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ORELHA DO LIVRO
1ª EDIÇÃO
EDITORA:
ATRÁS
FICHA CATALOGRÁFICA
SUMÁRIO
Introdução 7
INTRODUÇÃO
que a riqueza acumulada não suma da noite para o dia, para que o Juízo Final da
economia moderna de 1929 não se faça novamente presente.
Obs.: Este livro poderia ser considerado uma continuação do que foi escrito em
“A Filosofia de Peter Sloterdijk” de 2018. Aqui algumas partes e novas abordagens e
teorias estão inseridas.
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1
SLOTERDIJK, Peter. Esferas III: Espumas (Esferología Plural). Traducción de Isidoro Reguera. Madrid:
Siruela, 2006, p. 529. Sloterdijk menciona que no transcurso do século XX foi mais difícil de manter como
supostos fundamentos fundamentais do conservadorismo clássico. Seja em seu caráter de constituição
como conservadorismo da miséria, em catolicismo da carência ou negação da riqueza. Na medida em que
a mensagem encoberta e onipresente da facilitação da vida se materializava nos ânimos das gerações
seguintes, uma interpretação de mundo tendo em vista o prejuízo da carência tomou uma posição pouco
plausível.
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mesmo). Se nas reflexões mais antigas como na estrutura da Odisseia homérica, havia
um herói que saia de sua casa, retornando tempos depois a mesma depois de passar por
maus bocados e atravessando o mundo, a fim de ser reconhecido por sua mulher, as
reflexões modernas não encontram mais nenhum “retornar”, já não há de maneira
alguma “terra natal”.
Dessa esfera provêm grandes poses da resistência individual em uma realidade
efetiva gritantemente desesperada. A Primeira Guerra Mundial ainda pode ser
considerada aqui como um evento histórico-metafísico, em certa medida, como o
comentário militar à sentença nietzschiana “Deus está morto”. O “eu” depois da guerra
é uma herança sem testamento e se acha quase irrevogavelmente condenado ao
cinismo. Uma vez mais, ele se lança em grandes posturas expressivas: autonomia estética
no esfalecimento; codestruição na destruição geral; caretas refletidas mesmo no
dilaceramento; congelamento de afetos, afirmação fria de relações que dizem não ao
nosso sonho de vida; a frieza do mundo superada pela frieza da arte. Colocam de maneira
desrespeitosa as suas poses contra o caráter fatídico do tempo, caráter esse tão
sobrepujante quanto ordinário. Um deixar-se levar cinicamente. “Estamos vivos, estamos
vivos” (1945). Talvez testemunhemos hoje as últimas gerações de adultos cuja imagem
de si próprios ainda está imbuída de motivos estoicos. Freud em Reflexões Para os
Tempos de Guerra e Morte (1915), recorreu a uma constante estoica para os pacientes o
século XX, quando em 1915, escreveu, fazendo referência à Primeira Guerra Mundial que
“Suportar a vida, permanece, contudo, o primeiro dever se todos os que estão vivos”.
Nietzsche já em seu tempo parecia ter percebido um certo cinismo na ciência.
Para ele, também a ciência do ponto de vista fisiológico possui um certo empobrecimento
da vida como pressuposto, as emoções tornadas frias, o ritmo tornado lento, a dialética
no lugar do instinto, a seriedade impressa nos rostos e nos gestos. A seriedade como
marca inconfundível do metabolismo mais trabalhoso, da vida que luta, daquilo que
funciona com mais dificuldade, a ciência moderna como a mais involuntária,
inconsciente, secreta e subterrânea. O saber e o poder são dois modos de acesso ao
“além de bem e mal” moderno. A partir do momento em que nossa consciência dá o
passo decisivo de entrada nesse “além”, apresenta-se inevitavelmente o cinismo.
O fascismo foi interpretado via Heidegger a partir de sua reflexão sobre
modernidade e tecnologia, o que hoje chamamos de “técnica”, e a emergência de
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Thomas Mann em A Montanha Mágica (1924) levou a termo a sua confrontação com o espírito do tempo
weimariano neocínico, não notado por muitos, que acreditavam que essas conversas nas alturas de Davos
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Revelou-se naqueles anos um risco existencial presente por toda parte: por
trás de toda sólida aparência, emerge o elemento inconsistente e caótico. Uma
reviravolta realizou-se naquelas regiões profundas, nas quais a ontologia do
cotidiano é projetada: um sentimento pesado de ausência de firmeza das
coisas penetrou nas almas, um sentimento de falta de substância, de
relatividade, de mudança acelerada e de flutuação involuntária de transição
em transição. Essa volatização do sentimento para o confiável desemboca em
uma fúria angustiada coletivamente difundida contra a modernidade. Pois
modernidade é a suma conceitual de relações, nas quais tudo só aparece
justamente “de maneira relativa” e aponta sempre para a mudança. A partir
dessa fúria angustiada forma-se facilmente uma prontidão para se deslocar
deste estado desconfortável do mundo e para transformar o ódio contra ele
em um sim aos movimentos sociopolíticos e ideológicos, que prometem a
maior simplificação e o retorno energético a relações “substanciais” e
confiáveis. Vem ao nosso encontro aqui o problema da ideologia a partir de
um aspecto psicoeconômico. Em uma boa parte, o fascismo e suas correntes
paralelas, eram ditos em termos filosóficos, movimentos de simplificação. Mas
não seriam outra coisa que senão sagacidades derradeiras da burguesia cultural sem qualquer tipo de
vínculo social. Thomas Mann debateu-se na tarefa de apreender o espírito da adaptação, da colaboração
e da afirmação, que caíra nessa década nas águas do cinismo, apresentando o que seria um
“posicionamento positivo”, que não eram baseados em afirmações de uma realidade ou de dados
mortalmente objetivos. Da A Montanha Mágica emerge, talvez pela última vez, imagens de uma
humanidade que permanece na engenhosa sem se tornar cínica. Uma humanidade que não pode mais
existir na planície. As alturas de Davos correspondem à uma zona psíquica onde todo o drama de seu livro
acontece. Nele, um humorista tenta novamente subir a um ponto mais elevado do que as altas elevações
do cinismo. Aqui há uma tradição mais antiga de ironia-humorística que luta com a ironia moderna de “opa,
estamos vivos”. O caráter moderno de “lançado” e com o deixar-se impelir cínico, o herói da história se
entrega à sua aventura na montanha e se deixa arrastar pela corrente do tempo nas altas altitudes. Porém,
o que temos aqui não é uma engrenagem completamente solta, mas um pressentimento de uma formação
superior, uma esfera luminosa de um si-mesmo mais elevado, de uma humanidade e de uma afirmação da
vida diante do realismo e da regressão e da morte. A risada se autonomiza e não pertence mais àquele que
ri. Uma risada que não temos mais responsabilidade e compromisso. Algo ri em nós, quando tomados uma
consciência, que alcança um caráter mais profundo em nós do que pode perceber o nosso eu civilizado. É
assim que nosso herói Hans Castorp ri, um riso intenso, incontrolável, uma careta levemente dolorosa por
causa do vento frio. Um riso que vem quando seu primo conta como os cadáveres no inverno são
transportados para a planície. Ele diz: “em um tobogã”. Continua ele dizendo: “E tu me contas isto com
toda a tranquilidade de espírito?” Então, vem a resposta: “Tu te tornaste completamente cínico nestes
cinco meses!”. Creio que um cidadão chamado Caio Copolla também poderia ser inserido aqui. Um
sorrisinho dente de cavalo e o bloquinho de anotações. Um sorriso que virou uma careta. Ri a todo
momento sem motivo algum. Thomas Macho fala do Homem que ri de Vitor Hugo, contando as diversas
histórias produzidas pela literatura e pelo cinema a partir desse clássico. No campo popular, lembra o filme
Batman, o cavaleiro das trevas, em que Heath Ledger interpreta o Coringa. Ora, o que é esse vilão senão
aquele que foi posto por sorrir na base da faca? Sempre estará sorrindo! Nas situações mais dramáticas,
perigosas e difíceis ele terá de sorrir, querendo ou não. Mesmo diante da morte ele sorri. Não há como
evitar o que diz um rosto feito à mão – a mão de máquina! Então, o melhor que se há de fazer é jogar, é
participar do mundo achando graça no que não tem graça exatamente porque o rosto estará afirmando
isso. Seria tolo tentar contrariar o rosto. Seria uma tarefa árdua e fadada ao insucesso. Não podemos ser
menos ou mais do que é nosso rosto, a máscara que é o rosto, a “organização forte”. Não é isso que os
personagens de Nicolas Cage e John Travolta descobrem, quando seus rostos são trocados, no célebre
filme de John Woo? Eles logo percebem que podem agir muito bem tendo um rosto que parecia não ser
senão o seu simétrico e odiado outro.
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o honorário protegeria toda a penúria dos aleijados de guerra. A “existência triste” não
aguardariam estes, desde que eles conseguissem encontrar o caminho de volta para o
trabalho. O trabalho foi o fato fundamental de toda a modernidade. Ócio é de todo vício
o início. A mão no trabalho não era algo desconsiderado nem para os que lutaram na
guerra. Em alguns jornais haviam páginas de exaltação onde se falava que aqueles que
perderam membros, não o perderam sob o machado do carrasco, mas na luta sagrada. A
maioria dos homens veem um veterano de guerra como um monumento vivo. Conquistar
a autonomia seria uma lei, a meta do homem de um braço só. O que nunca deixar que os
outros o ajudassem para aqueles que tinham um braço só haveria uma vantagem, pois
aquele de um braço só consegue tornar para si mesmo, ele perde o medo da perda
insuperável. As próteses medicinais e a mentalidade com elas oferecida do robô robusto
não trazem à luz senão um padrão de pensamento universalmente difundido. A guerra
soltou a língua do cinismo latente dominante, medicinal e militar. Sob sua influência, os
aparatos militares e os aparatos de produção confessaram sua reivindicação de consumir
a vida dos indivíduos a seu serviço. O corpo humano na sociedade do trabalho e da luta
já mostrava há muito tempo como prótese, antes de se ter precisado substituir partes
faltantes por partes técnicas funcionais. Nos anos de Weimar, a técnica aproximou-se
provocativamente do antigo humanismo. Nessa época, a associação conceitual “o
homem e a técnica” transformou-se em uma ligação compulsiva, que abrangia desde os
cumes da filosofia burguesa até os bancos de escola. O esquema de pensamento diz: a
técnica assume o controle, ela ameaça degradar o homem, ela quer nos transformar em
robôs. Se mantivermos nossa alma em marcha, nada nos acontecerá. Pois, a técnica está
presente em última instância para o homem – e não o homem para a técnica. Como
elemento especificamente fascista não resta nada em termos de conteúdo. A ideologia
do fitness é hoje, desnazificada, tão aguda quanto outrora, enquanto a ética do ser, agora
como antes, é colocada contra a ética do ter. A vida prática não tem melhor sorte que
não no livro de Hannah Arendt chamado de Vida Activa.3 Curiosamente, nas últimas
páginas de seu livro, Hannah Arendt acaba por fazer uma saudação à vida contemplativa.
Ela continua sem perceber que precisamente a perda da capacidade contemplativa é
responsável pela degradação do homem em animal trabalhador. Não é natural esta
3
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 12ª Edição. Tradução: Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2015, pp. 9-26.
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Hitler tem uma antropologia da luta, em caráter duplo de uma invenção técnica
e de uma dissimulação subjetiva. Hitler queria que se elevasse o inventor como o
indivíduo excepcional, um tipo de biologismo de mais apto para a vida, e por isso mesmo,
aristocrático. Uma teoria da elite para funções antropológicas e psicológicas. Diz “a
natureza é cruel, nós também podemos ser”. A referência de uma política de amizade foi
contestada por militares com argumentos darwinistas de que não teríamos que lutar,
lutar e lutar porque o mundo mesmo nos mostra sob o signo da guerra. Ser “elite”
significava pertencer àqueles que descobrem ou inventam “fintas e artimanhas”. Uma
visão típica do cinismo e da vigarice. A crítica da razão cínica traz uma visão panorâmica
sobre o Esclarecimento e as condições internas desse movimento, repetindo o trabalho
irônico junto ao supergo. Trabalho este que teve que ser predominado por subjetividades
estratégicas em sociedades de classes e sociedades militares. As duas grandes leituras a
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The Skat Players por Otto Dix. Um tipo de arte chamado bricolagem
grotesco. (1920). Três soldados lutam com um jogo de cartas apesar de seus
absurdos acréscimos robóticos. Uma linha para ver as cartas dele se
sustentam entre os dedos dos pés, enquanto outra sem membros tem uma
carta na boca. Suas pernas de madeira se misturam com as da mesa e
cadeiras, tornando-as difíceis de distinguir da mobília.
