, não gera mais a clássica entidade
casa/mundo, mas uma espuma arquitetônica, um sistema multicâmara constituído de
mundos pessoais relativamente estabilizados. A arquitetura da cápsula significa a crítica
ao autismo urbano. Toda a conversa sobre rede e tecido tende a neutralizar o espaço
existencial, tão perigoso quanto o individualismo de cápsula. O pensamento a partir de
redes (net thinking) inclui apenas pontos e interfaces que formam a base da noção de
duas ou mais linhas ou curvas que se cruzam, fornecendo uma cosmovisão, cujo
elemento constitutivo é o ponto. Os teóricos de redes pensam em termos radicalmente
não espaciais, isto é, em duas dimensões, eles usam o conceito de anorexia para
interpretar sua relação com o seu próprio meio ambiente. Seus gráficos revelam que a
organização do mundo individual é vista como uma intersecção entre linhas sem volume.
Sloterdijk caminha pelo conceito de bolha de espuma ou de célula mundo para mostrar
que até mesmo o elemento individual já contém uma intrínseca expansão. Não devemos
415

retornar a uma ontologia do ponto, mas tomar, como variável mínima em nosso
pensamento, a célula que é capaz de constituir um mundo. Um pouco mais de
monadologia não faz mal a ninguém: a mônada não é um ponto desprovido de extensão,
ela tem o caráter de um micromundo. “Célula” expressa o fato de que o lugar individual
tem o formato de um mundo. As metáforas de tecido ou rede, talvez, forneçam nós
momentâneos a você, mas você não pode habitar um nódulo. Em contraste, a metáfora
da espuma enfatiza a espacialidade microcósmica intrínseca de cada célula individual.
Dessa forma “sociedade” é uma reunião reunida, micrototalidades, que possuem uma
estrutura sem ângulos retos, onde vemos um leve “esbarramento” de bolhas com outras
bolhas ganhando tamanho, volume, ar, molhadas. Um cacho de uvas, espumas, uma
alcateia de lobos. Para que sua morfologia se estabilize é preciso haver um leve
“secamento”, não necessariamente impossibilitador de maleabilidade, mas formador de
tensões e de estresse. Paredes tensionadas garantem um preenchimento como ar em
um balão. Não há formas retangulares na espuma, e isso é uma interessante notícia. E
não há mais quaisquer estruturas esféricas primitivas, especialmente se as espumas
forem além de suas etapas úmidas ou autistas. Em seu interior, forças recíprocas de
deformação estão sempre trabalhando, de modo a garantir que tenhamos estruturas que
não sejam planas e onde regras geométricas mais complexas prevaleçam. Vivemos em
uma era em que as paredes estruturais clássicas, baseadas em forças de pressão, dão
lugar a estruturas baseadas em forças de tensão. Fazemos referência nas já conhecidas
tensegridades de Fuller, em edifícios pneumáticos e em estruturas de ar do século XX. A
nova lógica das estruturas funciona muito além de todas as paredes e pilares. As
tensegridades formam a transição técnica da metáfora da espuma às modernas
construções. A espuma é um tipo de tensegridade natural, especialmente quando para
de tomar a forma de espuma “individualista”, em que, em solução líquida, bolhas
individuais flutuam passando umas pelas outras. Um esfregar com força raramente
ocorre. Se uma espuma envelhece e seca (uma imagem que poderia ajudar é aquele
mosquito no filme Jurassic Park de 1993 dentro de Âmbar – uma formação estilo cristal
seco), uma estrutura complexa interna emerge. Muitas bolhas estouram, ar residual das
bolhas estouradas entra, então, em bolhas adjacentes, e a espuma seca a partir de
dentro. Emergem estruturas mais bonitas e exigentes morfologicamente – complexas,
espumas de poliedro. Elas são completamente definidas pelo padrão de co-isolamento,
416

que diz que a célula da espuma compartilha com sua vizinha o fato de que é separada
dela – ela diz “minhas paredes são suas paredes”. O que nos une é que viramos as costas
uma a outra. O conceito de co-isolamento é fundamental para o universo de formas
espumosas. A adjacência do mundo se projeta, ou ainda, espaços de convivência dentro
de uma estrutura co-isolada possuem uma qualidade diferente de vizinhanças de espaço
de culturas tradicionais segmentadas. Co-pertencimento, co-emparelhamento, co-
participação, co-isolamento. Tudo o que é social é parcializável. A espuma, é a forma com
a qual trabalha a “sociedade” em que vivemos, uma expressão muito útil para aquilo que
os arquitetos chamam de “densidade”. Ela mesma um fator negentrópico. A densidade
pode ser expressa em termos psicossociais por um coeficiente de irritação mútua.
Pessoas geram atmosfera exercendo pressão mútua umas nas outras, empurrando umas
as outras. Nós nunca devemos esquecer que aquilo que chamamos “sociedade” implica
o fenômeno de vizinhos não bem-vindos, apesar de toda bolha ter um grau de autismo
inerente ao si mesmo, então, densidade é também uma expressão para nosso excessivo
estado comunicativo. Qualquer um que leve a densidade a sério, em contraste, finda por
reconhecer o valor de paredes. Essa observação não é mais compatível com o
modernismo clássico, que estabeleceu o ideal de habitação transparente, o ideal de que
as relações de dentro deveriam ser refletidas nas relações de fora, e vice-versa. Hoje,
estamos novamente colocando em primeiro plano um modo em que uma construção
possa se isolar, embora isso não possa ser confundido com sua solidez, nem com uma
solidão absoluta. Visto como fenômeno independente, o isolamento é uma forma de
explicação das condições de convivência com vizinhos. O reconhecendo em um certo o
valor do isolamento é o início, descrevendo uma dimensão da coexistência humana que
reconheça que as pessoas também possuem uma necessidade infinita por não
comunicação. Todas as características ditatoriais da modernidade se originam de uma
antropologia excessivamente comunicativa por tempo de mais, a noção dogmática de
uma imagem excessivamente comunicativa do homem foi ingenuamente adotada. No
que se refere à imagem da espuma, você pode mostrar que as formas pequenas nos
protegem da fusão com a massa e com as correspondentes. Nesse sentido, a teoria da
espuma é uma policosmologia.
Quem quiser falar nos dias de hoje de figura, como um teórico da cultura, deve
prestar atenção à Spengler. A sua experiência central está na observação de que as
417

formas têm vida própria. Gestalt (figura) e “forma” (form) são sinônimos. A forma que
chama a atenção de Spengler não é outro senão o que ele chama de cultura, vinda da sua
tradição de zoologia aristotélica e em Goethe. Para ele, como para os estruturalistas
posteriores, como Lévi-Strauss e Propp, os homens só têm alguma importância como
delegações de formas, que são anteriores e começam antes deles, atuam mediante eles
e vão, por assim dizer, mais longe, mais além, dão um salto para além deles. Ideia
semelhante foi estabelecida por Marx, em uma desconhecida frase, de que toda a história
“é a história das tensões diferenciais de formas”. Não é sem razão porque Spengler tinha
um tipo de jogo filosófico vitalístico em que a vida poderia ser considerada como
substância e os indivíduos como acidentes – uma outra ponta solta da biologia, é só com
esse raciocínio que, Spengler conseguiu definir as “culturas” como “seres vivos de ordem
superior”. Para ele, existiria uma lei relativa à figura, um tipo de força maior estrutural
que faz com que, culturas, aqui ou acolá do seu arco figurativo, só tenham de intervir
acontecimentos, atores e instituições de um certo tipo de qualidade formal
predeterminada. Como vimos em Espumas, nos dizeres de Sloterdijk ao evocar
Wittgenstein ao dizer que “a cultura é uma regra de ordem ou pressupõe uma regra de
ordem” (ou que todo conteúdo é forma). Para esse campo de ação e de tais regras
Sloterdijk chama de nomotopo. O espaço das tensões legais que fornecem um grupo com
uma espinha dorsal normativa. Até mesmo as estruturas também conhecem os
crepúsculos dos ídolos. Ordens que se mantém no poder como ídolos estruturais até que
outras se imponham se colocando em seu lugar. Ordens formais que perpassam a vida,
o trabalho, a linguagem, os indivíduos, os povos, as culturas. Foi em Bachelard com a sua
Poética do Espaço que Sloterdijk construiu grande parte de sua esferologia. Em um
capítulo da Poética do Espaço chamado “A Fenomenologia do Redondo”, que Sloterdijk
encontrou duas teses: a de que “O mundo é redondo ao redor da existência redonda”,
esse seria o início da microesferologia no sentido de Esferas – Bolhas. A segunda tese é
de que “A esfera da geometria é a esfera vazia, essencialmente vazia. Esta não pode nos
servir como bom símbolo para os nossos estudos fenomenológicos sobre a redondez
total”. Fica evidente depois disso que, não pode existir uma figura esférica no sentido
geométrico, pois as esferas devem ser imaginadas como “espaços grávidos”, “redondezas
preenchidas”, “espaço recipiente”. As esferas são edificações da redondez, cosmos
esféricos sem se utilizar o compasso, esferas metafóricas. É por isso que Bachelard chega
418

a dizer que: “No seu núcleo íntimo, toda a existência está bem constituída”. Ou ainda: “O
mundo é redondo em torno de uma existência redonda”. Um tipo de fórmula de eutonia,
imunidade, um conforto espacial para o que é redondo, como se isso fosse um evangelho
morfológico. Já em Globos, vemos uma conversa sobre Deus e o mundo, pois ambos
foram pensados pela tradição inclusiva em forma de esferas. Seja de um idealismo
geométrico na cosmologia, seja de um idealismo lógico na teologia, ou mesmo, a junção
de ambos, em alguns casos. Enquanto tradição metafíca, o conceito viria da velha
Academia no platonismo – enquanto idealismo morfológico. Como tal, a metafísica
clássica é vista como uma espécie de prateleira de bibliotecas sobre a totalidade do
mundo como um sistema imunitário. Dessa lição podemos tirar que foi na ontologia a
primeira imunologia. Sendo assim, nos tempos em que vivemos com a destruição da
metafísica (sempre existiram dois tipos de globos: o celeste e o terrestre; na atualidade
isolamos o terrestre, isso não nos deixa de dizer algo sobre a crise metafísica do lugar
humano?), com a ontologia atual e com o progresso das nossas consciências do problema
imunitário, já não pode ser, como tal, um teórico clássico do Ser. A vida humana sempre
se organiza criando espaços protegidos e imunes, desde a célula e seu protoplasma até
as crianças dentro do útero, passando pelos homens quando constroem sua privacidade,
suas casas, suas habitações, suas cidades e seus espaços metafísicos ou imaginários.
O físico belga Joseph Antoine Ferdinand Plateau que em meados do século XIX,
formulou as leis fundamentais da geometrização das espumas (poliédrica). Leis essas que
apontam para um mínimo de ordem no aparente caos de aglomerações de bolhas-
espumantes (espumosas). Com sua ajuda, as espumas puderam ser descritas como
esculturas tensionadas de tegumentos peliculares. É importante notar que nas espumas
não existe uma célula como ponto central e que a ideia de uma capital seria
contraproducente. O motivo da multiplicidade de câmaras se originou também pelas
teorias físicas. Isso traz como consequência que se recorra cada vez mais para a metáfora
da espuma, a descrição de conformações de espaços espontâneos, desde as dimensões
mínimas como nos fenômenos maiores, até mesmo em processos de dimensões
galácticas e efetivamente cósmicos. Do ponto do surgimento da vida, para alguns
biólogos, o que se entende por vida só pôde se explicar por formações espontâneas de
espumas em de oceanos. A morfologia do século, se anuncia abertamente no século
como o século das espumas. Na resposta ao desastre global que sobrecarrega os
419

humanos hoje, o desastre de integração que chamamos de “globalização” e o desastre


de desintegração que chamamos de “progresso”, somos chamados a construir um
sistema imunológico cooperativo em escala planetária, “uma estrutura global de co-
imunidade”. Redesenhamento das fronteiras por um sistema imune planetário. Com a
imagem do globo no qual ocorre o movimento lateral da expansão da globalização
terrestre é finito, essa expansão cria uma espécie de "interior globalizado" adensado no
qual populações, coisas e peças de informação interagem como bolsões de ar
comprimidos pela multiplicidade de bolhas vizinhas: espumas. Nesse sentido, a
exploração espacial seria uma tentativa de conter essa conclusão? É o sonho da
perpetuação infinita de um movimento lateral desimpedido no desconhecido? A
metáfora da espuma procura capturar duas dimensões essenciais do espaço globalizado.
As espumas são estruturas soltas, sistemas multicâmara cujas células são separadas por
membranas finas. As “sociedades” se constituiriam por serem “sociedades de paredes
finas”. As espumas são processos que tendem para a estabilidade e inclusão. Reconhece-
se uma espuma "jovem" por suas bolhas menores, mais arredondadas, mais móveis e
mais autônomas. Com o tempo, cada bolha virá a ser moldada pelas circunvizinhas e seu
interior se estabilizará. Como consequência do estresse recíproco exercido por cada
bolha nos arredores, uma espuma ganhará uma certa tonicidade e densidade.
“Entendemos por “sociedade” um agregado de microesferas (casais lares, empresas,
associações) de formatos diferentes, como as bolhas isoladas em um monte de espuma,
limitam umas com as outras, se empilham umas sobre e debaixo de outras, sem ser
realmente acessível umas para outras, nem efetivamente separáveis umas das outras”
(SLOTERDIJK, 2006, p. 50). Ernest Bloch já havia dito que “há muitos aposentos na casa
do mundo”, porém eles não têm portas, possivelmente só janelas cegas nas quais se pinta
uma cena exterior. As bolhas na espuma, isto é, casais e agregados familiares, as equipes
de sobrevivência e comunidades de superveniência são micro-continentes constituídos
autorreferencialmente. Não importa o quanto eles finjam estar unidos com o outro e com
o exterior, em princípio eles só são apanhados em cada caso em si mesmos. As unidades
simbiônticas são conformadoras de um mundo sempre em si e para si junto a grupos
modeladores de mundos que fazem o mesmo a sua própria maneira e com aquelas que
estão constritas pelo princípio do co-isolamento, formando uma montagem interativa.
Suas semelhanças mútuas permitem tirar uma conclusão de que elas estão apenas
420

reciprocamente em intensas comunicações e amplamente abertas umas para as outras,


mas na realidade, a maioria dessas semelhanças de umas com as outras é simplesmente
uma gênese em ondas comuns de imitação. O caráter "afogênico" do apartamento surge
(no nível da arquitetura executada) do fato de que o apartamento de um cômodo é
normalmente encontrado em edifícios organizados como agregações de unidades
habitadas tipificadas de acordo com um plano geral. O prédio de apartamentos (ou a
unidade de habitação), em que uma multidão de unidades é empilhada ao lado e acima
uma da outra, representa um cristal de espaço social ou um corpo rígido de espuma onde
(como condomínios) vemos espaços de compartilhamento mútuo ou de passagem. Essas
formas, no entanto, compartilham o princípio do co-isolamento com espumas flexíveis
ou moles, isto é, a divisão do espaço através de paredes compartilhadas. Esta é a fonte
comum de problemas de vizinhança que são típicos de tipos mais antigos de edifícios de
apartamentos: seu isolamento acústico inadequado, onde a ilusão da autonomia da
célula viva é dissipada. Em um navio, é possível se perder em um completo interior onde
esquecemos do dia e da noite. Vemos divisões interiores de apartamentos, unidades
cápsulas, comportas, sistema de ventilação, como empilhamento mútuo. Uma unidade
de vida arquitetonicamente bem-sucedida não representa apenas um pedaço de ar
fechado, mas sim um sistema imunológico psicossocial capaz de regular o grau em que é
selado do lado de fora sob demanda. "Ventilação psíquica" implicaria que um sopro de
espírito comunitário é capaz de penalizar as unidades imunes isoladas. O quanto isso
pode faltar pode ser visto nas famosas Trabantenstädte (cidades satélites) da era pós-
guerra, que tendem a tornar seus habitantes simultaneamente indefesos e
psicossocialmente sufocados. O princípio espuma foi até hoje amplamente utilizado no
âmbito da indústria capitalista, cosmética, arquitetonicamente, alimentícia,
farmacêutica. As aplicações técnicas do princípio “espuma”, são surpreendentemente
numerosas, inclusive derivadas do plástico e do metal. Vemos desde espumas de limpeza
para o rosto, tratamento de acnes e espinhas, limpadores de objetos, “espuma de
carnaval”, espuma de cabelo, esponjas, pedras-pome, assentos, colchas, as bolinhas em
encomendas, espuma acústica, sabonetes, produtos para tratamento de feridas,
espumadores, espuma de barbear. No dia a dia, estamos utilizando em grande escala
diversos materiais porosos, por exemplo, em eletrodomésticos (liquidificadores,
batedeiras, furadeiras) utilizamos buchas porosas cheias de óleo para evitar o desgaste
421

prematuro desses equipamentos. Em automóveis, já estão sendo utilizados materiais


porosos com a função de absorver parte da energia causada pela colisão com outro
corpo. Em satélites, são utilizadas bombas capilares (tubos porosos) para realizar o
resfriamento do equipamento, sendo esse, por sinal, o mesmo princípio que as plantas
utilizam para movimentar líquidos no seu interior, espumas em água, café, ao fritar um
ovo, espumas em oceanos. As suas manifestações populares pertencem aos produtos de
Tahona: prancha ou mesa feita de madeira especial e bruta para fazer pão ou pasteis, aos
quais poucas vezes se tem claro que constituem espumas semiconsistentes, com base
em uma inflação de células de ar na massa, produzida pelo calor. O gesto de remover a
massa é a pegada da aphrogenia mais cotidiana, um interior que comporta interiores. A
modernização dos meios de construção conseguiu produzir uma gama de espumas
artificiais, que vão desde os conhecidos materiais espumosos PVC artificiais, até as
espumas de metal e outras espumas consistentes de vidro, pedra, cerâmica, espuma
mecânica utilizada para extinção do fogo funciona com uma combinação de abafamento
e resfriamento das chamas, e é utilizada primariamente em superfícies que contém
líquidos inflamáveis (classe B), que não podem ser combatidos com água. A espuma é
formada por uma mistura de água e LGE (líquido gerador de espuma), geralmente nas
proporções de 1, 3 ou 6%. Dentro dos extintores de incêndio a solução já está misturada
(pré-mix) e em linhas de hidrante normalmente se utilizam proporcionadores de espuma
para realizar a dosagem indicada. Com a introdução dos aerogéis se conseguiu produzir
uma inovação elegante no campo das tecnologias das espumas, não se excluindo a
possibilidade de espuma com gás e princípios spray em perfumes e derivados. No que diz
respeito a arquitetura moderna, ela se inspira de múltiplas maneiras na potência
conformadora de espaço das estruturas espumosas como as células habitacionais
plásticas dos anos 50-60.
Em 1956, o arquiteto francês Ionel Schein, nascido em Bucareste em 1927,
projecta a viria a ser a primeira unidade de habitação autónoma construída totalmente
em materiais plásticos, e que viria a ter grande repercussão nas obras do grupo Archigram
e nos Metabolistas. Ao conceito de mobilidade soma-se uma nova definição de um
espaço interior orgânico, modulado e altamente rentabilizado, com elementos
reversíveis e integrados na estrutura principal. Baseava-se ainda na possibilidade de
expandir e combinar dois ou mais volumes, ou de funcionar de modo autónomo. Um ano
422

mais tarde é construído um protótipo habitacional no parque de diversões da Disneyland


apelidada de Monsanto's House of the Future (Featuring Futuristic Things You'll Be Able
to Buy in the Future). Como o próprio nome indica, tratava-se de um protótipo do que
seria uma habitação do futuro. Construída totalmente em materiais plásticos, de um tom
branco e brilhante, apresentava, ao longo de três quartos, duas instalações sanitários,
uma cozinha e duas salas 37, um total de 99,97% de materiais sintéticos desde a
estrutura, a revestimentos ou mesmo à decoração, não havendo materiais naturais,
recicláveis ou renováveis. Quer este protótipo, quer a obra de Ionel Schein, inspiraram o
trabalho de Jean Maneval, arquitecto, urbanista e teórico francês, que, em 1964,
desenvolveu uma unidade de habitação construída totalmente em materiais sintéticos.
Esta faria parte de um programa de habitações, para uma estância de férias nas
montanhas dos Pirinéus. A unidade habitacional deveria ser produzida industrialmente,
comercializada, e ser facilmente transportável por via terrestre. Viria a ser conhecida
como a Six-Shell Bubble. Cada unidade, com aproximadamente 36m2 de área habitável,
era constituída por 6 gomos de polyester insuflado e armado, isolado por uma espuma
de polietileno. Os módulos eram ligados entre si por juntas elásticas, facilitando a sua
montagem e desmontagem, e eram suspensas de um mastro central metálico com uma
sapata em betão, que seria o único elemento em contacto com o terreno de implantação
e que suportava, igualmente, o piso da célula. No seu interior, o mobiliário estava já
integrado, tendo em consideração as características formais da habitação, e apenas as
escadas metálicas que permitiam o acesso ao interior da casa, eram elementos
independentes. A encomenda consistia num total de 20 unidades divididas por três
versões de coloração: branca, verde e castanha, para uma maior integração na paisagem
envolvente. A produção terminou em 1970 com a conclusão de 30 células habitacionais
que, pela importância dada à integração numa paisagem específica, introduziram uma
nova reflexão, sobre as vantagens deste tipo de arquitectura. Como se verifica, é possível
utilizar a industrialização e a mobilidade como premissas para desenvolver projectos, e
não só para clientes e localização desconhecidas e indiferenciadas. Neste caso, o projecto
resultou de uma encomenda concreta, não se limitando apenas a um exercício formal e
experimental em torno de uma ideia de mobilidade.66

66
MENESES, Nélia Maria Neto. Arquitetura (s) Nómada (s) – Paisagens Em Constante Mutação. Prova Final
de Licenciatura em Arquitectura. Universidade de Coimbra Faculdade de Ciências e Tecnologias –
423

Estas juntas com o geometrismo e o organomorfismo da Modernidade,


constitui, por assim dizer, um caminho mimético natural da arquitetura moderna. A nova
constelação leva em consideração o frágil e o sério, numa revolução do “estado das
coisas”: espuma e fertilidade. Afrologia do grego – áphros, a espuma é a teoria dos
sistemas co-frágeis. A deusa nascida da espuma, uma aphronene – afrogênese, onde a
espuma mesma adquire a capacidade de geração, de dar à luz, o seu crescer na espuma,
Afrodite. A espuma láctea é não se converteu em somente em uma matriz para novos
processos gerativos de um moldador, ela mesma é produzida por uma operação
afrogênica, engendradora de espuma em um segundo sentido da palavra, para a
produção desde espuma aparece a espuma. A formação de espuma da espuma. No caso
da zoogênese, teríamos um exemplo que é a alga verde Volvox, que forma um coenóbio
na forma de uma esfera oca numa espécie de espuma estável.
A atual conexão de tudo em rede do planeta inteiro com todas as suas
ramificações e diversidade do domínio virtual representa do ponto de vista estrutural não
especificamente uma “globalização”, mas uma espumização. Nos “mundos-espumas”, as
bolhas isoladas não são admitidas em uma única hiperbola integradora. O que ocorre
exatamente com as concepções metafísicas do mundo, pois, elas se amontoam em pilhas
irregulares e com multiplicidade de formas. No que diz respeito as possibilidades criativas
do espaço no cenário do século XX, uma gama de abstrações de estádios e apartamentos
tomam conta do entorno vemos a espumização acontecer. Uma aniquiladora do espaço
individual, da multidão em grandes contêineres. Na outra, uma predominância de
espumização civilizatória da “sociedade” em amontoados células egosféricas e
egotécnicas. A Modernidade aparece como um experimento de levitação expansivo e
transcultural com o destaque colocado na espumização do real graças a introdução de
momentos de impulso ascendente no complexo da gravidade. Devemos pressupor agora
que a noção de “sociedade” e as espumas tem uma tendência para a antigravitação,
entendida como a imunização perante a gravidade paralisante. Um tempo de técnicas de
imunização, de desoneração e reoneração perante um giro à leveza, acompanhado de
um sentido civilizatório de momentos anti-estresse. Tendo em mente a esferologia e sua
espumização, devemos mencionar que a totalidade do campo social modernizado é um

Departamento de Arquitectura, 2007, pp. 62-63. Disponível em:


<https://estudogeral.uc.pt/handle/10316/3753?locale=en>. Acesso: 03. Jun. 2019.
424

sistema multicameral composto de células de impulso ascendente, os “mundos da vida”,


onde os simbiontes usufruem de efeitos antigrativacionais em virtude dos meios de
leveza acessíveis para eles. Um mosaico de coconforto, cofrivolidade, co-isolamento,
cohisteria como espaço simbiótico. Quem quer aprender a nadar vai a um professor de
natação, que tem dores nos pés vai a um ortopedista, quem quer aprender vai à escola.
Não há uma única necessidade para a qual a sociedade, hoje, extremamente diferenciada
em subsistemas e subculturas não tenha um destino pertinente. Talvez no máximo um
amor não correspondido. Graças à diferenciação em sistemas, surge uma situação em
que cada vez mais pessoas compreendem que não é possível ter uma relação com alguma
totalidade. Do ponto de vista cultural universal, estamos perante um pluralismo dos
universalismos, mas em relação a todos eles, devemos dizer restritivamente que têm um
caráter regional e não podem ser extrapolados, tal para uma dimensão global. Além disso,
como já falado anteriormente, as espumas têm forte tendência para infestações
miméticas, epidemias paranoides e mídias. Condições climáticas que seu conteúdo como
polo de constituição deve girar entre leveza e conforto. Heidegger não se deixou levar
por essa visão de leveza. Por mais que sejam contemporâneas suas teses, especialmente
sobre os fluxos descarregadores na economia doméstica climática do ser-em-no-mundo
moderno, ele por hábito, e por talvez flertar com a visão da Velha Europa, junto com a
situação da Alemanha na época, preferiu se deixar levar pelo duro, pesado e cansativo.

Materiais porosos de base férrea.


425

Desenvolvimento espontâneo de construções, relativamente estáveis. Espumas


semissecas.
426

Burj Khalifa – Prédio mais alto do mundo. Dubai, Emirados Árabes Unidos.

Para falar sobre isso, Sloterdijk utiliza trabalhos de Jakob von Uexküll sobre A
Teoria da Composição da Natureza. Uexküll acreditou que foi um erro crer que o mundo
humano proporcionaria uma plataforma comum para todos os seres vivos. Todo ser vivo
tem uma plataforma especial, que é tão real como a plataforma especial dos seres
humanos. Por esse reconhecimento conseguimos uma nova visão do universo. Este não
consiste em uma única bolha de sabão, que havíamos inflado e soprado para cima no
nosso horizonte até o infinito, e sim milhões e milhões de bolhas de sabão estreitamente
delimitadas que se cruzam e se interferem por todas as partes. Merleau-Ponty em sua
obra A Estrutura do Comportamento de 2006 (versão em português), faz referência à
Uexküll67 dizendo que “Todo organismo, é uma melodia que canta para si”.

67
Para maior aprofundamento, indicaria o trabalho de SOUZA, Elaine Cristina Borges. A Teoria de Mundos-
Próprios de Jakob Von Uexküll: Entre a Metafísica e o Naturalismo. Editora: Novas Edições Acadêmicas,
2013. Ou a sua tese de mestrado que virou o livro de mesmo nome que acabamos de mencionar. Disponível
427

Sloterdijk está aqui desenvolvendo uma ideia que Walter Benjamin se referiu em
seu Arcades Project. Ele parte da assunção antropológica de que as pessoas, em todas as
épocas, dedicam-se a criar interiores e, ao mesmo tempo, procura emancipar esse tema
de sua aparente atemporalidade. Então, ele pergunta: como o homem capitalista do
século XIX expressa sua ânsia pelo interior? A resposta é que ele usa a tecnologia mais
avançada para orquestrar a mais arcaica das necessidades, a necessidade de imunizar a
existência, ao construir ilhas protetoras. No caso da galeria (arcade), o homem moderno
opta por vidro, ferro forjado e um conjunto de peças pré-fabricadas para construir o
interior mais abrangente possível. Por essa razão, O Palácio de Cristal de Joseph Paxton,
erguido em Londres, em 1851, é a construção paradigmática. Ela forma o primeiro
hiperinterior que oferece a perfeita expressão da ideia espacial do capitalismo
psicodélico. Vale lembrar que Uexküll antes de morrer em 1944 foi para Capri – uma casa
de campo, casa esta que Benjamin se alojou por alguns meses em 1926. É o protótipo do
interior de todas os posteriores parques temáticos e arquiteturas de eventos. A
arquitetura anuncia a abolição do mundo externo. Ela abole mercados de fora e os traz
para dentro, para uma esfera fechada. Os tipos espaciais antagonistas do salão e do
mercado formam um híbrido. Isto é o que Benjamin considerou tão intelectualmente
excitante. O cidadão do século XIX procura expandir sua sala de estar para um cosmos e,
ao mesmo tempo, imprimir a forma dogmática de um quarto ao universo. Isso provoca
uma tendência que é aperfeiçoada no design de apartamentos do século XX, bem como
no design de shoppings e estádios. Esses são os três paradigmas da moderna construção,
isto é, a construção de microinteriores e macrointeriores.
Sloterdijk (2017, p. 103):

Visto dessa perspectiva bastante específica, o ser humano é determinado


como um ser que explodiu do sistema de parentesco animal, mas de uma
maneira que Heidegger não nos encoraja a interrogar. Em virtude de uma
alquimia ontológica impenetrável, os seres vivos que eram nossos ancestrais
primatas teriam se afastado de si mesmos e teriam se encaixado no sistema
de parentesco dos seres ecstase, com o resultado de que os deuses, se
existissem, estariam mais próximos de nós. do que nossos primos, os animais,
que são pobres no mundo, sem linguagem e enlaçados em seu ambiente.
Rudolf Bilz expressa um estado similar de coisas com um pouco menos de
patologia quando ele comenta: “Nós não somos animais, mas residimos, por
assim dizer, em um animal que vive em participação com aqueles como ele e

em: <http://repositorio.ufes.br/bitstream/10/6273/1/Elaine%20Cristina%20Borges%20de%20Souza.pdf>.
Acesso: 18 mai. 2019.
428

através do compartilhamento de objetos”. O que é animal é o que se move


dentro da jaula ontológica que os modernos, depois da engenhosa invenção
do termo de Jakob von Uexküll, chamam o Umwelt [ambiente], enquanto é
apropriado à essência do ser humano executar uma invasão do ambiente e um
rompimento com a insensibilidade ontológica, para a qual nunca encontramos
uma caracterização melhor do que a palavra mais trivial e profunda da
linguagem humana, a expressão "mundo" [Welt]. A ontoantropologia
pergunta sobre as duas coisas ao mesmo tempo: sobre o ecstase humano, que
é chamado de ser-no-mundo, e sobre o status do antigo animal que este devir-
extático atingiu.

Desde o alvorecer do século XX chamamos ambiente para todos os valores


integrais decisivos que não podemos abandonar, mas também inspirar-nos e, sem mais
delongas, a confiança. A cunhagem introduzida em 1909 Jacob von Uexküll no discurso
da biologia teórica, e que desde então seguiu um curso emaranhado que casualmente
serviu de precedente para outros conceitos aparentemente óbvios. Com a percepção de
que a vida é sempre uma entrada na vida em um ambiente (e nessa medida também
contra um ambiente), começa a crise incessante do holismo. Ou seja, a disposição
humana inveterada de abandonar os valores gerais próximos a ele e os deuses bons de
seu ambiente não tem mais um valor de orientação, uma vez que os mesmos ambientes
são convertidos ou começam a ser reconhecidos como construções. Na verdade, essa
busca quase religiosa para se conformar com um ambiente que primário é chamado
natureza, cosmos, criação natural, país, situação ou o que se fez presente no momento
do envenenamento-intoxicações, estratégias e escondidos motivos ocultos sob o disfarce
de sedução fatal não isenta de riscos perigosos para si mesma. A tendência progressiva à
explicação não só força a ingenuidade a empreender uma transformação de seu
significado, como também essa de modo crescente é algo raro, até chocante. Ingênuo é
agora o que leva ao sonambulismo no meio do perigo que paira sobre hoje. Uma vez que
se perceba o que significam o primeiro e o segundo efeito estufa, a vida e a respiração
sob o céu aberto não podem mais significar o mesmo que no passado. Do berço do
homem mortal ao ar livre, apareceu um aspecto sinistro (Unheimliches), inabitável,
irrespirável. Depois que Pasteur e Koch descobriram a existência de micróbios e
propagaram sua descoberta pelos habituais canais de propaganda científica, a existência
humana é obrigada a reconhecer disposições explícitas à simbiose com o invisível e, mais
ainda, à prevenção e defesa contra os competidores microbiológicos que precisamente
agora intervêm. Após os ataques com gases tóxicos por parte dos alemães, bem como os
429

respectivos contra-ataques dos aliados, após o ano de 1915, o ar perdeu sua inocência:
desde 1919 também pôde ser considerado, mesmo em pedaços, um objeto de presente
como um ready-made, e desde 1924, na câmara de gás, servem como um meio para
executar criminosos. Os experimentos de Uexküll com ilustrações que sugeririam como
seria um segmento do mundo visto do ponto de vista de uma abelha, cão ou um
carrapato68, alcançou seu ponto alto neste último por força realista que foi capaz de
imprimir à sua descrição do ambiente, que constitui o ápice do anti-humanismo moderno
junto com Ubu rei e Monsieur Teste.

Fotografia de uma espuma de bolha tomada por R. P. Taylor.

68
UEXKÜLL, Jacob von e KRISZAT, Georg. Streifzüge durch Umwelt von Tieren und Mensch. Verlag: FISCHER
Taschenbuch, 1983, pp. 85-87.
430

Simulação inicial por computador de uma espuma líquida bidimensional, que pode ser usada
para o cálculo de uma curva de tensão-deformação, como mostrado em (b). A inclinação da
variação inicialmente linear de tensão com deformação é proporcional ao módulo de
cisalhamento da espuma. Na grande amostra em massa, a curva recortada é suavizada. S. J.
Cox.

Veremos que suas ideias de Sloterdijk iniciadas em Bolhas funcionam como um


“uterotopo” nas Espumas. Elas estão centradas num tipo de substituição de mães por
mães postiças. É absolutamente óbvio que o lugar onde o homem habita deve ser uma
incubadora que nos estabiliza na nossa imaturidade. A possibilidade de exteriorizar a
seguridade que produz de imediato uma tendência para o luxo. O núcleo do luxo é
sempre o infantilismo. Esta definição da humanidade como uterotopo confere a mulher
um rol muito específico sem seu desenvolvimento. O livro básico de todos nossos
conhecimentos biológicos deveria se intitular: “A origem da mulher” e não “A origem do
homem” porque a mulher não é só um sexo, mas uma situação. Dessa maneira, ela é
ontologicamente falando, mais cheia e rica que o homem. Sem dúvida, vemos uma
apropriação do varão das riquezas femininas. Porém, a mulher não se apropriou de nada.
Ela encarna o ser em toda uma situação. Hoje, até o último sociólogo e o último
431

psicanalista admitem que já não podem conceber o Estado moderno conforme o modelo
patriarcal. Todo o mundo já compreendeu que é preciso refundar a função do Estado
dentro da terminologia de uma maternização política abarcadora. Uma política surge
como um renascimento da mãe física para uma metafórica: o Estado que funciona como
regaço maior e superior. É ele que molda o invólucro psico-acústico que se estende sobre
a pólis como espírito comunitário. Uma antiga política de hordas na esfera psico-acústica
deverá ser ampliada e reproduzida como um círculo mundial como cosmos. Uma ideia
que vai do biomecenato ao mecenato enquanto generosidade. A mãe funciona como
biomecenas e depois é substituída por mecenatos semelhantes, até uma situação, vivida
na globalização contemporânea de um mecenato universalizado. Tudo se inicia na
microesferologia. Temos a relação feto-útero, depois feto-mãe, depois filhos-e-mãe.
Posteriormente, no âmbito macroesferológico, então, surgem as instituições que cuidam
de filhos, e que se fazem como as mães, se erguem como necessidade social reconhecida
por todos. O mimo é o elemento central dessa ressonância da díade inicial que dever
perdurar como um contínuo cordão umbilical que eleva o homem da situação de mimo
à de mais mimo. O espaço humano tem de ser um espaço de mimo e de imunidade, um
novo útero ou um novo lugar de cuidados maternos. Então, isso de alguma forma seria
um mecanismo como um tipo de caridade feita não por pena, mas pelo bem cuidar e pelo
querer ver o bem. A mãe e o pai se doaram nessa relação primitiva. Deram mais do que
receberam (um tipo de voluntarismo – Sloterdijk fala em “comunismo primitivo”, até
mesmo de “socialismo do fogo”). Somos seres durante boa parte da vida cuidados pelos
outros. Professores, pais, amigos, parteiras, enfermeiras, empregadas, médicos. O
homem é um ser que amadurece muito tardiamente, portanto, um ser que necessita de
luxo. Estamos imersos ainda hoje, em uma ideologia individualista, principalmente no
ocidente, da autonomia, de que o indivíduo vem primeiro antes de tudo, a tradição vem
desde os estoicos até os liberais de tempos presentes. Esta ideologia impediu um debate
antigo da primitiva divisão do estado de vigília nas díades-tríades íntimas, sem razão a
modernidade é o arauto do individualismo onde antes mesmo de nascermos já tempos
nome, roupas, uma elevação do indivíduo como sujeito que dá atenção a si mesmo. Não
é de se espantar a constante e elevada preocupação de cidadãos, na política de serem
obrigados a viver numa preocupação pessoal constante, uma bolha de distância da
solidariedade dos grupos de vela da antiga antiguidade. A obsessão individualista nos
432

atomiza. A toda poderosa herança da metafísica do indivíduo e da substância apanha a


inteligência humana, graças a uma miragem gramatica sobre o núcleo do duro e do real.
O pensamento da substância não deixou de nos levar a procurar o essencial do mundo e
da vida naquilo que tem persistência material e formal, naquilo que se vê nos objetos e
nas situações que nos deparamos, enquanto sua essência. Compreendemos o essencial
à luz de uma concepção ontológica da coisa. A substância é aquilo que dá consistência e
peso ao mundo na sua dimensão íntima, por um ponto de vista universal, só valem a pena
as coisas e as regularidades que trazem o nome de substanciais. Na ordem das coisas e
na ordem das palavras reina, portanto, uma inclinação para o que é sólido, pelo
apreensível, tocável, substancial, fundamental, firme – ideias de que coisas firmes,
sólidas, isoladas, os objetos e as pessoas físicas individuais formam uma espinha dorsal
do real. Com essas considerações, poderíamos dizer que nossa cultura bebe das tradições
de Aristóteles em considerar uma gramática filosófica substancialista e individualista. O
futuro implica o abandono do individualismo clássico. Trata sobre o ser em conjunto.
"Cada ser está acompanhado". Devemos radicalizar a ideia do vínculo, exaltar a
transmissão e refutar a solidão. Hoje em dia devemos ter uma atitude revisionista com o
conjunto de pensamentos caracterizados como a “época da metafísica”. Sloterdijk
interveio nesse processo da substância e sua solidão. Nossa cultura cometeu um erro
fundamental ao falar do sujeito humano em sua solidão. Foi demasiado longe na vontade
de analisar. Devemos olhar para o dois. O individualismo metafísico dos ocidentais fala
do ser humano com uma terminologia mais própria de estrelas, de grãos de areia de
indivíduos físicos que não conhecem o êxtase do ser vizinho. Os seres humanos são, nessa
visão não substancialista, seres literalmente surreais porque vivem no surrealismo de
suas relações sempre recíprocas e assimétricas.,
A antiga tendência para a transformação da atenção da vigília de grupo em
autocontemplação virou parte das condições sob as quais foi possível (no filosofar grego),
o primeiro descobrimento do espírito em culturas avançadas da época de ruptura. O
pensamento só pode evoluir para uma cultura do argumento, quando uma auto-atenção
canalizada de outro modo libertar o indivíduo para a preocupação pela adesão cerrada
ou lógica às ideias dos seus antecessores, a hora do texto e da “consciência interior”.
Desde o surgimento das chamadas altas ou grandes culturas esta organização se fez
capturada em instituições, que diferenciam entre sábios e profanos como entre dos
433

povos dentro da mesma população. Isto se explica, entre outras coisas, pelas
circunstâncias de que grande cultura e cultura escrita são sinônimos em sentido amplo.
O monopólio de poucos da escritura e ao analfabetismo da maioria atuarão como
constantes eterna nos três primeiros milênios da arte da escritura. Inclusive depois de
impor-se a alfabetização geral, as culturas, como as artes, voltam a se dividir em high e
low. Todavia ao começo da Modernidade europeia, quando Francis Bacon formula o
programa de uma “sociedade” investigadora e em avanço, se fez um monumento da
bipartição: também no Estado modélico da Nova Atlântida existe uma Câmara alta do
saber, uma universidade de elite, dedicada ao progresso puro, chamada Casa Salomão,
cujos membros, como em uma ordem de cavalaria cognitiva, estão obrigados a guardar
estrito silêncio sobre certos conhecimentos não publicáveis. É notável que o acesso a
verdade se converte em um assunto dos especialistas provocando uma distância entre
os comuns e a elite. A diferença entre o sábio e a massa comum está feita.
Posteriormente na modernidade, veríamos o “reducionismo” do mundo em sujeito. A
filosofia e o saber em geral seria para “dominar” o mundo. Se olhamos por Heidegger,
por exemplo, entendemos a modernidade como a “época das imagens de mundo”. O
filósofo alemão nota o advento de Descartes e Kant como sendo o tempo da instauração
do vocabulário que contém os termos sujeito e objeto em um sentido humano. Uma coisa
que nós modernos fazemos diferente dos medievais e antigos é trazer quase tudo para o
âmbito subjetivo. O renascimento, as navegações, o humanismo (de trazer as coisas para
o homem ao invés de deixa-las para Deus) lembra muito bem a centralização do homem
que tem a ver com a centralização nossa em questões subjetivas. Trazer as coisas para o
homem e daquilo que o homem entende que pode ser como “ser sujeito”. Ao contrário
dos antigos, que não viam sujeito e objeto com sendo o homem, nem por exemplo o
espírito e reconhecimento de Hegel, Hume ou Pascal, mas como substância e base
gramatical, os tempos modernos criaram uma “metafísica da subjetividade”, uma teoria
filosófica que fez do homem a substância, o fundamento de tudo, uma vez que o Cogito
cartesiano seria a base para a primeira certeza.69 Assim, sendo função do homem, o
próprio mundo passou a ser uma representação – representar é uma atividade humana.
O mundo se tornou algo para o homem, sendo este, agora, o sujeito. Tudo se fez tendo