Pela primeira vez, têm um monumento nacional mítico. Algo como a Jerusalém dos
cristãos na Idade Média. O lugar onde o túmulo de Cristo estava localizado. Pela primeira
vez, os americanos têm essa Terra Santa em território americano. Para fazer uma
cruzada, é necessário possuir uma Terra Santa. O terrorismo é uma forma de cultura de
entretenimento. Terroristas são artistas armados, que interpretam nosso sistema de
mídia. A única coisa que pode ser feita contra o terrorismo é ignorá-lo. Pensemos o por
que não podemos ignorá-lo? A resposta é porque o sistema de mídia é cúmplice do
terrorismo. O sistema de mídia suporta o fascínio pelo terrorismo. Isso remonta à magia,
e a atração que foi falada no Renascimento, o "encantar" e "desencantar" (zaubern e ent-
zaubern, em alemão). Eles já levantaram isso então. Mas o sistema de mídia não quer um
lançamento. Organiza competições de fascinação. A mídia chama a polícia e, nessa
medida, eles recompensam os terroristas. A alma não distingue dinheiro, ou capital. O
meio de pagamento da alma é a atenção. O terror pressupõe o poder comunicativo do
meio vital atacado e, portanto, invariavelmente balbucia no teclado de seus próprios
medos. É por isso que o terror e a sociedade da mídia coexistem, e mesmo isso seria
impensável sem ela. Por mais terríveis que sejam as ações terroristas específicas, elas
permanecem limitadas ao leque de operações específicas. Do ponto de vista quantitativo,
seriam quase insignificantes, se não fossem traduzidos para a língua da parte atacada, e
não tivessem o efeito ali, ampliado dez mil vezes. É por isso que você nunca pode
superestimar a relação íntima entre o terror e os meios de comunicação modernos. Como
os meios de comunicação de massa sempre cumpriram sua função primordial como
instrumentos de auto-irritação, de auto-histerização de sociedades estruturalmente
sobre mediadas, as notícias do terror tornam-se ervas daninhas ideais dentro do sistema
de notícias diárias e relatos de último momento. Eles não demoraram para desencadear
uma espécie de guerra involuntária da mídia contra a própria população, um fenômeno
que se desenvolveu totalmente pela primeira vez entre 1914 e 1918. Na comunicação
sobre o terror, os meios de comunicação modernos despertam sua verdadeira essência.
As intuições de Karl Kraus sobre isso são tão atuais quanto eram quando ele publicou
fragmentos de The Last Days of Mankind nos jornais. A mídia de massa nunca assume seu
próprio caráter de maneira mais completa do que quando informa sobre o medo que
brilha com o seu próprio atividade informativa.
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“Lamento muito, meu senhor, os narizes puramente arianos já foram todos vendidos”.
Simplicissimus, 26 de fevereiro de 1933. Olaf Gulbransson.
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tão famoso A Decadência do Ocidente (1918), também diz que este século, o século XX,
é o século dos gigantescos exércitos parados e do serviço militar obrigatório universal.
Fala que milhares de homens estão prontos para a marcha, poderosas frotas. Trata-se de
uma guerra sem guerra, de uma guerra o sobrepujamento com equipamentos e
prontidão, uma guerra de número, do ritmo da técnica. Realiza-se a entrada na época
das lutas gigantescas, na qual todos nós nos encontramos hoje. Trata-se da passagem do
napoleonismo para o cesarismo, um estágio geral de desenvolvimento de abrangência
no mínimo de dois séculos, que podem ser comprovados em todas as culturas. No estilo
de Spengler vemos o ápice de uma botânica política que de maneira mais radical que
Ernst Jünger, junta a visão de um pesquisador de plantas com a visão de um político, do
historiador e de um estrategista em uma unidade de sadomasoquismo. Chega a dizer:
“...culturas, seres vivos do nível mais elevado, crescem em uma ausência de metas
sublimes como as flores no campo...”. “Mas o que é política? A arte do possível; esta é
uma afirmação antiga, e, com ela, praticamente tudo está dito... O grande político é o
jardineiro do povo”. O político, tal como foi Napoleão, é um “homem de ação”. Diz: “O
homem de ação nunca chega a empreender uma política de risco... Ele tem
constantemente nos lábios a questão de Pilatos – verdades – o político nato está para
além do verdadeiro e falso”. Spengler teria podido simplesmente saber que justo os
alemães não produziriam um César, mas apenas um ator doente e chorão, que na melhor
das hipóteses se tornaria, diante das massas, um mero cesariano suicida.
O axioma da ordem imunológica individualista ganhou aceitação em populações
de indivíduos egocêntricos, como uma nova percepção vital. Que em última instância,
nenhuma tarefa faria por eles o que eles não fazem por si mesmos. As novas técnicas de
imunidade; em seu centro institucional, seguros privados e fundos de pensão, e em sua
periferia, dietética e biotecnologia, se apresentaram como estratégias existenciais para
"sociedades" de indivíduos em que o longo caminho da flexibilização, o enfraquecimento
das "relações objetais" e a autorização geral de relações inter-humanas infiéis ou
reversíveis infiéis levaram ao "objetivo", ao que Spengler corretamente profetizou como
o estágio final de toda cultura: o estado no qual é impossível determinar se os indivíduos
são diligentes ou decadentes, mas diligentes em que relação e decadentes em relação a
que altura? Mas se se fala de declínio ou decadência, quando nós, do Ocidente, tivemos
um apogeu? Um ápice? Devemos relembrar que todas as sociedades se aclimatam a si
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individualista da cultura burguesa se rasgou. Na Guerra Civil Americana dos dois lados,
um número significativo de soldados eram “homens normais”, a maioria deles eram
letrados, e não estavam em um exército propriamente dito nos campos de batalha. Nos
tempos antigos, Atenas, Esparta ou nas sociedades medievais não há convocação, todo
cidadão já é em si, e por si só guerreiro. O normal era o cidadão-soldado. A paz e a guerra
eram um fluxo tão presente que não se conseguia criar um grupo de pessoas que não
fossem soldados. A sociedade moderna já seria que estanca ou secundariza (setorializa)
a guerra de modo que a 1ª Guerra Mundial e a 2ª Guerra Mundial são feitas como
acidentes de percurso de “sociedades de mercado”. O século XIX é estruturalmente um
século que do ponto de vista psicológico parecia feito para se fazer "homens loucos"
jovens, porque ao alcançarem a maioridade deveriam estar dispostos a morrer pela
pátria, já os pais lhes diziam que uma larga vida seria preparada, uma contradição
esquizofrênica de discurso. É por isso, que no século XIX existem tantas biografias
irregulares, os filhos de boas famílias preferiam seguir uma carreira de artistas do que
uma de advogado, surgiu uma grande tentação por meio das drogas e boemias, o que no
século XIX aumentou em grandes proporções, basta vermos os chamados "burgos" e as
casas de ópio frequentemente frequentado por burgueses, industriais e capitalistas. Isso
nos lembra uma expressão de Bataille sobre Hegel “encontrou salvação durante a sua
vida; tudo o que resta dele é um pau de vassoura”. Era uma expressão de um se tratava
de um pensador poderoso e um frágil ser vivo. É esse o diagnóstico padrão de um vitalista
sobre um lógico. Na frase se Bataille ecoam discursos de Zaratustra sobre os últimos
homens. Na voz do profeta, Nietzsche fez dizer que os valores supremos do velho
continente produziram não mais do que um híbrido de plantas e espectros. Um
argumento vitalista em sua pureza. O próprio Nietzsche, chegou a dizer "Oh, quem nos
contará toda a história dos narcóticos! – É quase a história da “cultura”, da chamada
cultura superior” (A Gaia Ciência, § 86). Uma frase que só veríamos no século XIX, assim
como a frase chama do Ecce Homo de que "não sou um homem, sou uma dinamite". Algo
que somente pode ser escrita na Suíça de tão raro que ele era, mas também porque a
Suíça era um campo de jogo do terrorismo individual, e na Suíça foi o Estado em que se
utilizou a dinamite pela primeira vez usada para fins civis na construção do túnel de Saint-
Gothard (São Gotardo), uma das maravilhas do século XIX. O túnel comprova que os seres
humanos não só podem atravessar montanhas, mas também como as perfurá-las, e
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ninguém perfura tão bem como os suíços. Não é de se espantar que já em Genealogia da
Moral, Nietzsche considere o “mais perigoso dos explosivos” o ressentimento que é
continuamente acumulado. No século XX, a liberdade de explosão significaria liberdade
de dispêndio de energia. Podemos nos perguntar se a tal chamada “vontade de potência”
de Nietzsche não estaria já no sentido de propor indiretamente uma filosofia do motor
de combustão? A tradução em termos metafísicos da transformação da cultura do carvão
em cultura de gasolina e substâncias explosivas, ou seja, transformação da combustão
em explosão. Uma linguagem semelhante fora vista no jovem Balzac perto de 1830, que
faz escrever a um dos heróis do seu romance uma “teoria da vontade”, ele compara a
vontade humana à energia que advém da máquina a vapor e, depois, à energia do fogo
de um canhão. Seria interpretada em nosso contexto, como uma escalada metafórica na
história da técnica, mas também da história da liberdade. Não vimos por muitos séculos
a liberdade ser clamada por canhões e guerras? Não vemos na cerimônia de posse do
Presidente da República do Brasil com seus canhões e cerimoniais nos Estados Unidos,
shows e desportos com um cerimonial onde jatos passam por cima dos indivíduos?
Sloterdijk diz que as palavras tinham ecos helvéticos, uma vez que a Suíça foi a
primeira a invadir uma passagem pelos Alpes para escavar novas passagens para a Grécia.
Diz ele que essa é a questão metafísica para todos esses povos do norte. Como podemos
reconquistar um acesso mais fácil à verdade mediterrânea, a grande essência dos
sonhos? No entanto, Nietzsche tinha seu próprio acesso aos gregos: tinha a dinamite
dentro dele. Em particular, ele foi o primeiro a perguntar que significado Dionísio poderia
ter para nós. O trabalho da vida inteira de Nietzsche foi um esforço para descobrir o
significado do deus não-olímpico que é “algo que está por vir e algo já presente”.
Nietzsche procurou descobrir como o desmembramento de Dionísio e seu sofrimento
recria o mundo e cria uma nova forma de síntese social possível. Nietzsche estava certo,
até certo ponto, quando diz que “minha alma deveria ter sido uma cantora e não uma
escritora”. O que ele fez em seus últimos dias foi exatamente isso. É por isso que
Nietzsche mais tarde se tornou, especialmente em Zaratustra, o cantor de uma metafísica
do meio-dia. Sloterdijk chama essa passagem de uma resposta europeia à iluminação de
Buda sob a árvore bodhi. Ele descreve o mensageiro como uma pessoa que dorme na
grama debaixo de uma árvore e amarrado à vida apenas com um fio muito fino. Você não
deve se mover. Dionísio está lá. Nem mesmo respire. O mundo se tornou perfeito. Ele
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está olhando para os momentos em que ele foi capaz de suportar o fardo de sua situação
divina. Nietzsche estava entre os raros pensadores que tinham a sensação de que existe
uma profunda conexão entre filosofia moral e relações públicas. Isso pode ser mostrado
no subtítulo de Zaratustra: Um livro para todos e ninguém. Ein buch für alle e keinen. É
uma marca do gênio de Nietzsche. Ele estava agindo como uma espécie de "professor de
ação", e descobriu uma moralidade maior ao escrever um livro para todos e ninguém, um
caminho entre o animal e o super-homem. Nietzsche compara isso a um andarilho de
corda. Ele vê o ropewalker. Ele caiu. Ele diz que, fora de perigo, você fez sua profissão.
Não há nada de desprezível nisso. E por essa razão vou enterrá-lo com minhas próprias
mãos. Não é o sucesso que decide tudo, é a vontade de permanecer dentro do
movimento e andar na corda.
Em Ira e Tempo uma tese básica de Sloterdijk é a de a política é a arte de
administrar a ira na história, onde se destaca a doutrina católica e o Comunismo como os
dois órgãos mais poderosos para o ajuntamento ou de colecionamento metafísica e
política da ira na civilização ocidental. Sloterdijk destaca o fomento da vingança como
uma construção da esquerda no século XX. Não é de se espantar que o livro de cabeceira
de Fidel Castro era o Conde de Monte Cristo (1844). O símbolo central da vingança. O
próprio Lênin também dizia “é com o próprio ódio do proletariado que nós construímos
o socialismo”. Entre outros casos, temos os julgamentos de Che Guevara. Pegar pessoas
e dizer que elas são criminosas, única e simplesmente, por serem burguesas. Eles eram
os opressores e deviam ser executados. Marx diria exatamente o contrário. É com a
capacidade de entender o capitalismo que se constrói uma saída dele. Nisso, Marx
trabalha com uma visão pós-liberal do capitalismo, mencionando até mesmo, a chamada
“missão civilizatória do capital. Uma crítica do capitalismo e não uma desgraça de fazer
uma observação vingativa e personalizada contra o rico. É por isso que ele fala com tons
preocupantes sobre o “comunismo de inveja” nos manuscritos econômicos filosóficos de
1844. Tem o intuito de eliminar o comunista que não é comunista. Aquele comunista que
vê uma casa, mas a vê como uma coisa que é de alguém, e não como casa que pode ser
usada para o benefício comum e de outros, ele quer apenas que o rico ou o burguês saia
dali. Ele quer a expropriação pela expropriação, como forme de empobrecimento, de
punição, isto não é socialismo, e sim, fascismo. Quando Marx fala da socialização dos
meios de produção, é uma forma de tornar esses meios para todos, de uma forma que
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você não tenha burgueses e proletários, mas que se tenha de volta o homem, estamos
falando de uma utopia. Uma sociedade com o fim do mercado, e no limite, o fim do
próprio Estado. Esse mesmo “modo de ser” foi visto no Nazismo, uma prática de direita.
Com a ideia de que o rico é o banqueiro (o judeu), os banqueiros sugam a Alemanha,
devemos pegar eles e tirá-los do capitalismo nacional (suas propriedades, sua cultura,
sua religião, seus meios de existência, sua liberdade) para passar para nós – o povo. Mas
que povo? Os membros do partido.
O cinismo militar pode vir à tona no momento em que o desenvolvimento
psicológico de guerra das três características bélicas masculinas em uma sociedade tiver
conquistado contornos claros: neste momento, então, distinguem-se os tipos do herói,
do hesitante e do covarde. Institui-se uma clara hierarquia de valores, em cujo pico se
encontra o herói: todos no fundo devem ser como ele. O heroísmo é internalizado como
estrela guia dos homens de uma civilização beligerante. Com isso, porém, se torna
necessário um novo adestramento psicossocial do homem, com a meta de alcançar uma
divisão dos temperamentos militares, não encontrável dessa forma na natureza. A
covardia como matéria bruta presente maciçamente e em todos precisa ser reelaborada
em um heroísmo ávido por batalhas ou ao menos em uma hesitação corajosamente
pronta para a luta. É nessa alquimia antinatural que trabalham todas as educações de
soldados na história do mundo das civilizações guerreiras. A família nobre realiza nesse
caso a sua contribuição tanto quanto a família de agricultores armados, e, mais tarde,
tanto quanto as cortes, instituições de cadetes, casernas e moral públicas. O heroico foi
e continuou sendo, em parte até os dias de hoje, um fator cultural dominante. O culto ao
guerreiro agressivo atravessa vitorioso toda a história de tradições escritas e, onde
começamos a encontrar algo escrito, há uma grande probabilidade de que nos
deparemos com a história de um herói, de um guerreiro que passou por muitas
aventuras. Onde termina o escrito, a narrativa de heróis ainda prossegue infinitamente
até as origens orais mais obscuras. Dois representantes poderiam ser Sancho, um
pequeno camponês astuto sabe que tem um direito à covardia, assim como o seu pobre
e nobre senhor Dom Quixote, possui o dever do heroísmo. Mas quem considera o
heroísmo de seu senhor com os olhos de Sancho Pança, vê inevitavelmente o desvario e
a cegueira característicos da consciência heroica. Essa impertinente declaração militar
fornecida por Cervantes nos leva a reconhecer que o antigo prazer da luta teria se
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Hobbes – O Leviatã.
Aquilo que se está disposto a fazer com o inimigo em caso de necessidade é que
o estabelece de antemão o critério de medida para os instrumentos de aniquilação que
são retirados da natureza. Aquilo que se imaginou para o inimigo: aniquilação de grandes
superfícies por meio da queima, da contaminação e da atomização, precisa ser
anteriormente adicionada à arma. No início do século XIX teríamos ataques aéreos com
cloro, utilização de câmaras de gás para mortes (direito penal), extermínio em massa,
misseis inteligentes, robôs, etc. No fundo, a arma é apenas nossa mensageira para o
adversário, ela comunica nossas intenções com ele. Por isto, armas são os representantes
do inimigo em nosso próprio arsenal. Quem forja uma arma deixa claro para o seu inimigo
que será tão impiedoso em relação a ele quanto em relação ao porrete, ao bloco de ferro,
à granada e ao explosivo. A arma já é o adversário maltratado. Ela é a coisa-para-ti. Quem
se arma já está sempre em guerra. Essa guerra realiza-se de fato continuamente em
intervalos entre fases quentes e frias, sendo que se denomina erroneamente essas fases
frias como paz. Paz, significa, visto no ciclo polêmico, tempo de armamento, isto é,
adiamento das hostilidades com vistas aos metais. Guerra, por conseguinte, significa
entrada em ação e consumo dos produtos do armamento, realização das armas junto ao
adversário. No nível mais elevado da tecnologia moderna, nosso processo de
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Sem dúvida, nos excessos de diversão dos teatros romanos estão as origens da
cultura de massa: com eles surgiu uma forma precoce e completa de indústria
de fascinação, que atrai com feitiços e procura emoções a sociedades irritadas
ou decadentes. O antigo fascismo do divertimento (cujo último derivado direto
é a corrida de touros espanhola) antecipa funcionalmente numerosas
características da moderna direção de massas por meios emocionais. Agora
como então, a cultura de massas organiza o impulso para olhar: seu elemento
é a síntese social por meio da fascinação da violência. De fato, quem havia
podido mostrar aos espectadores enfurecidos, no momento álgido dos jogos,
outro objeto que havia sido suficientemente forte como para fazer que os
olhos se afastassem do espetáculo da decisão fundamental? Em vão
polemizaram intelectuais humanistas e depois autores cristãos contra os jogos
intoxicantes, fatalizantes e endurecedores. A razão fundamental do anátema
cristão contra a curiositas escravizante, centrífuga, devoradora de almas é a
luta contra esse passatempo a dos espetáculos de morte que supõe os jogos
romanos. Durante setecentos anos foi esse teatro das fascinações o que
transmitiu aos contemporâneos a instrução romana: mata hoje, morre mais
tarde, e obriga a massa a contemplar todo ele.
mas nunca descritiva. Ela é avaliativa e definitiva. Muita gente diz que isso é “lacração”
(lacra mesmo, acurrala), mas com o objetivo de nos deixar sem pensar, porque uma hora
ela pega e peca pelo exagero, é aí que ela não tem mais volta. Todos desconfiam dela e
acaba se quebrando. Grande parte dos vídeos do agora deputado Federal Kim Kataguiri
são feitos com o seguinte título: “Kim humilha professor”, “Kim acaba com deputada do
PT”, “Kim destrói estudante”, “Kim dá aula de história para MST”, “Kim Kataguiri
responde vovô doidão.4 Kim é um parlamentar que na internet derrota a todos, mas por
ser um parlamentar não derrota ninguém. Sua função é debate para derrotar como
caricatura e exagero. Quando aparecer um vídeo sério sem esse tipo de manchete ele
desmonta todos os outros. Quando Kim perceber que é um homem que é parlamentar e
que precisa crescer e ter cabelos brancos a “brincadeira” vai acabar. Na sua tentativa de
fazer um vídeo descritivo põe abaixo todos os outros. Os seus vídeos vão ser
desmoralizados antes, porque as pessoas acabam se cansando por descansar. Alguns
podem dizer: “agora está demais”, “toda vez isso”, “já enjoei”, “quero alguma coisa a
mais”. Por isso que hoje em dia um “ídolo” aparece a cada mês e eles vão sendo trocados
um por outro. Se está pedindo um “alimento novo”. Vários vídeos são feitos assim, mas
o vídeo completo ou “real” acaba ficando escondido, o que nos leva a crer que há toda
uma equipe por trás das edições (até pela rapidez do upload do mesmo) que reproduzem
sem outros canais com a polarização de manchetes que não justificam os vídeos. É
sempre uma “autoridade” de direita desqualificada que “humilha”, “derrota”, “cala a
boca” de uma outra em outro espectro (geralmente mais qualificada). Para pessoas
atentas ou com cérebros “menos programados” com o tempo percebem isso, passando
a quererem sair do descanso e do cansaço de se estar descansando. Uma fragmentação
como continuidade falsa que nos anos 60 era uma “ideologia da técnica”. Quando se dizia
que a técnica não era neutra nesses anos por criar uma educação onde os indivíduos não
acompanham mais raciocínios. Habermas na década de 70 já fazia textos no sentido de
falar da não neutralidade da própria técnica. Como que as câmeras, os vídeos, a televisão
não no seu conteúdo, mas no seu aparato tecnológico ele não é neutro. Ele traz o que o
McLuhan dizia: “o meio é a mensagem”.
4
Assistir ao vídeo: <https://www.youtube.com/watch?v=Iov_mVIO7jI>, <
https://www.youtube.com/watch?v=FERKOpCQxFo> ou <
https://www.youtube.com/watch?v=IOL9zZIa72Y>. Acesso: 23 Fev. 2019.
43
como particular ele sobrevive, mas onde o universal se totaliza e se fecha como universal
não admitindo mais os particulares há a criação dos expurgos e patrulhas ideológicas. A
neurose, a paranoia que se espalha até chegar ao próprio chefe que originou isso (como
central), ele se mata se olhando no espelho porque ele não é mais o chefe puro, o de
direita puro, tem que ser de extrema-direita, mas se algum dia ele sonhar ou fraquejar
um pouquinho com o mercado livre, abertura comercial, isso já soa muito liberal. Ele se
olha no espelho e fala: “eu também já não sou mais direita pura”, muitos desses casos
tiros são dados. Em termos religiosos, a paranoia é a hora que o demônio domina você.
A pureza foi perdida. Se põe em prática uma decantação para se chegar em uma pureza.
No âmbito político funciona da mesma forma. Começa o processo de autofagia interna
do grupo (um vai comendo o outro), do partido até chegar em si mesmo. Muita gente
que vive nesse campo, as vezes morrem (assassinadas pelo chefe) pronunciando o nome
do chefe, pois acreditam que é uma conspiração ali dentro de que vai acabar pegando o
chefe, e o chefe pensa que são elas que estão sendo assassinadas que estão fazendo a
conspiração. Em 1964 chegou-se ao ponto em que os militares fizeram implantação de
bombas para acusar os comunistas. Todos sabem que o general Frota tentou dar um
golpe dentro do golpe, isso após 68 ter sido um golpe diante do golpe. Anísio Teixeira foi
encontrado morto no poço de um elevador. No ano significativo de 1971. Anísio nunca
foi comunista, era um liberal deweyano que foi presidente do INEP, aliás, o primeiro. O
atentado do Riocentro é o nome pelo qual ficou conhecido um frustrado ataque a bomba
ao Centro de Convenções do Riocentro, no Rio de Janeiro, na noite de 30 de abril de 1981,
quando ali se realizava um espetáculo comemorativo do Dia do Trabalhador, durante o
período da ditadura militar no Brasil. Do lado das esquerdas não é muito diferente, a ideia
de “unificação da esquerda” para um pensamento totalizador-totalitário, que de certa
forma, foi um dos erros da atual esquerda. Querer trazer todo mundo para dentro,
formando uma coalizão, o que se viu foi corrupção, crimes, favorecimentos, etc. Uma
busca de universalidade quando cabe particularidades-singularidades.
A luta entre Stálin e Trotski foi muito isso. Uma paranoia dos dois lados. Uma lei
própria à lógica da luta, na qual os adversários se assimilam mutuamente ao longo dos
conflitos. Isso ocorreu em entre o conflito dos comunistas russos e o despotismo czarista.
O que ocorreu entre 1917 e o XX º Congresso do Partido da Rússia precisa ser visto como
uma herança cínico-irônico do czarismo. Tente imaginar Lenin como um imigrante
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frustrado que sentou de 1903 até 1917 na Europa Oriental (Munique e Zurique). Ele
baseou-se o tempo todo na Europa, e o seu estômago, lendo Marx e Hegel sem estudar
a Revolução Francesa ou qualquer outra revolução que teve nesse período que logrou
êxito. Não é de se espantar que ele tenha recebido uma educação em drama político.
Como político, ele foi um dramático autodidata onde viu a Revolução Francesa composta
como uma peça de três a cinco atos. Para ele, a Revolução de 14 de julho foi apenas um
ridículo episódio. Todos os radicais ridicularizaram a revolução de 1789, aquilo foi apenas
a burguesia e os ricos. Mas onde estavam as pessoas? Ele queria que as pessoas fossem
o sujeito da revolução e não apenas uma classe dominante. Eles sempre lutaram contra
a nova retórica da burguesia que advogava “nós somos o povo”. A terceira classe tinha
dito “nós somos o povo”. Os radicais, os jacobinos disseram que as pessoas até agora não
reconheceriam uma quarta classe. Não a terceira. Na política é preciso contar não para
três, mas quatro. Essa é a lição básica dos radicais de esquerda entre os períodos de 1800
e grande parte do século XIX. Eles eram pessoas que poderiam contar até quatro, e essas
eram as pessoas que se sentiram obrigadas a ir além das pretensões da revolução
burguesa. Essa fixação que Lenin professava foi de 1793, porque então dentro da
Revolução Francesa, os jacobinos populistas de partido agarraram o poder e eles
empunharam o reino da virtude. A virtude como se sabe é um instrumento bastante
afiado com uma lâmina chanfrada que corta cabeças tão castas em décimos de segundo.
Na França 17.000 mil decapitações aconteceram com uma engenhosa máquina, onde
Lenin não compreendeu muito bem. É daí que veio o Thermidor (o rei do terror) que
acabou finalizado com a prisão de Robbespierre. Então os jacobinos, os heroicos
senhores fariam algo errado. O corolário de Lenin foi escandaloso, ele disse uma vez “eles
não foram radicais o suficiente”. Eles foram indiferentes. Eles apenas decapitaram uma
fração daqueles que deveriam ter sido decapitados. Ele foi fisicamente capaz de dar um
passo a mais e tudo o que mais veio foi nesse ímpeto de que não haveria outro Thermidor
Entretanto nós sabemos que ele em vida estava meio certo. Na sua época e na de Stalin
não houve um Thermidor. Mas a longo prazo a causa não conseguia mais se sustentar e
com Khrushchev e todos aqueles que seguiram o Thermidor soviético foram colocados
na agenda histórica que precisa ter seu espaço. Desde que nós internalizemos esse jeito
de ver esta cenografia e considerando que a Revolução Russa como uma peça de
reencenação. A Revolução Russa fez uma tentativa de reencenar a Revolução Francesa,
47
mas de fato no ano de 1793. No filme de Esther Schub (A Queda da Dinastia de Romanov
de 1927), nos mostra que ela tem esta perspectiva das circunstâncias que não culminou
no outubro da Revolução, mas na Revolução de fevereiro. O departamento de política
cultural de Stalin descobriu que ela era uma mulher a Revolução de fevereiro e ela
reconheceu a legitimidade da Revolução de fevereiro. Ao fazer isso ela fez da Revolução
de outubro ilegal, por conta disso ela foi impedida de sua profissão. Lenin nunca igualou
a massa realmente existente com os proletários de vanguarda dos movimentos
trabalhistas, eles eram apenas matéria-prima básica para uma re-educação
revolucionária um pouco parecida com o Vietnã do Norte quando invadiu o Vietnã do sul
que acabou se unificando. Para isso tinha-se campos para a re-educação revolucionária.
Foi por isso que a classe trabalhadora na União Soviética adotou um fatal tom paradistico.
A classe trabalhadora agora existia de maneira dupla, uma nos campos e uma nas
fábricas. Mas ambas deram a palavra para um tom de escravidão novamente que é
certamente um paradoxo do século XX. Lá onde o proletário estava sendo feito, o herói
da história de fato surgiu uma nova economia escravista.