69
JÚNIOR, Paulo Ghiraldelli. A Filosofia Como Crítica da Cultura. São Paulo: Cortez, 2014, pp. 104-110. Ver
o capítulo: 23 - Pascal, Machado e o eu na pós-modernidade e 24 – Jesus inaugura a modernidade.
434

o homem como palco e ator, e esse, em sua inteireza, uma vez posto pelo subjectum, se
fez objectum. Assim, o homem teria adquirido força manipuladora sobre tudo. A
metafísica da subjetividade se fez a metanarrativa das narrativas científicas. A ciência
moderna, altamente manipuladora, abriu seu ventre para a técnica. Somos
objetivamente o mundo da técnica ao mesmo tempo que somos propensos a tudo
subjetivar e, numa virada decisiva para o humanismo, a psicologizar. O ponto central de
tudo seria o sujeito, a subjetividade, a ideologia, autonomia da razão, autonomia do
sujeito. Seriam “filosofias do sujeito”, filosofias do engajamento, individualismo ou
filosofias da linguagem como Descartes, Rousseau, Kant (sair da “menoridade”, ganhar a
liberdade de poder fazer o que tem de ser feito, ou seja, obedecer só a si mesmo, em
outras palavras, ter autonomia: auto e nomos – autoria própria nas leis que segue. Para
Kant, e para a tradição iluminista em geral, os processos de formação têm êxito quando
são empreendidos como caminhos para o uso da razão. Mais do que a maioridade, a
capacidade de contratar e o direito ao voto. No sentido kantiano, possui o uso da razão
aquela pessoa que sabe usar o seu entendimento, sobretudo nas questões religiosas,
“sem orientação de outro”. Uma lei racional inerente ao eu, um dever de consciência,
com um grau de formalidade alto. Habermas (agir comunicativo-intersubjetividade),
Heidegger com a metafísica do sujeito, Marxismo (onde havia contemplação, deve haver
agora, mobilização), Feminismo, Existencialismo, entre outros. É aqui que a “Morte
Aparente no Pensamento” não se verifica. Não se consegue fazer epoché, então se
fracassa a suspensão do juízo para filosofar. A ascese teórica inicial, é um esforço do
pensador em deixar-excluir na medida do possível os aspectos de sua própria vida
existencial que impedem a teoria, e como as raízes da obstrução da teoria descem até
um enraizamento da existência “empírica”. Esse movimento ascético é uma tentativa de
morte em vida. Seria o que Sócrates falou em Fédon: “Que um homem se esforçasse a
vida inteira por viver muito perto de estar morto e depois resistisse quando a morte
chega realmente?”. Na modernidade se vive em lutas pelas visões de mundo. São lutas
cognitivas de classes. Com efeito, surge desde a Antiguidade, os portadores do saber
superior como um movimento ecumênico e posteriormente como ascetas. Uma
composição de lógicos desterritorializados, maestros da ética da humanidade ou os
ascetas alienados do mundo. Veríamos coisas como pacifismo meditativo ou acadêmico.
Imitadores de cristo, ética protestante, islamismo com militantismo, peregrinos,
435

monastérios, eremitas, processos endoretóricos, escapistas, flagelação, sagrado e


profano, soldado e general, pastor e ovelha, especialistas e leigos. Se tivermos como
referência que os grupos de humanos primitivos foram tirados de uma espécie de
formação insular de uma velha natureza, agora deveríamos constatar que grupos
humanos desde o fenômeno da soberania se tornou viral, começou uma exploração dos
outros grupos humanos como naturezas externas: uma secessão entre os homens e do
homem pelo homem. Foram eles que primeiramente deram penetração revolucionária à
ideia de que o verdadeiro pensamento só é possível na forma de pensamento próprio e
de pensamento diferente da multidão ordinária. De seus impulsos origina-se o modelo
da clausura na cabeça.
Se os pensamentos são livres ninguém pode advinha-los e isso significa a
primeiro momento, que os pensadores de novos pensamentos se tornam impenetráveis
para os guardiães dos pensamentos convencionais. No mundo dos novos pensamentos
deixa efetivamente de ser regra que os pensamentos de um são também os do outro.
Não é possível que eu adivinhe no outro algo que eu próprio não penso. A inteligência
pré-alfabética, ao contrário da alfabética capaz de distanciamento, aponta para um
denso clima de participação porque estando totalmente imersa na comunicação de
proximidade, necessita para desenvolver-se da experiência de uma comunidade presente
de cérebros e de nervos. Na era da leitura essa comunidade se transformaria em uma
quase república telepática de eruditos, que tem por acaso, seus “espíritos do tempo”. É
graças a escrita que os espíritos do tempo podem retornar às atenções atuais.
O individualismo poderia ser uma forma de vida que relaxa a inserção de cada
pessoa no coletivo e questiona o absolutismo do comum, algo aparentemente
impensável até então, ao atribuir a cada ser particular a categoria um absoluto, a um
bastante por si e para si mesmo. A total certeza na existência própria como mais autêntica
que tudo aquilo que envolve o coletivo. Se não fosse assim, as elites do mundo não
estariam discutindo constantemente sobre a sustentabilidade de seu modus vivendi.
Sustentabilidade aparece como um sintoma semântico fundamental de crise das culturas
de hoje em dia. Aparece nos discursos dos responsáveis como se fosse um tique nervoso
que nos leva a deduzir tensões desenfreadas em nosso sistema de pulsões. Um mal-estar
que se espalha como um sentimento de fugacidade cada vez mais intenso. A teoria dos
grandes corpos pode constituir um compositum no qual se integram as teorias do
436

estresse, as teorias dos meios, a teoria do crédito, a teoria da organização e a teoria das
redes. Uma alta importância para a palavra estresse deveria ser melhor analisada. Os
grandes corpos políticos, o que denominamos de “sociedade, devem ser entendidas
como um campo de forças constituídas pelo estresse, como sistemas de preocupações
que se estressam a si mesmos e se precipitam e encaminham permanentemente. Um
tom de inquietude é conservado dia-a-dia, ano a ano. Neste sentido, uma nação é como
um coletivo que consegue se manter e manter uma inquietude comum. Deve abrigar um
constante fluxo de temas mais ou menos estressantes que se ocupem da sintonização
das preocupações das consciências para integrar a população correspondente como uma
unidade, comunidade de preocupações e estímulos renovados diariamente. Por isso, os
meios de comunicação são indispensáveis em nossos dias, seu funcionamento permite
uma produção de coerência nas comunidades nacionais e continentais de estresse. Eles
são os principais responsáveis para que haja um vórtice de ofertas incessante de temas
irritantes, que se mantem unido por meio de contratensões. A função dos meios numa
sociedade tomada pelo estresse consiste em evocar e provocar ao coletivo, enquanto tal,
apresentações de propostas novas a cada dia, a cada hora, para que estes se excitem, se
encham de dívidas, se exaltem. Uma multiplicidade de possibilidades que apontem para
o sentimentalismo, ao medo, para a indiscrição de seus membros. Os receptores elegem
estas ofertas todos os dias. A nação é um plebiscito diário, onde não tem como tema a
Constituição, mas sim sobre a prioridade das preocupações. Ao decidirem entre as
possibilidades ofertadas por uma excitação sincrônica, os grandes grupos, que não
deixam de tremer seu sistema nervoso, reproduzem o éter da comunidade, sem o qual,
não pode aparecer-originar a coesão social, ou pelo menos a aparência de uma, ao longo
da extensão dos grandes Estados. A atualização do laço social no sentir de seus membros
só pode levar à cabo mediante a criação simbólica de um estresse tematizado de maneira
crônica. Quanto maior são os coletivos tanto maior devem ser as forças de estresse que
operam contra a decomposição do coletivo, em uma realidade impossível de reunir, em
um patchwork de chaves e enclaves introvertidos. Se um coletivo se enfurece diante da
ideia de sua própria desaparição, isto significa que possui um bom nível elevado de
vitalidade. Faz o que os melhores coletivos sãos fazem. Eles conseguem exaltarem-se,
excitarem-se, é dizer, que debaixo de estresse, fazem e dão o melhor de si. Por isso, não
437

faz sentido mais perguntar-nos se se trata de um coletivo fechado monoculturalmente


ou de uma composição multicultural.
Foi no primeiro livro de Ab urbe condita onde Tito Livio conta que os romanos
ser libertaram do jogo da tirania e do reinado de Tarquinio e fundaram a res publica, fato
é que até hoje, junto com resquícios de algumas características da cultura antiga das
cidades-Estados gregas é que se baseiam os modelos de sociedade civil solidária. O mito
fundacional trata de Sexto Tarquinio, um dos filhos do violento Tarquinio – O Soberbo.
Sexto Tarquinio decide entrar na casa de uma mulher chamada Lucrecia, e a força,
manter relações sexuais com ele chegando a dizer que iria matar não só ela, mas também
um escravo, para assim colocá-los juntos e anunciar que ao chegar em sua casa a
surpreendeu cometendo adultério. Ao sair Sexto, Lucrecia chama seu marido e seu pai.
Fala o ocorrido no intuito de eles prometerem vingança e se mata com um punhal para
pôr fim à desonra. A notícia rapidamente se espalha na cidade de Roma, causando uma
onda de indignação que atinge o ânimo de todos. Os romanos se reúnem, um consenso
comovente faz uma concentração que pode ser considerada a primeira de caráter livre e
burguesa. Os reis serão derrotados, os tiranos expulsos. Nunca mais um arrogante deverá
o ser comum dos romanos. A história trata no nascimento da liberdade republicana a
partir da indignação mútua ou indignação coletiva. Isto converte todos os integrantes em
um grupo de estresse agressor que se transforma me uma comunidade política.
Um afeto político liberal diante da vilania A liberdade política entra em cena no
solo europeu como uma força de ira compartilhada por outras milhares de pessoas. A
arrogância do poder não se manifesta unicamente no tirano, mas também em seus filhos,
tanto para os antigos como para os modernos. Esse sentimento antimonárquico da
psicologia política dos romanos não é uma surpresa. A palavra rei já causava uma aversão
muito grande entre os membros da valente república patrícia. Se formos para a Grécia,
veremos que lá há também uma consciência libertadora emergente frente a um tirano.
Aquilo que os gregos chamavam de eleutheria, uma palavra que convencionalmente
traduzimos por “liberdade”, dá lugar a impropriedades. Em princípio esse termo não
significava nada mais que o desejo de viver autonomamente (de forma autoexpoencial),
de acordo com as patrioi nomoi, ou seja, os costumes dos padres de viver entre pessoas
do próprio povo e não terem que se submeter a vontade de nenhum indivíduo superior
ou engrandecido. Nem os romanos nem os gregos se preocupavam com “direitos
438

humanos” ou a “liberdade de opinião”, o louvor grego diante da sinceridade verbal entre


homens, a chamada parrhesia, já era suficiente, era um “dizer tudo”, que parecia ser uma
forma prévia desta que mais futuramente seria amparada por lei, a liberdade de
expressão ou opinião. Esse valor da palavra na Grécia possuía um valor mais de culto
agonal, uma extensão de um certo atletismo ao combate verbal na esfera do diálogo
sobre a verdade do que um “direito político” ou “direito civil”. Se o sujeito da liberdade
antiga é o povo, ou melhor, um complexo de demos e ethos, que dá lugar a polis. Visto
nesse contexto, liberdade seria nada mais que um direito de um coletivo ao isolamento
étnico em si mesmo. É um submetimento ao guiar-se por costumes, tradições e
instituições que compartilham todos os membros do coletivo desde jovens, um
despotismo de suas tradições. Por isso, quando Platão foi preso fora de Atenas e vendido
como escravo, foi comprado por um filósofo epicurista para poder lhe restituir a sua
liberdade e voltar para Atenas. Ele voltou a ser grego. Fazia parte do ethos grego manter
a honra de um cidadão grego e, portanto, restituir sua dignidade – sua condição grega,
sua liberdade grega. A sociedade moderna entende a liberdade de outro modo. Uma
ideia de liberdade enquanto faculdade humana individual. Fazer o que se quer fazer como
indivíduo. Uma liberdade mais próxima ao livre-arbítrio de Agostinho e das fileiras cristãs.
Uma excelente fusão com o liberalismo moderno. Trata-se do império do cidadão livre.
Se diz que um país é livre, como os americanos, ao querer viver em um país livre, sem
dominação exterior, mas ao mesmo tempo, toma o seu ethos, uma obrigatoriedade como
elemento interno. Mais recentemente, a Suíça havia desempenhado um papel
importante na história da renovada liberdade de pensamento republicana e na história
da subjetividade moderna. Rousseau será o nosso alvo. Rousseau foi um grande escritor,
mas com a obra Emílio foi lido como uma religião de coração panteísta, lhe rendeu
inúmeras inimizades com o alto clero de Paris e com os grandes nomes de Genebra. Foi
emitida uma ordem de captura e lhe foi autorizada uma revogação de residência. Em
setembro de 1765, uma multidão de pessoas tacou pedras na residência de Rousseau em
Môtiers. Doze anos mais tarde, Rousseau chamaria o que lhe ocorreu de
“apedrejamento” na sua outra obra chamada “Os Devaneios do Caminhante Solitário”.
Rousseau não pareceu ter percebido que a sua própria presença foi o motivo do ataque.
Rousseau nunca conheceu a lei da proeminência moderna. Aquela que no começo da
modernidade seria motivo de terror na história do começo das “culturas de massas”. Ele
439

talvez não tenha sido o primeiro a descobrir, como outras tantas estrelas, uma queda
depois de um ápice. Mas com certeza, este fato é um marco para a psicologia. Foi o
testemunho de descobrimento de que há paranoicos entre aqueles que persegue a
verdade. Posteriormente, Rousseau toma a decisão de se isolar junto a Marie-Thérèse Le
Vasseur em uma deserta em meio ao Lago Biel. Esses dias seriam de grande importância
na história do pensamento europeu. Algo como um Big Bang da poesia da subjetividade
moderna, que de imediato passou para a filosofia da liberdade. Talvez um evento muito
mais implosivo que explosivo, Rousseau descreve uma cena em seu Quinto Passeio.
Rousseau se refere a “um turbilhão interior”. Ele havia tido a ideia de passear pelas águas
da ilha em uma embarcação, esse turbilhão ficou com o nome de rêverie, devaneio. Uma
meditação abstrata. Assim, Rousseau criou uma situação cartesiana às avessas: não
penso, logo existo. Percebeu sua existência pelo devaneio, pela vivência sem conteúdo
conceitual ou sentimental, pelo completo não pensar ao ficar entregue ao vazio mental
de uma tarde no lago Biel. Rousseau teve a experiência da individualidade que o levou,
depois, a pensar no conceito de “vontade geral”, ou seja, o que se tornaria uma diretriz
comum para um povo individualizado, mas sob o beneplácito da vida em um estado
democrático, onde ninguém seria mais que o outro. Em suas experiências à deriva e sem
propósito, descobriu a duração psíquica pura em que desaparece a sucessão habitual do
tempo, com suas recordações e antecipações, para dar lugar a uma sucessão torrentosa
de “momentos agora”, sem carências e nem ausências que o perturbe. Estamos diante
senhores, da expressão de um conceito de existência no qual sai de cena nada mais nada
menos que o indivíduo moderno. Este indivíduo se apresenta como um novo sujeito da
liberdade. Esta jovem liberdade não é para empresários, compositores ou descobridores.
É a liberdade de um sonhador acordado. Essa foi uma experiência da liberdade na qual o
sujeito apela para sua ou apela a sua “experiência sentida”, além de todos os resultados
e deveres, além de qualquer reconhecimento do outro. A primeira palavra do sujeito é
uma autoincriminação. Esta consiste em explicar seu êxtase ao descobrir o “estar-
consigo-mesmo”, e não tem nada que dizer sobre ele. É uma existência pura, uma crença
em ter havido conquistado um título de soberano do ser. Hegelianamente entre tantas
“consciências infelizes reinantes”, Rousseau descobriu um acesso contemporâneo a uma
consciência feliz. Rousseau descreve um estado de inutilidade elegida na qual o indivíduo
está recluso em si mesmo, e ao mesmo tempo, liberado de qualquer identidade
440

cotidiana. No devaneio, o indivíduo foge da “sociedade” e se desvincula de toda pessoa


imersa no quadro social. Assim, livre é o indivíduo que conquista êxito na
despreocupação. Livre é aquele que experimenta o descobrimento de uma preocupação
interior. A partir deste momento só é livre aquele que dirige sua atenção para si mesmo
e alcance a fonte desse sentimento de existência comece a fluir em seu interior, não
como forma de tédio como vemos em Heidegger, nem em forma de desgosto como em
Sartre, mas sim como uma afirmação abstrata genérica que se manifesta previamente a
qualquer consentimento.
A maneira de Sloterdijk ver o drama da necessidade x liberdade, é por um lado,
Hegel que nos ensinou que a liberdade é a consciência da necessidade, por outro,
Rousseau também nos levou a acreditar que ser livre é escapar da oneração social,
inclusive da própria consciência. Uma “sociedade” com bom funcionamento, é aquela
capaz de dosar estresse e liberdade harmoniosamente, e nisso, toma os personagens da
Companhia de Jesus. Sloterdijk toma a desinibição como um elemento bastante
importante de modo que aquele que quer se tornar sujeito efetivamente assim se realize.
Essa noção vem da tradição de Heidegger. Se a pedra é “sem mundo” e o animal é “pobre
de mundo”, o homem é “formador de mundo”. O Dasein, o ser-aí, o homem como uma
característica central. Ao contrário do animal que se encontra imerso em um “círculo de
desinibição”, ou seja, no campo que ele é animal, determinado e em que seu nicho
ecológico determinado, o homem inventa o equivalente a esse nicho, o seu nicho,
podendo inclusive alterá-lo. O desinibidor do animal sapo, é a mosca. Um campo em que
ambos os animais existem em um campo de desinibição em que a mosca faz movimentos,
ela põe o sapo em sua condição de sapo, para aí, ele lançar sua língua e apanhar a mosca.
Apesar disso, Heidegger fala que essa atividade é uma atividade frenética, mas que eles
vivem em um “atordoamento”. Eles estão atordoados no círculo desinibidor. Qualquer
outro elemento, coisa, pessoa, movimento, pode fazer o papel de mosca, imitando-a,
também pode haver um desinibir e provocar ação, mas isso sem eliminar qualquer tédio.
Não há aí um “entretenimento” que possua a função de driblar o tédio do atordoamento.
Segundo Heidegger, o homem pode estar em tédio, mas não no sentido do
atordoamento, e sim, no sentido daquele que sai do atordoamento para entrar no
atordoamento do tédio. O homem pode cair no tédio. Já o animal no seu maior tédio não
é aquele que caiu no tédio. Ele não pode cair no tédio. O elemento de desinibição, por
441

assim dizer, passa a ser visto como uma “condição humana”. Poderia se falar em
desinibição para o homem? O homem se desinibe para se poder fazer sujeito. O sujeito
é aquele que cria seu mundo. O homem enquanto sujeito possui um desinibidor, mas é
algo que ele mesmo coloca, com isso, não forja um círculo, mas o “mundo”. O animal
estaria preso no círculo de seus próprios desinibidores como diria Uexküll, nos poucos
elementos que definem o seu mundo perceptivo. O modo de ser animal é que define a
sua relação com o desinibidor, o (Benommenheit). O termo em questão advém de
Heidegger e do parentesco entre os termos benommen (atordoado, tonto, paralisado,
tomado), eingenommen (aprisionado, absorvido) e Benehmen (comportamento), que nos
remete ao verbo nehmen, pegar (dar em sorte, atribuir, compartilhar). Enquanto o animal
estiver essencialmente atordoado e absorvido pelo desinibidor, o animal não pode agir
ou possuir conduta, mas apenas comportar-se. O animal em sua essência se comporta
em um ambiente, mas nunca em um mundo. Por isso, que no atordoamento o ente não
é revelado, nem descoberto, mas tampouco fechado. O animal, enquanto tal, não se
encontra em possibilidade de desvelamento do ente. Esse ser impelido sem descanso,
colocaria o animal, suspenso de entre si mesmo e o ambiente, sem poder experimentar
enquanto ente nem um nem outro. O não-poder-ter-o-que-fazer não é absolutamente
negativo. Ele é, de fato e à sua maneira, um tipo ou forma de abertura, mais
precisamente, uma abertura que jamais revela o desinibidor enquanto ente. Uma
atividade bastante simples é fundamental para o sujeito: consultar a si mesmo. Ser sujeito
é fazer uma autoconsulta, é encontrar razões em si mesmo para agir, sair da teoria para
a prática, e já nessa autoconsulta, cria o mundo. No âmbito moderno, esse desinibidor
poderia ter vários nomes como lei, texto, crença, verdade, ideais, promessas. Quando o
homem tira de si mesmo os desinibidores, é quando se faz sujeito. O sujeito ganha aí um
tom de ator em forma de atuação. Ele encontra o motivo que o liberta, o motivo que lhe
dá a liberdade de agir frente à hesitação, frente à dúvida. Uma subjetividade assim, deve
ter o propósito de proporcionar um estabelecimento do indivíduo como aquele que tem
poder de co-decidir na edificação da instância que o pode comandar, ou seja,
normalmente esse elemento desinibidor, ou essa organização da desinibição é algo
invisível, pois na medida em que, no momento da passagem ao ato, confere aos atores,
em face da obediência, as instâncias coercitivas externas que se interiorizam, não paixões
irresistíveis e coerções inelutáveis, mas boas razões e interesses concebidos pelos
442

próprios sujeitos. Não seria um modelo desse tipo o empresário? Ser sujeito não é
somente agir, ou uma capacidade de agir, não de uma ruptura irracional ou de
exteriorização de pulsões não resolvidas, mas aquele que empreende e que vai adiante
realizando seu empreendimento. Não por coincidência, a subjetivação é inseparável da
capacitação e do treino que a acompanha, para Sloterdijk a subjetivação é sempre alguma
coisa que lembra a educação física ou o atleta. Uma primeira forma de falta de liberdade
pode ser vista como “opressão política”, a segunda como aflição ante a realidade. Estas
duas formas podem ser consideradas como variantes de estresse. A repressão política
constrói um sistema de estresse cujo êxito é em que os oprimidos preferem encontrar
formas para preveni o estresse, obediência, rendimento, vigilância antes que resolver por
uma revolução ou rebelião. Uma revolução antitirânica é uma cooperação de estresse
máxima por parte dos dominados para eliminar uma carga tensional insuportável. As
revoluções explodem quando os coletivos conseguem calcular seu nível de estresse e
chegar à conclusão de que é pior viver submetidos prevenindo o estresse do que o
estresse que provoca a rebelião. Na outra frente de falta de liberdade temos aqueles
homens que têm que lutar contra o peso do caráter da realidade como tal. A aflição que
esta gera. Foi Hobbes quem resumiu em cinco palavras o modo do desenvolvimento da
vida dos homens: solidão, pobreza, desagrado, brutalidade e encurtamento. A pressão
da realidade mostra as aberturas personificadas de um ditador, em um ambiente de
necessidades e crueldade anônimas, dos que em geral seus membros não podem
escapar. Vimos no Antigo Testamento (Salmo 90:10, as traduções podem variar) dizeres
de que “uma vida longa é trabalho e pesar”, uma referência clara ao modo de existência
dos mortais, uma lei de gravitação existencial. É visível que novas configurações
ontológicas e existenciais criaram uma tirania contra o real, contra o peso, contra a
necessidade. O contemporâneo é a época que se nomeiam os aspectos do tempo, de
uma revolta contra a natureza esmagadora do fardo da realidade do passado. Levitação
seria a melhor imagem do que está no nosso horizonte hoje em dia. Aquele que quer ser
moderno deve aspirar em converter a realidade atual em uma anterior. Uma realidade
pesada em leve, em uma realidade lenta em ligeira, em uma realidade implacável em
adaptável. O movimento ontológico de liberdade que chamamos de “modernidade”, é
um cumprimento de uma necessidade fundamental de se escapar do jogo das
443

circunstâncias. Uma “sociedade” como a nossa só pode ter no horizonte coisas como
bem-estar, técnica, entretenimento, diversão, turismo, luxo e a felicidade.
A teoria de globalização de Sloterdijk descreve a globalização como um
fenômeno de exclusão sem precedentes. O mundo do bem-estar tende a criar um espaço
interior bastante hermético, sem levar em conta qualquer homogeneidade regional ou
nacional. Se denomina isso de “o interior do mundo do capital”. Os pais fundadores da
américa contemplaram em sua Constituição um direito que é o direito a felicidade como
uma fundação de um novo ser comum na política. Nasce uma luta para se combater a
progressiva descarga do estresse anônimo da opressão por meio do real. Com relação à
Rousseau devemos dizer que havia encontrado uma maneira de colocar um ponto final a
qualquer tipo de revolta contra a tirania do real. Com a liberação das preocupações, o
estresse e a realidade, a subjetividade sai a luz de maneira subversiva e inevitavelmente,
mesmo que de maneira momentânea efêmera. Nesse sentido, nesse cenário primitivo
do sujeito, este se apresenta como um inútil, inservível, um estranho ao mundo. Não
tanto como um além do homem, mas como um animal feliz, não como alguém com
personalidade, mas como um sonhador, não um idealista, mas um imigrante, não um
empresário, mas um turista. Um sentimento puro de existência aquém de qualquer
assunto. Uma existência liberada do real, configura uma liberdade sem estresse. Se não
há preocupações não há realidade. Agora a realidade é a objetividade que retorna depois
de sido retraída com êxito na subjetividade pura. Se entende por realidade aquilo que
volta depois de seu esquecimento temporário e afirma, faz valer seus direitos. Não são
os conservadores os maiores realistas de nossa época? Uma irradiação de liberdade não
penetra em todas as culturas? Uma liberação assim ante o real não pode produzir
catástrofes? Como dito, o grande corpo psicopolítico ao qual se chama hoje de
“sociedade” não é outra coisa que uma comunidade de preocupações autoelegidas que
oscilam entre os grandes temas de estresse e outros induzidos pelo meio. Dentro das
culturas se observa uma quantidade de pessoas que necessitam ser afetadas por
momentos perigosos que se reduzem aos dias de férias despreocupados ou uma
penumbra do real mediante a intoxicação por álcool. Em outros casos vemos grupos com
grande capacidade de influência e capacidade de radiação, os artistas são a vanguarda
do inútil, mas também membros de pessoas com ofícios terapêuticos, técnicas de
relaxamento, retiros em locais com natureza, meditação, utilização de drogas (get high;
444

dialética da fuga e da dependência do mundo; Não é por acaso que os Estados Unidos
são o país do mundo mais convulsionado pelas drogas. Um país que vive da droga
substitutiva, quem não pode se drogar com sucesso e com dinheiro, tem seus substitutos.
Uma droga de substituição americana para as drogas de substituição sucesso e vitória).
São todos signos de uma ativa inatividade. Somos seres aerodependentes, utilizamos o
oxigênio como uma droga meetabólica. Essa irradiação penetra cada dia mais forte e
fundo, ela estabelece zonas de conforto ao redor do mundo como oásis do fim do tempo,
das preocupações, de uma outra dimensão, de uma experiência que seria mais agradável.
Não poderíamos ser todos estrangeiros diante desse toque de irradiação subjetiva que
nos contamina? No individualismo, cada um é uma sociedade paralela. Nós todos temos
uma história de migração, já fomos muito longe, mas agora nos sentimos em nosso lugar.
Kant via Rousseau como um segundo Newton, foi o primeiro que teve êxito ao dar um
giro em direção ao sujeito com a filosofia transcendental, que só preparou o terreno das
tarefas cognoscitivas e das atividades do juízo. A partir desde momento perde sua feliz
despreocupação. Kant tira o sonhador do barco e o incorpora aos serviços públicos.
Agora, pela primeira vez, o sujeito se transforma de súdito em senhor, passa de estar
fundamentado a converter-se em fundamento. Fichte foi mais adiante que Kant e
outorgou ao sujeito a produção inconsciente de toda objetividade, com o que este passou
de ser um absoluto desempenhado a um produtor integral da realidade. Depois em
Hegel, com a sua maneira, converteu o sujeito em um trabalhador na vinda do espírito
ao carregado com o peso da formação, para este, adquirir uma formação significa
sacrificar a obscuridade dos devaneios inconsistentes em áreas de conhecimento e
deveres objetivos. É esta a linha que segue a direita hegeliana até chegar aos
institucionalistas e os teóricos compensatórios do século XX. A esquerda hegeliana, com
Marx em sua frente, levou este plano de fomento do emprego até o extremo de
transfigurar o produtor do mundo fichteano, ao eu absoluto, na sociedade trabalhadora
e identificá-la como totalidade com o órgão da verdadeira subjetividade. De maneira
próxima fala August Comte. No futuro, nada poderia escapar do campo de trabalho
forçado da sociedade. “Ninguém tem mais direito que o de cumprir com seu dever”. Carl
Vogt escreveu também que os pensamentos possuem a mesma relação com o cérebro
que a urina com os rins, obviamente que estamos falando de um materialista.
Haveríamos que concluir que qualquer homem que tome consciência de sua existência e
445

a apreenda em seus pensamentos imprecisos, na realidade só está fazendo suas


necessidades de maneira interna. Uma atividade que não se pode se opor. Os realistas
conseguiram de alguma maneira pavimentar o caminho no regresso ao mundo de
assuntos estressantes. O sujeito solitário foi fornecido de um acesso à esfera dos
“esforços objetivos”, atribuindo-lhe uma disposição espontânea para a expansão ao
aberto, ao rendimento, ao trabalho, ao desejo de prazer, conquista de riquezas, aos
negócios, discussão de ideias, luta por reconhecimento. O sentido do expressionismo que
perpassa a antropologia moderna ao pensar o homem como um ser expressivo, este fica
unido, desde seu interior, a construção coletiva do real. É neste momento em que nos
movemos para um terreno da origem da distinção improdutiva de liberdade negativa e
positiva. Outros entendiam a liberdade como negação do peso da obrigação, em especial,
depois que no Ocidente se expandiu as tradições da sabedoria indicativa, entre eles
temos Sartre, Schopenhauer, Samuel Beckett. Diga-se de passagem, sua obra inteira
poderia ser lida como um grande ensaio sobre o nascimento da liberdade a partir de um
golpe contra a exigência do real. Não é coincidência que uma de suas obras mais
desconhecidas, uma obra de teatro de 1947 foi batizada de Eleutheria. Eleutheria é a
palavra grega para se designar “liberdade” que não significa, como já foi falado, uma
forma defensiva, mas muito mais um direito de não ser molestado pela tirania. Beckett
fez a tradução de maneira imprecisa para o mundo moderno, fez dela uma
fundamentação antitirânica de vida da polis grega um princípio existencial, neste caso
devemos falar de um equívoco produtivo. O personagem da história, um jovem chamado
Victor – o vencedor, viajou 42 dias para seu quarto. A partir das conversas dos
personagens em volta, ficamos sabendo que Victor está trancado em seu quarto desde
os dois anos de idade e evita contato com a família e sua prometida para guardar silêncio
sobre o mundo exterior. Victor é um lutador pela liberdade. É curioso como ele tem
cuidado em se desligar da realidade. O momento de ápice da obra é a sua confissão
existencial, na qual, podemos reconhecer um pouco a cena de Rousseau no Lago Biel.
Victor se tornou um prisioneiro de si mesmo. “Isso foi ainda pior”. É por isso que ele diz
que se afastou de si mesmo. Não tem mais nada para nos dizer. Victor diz que se estivesse
morto não saberia que tinha morrido. É a única coisa que ele tem contra a morte. Ele
queria aproveitar sua morte. Ele queria renunciar sua liberdade. Não se pode ser livre.
Percebe ele que estava errado. Victor não pode mais continuar com sua vida. Você não
446

pode se ver sozinho. Um expectador da história diz para Victor que morto ou vivo ele
pertence a nós, diz para ele voltar a ser novamente um “dos nossos” ou “um de nós”.
Esta é a única coisa eles têm que provar. Basicamente “nós só existimos”. Victor pensou
melhor, e diz que “nunca serei livre”. Mas que irá sentir indefinidamente como será. Diz
que irá explicarei porque continuará com a vida: “esfregar minhas correntes”. De manhã
à noite e da noite para a manhã. Esse som leve e inútil é o que se tornará a sua vida.
Depois alega que não está dizendo isso “em minha alegria”. “Minha alegria é deixada para
você”. Toda a tranquilidade, todo o limbo. E você o espectador vem com amor, razão,
morte. Victor apenas termina dizendo “Não, saia, saia”. Em uma dimensão última,
Beckett escreve que Victor está deitado na cama e observa concentrado o público, a
orquestra, as varandas a direita e a esquerda. Logo se vira e ele oferece sua magra costa
para a humanidade. Agora o homem da cama se une ao homem do bote no lago. A cama
e o bote possuem a mesma função. O homem que fica deitado está mais perto da
liberdade. Como é sabido, Rousseau propôs unir a liberdade individual na vontade geral
homogênea. Desta forma, a verdadeira liberdade individual se encaixa em uma
subjetividade grupal por uma liberdade fictícia. Para grandes autores contemporâneas o
conceito de “vontade geral” de Rousseau é a semente lógica dos fascismos socialistas
que durante o século XX duelaram com seus rivais nacionalistas. O conceito de “vontade
geral” foi posto em prática pelo terror jacobino poucos anos depois da morte de
Rousseau. No campo da história pode-se ter certeza de algo, uma certeza que os
jacobinos nunca entenderam que é a Terceira Lei de Newton: ação é reação. Isso se aplica
também para a área política e para os movimentos sociais. A física jacobina sempre quis
absolutizar a ação e jogar de lado a reação. Uma física como esta não existe, forças como
essas sempre se demonstram em pares. As revoluções Russa e Chinesa revelaram até
onde se é capaz de chegar por uma fúria do pensamento unitário. A maioria da população
mundial deve enfrentar a revolta contra a tirania política. Do mesmo modo que no
passado, quase toda a humanidade contemporânea está submetida a ditadura do real e
experimenta sua opressão mais que nunca, posto que o real tomou uma forma de
circulação global e se dissipou em uma forma de fantasma da especulação financeira.
Poderíamos pensar que o despotismo da construção de estresse coletivo de hoje é muito
mais patente que em qualquer tempo posterior, porque o levantamento dos modernos
contra a opressão por meio da objetividade paradoxalmente traz consigo, em muitos
447

aspectos um fardo ainda maior que fez a opressão se sentir ainda mais. Numa situação
como esta, se faz indispensável repensar o sentido da liberdade individual e da sociedade
liberal. Se a subjetividade pura não foi nada mais que um polo da liberdade tanto que fez
desaparecer o indivíduo de todos os campos de estresse, seria igualmente idêntica a
absoluta associabilidade. Desta forma, o liberalismo funcionaria apenas como uma
ideologia para pessoas, que hoje, não precisam mais umas das outras. A contenção da
associabilidade a partir do social seria o horizonte da política, assim como a vitória
inevitável do mal-estar sobre o bem-estar se modificaria para um horizonte último de
uma ética. Olhando mais de perto, se revela que o sujeito liberado nunca permanece
inacessível a realidade permanentemente. Enquanto descobre sua liberdade, ao mesmo
tempo descobre uma acessibilidade quase infinita aos chamados do real. Com motivo de
sua disponibilidade, cuja desvinculação interior lhe confere grande valor, recupera por si
mesmo o caminho até o objetivo, sempre e quando não seja pego pega neurose, como
Rousseau, é uma construção de eu equivocada. O fundo do barco, desestabilizado por
uma experiência inesquecível, e colocado à disposição do mercado de trabalho do
verdadeiro, além de querer ou não querer. Este parece ser um giro a autoimposição
depois de estar desconectado, é o que Sartre formulou como engagement. Sartre como
sabemos, interpretou a essência do homem como um excedente de negatividade que
ganha valor através da ruptura permanente com o fatídico e o costume, nisso se revela
uma doutrina da liberdade humana que pode ser utilizada para abrir caminho à
destruição da contemplação. Um engagement é nada mais que aquilo que espera o ator
desempregado. O sujeito livre não está tão somente à espera, mas sim, sai a seu
encontro. Seu engagement (aqui pode ser traduzido como “engajamento” ou
“ocupação”) não surge de uma necessidade de expressão, nem de pulsão, nem neurose,
nem carência, mas é uma consequência de uma experiência da liberdade. A expressão
máxima desta autoimposição é um cenário de liberdade disponível, como o orgulho, a
elevação espontânea sobre a cotidianidade, era o que os gregos chamariam de thymós.
Eles se referiam à um movimento interior que motivava as pessoas a confiar em seus
contemporâneos como possuidores de virtudes. O resgate do thymós como convicção
liberal da vida, oferece talvez, a única compreensão de liberdade que não tem relação
com condições neurológicas, trabalho, nem reduções naturalistas. A maior parte das
vezes se quer dar liberdade em lugares onde era impossível encontrá-la, como na
448

vontade, no cérebro, na eleição de atos. Mas onde ela foi encontrada era na convicção
nobre, no estímulo para a generosidade. Na realidade, a liberdade é apenas uma outra
palavra para a elegância. A convicção que busca o mais difícil, o mais livre, o menos
provável, o menos vulgar, ao melhor, em outras palavras, é possível que a liberdade seja
a disponibilidade para o improvável. Quem quer chegar a uma “novidade” no liberalismo
político deve começar com a ideia de que a pessoa não é um ser unicamente ganancioso,
voraz, erótico, vicioso e necessitado, que reivindica seu caminho livre para sua carência
de tudo ou má formação inicial. Ele também carrega consigo um comportamento
dadivoso, expansivo, soberano, generoso. Nunca antes se viu uma tão próxima relação
entre a obsessão de pessoas por meio da ânsia de estresse. Sloterdijk chega a dizer que
a liberdade é algo demasiado importante para se deixar nas mãos dos liberais. A
reformulação do real não deveria estar nas mãos de partidos, muito menos nas mãos dos
conservadores. Não vemos hoje a preocupação com a conservação do meio-ambiente
em alta? Um assunto de tamanha importância não pode ficar restrito, por exemplo, ao
Partido Verde. Daqui em diante, devemos considerar como “real” aquilo que é atribuível
ao acontecer, no qual se processam até se formarem, para utilizar a expressão de Bloch,
a nossa salvação, a nossa razão, a nossa riqueza e o aligeiramento da nossa vida. A busca
da igualdade social não é uma busca importante tanto para os socialdemocratas como
para os partidos de esquerda para que carreguem essa responsabilidade? Quem já
conheceu a liberdade deve seguir contendo ambas as tiranias. Uma que se vê no rosto
dos déspotas, e a anônima que se impõe como a forma imperante do necessário. Temos
que ter em mente que a realidade muitas vezes nos envolve em uma “construção de
estresse”. Os maiores realistas sempre disseram que têm razão quando insistem na
obrigação do sentido da realidade. Os verdadeiros liberais adicionam sentido na
possibilidade de nos lembrar que não podemos saber tudo o que chegará a ser possível,
quando nós encontrarmos a maneira de nos desprender das construções coativas do
coletivo. O mundo atual é supreendentemente ilimitado. No mundo de hoje uma invasão
de um outro estado se faz em movimento. Infiltrações que trazem consigo um grau maior
de liberdade nas estruturas do existente, infiltrações de leveza do ser, de desconexão.
Defenderemos a liberdade enquanto tivermos no vocabulário o liberalismo, que na atual
circunstância de tudo, por desgraça, nos oferece uma vida gananciosa e não funciona
como um sinônimo de generosidade. O estresse é, na verdade, a agitação de recriarmos
449

afazeres para nossas desonerações que logo precisam de re-onerações, e que logo viram
onerações. A própria desoneração, então, é uma oneração em certo sentido. Por sua vez,
Sloterdijk vê que a desoneração exige ao mesmo tempo onerações. O leve cria o pesado
dentro do leve. Dá peso ao fútil e ao frívolo, exatamente porque a nova ontologia gera o
que ele chama de “a insustentável leveza dos ser”.
Júnior (2017, p. 125):

A sociedade da leveza, pensada por Peter Sloterdijk, corresponde a sociedade


moderna em sua contínua desoneração. Essa desoneração é apresentada em
quatro grandes cenários. O primeiro corresponde ao cenário do chamado
palácio de cristal, porta aberta para um quadro da modernidade como um
campo propício para a pós-história, o que necessariamente se constrói como
campo interior, o segundo pelo movimento de desoneração vinda da liberdade
proporcionada pelo dinheiro; o terceiro cenário pelos desdobramentos dos
passos em direção a uma sociedade do mimo; o quarto cenário inicia-se com
os primeiros voos de balões, no qual a desoneração aparece com a liberdade
dos movimentos antigravitacionais, expressão esta tomada aqui tanto efetiva
quanto metaforicamente.