Lenin transformou-se que um realizador testamentário de um despotismo,
cujos representantes, haviam sido extintos, mas não seus modos de procedimentos e
estruturas internas. Stalin elevou o Estado para um nível de atmoterrorismo. Já se havia
entre os czares do Estado Russo um aperto estreito demais para a sociedade, então o
Estado de partido único comunista virou uma camisa de força. No czarismo viu-se um
pequenino grupo de privilegiados que sob seu controle e com seu poder tinha mantido
de maneira terrorista um império gigantesco, então também passou a existir depois de
1917 um pequenino grupo de revolucionários profissionais que aproveitaram a guerra e
o ódio campesino e proletário contra aqueles que se encontravam em cima, derrubando
o Golias. Trotski como judeu não era herdeiro de uma arcaica tradição de resistência e
autoafirmação contra o poder arrogante? Ele se deixou exilar e assassinar por seus
colegas que tinham subido à condição de Golias. Esse assassinado de Trotski a mando de
Stalin uma réplica ao predomínio presunçoso que tinha sido dada ao genocídio fascista?
Na condição de revolução permanente, elaborada por Trotski, há uma consciência de que
a violência política deve e precisa ser renovadamente se justificar em todos os momentos
e a cada segundo. O poder como poder de paz, como violência jurídica e como violência
protetora, para a vida ativa e plena (autônoma). Esta ideia não conclama ao caos
48
de um outro, também há assassinos que no fundo são suicidas, na medida em que eles
aniquilam a si mesmos no outro.
Hitler também não escaparia, já desconfiava até de seus mais próximos, só
comia depois que o cozinheiro comesse primeiro com medo de envenenamento. O
cinismo semântico não é acompanhado apenas pelas tendências suicidas, mas também
pelo risco da reação histérica, algo que é possível acompanha na “sensibilidade”
paradoxal do fascismo, que trouxe uma ressureição do “sentido totalmente grandioso”
no espetáculo político, com o qual o nada, há muito tempo sentido, se disfarçou. Na
histeria atua uma vontade de romper com o autocontrole do eu cotidiano sem vida. O
que a impele, segundo o cruel aforismo de Lacan, é a busca por um senhor, a fim de poder
tiranizá-lo. Hitler como senhor da guerra nessa batalha mundial imperialista e burguesa,
ele era objetivamente pior do que todo e qualquer gracejo, por mais terrível que o
possamos imaginar. A histeria fascista, em contrapartida, inventou até mesmo o senhor
que ele queria tiranizar, e pintou para si mesma na parede um complô judaico mundial,
a fim de extinguir um povo, cuja existência não era certamente nenhuma ficção. Hitler
com a queda da 1ª Guerra Mundial, viu o front enquanto tal tivesse efetivamente
fracassado e se tivesse sido evocado por meio de sua infelicidade, o destino fatídico da
pátria, o povo alemão teria recebido a derrota de maneira totalmente diversa. Nesse
caso, seria suportado a infelicidade que se seguiu com os dentes cerrados. Mesmo a
capitulação, porém, teria sido apenas assinada com o entendimento, enquanto o coração
já teria decretado o levante vindouro. Porém, agora, segue o mito da “decomposição
interior”. A derrota militar do povo alemão não foi uma catástrofe imerecida, mas um
castigo merecido por uma retaliação eterna. “Nós mais do que merecemos essa derrota”.
Hitler traduz o desastre político-militar do guilhermismo e a queda do capitalismo feudal
na linguagem moral do crime e castigo. Pois não aconteceu nada, segundo ele, de que
nós mesmos não tivéssemos culpa. Nosso crime consistiu no fato de não termos
impedido o fortalecimento de elementos socialistas, pacifistas, liberais, democratas e
“judaicos” na sociedade. O colapso foi, segundo Hitler, uma “consequência de um
envenenamento ético e moral, de uma atenuação do impulso de conservação”. Só assim
se tornou possível, por volta do fim da guerra, que se chegasse a motins de tropas, greves
de munição, etc. O front no campo de batalha estava intacto. Foi apenas o front da terra
natal que fracassou e que trai “aqueles que se achavam fora”. Assim, Hitler desloca o
50
front para o interior: fora, a guerra pode ter acabado, mas aqui, no interior, porém, ela
prossegue como batalha contra os democratas, pacifistas, etc, que precisavam da derrota
militar para a vitória de suas convicções. Com isso, Hitler projeta de maneira inequívoca
uma situação de guerra civil: no lado adversário, ele vê os judeus e sua “organização
marxista de luta”, assim como todo o bando de democratas e socialistas entre outros.
Hitler acreditava uma alegria de alguns quanto à infelicidade da pátria. De ter observado
até mesmo em seus contemporâneos pessoas que teriam “dançado e rido” com o final
da guerra, que teriam “se vangloriado da própria covardia” e “glorificado a derrota”.
Hitler projeta aí sua própria estrutura catastrofal sobre o adversário. Pois o vencedor
propriamente dito da catástrofe tinha sido claramente ele, aquele que descobriu nela sua
profissão. Ao mesmo tempo, ele concebe em sua problemática parte da realidade efetiva.
Muitos súditos despertos para a consciência política por meio da guerra se sentiram de
fato aliviados, uma vez que o regime Guilhermino dos junkers, regime esse que tinha se
tornado insuportável, pôde ser perseguido e eliminado. Outros grupos saudaram a
revolução como a irrupção de uma nova era da humanidade, e outros, por sua vez,
expressaram de maneira explícita que sua causa só poderia ter sucesso por meio da
catástrofe da nação capitalista.
“Se afirma com bons motivos que a pós-modernidade é um subproduto do
mando a distância. O telemando representa a técnica chave de controle de admissão de
sons e imagens, e tal como, de admissão de realidade, na egosfera” (SLOTERDIJK, 2006,
pp. 452-453). Não é bruxaria, é tecnologia. Nada existe na técnica que não exista antes
na metafísica. E nada existe na metafísica que não exista antes na lógica arcaica. Devemos
acessar o sinal da autossintonização opcional. A eleição do entorno auditivo e audível. O
superego na psicanálise, já não seria no aspecto moral, a superssintonização do indivíduo
por seu coletivo? As telecomunicações modernas asseguram a célula-apartamento o
cumprimento da ordem de funções defensivas, isolantes, como sistemas imunitários, em
esbanjamento de conforto e distanciador no espaço mundo. A egosfera auditiva
possibilita a entrada de partículas de realidades, sonoras, de ruídos, sensações e
compras. As unidades de lugar estão mantidas informaticamente numa rede de
vizinhanças virtuais. A efetividade da vizinhança se dá de maneira telecomunicativa e não
espacial. A técnica telecomunicativa (as aves voadoras em certas literaturas funcionam
como correios) acelera e possibilita a comunicação à distância e estimula efeitos de
51
individual, mas que, desde o início, do nascimento até a morte, nós convivemos com
habitantes interiores, um elemento impessoal e pré-individual. Um ser duplo de início. A
ontologia inicia-se com o número dois. É essa presença inaproximável que impede que
nos fechemos em uma identidade substancial, é Genius que rompe com a pretensão do
eu de bastar-se por si mesmo. Um bruxo pessoal. Fica claro que os anjos da guarda vieram
de uma tradição grega, e talvez, até mesmo da antiguidade com o que algumas culturas
estabeleceram como um "segundo eu", criaturas aladas, ou um tipo de entidade em cima
da cabeça de estátuas.
Apuleio (2011, p. 363):
feito de maneira interiorizada, se já estamos sobe alguma influência estoica e mais ainda,
e de modo decisivo, sob direção cristã, especialmente na tradição de Agostinho. Pedir
algo ao gênio como uma prática de pedir algo a uma instância interna está a um passo de
pedir algo a si mesmo. Desse modo, conversar com o gênio é conversar consigo mesmo.
Eis que tudo está pronto para vermos a completa subjetivação da palavra. Gênio é, desse
modo, uma espécie de propriedade psíquica da personalidade. Pessoas de bom gênio são
afáveis, pacíficas, encantadoras, charmosas ou possuem uma aura reconfortante
enquanto pessoas de mau gênio podem não ser propriamente maldosas, mas antes
irrequietas, irascíveis, ranzinzas, briguentas. “Fulano de tal tem um gênio terrível”,
dizemos. Também falamos, ou falávamos, “o casamento faliu por incompatibilidade de
gênios”. Quando adotamos tal vocabulário estamos no plano plenamente moderno, onde
a própria subjetivação já cedeu à popular psicologização.
Para uma tradução latina na espécie de genus malignus. O daimon vira
daimonium, daemonium, demônio (diabo-demon). Na doutrina espírita, é muito comum
espíritos habitarem casas dando surgimento para as “casas mal-assombradas”. Com a
construção de casas temos vazão à noção de interioridade com uma função psicológica-
esférica bastante significativa. A divisão de espaços domésticos dá surgimento à uma
subjetividade íntima. Habitar recintos como nossas casas, significa duas coisas: coabitar
com outros seres humanos e coabitar com seus amigos invisíveis. Nas primeiras noções
dessas entidades os demônios não tinham necessariamente um sentido negativo. Depois
veríamos os demônios do bem e do mau. Daimons do lar eram anjos da casa, entidades
que, de fato, se apresentam como as almas de antepassados que não seguem o caminho,
mas ficam na casa para proteger o local ou mesmo as famílias do local. Nossa crença em
entidades que ficam nas casas é enorme e sólida. Quando há suicídio em uma casa, tentar
vendê-la é quase impossível. Todas as casas em que ocorreram desgraças (possessões,
fantasmas, espíritos) causam mais desgraça ainda às imobiliárias que as pegam. Até quem
não tem nenhuma ligação com qualquer misticismo evita comprar casas assim. O melhor
da casa é ter uma história boa ou nenhuma. Anjos novos para casas novas, espíritos claros
para paredes brancas e assim por diante. “O ar fica pesado”, assim falam tanto os devotos
quanto os não crédulos sobre lugares de desgraças. O que pesa é a presença de entidades
frutos da desgraça ali ocorrida, em algum nível. Sócrates tinha um comportamento social
bastante singular. Foi Gustav Hans Graber como um dos pais da psicologia pré-fetal, que
54
juntamente com Otto Rank, o primeiro psicólogo da geração freudiana que levou a
reflexão genética da psicanálise a sério para reconstruir a vida dos indivíduos a partir de
uma fase intra-uterina. Fazem parte das características do autodesenvolvimento fetal, na
atualidade, um aspecto musical bastante profundo que participa na formação da
afetação tônica do homem e uma dimensão psico-esférica ou psico-acústica
placentológica que engloba a disposição original do próprio eu em um invólucro (duplo),
um gênio, um anjo da guarda ou na linguagem de Sloterdijk, “proto-objetos” ou
“nobjetos”. O ponto central das considerações que Sloterdijk analisa consiste na noção
de objeto (não objeto). Sloterdijk tira essa noção de Thomas Macho, definindo-a como
co-realidade que, com uma modalidade que não prevê a comparação, paira como
criaturas de proximidade, em significado literal do termo, diante de um eu que não está
enfrentando-os: é precisamente o sujeito pré-fetal. Na primeira comunhão, no contato
íntimo, no ser-com, existe uma constituição psico-acústica do sujeito antes do sujeito,
algo muito antes de qualquer intercâmbio de sinais, onde tem lugar, uma saudação de
boas-vindas. Existe algo semelhante a uma frequência evangélica da saudação. O
primeiro assunto que Sloterdijk trata é a mãe, para ser entendida como um receptáculo
de intimidade, como um espaço interior que desde o momento em que onde há
concepção nos faz estar em situação de um proto-ambiente que coloca o homem na
condição de ser influenciado pela inclusão de materiais (sangue, líquidos, placenta,
música, sons, alimentos, oxigênio, corpos moles e gelatinosos) dentro de coordenadas
espaciais concretas. Aquela vibração extremamente real que procede do eu abnegado da
antiguidade fetal. Seguindo as investigações de Graber, somos separados brusca e
rapidamente com o nascimento desta vibração e do modo de ser “solúvel” a ela
subordinado. Toda a carência com que os psicoterapeutas têm de lidar nas suas
consultas, é por isso, consequência direta ou indireta da nossa anterior submersão-
despedida do mar. Se falamos de pré-objetualidade, quer dizer nada mais que, uma
estadia numa esfera que é mais uma bola anímica sinestésica do que um mundo de
objetos fragmentáveis e separados por cristalização.
Da sua atividade de pensar, talvez fosse melhor chamá-la de comportamento
associal. Existem relatos de que Sócrates tinha o hábito de se afundar nos seus próprios
pensamentos, como se fosse uma espécie de transe. Sabia, como se diz em Xenofonte,
“dirigir o seu espírito para ele próprio”. Uma momentânea tentativa de se ausentar do
55
observações dão certo encaminhamento dos problemas gerados por Hume e Pascal, que
buscaram dessubstancializar o “eu”, empurrando a “coisa pensante” de Descartes, como
substância, para um segundo plano. Pensar cria um autismo artificial (autorreferente)
que isola o pensador e o leva para um mundo especial de ideias imperativamente
interligadas. Na terminologia de Luhmann, isto seria um tipo de “retiro para o operar
interior”, análoga aos sonhos, que como sabemos, só o sonhador experimenta. Sócrates
mesmo confessa que sua sabedoria tinha algo de má qualidade, “como um sonho, de
uma realidade dúbia”. Estamos falando de uma viagem interior, como um emigrante que
emigra em um movimento de imigração. Seria o “lugar nenhum”. A chamada metoikesis
é o caminho do filósofo para o “lugar nenhum” para este ser filósofo e este “lugar
nenhum” é mesmo um não lugar, de modo que o translado não tem repouso.
Originalmente, pensar (sinnanm, no sentido alto alemão) significava viajar (reisen). Pode-
se pensar também em “mudanças”, isto corroboraria com a ideia de que a morte de
Sócrates deixou um último teorema. A tese de que o homem é um animal determinado
a estar em “mudanças”. Talvez um filósofo precise, primeiro, tomar sua própria morte
para ser um homem da teoria, e tomar a sua própria morte como objeto de teoria. A
observação de Novalis em a calhar: “O autêntico ato filosófico é o suicídio; esse é o
começo real de toda a filosofia, a ele se dirige toda a necessidade do jovem filósofo e só
esse ato cumpre todas as condições e distintivos do feito transcendental. – Elaboração
mais pormenorizada deste pensamento altamente interessante”. Filosofia é aprender a
morrer. Montaigne disse isso. Ele assumiu essa definição de Platão e tentou cumpri-la à
risca. Perto dos quarenta anos, procurou ir se retirando da vida pública e até mesmo dos
afazeres domésticos. Ficava em seu escritório ficava escutando a si mesmo, lendo e
escrevendo. Era o comportamento que mais tarde os manuais de filosofia iriam atribuir
aos céticos de seu tipo: suspensão da ação e adiamento do juízo. A filosofia para
Montaigne exigia esse desgarrar-se da ação, o que chamamos de a ataraxia. Mas também
envolvia o que, mais tarde, Husserl nomeou tecnicamente como epoché, ou seja, época,
período.
Sloterdijk nos lembra que Husserl utilizou este termo que veio de uma tradição
do antigo ceticismo. O que aconteceu foi que Husserl deu um significado diferente
utilizando o termo para a sua própria filosofia no sentido fenomenológico. Sloterdijk
enfatiza essa façanha husserliana dizendo que, no contexto mesmo da filosofia de
57
5
SLOTERDIJK, Peter. The Art of Philosophy. New York: Columbia University Press, 2012, pp. 23-24.
58
a filosofia de Platão postula. As formas são eidos, essências. A objetividade que se pode
alcançar na filosofia de Platão, portanto, não é uma objetividade de quem está imerso na
existência, de quem está acreditando que a existência determina a consciência, mas de
quem pode fazer a consciência, pela epoché, determinar a existência, aquele que salta
fora dela em treino, e que pula fora dela quando o treinamento, pela cicuta, se encerra.
Sócrates brindou sua morte, como Nietzsche bem observou, porque era um cansado da
vida. Sloterdijk conhece bem essa leitura que Nietzsche faz de Sócrates, mas a reconstrói
sob o nome não de cansaço, mas de ascetismo. O ascetismo que a filosofia exige é um
morrer em vida, o que se efetiva por meio das epochés. Sócrates quis a morte porque
entendia que estava pronto para morrer. Sabia que iria migrar para o mundo no qual se
sentiria em casa. Sócrates foi um homem que na hora da morte viu que a saudades de
casa, aquela vontade que Benjamin disse ser a saudade do futuro e da terra em que nunca
se esteve, era algo que ele iria satisfazer. Por isso ele morreu sereno e tranquilo. Por isso
ele recusou Críton e sua proposta de fuga. O treinamento havia acabado. As
transformações de viagem estavam feitas o suficiente para que se pudesse passar pela
transformação fatal, a da despedida do corpo. Afinal, como é sabido, em Platão o corpo
nunca foi outra coisa senão a prisão da alma. A preparação para a morte desemboca, ao
menos no caso do filósofo, para uma morte assumida como morte. A cicuta tomada
deliberadamente, ainda que por destino, é ingerida como um auxiliar farmacêutico para
que a viagem (um translado cinético) se complete uma vez que o passageiro já nem quer
mais a bagagem velha, aquela bagagem que serve para se chegar à estação, mas não
serve para pegar o trem final. O corpo é uma escada que se joga fora ao se pular do último
degrau para o campo real prometido ao filósofo. Sem essa passagem mística e ao mesmo
tempo racional e filosófica, não há platonismo, muito menos há a filosofia. “Filósofo” é
uma expressão vinda da confraria de Pitágoras, uma seita mística, e isso chegou a Platão,
de modo a colocá-lo como inventor da filosofia, segundo essa atitude racional e ao
mesmo tempo mística. Não podia Platão dizer para Eurípedes, que esta vida só é morte,
enquanto a morte abre a passagem para a verdadeira vida?
Hannah Arendt lembra que o único momento em que Heidegger cita Sócrates,
é para fazer uma metáfora do pensamento como ventania. Ela afirma que Heidegger
lembra Sócrates com aquele nunca teria feito outra coisa, até mesmo na hora da morte,
senão “se colocar no meio... dessa ventania”, ou seja, a ventania do pensamento, e então
59
ali se manter. Assim, segundo Heidegger citado por Arendt, Sócrates é o pensador mais
puro do Ocidente. Eis porque ele não escreveu nada. Pois quem sai do pensamento e
começa a escrever tem que se parecer com as pessoas que se refugiam, em um abrigo,
de um vento muito forte para elas. Todos os pensadores posteriores a Sócrates, apesar
de a sua grandeza, estar como estes refugiados. O pensamento tornou-se literatura. É
para essa característica de ventania, muitas vezes aludida pelos parceiros de Sócrates ao
que ele fazia ao pensar e conversar, que Arendt chama a atenção. É tomar a ventania
provocada pela formulação de conceitos. Trata-se de formular o geral e universal que
reúna os particulares. Tomar o pensamento como clássico.
O “lugar nenhum” do filósofo é, enfim, estar consigo mesmo. Nesse sentido, sua
vida subjetiva se amplia e se torna o que há de objetivo para ele. Por isso o filósofo
valoriza nos processos de produção do saber não o resultado, o saber que se torna
disponível, mas efetivamente o que seria o seu subproduto, que é o próprio pensador
que exerceu mais uma fez uma tarefa, repetiu mais vezes o que já fazia, se tornou mais
experiente (fez e refez) sua formação. A produção do conhecimento nem sempre traz
como produto melhor o conhecimento, mas uma melhor performance do conhecedor.
Nisso consiste a ascese. No conjunto das antropotécnicas que geram o homem há
antropotécnicas que geram o filósofo. Nesse aspecto, Sloterdijk traça sua aproximação
com Hannah Arendt. Enquanto uma de suas perguntas centrais é “onde se está quando
se está no mundo?”, a filósofa judia quer saber “onde se está quando se está pensando?”.
Sloterdijk utiliza-se da terminologia heideggeriana para explicar seu ponto de vista. Por
isso que Heidegger ao estabelecer o Da-sein, teve em mente a conexão entre a palavra
grega ekstasis e a latina existentia, ambas a tônica recai em uma agitação de que resulta
um “estar-fora-de”. Dessa, forma existir não significa começar em uma localização dada-
unívoca, mas estar em um estado de tensão daqui para ali. Quem existe é chamado ao
seu “lugar” a partir do “lugar-nenhum”. Da-sein corresponde ao “ser-posto-lá-dentro-do-
nada” (Hineingehaltenheit), ou seja, a existência não pode ser pensada sem ser
perturbada pelo “aberto” (Offene, espaço aberto, espaço livre). Os pensadores são
transpostos para uma esfera onde impera uma coisa: clarificar o sentido das palavras, de
frases que nos permitimos proferir quando queremos dizer algo verdadeiro. Pensar
significa aqui, em conformidade com antigas convenções, uma busca por um termo
verdadeiro para uma coisa. Para uma concepção platônica, este esforço não pode deixar
60
dependência absoluta da vida em um ambiente adequado é mais óbvia onde não existe
tal ambiente - no espaço exterior. Qualquer um que deseje viajar para lá deve trazer
consigo seu próprio ambiente, se quiser morar em algum lugar. Embora isso possa
parecer trivial a princípio, tem implicações filosóficas e antropológicas mais profundas.
Em Esferas III: Espumas, Sloterdijk trata bastante das chamadas “ilhas absolutas”:
submarinos, aviões e estações espaciais. Com as viagens espaciais, a humanidade emerge
de um estágio em que o eu é experienciado através da extensão e expansão, e entra em
um eu em que é experienciado através do transplante e da implantação. No decorrer de
tal transição, os órgãos não são transplantados de um corpo para outro, como na prática
cirúrgica e transplantes. Ao contrário, na construção de estações espaciais, somos
confrontados com implantes e transplantes ontológicos, isto é, com a implantação de um
mundo onde antes nada existia e com o transplante de um ambiente adequado para
seres humanos em um mundo externo (contêineres). Um mundo da vida implantado em
um meio social hostil à vida. Por isso, devemos entender o homem como alguém que se
instala no mundo. A estação espacial tripulada se aventura no mar do vazio, no não
elemento.6 Nela não se leva em consideração a conquista do espaço mediante uma
repressão ao uso, mas sim, por uma implantação de um corpo que se estende como dono
de seu lugar no espaço sem concorrência alguma. Um implante espacial insular para
liberação do entorno na luta com a gravidade em manter-se completamente em si
mesmo. Extensão e repressão se unem na mesma coisa. No vazio os corpos liberados do
entorno podem por sua própria vontade alcançar sua própria vontade de extensão.
Enquanto que a situação natural o meio ambiente é o que nos rodeia e os seres humanos
os rodeados, a construção das ilhas absolutas se dá ao caso de que são os seres humanos
mesmos quem concebem e dispõe o entorno no qual devem viver mais tarde. Uma
inversão é necessária. Deveríamos pensar que o homem é quem deve contornar o
contorno, envolver o envolvente, sustentar o que sustenta e apreender o apreende. Não
devemos imaginar as ilhas como microcosmos, e sim, como implantes artificiais de
mundos para a vida. O microcosmos visto classicamente é uma repetição atécnica do
grande mundo (macrocosmo) no pequeno. Se via uma totalidade inexplorável refletida
6
SLOTERDIJK, Peter. Esferas III: Espumas (Esferología Plural). Traducción de Isidoro Reguera. Madrid:
Siruela, 2006, p. 245.
64
apenas uma extensão mínima, medida em termos do volume da Terra. O que se chama
natureza ou ambiente em ser-no-mundo, é replicado pelo sistema de suporte (Life
Support System) à vida da estação espacial em ser-no-mundo.
Com o surgimento da estação espacial, não só temos provas de que existe vida
inteligente fora da Terra, mas a capacidade de se comunicar com essa inteligência
externa também é efetivamente demonstrada pela transmissão eletrônica de dados
entre a estação e a Terra (comunicação à distância com, obviamente, meios técnicos). Na
verdade, isso tem consequências históricas mundiais, já que os mundos baseados na
Terra (que também são chamados de culturas) podem, pela primeira vez, ver um mundo
compartilhado realmente existente além. A partir de agora, nos deparamos com uma
transcendência que os próprios terráqueos realizaram, e que pode ser distinguida das
instâncias religiosas ou metafísicas de transcendência tradicionais, Deus, simbolicamente
codificadas, por permitir uma comunicação bidirecional confiável. A assimetria metafísica
entre a transcendência divina e a participação terrestre nessa transcendência é
substituída pela assimetria posicional entre a estação espacial e o controle de solo. Sob
tal arranjo, a capacidade de ouvir vozes do alto não tem mais implicações extáticas. Pode-
se dizer, portanto, que a viagem espacial descobriu a solução mais elegante para o
problema metafísico mais antigo: resolveu o enigma da descontinuidade ontológica entre
acima e abaixo, postulando um continuum entre ser-no-mundo e estar-no-mundo.
Ainda mais importante, no entanto, é que o mesmo regime de inteligência
prevalece acima e abaixo na nova transcendência bidirecional. Assim, a tripulação abaixo
pode imediatamente levar a tripulação acima em sua palavra, isto é, porque a visão da
Terra do último tem a vantagem de uma posição descentralizada, ainda permanece
embutida no mesmo continuum ontológico. As posições neste contínuo são em princípio
reversíveis, em contraste com a transcendência religiosa. Se estou falando com Deus,
estou orando. Se Deus fala comigo em uma voz estrondosa, sou esquizofrênico. Em
contraste, se eu ouço Thomas Reiter ou Hans Schlegel falando alemão no espaço, posso
concluir que todos os sistemas a bordo estão funcionando sem problemas. Da mesma
forma, posso adotar a visão de mundo do astronauta, porque, como observado, as
perspectivas no continuum ontológico são intercambiáveis. E ainda mais importante: há
uma coerência de inteligência.
66
em que até mesmo Deus, se houver um Deus, só pode entrar depois de receber
permissão: “permission to come on board?”. Quanto à observação de cima, a viagem
espacial assumiu, obviamente, pelo menos essa parte da atividade divina e a transferiu
para sistemas tecnológicos (satélite de observação) e inteligência natural (seres humanos
a bordo de estações espaciais). Esse ato de transferência explica parcialmente sua
importância que durará séculos. Na era da comunicação absoluta, até um Deus teria
também dificuldade em chamar a atenção, visto que, para se dar a conhecer, ou para ser
“perceptível”, ele teria de se conectar à rede e converter-se em uma mensagem
(message), uma tarefa que seria impossível no antigo estilo da reencarnação.
Sloterdijk (2008, pp. 68-69):
de que os eleitores e os partidos a cada ano podem dar suas impressões e seus
rendimentos anuais ou balanços anuais de maneira significativa. Um momento em que
os eleitores sentem que já não existem alternativas, mas unicamente mudar de lado, de
um lado de espectro político para outro. Não só a Alemanha e França passam por isso
atualmente, os brasileiros do século XXI não sabem nem sentem o que é melhorar ou
piorar, o que é um mal maior e um pior. É nesse momento que se cria a resignação, e
também o masoquismo político que não é uma “especialidade russa”. Essa relação de
masoquismo do povo e governo diz: “vocês não sabem o quanto nós podemos aguentar”.
Mas todos nós não estamos suficientemente mal? O caso venezuelano poderia se
encaixar perfeitamente aqui. “Por favor, siga nos torturando”. O intelectual que melhor
compreendeu esse fenômeno foi Serguei Eisenstein em seu filme clássico Ivan – O
Terrível, sobre a regulação onde Ivan estaria decepcionado com os seres humanos e o
poder e que estaria retirado em um convento. Ivan observa que o convento em meio a
neve está sendo cercado por uma caravana e suplicam que ele, por favor, siga oprimindo.