Falamos todos os dias que estamos estressados. Mas isso por podermos viver
numa sociedade em que o vocabulário criou a palavra stress para lembrar o quanto as
onerações são mais sentidas se a sociedade é desonerada. Nasce aí a re-oneração
intencional. O homem não consegue admitir a despedida da necessidade, ainda que,
desde seu surgimento, ele já apontasse para uma leveza que outros seres nunca a
conheceram. Assim, no desporto, no consumo, nos empreendimentos, e recentemente,
nos ativismos sociais, outra vez se chega a uma conjunção de trabalho e jogo. Sloterdijk
diz que a boa sociedade é aquela que sabe dosar estresse e liberdade em algum nível
ótimo. Um mínimo de estresse é necessário para manter uma sociedade de indivíduos
que se tornam cada vez mais autônomos ou pretensamente autônomos, e proprietários
de passaportes para a diversidade máxima, ainda como uma sociedade. As sociedades
modernas têm a forma de organização como bolsas temáticas. Todos os dias, em uma
sociedade, temos valores temáticos que são emitidos constantemente e negociados dia
a dia. Dessa forma, a opinião pública é muito menos um fator de educação estatal e
emancipadora do que um grande fórum organizado para desenvolvimento de negócios
temáticos. Os maiores meios de comunicação sociais são os impressos, os televisivos ou
os radiofônicos, estão comprometidos como quem está em um ringue de combate
permanente para obter uma cotização máxima de certos temas elegidos. Quando um
450

tema de escândalo surge e se impõe a todos os níveis da sociedade, isto já é, uma


movimentação de uma redação que conseguiu emitir um certo fervor como um proposta
de excitação que tem de ser copiada pelos seus concorrentes e competidores,
inclusivamente até chegar ao ponto de que toda uma sociedade se verta para um tema,
ela se torna monotemática e se sincroniza ao compasso de uma mesma e única excitação
em forma de causa estressora-estressante. Essa visão pode ser perfeitamente utilizada
para o que chamamos de Estado-nação: um sistema que se aplicam estratégias
monotemáticas, também monohistéricas com o objetivo de alcançar uma integração da
totalidade. O recente caso do Brasil sobre as conversas, áudios e vídeos vazados da
Operação Lava Jato se encaixa perfeitamente aqui. A sociedade por dois dias não só foi
excitada por um monotema, mas também participou na uniformização do tema. Em
todos os canais de Youtube, Chats, Podcasts, Whatsapp, jornais televisivos e impressos
esgotaram completamente o tema onde todos os outros passaram a copiar (isso não
pode ser visto em affairs, boatos, escândalos de companhias e empresas para que suas
ações baixem e subam?). Foi com Napoleão e Hitler, que estas sincronizações globais
tomaram efetividade durante a guerra, mas também fora dela. Foi potencializada
mediante catástrofes e escândalos. Essas sugestões não poderiam vir senão de René
Girard e Gabriel Tarde com descrições de sociedades mediáticas modernas. Isso parece
indicar que os homens carecem de uma razão efetiva para conviver em comunidade e
sob um mesmo teto simbólico ou político, pois são induzidos de modo autógeno a
participar dessa razão. Não podemos nos furtar de dizer que teorias desse tipo tinham
forte bloqueio em seu início por razões de fator temporal, os rumores ou excitantes
semânticos não podia se deslocar mais depressa do que os meios de transporte mais
velozes (o e-mail não substituiu em certo nível a carta?). Foi só com a interação entre os
meios de comunicação de massa foi possível esse estresse sincronizado mediante o qual
grandes populações, em poucas horas e semanas, são arrebatadas por situações pânicas,
alarmantes, estressoras que apelam à excitação. Uma gênese em ondas comuns de
imitação como se pôde ver nos trabalhos de Gabriel de Tarde. Pode-se adotar também
expressões como infiltração mimética de normas, estímulos, mercadorias contagiosas,
símbolos semelhantes, alucinação geral, fluxos imitativos, junção de mônadas e células,
“radiação imitativa” e “imitação contagiosa”, como a causa de análogas dotações de
mídias. Uma teoria do “estado social do ser humano é um hipnótico ou sonâmbulo”. Isso
451

revela uma excitação mimética, excitação de “gestos sonoros” e de seu retorno


amplificado em escala maior massivamente com o desenvolvimento de instrumentos de
mídia a distância e televisivos. Indivíduos “sonâmbulos” (hipnóticos) que se movem,
como teledirigidos, em um “diurno sonho-social” de suas organizações. Sobre os
jornalistas recai aqui o papel de médicos especialistas em narcóticos, que vigiam pela
estabilidade do transe coletivo. É lícito supor que nas imagens de Broch com sua teoria
da demência coletiva se percebe um eco das teses de Gabriel Tarde sobre o
sonambulismo social que considera os seres humanos sociais como autênticos
sonâmbulos. Os sonâmbulos sociais, junto com sua provisão de ficções de liberdade e
ilusões críticas, se reúnem debaixo de slogans e bandeiras como coproprietários em
castelos de ar. Participam nas atividades de uma comunidade disposta a se auto-excitar.
Sobre os indivíduos, Sloterdijk conserva uma ponte entre a energética e a semântica,
mostrando em que medida as tensões impulsivas no interior dos corpos se encontram
ligadas a cadeias de significativos, uma análise assim pode evidenciar de que forma e em
que medida a dimensão energética do indivíduo se insere na cadeia de significantes
mediante produção de sintomas. Parece ter sido posta em causa com uma ilusão de
autonomia. Desse modo se faz um atentado contra a ilusão de soberania do sujeito. Não
poderíamos redefinir “soberania” como a capacidade de se guardar distancias das
epidemias de opinião? De se negar a participar de um serviço destinado à excitação? Uma
expressão de uma sociedade baseada em expressões miméticas. Die Gedanken sind frei,
keiner jann sie erraten: “Os pensamentos são livres. Ninguém pode descobri-los” é um
célebre ditado alemão. Deveríamos dizer: os pensamentos não são livres, eles provêm
dos jornais e aos jornais retornam. Se a nossa soberania existir, só pode manifestar-se se
deixar extinguir o impulso recebido ou se o transmitir de maneira modificada, alterada,
recodificada, filtrada. Se é livre na medida em que o sujeito pode ter a capacidade de
interromper essas escaladas de excitação e se imunizar contra infecções de opinião. Um
sujeito pode ser um interruptor da informação e não um simples canal de transmissão
que funcionaria como passagem às epidemias temáticas e ondas de excitação. Talvez
fosse o caso de relembrarmos dos dizeres de Boris Groys com o seu trabalho What is
German Media Philosophy? Subjectivity as Medium of the Media. Outro caso interessante
diz respeito ao próprio Peter Sloterdijk. Se considerarmos o drama associado ao seu
nome com a polêmica com Habermas, veremos facilmente como numerosos jornalistas,
452

agitadores, colegas, acadêmicos que presume ter consciência e autonomia, atuaram de


modo bastante “automático” e mecânico como canais de transporte de impulsos de
excitação, na maioria dos casos, não se passou muito tempo para o reajustamento do
input. Nos casos de alta intensidade, pouco mais se consegue devido as energias
retificadoras não serem tão poderosas do que as energias dissidentes, assim, os temas
dessa forma, emitem uma alta carga energética entopem quase tudo como um conteúdo
extático. Lugares outros onde aparecem jogos de verdade é o teatro. Isso pode ter
relação com a atual psicanálise e a investigação do stress, foi o teatro europeu, desde os
Gregos, o local de intercâmbio onde se põe em jogo mais aspectos energéticos da vida
do que os semânticos. Não é mera coincidência que a apalavra “drama” significa
“acontecimento (Ereignis).
Já em Girard, atualmente bastante conhecido na Alemanha, tem uma teoria da
concorrência mimética e de conflitos triangulares; processos de mimetismo ou de
imitação invejosa no realismo das sociedades. Em Heiner Mühlmann, na natureza das
culturas pode-se mostrar como os corpos virtuais dos conjuntos sociais se integram
mediante mecanismos miméticos estressantes. É do interior delas que surgem “pânicos
discretos”. Sob este efeito, as alucinações de unidade, afinidade ou coerência são
projetadas em unidades sociais criadas artificialmente – induzidas nela como micro-
epidemias, mergulhos em delírios. Via parecida com a qual Elias Canetti toma em seu Le
Territoire de L'homme de 1978. Em seu livro considera que a unidade de um povo consiste
no fato de em determiandas circunstâncias, poder atuar como um indivíduo que sofre de
mania de perseguição. Mas num contexto de Sloterdijk, devemos trabalhar com uma
frase que é a de encontrar a justificação de um paranoico individual está no fato de poder
agir ocasionalmente como encarnação de todo um povo. Não podemos esquecer que o
Estado-nação como tal existe nos seus 200 anos, como fruto da Revolução Francesa e da
telecomunicação baseada na imprensa, uma sinergia entre política burguesa e meios de
comunicação de massa. São técnicas mediáticas e nacional-pedagógicas e educacionais.
Foi por isso que McLuhan tinha dito que a imprensa é a “arquiteta do nacionalismo”. O
que se exige de um indivíduo hoje, é que ele tenha uma “disposição individual” para
desempenhar funções de condutor de estímulos no âmbito de psicoses coletivas
oportunistas. Que ele esteja a serviço dos temas gerais, que ele esteja disponível para a
mobilização dos temas.
453

Sloterdijk (2007, p. 71):

Não é difícil de mostrar que todos os indivíduos têm um input e um output de


excitação e que, segundo o grau de organização da sua individualidade, se
desembaraçam do seu input mais ou menos processado e se insensibilizam
umas vezes com pouca, outras com maior intensidade. De qualquer modo, os
indivíduos são transformadores conectados a um circuito composto de fluxos
de energia muito ligados a determinados temas. As suas ditas opiniões não
passam deformas temáticas e morais da moda. De um ponto de vista psico-
histórico, esta inversão corresponde a uma transformação real de uma
neurose endógena numa neurose exógena ou, p que é o mesmo, de um
estágio de confusão propriamente dita a outro de confusão por participação.

Sloterdijk tem para si que há uma série de pequenos estresses que a própria
leveza carrega, e isso dá o clima psicopolítico para manter a comunidade em estado de
alerta conjunto. Toma então as “sociedades” como o fruto de uma forma espiral, onde a
cada leveza e liberdade se faz necessário também um novo tipo de estresse. Pois, para
cada patamar de liberdade e leveza cria-se também a necessidade de se redefinir o que
é sério, penoso, o que é “a realidade”. Há necessidade de a cada patamar fazer-se
presente uma nova narrativa ontológica, de modo que o homem não saia por aí como
flutuando. Assim, fenômenos de medicalização são por conta da leveza, tudo tem de ficar
mais fácil num mundo que, já faz algum tempo, criou mais tempo livre e desenvolveu a
tecnologia de tal modo que passou a fazer do trabalho algo lúdico, algo do âmbito do
entretenimento, e ao mesmo tempo fez do entretenimento uma coisa séria, um novo
trabalho. A sociedade da leveza é uma sociedade do entretenimento. O homem mostra-
se como um “Atlas negativo”, aquele que na existência inexistente tem que “suportar a
total falta de peso do universo”. O ter-que-fazer-agora é amputado do mundo. Parece
que o reino da necessidade deu lugar ao reino da liberdade. Em um mundo marcado pela
desoneração, desaparece o motivo da antiga necessidade absoluta, onde havia
necessidade, pode advir o capricho. Os inícios do que nós, agora, chamamos história,
encontrava-se nos combates travados por todas as partes e pelas culturas contra o
caráter do fardo que têm as condições do mundo, e se o norte de todo o viajar humano
e criador de história aponta para o norte da liberdade, é porque no imaginário das
culturas avançadas, a liberdade está inevitavelmente associada à diminuição da carga.
Por isso, Herbert Marcuse tentou demonstrar quando ao mundo contemporâneo – que
o princípio de realidade não é só igual, nem o é para sempre, à inflexível lei da
necessidade que encerra as vidas numa cruel indiferença e as sobrecargas. A Europa
454

tornou-se como muito falariam na “mãe das revoluções”, porque é o continente


originariamente teatral, que pôs em cena uma revolta ontológica contra o peso do
mundo, o palco de um projeto de libertação “interno” que prometia quebrar, graças ao
trabalho autodeterminado, a dominação estrangeira exercida pela penúria da vida. Foi
precisamente pelos processos históricos e pelos seus dois acontecimentos principais que
se pôde ver isso: a alta tecnologia (emancipação – técnica, é por definição, uma rebelião
contra a natureza) e na missionarização dos direitos humanos. Podemos até certo nível
protelar a morte, o corpo tornou-se operável numa dimensão que só tende a aumentar,
a sexualidade e a reprodução não são mais sinônimos, sentimentos são suscetíveis de
serem moderados via fármacos e drogas, estados psíquicos podem ser canalizados
mediante técnicas estéticas, médicas e químicas, o pensamento lógico, falar, traduzir e
trabalhar podem ser cifradas por cálculos, máquinas, computadores e algoritmos. A lista
só irá se prolongar.
Sloterdijk (2002, p. 197):

A subjetividade só pode ser vivida como o esforço, condenado a si próprio,


para se manter dentro do suportável. Ela reconhece-se pelo seu esforço para
se manter e, se perdesse o seu caráter esforçado, já não seria uma
subjetividade, mas a unidade do todo na consciência desprovida de peso. É por
isso que a teoria pura é o derradeiro luxo, uma coisa para suicidas e para
dandies. É somente para eles que está aberto o acesso ao mistério da
frivolidade, ao aligeiramento da vida até à anulação dos pesos. A vida é custosa
para o comum dos mortais. Estes continuam condenados ao esforço de aliviar
tanto quanto podem o que pesa de mais sobre eles. Mas também eles
continuam a sonhar com pairar em estado de imponderabilidade. Esforçam-se
incansavelmente por tornar a sua vida cada vez mais leve. Devido aos seus
esforços conjugados, o processo da civilização redunda num empreendimento
que provoca iluminações involuntárias. Entretanto, os esforços da civilização
para aligeirar a vida passaram a ser eles próprios o fardo do insuportável,
relativamente al qual deveriam ter sido o desvio para o que suportável.

Os que defendem a necessidade, nessa nova situação em que a abundância


atingiu as esferas desoneradas, não conseguem mais justificar sacrifícios. Em uma
situação de “pós-modernização da consciência”, a idolatria do trabalho, seja no sentido
físico, psicológico, econômico, que tanto pesou na modernidade, se desconstruiu e
libertou uma visão mais clara a respeito de como temos as condições de viver em um
espaço para além da necessidade. É aí que o mimo vem à tona. Ao falar das dimensões
da sociedade individualista, Sloterdijk diz que esse individualismo é alcançado, em parte,
por conta da transformação da sociedade em um “agregado excitável de clientes,
455

compradores e consumidores, que se cuidam e se mimam a si mesmos”. Ele continua, e


então descreve as mudanças da subjetividade sob esse novo ritmo. Tudo caminha do
sentido do puritanismo do trabalho à orientação liberal do tempo livre, da poupança séria
ao crédito alegre, da renúncia do consumo ao apetite pelas vivências, da heroicização das
virtudes empresariais à glorificação das proeminências do esporte e do entretenimento.
Tudo isso empurra o “sujeito pós-moderno” no sentido dele se desembaraçar, ou mesmo
eliminar, o que era até então o cultivo da autoestima e a formação da personalidade por
elementos adequados ao capital.
Sloterdijk (2008b, p. 227):

O conceito de mimo não implica naturalmente uma concessão à pedagogia


conservadora, que não quer deixar de acreditar que o homem continua a ter
necessidade de ser orientado por uma mão forte. O mimo, enquanto termo da
antropologia histórica, designa os reflexos psicofísicos e semânticos do
movimento de desoneração inerente desde início ao processo de civilização,
mas que só pôde amadurecer e adquirir a sua plena visibilidade a partir do
momento em que os bens deixaram radicalmente de ser raros. À luz destas
posições (que assentam no desenvolvimento dos pontos de vista de Louis Bolk
e Arnold Gehlen), podemos dar a compreender que, com a experiência do
Estado econômico e do Estado-providência moderno, se consumou um salto na
história do mimo do Homo sapiens – um salto que abriu a todos os que deram
com os outros um espaço imensamente alargado de possibilidades existenciais.
A teoria do mimo orientada para a antropologia – assinalamos por precaução –
não tenciona repor em causa os efeitos de desoneração possibilitados pelo
processo da civilização; o que deseja é optimizar a capacidade de navegação
cultural dos sujeitos do mimo no seu ambiente arriscado de navegação cultural
dos sujeitos do momo no seu ambiente arriscado e amplamente
incompreendido, propiciando orientações conceituais para a existência em
situações fortemente marcadas pela desoneração.
456

Atlas no Rockefeller Center. Lee Lawrie. Nova Iorque. (1937).

Surge assim, a mimologia. Em um primeiro nível do espaço de mimo está o


dinheiro. Dinheiro como “valor de mimo”. A disponibilidade das coisas e o dinheiro
colocam de modo historicamente concomitantes. A capacidade de compra por si mesma
gera facilidades de acesso a tudo que existe sob a forma de mercadorias. É claro que por
este motivo carrega uma dose de mágica, pois abre as portas do mundo, abracadabra
abre a caverna do tesouro (não vemos propagandas no Youtube sobre o Tesouro direto?).
O transporte moderno e o petróleo coroam o dinheiro com tal capacidade, tornando a
mercadoria onipresente aos arredores dos compradores. Comprar significa “encantar
com meios monetários”. O encantamento seria obter um excedente de efeitos em
relação à causa. Divisão do trabalho e síntese na economia de mercado geram todos
esses efeitos. Quem habita o palácio de cristal obtém benefícios destes excedentes, do
encantamento da esfera do dinheiro que perante cada agente singular, contrapõe a sua
possibilidade de autoprovisionamento pessoal uma quantidade de opções inauditas. O
mimo do dinheiro é bem visível quando falamos de grandes fortunas vindas à tona
fortuitamente. Um modo de desoneração máximo. O mais alto valor de mimo do dinheiro
advém quando a fortuna surge para alguém de um modo imerecido. O mimo se faz
presente quando os heróis modernos mostram a sua face: o homem de posses, seja como
herdeiro, descobridor de tesouro, colonialismo, especulador da Bolsa, dirigente de
457

empresa. Uma abertura da modernidade para todo tipo de história que misture sorte
com jornada, tentava e êxito, casamentos, heranças, celebração de negócios de maneira
feliz, descoberta de tesouro, informação valiosa, especulação, indenização elevada,
ganho em jogo, apostas, mas tudo isso como algo que vem sem esforço, que então amplia
o seu valor de mimo e sua fama de desoneração. Entra nessa análise o trabalho do Estado
providência. Pelo fisco ele dá uma pequena sorte para muitos para poucos. Não é de se
espantar que na modernidade existe toda uma movimentação e um quadro favorável
para a elevação com relação às expectativas de segurança. Transformação psicossocial
para a imunologia e co-imunismos. Obsessão com contra acidentes, doenças, desastres.
O sistema de seguros, financeiros, e de toda a ordem, se torna uma indústria gigantesca.
Expectativas individuais por proteção e segurança. A compreensão da modernidade se
entrelaça com o icônico palácio toma ponto de partida quando este impressionou
Dostoiévski. O russo visitou a Exposição na sua versão de 1862 com o edifício já em
dimensões maiores. Nas suas “Notas de inverno sobre impressões de verão” ele diz
relatos bastante significativos.
Dostoiévski (1992, pp. 226-227):

A City, com os seus milhões e com o seu comércio mundial, o Palácio de Cristal,
a Exposição Internacional... Sim, a exposição é impressionante. Sente-se uma
força terrível, que uniu num só rebanho todos estes homens inumeráveis,
vindos do mundo inteiro; tem-se consciência de um pensamento titânico;
sente-se que algo foi alcançado aí, que há nisso uma vitória, triunfo. Até se
começa como que a temer algo. Por mais que se seja independente, isto por
alguma razão nos assusta. Não será este realmente o “ideal atingido?”, pensa-
se. “Não será o fim?” Não será este, de fato o “rebanho único?” Não será
preciso considera-lo como a verdade absoluta, e calar para sempre? Tudo isto
é tão solene, triunfante, altivo, que nos oprime o espírito. Olham-se estas
centenas de milhares, estes milhões de pessoas que acorrem docilmente para
cá de todo o globo terrestre, pessoas que vieram com um pensamento único,
que se aglomeram plácida, obstinada e silenciosamente neste palácio colossal,
e sente-se aqui que se realizou algo definitivo, que assim chegou término. Isto
constitui não sei que cena bíblica, algo sobre a Babilônia, uma profecia do
Apocalipse que se realiza aos nossos olhos. Sente-se a necessidade de muita
resistência par anão ceder, não se submeter à impressão, não se inclinar ante
o fato e não deificar Baal, isto é, não aceitar o existente como sendo o ideal...

A cena do Palácio de Cristal não é nada senão a cena da modernidade unificando


os povos, realizando o que seria o paraíso de paz mesmo na terra, uma promessa de um
regime social e político de realização de nossa melhoria, é vista pelo russo como uma
realização de uma utopia. Por isso, oprime o espírito. Por conta do que ele desenvolve na
458

sua obra Memórias do Subsolo (1864), e que Sloterdijk aproveita, sabemos do que está
falando quanto à opressão do espírito diante dessa utopia realizada. Dostoiévski zomba
dos “sargentos-chefes da civilização”, do apego à estufa dos “progressistas de orangerie”
e manifesta o medo que lhe inspira o triunfalismo baaliano do palácio da Exposição
Universal. Dostoiévski vê na burguesia francesa a equação pós-histórica da humanidade
e da detenção de poder de compra. “Possuir dinheiro é a maior virtude e o maior dever
humano”, diz ele. Sua crítica se fez contra um livro popular na época, O Que Fazer, de
1863. Lênin fez um livro com o título igual, obviamente que não se trata de mera
coincidência, no qual uma utopia racionalista, positivista e de ode ao melhoramento do
mundo se punha realizada. Nessa utopia, o escritor Tchenichevsy criou o “palácio da
cultura”, abrigado em um edifício de luxo com ar condicionado em que sempre reinaria
uma “Primavera do Consenso”. Neste recinto, “o Sol das boas intenções brilharia dia e
noite”. Ambos os autores captam a noção de que há todo um planejamento de um
ambiente interno, o dentro, o lugar próprio de uma domesticação, educação e criação de
um novo homem. Neste lugar duas coisas são proibidas: o sofrimento e o mostrar a
língua, ou seja, padece aquele que reclama do paraíso, quem zomba desde local comete
pecado, ou pior ainda, uma impossibilidade. Dostoiévski mesmo diz “No Palácio de
Cristal, ele é simplesmente inconcebível. O sofrimento é dúvida, é negação, e o que vale
um Palácio de Cristal do qual se possa duvidar?” Continua falando que “... um edifício tal
que não se lhe poderá mostrar a língua, às escondidas, nem fazer figa dentro do bolso.
Bom, mas talvez eu tema este edifício justamente porque é de cristal e indestrutível
através dos séculos e por não se poder mostrar-lhe a língua, nem mesmo às ocultas”.
Sloterdijk com essa sofisticação, elabora a sua visão da modernidade como leveza,
relaxamento, atmosfera. É neste recinto, ou na nossa sociedade em sua semelhança, que
o negativo, o fazer figa, ser travesso, a dor, o sofrimento, não vigoram de modo algum.
Se não há negativo, como é possível a História? É por isso que Sloterdijk considera que o
comunismo era uma etapa do consumismo. Uma noção de “cristalização” e de fim da
História. Baudrillard tenta explicar o fim da história través da imagem de um corpo que
ganha aceleração se libertando da ação e da força da gravidade. A aceleração da
modernidade para ele, técnica, mediática e incidental cria uma cinética de trocas
econômicas, políticas, sexuais que nos conduziu para uma velocidade de libertação.
Acabamos por sair do centro referencial do real e da história. Para ele, é necessário algum
459

tipo de lentidão para que acontecimentos consigam se condensar e se cristalizar na


história. Se as coisas são “colocadas em órbita”, elas são expulsas pela aceleração
perdendo a referência de sentido, fragmenta-se a vida e o real em partículas de real,
isoladas em si mesmas.
Tanto os visionários do século XIX quanto os comunistas do século XX
perceberam que após o fim da história combatente, a vida social só poderia se
desenvolver em um interior ampliado, um espaço interno ordenado como uma casa e
dotado de um clima ou uma atmosfera artificial. Se a “história real” eram os ferros,
lanças, a navegação marítima e a guerra de expansão, deveria continuar a ser a perfeita
encarnação das empresas ao ar livre. Mas se com o mundo de hoje, os combates
acabaram se tornando na paz, no ambiente de gozo, de unificação, leveza, tudo isso deve
sair do campo externo e ser circunscrito. Deve-se integrar toda a vida social em um
habitáculo protetor. Não se vê mais política ou eleitores, mas apenas consumidores. A
União Europeia não é exatamente isso? O dogmatismo de consumo. A edificação do
Palácio de Cristal só pode suceder a “cristalização” da situação em seu conjunto. A
generalização do tédio e a proibição que a história faça de novo irrupção no mundo pós-
histórico. A promessa passa a ser que o conforto não para de crescer. Sendo Heidegger
o fenomenólogo do tédio, Sloterdijk o invoca para lembrar de sua noção de existência
inautêntica, a existência privada de si mesma. Nessa hora, a cultura de massa, o
humanismo e o biologismo são as máscaras alegres sob as quais se oculta, do ponto de
vista filosófico, o profundo tédio da existência que não tem desafio a enfrentar. Aqui
Walter Benjamin é fustigado. Benjamin ao pegar as passagens de Paris para análise, usou
o objeto errado da arquitetura. Apanhou uma arquitetura anacrônica, algo diferente de
um Palácio de Cristal que, em 1954 perto de Minneapolis, com o primeiro Shopping Mall,
se fez como parte de um modelo de mundo espacial para todo o resto do mundo. O
interno do interno. Benjamin não conseguiu perceber o papel no contexto de “educação
popular” que Dostoiévski viu no projeto arquitetônico tipicamente moderno. A leitura de
Sloterdijk uniu hedonismo do consumo capitalista à disciplina organizativa da utopia de
socialistas, pondo junto o que, então, viria a servir ao mundo do tédio e ao mesmo tempo
à agitação disciplinada.
Vemos um estado de alerta e atenção constante numa incessante auto-
observação para produção e experimentação (eu-designer). Do empresário da convicção
460

particular nasce o artista. Na nossa sociedade, voltar para a célula monacal, ou seja, para
o quarto ou apartamento single, é realmente ficar quase sozinho. A alma clama, então,
pela velha companhia da voz da mãe, intra-uterina, e eis que a marca dos grandes
monopólios aparece com um produto que leva à curtição de si. Dá-se o “complemento
da alma” pelo consumo. Mas um consumo que sustenta essa nova individualidade. O
máximo dessa imagem que explicita o contemporâneo são as levas de jovens com fones
de ouvido. Ninguém existe, só o som. E quando adentram o quarto ou apartamento,
continuam com o fone no ouvido. Estão na cela monacal dentro da célula monacal. Trata-
se de uma mistura de narcisismo com autismo. Sucede que a primeira riqueza é que faz
surgir a “patência de mundo”. A abundância de energia conseguida por descargas teria
uma direção nas regulações ascéticas, seja do tipo de arte, no isolamento monacal ou do
camara silens. Há claramente no início do século XX uma polarização pressentível a partir
dos anos 20 entre as morais do trabalho, e as morais do tempo livre, um eu que se
fragmenta em duas metades articuladas, sobre as quais o caráter não pode senão tentar
em vão erigir um governo do eu, realiza ainda uma coisa. Uma colocação de
maleabilidade em relação à psicologização da sociedade. Especialmente na Europa,
tratava-se de um “front cosmético”. Consumismo e realismo cosmético formas as novas
classes médias predestinadas para a necessidade de novas experiências, perspectivas,
visões, experimentações. O indivíduo voltado para o tempo livre, o homem do final de
semana, do turismo, das trilhas. Aquele que descobriu o caráter agradável da alienação
e o confronto na vida dupla. Um tipo psicológico risonho, divertido, extravagante, “o
homem legal”, “com a aparência agradável, o garoto propaganda. Um americanês
ocidental como nova linguagem: o final de semana. Novos temas como vitalismo de fim
de semana, recarga de baterias, revolução sexual. A era da cosmética de massa. Revistas
americanas com o know how e o American way of life e o American Dream. Naquela
época, a cultura popular americana abraçava a ideia de que qualquer indivíduo,
independente das circunstâncias de sua vida no passado, poderia aumentar
significativamente a qualidade de sua vida no futuro através de determinação, do
trabalho duro e da habilidade. Politicamente, o American way implica a crença da
"superioridade" da democracia americana, fundada no livre mercado e na competição
sem limites. Este cenário também se convergiria com a ideia de espírito de competição
da sociedade econômica. Um conceito moderno de liberdade diz que tudo que fortalece
461

a competição deve ser permitido. Uma ideia de “renascimento atlético” em tudo. Assim
como na tradição da autoimolação japonesa, na antiga askesis ocidental, uma abse
psicológica da ginástica antiga, assim como o desporto moderno. No século XX, existe um
modernismo atlético que se poderia inferir diretamente da regra de vida grega: “mais é
menos”, “mais difícil é mais fácil”. É preciso encenar o sofrimento inevitável de forma
intensificada para tornar suportáveis os afazeres reais.
Nos diz Sloterdijk (2008, p. 40):

Num olhar perspectivo a semelhantes considerações, torna-se evidente o


quanto é questionável a tese recorrente de que a individuação elevada é o fato
tipicamente moderno. Se se pensar justamente na individuação juntamente
com a elaboração ativa de resistência básica, prevalece sobretudo uma
tendência para a recaída ao longo do processo de civilização na época
moderna. As fronteiras do Eu entre indivíduos modernos são, sob muitos
aspectos, mais debilmente formadas do que entre membros de sociedades
tradicionais. O sentido da individuação nos tempos modernos é, muito mais, o
fundir-se na pluralidade de significados do próprio Eu. Nós temos a sensação
de progresso quando, através de uma forma elástica, conseguimos ultrapassar
a herança, tornada cômoda, ao auto endurecimento e da autodefinição da
época de combate primitiva. O quanto isto nos afasta das posições antigas é
particularmente evidente na figura do antigo herói antigo Prometeu. Na sua
qualidade de rebelde, ladrão de fogo e engenheiro do homem, parece ter
passado certamente a ser um emblema da subjetividade moderna. Enquanto
herói da impossibilidade de se escapar que, acorrentando aos rochedos e
devorado por abutres, suporta o insuportável, tornou-se para os indivíduos
atuais um estranho dos pés à cabeça. Não existe nenhum elo entre o seu
sofrimento heroico e o sentimento de mal-estar moderna na cultura. Também
Sísifo, apesar de Camus, pertence a um mundo desaparecido. O que se
encontra entre os antigos heróis do sofrimento e os modernos é a Stoa e a
psicanálise, as duas filosofias vitais da morna resignação que se
comprometeram com a inevitável dureza do mundo, chamada frustração
moderno-subjetivada. A Stoa recolheu os sofredores e diagnosticou um vago
desânimo permanente como a situação básica da vida social.

A figura da “civilização ocidental” se basearia em uma recusa do princípio-


deserto. A figura do mundo para frente caminha, especialmente, pelo fortalecimento da
dimensão do trabalho nas regras ocidentais e a invasão protestante dos monastérios e a
proscrição da vida contemplativa pela sociedade e produção burguesa. Uma função pré-
concebida da compreensão antimonástica da sociedade moderna, mesmo onde esta
ainda se vê preservação de algum nível de religiosidade, está diretamente grudada na
maioria dos contemporâneos. Os resquícios da vida monásticas sobreviveram apenas
como relíquias da época feudal. Para se “trabalhar” a si mesmo e às coisas, ninguém mais
precisa desde a Revolução Francesa, de uma “psicopolítica” de mosteiros. O
462

monasticismo europeu acabou em terrenos conventuais. Se o século XX se afasta das


celas, ele nem se lembra mais o que teve de construir neste antigo mundo. A sociedade
secular recusa o seu antepassado, e por sua vez, o monasticismo ocidental, recusa o
Oriente e o deserto. Se isso é verdade, para onde irão os monges? A questão a saber é
que o Ocidente não tem mais nenhum monge e os últimos monges não têm nenhum
deserto. Os tempos modernos serão a era em que o mundo é tudo. Esta seria a era
essencial dos media e médium, da comunicação e da automediação. Isso significa viver
um mundo em que devorou suas antigas religiosidades e transcendências. O mundo
agora se torna medium que deve ter um efeito de Deus e da alma na sua
autorreprodução. Falk Wagner e Luhmann seriam os principais estudiosos da teoria da
mídia com fundamentos na mundaneidade do mundo e na dinâmica da comunicação
absoluta que não tem nada de repousante, mas sim constante mobilização. Numa era de
comunicação absoluta, a unidade e a autonomia do mundo dependem da universalidade
e da ininterrupção do corrente de mediação. A negatividade concreta nascida no mundo
recicla-se em um tipo de produção de um mundo vindouro, positivo, “para a frente”, foi
Ernst Bloch, o materialista dialético, que considerou a insatisfação instruída como o
motor da história.70 Na ontologia do ainda-não-ser, a vida histórica lesada é teorizada
como esperança que faz história. Com a ajuda da carga ontológica da missão, agitação
transforma-se em promessa e é reintroduzida em si mesma com uma vontade de não-
relaxação. Esta conversão Moderna seria uma máquina de produzir vencedores e vitórias
e fazer dos espectadores as testemunhas entre aquele que é o primeiro e os demais. Uma
função psicopolítica moderna seria potencializada com o neoliberalismo e mercado
capitalista em pleno desenvolvimento. É esse acendimento autopropulsor que que faz do
sofrimento com a realidade um motor para irromper no Novo Mundo dos tempos
modernos.

70
Sloterdijk em uma pequena passagem diz que o nascimento do sujeito por si próprio é a eterna agonia e
representa, na qualidade de motor da história, a tentativa simultaneamente grotesca e indispensável de
tentar chegar a um mundo próprio pelas suas próprias forças, o apoio sereno no primeiro nascimento leva
à redescoberta do inevitável. Pode ser que essa descoberta pressuponha a odisseia da subjetividade.
463

"O melhor padrão de vida do mundo. Não há jeito melhor que o jeito
americano". Louisville, Kentucky. Por Margaret Bourke-White. (1937).

Propaganda Biotônico Fontoura. (1934).


464

La Casa de Papel. Ursula Corberó, senhorita. Tokyo.

Com a consolidação do Welfare State e a ascensão do novo individualismo. Sai a


ideia de que consumimos para o outro, ou seja, para a produção da inveja classista, e dos
estudos de Veblen para nós dirigirmos à ideia de que o bom consumo é o da casa, dos
aparatos e aparelhos para o corpo. Do auto emagrecimento, do fitness e do fazer você
mesmo (self) e experimentar em você, ver a si mesmo no seu espelho ou apartamento.
Temos o celular que não é para comunicação, e sim para seu funcionamento como
espelho. O selfie atual não é “para a amiga”. Ele instaura a morte da fotografia com o fim
do negativo, mas exclusivamente de um olhar petrificado das poses no espelho, se a
amiga vai ver ou não, já não importa mais. Nós estamos cada vez mais procurando o outro
naquilo que não há alteridade. Nós estamos caminhando para uma sociedade onde
funciona o reino do fetiche e da mercadoria e o reino da reificação do homem. Se a
mercadoria produz fetiche, é possível se pensar algo mais abstrato ainda que ela, é o
dinheiro. Uma sociedade de finanças tem o fetiche do dinheiro. Faz com que acreditemos
que o dinheiro pode tudo e compra tudo. Ele emerge como ser vivo e nós como mortos,
então nós como mortos, perdemos muitas situações daquilo que é o vivo. Uma das
características centrais do vivo humano é a alteridade. O de ter o outro para poder formar
o eu. O dinheiro não tem o outro, mas ele se apropria das qualidades humanas e por isso,
465

ele começa a ter o outro. Dinheiro se relaciona com dinheiro, enquanto o homem perde
essa relação, ele que passa a ser a coisa, então ele não tem o outro para se relacionar.
Por isso nós passamos a agir como coisa. O sujeito passa a se relacionar com outras coisas
(reificação).71 Há um episódio interessante sobre a relação com o corpo, do corpo com
as roupas e da roupa com o espetáculo da aparência. Levi Strauss nos anos 20 veio para
São Paulo no carnaval, um dia estava em um restaurante. O garçom chegou até ele e
perguntou se era o Levi Strauss do jeans ou o da antropologia – o homem dos livros? O
espanto de Levi Strauss foi que o garçom o dividiu em duas marcas. O homem dos livros
e o homem da calça. Ele saia muito bem que não havia eu interior nenhum. Ele sabia que
somos as etiquetas, a propaganda. Por que então a filosofia moderna já começa dividindo
a substância, dizendo que uma sobrevive e outra não, o endosso de um catolicismo lá do
passado? Por que temos essa audácia de achar que somos mais que aquilo que
apresentamos? É a etiqueta. Drummond percebe que só tem nome por todo o seu corpo.
Nome na calça, no relógio, nos óculos, naquilo que compra. Ele é uma grande etiqueta,
uma homem etiqueta. Etiqueta é uma pequena ética. Uma ética pequena. Uma norma
para comer, uma para vestir, uma norma que vai para a norma do produto (o brandon).
É justamente uma etiquetazinha em algum lugar.

71
Vale a pena conferir o poema de Carlos Drummond de Andrade chamado EU, ETIQUETA Em minha calça
está... Em minha calça está grudado um nome que não é meu de batismo ou de cartório, um nome...
estranho. Meu blusão traz lembrete de bebida que jamais pus na boca, nesta vida. Em minha camiseta, a
marca de cigarro que não fumo, até hoje não fumei. Minhas meias falam de produto que nunca
experimentei, mas são comunicados a meus pés. Meu tênis é proclama colorido de alguma coisa não
provada por este provador de longa idade. Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro, minha gravata e cinto e
escova e pente, meu copo, minha xícara, minha toalha de banho e sabonete, meu isso, meu aquilo, desde
a cabeça ao bico dos sapatos, são mensagens, letras falantes, gritos visuais, ordens de uso, abuso,
reincidência, costume, hábito, premência, indispensabilidade, e fazem de mim homem-anúncio itinerante,
escravo da matéria anunciada. Estou, estou na moda. É duro andar na moda, ainda que a moda seja negar
minha identidade, trocá-la por mil, açambarcando todas as marcas registradas, todos os logotipos do
mercado. Com que inocência demito-me de ser eu que antes era e me sabia tão diverso de outros, tão mim
mesmo, ser pensante, sentinte e solidário com outros seres diversos e conscientes de sua humana,
invencível condição. Agora sou anúncio, ora vulgar ora bizarro, em língua nacional ou em qualquer língua
(qualquer, principalmente). E nisto me comparo, tiro glória de minha anulação. Não sou - vê lá - anúncio
contratado. Eu é que mimosamente pago para anunciar, para vender em bares festas praias pérgulas
piscinas, e bem à vista exibo esta etiqueta global no corpo que desiste de ser veste e sandália de uma
essência tão viva, independente, que moda ou suborno algum a compromete. Onde terei jogado fora meu
gosto e capacidade de escolher, minhas idiossincrasias tão pessoais, tão minhas que no rosto se
espelhavam e cada gesto, cada olhar cada vinco da roupa sou gravado de forma universal, saio da
estamparia, não de casa, da vitrine me tiram, recolocam, objeto pulsante mas objeto que se oferece como
signo de outros objetos estáticos, tarifados. Por me ostentar assim, tão orgulhoso de ser não eu, mas artigo
industrial, peço que meu nome retifiquem. Já não me convém o título de homem. Meu nome novo é coisa.
Eu sou a coisa, coisamente. Disponível em: <https://www.pensador.com/frase/MjAyODM0/>. Acesso: 25
Mai. 2019.
466

Byung-Chul Han falaria que “o meio digital desfaz a facticidade”. Isso porque no
meio digital só existe positividade. Não existe idade, tempo destino e nem morte. Na
atomização do tempo, o próprio tempo se congela. A sociedade da transparência é um
inferno do igual. Todas as coisas ligadas à temporalidade hoje em dia envelhecem muito
mais rápido do que no passado. O novo se faz velho de forma imediata. Tornam-se
imediatamente em passado ou estão em um lugar de captura como um smartphone. O
presente se reduz a pequenos picos de atualidade e de captura, deslocam-se para um
espaço sem tempo, a-histórico, o apagamento da memória, do histórico, precede a
gravação da informação. A fotografia desaparece para a captura em forma de “foto
digital”. A fotografia com o intuito de recordar o passado ou entendê-lo, e talvez
mensurá-lo com o presente já não tem mais tempo. Pessoas que não são dos anos
cinquenta, mesmo que estejam se considerando “mais velhas”, pertencem ao mundo da
fotografia digital. Afinal, possuem filhos para os quais prepararam álbuns de fotos
virtuais, filtros, aplicativos que se perderam ou que estão guardadas em grandes
cemitérios cibernéticos não visitados. Não existe mais revelar a foto, a foto se
transformou em uma não captura de uma imediatidade mínima. Ela muito mais coloca a
imagem em um não local onde se cristaliza para sempre. A fotografia perdeu a sua
função, ou melhor, transmutou-se. Sua função atual é apanhar o presente para quem
está presente, portanto, nem precisaria dela. Aliás, fotos virtuais são descartadas, até
mesmo por profissionais da fotografia. Elas não são registro. São não registros. Elas não
são história. São fogos de artifício. Na fotografia digital toda a negatividade é expurgada.
A foto atual é quase sempre produto do Photoshop. O real está mais para uma construção
de imagens e não capturas de momentos. Não existe mais tempo para o tempo ter
tempo. A digitalização da foto não precisa mais de câmera escura nem de
processamento, não precisa ser precedida por nenhum negativo. É um puro positivo, por
isso não deixa de ser uma sociedade do excessivo positivo, da exposição, da transparência
e, nesse sentido, da auto-exploração, seguindo as obras de Byung-Chul Han. Na foto, isso
significa que extintos estão o devir, o envelhecer, o morrer. Barthes, lembra do
desbotamento da foto de papel e seu possível desaparecimento. Ou seja, Barthes ligou a
fotografia a uma forma de vida para a qual a negatividade do tempo é constitutiva. Mas
a fotografia digital, é uma fotografia transparente sem nascimento e sem morte, sem
destino e sem evento. O destino não é transparente, e à fotografia transparente falta o
467

adensamento semântico e temporal. Assim, ela não fala. Na sociedade expositiva cada
sujeito é seu próprio objeto-propaganda. Tudo se mensura em seu valor expositivo onde
não existe mais evento e data. Se todos “fotografam” a fotografia vai justamente para
um lugar onde ela sequer pode ser notada, ela não existe sem os meios-mídia. Funciona
quase como um aprisionamento do fato em um não lugar, e por isso, não sentido. A
sociedade exposta é uma sociedade pornográfica, tudo está voltado para fora, desvelado,
despido, desnudo, exposto. Baudrillard nos diz que o excesso de exposição transforma
tudo em mercadoria que “está à mercê da corrosão imediata, sem qualquer mistério”.
Tudo deve ser registrado para nunca mais ser visto. A foto se tornou inimiga de uma sua
maior amiga: a história. Elas são apenas o anti-registro. É assim que as pessoas caminham
mais para um apressamento de um presente para outro sem cortes, transições, rupturas.
Se envelhece sem rugas e sem se tornar maior. O tempo já não dura como quem tem
peso, consequências, como algo que pode mofar, estragar, sucumbir, frente ao domínio
de um presente pontual e sem consciência histórica. Heidegger reivindica uma “des-
presentação” do hoje. Se pensarmos que o motor dialético surge de uma tensão temporal
entre um já e um ainda não, entre acontecido e futuro, veremos que hoje falta qualquer
tipo de forças frictoras entre si. Adorno diria que a transparência é também outra
expressão do mito, uma falsa claridade. Em virtude desta dialética, a segunda ilustração,
que se opõe a ideologia, acaba convertendo-se em uma ideologia. É significativo que
Proust comece sua obra Em Busca do Tempo Perdido de 1913 (versão em português de
2016), com a ideia de uma bora hora como contrapartida de infinitude terrível, da
descontinuidade que assola o tempo, onde não há recordação em forma de insônia. O
cansaço mais tremendo é o de não poder descansar de si mesmo. O tempo parece ter se
tornado uma corrida sem linha de chegada. Nas primeiras páginas do romance apresenta,
de maneira a fazer o tempo presente e significativo. Diz de uma experiência feliz da
continuidade, vê-se em cena um ir e vir de sono e sonhos, despertar em agradável fluxo
de imagens, recordações de passado e presente, sensações, um ir e vir entre passado e
presente. A narrativa de Proust ganha uma temporalidade que funciona como uma
reação a uma época de pressa. A época da pressa mata qualquer contemplação (não
devemos esquecer que a filosofia antiga era um work-out mental, com bem disse Pierre
Hadot. Na Antiguidade as formas lógicas eram aparelhos de exercícios). Uma sucessão de
momentos passa a compor o eu, perde-se qualquer continuidade e permanência. Em seu
468

romance Proust faz a tentativa de devolver uma estabilidade à identidade do eu que


ameaça se desintegrar em frangalhos.
Comenta Han (2016, p. 26):

O tempo histórico não conhece um presente duradouro. As coisas não


persistem numa ordem inamovível. O tempo já não remete para trás, mas
impele para diante; já não repete, mas alcança. O passado e o presente ficam
descompensados. É a sua diferença, e não já a sua semelhança, o que faz com
que o tempo, entendido como mudança, processo, desenvolvimento, seja
significativo. O presente não tem qualquer substância em si. É só um ponto de
transição. Nada é. Tudo será. Tudo se transforma. A repetição do mesmo deixa
lugar ao acontecimento. O movimento e a mudança não geram desordem,
mas uma nova ordem. A significação temporal provém do futuro. Esta
orientação para o futuro gera uma aspiração orientada para adiante, que
também pode devir em aceleração.

Como Beckett diria: “As criaturas de Proust são vítimas desta circunstância e
condição predominante: o Tempo. Não há como fugir das horas e dos dias. Nem de
amanhã, nem de ontem”. Proust fala de um “cristal aromático”, cristal de horas
silenciosas, sonoras, fragrante e límpidas. O tempo se concentra em vasos fechados como
se dentro deles estivessem cheios de coisas como um calor, um aroma, um perfume.
Como sabemos que o romance é uma forma do experimental, é o aroma, o sabor do
lembrar, da recordação e do despertar. Ele pressupõe a existência histórica onde todos
possuem uma trajetória. O olfato e o paladar ganham um sentido de acesso ao passado.
A memória involuntária também é ativada através da experiência visual, tátil, acústica.
Mediante as recordações sensoriais emana um aroma do tempo intenso, ele ressuscita o
mundo da infância. Todos esses aromas e cheiros entregam-se ao passado gerando
amplos espaços temporais. O aroma está impregnado de história, compõe-se de imagens
e narrativas. O sentido do olfato como bem acentua Mcluhan no seu Os Meios de
Comunicação Como Extensões do Homem: Understanding Media de 1964, é “icônico”. Se
os aromas são lentos, eles não se adequam a uma perspectiva medial na época da pressa.
Aromas não são imagens ópticas, eles não caminham na mesma velocidade. Como
Heidegger dizia: “Pressa e surpresa... Aquele faz um cálculo. Esta provém o inesperado.
Aquele segue um plano. Esta visita a demora”. Assim pois, habitar significa, ao princípio,
existir pendente de uma colheita em uma estação de cereais. Uma vez ao ano passa o
trem de grão e para nós. Se até agora permanecemos vivos, é porque contamos com o
privilégio da estação e nós estamos no âmbito de um trajeto fértil. Uma vez introduzido
469

o carregamento começa um novo ciclo de espera, assegurado pelas reservas da última


colheita. Se alguma vez falhar o trem, por causa de uma má colheita ou de distúrbios
políticos, domina a escassez e lança a miséria a quem não sabe o que esperar. Enquanto
se perturba a conexão de habitar e esperar, como tradicionalmente sucede em períodos
de crises militares e sistematicamente desde a Revolução Industrial com suas
consequências de des-agralização da vida, pode suceder que os existentes perdem sua
orientação no decisivo instante prazeroso da colheita. Sloterdijk nos lembra aqui muito
bem mais uma tradição de Heidegger. Ela fala da analítica do langeweile como o instante
ou o momento ou lapso de tempo largo, aquele que se faz por muito tempo. Esse repouso
do ser-aí é uma indeterminação absoluta, jamais determinável. A indeterminação apressa
o ser-aí de tal forma que é um ser retido devido a esse momento ou tempo alargado ou
de maturação, retido nele e a ele. Esse alargamento é entendido como um abandono de
uma brevidade de momento. Heidegger mostra com isso sua ojeriza e um terror com o
“desemprego” visto aí como uma abundância de tempo sem função ou um tempo livre
em demasia. A brevidade ou entretenimento do momento só tem a oportunidade de
dominar nossa experiência do tempo quando nos vemos implicados nesse instante fértil
(de colheita) que nós dizemos para nós mesmos o que deve ser feito agora. Uma função
de um tipo de imperativo categórico da ontologia agrária. O interesse pela colheita só é
possível quando se associam de maneira razoável previsão e realização. Ele faz da
conservatio uma estratégia temporal para criar uma duração. Os homens estão “sujeitos
á sua origem”. Só uma longa origem dá lugar ao morar, a velhice vira sabedoria. A
facticidade é caracterizada pela passividade como se vê nas expressões que Heidegger
utiliza como “deixar-se afetar”, “ser-estar lançado”, “é chamado”. Essa época da
aceleração também poderia ser introduzia no conceito de uma época do “esquecimento
do ser”. Heidegger continuou como um homem da dor. Os futuros são os fundadores da
verdade, “vagarosos e longamente à escuta”. Um tipo de sentido circular.
Lipovetsky insiste em dizer que não estamos mais na fase do consumo de massa
ou do consumo em favor de status. Diz ele que “compra-se uma marca como se ela fosse
um suplemento de alma”. Em seu A Felicidade Paradoxal: Ensaio Sobre a Sociedade de
Hiperconsumo de 2007, ele descreve essa entrada de fase como uma dinâmica que foi
posta em marcha há meio século se tornou dominante. Nesse período de hiperconsumo
as motivações privadas superam e muito as finalidades distintivas. Queremos objetos
470

para viver, mais que objetos para exibir. Compramos menos isto ou aquilo para nos
pavonear, alardear uma aposição social que com vista a satisfações emocionais e
corporais, sensoriais e estéticas, relacionais e sanitárias, lúdicas e distrativas. Os bens
mercantis funcionavam tendencialmente como símbolos de status, agora eles aparecem
cada vez mais, como serviços a pessoa. Das coisas nos esperamos menos que elas nos
classifiquem em relação aos outros e mais que nos permitam ser mais independentes,
mais móveis, sentir sensações, viver experiências, melhorar qualidade de vida, conservar
a vida, a juventude e a saúde. O consumo para si suplantou o consumo para outro em
sintonia com um irresistível movimento de individualização das expectativas, gostos e
comportamentos. É como se a fase liberal estivesse aberta para a neoliberal. O fetiche da
mercadoria deu o padrão para nossas vidas enquanto o consumo é para o outro, só que
agora o consumo não é mais para o outro. Desde os anos 70, criamos o dinheiro que ficou
autorreferente, uma moeda fiduciária. Todos concordaram em utilizá-la, mas cadê a
riqueza por trás dela? Nós não precisamos mais da mercadoria para gerar riqueza, o
dinheiro gera dinheiro na bolsa. A fábula de Fortunatus com sua bolsa de 40 dinheiros.
Saiu gastando toda a sua bolsa. Quando ele abria a bolsa novamente lá estavam mais 40
dinheiros. Nosso consumo autorreferencial tem relação com o novo fetiche onde o
próprio dinheiro é autorreferente. O dinheiro abandona qualquer referência, ele sob aos
céus. Para ele existir, ele se autorreferencia. Então, para nós nos sentirmos vivos temos
que não olhar mais para a mercadoria, mas para o dinheiro. O dinheiro nos ensina
autorreferencia. Ele mesmo se impõe, ganhando uma capacidade de vitalidade em se
autocriar. O quanto não somos ensinados a isso agora? Não é isso que faz com que nós
consumimos coisas para nós mesmos? Sempre com a ideia de que podemos nos
autocriar, nos auto-inventar? Roupas, cremes, massagens, curtindo um som, atividades
sexuais virtuais e automasturbatórias, espelhos. A autorreferencialidade do dinheiro
enquanto fetiche é a nossa autorreferencialidade enquanto subjetividade. O dinheiro
autorreferente é um dinheiro volátil, rápido, é virtual, metamorfoseador. Nossas vidas
devem, portanto, ser igual, consumo autorreferencial.
Para Agamben, existe uma exigência que a fotografia parece nos interpelar, uma
exigência que nada tem de estético. É uma exigência de redenção. A imagem fotográfica
é sempre mais que uma imagem: é o lugar de um descarte, de um fragmento sublime
entre o sensível e o inteligível, entre cópia e realidade, entre a lembrança e a esperança.
471

Essas duas eras da “sociedade de consumo” já se foram, ao menos em termos de


hegemonia. Estamos na era do consumo altamente individualizado, que é o consumo das
experiências sensoriais básicas e do desejo de ter controle sobre si mesmo e sobre todo
o resto, o usufruto do produto como experimentação. Essa “vontade de poder” efêmera,
mas efetiva, é o que move o marketing de hoje, pois é o que move o consumo de hoje.
Sai as diferenças classistas e de status, sai de cena a inveja social, entra em cena a
“curtição de si” e o exercício do governo de si e das coisas. Essa mudança no consumo e
nas características do individualismo são próprias de nossa época.
O individualismo nasce quando as próprias pessoas escrevem sua autodescrição,
sua autobiografia, isto é, quando começam a reivindicar os direitos autorais sobre suas
próprias histórias, suas próprias opiniões (Make yourself). A partir do século XVIII, isso é
óbvio. Desde então, os indivíduos burgueses são, de maneira virtual e atual, novos heróis
e autores de suas autobiografias. No século XX, o individualismo do design contribui para
o individualismo do romance: atualmente, também reivindicamos direitos sobre nossa
aparência. Mas qual é a relação com a filosofia dos tempos modernos? Bem, poderíamos
considerar seriamente que a evolução para o individualismo é um "epifenómeno" do
princípio da filosofia moderna, que consiste em olhar para o pensamento ativo do próprio
pensador para o fundamento de toda a representação: aquela "fixação" no eu, o cogito,
o que chamamos de sujeito, fixação que remonta a Descartes, Kant, Fichte. Todas aquelas
pessoas coloridas que nós vemos vagando pelos centros das cidades hoje em dia, com
seus cortes de cabelo, suas camisas pretas de rockeiros, tudo isso seria impossível, por
razões de princípio, se os filósofos, por mais de duzentos anos, não tivessem penetrado
de forma cada vez mais profunda na ideia de que ser e produzir forma um todo. Quando
o antigo objetivo, concedido por Deus, naufraga, os homens que se consideram seus
servos fiéis desaparecem com ele. Depois de 1789, a ontologia clássica é guilhotinada.
Desde então, nós nos chamamos de Senhor ou Senhora, queremos nos inventar e nos
divertir acima do abismo (um indivíduo que quer se curtir, experimentar) Pois no
momento em que abandonamos a ideia de que um deus pensa através de nós, no
momento em que paramos de supor que uma inteligência universal e impessoal se torna
realidade em nós e para nós, naquele exato momento, é necessário considerar a
inteligência como uma forma de propriedade privada e, ao mesmo tempo, como uma
espécie de capital. Esse capital de homens que pensam e investem em questões e
472

projetos passa pela mão do design. Nós não somos agentes do absoluto, e esta é a razão
pela qual somos "nós mesmos", como é dito de maneira tão bela. Nós vivemos e
pensamos em nosso capricho. A autopreservação implica o automatismo do ser. No início
dos tempos modernos, esse conceito foi transferido para o indivíduo que pensa e produz.
Nesta medida, não sentimos muita falta quando descrevemos hoje o indivíduo como o
umbigo do mundo. Quando falamos de "indivíduo", nos referimos a um sujeito que está
envolvido na aventura da autopreservação e que quer determinar experimentalmente o
que a vida é melhor para ele – designers individuais. Acreditamos que, além disso, que o
segundo conceito de a experimentação própria ser algo indispensável se explicar porque
o individualismo moderno não se esgota apenas com o conceito fundamental de
autopreservação. O homem do século XIX e XX permanece por si só é um homem ou uma
mulher fator feminino assume uma posição cada vez mais preponderante que o direito
de experimentar sem limite com suas próprias arroga vida. É a maneira pela qual os
indivíduos de hoje encenam sua modernidade. Eles deixaram para trás, na verdade, o
conceito antigo e medieval do mundo. Já não dizemos: o mundo é tudo o que Deus criou
dessa maneira, como tal, vamos aceitá-lo. Nem dizemos: o mundo é um cosmos, uma
joia de organização, vamos nos colocar no lugar certo. Em vez disso, pensamos como
Wittgenstein que o mundo é tudo o que podemos dizer. Vivemos como se quiséssemos
expressar nossa fé nesta frase: o mundo é aquilo com o qual posso experimentar até
mesmo a fratura. É o elemento experimental, que age ao mesmo tempo na vontade de
crescer: o fato de que o indivíduo moderno, nas tentativas que faz sobre si mesmo, toma
a liberdade de se provar os limites da aniquilação. É uma característica um pouco
surpreendente. Por isso, o terrorismo não deixa de ser um individualismo, por mais
religiosa e seitas que possam estar atrelados a ele. O indivíduo típico das classes médias
ocidental e moderna é um experimentador.
O poder de si mesmo é, agora, o culto de quem consome determinados
produtos cujas marcas dizem que esse desejo de ser feliz a quatro paredes, ou numa ilha
ou casa de campo, vai se realizar. A vida single está na moda. O próprio Sloterdijk lembra
que os primeiros experimentadores foram os surrealistas. Nessa hora, não podemos
deixar de invocar Dali. Experimentador espanhol, expressionista por definição. O que
mais preciso experimentar para me afirmar vivo, para ser indivíduo e, portanto, o ser vivo
atual? Uma vida experimentadora, uma intensificadora inconsequente, até mesmo
473

autoconsumo é o que impera hoje. Rasgar o passado e ousar voltar para a cena do crime
para continuar a experimentação e a intensificação. Indivíduo é, para Sloterdijk, o
“indivíduo-designer”. O protagonista solitário. Por isso, os “homens da moda” são os que
estabelecem as estações. Temos hoje, o chamado “designer de interiores”, uma mistura
de arquiteto-engenheiro com estilista-moda-maquiagem. Eles precisam configurar
silhuetas de acabamento, singularidade, de conforto, de acolhimento, de intensificação.
Sloterdijk (2002, p. 129):

Sujeito é tudo aquilo que tenta tornar-se e ser o seu próprio mundo – como?
Atendo-se a si próprio, aos seus “princípios” e ao seu cuidado consigo próprio.
A circunstância de ater-se a si próprio mostra vários rostos: aparece como
abstinência, como respeito pelas normas escolhidas, como autonomia, como
conservação e fundamentação de si próprio. Não surpreende, doravante, que
a história do sujeito fosse, desde o início, uma história de atitudes – desde o
estoicismo até ao existencialismo, desde os ardentes santos do deserto até aos
jovens habitantes pacatos das grandes cidades –; sempre o sujeito se nos
depara como um centro de esforços que se conserva a si próprio unido, como
o princípio ativo de uma atitude voltada contra o mundo exterior, inerte,
informe, e degradante. Quer o sujeito se mantenha, abstendo-se, como Eu
ascético, de todas as influências tentadoras, perturbantes e assustadoras; quer
ele se erga contra o mundo incurável e inconstante, apoiando-se na fé em
Deus ou no divino; quer ele se constitua como Eu autônomo, mantido por uma
razão filosofante que, por sua vez, se define por cumprir ela próprias as suas
leis; quer ele tente afirmar-se como vencedor do cansaço da vida, para se dar
heroica e prodigamente de presente ao mundo; quer ele, melancolicamente
decidido a assumir-se a si próprio, se saiba posto de for no meio do nada; quer
ele, com uma alegria antiedipiana, cavalgue ondas na prancha de surf dos seus
desejos; quer ele, furiosamente soberano, se agarre ao estilo da sua maneira
de escrever extravagante e dispersa e observe pelo canto do olho como vai
escapando a si próprio –, o sujeito está sempre, através de esforços autonatais,
a dar a si próprio firmeza numa atitude. Devido à sua inevitável situação de
malnascido, o sujeito está “espontaneamente” condenado ao esforço de
estabilizar, graças às suas promessas, o seu ponto de apoio num mundo
adotado até nova ordem.
474

O Narcissus Garden Inhotim é uma nova versão da escultura que a artista plástica japonesa
Yayoi Kusama apresentou em 1966 na Bienal de Veneza. 500 esferas brilhantes de aço
inoxidável flutuam nos espelhos d'água da cobertura do Centro Educativo Burle Marx, em Minas
Gerais.

Bruno Taut. Pavilhão de vidro exterior (1914).

A aparência ganharia notável relevância psicossocial no contemporâneo. O


ponto central do indivíduo contemporâneo passaria por seu rosto e por seu corpo. O que
se entenderia modernamente por identidade facial do eu ou a possibilidade de ter o
próprio rosto, depende de uma reconstrução do espaço interior e subjetivo do indivíduo
que começou com o estoicismo na invenção do indivíduo que deve bastar-se a si mesmo.
De fato, com o surgimento da Academia de Platão e com a ocupação da teoria no vácuo
da política, alguns filósofos vão pôr uma “carreira” de orador concertista ambulante, que
475

impressionam auditórios com improvisações e temas diversos. Outros como Aristóteles


aceitam o papel de educador do príncipe, que trabalhou um tempo como preceptor de
Alexandre, o filho do Rei da Macedônia. Outros caminham pelos jardins de Epicuro na sua
tranquilidade. O que se nota é que cresce e todos tiram das novas circunstâncias a
conclusão de que cada um tem que governar sua própria vida, já que não é mais possível
se participar no governo da cidade e de Estados, essa foi uma das grandes pré-condições
para o vasto êxito do estoicismo. Antes preocupação com a comunidade, agora a
preocupação consigo mesmo. Logo que a pólis perdeu a força para trair as mais extremas
ambições e as mais íntimas disposições para servir, surge todo um mercado cosmopolita
de teoria e ética em que uma intelectualidade pós-política se reorienta para as
necessidades ideológicas dos derrotados, ou também poderia dizer-se, das pessoas
particulares. Só no âmbito da Antiguidade é que veríamos a possibilidade de uma
construção excêntrica íntima em relação a si mesmo. O nascente individualismo, permitiu
que aqui, eles mesmos, e lá, simultaneamente ser seus próprios observadores. Esse
individualismo é uma forma de testemunha interior de sua própria vida. Uma visão
exterior sobre si mesmos. Um segundo par de olhos que continua sendo o seu próprio. O
homem moderno quer e deve estar só. Uma imagem autocompletante de sujeitos sob o
domínio do espelho enquanto função refletora de si mesmo e que completa a si mesmo.
Ele passa a organizar não só a vida como também a estética de uma maneira de
eliminação ou da não participação do outro. O eu, agora é duplo, e quer desempenhar os
dois papeis, assim como Byung-Chul Han fala da auto exploração neoliberal (dois papeis
em uma figura) numa relação bipolar. Uma moderna ficção de autonomia e o sonho de
domínio sobre si mesmo penetra a vida contemporânea. Essa posição se assemelha
muito com as chamadas “egotécnicas” de Sloterdijk. Não só o apartamento, mas também
o hotel acabou necessariamente por se transformar em um lugar mítico. Ele simbolizava
um sonho de elevações sociais, nas quais a moderna fugacidade da existência brilhava
como conforto. O caos do mundo parecia se compor como uma última forma orgânica.
Uma elevação para o nível de uma ideia estética central da modernidade. O luxo como a
forma mais característica do homem. A vida lisa como a pele na qual passo o produto
para me experimentar. A rotina dos contemporâneos: pela manhã, banheiro e atividades
de evacuação e limpeza, atenções cosméticas e de vestimenta. Onde uma imagem facial
própria pode aproximar-se de um contexto de obra de arte, moldagem, reformulação e
476

recriação do belo por maquiagem, cosmética, suplementos, espelhos, academia, dieta e


cirurgias (cuidado de si). Uma quiroprática de autocuidado. Um desenho, uma roupa, um
corte, uma pincelada (desenho unido com autoprojeto). O indivíduo que tem atividade
de produtor originário que exige os direitos autorais da sua obra: ele mesmo e sua
imagem. O selfie é também selfit. Precisamos atingir todas as nossas metas, de
preferência em forma de antecipação, quanto mais rápido melhor. Mas o dinheiro
também libera da dívida, do presente sufocante, quando toma a forma do crédito. Ora,
esse crédito é a essência da moeda, que possibilita que uma sociedade se apoie numa
antecipação do futuro de uma construção mais sólida. É um poder tão potente que, assim
como a fé partilhada por uma comunidade pode mover montanhas.
Os seis processos circulares autopotenciadores são: as artes plásticas, o sistema
de crédito, engenharia mecânica, o Estado, a investigação científica e a jurisprudência.
Com uma mudança, e com a aparição da arte moderna, e seu passo para a era da arte
global (global art), se impuseram os estandartes do mercado global e mundial de
produções pós-virtuosas. É possível notar processos análogos no âmbito de influência das
retroalimentações positivas, normalmente identificados com a economia. Também nele
se ativou a partir do século XIV e XV um forte círculo virtuoso, um círculo que deve ser
tratado como a união de crédito e talento, entendida esta última palavra sem sentido
moderno. Surgiram grandes fortunas e que a partir de capitais iniciais modestos
cresceram empresas de alcance e poderes mundiais. Empresas se haviam juntado com
ao nível de economias de níveis manufatureiras. Não é por acaso que nos séculos XVII e
XVIII se aglutinaram a um ímpeto adicional de processos autorreforçantes. Estamos
acostumados a nomear essa esfera com nomes “construção de máquinas”, engenheira
ou simplesmente “técnica”. A aliança de círculos de fortuna entre os sistemas creditícios
e a engenharia mecânica, o mesmo que a economia impulsionada pela inovação com a
engenharia mecânica (máquinas), deu lugar ao mostro dinâmico onde muitos dizem ser
a causa de uma pobreza de espírito desde o século XIX, segue sendo o “capitalismo”. Uma
designação um tanto desafortunada. Um sistema como esse, na verdade, deveria ter sido
chamado desde o princípio de “creditismo” ou “invencionismo”. Weber foi um dos que
mais bem compreendeu o capitalismo. Esse monstro que se reproduz a si mesmo,
Schumpeter escreveu uma frase que soa profética: “o desenvolvimento produz sempre
mais desenvolvimento”. Marx também havia dito que o progresso puxa o não progresso.
477

Esta fórmula poderia também ser aplicada para o Estado Moderno. Um círculo de
autorreforço. Desde o seu início difícil na época das guerras religiosas, o moderno Estado
administrativo, intervencionista e fiscal, criou um “efeito Mateus” de tipo próprio. No
entanto, obedeceu a uma lógica de uma identidade específica e própria favorável a
ampliação, gera continuamente para si novas atribuições, novos âmbitos de regulação e
poderes de intervenção profundos. A lei da cota estatal crescente. A ampliação contínua
da atividade estatal que obviamente deve ser financiada. Uma lei que era considerada
positiva para Adolph Wagner. Um otimista do desenvolvimento desde a sua cátedra em
Berlim. O protótipo do mais tarde reprovado, “socialista de cátedra”. Teríamos que ver
essa ampliação de atividades estatais dentro do marco da satisfação da necessidade
comunitária, muitos hoje olham com olhos céticos o completo de estatismo, fiscalidade
e intervenção, e cada vez mais, vemos nele o quão absurdo pode ser uma instituição de
autosserviço e contraproducente.
Junto disso, merece também ser citado o círculo virtuoso de autorreforço da
indústria contemporânea da cognição. Toda pequena criança de escola hoje da Europa
sabe que os tempos modernos são tempos de investigação. E o são, desde que Bacon
escreveu seu Novum Organum e invocou a deusa da experiência para acrescentar o saber
no-nonsense e os conhecimentos comprovados da humanidade, e desde que Leibniz quis
dar a academias para que a conseguisse ter um convívio em casas próprias,
comprometidas somente com a busca da verdade. Em efeito, para o mundo em que
vivemos não há uma característica mais pregnante que o fato que nos tivemos convertido
em países de migração tendo em vista a captar conhecimentos recentemente
alcançados. A investigação de estilo moderno não significa um incremento idílico de
conhecimentos que se conservem em sótãos, salvo para consolo de ânimos
contemplativos. “Investigação”, significa antes de tudo, geração de mais saber mediante
saber. O típico saber da era moderna, que gira nos círculos virtuosos cognitivos para se
reproduzirem sem cessar, é saber prático e sobre todo saber prático, e com ele, verdade
como busca de aplicação. Espera ser infiltrado na vida cotidiana das populações moderna
na primeira ocasião que houver. Existimos em uma forma de realizada caracterizada pela
contínua, apenas controlada, migração de aliens epistêmicos e técnicos, e só podemos
esperar que os novos coabitantes do nosso entorno cognitivo se mostrem a longo prazo
como veículos civilizados.
478

O último dos seis círculos virtuosos é a jurisprudência. A jurisprudência tal como


observamos na sua estrutura sistêmica atual. Só na Europa modernamente estimulada,
sujeita já há jogos de autorreforço, pode surgir a ideia em aparência trivial, mas na
realidade, aventuradamente audaz, de que os seres humanos sejam por natureza seres
com direitos inalienáveis; sim, que a vida não seja outra coisa que a fase de êxito do
exercício de direitos pelos seus possuidores. É notório que os seres humanos desde
sempre procuram proteção em construções locais de justiça. Só na Europa, a terra mãe
dos “efeitos Mateus”, pôde surgir e se desenvolver o círculo que surgiu do metadireito
por antonomásia. O “direito de ter direitos” (e o de se criar direitos) nos dizeres de
Hannah Arendt contextualiza com grande verdade o germe do desenvolvimento da zona
dos direitos. Só uma civilização em que o direito de ter direitos se converteu em atitude
interior e em instituição sustentada por órgãos estatais, foi possível se pôr em movimento
a marcha a espiral da juridificação incessantemente ampliada, típica das dinâmicas sociais
europeias dos últimos séculos. Essa crescente ampliação cria uma zona conflituosa. Pela
ação recíproca intensiva da ativação de direitos ilimitados com o sistema gigantesco de
autorreforço do estatismo, surge em nossos dias um monstro de jurisprudência
regulativa nacional e supranacional de difícil paradigma na história. Todos esses
mecanismos citados contribuem para a ostensibilidade crescente da dimensão temporal,
colocam uma dimensão antecipadora ante a tarefa de levar à cabo a antecipação do final,
não já somente na existência individual mortal, mas sim no conjunto inteiro de relações
que conforma a “sociedade moderna”. A alcunha “antropoceno” foi utilizada pelo
cientista climático holandês e químico atmosférico Paul Crutzen para identificar, segundo
ele, uma nova era geológica. Como sua hipótese agora amplamente aceita afirmava, "o
humano" (anthropos em grego) ou pelo menos uma certa parte da humanidade tornou-
se o mais importante ator geológico, tendo mais impacto no estado da biosfera do que
todos os fatores naturais juntos. O humano tornou-se assim de fato, e, querendo ou não,
responsável pela biosfera e por implicação por seu próprio destino futuro.72
Com ele surgem o que Sloterdijk chama de “Antropoceno” que obedece a uma
lógica apocalíptica e “impactos antropogênicos” sobre a biosfera. Aponta o final da

72
LEMMENS, Pieter e HUI, Yuk. Apocalypse, Now! Peter Sloterdijk and Bernard Stiegler on the
Anthropocene, 2017, p. 3. Disponível em: <https://www.boundary2.org/2017/01/pieter-lemmens-and-
yuk-hui-apocalypse-now-peter-sloterdijk-and-bernard-stiegler-on-the-anthropocene/>.
479

despreocupação cósmica que estavam na base das formas históricas do ser-no-mundo


humano. O “posto do homem no cosmos”. Trata-se de um tipo de ontologia cênica. Na
qual o ser humano atua como um animal dramático ante o maciço que uma natureza que
jamais pode ser outra coisa que o plano de fundo em repouso de operações humanas. O
pensamento ontológico-cênico segue em vigor muito tempo depois do começo da
Revolução Industrial, apesar de que a natureza agora é concebida como como campo
integral de recursos e como aterro sanitário global. “Crise da exteriorização forte”. O
químico alemão Ostwald foi o primeiro que com seu escrito Der energetische Imperativ
(O Imperativo Energético), conceitualiza a finitude dos recursos terrestres, além de fazer
um giro crítico a respeito do Estado e da indústria. Sobre um pressuposto de que sobre
uma base finita não se pode construir uma superestrutura infinita. Dessa forma, se a
Modernidade posta em movimento executa um projeto na medida em que constitui
metafisicamente o ser-para-o-movimento, ela atualiza-se e aumenta por intermédio de
uma produção de produtividade alargada, de acréscimos, movimento para mais
movimento. A Modernidade poderia ser caracterizada como uma mobilização em si, isto
é, como ser-para-a-autoaniquilação. A antiga metafísica, enquanto paixão imobilista e
autoconcentração, é a acumulação original da subjetividade que na Modernidade, se
atira para frente em forma de mobilização passional. A modernização se efetuou como
obra de catapulta como ação da grande ciência, dos grandes capitais, da grande técnica,
dos meios de comunicação. Esses são os grandes fronts do processo do mundo moderno.
Enquanto ficarmos míopes sob a discussão sob a designação de forças produtivas,
borramos nosso conhecimento em termos de qualidade. As forças produtivas são
também forças de mobilização.
Sloterdijk (2018, p. 20):

Entendemos nossa situação corretamente se concebermos o planeta e sua


biosfera como uma singularidade que não pode ser multiplicada e como algo
que, em última análise, é fixo? Devemos lembrar que não é mais apenas uma
questão do dado cosmológico primordial, a Terra, e o fenômeno evolucionário
primordial, a vida. A tecnosfera, que por sua vez é animada e moderada pela
noosfera, foi adicionada aos nossos parâmetros básicos no curso da evolução
social. Em vista de ambos os parâmetros de crescimento, estamos justificados
em aplicar a afirmação de Spinoza de que ninguém determinou até agora o
poder do corpo (isto é, o corpo humano) para a Terra: ninguém até agora
determinou o poder da Terra como corpo terrestre. Ainda não sabemos quais
desenvolvimentos serão possíveis se a geosfera e a biosfera forem ainda
desenvolvidas por uma tecnosfera e noosfera inteligente. Não é impossível a
priori que tais desenvolvimentos levarão a efeitos que equivalem a uma
480

multiplicação da Terra. A tecnologia ainda não falou sua palavra final. Se é


considerado, em grande parte, em termos de degradação ambiental e
biogeneratividade, isso mostra que, em alguns aspectos, está apenas
começando. Algum tempo atrás, sugeri a distinção entre heterotécnica e
homeotécnica - com a primeira falha na violação e na natureza, e a segunda
baseada na natureza da imitação e na busca de princípios naturais na produção
em contexto artificial. Uma imagem completamente diferente da interação
entre meio ambiente e tecnologia surge com a conversação da tecnosfera num
padrão homeotecnológico e biomimético. Devemos aprender o que a Terra,
como corpo terrestre, é capaz do momento em que os seres humanos
reorganizam seu manuseio da exploração à coprodução. Se seguirmos o
caminho da exploração pura, a Terra permanecerá para sempre uma
tecnologia finita, um planeta híbrido poderia resultar em que mais seria
possível do que os geólogos conservadores acreditam.

A humanidade emplaca com um ethos do uso da natureza. O imperativo ético


desses indivíduos se chama austeridade. “Não desperdice energia, a utilize!”. Nos escritos
de Ostwald começam uma “analítica da finitude” que seria utilizada por Heidegger das
esferas das ciências naturais e para a dimensão existencial. Também uma frase bastante
conhecida de Max Weber que se encontra no final de seu livro A Ética Protestante e o
Espírito do Capitalismo (1920), onde ele afirma que a ordem econômica atual cultiva os
seres humanos em uma “carcaça dura como o aço”, e nela com força esmagadora dispõe
e quer dispor deles até que “o último quintal de combustível fóssil se extinga”. Nesse
mesmo sentido, um outro testemunho, o de Werner Sombart. Uma versão basicamente
da mesma ideia. Weber havia observado em uma conversação com ele de que o
capitalismo não chegaria a seu final antes de que “a última tonelada de mineral se funda
com a última tonelada de carvão”. Se antes era possível minerar o solo, hoje se minera
as nuvens. O quanto esta manifestação depende da data em que foi feita e não apenas
do diálogo interno com Ostwald, é algo que elimina essa equação do capitalismo e da
indústria pesada no estilo antigo, e nos novos atores mencionados, já reconhecíveis no
perfil a 1920, do cenário sócio industrial, entre eles, petróleo, capital financeiro, a
química, as telecomunicações e técnicas solares. No fato de falar sobre “últimas
toneladas” aparece evidentemente uma lógica apocalíptica do racionamento weberiano.
Dessa forma, graças um adentrar-se aligeirado no sistema vida-morte, a sociologia
melancólica ganha uma perspectiva sobre o capitalismo como “fatalidade global”. O
relevo de uma ontologia cênica tradicional por uma lógica ecológica se remonta ao século
XIX. É por isso que já em Marx e Engels haviam postulado de maneira sumária em seus
escritos A Ideologia Alemã (1845-1847), uma história comum da natureza e o ser
481

humano, embora então eles abandonaram a história da natureza porque quiserem se


limitar ao estudo das formações históricas das “relações de produção”. Essa omissão
caracteriza um tempo em que a diferença entre produtos propostos e efeitos colaterais
não propostos não havia se apresentado do modo explosivo típico do século XX. Marx e
seus sucessores apostaram no pressuposto ontológico-cênico fundamental, a natureza
seguiria sendo interpretada como recurso, seguiria também no futuro de maneira
parcialmente perceptível, a manifestação dos efeitos da produção industrial. A
pressuposição de uma natureza externa ilimitadamente tolerante proporcionou a
despreocupação cósmica dos humanos após a Revolução Industrial uma vida mais longa
que correspondido em função da problemática do ambiente-entorno, que estava prenhe
de nascimento então. Com o final da despreocupação chegaram também aos limites de
sua plausibilidade a ontologia cênica e a distinção, enraizada desde os tempos antigos,
entre o primeiro plano e o fundo que o sustentava. Com a ideia de “antropoceno” a
geologia atual retorna ao hábito epistemológico do século XIX de historicizar qualquer
objeto discricionário e dividir todos os campos historicizados em eras ou épocas. O
triunfo do historicismo foi alimentado pela ideia de evolução, que podia se aplicar a
qualquer objeto e âmbito de realidade, desde os minerais até os grandes corpos
compostos dos quais chamados de “sociedades” humanas. Não era de se estranhar que
Marx e Engels no espírito de seu tempo puderam afirmar que “todos nós só conhecemos
uma ciência, a ciência da história”. Para eles, a história humana representa nada além
de um caso particular e específico da história natural, considerando o ser humano em si
como o “animal” que tem que assegurar sua própria existência pela produção e pelo
trabalho. A história das relações de produção não passaria de outra coisa senão, que a
continuação de uma história em outro registro. Marx olhou o mundo por viés histórico
ao perceber que a troca não é um elemento “natural”, mas que ele precisa ser
historicizada, e com isso, ele monta a história dela na situação de proliferação do capital
no capitalismo.
Essa prática que Nietzsche explicitou em “não há texto, só interpretação”, foi
usada por Freud e Marx. Nietzsche em seus impulsos teóricos desembocam em uma
crítica da razão perspectivista.73 Com seus trabalhos sobre a crítica da razão, Nietzsche

73
HERNÁNDEZ, Luis Rubén. Ontología Negativa y Voluntad de Poder. Notas Sobre el Perspectivismo en
Nietzsche, sem data, pp. 7-8. Disponível em: <
482

forneceu a prova de que todo conhecimento tem um caráter local e de que nenhum
observador humano conseguiria uma imitação tão perfeita do olho divino que transcenda
realmente a sua própria localização. Neste último, tal prática se fez à medida que Marx
não criou uma crítica da estrutura do capitalismo, mas uma “crítica da economia política”
enquanto uma interpretação daqueles que haviam feito os textos básicos dessa ciência,
falando do capitalismo. Ele denunciou a ideia dos filósofos-economistas de fugirem da
história e da sociedade e descreverem os fenômenos econômicos como se fossem
naturais. Assim fazendo, esses filósofos pareciam não perceber o quanto eles próprios,
de certa forma, haviam criado o capitalismo por meio de uma descrição de um objeto
aparentemente dado, com uma dinâmica regular que até poderia ser descrita como
descrevemos a gravidade enquanto lei natural. Ao colocar em O Capital o subtítulo de
“crítica da economia política”, Marx havia adiantado, na prática, a regra de Nietzsche,
não há texto só interpretação. Mas o tinha feito sob a inspiração iluminista, vinda de Kant
e (revista por Hegel) na formulação das “Críticas”. Essas “Críticas” de Kant, o que eram?
Eram a discussão das condições e limites da razão, não a própria razão. Mutatis mutandis
Marx fez exatamente isso: conversou sobre os limites da economia política e, portanto,
teve de falar das condições pelas quais sob o capitalismo havia uma aparência de
racionalidade, mas, efetivamente, uma situação de não razoabilidade, uma vez que sob
tal organização do trabalho a riqueza aumentava demais para uns e diminuía demais para
outros. De fato, o traço fundamental da metafísica ocidental sempre foi uma ontologia
ocular com bases na sistematização de uma visão exterior e interior. O “sujeito do
pensamento” aparecia como um vidente que não só via coisas e imagens, mas via por
último, a si mesmo como alma que vê, uma manifestação de força visual absoluta.

https://www.academia.edu/8591495/Ontolog%C3%ADa_negativa_y_voluntad_de_poder._Notas_sobre_
el_perspectivismo_en_Nietzsche>. Acesso: 21 Abr. 2019. O perspectivismo implicaria, assim, a
conscientização de que o conhecimento é uma construção humana feita a partir de diferentes pontos de
vista. Como é que um ser humano adquire a capacidade de criar interpretações, isto é, impor certa lógica
ao mundo? Através do seu processo de socialização. O ser humano é uma condensação de múltiplas
influências, valores e perspectivas que lhe aderem ao longo da vida como produto de sua interação com
os outros. Nietzsche diz: "Talvez a suposição de um assunto não seja necessária; pode ser lícito admitir uma
pluralidade de sujeitos cuja jogo e cuja luta são a base da nossa concepção e nossa consciência... Minha
hipótese: o assunto como pluralidade". A base da nossa concepção e nossa consciência, de modo seria um
produto de nossas experiências, experiências e relacionamentos, das ideias que os humanos decidiram
adotar e rejeitar ao longo de nossas vidas. Tudo isso é ao mesmo tempo um produto e uma entrada do
confronto entre as vontades do poder.
483