Esta é uma análise psicopolítica ampla para muitos fenômenos onde só se pode
compreender através de um “masoquismo político” ser uma categoria que se subestima
nos dias de hoje. É evidente que a III Internacional foi realmente um banco mundial da
ira, quase como um fundo monetário mundial da ira, obviamente que este banco mundial
administrou não só a ira, mas a esperança socialista. Deposito ira e recebo uma
rentabilidade de esperança e melhorias. Isso é um fogo de um negócio exitoso, sobretudo
no aspecto ocidental. Uma coisa é pressão, sobretudo o ganho de valores ocidentais, as
nessa época dos salários reais no mundo ocidental subiram generosamente gerando uma
sociedade de classe média que hoje novamente podem cair em uma época de
regularização, porque a situação de pressão é que dita uma mudança forte. Outro
fenômeno dominante no final do século XX seria o populismo. Como funcionaria o
populismo com o “banco de afetos”? Não estamos seguros se na modernidade não
descrevemos bem ou se não entendemos bem o populismo. Em primeiro lugar, esses
“fenômenos populistas” são compatíveis com a tradição da acumulação de ira, da fúria,
de esperança, protesto e os lugares de acumulação de capital de chamamos “bancos”.
Não são “bancos estatais”, mas “bancos populares”. Bancos são grandes tradições. Do
ponto de vista econômico se alguém está falindo o banco com seu depósito deve ser feito
em outro lugar. O caso do Brasil é significativo, aqueles que depositaram suas confianças
72
assunto político. Em certo sentido se pode conceber a ira como algo da justiça, se pode
exercer uma posição do trono celestial. A instância colérica no mundo dos mulçumanos,
e no monoteísmo do Cristianismo é Deus mesmo (o próprio). As duas religiões são em
princípio apocalípticas. As duas religiões incluem a representação de que o final dos
tempos – o dia da ira terá lugar, é uma representação medieval muito forte. Dies irae,
Dies illa tollet mundo in favila significa que “no dia da ira, o mundo se apodrecerá-
decomporá em cinzas”. Então, aquele a quem corresponde a maior ira da história, é nada
além de Deus mesmo em sua qualidade de que leva a contabilidade moral, a história de
cada qual ao final de todos os dias anuncia ao Dia da ira, no qual todas as coisas se
cumpriram, e por assim dizer, o “rebanho humano” será devidamente dividido entre
ovelhas e cabras, entre bons e maus.7 Aqui Sloterdijk propõe o caminho para a
descoberta do banco metafísico da vingança. O Deus arcaico é uma representação não
determinada do que há do outro lado. Pode significar por um lado como um aliado,
auxiliador, conjurado e consanguíneo do clã. Por outro, como ameaçador, exigente,
imprevisível e rancoroso. Entre um e outro devemos incluir um elemento importante. Ele
é um sedento por vingança. Essa ambivalência é feita por um contrato entre mortos com
os vivos. Uma relação inerente aos espíritos do passado, não só atribuída a uma culpa
inconsciente dos vivos e as expectativas de vingança dos mortos. Os primeiros deuses são
mais que almas liberadas que figuram uma vingança privada, constituem amálgamas de
almas de mortos e forças anônimas nas quais se evocam como o culto. O Deus do antigo
testamento Yahweh (Yahvé) apresenta-se como um deus com máxima transcendência do
Ocidente. O Deus monoteísta como patriarcal deprimido, desconfiado, desequilibrado e
furioso. Essa sua maneira de ser atinge aqueles que pertencem ao seu círculo. A palavra
bíblica fundamental para ele é abençoar, pois o afetado pela benção sempre era
consciente de que ela na verdade poderia ser uma maldição. Basta ver que o mundo
bíblico é um reino da ética da diferenciação e que não tolera semelhanças desmedidas.
O próprio Zeus arcaico apresenta-se com características de cólera, uma potência
paranoica. Nos dois é possível ver uma violência natural. E o modo de governar de ambos
é em grande parte por um intervencionismo. A natureza como regra, sempre foi bastante
má com os seres humanos para merecer sua maldade. Na tradição latina, há uma bela
7
SLOTERDIJK, Peter. Ira e Tempo: Ensaio Político-Psicológico. São Paulo: Estação Liberdade, 2012b, pp. 95-
144.
74
imagem da natureza tida não como mãe, mas como madrasta. Então não é Marca, e sim,
Noverca. A natureza como madrasta é tida como arquétipo do pensamento sobre o
estranho dos homens, uma imagem antiga vinda dos românticos. Com isso, os alemães
têm uma dívida simbólica a carregar por essa questão: a ecologia sempre foi uma
metástase do idealismo alemão. O primeiro romantismo alemão no início do século XIX,
tinha um aspecto reprimido de madrasta que foi substituído por uma figura ideológica de
mãe. A relação de “seio” foi interpretada pela filosofia, em sua época clássica, como uma
relação de residência. O espírito humano pode habitar o mundo sem horror porque,
desde os gregos, “fez do mundo a sua terra-mãe”, desde Parmênides até Hegel que os
moradores da casa europeia do ser se sabem confederados em um “espírito comum de
pertencimento a uma terra-mãe”. O Senhor bíblico, portanto, não é somente um
sadistadifusionista que não quer permitir que se reúna que se pertence; ele é também, e
mais ainda, um Senhor da discrição, que dispersa e separa o que estava aglomerado de
forma nociva.
É muito interessante ver que os jovens africanos elegeram essa imagem de
linguagem tão tipicamente religiosa do Dia da ira, muito provavelmente sem saber o que
fazem, uma imagem nobre. Os alemães suspeitam de que haja algo nobre na ira. O
wutburger (cidadão zangado, enraivecido) foi tratado e deixado para os editores cínicos
e serenos que por sua vez alcancem ou se alcem sobre os cidadãos não cínico se não
serenos para perceberem que se enfurecem por motivos “baixos”, e dão lugar para a
intranquilidade política. Isto significa que a cólera (raiva) é propriamente política, porém
funciona em um “nível” dos afetos, das afeições do humor timótico, os que tem relação
com o orgulho e reconhecimento. Por isso, se vê a ira como uma “psicologia política” um
tanto esquecida capaz de repor a descrição de nós mesmos e do que fazemos levando
em consideração o thymos,8 ou seja, o “órgão” situado no peito dos heróis e dos homens
da Grécia antiga. Um escalão ainda mais profundo que a ira que tem relação com a honra
e justiça especialmente para os europeus. No homem não há só egoísmo, mas também
há altruísmo. Os melhores soldados que encontremos não são egoístas, um egoísta não
8
Aqui ficaria melhor perceber o thymos como uma espécie de força para mover-se. Algo extra indivíduo.
Ele diz respeito à autoestima e ao orgulho, mas isso por conta da harmonia que é cosmos (contrário do
caos), e que põe para cada um o destino. Um “fenômeno” de energia de enchimento (ou coleta) para
liberação ou descarga. Seria possível imaginar um “banco de depósito” ou um “caminhão de lixo” (como
local) de coleta.
75
vai para a guerra, só um altruísta vai para a guerra pela pátria, pela família e pela
liberdade. Um grupo de homens e animais podem se ajudar e se apoiar mutuamente.
Com isso nós podemos chegar a uma conclusão vulgar do darwinismo que diz que o
homem é mau, que o homem é egoísta demais. Não, o homem não é um egoísta a toda
prova. O homem não é um egoísta tolo, e o pior que o homem traz ao mundo não o faz
por egoísmo, ou só por ele, mas pelo altruísmo. O cuidado com o grupo pode levar ao
assassinato como egoísmo. Vale recordar de como o príncipe Kropotikin foi enterrado na
Rússia. Era muito popular, talvez o segundo homem mais importante ao lado de Tolstoi.
Era seguido pelos russos, e no início dos anos 20 era o último momento em que a
Revolução Russa acordou de seus conteúdos liberais porque todos aqueles que o
enterraram sabiam que havia escrito o livro “O Apoio Mútuo na Natureza, nos Animais e
no Homem” ou “Mutualismo: Um Fator de Evolução” (1902). É uma visão em que os
princípios da Revolução Russa tiveram um papel significativo, logo que a visão troskysta
e leninista triunfou porque, por assim dizer, “a política determinou o assassinato pelo
bem”, ou seja, das metas do próprio grupo. Esta nuance se vê bem na diferença entre
raiva e ira foi convertida em uma parte de nosso segredo psicopolítico. O thymos tem
relação direta com uma “afirmação de si mesmo” com o próprio valor de uma
personalidade. Uma energia de preenchimento dos afetos auto afirmativos, em outras
palavras, orgulho. Em alemão não se pode encontrar esta palavra como se vê no francês
(fierté e orgueil) como o bom e o mau orgulho (arrogância). Do ponto de vista semântico,
os alemães estão “orgullo impedidos” no sentido se não se deixar levar por ele, conforme
o cristianismo e o estoicismo e conforme a tradição moral ocidental. A psicologia
filosófica da antiguidade, em especial, a filosofia de Atenas explicou que o homem está
feito de maneira bipolar. De um lado é arrastado pelo desejo de possuir, de querer ter
coisas (avidez), que não raro vira avareza, no sentido erótico (Eros). Eros é a relação
sexual ou desejos de caprichos, esse é o impulso que o homem tem quando lhe falta algo
como uma outra pessoa – uma mulher que lhe falta e se quer, uma total, completa e
grande excitação de ter. Os catálogos dos pecados capitais nos fornecem uma imagem
equilibrada entre vícios eróticos e timóticos. Podemos atribuir a avaritia (avareza), a
luxuria (luxúria) e a gula (gula, desmedida) ao polo erótico e a supervia (soberba,
orgulho), a ira (ira) e a invedia (inveja, ciúme) ao polo timótico. Somente a acedia
(melancolia) é excluída desta classificação, já que expressa uma tristeza sem sujeito e
76
através de Emerson até suas próprias ideias sobre o espírito livre intelectual que deve
romper a cadeia da história, da tradição e da convenção”. Com o tempo, ele passou a se
identificar como um eu soberano que se recusava a exaltar os ideais herdados. Mas,
mesmo os soberbos devem, de tempos em tempos, inspirar-se nos outros. Ralph Waldo
Emerson representa ideais ao mesmo tempo individualistas e democráticos. São os ideais
americanos, elevados ao máximo de beleza e dignidade. Nessa mesma linha, em The
Ideas That Made America: A Brief History de 2019 Rosenhagen fala de antes de os Estados
Unidos serem uma nação, era um conjunto de ideias, projetadas no Novo Mundo por
exploradores europeus, com séculos de crença e pensamento a reboque. A partir desse
fundamento de expectativa e experiência, o pensamento americano e americano
cresceu, enriquecido pelas graças do Iluminismo, pelas filosofias de liberdade e
individualidade, pelos princípios da religião e pelas doutrinas do republicanismo e da
democracia. Crucial para este desenvolvimento foram os pensadores que o nutriram, de
Thomas Jefferson a Ralph Waldo Emerson, W.E.B. DuBois para Jane Addams e Betty
Friedan para Richard Rorty. As ideias que fizeram a América: uma breve história traça
como os americanos abordaram as questões e os eventos de seu tempo e lugar, seja a
Guerra Civil, a Grande Depressão ou as guerras culturais de hoje. Abrangendo uma
variedade de disciplinas, da religião, filosofia e pensamento político, a crítica cultural,
teoria social e as artes, Jennifer Ratner-Rosenhagen mostra como as ideias têm sido
grandes forças na história americana, impulsionando movimentos como
transcendentalismo, darwinismo social, conservadorismo e pós-modernismo. Na prosa
envolvente e acessível, esta introdução ao pensamento americano considera como as
noções sobre liberdade e pertença, o mercado e a moralidade - e até a verdade -
comandaram gerações de americanos e foram a causa de um debate acirrado.
Em "Autoconfiança", seu ensaio mais impressionante, Emerson chega a
defender o desprezo às obrigações familiares, o afastamento do círculo de amizades, a
ausência de qualquer dever com relação ao Bem, à Caridade. Culpa-se por dar esmolas a
um mendigo: “Não tenho obrigação”, diz ele, de remediar a vida dos pobres. "Acaso são
meus pobres? Eu vos digo, tolo filantropo, que dou de má vontade o dólar, os dez
centavos, o centavo para tais homens que não pertencem a mim e a quem não
pertenço... embora eu confesse com vergonha que por vezes sucumbo e dou o dólar, ele
é um dólar iníquo que com o tempo terei a virilidade de recusar”. A básica ideia de
78
interpretar coisas como clubes, associações como a quebra do individualismo para uma
espécie de aparência de “bom moço” que essas pessoas querem, no fundo, seguidores e
notoriedade. Zaratustra fala em tons semelhantes quando diz: “Não. Não dou esmolas,
não sou pobre o bastante para isso”. A metáfora do mar e da costa surge em muitos dos
ensaios de Emerson. Emerson se banhava no pensamento de ser "jogado" neste mundo
e estava constantemente nadando com cuidado para o centro de seu devir. Ele
compartilhou uma conexão profunda com o Infinito. Talvez Nietzsche já
antecipadamente soubesse que como ele mesmo diz: “Não estou à salvo de
falsificadores, tenho que estar sem precauções: assim o quer minha sorte”. Uma boa
forma de analisar as características especiais de Nietzsche enquanto designer de
tendências do individualismo consiste na possibilidade de compará-las com projetos
alternativos. Uma fórmula volta para nossa visão na expressão: “torna-te quem tu és”, e
da fórmula correspondente: “faze o que queres”. Dois projetos? Talvez a obra de
contraste com a de Nietzsche seja justamente Emerson. Nietzsche em A Gaia Ciência, às
vezes trata a obra de Ralph Waldo Emerson como “grande e magnífica natureza”, o
filósofo-escritor mais inteligente do século XIX. Enquanto em Nietzsche vemos o design
da vida ser desenvolvido na individualidade autocriadora sob o desígnio de “espíritos
livres”, Emerson se coloca em uma posição de que seu produto no mercado tenha o
nome de “não-conformismo”. Seu grande trabalho em Self-Reliance (Autoconfiança),
mostra como a filosofia americana construiu provas de sua existência perante
testemunhas maravilhadas. Este texto declara a independência do ensaio americano e
lança fora qualquer atitude servil dos americanos em relação ao cânon europeu e a
qualquer outro. Nesse mesmo sentido, poderíamos supor que Emerson já no fim da vida
se opunha mais abertamente e declaradamente contra a escravidão nos Estado Unidos.