O segredo desvendado por Marx foi o de mostrar como que aparecia algo de
mais valor no mundo econômico. Isto viria, segundo a sua interpretação, do fato dos
trabalhadores produzirem um excedente de valor por conta de que o trabalho por si
mesmo, quando no regime capitalista, gera a reposição da força de trabalho do
trabalhador e ainda deixa de lado um valor que pode ser apropriado por quem emprega
a força de trabalho. Max mostrou que o tal mais-valor não era o lucro do capitalista, mas
algo que pertenceria legitimamente ao trabalhador, para lhe dar mais que o sustento,
mas que lhe era retirado, deixando-o aproveitar apenas aquilo que o faria voltar vivo para
a manhã seguinte do dia de trabalho. Todavia, no meio dessa conclusão, ou melhor, para
formular essa teoria, Marx precisou analisar novamente o que se chamava de
mercadoria. Investigou não o produto, mas a mercadoria, ou seja, o produto no mercado.
Viu que no mercado não se encontram vendedores e compradores enquanto pessoas,
mas pessoas comandadas pelo que vendem e compram, as mercadorias. Estas então
eram os verdadeiros sujeitos, deixando seus carregadores, os vendedores e
compradores, como objetos. No mercado não entram produtos, somente mercadorias,
ou seja, elementos que se igualam porque são objetos vistos pelo seu valor de troca, não
pelo valor de uso. Quando lemos Marx hoje e a conversa dele nos leva para esse campo,
então o marxismo dá sua contribuição mais autenticamente filosófica, num sentido mais
tradicional do termo. No sentido da suspeita que se volta contra si mesma. Sei que estou
sendo dominado, pois me olho no espelho fazendo vontades de objetos. Voltei minha
desconfiança para eu mesmo. Todavia, posso não saber o que fazer para mudar isso e,
então, acreditar que ser crítico é perceber isso e ficar quieto. Marx não queria que se
ficasse quieto. Só interpretar não basta, disse ele. No entanto, ao querer sair da
interpretação e transformar isso, criou o quarto monoteísmo que só quando se perdeu
de vez nos deu chances de retomar Marx. O quarto monoteísmo do comunismo como
uma fase do consumismo. O Comunismo funcionaria como uma comunidade de
excitados que cultivam à sua maneira o thymos numa psico-política específica com todas
as suas qualidades intrínsecas a ele como a ira, orgulho entre outros. O movimento
mediante o qual o homem fixado embaixo devia elevar-se a si mesmo à altura do seu
papel de homem potencialmente mais elevado, trazia no calão dos zeladores do homem,
o nome de revolução.
484

É claro que a teoria do Marx é uma teoria da mais-valia baseada nas teorias do
“valor-trabalho”, também chamadas de “teorias clássicas” ou de “teoria do valor-
troca”.74 Marx não teria conseguido formular suas noções sem a economia clássica, e sem
com isso, não ter sido perdoado até hoje pelos capitalistas. Assim, com base em produtos
completamente irrepreensíveis como o trigo e o ferro, a saia e a tela, a seda e a graxa,
ele procurou inicialmente o segredo da troca equivalente. Seguimos a sua análise
perspicaz nos passos decisivos: mercadoria e mercadoria; mercadoria e dinheiro,
dinheiro e mercadoria, passagem enquanto dinheiro para o dinheiro enquanto capital.
Em meio a essas considerações idílicas e formais de equivalência, mostram-se aqui pela
primeira vez aquelas tensões pesadas, que apontam para uma charneira de
“contradições” no cerne de todo o sistema de troca: dinheiro torna-se, agora e de uma
vez só, por intermédio do desvio pela coisa e da volta à forma do dinheiro, mais dinheiro.
A partir de onde? Ele se troca no sentido dos pressupostos como se estivesse fornecendo
algo equivalente por algo equivalente, ampliando-se por essa via. Será que a economia é
uma variedade da magia? Assim se fez a Academia de Platão. Eram regras especiais da
liberdade de conversação dentro do lema indicativo na porta: “que só entre quem sabe
geometria”. Isto nos faz crer que a política está interna à própria matemática. Não há
uma sociedade sem dinheiro, sem pólis, sem vida urbana, com matemática, nos
enganamos. Tales de Mileto que trabalhava com geometria. O homem do começo da
matemática, ou o próprio Pitágoras, estiveram sim, em uma sociedade urbana. Foi a
urbanização, e justamente, na hora da entrada do dinheiro que o Tales começou a
participar da venda de oliveiras para ele ganhar dinheiro que brotou nele a capacidade
de trabalhar com os equivalentes. É aí que a abstração aparece. Pedagogicamente seria
possível trazer a politização para o interior das matérias e as matérias para o interior da
pólis. Marx, contudo, ao menos isto é certo, não descreveu outra coisa senão a forma
fundamental de toda circulação capitalista, que repousa sem exceções nas expectativas
de crescimento.
O que lhe interessa, como um genuíno fundamentalista teórico, não é tanto o
olet levemente perceptível no mercado, mas muito mais o olet ideologicamente
encoberto na esfera do trabalho. O que excita a sua força de pensamento não é o mau

74
SINGER, Paul. Curso de Introdução à Economia Política. 11ª Edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1987, pp. 11-25.
485

cheiro cínico da circulação, mas o fedor do próprio modo de produção (o que se chama
de “força de trabalho”). Esse fedor interpela o órgão teórico uma maneira totalmente
diversa daquela que tem lugar no primeiro mau cheiro, que se volta antes para os
sentidos. Por isso, as artes crítico-sociais da modernidade se dirigiram para os fenômenos
coloridamente corruptos do cinismo da circulação. Marx, em contrapartida, abre um
espaço para adentrar até as posições mais internas do partido do non olet e fareja no
próprio capital o gosto fatal de carne do roubo característico da mais-valia. A controversa
teoria da mais-valia jamais teria podido conquistar a posição estratégica chave no ataque
marxista à ordem social capitalista, se ela fosse mera fórmula econômica arbitrária entre
outras. Em verdade, ela forma não apenas uma descrição do mecanismo de ampliação
do capital, mas ao mesmo tempo, de uma maneira politicamente bombástica, fornece
um diagnóstico sobre a relação moderna de classe trabalhadora com a classe beneficiada.
Na troca da força de trabalho pelo salário, a harmonia do princípio de equivalência
aparece destruída de uma vez por todas. Se nós compreendermos como é que
sistematicamente ser toma mais do que se dá, então vocês serão como o capital e
esquecerão aquilo que é mau e bom. Uma vez que o trabalho cria muito mais valor do
que aquilo que é re-tornado aos trabalhadores sob a forma de salário (os salários
movimentam-se sempre na linha da mínima existência historicamente relativa), então
acumulam-se nas mãos dos detentores do capital excessos significativos, ainda mais com
a introdução de maquinários. O termo exploração designa de maneira expressiva o
escândalo envolvido na produção de mais-valia. Ele abriga em si uma peculiaridade
epistemológica: a saber, ao mesmo tempo uma expressão analítica e moral-agitadora.
Como tal, ela desempenha um papel marcante nos movimentos históricos dos
trabalhadores. Compreende-se o porquê de o capital ter recusado desde sempre esse
conceito de luta por causa de seus subtons “provocadores”. “Exploração” não é uma
noção moral em Marx. É uma noção descritiva. Explorar não é retirar injustamente, mas
é tirar justamente. No capitalismo a ideia é pagar a força de trabalho pelo que ela foi
despendida, ou seja, pelo tanto que vale, em horas, para que essa força possa ser reposta.
Essa operação é feita de modo que sempre o trabalhador dá mais valor ao que produziu
do que o necessário para ele repor sua força de trabalho. Isso é a mais-valia, e disso
decorre, em parte, o lucro. O lucro não vem somente da compra do mais barato que
depois vende mais caro, mas do fato do homem ter o dom, no capitalismo, de produzir
486

mais valia. De fatos, os embates ideológicos nos diálogos entre “trabalho” e “capital”
concentraram-se na questão de saber como se deveria interpretar o fenômeno do lucro
do empreendimento e da exploração (muito mais: a assim chamada exploração): olética
e não oleticamente. Enquanto os oletista falam de “problemas” como pobreza,
sofrimento do proletariado, repressão e depauperamento, os não oletistas dirigem o
olhar para os “interesses conjuntos” econômicos-populares, os reinvestimentos, as
realizações sociais da economia, o asseguramento do lugar de trabalho e coisas
semelhantes. Assim, o não oletismo moderno é um grande e único esforço ideológico por
“desdiabolização do roubo constitutivo da mais-valia”. O que hoje por meio do campo
político e histórico os trabalhadores poderiam pedir em um movimento sindicalista (que
nem os trabalhadores alemães), é que os seus patrões pudessem pagar mais que a
simples reprodução da força de trabalho, socializando aí, a mais-valia. Isso faria com que,
no fim, os patrões tivessem uma taxa de lucro menos como se vê, por exemplo, em
bonificações e participação nos lucros e resultados. O oletismo marxista obteve no século
XX o auxílio protetor por parte da psicanálise, que concebe o dinheiro e a merda como
equivalentes simbólicos e subordina o complexo monetário à esfera anal. Temos a
famosa expressão: “Ele caga dinheiro”. Ela não colheu gratidão por isso, sobretudo desde
que a Revolução Russa emergiu da noite para o dia como um não oletismo marxista
mascarado, afirmando que exploração, em russo, não seria mais exploração alguma. A
mais-valia socialista corre sob a bandeira libidinosa: volúpia da construção.
Nas palavras de Hobsbawm (1985, pp. 14-16):

A base objetiva do humanismo de Marx e, simultaneamente, de sua teoria da


evolução social e econômica é a análise do homem como um animal social. O
homem — ou melhor, os homens — realizam trabalho, isto é, criam e
reproduzem sua existência na prática diária, ao respirar, ao buscar alimento,
abrigo, amor, etc. Fazem isto atuando na natureza, tirando da natureza (e, às
vezes, transformando-a conscientemente) com este propósito. Esta interação
entre o homem e a natureza é — e ao mesmo tempo produz — a evolução
social. Retirar algo da natureza, ou determinar um tipo de uso para alguma
parte da natureza (inclusive o próprio corpo) pode ser considerado e é o que
acontece na linguagem comum, uma apropriação, que é, pois, originalmente,
apenas um aspecto do trabalho. Isto se expressa no conceito de propriedade
(que não deve ser, de forma alguma, identificado com a forma histórica
específica da propriedade privada). No começo, diz Marx, "o relacionamento
do trabalhador com as condições objetivas de seu trabalho é de propriedade;
esta constitui a unidade natural do trabalho com seus pré-requisitos
materiais”. Sendo um animal social, o homem desenvolve tanto a cooperação
como uma divisão social do trabalho (isto é, especialização de funções) que
não só é possibilitada pela produção de um excedente acima do que é
487

necessário para manter o indivíduo e a comunidade da qual participa, mas


também amplia as possibilidades adicionais de geração desse excedente. A
existência deste excedente e da divisão social do trabalho torna possível a
troca. Mas, inicialmente, tanto a produção como a troca têm, como finalidade,
apenas, o uso — isto é, a manutenção do produtor e de sua comunidade. Estes
são os elementos analíticos principais em que a teoria se baseia e constituem,
na realidade, extensões ou corolários do conceito original do homem como
um animal social de tipo especial.

Seria possível se pensar em um “metanaturalismo humano” como história


natural tecnicamente alienada. O que chamamos de “natureza” interior do ser humano
é o que Spinoza chamou de impulso (conatus) à autoconservação a qualquer preço que
é imprimível em todas as formas de vida do “voo para frente”. A imagem marxista do
mundo se tornou popular por um período significativo. A chamada “relação de
produção”, junto com seus grandes estados e eras dos caçadores e coletores, passando
pela escravista, feudalismo, capitalismo, até chegar ao “comunismo”. Esta narrativa tem
o grande mérito de substituir por uma teoria programática das épocas as doutrinas
antigas das eras ou éons que iam descendendo desde de Idade do Ouro até a do Ferro e
a doutrina dos impérios universais. As épocas do mundo teriam que ser diferenciadas
pelo modo e pela maneira em que os seres humanos organizaram seu “metabolismo com
a natureza” (Marx). Sempre que a ideia de obra grandiosa e competência perfeita se
torna poderosa, os seres humanos passam a pretender chegar ao lado ativo da Natureza
e a apropriar-se de partes da competência criativa que anteriormente era monopólio da
natura naturans – o útero absoluto, ou seja, a Terra. O ser humano, estigmatizado pelo
talento de sair cá para fora, inventa-se a si próprio e aos seus mundos. É esse motivo que
faz com que a poiese é tema de uma ginecologia. Seu ponto de início é a natura naturans,
que na produção humana se torna drama cultural, sem dúvida a poiese é uma mãe. Entra
aí, o conceito de “antropoceno” pertencente, por sua gramática lógica, ao grupo das
teorias pragmáticas sobre as idades do mundo.
Sloterdijk (2015, p. 334):

Nesta ontologia, o ser humano faz o papel do animal dramático no palco, na


frente do pano de fundo de uma montanha de natureza, que nunca pode ser
qualquer coisa senão o cenário inoperante por trás das operações humanas.
O pensamento ancorado nesta ontologia de pano de fundo permanece
venenoso muito tempo depois da Revolução Industrial, apesar de atualmente
(o pano de fundo) ser visto como um depósito integrado de recursos e lixeira
universal.
488

Um deslocamento do posicionamento do ser humano no cosmos, utilizando a


metáfora da “cena performática”. Determina uma situação do metabolismo telúrico, nas
quais as emissões provocadas pelos humanos começam a influir no desenvolvimento da
“história da Terra”. Desde a Revolução Industrial que se irradiou a partir das regiões
mineradores inglês, a metalização da sociedade ganhou uma vez mais novas dimensões.
Ao mesmo tempo, a espionagem do interior da terra avançou retroativamente. A partir
desse momento surgem minas gigantescas, que se agarram de maneira devoradora,
descendo até as profundezas mais negras das vísceras da terra. Mineiros transformam-
se em exércitos fantasmas da civilização industrial, exploradores explorados, os
trabalhadores das siderúrgicas avançaram e se tornaram a tropa de elite do ataque
capitalista à crosta “avarenta da terra”. Por fim, a forma econômica moderna capitalizou
todos os tesouros do solo e, com invasões que acontecem milhões de vezes, com
perfurações e extrações, levou-se adiante a guerra mineralógica contra a crosta terrestre,
a fim de incinerar os tesouros levantados ou processá-los, transformando-os em
aparelhos ou sistemas armamentistas. Diariamente são pronunciados pelas civilizações
industriais penas de morte contra muitos milhões de seres e contra milhões de toneladas
de substâncias. Neles se consuma a relação dominador-roubo que é própria das culturas
ocidentais em sua ligação com a terra. Em verdade, ela não é outra coisa senão o
prosseguimento consequente do ataque mineralógico-metalúrgico às estruturas
existentes da matéria. O diabo não é o dono do subterrâneo? Se a imagem do diabo
avança na Idade Média mancando e fedendo, é por causa da sua proximidade com os
ferreiros que trabalham em infernos subterrâneos abrasadores. O diabo seria um
herdeiro dos metalurgistas, no cenário contemporâneo, os químicos seriam os
descendentes do diabo por suas expressões de química e contranatura.
É de se notar a importância disto tudo principalmente na 1ª Guerra Mundial. O
sujeito combativo, especialmente após a derrota alemã e junto com a ascensão de Hitler,
agiria por meio de heroísmo e aço, seria precisa ser cego para sua própria destrutividade.
Quanto mais ele se vê ameaçado de ser estilhaçado pelos puros sofrimentos junto ao
mundo técnico e autoritário, de maneira tanto mais otimista ele sumula a poesia heroica,
no coração dessa teoria encontra-se um sujeito que não consegue mais sofrer, por ter se
transformado totalmente numa prótese. O que significam conceitos como progresso e
489

retrocesso, socialismo e capitalismo, se vivemos em um tempo no qual um partido se


designou de maneira extremamente engenhosa “nacional-socialista”. No qual se chegou
a uma aliança tática entre fascistas e comunistas, no qual dois grandes partidos de
trabalhadores não conseguem formar nenhuma frente conjunta contra aquele outro
partido que também se denominava “partido os trabalhadores” e que soube se ligar ao
partido do grande capital (Partido Popular Nacional Alemão) e aos militares em um front
– o de Harzburg de 1931, do qual conduz então uma linha bem direta até o front oriental
de 1943 – sem a ridícula “frente de ferro” dos democratas de 1932 tivesse alterado algo
aí? Na autobiografia de George Grosz (Ein Kleines Já und ein grosses Nein – Um Pequeno
Sim e um Grande Não) de 1955, porém encontramos o seguinte: “Nós éramos como
barcos a vela ao sabor do vento, com velas brancas, negras e vermelhas. Alguns barcos
portavam flâmulas, sobre elas viam-se três raios ou um martelo com uma foice ou uma
suástica no capacete de aço – a distância, todos esses sinais pareciam semelhantes entre
si”.
490

Manual do sem braço: manual, antologia e livro de imagens para pessoas com um braço
só – organizado pelo professor Eberhard Frnb. V. Künzenberg e pelos mestres da escola
heidelberguiana para pessoas com um braço só (agora em Ettingen junto a Karlsruhe)
– segunda edição ampliada.

O conceito de “emissão” permite reconhecer o tipo de influxo sucede até agora


como “efeito colateral”, porque em outro caso se falaria de uma “missão” ou um
“projeto”. A “e” revela o caráter involuntário da influência antropógena na dimensão
exohumana. Assim, o conceito de “antropoceno” implica em nada menos que na tarefa
de comprovar se o organismo “humanidade” é capaz de fazer de uma ejeção (expulsão)
um projeto, ou de transformar uma emissão em uma missão. Quem apela para o
“antropoceno” precisa fazer uma crítica da razão narrativa, já que as histórias de grande
efeito só podem se organizar começando pelo final, o ponto de vista antropocênico da
narração é idêntico a uma opção moral forte. Aqui no Ocidente, esta narrativa só teve
grande importância até agora em literaturas apocalípticas. “Apocalipse” é a tentativa de
avaliar o mundo desde seu final (a partir de seu final). Estamos falando de um
procedimento cósmico-moral de classificação, no qual os bons são separados dos maus.
Fazer uma separação deste tipo, significa separar os dignos da superveniência e os
indignos superveniência: aquilo que se entende, por exemplo, por “vida eterna” é uma
expressão metafisicamente sobrecarregada para poder seguir fazendo algo, como
“condenação eterna”, significa um modo de vida determinado não tem futuro e que se
exclui das formas de existências dignas de transmissão e superveniência. “Apocalipse”
significa evidência “do fim para trás”. Como coletivos não podemos estar de todo
acabados, mas sim, até novo aviso, sempre seguir fazendo algo, o que for, a inteligência
humana não pode levar a cabo de maneira concludente o olhar retrospectivo de sua
história. Sloterdijk já forneceu um esboço perceptivo da situação global da humanidade
na época do que é agora chamado de Antropoceno em seu tratado Eurotaoísmo de 1989.
Até o surgimento dos “limites ao crescimento” planetários, como o famoso relatório de
1972 sobre a discrepância entre a expansão econômica global e os recursos planetários
emitidos pelo Clube de Roma, a Terra foi concebida (e adequadamente tratada) por uma
modernização e industrialização. Algo que confirma uma série de simulações, desde o
Livro dos Mortos dos egípcios até o primeiro informe o Clube de Roma. Desde que as
491

cidades e os estados se tornaram para muitos o horizonte inultrapassável da vida,


constata-se um interesse do homem pelo que a história da religião conhece sob a alcunha
de metafísica metacósmica ou pensamento apocalíptico, assim são sinônimos os
fenômenos intermutáveis de religião, de salvação e niilismo.
Situação interessante vemos em You Must Change Your Life (2009) de Sloterdijk.
Se estamos falando de antropoceno, Sloterdijk afirma que a consciência do fato de que
não podemos continuar nossos estilos de vida atuais menos cuidadosos, mas precisamos
"mudar nossas vidas" ou “você deve mudar sua vida!” como um imperativo ético-fitness
e começar a "cuidar do todo ”é hoje quase universalmente compartilhado, formando a
quintessência até do Zeitgeist de hoje. Por isso, grande parte das narrativas locais e
subculturas estão perdendo força para um novo “situacionismo”. O que realmente está
acontecendo hoje é a desintegração do campo americano. Esse conceito expressa mais
o constrangimento de um “universalismo desamparado”. O problema cultural real não
está no pluralismo étnico, na multipolaridade ou policentria, mas com todas as suas
reflexões nas narrativas locais, embora estas sejam referidas como nacionalistas e
nativistas. É cada vez mais visível a assimetria e cada vez mais profunda entre o passado
e o futuro dentro de cada cultura. O confronto iminente entre o tradicionalismo e o
futurismo. Embora isso ocorra principalmente na periferia das esferas culturais, também
pode ser observado dentro da corrente principal de cada cultura. Seria justo dizer que a
“pressão para a modernização” que deixa um passado único para trás é o destino de hoje.
Isso implica dizer que muitas culturas devem entender que, ao mesmo tempo que
analisam um passado principalmente separado, elas experimentarão um futuro
basicamente comum. Isso leva ao surgimento de um “situacionismo global” que os traços
inerentes não existem, mas são moldados pelo nosso ambiente. O que coloca a única
Terra na vanguarda como um local comum para todas as culturas. A humanidade
exclusivamente como pano de fundo e fundo de recursos ilimitados para seus projetos
histórico-culturais. Só é possível pensá-la e ensaiá-la por diversas maneiras de
antecipação. A ingerência do ser humano na história da natureza demonstra que a
intuição de Heidegger de conceber o ser como tempo era correta. Entretanto, faltava um
elemento mais profundo: saber que o tempo só se faz ostensivo como tempo quando se
lhe dificulta em seu percurso regular. O primeiro obstáculo ao percurso de que foram
conscientes os antigos foi o atraso, que constitui uma das formas fundamentais da
492

tragédia, também a humanidade moderna está ameaçada pelo atraso, sobretudo no que
se refere a tomada de medidas político-ambientais. Não obstante, de maneira geral, para
os modernos o tempo como tal se faz ostensível antes de tudo por acelerações. A
aceleração até o limite extremo da pista de movimento é o movens da característica
apocalíptica contemporânea. Uma característica apocalíptica com a possibilidade de
acidentes. Foi daí que derivou a brilhante conceituação de Heidegger na figura do “ser
que caminha para a própria morte” ou “avanço para a morte”. O “ser-para-a-morte”. Se
lermos Ser e Tempo não apenas como uma ontologia existencial, mas igualmente como
uma modificada psicologia social da modernidade, novas perspectivas são abertas.
Heidegger compreendeu a relação entre a “inautenticidade” moderna da existência e a
fabricação moderna da morte de uma maneira que só se abre para um contemporâneo
das guerras industriais. Veremos um Heidegger com potencialidades críticas e explosivas
na fórmula do ser-para-a-morte. O dasein no mundo, significa sempre um ser exposta em
esfera onde a não música, é possível. Quem nasce ou quem nasceu, saiu para fora do tom
contínuo-continuim acústico do instrumento maternal. O “estremecimento” do qual
Heidegger menciona em sua metafísica, é o estremecimento do medo nasce de uma
perda da música que já não ouvimos quando estamos no mundo. O medo que ele fala é
o medo da morte da música, o medo de um silencio ensurdecedor do mundo após a
catástrofe do meio materno. “Sente-se uma inquietação”. O medo revela o nada. É por
isso que homens existentes, também desvanecem no meio do existente, no
“estremecimento dessa suspensão”. O estado de urgência do pânico existencial, apenas
ali no vazio pairar no mundo, no “nós pairamos em medo”. O normalmente adormecido
possui a autenticidade do terrível que, se resisto, vem dar a mim como a um “existente”.
Por este motivo, Heidegger não pode acentuar de mais que a vida inautêntica se vai em
ruído e palavreado, enquanto ao tornar-se autêntico é inerente ao medo perante um
silêncio aterrador. Com seu “segundo socratismo”, teve base em se saber com maior
clareza, que não se sabe nada e em que medida é necessário partir desse princípio do
não saber ou da ignorância em relação ao resto. Nos tempos modernos, o saber do não
saber também adquiriu o caráter de urgência.
O século XIX concentra suas melhores energias teóricas na tentativa de tornar
pensável, através de grandes teorias realistas, a morte dos outros. O morre-se
transforma-se em “eu morro”. Os grandes projetos evolucionistas extirparam o mal do
493

mudo na medida em que ele afeta os outros, para transportá-lo para estados superiores
de épocas ulteriores concretizadas: há aqui equivalências formais entre a ideia de
evolução, e o conceito de revolução, o conceito de seleção, o conceito de luta pela vida
e de sobrevivência dos mais aptos, a ideia de progresso e o mito da raça. Com essas
noções, busca-se uma ótica do declínio do outro. Com a teoria de Heidegger sobre a
morte, o pensamento do século XX vira as costas para esses cinismos híbridos e
neutralizados do século XIX. O que muda é: morre-se transforma-se em “eu morro”. Ao
assumir um encurtamento existencialista com a antecipação do fim. A autêntica tarefa
de pensar teria que ter sido consistida em indagar o porquê na Modernidade, por motivos
imanentes, se instala a antecipação de um final total. Daí que os progressos técnicos
serem dotados de uma narrativa praticamente religiosa. Por essa razão que o cristianismo
por um bom tempo foi o mais poderoso movimento criador de história no nosso planeta.
São progressos que devem acelerar a vinda da salvação futura. Para isto é preciso uma
força pensante nos motivos de aceleração geral que havia impulsionado e colocado o
modo de vida dos modernos na forma do avanço absoluto e da aceleração absoluta. Não
utilizamos as expressões: “Vou detonar”, “isso é de outro mundo”, “é de tirar o fôlego”,
“estou com o tanque cheio”, “Estou com gás”, “estou a mil”, “estou botando o terror”,
“estou no céu”, “Red Bull te dá asas” podemos perceber um tipo de gozo histérico, êxtase
em trânsito (exaustão), no trânsito, no tráfego, na obliteração, no desaparecimento, na
flutuação, desprender-se, elevar-se, na ausência de gravitação, na suspensão, no voo, na
mobilização, no autoconsumo da aceleração que põe em risco a própria existência. Se
você não está na borda do desborde, no limite do ilimitado, na beira do abismo (Man On
The Edge) é porque a sua vida é aborrecida, improdutiva, nada interessante e até um
tanto suspeita.
A crise global compartilha muitas características com o antigo Deus do
monoteísmo, por isso Sloterdijk dedicou a trilogia Esferas como imunologia, ele especula
que esta crise inevitavelmente iniciará e terá que iniciar, nada menos que uma virada
imunológica global, isto é, uma transformação revolucionária na forma como os humanos
constroem e organizam sua residência imuno-esférica no planeta (design, receptáculos,
casas, apartamentos, sistemas de ventilação, técnicas climáticas, sistemas de suporte,
etc). Um novo gesto de formação do mundo em termos de um novo projeto global de
construção de esferas, entendido em primeiro lugar como uma transformação das
494

estratégias locais de imunização global, dos protecionismos locais para um


“protecionismo” do todo. O animal aberto depenou por dentro o seu telhado e sua casa.
Adentrar na modernidade é pôr em risco sistemas imunológicos que criou por longos
anos. Viver no mundo moderno é pagar um preço da ausência de camadas protetoras. O
homem agasalhado lida com sua psicose da época, respondendo ao resfriamento exterior
com técnicas de aquecimento e políticas climáticas – ou com técnicas climáticas e
políticas de aquecimento.
Isso exigirá um “ponto de inflexão social” na conscientização, disposição e
capacidade de agir coletivamente como terráqueos. Um futuro viável para a humanidade
neste planeta só pode ser concebido para Sloterdijk com base na construção de uma
“estrutura global de co-imunidade” ou um “imune-design global”, infundido por um
espírito de “co-imunismo”, baseado na consciência de uma situação ecológica e
imunológica compartilhada e a percepção de que esta nova situação, que é realmente a
do Antropoceno, não pode ser tratada somente com base nos recursos tecnoculturais
locais existentes, mas necessita de uma “lógica de cooperação”. Ser moderno é
encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento,
autotransformação e transformação das coisas em redor, mas ao mesmo tempo, ameaça
destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos. A crise ecológica da
Terra, é uma primeira crise da humanidade. Esta crise da mundaneidade vai mais fundo
do que as que surgiram sob a pressão das religiões de redenção e da antiga apocalíptica,
pois para a humanidade atual torna-se visível, pela primeira vez, verdadeiramente na sua
totalidade casa comum real no momento da sua destruição.
Sloterdijk (2008, p. 219-220):

O que chamamos a terra única significa a mônada geológica que foi concebida
pelos membros da espécie de início como mãe, terra-mãe, depois,
crescentemente, como túmulo, local de trabalho e palco e, por fim, como
recurso e biótipo. Hoje, apresenta-se aos olhos dos membros não-ébrios da
espécie como uma extensão considerável em imagem. É a portadora de uma
complexidade ainda não suscetível de ser pensada a fundo. Como a terra foi
agora verdadeiramente descoberta como a base única para todas as hordas,
povos, nações e círculos culturais, pode-se ativar mundialmente como um
novo ciclo de inteligência que leve para lá dos clássicos regionais e talvez até
do diabólico pacto da inteligência com o capital mundializado. Neste ciclo
originam-se novos cruzamentos entre saber e velar, cruzamentos que
correspondem ao espírito de vigília global das ampliadas relações
interracionais. Nos espaços de vigília globalizados examinam-se e
estabelecem-se as dimensões principais da inteligência multi-racional – como
495

nova política, como universidade, como nova antropologia. Em todos os


aspectos desta Scienza nuova da cidadania mundial se refletem facetas de uma
segunda educação que não só transplanta a criatura humana do quarto das
crianças para a capital, como também dali para o centro nervoso do processo
de concentração global [...]. Quem poderia não se dar conta de que o que faz
a vida difícil à inteligência atual é uma crise megalopática? A habitacionalidade
dos hipercomplexos mundos vindouros não está demonstrada, a dirigibilidade
das evoluções políticas é pouco mais do que um desejo piedoso. O que se
desenha no horizonte? Um século das horas extraordinárias, da dúvida, da
fuga massiva. Mas não vale lamentar-se e é indecoroso baixar a cabeça. O deve
de ser feliz é mais válido do que nunca em tempos como os nossos. O
verdadeiro realismo da espécie consiste em não esperar menos da inteligência
do que se exige dela.

A experiência ambiental da modernidade anula todas as fronteiras geográficas


e raciais, de classe e nacionalidade: nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une
a espécie humana. Assim como o Novo se adicionou ao Antigo Testamento e o superou,
agora é necessário – ou talvez inevitável, alinhando-se à visão de Sloterdijk, redigir o
“Testamento Mais Novo”, que assume e confirme aspectos dos anteriores, mas, ao
mesmo tempo, oblitere outros. Nele, deve-se recolher aquilo que o conjunto das diversas
culturas não deve se esquecer, se pretende prosseguir sob o signo de uma civilização
superior. Não narra mais Deus e a sua revelação, mas sim os direitos humanos, a ciência
e as artes que constituem o produto mais alto de uma comunidade que não se define
mais como Igreja, mas se abre a todos aqueles que estão dispostos a criar, conhecer e
aprender. Para nós, modernos, estas imagens se tornaram algo monstruoso. Não mais
uma imagem de Deus, nós fomos criados e transformados na imagem de uma
monstruosidade. Essa monstruosidade, de certa forma, sempre esteve escondida em
Deus, uma das mais importantes atitudes de Deus era impossibilidade e possibilidade,
incapacidade de sofrer. Um lado não vivo de um monstro. Um monstro que se
apresentam em primeiro plano no jeito moderno de ser com a revolução tecnológica que
teve início na Idade Média, e que, atingiu seu primeiro pique no século XVIII com a
introdução das máquinas, o motor a vapor. Desde esse período existe uma nova classe
de trabalhadores que já não é mais humana, uma classe de trabalhadores que é uma
classe de queimadores, fóssil e materiais derivados do petróleo, eles são os verdadeiros
trabalhadores. Esta grande mistificação do proletariado foi projetada para esconder o
fato de que atrás dos trabalhadores existe um super-trabalhador, alguém inumado.
Olhando por essa via, a monstruosidade está liberta e livre. Essa virtude atrás da
496

civilização se articula com a ideia de antropoceno. O que vemos hoje são muitos
monstros, muitos Titãs no meio de nós. Um lado selvagem da energia que não devemos
ou deveríamos ter manifestado. Na teologia grega vemos duas gerações de deuses,
temos o reino Titânico e o reino Olímpico. O olimpismo sempre foi um estresse do lado
preso, amarrado dos Titãs. A sensação que a modernidade nos passa é que, estamos
falando de um período de desamarras, de libertação das correntes Titânicas para forças
de construção Olímpica. Uma ideia de inclusão de entropia como força dissipadora. A
introdução das primeiras máquinas de queima-poder com o ecossistema que Marx
chama de “o metabolismo da humanidade” com a natureza é a definição técnica de
trabalho. A ideia de trabalho em si sofreu uma profunda transformação no seu sentido e
propósito, a partido do momento em que, os seres humanos passaram a criar essa
intimidade entre queimar e trabalhar, isto algum dia poderia ser considerado um “não
trabalhar mais” nesse aspecto de energia, a queima é uma emergência da entropia.
Atividade nos tons modernos é, primeiramente, uma primeira qualidade de queimar a
nós mesmos, não no sentido mais recente de consumo-consumidores (burners:
gastadores). Essa burning quality, pode-se dizer que é um jogo que pode ser jogado
enquanto todo mundo tenha se transformado um membro de uma burning class. Essa é
uma predisposição da qual Max Weber teve em mente numa sistemática passagem de
que todos nós fomos pegos por uma gaiola de ferro de necessidade e olhar para um
futuro mecanizado. Este futuro seja jogado até o momento em que a última grama de
ferro tenha sido queimada com a última grama de carvão. Seu maior livro esteve um
passo antes da era do óleo (1920), um período que estava para começar. A primeira
formulação do chamado “imperativo energético” com os físicos alemães, temos Ostwald
voltar para o ano de 1912 onde fala do “imperativo energético” como uma fórmula muito
simples. Com uma base de cianetos não é possível correr infinitamente nessas quantias
de energia. Uma sentença bastante marcante que funcionaria como um pacifismo
energético no carcinogênico de 1912, pois em 1914 a Europa começou uma grande
energia de despesas e no interesse de que isso nunca aconteceria. Isso não parou porque
se transformou em formas civis de mobilização, um exército que vemos todas as
semanas. Isso se transformou em um estado de mobilização permanente que nunca se
encerrou, foi atomizado não mais na forma de um exército, mas numa mobilização
individual onde temos um momento de pouca esperança para uma desmobilização nos
497

Estados e nas ambições que advém da filosofia moderna e da literatura moderna que é a
criação de uma nova geração de transportadores de uma pequena invasão. A capacidade
de agir é a base de todas as construções legais, porque eventos não podem ser cobrados
e eventos não podem ser colocados na corte. A racionalidade humana sempre tentou
transformar esses eventos em ação. Antropoceno não é somente essa fenomenologia do
poder, energia, complexidade e inteligência artificial. É também, sobre a formulação de
um novo endereço no qual você pode enviar suas cartas de acusação. Uma frase de Carl
Schmitt uma vez disse “a humanidade é uma impostora”, porque a humanidade é um
endereço errado. Uma vítima disso foi Schiller que queria mandar um beijo para todo o
mundo. Seu beijo pelo visto, não foi entregue até hoje. “A humanidade” teve que se
tornar um endereço real. Esse é um conceito inserido no Antropoceno: se a humanidade
consegue ser uma entidade?
Sloterdijk (2018a, pp. 3-5)

Deve ser atribuída a proliferação do conceito principalmente ao fato de que,


sob o disfarce de objetividade científica, transmite uma mensagem de
urgência político-moral quase intransponível, uma mensagem em linguagem
mais explícita lê: o Homem tornou-se responsável pela ocupação e
administração da Terra em sua totalidade, já que sua presença não é mais
realizada à maneira de uma integração mais ou menos sem pegadas. O
conceito supostamente relevante do ponto de vista geológico, "Antropoceno",
contém um gesto que, em contextos jurídicos, se qualificaria como o título de
uma agência responsável. Com a atribuição de responsabilidade, é criado um
endereço para possíveis reclamações. E com isso temos hoje quando
atribuímos "ao ser humano" - sem acrescentar nenhum epíteto - a capacidade
de autoria em dimensões geo-históricas. Quando dizemos "Antropoceno",
participamos de um seminário geocientífico apenas na aparência. Na verdade,
nós intervimos em um julgamento, mais exatamente, em uma sessão pré-
audiência de um caso, em que primeiro a possibilidade de culpa do acusado
deve ser esclarecida.

Edgar Mitchell, o “sexto homem na lua”, foi quem deu um novo conteúdo a
palavra. Talvez não deixe de ter a sua importância que tenha sido astronauta. Ao falar
dos seus sentimentos quando retornou para a Terra falou que “Todos regressam com o
sentimento de já não serem cidadãos dos Estado Unidos..., mas cidadãos da Terra”. A
humanidade de certa forma, está incapacitada de aprender, porque não é um sujeito,
mas um agregado. “A humanidade” como conceito geral, forma um sujeito alegórico que
pode ser um fantasma com teses especulativas. Essa ecologia só começa depois de se
entender que a humanidade não tem um Eu, nem coerência intelectual, nem órgão de
498

vigilância. O que nos coloca em uma situação delicada no que tange aos processos de
aprendizagem do gênero humano, somos onerados por um problema de transmissão. É
possível se transferir inteligência adquirida personificada para aqueles que aprenderam
para aqueles que não aprenderam? É possível integrar conhecimento individualizados em
instituições sociais e em sistemas técnicos? Este parece ser um horizonte cada dia mais
aceitável. Se toda essa multidão consegue produzir uma suficiente quantidade de
agências com capacidade para agir razoavelmente. Uma situação de co-imunização. O
agir diminui o nível de autodestruição. Esse gesto de acusação pode ser transformado em
uma insignificante metanoia ética individual que pode considerar como mudar sua vida
de acordo com a situação. Não tem nada a ver com uma situação de companhia de
autoridade. É a situação em si que vem girar na ideia de que você deve mudar sua vida,
como um homem que está se afogando. Você diz para ele: “você deve nadar”. Ele escuta
isso com uma voz em sua cabeça que soa como a voz da sua razão. Se falamos de
“imunologia”, tratamos de uma teoria que tem o desígnio de descrever expectativas
incarnadas. O sistema imunológico é especializado em certo nível de incarnar
expectativas em que o mundo é um lugar onde você pode ferir a si mesmo. A vida em si
mesma, deve ser definida como uma fase de sucesso de um novo sistema imunológico,
onde o tempo deve ser compreendido como um período de sucesso de uma vida
individualizada. Isso modifica a perspectiva (ou o olhar de fora) da vida, da sociedade, do
Direito, da medicina e da coexistência em um sentido quase dramático, porque a maioria
das coisas que usamos para discutir em termos de interação social, são na verdade, uma
fricção entre uma pluralidade de imunologias criadas, por exemplo, a religião como
fortaleza imunológica.
Até o momento em que o trabalho ameaça o cenário, os atores não impõem
uma nova percepção de si mesmos. O que era cenário virou tema de ação. Só poderá
sobreviver graças a um novo gesto construtivo, realizado pelos seres humanos que hajam
compreendido que a proteção do cenário é o argumento da obra. Isto requer um ato
primeiro necessário, e passarmos a pensar como crianças da terra, mais do que como
crianças do mundo. Só assim seria possível esse novo gesto construtivo, que nos permita
construir, como crianças da terra, da Mãe Terra umas novas lógicas e com elas, inaugurar
a técnica necessária, as tecnologias que possibilitem uma nova realidade. Sloterdijk
provou ser um pensador antropocênico avant la lettre, apontando para a fragilidade e
499

finitude da Terra como a base sobre a qual os projetos histórico-culturais humanos se


desdobraram. Ele proclamou que a cultura humana teria que ser cada vez mais
responsável por sua manutenção no futuro, exigindo uma virada ecológica global de todo
o esforço humano. No entanto, é apenas em sua trilogia de esferas que temos uma
grande reinterpretação esfero-imunológica da evolução e história da humanidade e
todos os sistemas religiosos e metafísicos que produziu, em outras palavras, uma história
que opera de a perspectiva dos seres humanos como criaturas auto-imunizantes que são
seres construtores de esferas, permanentes e dotados de esfera que Sloterdijk
desenvolve uma antropologia filosófica que é capaz de explicar completamente a
condição antropocênica na qual estamos entrando inevitavelmente. Queríamos reforçar
que “ser-no-mundo” deveria ser traduzido por “ser-nas-esferas” porque ninguém está
imediatamente no todo ou, digamos, em um todo acondicionado. O homem é sempre
um arquiteto de interiores, por isso constrói esferas. As esferas são realidades
transcendentes que dão ao nada, como uma impossibilidade de morar diretamente no
nada. Ou melhor, para viver nelas, sempre faz falta uma versão esquemática, por assim
dizer, de uma casa habitável, na qual seja uma casa de cartão desenhada por
trabalhadores de uma fábrica. Não estamos condenados a ser livres, pelo contrário,
estamos condenados a habitar. Em particular, a esferologia plural ou pós-holística ou
polisferologia da co-existência co-isolacionista que é desenvolvida no terceiro volume de
Esferas intitulado Espumas é eminentemente adequada para considerar a condição
humana na era do Antropoceno. Com as considerações até aqui feitas, o leitor já deve ter
percebido que a Modernidade, enquanto processo, não nada nada senão um ser-para-o-
movimento, movimento para o movimento em forma de espiral (reforço-retro-
alimentação-reinforcement) de auto-intensificação que se vão acumulando e
acentuando. A nossa sobrevivência está atrelada a um recuo espontâneo da onda de
maré cinética que volta para “dentro de nós”. Um movimento crítico só pode advir de
uma absorção da onda de mobilização, quando esta se tiver “virado”, atirado para a
frente até o seu ponto crítico. É inegável a imprevisibilidade no aparecimento de tais
pontos de viragens, tão insensato como os pensamentos de hoje em dia, que do perigo
tiram como conclusão direta o salvamento e da situação desesperado do mundo que
retiram uma lógica de salvação. O homem hoje trabalha sob uma forma de catástrofes
que, só elas sendo as mais extremas possíveis pode nos levar para frente como forma de
500

mudança de uma situação desesperada. Desde que os tempos são tempos, desde que o
homem histórico levantou sua cabeça, não se passa um dia sem catástrofes, nem um ano
sem alguma inovação, nem uma geração que não tente superar a anterior e nem uma
geração que não abra uma esperança contra sua própria convicção. As grandes
civilizações dão o que falar porque elas são movidas pelo acontecimento. Enquanto ela
instaurar mundos que pretendem continuar sendo narrados posteriormente, o seu
caráter corresponderá ao grau da mobilização civilizadora. Supondo-se que não há O
ponto de viragem, mas há viragens e voltas que, não sendo elas próprias factíveis, se dão
de forma imprevisíveis sobre uma tal curva do agir, o cavalo pedindo cela passando por
nós. Aproveitar a oportunidade seja na forma e no tempo em que ela vier. Dizem por aí
que um raio só cai uma vez no mesmo lugar. Se é possível se falar em alguma volta, então
devemos pensar a de ser uma precaução contra a destrutividade, o abandono de atitudes
de esforços errôneas e o afastamento de falsas ilusões de facilitações dos processos de
mobilização. A serenidade confirma-se como uma “posição” ou um “estado” que nos dá
a vantagem de não se ter vencido, possui semelhança com uma derrota numa luta em
que seria catastrófico ganhar. A serenidade dota o sujeito de autoconhecimento que sabe
já estar cansado com o impossível. Será que nossos últimos capítulos serão sempre
escritos por aqueles que, não sabendo como, escaparam às catástrofes do sujeito? Se o
itinerário da subjetividade como circuito odisseico para um ponto de partida mal
interpretado, poderia criar uma impressão de que as coisas mais simples deveriam
sempre surgir só no fim de um longo erro. Disso, se poderia tirar a conclusão de que o
espírito esteja posto em marcha e obrigado a andar por desvios. Será se precisamos de
um Novo Testamento a ser escrito? Atualmente não há apenas motivos político-
partidários para tamanha preocupação, mas boas razões, razões dramáticas, globais,
para se falar em mutações. O que nos leva a pensar a desproporção incomensurável entre
o fosso da competência política e a exigência do real. De momento, ninguém sabe como
se poderia colocar as tendências apocalípticas do sistema ao alcance em termos de
métrica e de medidas suscetíveis de as coibir. A política virou um jogo de tatear no escuro,
uma cabra-cega, mas como os participantes no jogo nunca se deixam apanhar, a política
não pode tirar a venda. Nesse jogo, todos sentem que o real cresce em termos de perigo.
Um dos aspectos do perigo em que nos nós encontramos é o de colocar sujeitos como
objetos da política, que consiste também, em reduzir os riscos amorais a questões
501

morais, com a finalidade de dar um sossego aos ameaçados. No fenômeno do praticismo


convergem todas as mobilizações que servem de fundamento da Modernidade nos
campos econômicos, tecnológicos, culturais, políticos, científico, militar, jurídico e
informativo. Práxis, neste sentido, é essencialmente, uma prática de modificações e
mobilizações, ataque ao que é dado, aparente, vontade de penetração, dissolução,
antecipação de projetos, transformação e movimento para uma orientação de crescente
e constante mobilidade. Já não foi dito que todas as mobilizações tiram seus motivos
epistemológicos de decisões conceituais básicas da tradição metafísica – como a do
Iluminismo no desenvolvimento da diferença entre luz e matéria (relação entre trabalho
e matéria)? Transformação em luz significa obliteração, redução, metamorfose,
mobilização. Não nos furtaríamos, é claro, para além de limites críticos, as mobilizações
passam a ser explosões. Na medida em que os nossos tetos de vidro começam a estalar
e onde o edifício mundial começa a esquentar, já não é possível esconder as dúvidas em
relação à Modernidade enquanto mobilização. Sobre tais questões também um
apequenamento ou um abaixamento das exigências seria um princípio do fim, seria a
racionalização de uma falência já consumada.
Sloterdijk (2018, p. 105):

Na minha opinião, devemos prosseguir ainda mais nesta direção hoje. A


academia, sem dúvida, continuará sendo o castelo assombrado que o
fantasma de Derrida gosta de perambular. Não devemos hesitar em pensar
além dos limites das disciplinas acadêmicas, graças à sua inspiração. A ampla
crise global do nosso tempo deve levar os filósofos que permanecem
escondidos no seio das universidades a deixar o seu esconderijo para trás.
Devemos novamente tomar as ruas e praças, as páginas de littéraires e telas,
escolas e festas populares, se quisermos tornar nosso ofício, o mais meloso e
melancólico ofício do mundo, mais uma vez relevante. Quando o nosso ofício
é bem praticado, ele é relevante, mesmo na vida não acadêmica. Incontáveis
pessoas se cansam e não perguntam com tanta urgência o que elas vêm
pedindo há muito tempo: o que exatamente é uma vida boa, uma vida
examinada? Se alguém acha que tem uma resposta, ou se alguém quer fazer
uma contra-pergunta, deve agora avançar e falar.