Em St. Augustine, Emerson observou pela primeira vez a escravatura, e obviamente,
aquilo não lhe agradava. Emerson visitou Washington D.C. no final de janeiro de 1862.
Numa palestra pública no Smithsonian em 31 de janeiro de 1862, declarou: "O Sul chama
a escravatura uma instituição... eu chamo-a destituição... a emancipação é uma exigência
da civilização". Nele, assume contornos o programa anti-humildade, o qual se
comprovaria durante os seguintes cento e cinquenta anos como sendo o timbre da
liberdade americana. Esse timbre imperou até os anos 70 do século XX, antes que a
Academia americana se voltasse para as importações europeias como a Teoria Crítica.
79
Há uma certa prodigalidade no sol9 que há também em toda a vida. Antes que
economia e racionalidade, funcionamos no mundo por meio do gasto, esbanjamento e
capacidade de doação. Com trinta anos Zaratustra deixou sua aldeia e foi para as
montanhas. Lá ficou por dez anos, gozando de seu espírito e de sua solidão. Até que,
enfim, cansou-se de sua própria sabedoria e, ao nascer do sol, levantou-se junto com ele
e disse: “Ó, grande astro! Que seria de tua felicidade, se não tivesses aqueles que
iluminas? […] Olha! Estou farto de minha sabedoria, como a abelha que juntou demasiado
mel […] Quero doar e distribuir […] Por isso devo baixar às profundezas”. Chegando em
um bosque Zaratustra avista um eremita que o tenta convencer a não voltar para o meio
dos homens. “Trago aos homens uma dádiva”, mas o eremita diz que o homem é
imperfeito e que o mais sensato a se fazer é ficar, assim como ele, na floresta compondo
hinos a Deus. Homens-sois não doam apenas, emanam evangelhos, fazem boas novas
como dádivas, penetram e se deixam penetrar, fazem de si mesmo diversidades e,
portanto, mundo. Quando partem para o autoelogio, é para romper de vez com “as
coações da lógica tradicional bipolar”. “Eles rompem as coações da lógica tradicional
bipolar, a qual constrangia os falantes a fazer uma escolha entre duas partes: entre o
louvor a Deus, que implicava inevitavelmente uma “renúncia ao Eu”, tido como digno de
ódio, e o louvor ao Eu, o que implica a renúncia satânica a Deus” (SLOTERDIJK, 2004, pp.
71-72). Após andar muito, Zaratustra pediu de comer e depois dorme. Ao acordar, eis
que uma verdade lhe surge com os primeiros raios de sol: “Uma luz raiou para mim: de
companheiros necessito, que me sigam porque querem seguir a si mesmos – e para onde
quero ir. Uma luz raiou para mim: que Zaratustra não fale ao povo, mas para
companheiros! Zaratustra não deve se tornar pastor e cão de um rebanho!/ Para atrair
muitos para fora do rebanho – vim para isso. Povo e rebanho se enfurecerão comigo:
Zaratustra quer ser chamado de ladrão pelos pastores”. No fim da primeira parte, em “Da
Virtude Dadivosa”, Zaratustra se despede de seus discípulos. Estes dão a ele um bastão
de ouro, com uma serpente enrolada ao sol. Zaratustra assim diz: “como adquiriu o ouro
9
A vida aí, nesse caso, é algo sem travas, como de fato fez o cínico Diógenes, cuja melhor fala foi aquela
de pedir para Alexandre sair da frente do sol, para que ele pudesse continuar seu banho de luz. Nenhum
mesquinho, resguardado, com segundas intenções, falaria o que Diógenes falou. Ele extrapolou, esbanjou-
se, patrocinou e doou à exaustão. Enquanto Diógenes manifesta o “desejo”: “retira-te da frente do meu
sol!”. Os adeptos do cinismo moderno aspiram “um lugar ao sol”: nada mais têm em mente além do projeto
de disputar cinicamente, no sentido de o fazer explicitamente e sem constrangimentos, os bens deste
mundo, dos quais Diógenes justamente caçoa.
80
o valor mais alto? Por ser incomum, inútil, reluzente e de brilho suave; por sempre se
dar”. Em seguida, Zaratustra começa seu discurso sobre a virtude dadivosa. “incomum é
a virtude mais alta, e inútil, reluzente e de brilho suave: uma virtude dadivosa é a virtude
mais alta”. Aquele que tem vontade de superar a si mesmo é também aquele que quer
acumular a fim de se dar como um sacrifício. Mas para tornar-se um sacrifício valioso,
antes o homem deve acumular em si todas as riquezas, para depois desejar sua morte.
Zaratustra ama aqueles que querem seu fim, pois são estes que criarão formas e valores
novos. O ladrão de todos os valores se tornará esse amor dadivoso, um sadio e sagrado
egoísmo. A arte de presentear é, como Nietzsche expôs pela boca de Zaratustra, aquela
de doar de modo a não deixar o receptor em dívida para com o doador, extirpando-lhe
qualquer sentimento possível de humilhação. Faz-se o receptor aceitar a dávida sem que
ele contraia obrigações. Há aí, diz Sloterdijk, um “círculo narcisista”, onde entra em jogo,
sim, “um pouco de vaidade e um pouco de movimento”. O mecenato pode funcionar sem
Nietzsche, mas, acrescenta Sloterdijk, quem já experimentou sua condição de
patrocinador ou doador, sabe bem a importância da experiência do filósofo alemão na
prática da generosidade. O generoso produz o dissenso, a concorrência, e ele é diferente
do bom, do bonzinho, que produz o consenso. E essa generosidade do doador é
contagiante.
através das inúmeras voltas de dor e prazer. A realidade da vida para Nietzsche, seria o
contínuo teste de força para a afirmação. Iluminação através de si. Quando Zaratustra
afirma a si mesmo e ao mundo, entra em cena uma linguagem de afirmação de força
provocadora e emanadora: autoelogiosa e desavergonhada. É por isso, que com esse
choque de linguagem, entra em cena, elementos terapêuticos. O choque através de
setas, provérbios, ditados e exaltações quase em tons proféticos e bíblicos, leva o leitor
a se deixar provocar para uma reação imunológica. Um nível de imunização moral. Aquele
indivíduo que já foi alguma fez patrocinador talvez diga que é possível um mecenato
funcionar sem Nietzsche, porém, aquele que ainda não foi, poderia experimentar o gosto
e o contágio no momento em que o confronta com a lembrança da possibilidade da
generosidade. Uma lembrança que o receptor não poderá fugir, na medida em que
precisa entrar no espaço de ressonância da nobreza e for capaz deste ato. Os não
receptores seguem seus próprios caminhos, buscando outros negócios, isto é normal,
mas a “virtude doadora”, é capaz de abrir uma fonte de pluralismos e irradiações capazes
de superar expectativas mais simplórias. Um “monopólio” patrocinador é um fracasso,
pois quem patrocina e o próprio patrocínio para ser o que é precisa de concorrência.
Antes uma rejeição do que uma imitação barata. É por isso, que os generosos se colocam
em contradição com os bons, os quais para Nietzsche são os decadentes porque eles
perseguem um sonho de monopólio da boa consciência como é revelado em Genealogia
da Moral. Para os decadentes é melhor uma linguagem do ressentimento, pois exige
deles uma fala e uma prova de que são bons, é tido como mau. Condições nas quais: “o
hipócrita é elogiado”. Os bons só são bons na falta de algo melhor. O ideal da decadência
só predomina no poder porque por bastante tempo “não houver concorrente”. Nietzsche
fez uma libertação da linguagem moderna na medida em que uniu auto-elogio com
propaganda. Simbiose louca, poética, propagandista. Por isso, as falas que dizem que
Nietzsche se aproximou do nazifascismo são sem sentido. O fascismo possui tons de um
ponto de vista procedimental. Uma cultura ressentida e não auto-elogiosa. Uma
publicidade como amostragem de ressentimento e vingança, os fascismos passados e
futuros sempre foram, politicamente, insurgências de perdedores magoados de energia
negras da cor do petróleo, dispostos a fazer modificações em regras para se
apresentarem como vencedores durante um tempo de exceção. Zaratustra afirma: “tudo
que toco se transforma em luz”. A morte como consumação, que é para alguns vivos um
83
aguilhão e uma promessa. O sol, o astro de Apolo desempenham uma função de profeta.
Somente os sóis podem falar assim de si mesmos. Gestos de esgotamentos e não
reservas, com a capacidade de perecimento como novas afirmações e sem lamento (o
amor fati não nos lembra um pouco isto?). Uma doutrina solar. O sol também não é
energia? Não a chamamos hoje de “energias alternativas” ou “energias renováveis”?
Nietzsche não nos fala de “flechas solares aniquiladoras?” Um sol e uma vontade
implacável de ser sol? Absorção e reemissão? Quem é penetrado, é. Quem brilha em ti,
portanto tu és. Um sol que perfura e vence. Um verdadeiro bissexual que deseja ser
transpassado. Nietzsche comemora um transbordamento de abundâncias, e de
elementos estranhos que é o mundo: “... enquanto meu pai, eu já morri, enquanto minha
mãe, eu ainda vivo...”. O homem se inclui, desde então, entre os mais inesperados e
emocionantes lances no jogo da “grande criança” de Heráclito, chama-se ela Zeus ou
Acaso. Nietzsche faz referência ao fragmento 52 de Heráclito que diz “o tempo é criança
brincando, jogando; de criança o reinado”. Ele desperta um interesse, um tesão, uma
esperança, quase uma certeza, como sem com ele algo se anunciasse, algo se preparasse,
como se o homem não fosse uma meta, mas apenas um caminho, um episódio, uma
ponte, uma grande promessa.
Para Sloterdijk, toda dádiva (presente, doação) implica, de algum modo, a
“estrutura da troca”, e a questão é o que ocorreria se a relação entre a dádiva e a contra-
dádiva fosse permanecer completamente aberta. Sua argumentação é de que a estrutura
da troca não invalida nada na doação, uma vez que a doação é sempre uma relação que
não estabelece nenhuma simetria sincrônica. Não se trata de uma nota promissória para
pagar num banco. Dádiva e contra-dádiva estão ligadas uma a outra, e por isso mesmo
toda dádiva de um bem, tem preço. Contudo, há muitas coisas que não tem preço, ainda
que precisem ser mantidas, que necessitem ser pagas. Nesses casos, um grande retorno
é esperado, mas protelado para a próxima geração ou talvez cinco gerações mais tarde.
Ninguém esperaria um ser humano se desculpando por uma tal demora.
Fukuyama (1992, p. 215):
como bancos nos quais os cidadãos podem investir ou aplicar suas frustrações,
instituições ou locais de “administração da ira”. Locais de coleta da ira, como um banco
que é definido como o local de se acumular capital. Um centro de depósito de ira e
esperança. Quem não junta a raiva e a esperança não vai às eleições (se cai no
anarquismo) ou se afunda na clandestinidade ou em uma “sociedade eterna” concebida
como sem projeto. Enquanto se tiver perspectivas políticas devemos compreender os
partidos políticos como estações que fazem a coleta da ira e da esperança, todos
sabemos a confusão que essas duas coisas podem exercer sobre os discursos de partidos,
especialmente a tarefa dos políticos dentro dos partidos que consiste em canalizar esse
sentimento de inquietude-intranquilidade das massas, essas ondas ou correntes de
afetos, e lhes dar unidade (um discurso de ira) e (um discurso de esperança). Os partidos
têm que aumentar a ira e a esperança como os bancos (na metáfora de partidos) devem
investir ou aplicar a ira e a esperança em locais corretos. Um investimento bom satisfaz
a todos. Não pode haver a queima de operações de investimentos, por isso que temos
visto na França quando os jovens cheios de ira nos bairros franceses e os coletes amarelos
causando grandes desordens e queimando colchões, é uma forma de expressar a ira que
não varre o investimento. A metáfora do banco tem a grande vantagem de que este
primário psicopolítico. Não só os que estão acima, mas todos os que estão em uma
“situação” tanto materiais como os resultados de vida, lhes pertencem um excedente. Os
alemães que pagam impostos diretos deveriam pensar de novo sobre o fundamento de
sua relação com a essência comum. A Suíça poderia estar de acordo com este desafio de
abrir as portas, e na Alemanha e em outros lugares que conseguiram têm que ver de
alguma forma com que se foi exigido uma helvetização do mundo ou da Europa ao menos
porque é dito que o se o cidadão não aprende no “momento que é mais intenso”, o de
pagar os impostos, deve estar muito alerta e consciente do que faz. A vida se converterá
em uma realidade psicopolítica construída de maneira falsa. Os alemães a cada quatro
anos elegem um novo governo, pagam impostos a cada mês (a cada dia?), e nesse
momento em que eles patrocinam materialmente a essência comum (Welfare-State)
através do pagamento de impostos, nesse momento eles estão em uma situação atual
de que a maioria automatiza um sentimento de humilhação, lhe é pedido até os centavos
(cêntimo), no lugar se sentir-se cidadãos frente a sua essência comum, em um Estado em
que só em modo passivo observa a garra das finanças dentro do seu bolso. Deveríamos
87
dizer que os impostos são ou temos que pensa-los como um dom. Quando eu pago os
impostos nos limitamos a tolerá-los, isto não é um cidadão, é a simples verdade sobre a
relação entre cidadão e a essência comum. A mão que dá e a que toma. A orgulhosa mão
que dá e a nova questão social.10 Para nossos pêsames não temos uma filosofia fiscal.