As energias, que ingenuamente se julgavam capazes de realizar na base finita da Terra o


projeto infinito da Modernidade, sentem-se de repente, sem tempo. Uma consciência de
falta de tempo ameaça e percorre uma situação pânico geral de tudo que seja à médio
prazo. O programa de eliminação do prazo que a Modernidade possuía, tornou-se novo
pensamento dos tempos finais, no qual se fazia sentir inevitavelmente a lógica do prazo.
502

O tempo dramático do mundo é mero tempo de autorrealização para o supersujeito na


Modernidade. O tempo é apenas palco e capital, mas também combustível, material de
construção para a mobilização progressiva daquele Eu que se realiza no movimento em
doses homeopáticas no movimento para mais movimento. No êxtase. E o quanto o
homem gosta de êxtase nem é preciso dizer, já que ele é endorfinado e tem isso como
base de tudo que faz (Samuel Hahnemann que o diga). A humanidade mobilizadora, não
é outra coisa senão metafísica em ação, substituição da Natureza pela técnica. Até hoje,
toda a técnica foi contranatura, pois, aplicou princípios que não aparecem na natureza,
como por exemplo, uma lâmina de faca, a rotação da roda, o arco e flecha, a ressonância
magnética, mísseis, a arte de nos fazermos. Com a criação de artefatos, não se segue o
exemplo que a natureza como engenheira da vida desenvolveu por meio de suas próprias
estratégias evolutivas, os engenheiros deveriam não querer imitar a natureza, mas o
contrário, antes fazem rompimento nela, rupturas. Existem fortes argumentos para se
falar que com as biotécnicas se iniciou um tipo de deslocamento no próprio processo da
técnica. Durante todo esse tempo, a técnica foi uma alotécnica, uma mecânica fabricada
para efetuar funções a atuações contranaturais e abstratas. Um complexo habitual de
poder e simplificação, para sublinhar que através dela são postas em prática intenções
contranaturais, redutoras e dominados. Chegou-se ao patamar em que a alotécnica vira
uma homeotécnica – uma técnica de propriedades semelhantes e de mimética à
natureza. Ela já não cinde o modus operandi da natureza, vê-se o contrário, se relaciona
com ela em termos cooperativos e progressivos. Vive de produções específicas do vivente
que arrancam na vase de um modelo de sucesso da evolução de longo prazo de
preservação. A homeotécnica poderia ser entendida aqui como algo próximo da Cabala,
ou seja, uma tentativa de descobrir e imitar os procedimentos escriturais de Deus. Essa
é uma compreensão de que Deus não foi um humanista, mas um informático. Ele não
escreve textos, antes codifica, escreve codificações. Se alguém pudesse escrever como
Deus daria um conceito bastante singular que nenhum escritor humano jamais fez até
hoje, os geneticistas, informáticos e seus algoritmos já escrevem de outra maneira, nesse
sentido, poderia se dizer que começou uma era pós-humanista. Surge um “quarto
império”. É o império do inventado, do que é trazido para a existência pelo homem, para
o homem. O potencial inimaginável do que é inventado e ainda inventável e
concretizável. Antes do advento da modernidade, a cifra das coisas que se podiam
503

nomear como obras humanas dentro do inventário geral do mundo era muito reduzida.
Junto a aquelas já existentes na natureza, as produzidas por outros seres humanos
resultavam pouco significativas. Entre o produzido e o feito por si mesmo, por sua parte,
as obras de arte no sentido estrito reclamavam um espaço pequeno e minguante. Ali
onde o fundamental na vida radica nos poderes naturais e tradicionais, os humanos têm
que ver a si mesmos antes de tudo como receptores de ser e como preservadores de
antiquíssimas ordens sagradas. Os testemunhos mais rotundos do poder criador de obra
de anteriores civilizações, as construções sagradas, eram respostas técnicas para ideias
do sagrado e solene. Com elas começa a elaboração artística do luminoso. Desde que o
sistema moderno de produção autônoma entrou em funcionamento, se, colocou em
movimento a compreensão humana de si mesma. A subjetividade se retira mais e mais a
posição de remitente de ser e do que é. Inaugura para si mesma a posição de criador-
produtor, descobre que a ordem do mundo não é tanto algo que deve conservar e repetir
desde as origens, mas sim, algo superável e a ser produzido mediante projetos
antecipatórios. Agora se pode dizer que o mundo não só foi interpretado de forma
diversa, mas que também deve ser mudado definitivamente. Já não é uma situação fixa,
que se reproduz segundo suas próprias leis, mas uma obra em construção que se
transforma segundo planos humanos. O gênio e o engenheiro se convertem em figuras
condutoras de uma fascinação do ser humano por si mesmo sem precedentes. Assumem
o papel de garantes do poder humano de criar e produzir. Ali onde esse poder chega a
própria consciência, entre em ignição o desejo de superação do ser humano pelo ser
humano. Aqui é, por exemplo, onde a obra de arte moderna possui uma missão
antropológica e ontológica: mediante sua conclusão conjura a capacidade humana de
criar, mediante sua grandeza artística proclama a superação da natureza pela produção.
Este é o sentido duplo da plenitude da arte. É um duplo sentido a plenitude da arte. É por
ela que desde sempre se faz como um motivo principal de novas artes tenha residido em
mostrar a habilidade. Na obra, a virtude humana deve ao virtuosismo, para os seres
humanos é virtuoso o ser capaz de criar. A habilidade que se deixa ver,
consequentemente, não faz surgir a vaidade artística. O que aparece nela é a
subjetividade que se está formando, a que é dado aprender aquilo que pode ser
aprendido até que se atreva a dar o salto ao que não pode aprender. Portanto, surge na
arte o luminoso humanizado: o artista criador põe as coisas na obra que transcendem o
504

aprendido positivamente. Assim o artista participa de um duplo poder criador, de acordo


com a dupla natureza do saber artístico. Como maestro em seu ofício domina o repetível,
mas como gênio erige no âmbito do nunca existido, mas no que pode vir a existir um dia.
A maestria sem gênio é uma grande habilidade, o gênio sem domínio do ofício é
intensidade renovadora. Se ambos coincidem, podem resultar vidas humanas até as que
se oriente a exaltação humanística da espécie. Há qualidades epifânicas inerentes a
habilidade artística em ambos os aspectos – mediante elas as forças essenciais do
humano se revelam ao mesmo humano. A obra de arte que canta o maestro celebra o
poder criador de seu autor, afirma a possibilidade mesma da autoria. A magia dos efeitos
proporciona um conceito do sublime da causa. Ali onde em suas obras surgem junto ao
mundo, seus criadores podem se ter por deuses ao lado de Deus. O caráter epifânico dos
modernos poderes criadores da obra demanda uma relação entre produção e exposição.
Sem que a obra seja desvelada em um espaço de exibição, não pode ter lugar a
autorrevelação do poder criador. O fazer-se visível da capacidade para produzir
pressupõe a produção de visibilidade. A exposição é a instituição moderna para produzir
visibilidade. Funciona como agência central do produtivismo epifânico. Revela o que a
subjetividade artística burguesa tem que revelar: a si mesma em seu poder
materializador para erigir mundos na obra de arte. Isto implica ao tempo o poder de
intervir e reformar o mundo mesmo de acordo a projetos de imagens do mundo. Com a
ajuda da esfera pública e burguesa, essa revelação encontra um lugar para si mesma ao
dar-se a conhecer. O sentido epifânico da revelação do poder de criar obras. Está envolta
discretamente pelo sentido publicitário e mercantil da exposição. Expor converte a
revelação em um formato popular. Os poderes humanos para criar se desvelam a si
mesmos de maneira atenuada ao não permitir reconhecer na visibilidade das imagens
mais que aquilo que ressalta à primeira vista. Isto garante que nada consegue ver mais
que o que pode assumir. Nenhum profano tem que queimar os olhos no Apocalipse das
forças humanas essenciais no Salão. Com a ajuda da esfera pública burguesa, essa
revelação encontra um lugar para si mesma, ao dar-se a conhecer.
Técnica não significa, nas visões de Dessauer, outra coisa senão conclamar à
realidade por meio das invenções das figuras dormentes do dito quarto império. Tudo se
dá como se a técnica se transpusesse e interviesse na esfera que, segundo Kant, nos era
inacessível, na esfera da coisa em si, para, a partir dela e por meio do trabalho, trazer à
505

tona objetos da experiência novos e não presentes anteriormente, ou seja, máquinas. A


máquina, contudo, não é nenhuma coisa em si, nenhuma criatura fora, de cujo poder-ser
nenhum entendimento poderia se aproximar, mas ela existe por meio de nós, existe
parido por nossas mãos e mentes. Ao mesmo tempo, aquilo que nela “funciona”, não é
apenas nosso, há nela um poder que não é meu. Um poder capaz de produzir uma
reviravolta no mundo pode ser intrínseco às invenções. Tomamos como exemplo o
enigma ontológico do raio X que, apesar de se mostrarem como um fenômeno “natural
material”, só pode ser produzido por meio da intervenção humana, agindo para um fazer-
trazer, ele constitui uma nova forma de energia, que não existia anteriormente desse
modo. Uma energia que não se via naturalmente na natureza nem que se esperasse
milhões de anos. Invenções dessa qualidade são enriquecimentos ontológicos da
consistência de ser com o que passa a caber ao homem o papel de um Minotauro em
meio ao ente. Amplia-se por seu intermédio a criação. A natureza oferece apenas a
matéria-prima para a elevação humana do que se acha previamente dado em uma super-
natureza técnica. Tudo aquilo que é inventado e construído pelo homem, contudo, vem
ao encontro dele de fora com uma força natural. É assim que é construído o poder da
técnica. Trata-se de um destino descomunal tomar parte ativamente na criação, de tal
modo que aquilo que é por nós assim criado continua atuando como uma violência de
maneira incalculavelmente autônoma no mundo visível: a maior vivência terrena do
mortal. Uma inversão é necessária. Deveríamos pensar que o homem é quem deve
contornar o contorno, envolver o envolvente, sustentar o que sustenta e apreender o
que apreende. O homem pode voar, mas não, por exemplo, porque nega ou suspende a
gravitação, mas na medida em que a penetra no processo espiritual e, dito de maneira
imagética, chega ao outro lado da coisa. É escravo e senhor. Com isso, supera-se a
gravitação, mas a gravitação não é negada. No momento em que a máquina existe, ela
“entra na existência”, ela possui uma qualidade ôntica específica, ela existe e traz à
existência. Existe porque o espírito humano inventor a construiu como uma nova figura
de uma produção criada. Alguém assim acaba por ver de maneira míope, deixa de ver os
aspectos destrutivos da “invenção”. O sujeito combativo age por meio de heroísmo e aço,
e precisa ser cego para sua própria destrutividade. Quanto mais ele se vê ameaçado de
ser estilhaçado pelos puros sofrimentos junto ao mundo técnico e autoritário, de maneira
506

tanto mais otimista ele sumula a poesia heroica; no coração dessa teoria encontra-se um
sujeito que não consegue mais sofrer, por ter se transformado totalmente numa prótese.
Só no momento em que a peça ameaçar arruinar o palco, é que os atores terão
uma nova percepção para si de si próprios. A astronáutica e a ecologia não passaram a
ser a “autotematização” da humanidade? No futuro, as esperanças como Esperança
terão de se sujeitar a esperanças particulares ao segredo da confissão e ameaçar a
esperança em público sob pena de prisão. Quem nutrir efetivamente esperanças deve
plantá-las dentro de si tão profundamente a ponto de enraizá-la, pois só com e como
forças silenciosas é que elas serão benéficas e crescerão. É só assim que elas não se
inclinarão para as séries causais que levam às catástrofes. É só assim que elas não entram
e nem contribuem para a mobilização de empreendimentos contra a própria convicção.
São assim que elas se passam a ter o caráter de forças vitais que atuam sobre e nas costas
dos indivíduos e que os transportam para cima do fosso do abismo. Devido aos Êxitos
conseguidos pela mobilização histórica, a Natureza e a civilização se fundiram numa
comum improbabilidade. Em tais condições, a percepção da realidade equivale a uma
confissão de solidariedade no improvável. É onde essa percepção se aclara que nasce
naturalmente um ethos de cidadãos da Terra. Em teorias da cultura, se percebe uma
época em que fundamento e construção formam uma unidade para um futuro de uma
comunidade de fragilidades. O drama histórico-universal cada dia passa ou passou para
uma forma retrovertida de perspectivas de história da Terra. A história global deixa de
ser o projeto singular e cosmopolita da autorrealização. Ela agora se transforma em um
problema plural de governo da casa pelos cidadãos da Terra. Uma ética de cooperação
aparece como co-imunização. Já que de fato hoje a Terra pode ser vista como uma “casa
inteira” da vida, estar à beira de uma explosão. Não só o homem é mortal, mas também
a civilização, por conseguinte, a civilização também deve ser entendida agora, como um
empreendimento mortal e falível, mesmo de ter sobrevivido à crise humanística.
Precavidamente, Sloterdijk com sua a metáfora da espuma mostra que não há
propriedade privada total dos meios de isolamento. Ao menos uma parede de separação
é possessão comum com uma célula-mundo adjacente. A parede comum, vista sempre
pelo lado próprio, constitui o minimum inter-autista. A Modernidade com sua tentativa
de executar um projeto infinito sobre uma base finita, pode agora dizer a propósito do
todo na medida em que esta se processa como um êxodo antropogônico, um utópico
507

caminho para casa e como mobilização apocalíptica. A tensão criadora de história, de um


lado o projeto, de outro, o fundamento, entre aquilo que impele e aquilo que existe, não
se sedimenta apenas na desproporção do infinito e do finito, entre tópico e utópico, mas
também tem um efeito bastante potente entre tensão e confusão da lembrança de uma
existência intra-uterina. No caráter espectral do ainda-não, que se aclara a si próprio
antecipadamente, um passado acósmico é projetado sobre um futuro cósmico, o dote
intra-uterino é transfigurado como por uma alucinação para o refratário mundo exterior.
A história não pode ser mais nada além do que um fantasmagórico nascimento de um
corpo da humanidade que foi expulso da terra natal intramaterna para o estrangeiro
extramaterno. Começa aí o empreendimento de fazer com que se consiga transformar o
país estrangeiro em terra natal. Uma luz do ainda, que a vida, inegavelmente dá a si
própria, projeta também para o futuro não dado. O “lugar” utópico só pode ser
“alcançado” por meio de uma “volta” para o que ainda está aberto. Aquele que se deixa
entrar no ainda aberto não corre atrás de algo longínquo, mas se deixa apanhar por algo,
pelo que está inalcançavelmente perto e próximo. É no ainda-ser que o espírito de utopia
ainda sopra e repousa de maneira verdadeira. Hoje a filosofia estaria voltada mais para
uma arte de se encontrar perante problemas supercomplexos, passa a ser uma tarefa
atlética, em certa medida, um espírito dotado de uma capacidade de resistência. As
formas anímicas da cidadania e da pequena burguesia do “mundo desenvolvido” estão
em processos de transformação, reformatação. Todos estão a ser remodelados, já não
mais estamos completamente determinados por um horizonte nacional-humanístico
universal. Os processos hoje são mais o de um horizonte técnico-ecológico global. No
projeto do mundo não pode existir nada parecido com os limites do crescimento. O
problema a que se alude desta forma tem um maior alcance. Do ponto de vista filosófico,
uma disputa entre Heidegger e Hegel, do ponto de vista político, na querela entre os
ecologistas, que são, no limite, políticos da finitude, e os neoliberais e socialistas, que
aparecem como partícipes e cúmplices de uma política da infinitude, com esse contexto,
a socialdemocratização do planeta explica por que a socialdemocracia significaria, o
infinitismo da redistribuição, que obviamente depende do infinitismo da produção
capitalista. Sloterdijk batiza como a primeira atividade comum aos homens não coisas
como a caça, o fogo, sexualidade, agricultura, animais, mas uma criação de um espaço de
ressonância daqueles que vivem em comum. Esse saber como podem se reproduzir
508

enquanto comunidades atmosféricas é a questão de sobrevivência para todas as culturas


atuais. Até mesmo as atmosferas físicas já passaram o estágio em que são apenas objetos
de produção técnica. No futuro teremos uma era do que ele chama da “era climático-
técnica por antonomásia”. É crer que sociedades são artificias ao extremo, em limites que
beiram o radical. O ar que todos nós respiramos, seja individual ou coletivamente, já não
será algo de pressuposto. Deverá ser algo, um objeto de produção técnica, tanto as
atmosferas metafóricas como as físicas. A política será apenas uma seção à parte da
técnica climática.
509

Referências:

1 - SLOTERDIJK, Peter. Esferas III: Espumas (Esferología Plural). Traducción de Isidoro


Reguera. Madrid: Siruela, 2006, p. 529. Sloterdijk menciona que no transcurso do século
XX foi mais difícil de manter como supostos fundamentos fundamentais do
conservadorismo clássico. Seja em seu caráter de constituição como conservadorismo da
miséria, em catolicismo da carência ou negação da riqueza. Na medida em que a
mensagem encoberta e onipresente da facilitação da vida se materializava nos ânimos
das gerações seguintes, uma interpretação de mundo tendo em vista o prejuízo da
carência tomou uma posição pouco plausível.

2 - Thomas Mann em A Montanha Mágica (1924) levou a termo a sua confrontação com
o espírito do tempo weimariano neocínico, não notado por muitos, que acreditavam que
essas conversas nas alturas de Davos não seriam outra coisa que senão sagacidades
derradeiras da burguesia cultural sem qualquer tipo de vínculo social. Thomas Mann
debateu-se na tarefa de apreender o espírito da adaptação, da colaboração e da
afirmação, que caíra nessa década nas águas do cinismo, apresentando o que seria um
“posicionamento positivo”, que não eram baseados em afirmações de uma realidade ou
de dados mortalmente objetivos. Da A Montanha Mágica emerge, talvez pela última vez,
imagens de uma humanidade que permanece na engenhosa sem se tornar cínica. Uma
humanidade que não pode mais existir na planície. As alturas de Davos correspondem à
uma zona psíquica onde todo o drama de seu livro acontece. Nele, um humorista tenta
novamente subir a um ponto mais elevado do que as altas elevações do cinismo. Aqui há
uma tradição mais antiga de ironia-humorística que luta com a ironia moderna de “opa,
estamos vivos”. O caráter moderno de “lançado” e com o deixar-se impelir cínico, o herói
da história se entrega à sua aventura na montanha e se deixa arrastar pela corrente do
tempo nas altas altitudes. Porém, o que temos aqui não é uma engrenagem
completamente solta, mas um pressentimento de uma formação superior, uma esfera
luminosa de um si-mesmo mais elevado, de uma humanidade e de uma afirmação da
vida diante do realismo e da regressão e da morte. A risada se autonomiza e não pertence
mais àquele que ri. Uma risada que não temos mais responsabilidade e compromisso.
Algo ri em nós, quando tomados uma consciência, que alcança um caráter mais profundo
em nós do que pode perceber o nosso eu civilizado. É assim que nosso herói Hans Castorp
ri, um riso intenso, incontrolável, uma careta levemente dolorosa por causa do vento frio.
Um riso que vem quando seu primo conta como os cadáveres no inverno são
transportados para a planície. Ele diz: “em um tobogã”. Continua ele dizendo: “E tu me
contas isto com toda a tranquilidade de espírito?” Então, vem a resposta: “Tu te tornaste
completamente cínico nestes cinco meses!”. Creio que um cidadão chamado Caio
Copolla também poderia ser inserido aqui. Um sorrisinho dente de cavalo e o bloquinho
de anotações. Um sorriso que virou uma careta. Ri a todo momento sem motivo algum.
Ele não ri mais, porque o sorriso virou rosto. Thomas Macho fala do Homem que ri de
Vitor Hugo, contando as diversas histórias produzidas pela literatura e pelo cinema a
partir desse clássico. No campo popular, lembra o filme Batman, o Cavaleiro das Trevas,
em que Heath Ledger interpreta o Coringa. Ora, o que é esse vilão senão aquele que foi
posto por sorrir na base da faca? Sempre estará sorrindo! Nas situações mais dramáticas,
perigosas e difíceis ele terá de sorrir, querendo ou não. Mesmo diante da morte ele sorri.
510

Não há como evitar o que diz um rosto feito à mão – a mão de máquina! Então, o melhor
que se há de fazer é jogar, é participar do mundo achando graça no que não tem graça
exatamente porque o rosto estará afirmando isso. Seria tolo tentar contrariar o rosto.
Seria uma tarefa árdua e fadada ao insucesso. Não podemos ser menos ou mais do que
é nosso rosto, a máscara que é o rosto, a “organização forte”. Não é isso que os
personagens de Nicolas Cage e John Travolta descobrem, quando seus rostos são
trocados, no célebre filme de John Woo? Eles logo percebem que podem agir muito bem
tendo um rosto que parecia não ser senão o seu simétrico e odiado outro.

______ . Crítica da Razão Cínica. 2ª Edição. Tradução: Marco Casanova. São Paulo: Estação
Liberdade, 2012, pp. 633-634.

______ . Esferas III (Esferología Plural). Traducción de Isidoro Reguera. Madrid: Siruela,
2006, pp. 452-453.

APULEIO. The God of Socrates: The Work of Apuleius. London: George Bel and Sons, s/d,
re-impressão 2011, p. 363.

SLOTERDIJK, Peter. Esferas III (Esferología Plural). Traducción de Isidoro Reguera.


Madrid: Siruela, 2006, pp. 455-456.

3 - ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 12ª Edição. Tradução: Roberto Raposo. Edição.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015, pp. 9-26.

SLOTERDIJK, Peter. Esferas II: Globos (Macroesferología). Traduccíon de Isidoro Reguera.


Madrid: Siruela, 2004, pp. 292-293.

4 - Assistir ao vídeo: <https://www.youtube.com/watch?v=Iov_mVIO7jI>, <


https://www.youtube.com/watch?v=FERKOpCQxFo> ou <
https://www.youtube.com/watch?v=IOL9zZIa72Y>. Acesso: 23 Fev. 2019.

SLOTERDIJK, Peter. O Estranhamento do Mundo. Tradução: Ana Nolasco. Relógio D’Água


Editores, 2008, pp. 68-69. A linguagem universal da mundaneidade é um materialismo
mediático, incluindo a imaterialização; faz, graças ao dinheiro deiforme e supercondutor,
a conexão de tudo o que está elaborado em forma de informação e de mercadoria com
tudo o resto. Se a mundaneidade do mundo mediático tem algum ponto fraco, este
encontra-se aí onde a velocidade dos processos de comunicação produz indesejados
efeitos secundários; justamente os comunicadores mais potentes são expostos aos
sentimentos de irrealização mais veementes; mas, por outro lado, fica mal a um mundo
que deve ser tudo o que se pode dar ao caso, aparecer como um espectro mediático ou
um artefato no ciberespaço; contra esta náusea da aceleração voltam-se, desde há uma
década, novas terapias retardadoras e “pós-modernas”, na sua maioria convictos devotos
ao mundo, que pretende introduzir velocidades à escala humana nas operações
monetárias e mediáticas de velocidade inumana. Por toda a parte, a lentidão faz carreira
como um equivalente funcional da transcendência; tem o mérito de evitar o embaraço
de ter de ir direto a um público smart a lançar massivos sermões sobre Deus e a alma. Ao
mesmo tempo, o novo Go Slow implica um sucedâneo para a ascese perdida – este
511

sublinha o exercício da ausência de mundo dos esgotados de cansaço. A lentidão,


enquanto remake de Deus e da alma à escala do mundo, é quase tão boa como o original
– e quem sabe se mesmo este Deus e esta alma não seriam já uma falsificação? Isto torna-
se claro, por exemplo, no filme Jésus de Montréal, de Denys Arcand, no qual o ator do
Deus feito homem tem de se oferecer post mortem como doador de órgãos. “Deus” já
não opera aqui como logos, mas como bioprótese, isto é, como fornecedor de peças de
substituição para os corpos defeituosos dos “próximos”. Devemos nos submeter ao
Vaticano, que apresentou, na sua encíclica Aetatis novae “Com o início de uma nova era”
(março, de 1992), a sua concepção de evangelização adaptado aos novos media. Na
medida em que ser homem na modernidade significa, primeiramente, automediação e
autoconexão à rede, os bons e velhos conceitos metafísicos Deus e Alma apenas podem
ser pensados no modo de teorias: como desconexão à rede, interrupção da mediação,
choque, pausa. Tillich, o telógo fronteiriço, expôs isto inequivocamente através de suas
metáforas divinas e expressionistas; segundo ele, Deus já só é possível no cosmos
autocentrado como um invasor furtivo; apenas como infrator e perturbador é que ele
pode manifestar como a diferença a respeito de tudo o que se comunica e conecta com
a rede. Neste ponto, Tillich está em linha com o seu rival Heidegger que ocultava o seu
catolicismo último numa teologia de vibração. Como se pode ver na obra “Contribuições
à Filosofia”, expressões como: “O Ser é o estremecimento do divino...”.

5 - ______ . The Art of Philosophy. New York: Columbia University Press, 2012a, pp. 23-
24.

6 - SLOTERDIJK, Peter. Esferas III: Espumas (Esferología Plural). Traducción de Isidoro


Reguera. Madrid: Siruela, 2006, p. 245.

7 - SLOTERDIJK, Peter. Ira e Tempo: Ensaio Político-Psicológico. São Paulo: Estação


Liberdade, 2012b, pp. 95-144.

8 - Aqui ficaria melhor perceber o thymos como uma espécie de força para mover-se.
Algo extra indivíduo. Ele diz respeito à autoestima e ao orgulho, mas isso por conta da
harmonia que é cosmos (contrário do caos), e que põe para cada um o destino. Um
“fenômeno” de energia de enchimento (ou coleta) para liberação ou descarga. Seria
possível imaginar um “banco de depósito” ou um “caminhão de lixo” (como local) de
coleta.

9 - A vida aí, nesse caso, é algo sem travas, como de fato fez o cínico Diógenes, cuja
melhor fala foi aquela de pedir para Alexandre sair da frente do sol, para que ele pudesse
continuar seu banho de luz. Nenhum mesquinho, resguardado, com segundas intenções,
falaria o que Diógenes falou. Ele extrapolou, esbanjou-se, patrocinou e doou à exaustão.
Enquanto Diógenes manifesta o “desejo”: “retira-te da frente do meu sol!”, os adeptos
do cinismo moderno aspiram “um lugar ao sol”: nada mais têm em mente além do
projeto de disputar cinicamente, no sentido de o fazer explicitamente e sem
constrangimentos, os bens deste mundo, dos quais Diógenes justamente caçoa.

SLOTERDIJK, Peter. O Quinto “Evangelho” de Nietzsche: É Possível Melhorar uma Boa-


Nova? Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004, pp. 71-72.
512

FUKUYAMA, Francis. O Fim da História e o Último Homem. Tradução: Aulyde Soares


Rodrigues. Rio de Janeiro: Rocco, 1992, p. 215.

10 - ROCCA, Adolfo Vasquez. Sloterdijk: Posdemocracia Impositiva y Genealogía Del


Orgullo (Thymos) – Polémica en Torno a la Fundamentación Democrática de los Impuestos
Capitalismo y Cleptocracia – El Timótico Impulso a Dar. Conferência Inaugural do
Seminário: “Peter Sloterdijk: Do Mundo Interior da Capital até ao Útero Social”. Trama
Interdisciplinar. São Paulo, Vol. 7, Nº. 3, 2016, pp. 201-206. Disponível em:
<https://www.academia.edu/32010328/SLOTERDIJK_POSDEMOCRACIA_IMPOSITIVA_Y
_GENEALOG%C3%8DA_DEL_ORGULLO_THYMOS_POL%C3%89MICA_EN_TORNO_A_LA
_FUNDAMENTACI%C3%93N_DEMOCR%C3%81TICA_DE_LOS_IMPUESTOS_CAPITALISM
O_Y_CLEPTOCRACIA_EL_TIM%C3%93TICO_IMPULSO_A_DAR>. Acesso: 11. Mai. 2019.

11 - SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Bolhas (Microesferologia). Tradução: José Oscar de


Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2016, p. 61.

______ . Esferas I: Bolhas (Microesferologia). Tradução: José Oscar de Almeida Marques.


São Paulo: Estação Liberdade, 2016, p. 61.

______ . A Mobilização Infinita. Para Uma Crítica da Cinética Política. Tradução: Paulo
Osório de Castro. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2002, p. 50. A desrealização é o
resultado psicossocial da “autorrealização” sistemática, na qual o conceito antiquado de
“realidade” se contrai logicamente até a função residual do ainda-não-mobilizado.

______ . O Sol e a Morte – Investigações Dialógicas. Tradução: Carlos Correia Monteiro de


Oliveira. Relógio D’Água Editores, 2007, p. 161. A globalização atual é consequência do
movimento do capital especulativo que, sob a forma de notícias, gira à volta da Terra à
velocidade da luz. Por isso, uma globalização deste tipo equivale a uma espécie de
destruição do espaço. O conceito atual de globalização tem, portanto, conotações
ameaçadoras, por muito que os pregadores do neoliberalismo a apresentam como uma
grande oportunidade para a humanidade. No fundo, ignoram os componentes mais
precários e enaltecem apenas as tendências que apontam para a condensação do mundo
e para as expectativas de lucro. Porém, não há dúvida que na sua acepção atual o
conceito mostra que estamos implicados num processo de destruição de distâncias. Tudo
isso leva-nos a ser arrastados por situações que se desenrolam muito longe de nós, mas
que nos afetam como se estivessem muito próximas de nós, de tal modo que o espaço
realmente discreto, emancipador, separador, o espaço que se expande verdadeiramente,
vai sendo progressivamente destruído. No âmbito do nosso espaço cultural, a maioria
das pessoas sente muito distintamente a má notícia do acaso do tempo, consequência
da velocidade e da imposição absoluta do tempo.

12 - _____ . Esferas II: Globos (Macroesferología). Traducción de Isidoro Reguera. Editorial


Siruela, 2004a, p. 509.

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 12ª Edição. Tradução: Roberto Raposo. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2015, p. 310.
513

SLOTERDIJK, Peter. Crítica da Razão Cínica. 2ª Edição. Tradução: Marco Casanova. São
Paulo: Estação Liberdade, 2012, p. 443.

13 - Sloterdijk altera nesta passagem a sentença latina verum et factum convertuntur (a


verdade e o fato são convertíveis) em verum et fictum convertuntur (a verdade e a ilusão
são convertíveis).

14 - SLOTERDIJK, Peter. Actio in Distans: Sobre los Modos de Formación Teleracional del
Mundo. Instituto de Sociales Contemporáneos, Universidad Central (IESCO), Bogota:
Colombia, Nº 28, 2008a. Disponível em:
<http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/colombia/iesco/nomadas/28/02-
actio.pdf>. Acesso: 09 Abr. 2018.

______ . No Mesmo Barco: Ensaio Sobre a Hiperpolítica. 2ª Edição. Tradução: Claudia


Cavalcanti. São Paulo: Estação Liberdade, 1999, pp. 25-26.

15 - Sloterdijk utiliza um jogo de palavras bem complicado: zusammengehören seria


“pertencer-se” e zusammen hören está mais para “ouvir juntos”.

16 - ______ . Esferas II: Globos (Macroesferología). Traducción de Isidoro Reguera.


Madrid: Siruela, 2004a, p. 863. Capítulo 27: La Gran Transformación Inmunológica - En
Camino a las Sociedades de Paredes Finas.

17 - Matéria: City Journal. The Grasping Hand: The Modern Democratic State Pillages its
Productive Citizens, 2010. Disponível em: <https://www.city-journal.org/html/grasping-
hand-13264.html>. Acesso: 11 Jan. 2019.

18 - SLOTERDIJK, Peter. Fiscalidad Voluntaria y Responsabilidade: Ciudadana Aportaciones


a un Debate Filosófico Sobre Una Nueva Fundamentación Democrática de Los Impuestos.
Traduccíon de Isidoro Reguera. Madrid: Siruela, 2014, pp. 9-26.

19 - NIETZSCHE. Friedrich Wilhelm. La Voluntad de Poder. Madrid: Editorial EDAF S.A.,


1981, p. 73.

20 - SLOTERDIJK, Peter. Fiscalidad Voluntaria y Responsabilidad Ciudadana: Aportaciones


a un Debate Filosófico Sobre Una Nueva Fundamentación Democrática de Los Impuestos.
Traducción. Isidoro Reguera, Madrid: Siruela, 2014, p. 34.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da Moral: Uma Polêmica. São Paulo: Editora
Companhia das Letras, 2008, p. 47.

______ . Genealogia da Moral: Uma Polêmica. São Paulo: Editora Companhia das Letras,
2008, pp. 49-50.

______ . Genealogia da Moral: Uma Polêmica. São Paulo: Editora Companhia das Letras,
2008, p. 54.
514

21 - Matéria: Disponível em: <https://whiplash.net/materias/news_759/296355-


davidgilmour.html>. Acesso: 31 Jan. 2019.

Nietzsche, Friedrich Wilhelm. Genealogia da Moral: Uma Polêmica. São Paulo: Editora
Companhia das Letras, 2008, pp. 110-111. É certo que ele também inovou, ousou,
resistiu, desafiou o destino mais que todos os outros animais reunidos: ele, o grande
experimentador de si mesmo, o insatisfeito, insaciado, que luta pelo domínio último com
os animais, a natureza e os deuses. Ele, o ainda não domado, o eternamente futuro, que
não encontra sossego de uma força própria que o impele, de modo que seu futuro, uma
espora, mergulha implacável na carne de todo presente – como não seria um tão rico e
corajoso animal também o mais exposto ao perigo, o mais longa e profundamente
enfermo entre todos os animais enfermos?... O homem frequentemente está farto, há
verdadeiras epidemias desse estar-farto (– como por volta de 1348, no tempo da dança
da morte): mas mesmo esse nojo, essa fadiga, esse fastio de si mesmo – tudo isso irrompe
tão poderosamente nele, que se torna imediatamente um novo grilhão. O Não que ele
diz à vida traz à luz, como por mágica, uma profusão de Sins mais delicados; sim, quando
ele se fere, esse mestre da destruição, da autodestruição – é a própria ferida que em
seguida o faz viver.

22 - Ver sobre isso, a nota de Rubens Rodrigues Torres Filho, no volume dedicado a
Nietzsche na colação “Os Pensadores (Abril Cultura), por ele traduzido. A nota encontra-
se na página 159, também pode ser lido no § 9º de Aurora como “Conceito da eticidade
do costume”.

23 - SLOTERDIJK, Peter. O Sol e a Morte: Investigações Dialógicas – Diálogos com Hans-


Jürgen Heinrichs. Tradução: Carlos Correia Monteiro de Oliveira. Relógio D’água Editores,
2007, p. 270. Aqui seria interessante retornar para a antropologia anfíbia da qual
Sloterdijk fala que homens não são seres monoelementais. A saída de animais aquáticos
para a terra, os proto-símios podem ter relação direta com a formação da má consciência.
Não podendo mais saciar as antigas demandas que eram satisfeitas no ambiente
aquático, esses instintos contidos viraram um vórtice que se descarrega para dentro,
causando dor em cada um desses novos terrestres (tudo no terrestre passa a ser trabalho
e esforço). Dor interna como a dor da culpa, como o elemento central da má-consciência
do homem ou de algum ancestral seu antigo. Mas também, talvez daí tenha surgido de
como o homem pode pensar metafisicamente por formas, linhas e pontos. Disso
passando para o campo moral do homem, aquele que mede, e se mede, lança, avalia,
marca distâncias, se vê superior, até a ideia de culpa. A ideia do homem como mais
próximo dos anfíbios talvez seja mesmo uma boa sugestão e Sloterdijk não a deixa passar.
Sloterdijk caminha por terrenos com experimentos do pensamento e descrevendo como
que noções sofisticadas do pensamento racional podem estar inseridas em atos
inicialmente primitivos, algo como proto-simióticos. Daí vem o elemento terra e uma
chamada antropotécnica: desconexão. O homem começa pela pedra, e ao lançá-la, lança
a si próprio. Essa pedra atinge um ponto qualquer no espaço o faz lançar de novo e de
novo, surge então a noção de causalidade ligada coma noção de previsibilidade. Assim,
como a ida para o terrestre, o fez pensar de maneira metafísica, por linhas, formas, retas,
uma geometria psicológica. O que nunca aconteceria no âmbito antigo aquático.
515

Sloterdijk afirma que o homem não descende do macaco, mas da pedra. É a pedra o
verdadeiro início do processo de humanização e hominização, na medida em que seu uso
inaugurou a prototécnica humana através da produção de sentido ontológico com efeitos
no espaço aberto. É justamente o primeiro gesto do lançar da pedra que abre a clareira
do ser antes de qualquer linguagem, de qualquer palavra articulada. Haeckel havia
dedicado, em 1874, a sua Anthropogenie, na qual reconstruíra a história do homem desde
os peixes do Siluriano até os macacos-homens ou Antropomorfos do Mioceno.

24 - DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia. 1ª


Edição. Tradução: Joana Moraes Varela e Manuel Maria Carrilho, Lisboa: Assírio & Alvim,
2004, p. 146. Aqui os franceses caminhariam sem sentido parecido com Nietzsche, com
efeito o social não se baseia no postulado que tem subjacente a troca “onde o essencial
seria circular e fazer circular”, mas é o lugar de “inscrição onde o essencial é marcar e ser
marcado”. Nietzsche diria que o social é o terreno da mensuração (medir e medir-se
entre si), mas para os franceses: a essência do socius, consiste em mapear e dispor os
corpos (tatuar, excisar, incisar, cortar, escarificar, mutilar, cercar, iniciar).

HAN, Byung-Chul. O Aroma do Tempo: Um Ensaio Filosófico Sobre a Arte da Demora.


Tradução: Miguel Serras Pereira. Relógio D’ Água Editores, 2016, p. 110. O termo
“indústria” provém originalmente da expressão latina industria, que significa
“laboriosidade”. O termo inglês industry continua a manter hoje em dia o sentido de
“laboriosidade” e de “atividade”. Industrial School significa, mais ou menos, “casa de
correção”. A industrialização não só supõe a mecanização do mundo, mas também a
disciplinação do homem. Não se limita a instalar máquinas, mas também dispositivos que
tentam otimizar os comportamentos humanos – até mesmo os comportamentos
corporais – a nível temporal e econômico-temporal. Torna-se significativo que um
tratado de Philipp Peter Guden, do ano 1768, exibia o título de Polizey der Industrie, oder
Abhandlung von den Mitteln, den Fleiss der Einwohmer zu ermuntern (“Política da
Indústria, ou Tratado para Promover os Meios e a Laboriosidade dos Cidadãos”). A
industrialização como mecanização aproxima o tempo humano do tempo das máquinas.
O dispositivo industrial é um imperativo econômico-temporal que conforma o homem
segundo o ritmo das máquinas. Faz corresponder a vida humana ao processo de trabalho
e ao funcionamento das máquinas. A vida conduzida pelo trabalho é uma vita activa,
absolutamente separada da vita contemplativa.

AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007, pp. 70-71.

SLOTERDIJK. Peter. Fiscalidad Voluntaria y Responsabilidad Ciudadana: Aportaciones a un


Debate Filosófico Sobre Una Nueva Fundamentación Democrática de Los Impuestos.
Traducción. Isidoro Reguera, Madrid: Siruela, 2014, p. 42.

25 - ERASMO – MORE. Elogio da Loucura. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1988,
pp. 8-9.

SLOTERDIJK, Peter. Palácio de Cristal: Para Uma Teoria Filosófica da Globalização. Lisboa:
Relógio D’Água Editores, 2008b, p. 74. O único slogan forte de desinibição que, após o
empalidecer das ideologias, abre em todo o mundo a passagem para a prática, leva, em
516

resumo, o nome de inovação. Raros são os que têm consciência do fato de que aquilo
que assim se apresenta é um vestígio das antigas “leis da história”. Desde que o Homem
Novo foi retirado do mercado numa operação de recolha de produtos defeituosos, as
novidades técnicas, as novidades de procedimento e as novidades de design constituem
as mais poderosas atrações para todos os que estão condenados a perguntar: que fazer
para chegar ao cume? Aquele que inova pode estar certo: a qualquer momento, o lema
da sua ação poderá tornar-se o princípio de uma legislação universal. Desde que o
divertimento, como agente de desinibição, começou a ganhar terreno, a partir dos anos
80 do século passado, podemos até renunciar ao pretexto da inovação. Os atores da
cultura do divertimento, que se tornaram soberanistas do vulgar, esponjam-se nas
superfícies do seu bem-estar e consideram que o deixar-se ir de livre vontade constitui
motivação suficiente. Poderiam renunciar aos consultores porque se dirigem
diretamente aos seres sedutores; quando muito, confiam no seu entertainer, no seu
treinador, no que lhes escreve os ditos de espírito. É soberano aquele que decide em que
armadilha cair.

26 - ______ . KURZ, Robert. A Ascensão Do Dinheiro Aos Céus: Os Limites Estruturais da


Valorização do Capital, o Capitalismo de Casino e a Crise Financeira Global, 1995.
Disponível em: <http://www.obeco-online.org/rkurz101.htm>. Acesso: 05 Jun. 2019.

27 - SLOTERDIJK, Peter. Fiscalidad Voluntaria y Responsabilidad Ciudadana: Aportaciones


a un Debate Filosófico Sobre Una Nueva Fundamentación Democrática de Los Impuestos.
Traducción. Isidoro Reguera, Madrid: Siruela, 2014, p. 41.

28 - ______ . Fiscalidad Voluntaria y Responsabilidad Ciudadana: Aportaciones a un Debate


Filosófico Sobre Una Nueva Fundamentación Democrática de Los Impuestos. Traducción.
Isidoro Reguera, Madrid: Siruela, 2014, p. 44.

29 - ______ . Fiscalidad Voluntaria y Responsabilidad Ciudadana: Aportaciones a un Debate


Filosófico Sobre Una Nueva Fundamentación Democrática de Los Impuestos. Traducción.
Isidoro Reguera, Madrid: Siruela, 2014, p. 75.

30 - SLOTERDIJK, Peter. Has de Cambiar tu Vida: Sobre Antropotécnica. Tradução: Pedro


Madrigal, Valencia: PreTextos, 2012c, p. 469.

VALE, Hugo de Mello Velho do. Para Uma Antropologia Política da Dádiva: Entre a
Biopolítica e a Sociedade de Controlo, 2016, p. 92. Universidade de Lisboa. Faculdade de
Letras. Disponível em:
<http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/28727/1/ulfl234011_tm.pdf>

SLOTERDIJK, Peter. Fiscalidad Voluntaria y Responsabilidad Ciudadana: Aportaciones a un


Debate Filosófico Sobre Una Nueva Fundamentación Democrática de Los Impuestos.
Traducción. Isidoro Reguera, Madrid: Siruela, 2014, p. 148.

______ . You Must Change Your Life. Malden: Polity Press, 2013, p. 335. O treinamento é
metodismo sem conteúdo religioso. Portanto, a predominância do Ocidente na evolução
da sociedade mundial nos séculos XIX, XX e XXI veio não apenas do "imperialismo"
517

amplamente e corretamente criticado; a razão mais profunda era que eram as pessoas
nessa parte do mundo que, por causa de sua iniciativa na prática, forçavam todas as
outras civilizações do planeta a se unirem aos sistemas de treinamento que haviam
introduzido. A prova: entre os países ultrapassados, apenas aqueles que souberam
implantar um grau suficiente de estresse didático por meio de um sistema escolar
moderno conseguiram avançar. Isso foi mais bem-sucedido onde, como no Japão e na
China, um sistema elaborado de condicionamentos feudais facilitou a transição para as
disciplinas modernas. Enquanto isso, os Tigres Asiáticos recuperaram seu terreno,
enquanto o modernismo do Ocidente ergue o nariz em imitação e mimese, novos
competidores em todo o mundo construíram seu sucesso com base no mais antigo
princípio de aprendizado. Os ocidentais provavelmente só compreenderão o quanto um
antigo grande poder de prática como a China deve a esse princípio, quando os institutos
confucionistas do novo poder global penetraram nos confins da terra.

______ . Morte Aparente do Pensamento: Da Filosofia Como Ciência e Como Prática.


Tradução: Carlos Leite. Relógio D’Água Editores, 2014a, pp. 16-17. A prática, ou exercício,
é a forma mais antiga e mais rica de consequências de uma práxis autorreferente: os seus
resultados não confluem em circunstância externas ou objetos, como quando
trabalhamos e produzimos, desenvolvem a própria pessoa que pratica e põem-na ‘em
forma’ como sujeito-que-pode. O resultado da praticar mostra-se na “condição” atual,
ou seja, no estado de capacitação do praticante. Conforme o contexto, descreve-se como
constituição, virtude, virtuosismo, competência, excelência ou fitness. O sujeito, visto
como protagonista da sua sequência de treino. O resultado de praticar mostra-se na
“condição” atual, ou seja, no estado de capacitação do praticante. Conforme o contexto,
descreve-se como constituição, virtude, virtuosismo, competência, excelência ou fitness.
O sujeito, visto como protagonista da sua sequência de treino, afirma e potencia o seu
poder-fazer ao submeter-se aos seus exercícios típicos, em que os que têm o mesmo
nível de dificuldade devem ser avaliados como exercícios de manutenção, enquanto os
de grau crescente de dificuldade serão considerados exercícios de desenvolvimento. A
askesis clássica, como os atletas gregos chamavam ao seu treino (proporcionando assim
aos primeiros monges cristãos, que se autodesignavam atletas de Cristo, um modelo
cujos efeitos perduraram ao longo das épocas), foi sempre, desde o início, uma atividade
híbrida. A partir do momento em que forçamos o ato de praticar até aparecer uma
distinção entre teoria e práxis ou entre vida ativa e vida contemplativa, perdemos de vista
o seu valor intrínseco.

ESPOSITO, Roberto. Pensamento Vivo: Origem e Atualidade da Filosofia Italiana. 1ª Edição.


Tradução: Henrique Burigo, Editora UFMG, 2013, p. 55. Peter Sloterdijk afirmou
recentemente que, para compreender esse aspecto [a capacidade de automodelagem
do sujeito] - situado na estreita margem ao longo da qual o humanismo vai além de si
mesmo -, é preciso abandonar o lugar extático ao qual nos conduziu Heidegger. Ou, ao
menos, atravessá-lo em uma direção diversa daquela, hiper-humanística, no fim das
contas, que ele tomou para defender a absolutez ontológica do Dasein. Para fazer isso, é
preciso violar um duplo interdito, imposto pelo próprio Heidegger, relativo à antropologia
e à técnica, em favor do absoluto primado da linguagem. Uma vez que é justamente a
antropotécnica - e não a faculdade linguística - o vetor de sentido mais extremo que, em
uma vertiginosa transposição semântica, liga o vocabulário ainda não moderno da Oratio
518

ao nosso destino de animais pós-modernos. E isso não porque a linguagem não faça parte
dos instrumentos que o homem deu a si mesmo a fim de alcançar a própria condição
essencial, mas porque ela não foi o primeiro nem o principal entre eles. Antes que pela
linguagem, embora não independentemente dela, o homo humanus, ou sapiens, como
se queira, forjou-se, de fato, por meio da técnica. Primeiramente, a técnica pesada do
golpear e do lançar, da pedra e do fogo; em seguida, aquela leve, dos gestos e dos
símbolos - assim como, antes da linguagem, teve de habitar outra casa, outro invólucro
antrópico, capaz de abrigá-lo das potências predominantes.

32 - ______ . Has de Cambiar tu Vida: Sobre Antropotécnica. Tradução: Pedro Madrigal,


Valencia: PreTextos, 2012c, p. 477.

SLOTERDIJK, Peter. Crítica da Razão Cínica. 2ª Edição. Tradução: Marco Casanova. São
Paulo: Estação Liberdade, 2012, p. 436.

______. O Estranhamento do Mundo. Tradução: Ana Nolasco. Relógio D’Água Editores,


2008, p. 48. Dessas reflexões se podem tornar compreensíveis, em certa medida, as
oscilações do pensamento de Heidegger entre heroísmo e a mística. Só em um Heidegger
mais maduro é que Heidegger se tornou um mestre do mergulho cujas instruções são,
em parte, fiáveis. No início e a meio da sua era, cometeu inadvertidamente erros que são
típicos do comportamento em absorção. Ele interpretou erroneamente o ato de
mergulho como resolução em aceitar o destino do Ser, sem perceber que esta
desembocava na ontologização do masoquismo. O que fez passar por liberdade de se
tornar necessário, através de um mandato do ser de tonalidade política, era, na realidade,
uma candidatura forçada de si mesmo ao usufruto de grandeza através da fusão na
violência histórica. O primeiro Heidegger foi um Empédocles político que se precipitou
na cratera do fascismo para se demonstrar como um pensador elementar. O seu
mutismo, depois de 1945, apenas se pode compreender, em última instância, como um
gesto de pudor empedocliano. Quando a cratera não engole o sábio, mas o cospe para
fora e o condena à vergonha de sobreviver, o sujeito tira daí, é certo, uma lição decisiva,
mas a humilhação é demasiado profunda para que se possa falar em público sobre ela.
Apenas à beira da cratera se ilumina o sentido da frase: pensar em grandeza significa
enganar-se em grande.

33 - Se como muitos criticam Heidegger pela sua transição aproximativa da revolução


nacional-socialista de 1933, tais acusações só fazem sentido se as encaixarmos no
contexto da renúncia da filosofia moderna à tradição da racionalidade, contemplativa, à
qual, arrependido, quis regressar depois da queda. O seu caso é instrutivo sobre os
perigos da militância, o que levou muitos filósofos da modernidade a serem “órgãos da
revolução”, “órgãos da história” ou “órgãos do acontecimento”. Georg Lukács, ocupou
uma posição importante no século XX, que após a sua conversão ao marxismo, tentou
abocanhar o “princípio da consciência de classe” a priori de todas as atividades
intelectuais. Considerou a academia europeia uma “ciência burguesa”, onde qualquer
ciência ou recurso não marxista seria cúmplice da “ordem reinante”. Luckács colaborou
com a glorificação da violência revolucionária, assim como desacreditou do pacifismo
lógico, com o qual como vimos banhava a heterotopia paleoeuropeia da esfera
acadêmica com o inicial pacifismo civil da república dos sábios. Um texto que nos parece
519

interessante é o que segue. RORTY, Richard. O Fedor de Heidegger. Tradução: Samuel


Titan Júnior, 1997. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/4/20/mais!/15.html>. Acesso: 24 Abr. 2019 e
AGAMBEN, Giorgio. A Potência do Pensamento: Ensaios e Conferências. Tradução:
António Guerreiro. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015, pp. 281-290.

GROSZ, Georg. Ein Kleines Ja und ein grosses Nein (Um Pequeno Sim e um Grande Não).
Hamburgo, 1974, p. 143.

34 - DESIDÉRIO, Erasmo. Elogio da Loucura. Tradução: Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM,
2003, pp. 111-112.
35 - HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 15ª Edição. Parte I. Tradução: Márcia Sá Cavalcanti
Schuback. Editora Vozes: Rio de Janeiro, 2005, pp. 165-178. Ver também §§ 55-69.

JASPERS, Karl. A Situação Espiritual do Tempo. Berlim/Nova York, 1979, p. 163.

LORRIS, Guillaume e MEUNG, Jean. El Libro de la Rosa. Tradução: de Carlos Alvar y Julián
Muela. Barcelona: Ediciones Siruela, 2003, p. 31. O mesmo ocorre com a Fortuna, pois
ela enche o coração das gentes de amargura e logo depois os acaricia e afaga;
rapidamente muda seu aspecto: ora ri, ora está triste. Ela tem uma roda que gira e,
quando assim o deseja, coloca acima, na parte mais alta, aquele que estava embaixo e,
com uma volta, faz com que caia no barro aquele que estava acima na roda. E eu fui
derrubado! Em má hora vi os muros e as fossas que não me atrevia passar – e nem
poderia fazê-lo. Não tive nenhuma alegria desde que Doce Abrigo foi encarcerado, pois
todo o meu gozo e toda a minha cura descansavam nele e na rosa que se encontrava
presa entre os muros; seria necessário que ela saísse da torre se o Amor quisesse que eu
fosse curado, pois de nenhum outro desejo receberia honra, bem, saúde e alegria. O
texto foi traduzido e pode ser visto no link que segue. Disponível em: <
https://www.academia.edu/2997637/O_Romance_da_Rosa>. Acesso: 12 Jun. 2019.

SLOTERDIJK, Peter. Esferas II: Globos (Macroesferología). Traducción de Isidoro Reguera.


Madrid: Siruela, 2004a, p. 766.

36 - SLOTERDIJK, Peter. Das Reich der Fortuna. In: El Reino de la Fortuna – Extremadura,
Renacimiento, Fortuna. Extremadura: Fundación Ortega Muñoz, 2013, p. 23. Desde 1348,
os europeus sabem que grandes cidades comerciais são espaços de infecção. Eles
constituem zonas de risco em que eles misturam contato desordenado e buscam por nós.
Seus habitantes agora devem entender, em um processo de aprendizado temeroso, que
as riquezas e as infecções viajam juntas.

37 - ______ . A Mobilização Infinita: Para Uma Crítica da Cinética Política. Tradução: Paulo
Osório de Castro. Lisboa: Relógio D’água editores, 2002, pp. 194-195. Sloterdijk considera
que a revelação descobridora, através da qual tudo quanto seja racional e relativo é
patenteado, não é ela própria racional nem relativa. O “espaço” do verdadeiro, enquanto
não oculto, surge singularmente como uma ilha cheia de proporções comensuráveis, do
oceano do incomensurável, do desproporcionado. O descoberto concebível encontra-se
no terreiro da lethe, do desmedido, do inconcebível. Onde os homens permaneçam é
520

sempre o terreno avançado do monstruoso que está encoberto. As suas civilizações


povoam uma zona que é, simultaneamente, jardim e vulcão – um efeito ontológico do
tipo Hawaii e Lanzarote (poderia surgir em nossa mente a imagem de um iceberg). Como
herdeiro hesitante ad metafísica europeia da luz, Heidegger recordou, com o seu
conceito e clareira, o singular abrir-se de um espaço inteligível para as
proporcionalidades. Posto que, na clareira, ele não vê o visível, mas também a
visibilidade. Enquanto o iluminista exerce uma prática fosfórica, portadora de luz, e
emprega a luz como instrumento para examinar a fundo a matéria, o vidente permanece
junto aos “feitos e padecimentos da luz”. Imagina não é ver. Para aquele que vê
realmente, o olho é um ouvido da luz.

38 - MERTON, Robert King. Ensaios de Sociologia da Ciência. Sylvia Gemignami Garcia e


Pablo Rubén Mariconda. São Paulo: Associação Filosófica Scientiae Studia. Editora 34,
2013, pp. 199-231.

39 - Para uma semântica mais fidedigna. A passagem ficaria mais bem interpretada para
o espanhol. “A quien tiene se le dará, y trendrá, pero a quien no tiene se le quitará incluso
lo que tiene”.

CASTELO BRANCO, Guilherme. Michel Foucault: Filosofia e Biopolítica. Belo Horizonte:


Ed. Autêntica, 2015, p. 77.

FOUCAULT, Michel. Tecnologías del yo y Otros Textos Afines. Barcelona: Paidós, 1990, p.
61.

40 - Matéria G1. OMS Define Síndrome de Burnout Como “Estresse Crônico” e a Inclui na
Lista Oficial de Doenças, 2019. Disponível em: <https://g1.globo.com/ciencia-e-
saude/noticia/2019/05/27/oms-define-sindrome-de-burnout-como-estresse-cronico-e-
a-inclui-na-lista-oficial-de-doencas.ghtml>. Acesso: 27 Mai. 2019.

41 - RESENDE, André Lara. A Crise da Macroeconomia, 2019. Disponível em:


<http://www.pps.org.br/2019/03/11/andre-lara-resende-a-crise-da-macroeconomia/>.
Acesso: 14 Abr. 2019.

KITTLER, Friedrich. Mídias Ópticas. Tradução: Markus Hediger, Rio de Janeiro:


Contraponto, 2016, pp. 194-195.

LATOUR, Bruno. Reflexão Sobre o Culto Moderno dos Deuses Fe(i)tiches. Tradução: Sandra
Moreira. São Paulo: EDUSC, 2002. (Coleção Filosofia e Política).

SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Bolhas (Microesferologia). Tradução: José Oscar de Almeida


Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2016, p. 190. Na linguagem da tradição, isso
aparece como a lei da simpatia, que estipula que o amor não pode deixar de despertar o
amor, que o ódio gera igualmente a resposta que lhe corresponde; que a rivalidade
infecta nos que competem por um mesmo objeto a avidez vibrante dos concorrentes.
Quando a Filosofia da modernidade nascente expressa em palavras esses efeitos de
ressonância e de contágio, ela serve espontaneamente do vocabulário das tradições
521

magológicas. Ao refletir sobre causalidades afetivas de tipo mágico, a Antiguidade já


havia começado a explicar esse acordo interpressoal ou interdemoníaco que, desde a
época de Platão, tem sido interpretado como obra de Eros. Nos rastros de Platão, os
filósofos do fim do século XV inauguraram um novo discurso erotológico, cujo eco chega
até às maquinações das psicologias profundas do início do século XIX e às semirreflexões
da psicanálise popular dos dias de hoje.

______. Esferas I: Bolhas (Microesferologia). Tradução: José Oscar de Almeida Marques.


São Paulo: Estação Liberdade, 2016, p. 186. Assim começa a história do ser humano que
deve e quer estar só. Os indivíduos, no regime, individualista, tornam-se sujeitos pontuais
que caíram sob o domínio do espelho, isto é, da função refletora que se completa a si
mesma. Eles organizam cada vez mais sua vida na ilusão de que poderiam agora, sem
participação de um Outro real, desempenhar ambos os papeis no jogo da esfera de
relação bipolar, e essa ilusão se condensa no curso da história europeia dos meios de
comunicação e das mentalidades até atingir uma situação em que os indivíduos se
considerem a si mesmos, de uma vez por todas, como o Primeiro substancial, e suas
relações com os outros como o Segundo acidental. Um espelho em cada quarto de cada
indivíduo é o atestado dessa situação na vida prática. É verdade que o jogo da
autocompletação dos indivíduos diante do espelho (e diante de outros meios
egotécnicos, em particular o livro, tanto o que se lê como o que se escreve) perderia sua
atração se não estivesse a serviço da elevada ficção da autonomia – esse sonho do
domínio sobre si mesmo que, desde o início da filosofia antiga, introduziu-se na imagem
condutora da vida sábia.

______. Palácio de Cristal: Para Uma Teoria Filosófica da Globalização. Lisboa: Relógio
D’Água Editores, 2008b, p. 213. “O espaço-interior-do-mundo do capital”, em
contrapartida, deve ser compreendido como uma expressão de topologia social, utilizada
aqui para a potência de criação de interior associada aos media contemporâneos da
circulação e da comunicação: define horizontes das possibilidades de acesso (aos lugares,
às pessoas, às mercadorias e aos dados) abertas pelo dinheiro – possibilidades, essas,
todas decorrentes, sem exceção, do fato de a forma determinada da subjetividade no
seio da Grande Instalação ser definida pelo poder de compra. Quando este assume uma
forma concreta, aparecem espaços interiores e raios de ação específicos – são as arcadas
do access aonde se dirige toda a espécie de passeantes dotados do poder de compra. A
intuição arquitetônica que levava antigamente a instalar os mercados em pavilhões teria
forçosamente de dar origem, no início da era global, à ideia de pavilhões em forma de
mundo – segundo o modelo do palácio de cristal; o recurso à forma de pavilhão para o
concerto do mundo no seu todo é seu resultado coerente.

______ . Temperamentos Filosóficos: Um Breviário de Platão a Foucault. Tradução: João


Thiago Proença. Lisboa: Portugal. Editora 70, pp. 85-86. O núcleo da sua crítica da
economia política é necromancia: como herói que emerge do reino dos mortos a fim de
lutar com sombras de valores, Marx permanece atual par ao presente de modo
inquietante. O não morto que como valor monetária anda entre os homens e como
comunicador risonho subtrai aos vivos tempo e alma, domina ainda hoje quase sem
objeções as sociedades avançadas. Trabalho, comunicação, arte e amor, pertencem aqui
totalmente ao fim de partida do dinheiro. Estes constituem a substância do tempo atual
522

dos media e da aventura. Porque o dinheiro precisa de tempo para a sua valorização, a
chamada grande história também avança de modo espectral. Toda a história tornou-se
tendencialmente história da valorização; é um jogo em que se joga sempre para o
prolongamento. No entanto, tal história já não é o diálogo dos vivos com os mortos sobre
os bens do mundo, mas sim a impregnação cada vez mais radical dos vivos pelo espectro
economizado. Da subjetividade humana do nosso tempo antolha-nos sempre a alma do
dinheiro, desvelada: uma sociedade de compradores comprados e de prostituição
prostituída introduz-se nas relações globalizadas do mercado. O clássico laissez-faire
liberal explicita-se no sugar pós-moderno e no deixa-se sugar. É cada vez mais difícil
distinguir a telecomunicação do tele-vampirismo. Tele-ver e tele-sugar vão haurir a um
mundo liquefeito que já mal sabe o que seria uma vida capaz de resistência, ou seja, uma
vida própria. Não poderia suceder que estivesse iminente um tempo em que quem não
quiser falar do vampirismo deve calar-se também sobre a filosofia? Se isto se
confirmasse: seria em qualquer caso o tempo da segunda oportunidade de Marx.

MARX, Karl. O Capital. Livro I. São Paulo: Boi Tempo, 2018, p. 146. É evidente que o
homem, por sua atividade, altera a forma das matérias naturais de um modo que lhe é
útil. Por exemplo, a forma da madeira é alterada quando dela se faz uma mesa. No
entanto, a mesa continua sendo madeira, uma coisa sensível e banal. Mas tão logo
aparece como mercadoria, ela se transforma em uma coisa sensível-suprassensível. Ela
não se contenta em manter os pés no chão, mas põe-se de cabeça para baixo em relação
a todas as outras mercadorias, e em sua cabeça de madeira nascem minhocas que nos
assombram muito mais do que se ela começasse a dançar por vontade própria

______ . O Sol e a Morte: Investigações Dialógicas – Diálogos com Hans-Jürgen Heinrichs.


Tradução: Carlos Correia Monteiro de Oliveira. Relógio D’água Editores 2007, pp. 260-
261. É preciso ler a história da libertação energética paralelamente à história das formas
de subjetividade modernas: atrever-me ia a dizer que entre os séculos XVI e XIX o
problema da liberdade pode interpretar-se basicamente sob o paradigma da viagem
oceânica e o da escrita sob o da Galáxia Gutenberg. Viajar pelo mar equivale a
“empreender iniciativas de liberdade” com força eólica, enquanto escrever significa
“expressar-se livremente” com tinta; uns navegam no alto mar, outros na folha de papel
virgem, mas todos produzem experiências de liberdade ou, mais precisamente,
experiências de poder e experiências eficazes que contagiam o resto da sociedade. Com
estas tecnologias possibilitadas pelo dinheiro, põem-se em marcha a revolução do
ativismo. É então que a sociedade moderna começa pouco a pouco o processo de
mobilidade e alfabetização. Já em 1848, Marx e Engels constatavam como, por causa
dessa desaforada mobilidade do dinheiro, “tudo o que é sólido e permanente se volatiza
no ar”. No século XX juntou-se a isto a liberdade dos motores de gasolina, o que gerou
mais efeitos contagiosos do que qualquer coisa. Estes motores democratizaram a
utilização das máquinas e canalizaram a vontade de poder como vontade de viagem. O
mais interessante disto tudo é o modo como tem lugar a liberdade do movimento
espacial ampliado. Trabalhar e circular: estas são as cenas fundacionais das novas culturas
do poder. Mas quanto mais o século avança, mais o fato de viajar aparece como uma
desculpa que perdeu a sua razão de ser. A atual cultura de massas celebra o dispêndio
puro, um potlach energético absoluto que deixe de ser concebido como transporte. É
então que entra em cena a vontade de poder como uma vontade de detonação. Se
523

quiséssemos escrever uma teoria da cultura de massas à altura dos atuais movimentos
energéticos, seria necessário tentar proceder a uma crítica da explosão. Esta deveria
partir da observação de que a cultura de massas contemporâneas é apenas uma
competição pelo dispêndio. Da mesma maneira que a arena antiga era um templo
dedicado ao dispêndio de homens e seres vivo, a arena moderna é um templo dedicado
ao dispêndio energético.

SLOTERDIJK, Peter. Palácio de Cristal: Para Uma Teoria Filosófica da Globalização. Lisboa:
Relógio D’Água Editores, 2008b, p. 191. Uma vez tendo aceite a metáfora do “palácio de
cristal” como emblema para as ambições finais da modernidade, podemos refundar a
simetria muitas vezes assinalada e muitas vezes negada entre o programa capitalista e o
programa socialista: o socialismo/comunismo era muito simplesmente o segundo
estaleiro do projeto do palácio. Encerrado o seu ciclo, torna-se evidente que o
comunismo era uma etapa na via do consumismo. Na sua interpretação capitalista, as
correntes do desejo conhecem um desenvolvimento de potência incomparável – o que
também começam a admitir pouco a pouco os que tinham comprado ações do socialismo
na bolsa das ilusões, ações de que se conservarão alguns exemplares, como essas notas
de mil milhões de marcos do ano de 1923. Do capitalismo, porém, só agora se pode dizer
que representou sempre mais do que uma “relação de produção”; desde sempre, a sua
pregnância ultrapassou amplamente o que a figura intelectual do “mercado mundial”
podia designar. Ele implica o projeto que consiste em transpor a totalidade da vida do
trabalho, dos desejos e da expressão artística dos seres para a imanência do poder de
compra.

LAZZARATO, Maurício. A Política da Dívida é a “Verdadeira” Biopolítica. Entrevista Especial


com Maurizio Lazzarato. Tradução: Vanise Dresc. REVISTA IHU ON-LINE: Rio Grande do
Sul, 2017, p. 1. Prefiro falar de política da dívida, por ser um termo mais exato no que se
refere à nossa sociedade. A dívida, isto é, a moeda como capital financeiro, é uma
abstração de ordem superior àquela do trabalho, da representação democrática e do
poder político que se constituíram dentro do Estado-Nação. Enquanto na fase expansiva
da “valorização” a governamentalidade insufla liberdades aos governados, no momento
em que a crise impõe a necessidade de encontrar novas fontes de lucro, o capital entra
numa fase de “desvalorização”, isto é, de destruição do capital constante e do capital
variável (a população). A única democracia que os liberais conceberam foi a censitária, a
democracia dos proprietários. A democracia “para todos” nunca foi um objetivo do
capitalismo nem dos liberais. Ela foi imposta, começando pelo sufrágio universal, pelas
lutas do movimento operário, no século XIX. O declínio deste, sob os assaltos da finança,
provoca uma queda vertiginosa da “democratização”. A dívida é uma máquina de guerra
composta por automatismos financeiros, normas sociais e uma estratégia política.
Precisaríamos pensar as relações entre máquinas técnicas, máquinas de guerra e
estratégia. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/159-
noticias/entrevistas/572574-a-politica-de-guerra-da-divida-entrevista-especial-com-
maurizio-lazzarato>. Acesso: 25 Mai. 2019.

SLOTERDIJK, Peter. Palácio de Cristal: Para Uma Teoria Filosófica da Globalização. Lisboa:
Relógio D’Água Editores, 2008b, p. 224.
524

______ . A Mobilização Infinita: Para Uma Crítica da Cinética Política. Tradução: Paulo
Osório de Castro. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2002, p. 29. O capital cinético faz
explodir velhos mundos, não porque tenha algo contra eles, mas apenas porque é seu
princípio não se deixar deter. Não pode fazer outra coisa senão pôr as circunstâncias a
dançar ao som de melodias aceleradas. Põe rios de mercadorias a correr, frotas a cruzar,
escadas rolantes a deslizar, atmosferas a mudar, faunas a desaparecer. Já lá vão os
tempos ingênuos, em que era dado aos homens pensar que se tinham de mover para que
o mundo andasse para a frente. Entretanto, o movimento, o movimento puro, passou a
andar à solta. Enquanto os amáveis defensores dos avanços alcançados nos tempos
modernos se debruçam sobre teorias do comportamento humano e discutem acerca de
normas da fundamentação (última) da ação (com certeza que em breve serão
promovidos a diretores dos Parques Nacionais da Modernidade, que hão-de ser criados
dentro em pouco), espalha-se pelo resto do mundo uma maldosa suspeita: talvez a
cinética seja o destino?

42 - Matéria: G1. Uber Estreia na Bolsa de NY, 2019. Disponível em:


<https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2019/05/10/uber-estreia-na-bolsa-
em-ny.ghtml>. Acesso em: 10 Mai. 2019.

SLOTERDIJK, Peter. O Sol e a Morte: Investigações Dialógicas – Diálogos com Hans-Jürgen


Heinrichs. Tradução: Carlos Correia Monteiro de Oliveira. Relógio D’água Editores 2007,
p. 141. Seria desejável que a psicanálise pudesse aprender a desembaraçar-se um pouco
do seu fetichismo em relação ao imago e do seu delírio relacional com o objeto, bem
como o romanticismo da psicose que germinou como uma erva daninha no momento
áureo da seita lacaniana. Mas agora a força do movimento psicanalítico reside no fato de
poder prosseguir o seu trabalho criativo levando em conta os erros do mestre. Os
processos psicológicos de aprendizagem, que desbrava caminho para o moderno
conhecimento do homem, vão mais longe do que as biografias dos seus grandes
construtores particulares; mais ainda, obtiveram o estatuto de uma autêntica instituição
pedagógica que ultrapassa o tempo de vida de uma geração de investigadores e
possibilita um processo duradouro a longo prazo; por isso, a questão do psíquico e do
saber que lhe está ligado não chegou ao seu termo; provavelmente teremos uma ou
outra surpresa. Neste campo, avança-se fundamentalmente através de erros geniais. O
meu trabalho pertence a esta fase de correção do passo em frente dado por Lacan e
outros.

43 - MILAN, Betty. Derrida Caça os Fantasmas de Marx, 1994. Disponível em: <
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/6/26/mais!/24.html>. Acesso: 22 Jun. 2019.

44 - SANTOS, Maria Siqueira. A História das Ideias Em a Árvore Mágica de Peter Sloterdijk.
IV Seminário de Pesquisa. Programa de Pós-graduação em História Social, 2010, pp. 443-
453. Disponível em:
<http://www.uel.br/pos/mesthis/arqtxt/ANAISIVSEMINARIOPPGHS08022011MESTHIS.p
df>. Acesso: 27 Mar. 2018.

45 - SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Bolhas. (Microesferologia). Tradução: José Oscar de


Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2016, p. 189. Capítulo 3.
525

46 - POE, Edgar Allan. Contos de Terror, de Mistério e Morte. Tradução: Oscar Mendes.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 223.

47 - SAFRANSKI, Rüdiger. E.T.A Hoffmann. A Vida de um Cético Fantasioso.


Munique/Viena, Hanser, 1984, pp. 294-310.

SLOTERDIJK, Peter. Crítica da Razão Cínica. 2ª Edição. Tradução: Marcos Casanova. São
Paulo: Estação Liberdade, 2012, pp. 87-88. Puységur já sabia, de modo semelhante ao de
Mesmer, que sua personalidade constituía nas curas hipnóticas o agente propriamente
dito – em uma formulação mais exata, o agente era a ligação íntima que se produzia entre
ele e o paciente. Essa “ligação” – em uma terminologia mais recente: a transferência –
servia como meio de uma prática metódica e exitosa em termos de psicologia profunda.
No mínimo até a metade do século XIX esse procedimento foi constantemente
desenvolvido e praticado de formas críveis. Schopenhauer afirmou que essa descoberta
seria bem possivelmente a mais importante em toda a história espiritual do homem,
ainda que ela mais apresentasse do que resolvesse de início enigmas à razão. De fato,
aconteceu aqui a irrupção de um movimento em direção a uma psicologia profunda
secularizada, que conseguiu livrar seu saber da psicologia religiosa e pastoral tradicional
(cuja competência psicológica tinha com certeza se confirmado à luz de um acesso não
sacralizado ao inconsciente). A descoberta do inconsciente toca naquele âmbito, no qual
as contraintuições da antiga esotérica confluíram para a estrutura do saber
especificamente moderno, construído à sua maneira e a princípio de modo
contraintuitivo; naturalmente, porém, de qualquer modo os dois precisam buscar pôr fim
a articulação com a “experiência direta”.

48 - ______ . Experimentos con uno Mismo. Conversaciones con Carlos Oliveira.


Traducción Germán Cano. Editorial Pre-textos. Valencia, 2003, p. 93.

49 - Marx propôs o fim do mercado. Por que Marx precisaria do fim do mercado? Aí entra
a análise filosófica da preocupação com a visão que ele tem: é a visão da emergência dos
fantasmas. A época em que Marx viveu possibilitou ele ter a noção da metafísica aliada
ao valor-trabalho (horas de trabalho) para a mercadoria. Essa época foi marcada por uma
literatura fantástica, onde se viu diversos contos, temas, histórias sobre ectoplasmas,
espiritismo, espectros se movendo pelo mundo e pelas casas. De 1840 até 1920 é um
período de uma literatura onde se queria falar, ver, capturar, tirar fotos com fantasmas.
Nesse sentido, vemos o suspense ganhar elevação no cinema. Sobre isso indicamos o
conto Flor, Telefone, Moça de Carlos Drummond de Andrade, no livro “Contos de
Aprendiz”. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. Vemos a ideia de que os mortos se
utilizam de objetos tecnológicos, onde objetos criam vida e fazem o papel de fantasmas
está presente no século de Marx. Porque a própria mercadoria para o Marx é um
fantasma. É uma situação fantasmagórica como aparição. Marx pensou a mercadoria
fantasmática sensível e insensível ao mesmo tempo. Ela é da ordem espiritual, mas ao
mesmo tempo ela tem um corpo. Não é o espírito habitado o corpo, ela é da ordem
espiritual que forja algo corpóreo como um espectro. Entra a noção de valor de uso e
valor de troca e trabalho abstrato em termos de horas embutido nela. Por isso que
somente terminando com o mercado, a ideia de fetiche e reificação do homem seria o
526

caminho para a volta da humanização do homem. Há uma inversão do fetiche do objeto


com o homem. O mercado seria a inversão entre sujeito e objeto. É a desumanização do
homem, pois deixa-nos em uma situação de se estar vivendo-comprando com um pé do
espírito sugado e interiorizado na mercadoria. O vivo é a mercadoria. Não um vivo como
vivo, mas como fantasmagórico, o homem que era o vivo passa a ser o morto,
obedecendo os fantasmas (spectrum-spectaculum). Esta inversão é a ideologia que não
passa pela cabeça, mas algo sedimentado pelo mercado enquanto prática, e não um
texto que vai conquistar você. O fim do mercado no limite quer que o homem volte e saia
da ideologia para enxergar a verdade sem o viés ideológico, a prática do mercado que faz
com que nós fiquemos à mercê dos espectros. Marx antes de tudo, é um filósofo, e como
tal, possui um projeto epistemológico na cabeça com uma nova ontologia, uma ontologia
onde o homem se ponha como controlador dos objetos e não um ser controlado. A
proposta do comunismo passaria metafisicamente por estes termos.

DOWBOR, Ladislau. A Era do Capital Improdutivo: Por que oito famílias tem mais riqueza
do que a metade da população do mundo? São Paulo: Outras Palavras & Autonomia
Literária, 2017, p. 303.

50 - ______ . Uma Nova Arquitetura Social?, 2018. Disponível em:


<http://dowbor.org/blog/wp-
content/uploads/2018/11/AlemdoCapitalismo_novembro2018.docx>. Acesso: 18 Jun.
2019.

51 - DEBRAY, Regis. God: An Itinerary. Translator: Jeffrey Mehlman (London & New York:
Verso, 2007), pp. 83f.

52 - SLOTERDIJK, Peter. Esferas II: Globos (Macroesferología). Traducción de Isidoro


Reguera. Madrid: Siruela, 2006, p. 866.

53 - NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da Moral: Uma Polêmica. São Paulo:


Editora Companhia das Letras, 2008, p. 120. Nietzsche diz que o Weltschmerz (dor do
mundo) europeu, o “pessimismo” do século XIX, é essencialmente resultado de uma
mistura de classes absurdamente súbita, ou determinado por uma emigração
equivocada, uma raça chegada a um clima para o qual sua capacidade de adaptação não
basta (como os hindus na índia), ou consequência de velhice e cansaço da raça
(pessimismo parisiense de 1850 em diante), ou de uma dieta errada (alcoolismo na Idade
Média) ou a degeneração do sangue, malária, sífilis e semelhantes (depressão alemã após
a Guerra dos 30 anos que infectou metade da Alemanha com doenças ruins, preparando
o terreno assim para a servilidade alemã, a mesquinhez alemã).

54 - SLOTERDIJK, Peter. Crítica da Razão Cínica. 2ª Edição. Tradução: Marco Casanova. São
Paulo: Estação Liberdade, 2012, pp. 606-607.

55 - APPADURAI, Arjun. Global Ethnoscapes-Notes and Queries for a Transnational


Anthropology, em Richard G. Fox (ed.), Recapturing Anthropology: Working in the Present
(Santa Fe: School of American Research Press), 1991, pp. 191-210.
527

56 - CAMPBELL, Timothy e Sitze, Adam. Biopolitics: A Reader. Duke University Press, 2013.
Ver capítulo 15: SLOTERDIJK, Peter. The Immunological Transformation on The Way to
Thin-Walled “Societies”, pp. 310-316.

57 - Cf. Die Gnosis. III Volume. Der Manichäismus. Edição de Alexander Böhlig. Zurique e
Munique, 1980, pp. 107-108. O luminoso Jesus aproximou-se do ingênuo Adão e
despertou-o do sonho mortal para o libertar dos muitos espíritos [...] Assim se passou
com Adão, pois o amigo encontrou-o mergulhado num sono profundo. Acordou-o, deu-
lhe movimento, animou-o, e expulsou dele o espírito confuso [...] Então, Adão sentiu-se
a si mesmo e reconheceu quem ele era. E mostrou [...] que era devorada por aqueles que
devoraram, absorvida por aqueles que absorvem [...] Pô-lo de pé e deu-lhe a provar da
árvore da vida. Depois disso, começou a ver; e, então, Adão chorou e gritou em voz alta
como um leão a rugir. Puxou pelos cabelos, bateu contra o peito e disse: “Maldito,
maldito, seja quem formou o meu corpo e quem encarcerou a minha alma [...].

58 - WALSER, Robert. Viagem de Balão. Absolutamente Nada e Outras Histórias. Tradução:


Sergio Tellaroli. São Paulo: Editora 34, 2014, pp. 22-24. Como a terra é grande e
desconhecida, pensa o cavalheiro com o chapéu de plumas, o que parece indicar que,
para Walser, a viagem de balão é uma espécie de estímulo e confirmação de sua
tendência deambulatória anterior e primordial, ainda há muito terreno a ser percorrido.
E o final aberto: "o voo segue sempre adiante, o sol magnífico enfim surge, e, atraído por
esse astro orgulhoso, o balão dispara rumo a alturas mágicas e atordoantes. A moça solta
um grito de medo. Os homens riem”.

59 - Diga-se de passagem, Ralph Waldo Emerson, Nietzsche e Júlio Verne foram mestres
nisso. Filosofias ou histórias enquanto reformulação náutica (águas, oceanos, horizontes,
barcos, embarcações, navios, terra natal, um infinito, liberdade, montanhas). Neles
voltam a aparecer as tonalidades agressivas do precoce período europeu da liberação de
limites em tradução transatlântica. A ideia de passageiros. No caso de Júlio Verne, há uma
mudança no trânsito. O viajante universal renuncia à sua profissão documental e se
converte em um puro passageiro. É um típico cliente de um serviço de transporte que
paga para que sua viagem seja uma mera questão de tempo e não se converta em
experiência alguma. Um herói da pontualidade. Seu único interesse com as paisagens e
imagens que transitam por ele é atravessá-las. O clássico turista prefere viajar com as
janelas fechadas. Temos um “hermético viajante” que transita pelos espaços sem se fixar
em nenhum canto. Não há nenhuma relação digamos de “terra natal”. O hominídeo
como lançador, operador e cortador é um quase “produtor do claro” para usar uma
expressão de Heidegger. O lançamento da pedra permite, o alargamento dos limites do
mundo enquanto limites de alcance do lançamento. A primeira forma de teoria,
enquanto mirada prévia ao lançamento. A compreensão existencial enquanto
antecipação e projeção de possibilidades de acerto e a primeira concepção de verdade
enquanto êxito (e a falsidade enquanto erro). Os arremessos formam no destaque entre
o horizonte como fundo destacado da ação rumo a algo, passa a vigorar a partir dessa
dinâmica entre o alvo e o fundo, entre o patente e o latente (o que está a vir), o que está
no interior do mundo humano e o horizonte exterior de possibilidades. Dessa forma,
implica, a partir da espacialidade (circular), uma noção de temporalidade: o horizonte, o
inalcançável, é tempo originário, mítico, o não conhecido, e ao mesmo tempo, futuro,
528

porvir, o tempo, “mortalidade”. A metafísica entendeu a posição humana que condiciona


o ter-algo-diante-de-si como mortalidade, o que é apenas uma outra forma de dizer que
interpretou o aberto-“diante”-de-nós como tempo, mais precisamente como futuro.
Neste contexto, nasce o sentimento humano elevado das experiências de êxito dos
antigos artilheiros e caçadores. Resquícios disto ainda vivem até hoje no orgulho dos
artilheiros, em parte, nos sempre espetaculares orgasmos daquele que marca gol, acerta
o alvo. Aqui repetem-se arcaicos sentimentos elevados de formação do eu perante o
objeto vencido. A partir de derivações de semelhantes experiências, os metafísicos
metacósmicos do Oriente e da Grécia irão postular a possibilidade de vencer o mundo, a
vida, a morte.

SLOTERDIJK, Peter. Esferas III: Espumas (Esferología Plural). Traducción de Isidoro


Reguera. Madrid: Siruela, 2006, p. 542. Em torno de 1750 um aforístico podia ter
afirmado que a antigravitação, a elegância e a máquina constituíam as grandes
tendências da época. Os fenômenos falam por si mesmos: não tinha delirado todo o
século XVIII, poética e tecnicamente, por ele “arte-ar-navio”, pela navigation aérienne,
por máquinas de Dédalo e balões aerostáticos? Não havia chegado realmente à véspera
da Revolução Francesa o momento em que os seres humanos se sentiam maduros para
emancipar a existência do triste costume de sua pesadez e para arrebatar aos deuses seu
último privilégio, o puro capricho? Com a exibição exitosa de um balão de ar quente
realizado pelos irmãos Mongolfier o 19 de setembro de 1783 no pátio do castelo de
Versalhes na presença de Luís XVI se deu o sinal oficial para o começo da levitação: um
acontecimento rodeado de jubilo, no qual um cordeiro, um galo e um pato foram os
primeiros habitante animais da Terra que gozaram do prazer da subida a uma altura de
mais de 120 metros.

______ . A Mobilização Infinita: Para Uma Crítica da Cinética Política. Tradução: Paulo
Osório de Castro. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2002, pp. 102-103. Presença é
movimento, no sentido de um drama da chegada, da produção e da entrada. A
experiência da presença faz parte dos elementos distintivos da existência humana,
porquanto os homens são os seres por excelência da chegada e da entrada – predispostos
a despertar, a sair, a produzir e a começar. Só há presença onde houver existência
humana, onde se der o humano vir-ao-mundo. A presença é o aguilhão do nascimento
inacabado [...]. Na medida, porém, em que os homens participam da presença, são seres
natais nos quais prossegue o movimento da vinda-ao-mundo. A presença, enquanto
conceito dramático, inclui, portanto, um duplo movimento: o abrir-se do mundo, como
chegada-do-exterior, e o manter-se voltado para o mundo por parte do sujeito, como
espaço de chegada. A presença é, por isso, sempre acompanhada pela consciência de
uma dupla felicidade e de um duplo temor. Um dos pares de felicidade e temor provém
da irrupção das forças exteriores e da chegada de dádivas inesperadas, o outro resulta
da euforia e da dor do próprio êxodo humano. Por ser presentista, a segunda alternativa
está inteiramente sob o signo da natalidade. O presenteísmo natal não pode dar crédito
ao motivo da progressão para a própria morte; por isso, ele é, em conformidade com o
seu movimento fundamental, radicalmente distinto do ruinoso ser-para-a-morte de tipo
metafísico ou existencialista. É que a presença, enquanto permanência no aberto, só
surge graças ao movimento do humano vir-ao-mundo, e onde quer que esse movimento
529

se inicie, o natal, o presente e o aberto adquirem o seu perfil num único processo.
Presentista é a vida que nota que tem algo “diante de si”.

NIETZSCHE, Friedrich Willhelm. Assim Falou Zaratustra: Um Livro Para Todos e Para
Ninguém. Tradução: Paulo César de Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, pp.
197-198.

SLOTERDIJK, Peter. A Vida Atual Não Convida a Pensar, 2019, p. 1. Não é capacidade como
tal. Mas não ocorrem as circunstâncias vitais que nos permitem afastar e ganhar
distância. Para Husserl e sua fenomenologia era preciso sair do tempo impetuoso da vida,
o dispositivo mais elementar era sempre dar um passo atrás. Essa ação permite que você
se transforme em observador. Sem uma certa distância, sem uma certa desconexão a
atitude teórica é impossível. A vida atual não convida a pensar. Disponível em: <
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/03/internacional/1556893746_612400.html>
Acesso: 05 Mai. 2019.

NIETZSCHE, Friedrich Willhelm. Assim Falou Zaratustra: Um Livro Para Todos e Para
Ninguém. Tradução: Paulo César de Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p.
183.

______ . Genealogia da Moral: Uma Polêmica. São Paulo: Editora Companhia das Letras,
2008, pp. 92-93.

______ . Assim Falou Zaratustra: Um Livro Para Todos e Para Ninguém. Tradução: Paulo
César de Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 145.

______ . Assim Falou Zaratustra: Um Livro Para Todos e Para Ninguém. Tradução: Paulo
César de Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, pp. 199-200.

60 - AUERBACH, Erich. Ensaios de Literatura Ocidental. 2º Edição. Tradução: Samuel Titan


Jr. e José Marcos Mariani de Macedo. Editora 34, 2012, p. 361. O Ensaio em questão é
“Possibilidades Inéditas Para Uma Visão de Conjunto”. "Seria muito desejável que, depois
do fim da humanidade, fosse dado a um espírito reunir e contemplar toda a arte do
gênero humano, desde as suas origens até o seu desaparecimento". E Auerbach
comenta: "Stifter pensa aqui apenas nas artes plásticas, e creio que ainda não se pode
falar de um fim da humanidade. Mas parecemos ter atingido um ponto de conclusão e
virada que oferece ao mesmo tempo possibilidades inéditas para uma visão de conjunto”.

HOUELLEBECQ, Michel. Extensão do Domínio da Luta. Tradução: Juremir Machado da


Silva. Editora: Sulina, 2002, p. 18. Debaixo dos nossos olhos, o mundo se uniformiza; os
meios de comunicação de massa avançam; o interior dos apartamentos se enriquece de
novos equipamentos. As relações humanas tornam-se progressivamente impossíveis, o
que reduz, na mesma proporção, a quantidade de peripécias de que se compõe uma vida.
E, aos poucos, o rosto da morte aparece, em todo o seu esplendor. O terceiro milênio
mostra a sua cara.

61 - Netflix: Filme Cam (2018).


530

FOUCAULT, Michel. História de la Sexualidad. El Uso de los Placeres. México: Siglo


Sexualidad, 2005, pp. 13-14.

SLOTERDIJK, Peter. You Must Change Your Life. Malden: Polity Press, 2013, p. 59.

FREUD. Sigmund. A Correspondência Completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess,


1887-1904. Edição de Jeffrey Masson. Tradução: Vera Ribeiro, Rio de Janeiro: Imago,
1986, p. 225.

______ . A Correspondência Completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess, 1887-1904.


Edição de Jeffrey Masson. Tradução: Vera Ribeiro, Rio de Janeiro: Imago, 1986, p. 228.

SLOTERDIJK, Peter. O Estranhamento do Mundo. Tradução: Ana Nolasco. Relógio D’Água


Editores, 2008, pp. 195-196. A própria existência do despontar do mundo entre os
homens tem como pressuposto o precário tornar-se aberto ao mundo que se consuma
na evolução de luxo do animal de atenção homo sapiens. A partir do comunismo primitivo
da atenção pode-se, graças à mais arriscada de todas as evoluções tornar o
individualismo da consciência do mundo e de si próprio. Neste contexto, a cultura tanto
a “avançada” como a primitiva, é sempre descendente do mecenato, i.e., um efeito do
fomento do homem pelo homem. O mecenato primitivo consiste na mútua dádiva de
vigilância mediante a qual se pode estabilizar o clima favorável a evoluções improváveis.
Em tempos posteriores que hoje chamamos de antigos, a dádiva primitiva de atenção
tornou-se, sob o título de amizade, um tema da humanidade, o que aponta para um
tornar-se problemático da intimidade nos antigos mundos de relação macro-urbanos e
imperiais. A saber, não é a interioridade protegida pelo poder que cria a atmosfera
óptima de cultura avançada – como sugeriu Walter Benjamin numa arriscada observação
sobre a cultura burguesa tardia, mas a intimidade protegida pela atenção. Já na polis ideal
de Platão salta à vista a conexão entre a cultura avançada e o ofício de vigilância.

AGAMBEN, Giorgio. O Aberto. O homem e o Animal. 2 Edição. Tradução: Pedro Mendes.


Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017, pp. 61-62. Vejamos a máquina antropológica
dos modernos. Essa funciona – nós o vimos – excluindo-se de si como não (ainda) humano
um já humano, isto é, animalizando o humano, isolando o não-humano no homem: Homo
alalus, ou o homem-macaco. E basta avançar algumas décadas em nosso campo de
pesquisa e, em vez desse inócuo repertório paleontológico, teremos o judeu, isto é, o
não-homem produzido no homem, ou o néomont (neomorto) e o paciente em estado de
coma profundo, isto é, o animal isolado no próprio corpo humano. Exatamente simétrico
é o funcionamento da máquina dos antigos. Se, na máquina dos modernos, o fora é
produzido por meio da exclusão de um dentro e o inumano animalizando o humano, aqui
o dentro é obtido por meio da inclusão de um fora, o não-homem por meio da
humanização de um animal: o macaco-homem, l’enfant sauvage ou Homo Ferus, mas
também e acima de tudo o escravo, o bárbaro, e o estrangeiro enquanto figuras de um
animal em forma humana. Ambas as máquinas podem funcionar apenas instituindo em
seu centro uma zona de indiferença, na qual deve aparecer – como um missing link
sempre ausente porque já virtualmente presenta – a articulação entre o humano e o
animal, o homem e o não-homem, o falante e o vivente. Como todo o espaço de exceção,
531

essa zona é, na verdade, perfeitamente vazia, e o verdadeiro humano que deve surgir é
apenas um lugar de uma decisão incessante atualizada na qual a separação e sua
rearticulação são sempre descoladas e adiadas novamente. Isso que deveria assim ser
obtido não é semelhante nem a uma vida animal nem a uma vida humana, mas somente
uma vida separada e excluída de si mesma – apenas uma nuda vida.

SLOTERDIJK, Peter. Not Saved: Essays After Heidegger. Translation: Ian Alexander Moore
and Christopher Turner. Polity Press, 2017, p. 103. Visto dessa perspectiva bastante
específica, o ser humano é determinado como um ser que explodiu do sistema de
parentesco animal, mas de uma maneira que Heidegger não nos encoraja a interrogar.
Em virtude de uma alquimia ontológica impenetrável, os seres vivos que eram nossos
ancestrais primatas teriam se afastado de si mesmos e teriam se encaixado no sistema
de parentesco dos seres ecstase, com o resultado de que os deuses, se existissem,
estariam mais próximos de nós. do que nossos primos, os animais, que são pobres no
mundo, sem linguagem e enlaçados em seu ambiente. Rudolf Bilz expressa um estado
similar de coisas com um pouco menos de patologia quando ele comenta: “Nós não
somos animais, mas residimos, por assim dizer, em um animal que vive em participação
com aqueles como ele e através do compartilhamento de objetos”. O que é animal é o
que se move dentro da jaula ontológica que os modernos, depois da engenhosa invenção
do termo de Jakob von Uexküll, chamam o Umwelt [ambiente], enquanto é apropriado à
essência do ser humano executar uma invasão do ambiente e um rompimento com a
insensibilidade ontológica, para a qual nunca encontramos uma caracterização melhor
do que a palavra mais trivial e profunda da linguagem humana, a expressão "mundo"
[Welt]. A ontoantropologia pergunta sobre as duas coisas ao mesmo tempo: sobre o
ecstase humano, que é chamado de ser-no-mundo, e sobre o status do antigo animal que
este devir-extático atingiu.

JÚNIOR, Paulo Ghiraldelli. Para Ler Peter Sloterdijk. 1ª Edição. Rio de Janeiro: Via Verita,
2017, p. 125. A sociedade da leveza, pensada por Peter Sloterdijk, corresponde a
sociedade moderna em sua contínua desoneração. Essa desoneração é apresentada em
quatro grandes cenários. O primeiro corresponde ao cenário do chamado palácio de
cristal, porta aberta para um quadro da modernidade como um campo propício para a
pós-história, o que necessariamente se constrói como campo interior, o segundo pelo
movimento de desoneração vinda da liberdade proporcionada pelo dinheiro; o terceiro
cenário pelos desdobramentos dos passos em direção a uma sociedade do mimo; o
quarto cenário inicia-se com os primeiros voos de balões, no qual a desoneração aparece
com a liberdade dos movimentos antigravitacionais, expressão esta tomada aqui tanto
efetiva quanto metaforicamente.

SLOTERDIJK, Peter. O Sol e a Morte – Investigações Dialógicas. Tradução: Carlos Correia


Monteiro de Oliveira. Relógio D’Água Editores, 2007, p. 71. Não é difícil de mostrar que
todos os indivíduos têm um input e um output de excitação e que, segundo o grau de
organização da sua individualidade, se desembaraçam do seu input mais ou menos
processado e se insensibilizam umas vezes com pouca, outras com maior intensidade. De
qualquer modo, os indivíduos são transformadores conectados a um circuito composto
de fluxos de energia muito ligados a determinados temas. As suas ditas opiniões não
passam deformas temáticas e morais da moda. De um ponto de vista psico-histórico, esta
532

inversão corresponde a uma transformação real de uma neurose endógena numa


neurose exógena ou, p que é o mesmo, de um estágio de confusão propriamente dita a
outro de confusão por participação.

______ . A Mobilização Infinita: Para Uma Crítica da Cinética Política. Tradução: Paulo
Osório de Castro. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2002, p. 197. A subjetividade só pode
ser vivida como o esforço, condenado a si próprio, para se manter dentro do suportável.
Ela reconhece-se pelo seu esforço para se manter e, se perdesse o seu caráter esforçado,
já não seria uma subjetividade, mas a unidade do todo na consciência desprovida de
peso. É por isso que a teoria pura é o derradeiro luxo, uma coisa para suicidas e para
dandies. É somente para eles que está aberto o acesso ao mistério da frivolidade, ao
aligeiramento da vida até à anulação dos pesos. A vida é custosa para o comum dos
mortais. Estes continuam condenados ao esforço de aliviar tanto quanto podem o que
pesa de mais sobre eles. Mas também eles continuam a sonhar com pairar em estado de
imponderabilidade. Esforçam-se incansavelmente por tornar a sua vida cada vez mais
leve. Devido aos seus esforços conjugados, o processo da civilização redunda num
empreendimento que provoca iluminações involuntárias. Entretanto, os esforços da
civilização para aligeirar a vida passaram a ser eles próprios o fardo do insuportável,
relativamente al qual deveriam ter sido o desvio para o que suportável.

SLOTERDIJK, Peter. Palácio de Cristal: Para uma Teoria Filosófica da Globalização.


Tradução: Manuel Resende. Relógio D’Água Editores. Lisboa: 2008b, p. 227. O conceito
de mimo não implica naturalmente uma concessão à pedagogia conservadora, que não
quer deixar de acreditar que o homem continua a ter necessidade de ser orientado por
uma mão forte. O mimo, enquanto termo da antropologia histórica, designa os reflexos
psicofísicos e semânticos do movimento de desoneração inerente desde início ao
processo de civilização, mas que só pôde amadurecer e adquirir a sua plena visibilidade
a partir do momento em que os bens deixaram radicalmente de ser raros. À luz destas
posições (que assentam no desenvolvimento dos pontos de vista de Louis Bolk e Arnold
Gehlen), podemos dar a compreender que, com a experiência do Estado econômico e do
Estado-providência moderno, se consumou um salto na história do mimo do Homo
sapiens – um salto que abriu a todos os que deram com os outros um espaço
imensamente alargado de possibilidades existenciais. A teoria do mimo orientada para a
antropologia – assinalamos por precaução – não tenciona repor em causa os efeitos de
desoneração possibilitados pelo processo da civilização; o que deseja é optimizar a
capacidade de navegação cultural dos sujeitos do mimo no seu ambiente arriscado de
navegação cultural dos sujeitos do momo no seu ambiente arriscado e amplamente
incompreendido, propiciando orientações conceituais para a existência em situações
fortemente marcadas pela desoneração.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do Subsolo. São Paulo: Editora Paulicéia, 1992, pp. 226-
227. A City, com os seus milhões e com o seu comércio mundial, o Palácio de Cristal, a
Exposição Internacional... Sim, a exposição é impressionante. Sente-se uma força terrível,
que uniu num só rebanho todos estes homens inumeráveis, vindos do mundo inteiro;
tem-se consciência de um pensamento titânico; sente-se que algo foi alcançado aí, que
há nisso uma vitória, triunfo. Até se começa como que a temer algo. Por mais que se seja
independente, isto por alguma razão nos assusta. Não será este realmente o “ideal
533

atingido?”, pensa-se. “Não será o fim?” Não será este, de fato o “rebanho único?” Não
será preciso considera-lo como a verdade absoluta, e calar para sempre? Tudo isto é tão
solene, triunfante, altivo, que nos oprime o espírito. Olham-se estas centenas de
milhares, estes milhões de pessoas que acorrem docilmente para cá de todo o globo
terrestre, pessoas que vieram com um pensamento único, que se aglomeram plácida,
obstinada e silenciosamente neste palácio colossal, e sente-se aqui que se realizou algo
definitivo, que assim chegou término. Isto constitui não sei que cena bíblica, algo sobre a
Babilônia, uma profecia do Apocalipse que se realiza aos nossos olhos. Sente-se a
necessidade de muita resistência par anão ceder, não se submeter à impressão, não se
inclinar ante o fato e não deificar Baal, isto é, não aceitar o existente como sendo o ideal...

62 - Jesus é o modelo original do sujeito que anula toda a pertença a um seio maternal.
O que lhe dá a consciência de apostolado nasce da façanha extremista de se legitimar
completamente na dotação de potência a do ser própria de um seio paternal urânico. A
irradiação das palavras de Jesus divulgadas pelos evangelhos canônicos é ativada,
sobretudo, por transmitirem as mais claras afirmações uranofáticas dos últimos milênios.
Com as variantes gnósticas vemos isso ainda mais claro. Falam, como se o céu pudesse
dizer Eu. Nas palavras de Jesus, o céu é não o tema, mas o sujeito do discurso; as frases
de Deus feito homem são “manifestações”, substancialmente celestes, solúveis, no céu
e naturais dele. Nietzsche entendeu muito bem isso. Ele interpreta a semântica jesuítica
de “pai”: o “sentimento de transfiguração global de todas as coisas”, o “sentimento de
eternidade, de última perfeição”, como também criou um gêmeo e cúmplice do céu, o
texto uranofático mais impressionante até hoje criado, vemos no Antes do Nasce do Sol,
na terceira parte de Assim Falou Zaratustra. NIETZSCHE, Friedrich Willhelm. Assim Falou
Zaratustra: Um Livro Para Todos e Para Ninguém. Tradução: Paulo César de Sousa. São
Paulo: Companhia das Letras, 2015, pp. 156-159. Quem está no céu sabe o que significa
falar a partir dele. Na medida em que o céu possui energia de seio, produz-se a
autocomunicação da sua produtividade aos seus rebentos. A partir desta seio-plenitude-
consciência de acento masculino, pode-se compreender a metafísica do logos do
Evangelho de João na sua força sugestiva radiante através de milênios. A certeza de seio
paterna parece ser o segredo energético daqueles no mundo. A Oração do Senhor,
também conhecida como o Pai Nosso, é a oração mais conhecida do cristianismo, seu
início começa com: “Pai nosso que estais no céu...”. Eles são os verdadeiros
existencialistas – indivíduos que sabem ser radicalmente de dentro para fora. O elemento
oceânico tanto a partir dos seus atributos envolventes e salvadores, como dos emanantes
e produtivos. Anoto à margem que a meditação da montanha de Heidegger realça a
característica do mar maternal no elemento seco telúrico. Gebirge – montanha, cuja
primeira sílaba “ge”, alude a Gea, a deusa Terra hesiódica, criadora dos céus, montanhas
e mares. Béla Grumberger referiu-se a uma implicação teológica do domínio do seio: a
palavra hebraica rakh’mime, é traduzida, em abstrato, por “misericórdia”, designa um
dos atributos da “divindade” e corresponde, em si, ao plural de rekh’em, que significa
“útero”. Para os judeus, a Deus, que é tanto pai como mãe, corresponde, entre outros, o
nome determinante el male rakh’ mine, que significa “cheio de misericórdia”, mas
literalmente, “cheio de útero”. Aqui há uma aproximação direta entre divindade e útero
– órgão que contribui para esta sinestesia e que, simultaneamente, envolve o seu
portador.
534

63 - AGAMBEN, Giorgio. A Potência do Pensamento: Ensaios e Conferências. Tradução:


António Guerreiro. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015, pp. 83-95.

SLOTERDIJK, Peter. O Estranhamento do Mundo. Tradução: Ana Nolasco. Relógio D’Água


Editores, 2008, p. 40. Num olhar perspectivo a semelhantes considerações, torna-se
evidente o quanto é questionável a tese recorrente de que a individuação elevada é o
fato tipicamente moderno. Se se pensar justamente na individuação juntamente com a
elaboração ativa de resistência básica, prevalece sobretudo uma tendência para a recaída
ao longo do processo de civilização na época moderna. As fronteiras do Eu entre
indivíduos modernos são, sob muitos aspectos, mais debilmente formadas do que entre
membros de sociedades tradicionais. O sentido da individuação nos tempos modernos é,
muito mais, o fundir-se na pluralidade de significados do próprio Eu. Nós temos a
sensação de progresso quando, através de uma forma elástica, conseguimos ultrapassar
a herança, tornada cômoda, ao auto endurecimento e da autodefinição da época de
combate primitiva. O quanto isto nos afasta das posições antigas é particularmente
evidente na figura do antigo herói antigo Prometeu. Na sua qualidade de rebelde, ladrão
de fogo e engenheiro do homem, parece ter passado certamente a ser um emblema da
subjetividade moderna. Na sua qualidade de rebelde, ladrão de fogo e engenheiro do
homem, parece ter passado certamente a ser um emblema da subjetividade moderna.
Enquanto herói da impossibilidade de se escapar que, acorrentando aos rochedos e
devorado por abutres, suporta o insuportável, tornou-se para os indivíduos atuais um
estranho dos pés à cabeça. Não existe nenhum elo entre o seu sofrimento heroico e o
sentimento de mal-estar moderna na cultura. Também Sísifo, apesar de Camus, pertence
a um mundo desaparecido. O que se encontra entre os antigos heróis do sofrimento e os
modernos é a Stoa e a psicanálise, as duas filosofias vitais da morna resignação que se
comprometeram com a inevitável dureza do mundo, chamada frustração moderno-
subjetivada. A Stoa recolheu os sofredores e diagnosticou um vago desânimo
permanente como a situação básica da vida social.

64 - SLOTERDIJK, Peter. A Mobilização Infinita: Para Uma Crítica da Cinética Política.


Tradução: Paulo Osório de Castro. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2002, p. 124.

65 - ______ . Regras para o Parque Humano: Uma Resposta à Carta de Heidegger Sobre o
Humanismo. São Paulo: Estação Liberdade, 2000, pp. 36-37.

______. Esferas III: Espumas (Esferología Plural). Traducción de Isidoro Reguera. Madrid:
Siruela, 2006, p. 50.

66 - MENESES, Nélia Maria Neto. Arquitetura (s) Nómada (s) – Paisagens Em Constante
Mutação. Prova Final de Licenciatura em Arquitectura. Universidade de Coimbra
Faculdade de Ciências e Tecnologias – Departamento de Arquitectura, 2007, pp. 62-63.
Disponível em: <https://estudogeral.uc.pt/handle/10316/3753?locale=en>. Acesso: 03
Jun. 2019.

67 - Para maior aprofundamento, indicaria o trabalho de SOUZA, Elaine Cristina Borges.


A Teria de Mundos-Próprios de Jakob Von Uexküll: Entre a Metafísica e o Naturalismo.
Editora: Novas Edições Acadêmicas, 2013. Ou a sua tese de mestrado que virou o livro de
535

mesmo nome que acabamos de mencionar. Disponível em:


<http://repositorio.ufes.br/bitstream/10/6273/1/Elaine%20Cristina%20Borges%20de%
20Souza.pdf>. Acesso: 18 mai. 2019.

68 - UEXKÜLL, Jacob von e KRISZAT, Georg. Streifzüge durch Umwelt von Tieren und
Mensch. Verlag: FISCHER Taschenbuch, 1983, pp. 85-87.

HAN, Byung-Chul. O Aroma do Tempo: Um Ensaio Filosófico Sobre a Arte da Demora.


Relógio D’Água Editores, p. 26. O tempo histórico não conhece um presente duradouro.
As coisas não persistem numa ordem inamovível. O tempo já não remete para trás, mas
impele para diante; já não repete, mas alcança. O passado e o presente ficam
descompensados. É a sua diferença, e não já a sua semelhança, o que faz com que o
tempo, entendido como mudança, processo, desenvolvimento, seja significativo. O
presente não tem qualquer substância em si. É só um ponto de transição. Nada é. Tudo
será. Tudo se transforma. A repetição do mesmo deixa lugar ao acontecimento. O
movimento e a mudança não geram desordem, mas uma nova ordem. A significação
temporal provém do futuro. Esta orientação para o futuro gera uma aspiração orientada
para adiante, que também pode devir em aceleração.

69 - JÚNIOR. Paulo Ghiraldelli. A Filosofia Como Crítica da Cultura. São Paulo: Cortez, 2014,
pp. 104-110. Ver o capítulo: 23 - Pascal, Machado e o eu na pós-modernidade e 24 – Jesus
inaugura a modernidade.

70 - Sloterdijk em uma pequena passagem diz que o nascimento do sujeito por si próprio
é a eterna agonia e representa, na qualidade de motor da história, a tentativa
simultaneamente grotesca e indispensável de tentar chegar a um mundo próprio pelas
suas próprias forças, o apoio sereno no primeiro nascimento leva à redescoberta do
inevitável. Pode ser que essa descoberta pressuponha a odisseia da subjetividade.

71 - Vale a pena conferir o poema de Carlos Drummond de Andrade chamado EU,


ETIQUETA Em minha calça está... Em minha calça está grudado um nome que não é meu
de batismo ou de cartório, um nome... estranho. Meu blusão traz lembrete de bebida
que jamais pus na boca, nesta vida. Em minha camiseta, a marca de cigarro que não fumo,
até hoje não fumei. Minhas meias falam de produto que nunca experimentei, mas são
comunicados a meus pés. Meu tênis é proclama colorido de alguma coisa não provada
por este provador de longa idade. Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro, minha gravata
e cinto e escova e pente, meu copo, minha xícara, minha toalha de banho e sabonete,
meu isso, meu aquilo, desde a cabeça ao bico dos sapatos, são mensagens, letras falantes,
gritos visuais, ordens de uso, abuso, reincidência, costume, hábito, premência,
indispensabilidade, e fazem de mim homem-anúncio itinerante, escravo da matéria
anunciada. Estou, estou na moda. É duro andar na moda, ainda que a moda seja negar
minha identidade, trocá-la por mil, açambarcando todas as marcas registradas, todos os
logotipos do mercado. Com que inocência demito-me de ser eu que antes era e me sabia
tão diverso de outros, tão mim mesmo, ser pensante, sentinte e solidário com outros
seres diversos e conscientes de sua humana, invencível condição. Agora sou anúncio, ora
vulgar ora bizarro, em língua nacional ou em qualquer língua (qualquer, principalmente).
E nisto me comparo, tiro glória de minha anulação. Não sou - vê lá - anúncio contratado.
536

Eu é que mimosamente pago para anunciar, para vender em bares festas praias pérgulas
piscinas, e bem à vista exibo esta etiqueta global no corpo que desiste de ser veste e
sandália de uma essência tão viva, independente, que moda ou suborno algum a
compromete. Onde terei jogado fora meu gosto e capacidade de escolher, minhas
idiossincrasias tão pessoais, tão minhas que no rosto se espelhavam e cada gesto, cada
olhar cada vinco da roupa sou gravado de forma universal, saio da estamparia, não de
casa, da vitrine me tiram, recolocam, objeto pulsante mas objeto que se oferece como
signo de outros objetos estáticos, tarifados. Por me ostentar assim, tão orgulhoso de ser
não eu, mas artigo industrial, peço que meu nome retifiquem. Já não me convém o título
de homem. Meu nome novo é coisa. Eu sou a coisa, coisamente. Disponível em:
<https://www.pensador.com/frase/MjAyODM0/>. Acesso: 25 Mai. 2019.

SLOTERDIJK, Peter. A Mobilização Infinita: Para Uma Crítica da Cinética Política. Tradução:
Paulo Osório de Castro. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2002, p. 129. Sujeito é tudo
aquilo que tenta tornar-se e ser o seu próprio mundo – como? Atendo-se a si próprio,
aos seus “princípios” e ao seu cuidado consigo próprio. A circunstância de ater-se a si
próprio mostra vários rostos: aparece como abstinência, como respeito pelas normas
escolhidas, como autonomia, como conservação e fundamentação de si próprio. Não
surpreende, doravante, que a história do sujeito fosse, desde o início, uma história de
atitudes – desde o estoicismo até ao existencialismo, desde os ardentes santos do
deserto até aos jovens habitantes pacatos das grandes cidades –; sempre o sujeito se nos
depara como um centro de esforços que se conserva a si próprio unido, como o princípio
ativo de uma atitude voltada contra o mundo exterior, inerte, informe, e degradante.
Quer o sujeito se mantenha, abstendo-se, como Eu ascético, de todas as influências
tentadoras, perturbantes e assustadoras; quer ele se erga contra o mundo incurável e
inconstante, apoiando-se na fé em Deus ou no divino; quer ele se constitua como Eu
autônomo, mantido por uma razão filosofante que, por sua vez, se define por cumprir ela
próprias as suas leis; quer ele tente afirmar-se como vencedor do cansaço da vida, para
se dar heroica e prodigamente de presente ao mundo; quer ele, melancolicamente
decidido a assumir-se a si próprio, se saiba posto de for no meio do nada; quer ele, com
uma alegria antiedipiana, cavalgue ondas na prancha de surf dos seus desejos; quer ele,
furiosamente soberano, se agarre ao estilo da sua maneira de escrever extravagante e
dispersa e observe pelo canto do olho como vai escapando a si próprio –, o sujeito está
sempre, através de esforços autonatais, a dar a si próprio firmeza numa atitude. Devido
à sua inevitável situação de malnascido, o sujeito está “espontaneamente” condenado
ao esforço de estabilizar, graças às suas promessas, o seu ponto de apoio num mundo
adotado até nova ordem.

72 - LEMMENS, Pieter e HUI, Yuk. Apocalypse, Now! Peter Sloterdijk and Bernard Stiegler
on the Anthropocene, 2017, p. 3. Disponível em:
<https://www.boundary2.org/2017/01/pieter-lemmens-and-yuk-hui-apocalypse-now-
peter-sloterdijk-and-bernard-stiegler-on-the-anthropocene/>. Acesso em: 05 Mar. 2019.

SLOTERDIJK, Peter. What Happened in the Twentieth Century?: Towards a Critique of


Extremist Reason. Translator: Christopher Turner. Polity Press, 2018, p. 20. Entendemos
nossa situação corretamente se concebermos o planeta e sua biosfera como uma
singularidade que não pode ser multiplicada e como algo que, em última análise, é fixo?
537

Devemos lembrar que não é mais apenas uma questão do dado cosmológico primordial,
a Terra, e o fenômeno evolucionário primordial, a vida. A tecnosfera, que por sua vez é
animada e moderada pela noosfera, foi adicionada aos nossos parâmetros básicos no
curso da evolução social. Em vista de ambos os parâmetros de crescimento, estamos
justificados em aplicar a afirmação de Spinoza de que ninguém determinou até agora o
poder do corpo (isto é, o corpo humano) para a Terra: ninguém até agora determinou o
poder da Terra como corpo terrestre. Ainda não sabemos quais desenvolvimentos serão
possíveis se a geosfera e a biosfera forem ainda desenvolvidas por uma tecnosfera e
noosfera inteligente. Não é impossível a priori que tais desenvolvimentos levarão a
efeitos que equivalem a uma multiplicação da Terra. A tecnologia ainda não falou sua
palavra final. Se é considerado, em grande parte, em termos de degradação ambiental e
biogeneratividade, isso mostra que, em alguns aspectos, está apenas começando. Algum
tempo atrás, sugeri a distinção entre heterotécnica e homeotécnica - com a primeira
falha na violação e na natureza, e a segunda baseada na natureza da imitação e na busca
de princípios naturais na produção em contexto artificial. Uma imagem completamente
diferente da interação entre meio ambiente e tecnologia surge com a conversação da
tecnosfera num padrão homeotecnológico e biomimético. Devemos aprender o que a
Terra, como corpo terrestre, é capaz do momento em que os seres humanos reorganizam
seu manuseio da exploração à coprodução. Se seguirmos o caminho da exploração pura,
a Terra permanecerá para sempre uma tecnologia finita, um planeta híbrido poderia
resultar em que mais seria possível do que os geólogos conservadores acreditam.

73 - HERNÁNDEZ, Luis Rubén. Ontología Negativa y Voluntad de Poder. Notas Sobre el


Perspectivismo en Nietzsche, sem data, pp. 7-8. Disponível em: <
https://www.academia.edu/8591495/Ontolog%C3%ADa_negativa_y_voluntad_de_pod
er._Notas_sobre_el_perspectivismo_en_Nietzsche>. Acesso: 21 Abr. 2019. O
perspectivismo implicaria, assim, a conscientização de que o conhecimento é uma
construção humana feita a partir de diferentes pontos de vista. Como é que um ser
humano adquire a capacidade de criar interpretações, isto é, impor certa lógica ao
mundo? Através do seu processo de socialização. O ser humano é uma condensação de
múltiplas influências, valores e perspectivas que lhe aderem ao longo da vida como
produto de sua interação com os outros. Nietzsche diz: "Talvez a suposição de um assunto
não seja necessária; pode ser lícito admitir uma pluralidade de sujeitos cuja jogo e cuja
luta são a base da nossa concepção e nossa consciência... Minha hipótese: o assunto
como pluralidade". A base da nossa concepção e nossa consciência, de modo seria um
produto de nossas experiências, experiências e relacionamentos, das ideias que os
humanos decidiram adotar e rejeitar ao longo de nossas vidas. Tudo isso é ao mesmo
tempo um produto e uma entrada do confronto entre as vontades do poder.

74 - SINGER, Paul. Curso de Introdução à Economia Política. 11ª Edição. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1987, pp. 11-25.

HOBSBAWM, Eric. Formações Econômicas Pré-Capitalistas. 4ª Edição. Rio de Janeiro:


Editora Paz e Terra, 1985, pp. 14-16.

SLOTERDIJK, Peter. The Anthropocene: A Process-State at The Edge of Geohistory?, 2015,


p. 334. In: DAVIS, Heather; TURPIN, Etienne (Ed.). Art in the Anthropocene – Encounters
538

Among Aesthetics, Politics, Environments and Epistemologies. London: Open Humanities


Press. Disponível em: <http://openhumanitiespress.org/books/download/Davis-
Turpin_2015_Art-in-the-Anthropocene.pdf>. Acesso em: 11 Abr. 2019.

______ . O Estranhamento do Mundo. Tradução: Ana Nolasco. Relógio D’Água Editores,


2008, pp. 219-220. O que chamamos a terra única significa a mônada geológica que foi
concebida pelos membros da espécie de início como mãe, terra-mãe, depois,
crescentemente, como túmulo, local de trabalho e palco e, por fim, como recurso e
biótipo. Hoje, apresenta-se aos olhos dos membros não-ébrios da espécie como uma
extensão considerável em imagem. É a portadora de uma complexidade ainda não
suscetível de ser pensada a fundo. Como a terra foi agora verdadeiramente descoberta
como a base única para todas as hordas, povos, nações e círculos culturais, pode-se ativar
mundialmente como um novo ciclo de inteligência que leve para lá dos clássicos regionais
e talvez até do diabólico pacto da inteligência com o capital mundializado. Neste ciclo
originam-se novos cruzamentos entre saber e velar, cruzamentos que correspondem ao
espírito de vigília global das ampliadas relações interracionais. Nos espaços de vigília
globalizados examinam-se e estabelecem-se as dimensões principais da inteligência
multi-racional – como nova política, como universidade, como nova antropologia. Em
todos os aspectos desta Scienza nuova da cidadania mundial se refletem facetas de uma
segunda educação que não só transplanta a criatura humana do quarto das crianças para
a capital, como também dali para o centro nervoso do processo de concentração global
[...]. Quem poderia não se dar conta de que o que faz a vida difícil à inteligência atual é
uma crise megalopática? A habitacionalidade dos hipercomplexos mundos vindouros não
está demonstrada, a dirigibilidade das evoluções políticas é pouco mais do que um desejo
piedoso. O que se desenha no horizonte? Um século das horas extraordinárias, da dúvida,
da fuga massiva. Mas não vale lamentar-se e é indecoroso baixar a cabeça. O deve de ser
feliz é mais válido do que nunca em tempos como os nossos. O verdadeiro realismo da
espécie consiste em não esperar menos da inteligência do que se exige dela.

______ . ¿Qué Sucedió en el Siglo XX?. Traducción: Isidoro Reguera. Ediciones Siruela,
2018a, p. 3-5. Deve ser atribuída a proliferação do conceito principalmente ao fato de
que, sob o disfarce de objetividade científica, transmite uma mensagem de urgência
político-moral quase intransponível, uma mensagem em linguagem mais explícita lê: o
Homem tornou-se responsável pela ocupação e administração da Terra em sua
totalidade, já que sua presença não é mais realizada à maneira de uma integração mais
ou menos sem pegadas. O conceito supostamente relevante do ponto de vista geológico,
"Antropoceno", contém um gesto que, em contextos jurídicos, se qualificaria como o
título de uma agência responsável. Com a atribuição de responsabilidade, é criado um
endereço para possíveis reclamações. E com isso temos hoje quando atribuímos "ao ser
humano" - sem acrescentar nenhum epíteto - a capacidade de autoria em dimensões
geo-históricas. Quando dizemos "Antropoceno", participamos de um seminário
geocientífico apenas na aparência. Na verdade, nós intervimos em um julgamento, mais
exatamente, em uma sessão pré-audiência de um caso, em que primeiro a possibilidade
de culpa do acusado deve ser esclarecida.

______ . What Happened in the Twentieth Century?: Towards a Critique of Extremist


Reason. Translator: Christopher Turner. Polity Press, 2018, p. 105. Na minha opinião,
539

devemos prosseguir ainda mais nesta direção hoje. A academia, sem dúvida, continuará
sendo o castelo assombrado que o fantasma de Derrida gosta de perambular. Não
devemos hesitar em pensar além dos limites das disciplinas acadêmicas, graças à sua
inspiração. A ampla crise global do nosso tempo deve levar os filósofos que permanecem
escondidos no seio das universidades a deixar o seu esconderijo para trás. Devemos
novamente tomar as ruas e praças, as páginas de littéraires e telas, escolas e festas
populares, se quisermos tornar nosso ofício, o mais meloso e melancólico ofício do
mundo, mais uma vez relevante. Quando o nosso ofício é bem praticado, ele é relevante,
mesmo na vida não acadêmica. Incontáveis pessoas se cansam e não perguntam com
tanta urgência o que elas vêm pedindo há muito tempo: o que exatamente é uma vida
boa, uma vida examinada? Se alguém acha que tem uma resposta, ou se alguém quer
fazer uma contra-pergunta, deve agora avançar e falar.

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