Temos bibliotecas inteiras cheias de livros e literaturas, livros sobre economia, finanças,
porém nenhum de filosofia fiscal. Desde a Idade Média até a idade atual, não há nenhum
só tratado filosófico sobre o tema, nem ao menos “fiscalidade” como tema. Na Idade
Média se dizia que deveria se deixar pensar aos politólogos e aos ministros da Fazenda.
Isso seria que dizer: Ubi Fiscus ibi imperium – “Onde há o Fisco, há império (controle)”.
Onde está o fisco está o castelo do imperador-rei ou onde está o fisco, então o castelo
do rei, aí está o império, o que tem poder. Nesse nível se sabe é que se deve discutir o
problema dos impostos. Todos nos encontramos em uma zona de “cidadania fiscal”, em
que ao mesmo, somos castrados ou desestimulador através da fiscalidade moderna, e
em um ponto essencial no estado material – o da essência em comum. Vivemos em um
tempo anterior à democracia, e digo isto me dirigindo para um grande elogia da
fiscalidade Suíça porque em outros lugares a coisas funcionam de outra maneira. Lá há
uma grande competência fiscal entre os cidadãos, eles pagam os seus impostos com o
coração. Com que sentido deram seu cheque e o entendem foram congratulados com
uma carta da Fazenda. Em alguns cantos passa. Mas na Alemanha poderia ser o fim do
mundo se a Fazenda enviasse uma carta. Muitos se perguntariam: “Deixei de pagar algo?”
Ou na carta estaria escrito assim: “Querido senhor (a), expressamos nossos
reconhecimentos porque este ano você contribuiu tanto com o objetivo de que queres o
bem comum e sabermos valorar seu esforço”. Se algum alemão recebesse uma carta
assim, pensariam que era um sinal de que o fim dos tempos estaria próximo. Um sinal de
uma autêntica cultura cidadã se estaria construindo novamente, que passamos dessa
cultura de cidadãos passivos, a uma democracia participativa. Uma perspectiva de uma
10
ROCCA, Adolfo Vasquez. Sloterdijk: Posdemocracia Impositiva y Genealogía Del Orgullo (Thymos) –
Polémica en Torno a la Fundamentación Democrática de los Impuestos Capitalismo y Cleptocracia – El
Timótico Impulso a Dar. Conferência Inaugural do Seminário: “Peter Sloterdijk: Do Mundo Interior da
Capital até ao Útero Social”. Trama Interdisciplinar. São Paulo, Vol. 7, Nº. 3, 2016, pp. 201-206. Disponível
em:
<https://www.academia.edu/32010328/SLOTERDIJK_POSDEMOCRACIA_IMPOSITIVA_Y_GENEALOG%C3%
8DA_DEL_ORGULLO_THYMOS_POL%C3%89MICA_EN_TORNO_A_LA_FUNDAMENTACI%C3%93N_DEMOC
R%C3%81TICA_DE_LOS_IMPUESTOS_CAPITALISMO_Y_CLEPTOCRACIA_EL_TIM%C3%93TICO_IMPULSO_A
_DAR>. Acesso: 11. Mai. 2019.
88
democracia direta seria suficiente paro um Estado? Não teríamos que considerar
aspectos financeiros? A democracia tem um código para reclamar sua vida que não
estaria privada de esperança. Trata-se de um código existencial, se diz democracia, e se
quer dizer com democracia, uma vida suficientemente rica-cheia de atividades,
participações suficientes com as coisas boas da vida. Tudo isso se encontra atrás da
palavra “democracia”.
pagar. Aí teríamos uma espécie de compensação por um “crime” originário, tratado como
pecado (mamom bíblico): o cercamento da terra, a chamada propriedade privada. Se isso
é assim, impostos passam a ser dívidas. Os cidadãos têm que ver a diferença entre o
ministro do culto, isto é, um processo social de uma geração. As nações não só lugares
de capital, no ranking das nações decide a atratividade industrial, e em nível de sentido,
as nações não são lugares onde se têm propriedades? Nações são antes de tudo, lugares
onde ocorre a reprodução dos seres humanos, onde nascem crianças e filhos, não só
onde os interesses produzem interesses, e os cidadãos sabem que sobreviver depende
de um processo generacional e, deve ser investido em formação-treinamento. Os
grandes bancos nesse sentido, estabelecem previsões para execução ou para se executar
em momento futuro em que já não se trabalhará mais. Essa situação consiste pela
primeira vez em que há uma União Europeia que se converteu em uma grande unidade
política que não é um império, mas algo como uma sociedade assegurada politicamente
instrumentalizada, uma pura união política. Este é provavelmente o verdadeiro nome da
Europa que foi usado por um tempo, e está cada vez mais claro uma demografia negativa
onde a população é cada vez maior. Nietzsche chamou isto de “o último homem”. É o
que hoje há na Europa nas grandes cidades onde vivem entre 15% e 16% em casas
individuais-apartamentos (estilo single), o mesmo pode ser visto com os carros. Esta é
uma representação demográfica do “último homem” de Nietzsche. A reprodução
especialmente nas camadas médias não passou muito de 1.3 crianças por mulher
(Europa), mas é suficiente para eles se implicassem nessa exigência de processo
generacional. A decisão sobre o vencimento da vida é quando uma civilização falha.
Não se trata aqui mais de socialdemocracia versus liberalismo conservador. Faz
tempo que os melhores pensadores abandonaram tal dicotomia. Trata-se de buscar algo
como o lema: “iniciativistas do mundo, não temam, inventem, criem, cuidem”; uni-vos.
O combate da direita contra a esquerda foi por muito tempo o combate entre o
pesado contra o ligeiro. A esquerda correspondia ao desejo de aligeirar existência, a
direita, o de colocar cargas. É pertinente esta divisão quando nos perguntamos se há
nada mais ligeiro que o capitalismo atual? O capitalismo que propõe aliviar a vida e ocupa
o lugar da antiga esquerda cuja clientela básica a formava de quem sofria uma vida
demasiado dura. Assim se faziam de esquerdas para compartir a vida com aqueles que
não tinham algo fácil. No fundo é muito simples. Não se trata de moral abstrata, mas de
91
ideias concretas de luta e justiça. Porém, aí devemos apelar, para uma internacional de
empresários. Os empresários compartem o destino dos trabalhadores. Desempenham
um trabalho preciso e difícil. Não famoso da nova e frívola classe de líder, mas sim de
quem se compromete com a produção de bens concretos. Esses empresários se reuniram
com o antigo proletariado porque tanto uns como outros sabem que estão contribuindo
para a produção. Existe verdadeiramente uma nova oposição entre produção e
especulação. Para ser conservador, deve-se possuir bens que mereçam ser conservados.
Qualquer colecionador de vinhos sabe que não beberá suas melhores produções e
garrafas. Isso é válido para todas as culturas materiais suja superveniência podemos
deseja para as outras gerações de usuários. Essa é uma definição bastante elegante
convincente de um bom conservadorismo. se nada merece ser preservado, resulta em
vão lutar pelo acesso das massas aos bens das elites.
Podemos sim encontrar mecanismos de incentivo da criação, iniciativa e cuidado
nos mais diversos campos. Trata-se de uma política de solicitação de reconhecimento de
setores e indivíduos por aquilo que esses setores e indivíduos iniciaram, pelo qual se
arriscaram e cuidaram. Uma política de reconhecimento regada por um grande clima
timótico, e não mais meramente erótico. O capitalismo trouxe duas tendências para a
sociedade moderna: a) Gerou o ímpeto para o risco. A ideia da fortuna advinda das
navegações (também chamadas de capitanias) e movimentos primitivos de globalização,
a participação no jogo de sorte e azar que é requisitada a todos. b) Gerou a tendência
para o desarmamento geral, combinação de capitalismo e cristianismo fomentou
prosperidade nos negócios e acordos para a participação de todos na requisição da paz
(do ponto de vista sociopsicológico, é importante reparar no fato de que as épocas pós-
guerras normalmente durarem mais do que a própria guerra). A teologia e a ontologia
são desde o início doutrinas da forma recipiente redonda.11 É só com esse “modelo” da
forma esférica as figuras do reino e do cosmos podem ser pensadas de maneira
insubstituíveis. Essa totalidade de tudo é descrita por uma imagem de uma esfera.
Sloterdijk toma o globo como ponto inicial. Coincidentemente Nicolau de Cusa disse que
“toda teologia está contida no círculo”. “Por mais que os teólogos insistam em considerar
que seu Deus é mais profundo que o Deus dos filósofos, mais profundo que o Deus dos
11
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Bolhas (Microesferologia). Tradução: José Oscar de Almeida Marques. São
Paulo: Estação Liberdade, 2016, p. 61.
92
teólogos é o Deus dos morfologistas” (SLOTERDIJK, 2016, p. 61). Essas ideias de uma
redondez constitutiva e necessária do todo era infalível, e nos davam pistas sobre a
função e o modo de construção das ontologias políticas nos impérios pré-modernos. Não
há nenhum tipo de reino tradicional que não tenha sido um reino esférico, ou seja, suas
fronteiras são baseadas por meios cosmológicos adentrando nela uma imunologia
política. Para Sloterdijk a história do mundo é uma permanente história da guerra dos
sistemas imunológicos. As geometrias militantes. A primeira forma de religião foi forjada
na ideia do logos. Heráclito se dizia a voz do Lógos, que este falava por ele, e Heidegger
insistiu na ideia da linguagem como não sendo utilizada por nós, mas sendo algo do Ser
que se serve de nós. A linguagem é antes a casa do ser, pois ao morar nela o homem
existe (ek-sistiert), à medida que compartilha a verdade do ser, guardando-a. O que
importa, portanto, na definição da humanidade do ser humano enquanto existência (Ek-
sistenz), é que o essencial não é o ser humano, mas o ser como a dimensão do extático
da existência. Depois ele retoma à teologia cristã na ontologia da esfera, até a “tragédia”
morfológica num processo mais moderno de infinitização de Deus e do universo.
Nesse sentido, poderia ser descrito como o componente exotérico do projeto:
Esferas II – Macroesferologia. Ele examina a noção de que culturas mais antigas
imaginaram o mundo principalmente como um círculo infundido pelo espírito. Como a
geometrização do cosmos foi realizada pela primeira vez pelos gregos, depois
reconstruído a geometrização de Deus sob os filósofos neoplatônicos, o que nos dá a
sensação de reabrir um dos capítulos mais empolgantes da história das ideias. De tudo
isso resultou, como que por si só, uma história filosófica da globalização: primeiro o
universo foi globalizado com a ajuda da geometria, depois a terra foi globalizada com a
ajuda do capital.
A primeira globalização a 2500 anos deve ser vista como um processo com a
criação das primeiras grandes visões de mundo. Eram os primeiros matemáticos, os
primeiros filósofos, os primeiros cosmólogos que utilizaram o modelo cosmológico
(geômetras) da esfera para interpretar a realidade do todo. A globalização é o resultado
do compasso para reconstruiu a forma do mundo. Este êxito desencadeia um sentimento
de triunfo nesses primeiros pensadores porque pensam que eles encontraram o truque
de como Deus atua, e a inteligência humana se converte em uma sucursal da fábrica
“matriz” da inteligência divina. Esse entusiasmo põe em curso a primeira ilustração: a
93
dos alemães. É no Museu Nacional alemão de Nuremberg: um globo que no ano decisivo
de 1492 foi construído de acordo com modelos portugueses pelo comerciante de
Nuremberg, Martin Behaim. Mostra o contorno pré-colombiana dos continentes, por isso
tem o retrato velho mundo ptolomaica três continentes, mas corretamente, ou seja, em
um planeta redondo. Para Aristóteles e seus sucessores, o centro físico do mundo era um
lugar funesto, uma cloaca cósmica, um local de movimentos finitos e morte, um local dos
cemitérios sublunares. Não é uma causalidade que os cosmógrafos católicos localizaram
o seu inferno no centro da Terra, no centro absoluto de tudo. A antiga imagem europeia
do mundo tinha uma visão satanocêntrica ou infernocêntrica e representa, um oposto a
qualquer construção central narcísica. É por isso que se pode dizer que Behaim estava
certo como Colombo. Descobrir a América e representar o globo são, pelo seu significado,
a mesma ação em dois meios diferentes. Entre os pioneiros da globalização terrestre
inicial, destaca-se o grupo de fornecedores de especiarias. Esses comerciantes à distância
são aqueles que acreditavam na capacidade de desenvolvimento do paladar europeu e
que montaram seus negócios com a convicção de que a modernização começa no palato.
O espírito da utopia e do empreendedorismo são, até agora, um e o mesmo, pois ambos
são fundações orais, ambos servem ao mesmo apetite que mostra claramente sua
insaciabilidade. O próprio Magalhães morreu nas Filipinas em um confronto
desnecessário. Vários navios foram perdidos de sua pequena frota devido a uma
tempestade e os amotinados, e apenas uma de suas fragatas que partiram, a pequena
Victoria, retornou à Espanha em setembro de 1522 com dezoito marinheiros quase
morrendo de fome a bordo. Ele chegou na cidade portuária de Sanlúcar de Barrameda e
confirmada por sua mera troca os terríveis acontecimentos em que todos modernidade
se baseia por um lado, que a Terra pode ser cercado em uma direção, o que
consequentemente oceanos formam um pano de fundo, estão ligados, e são navegáveis
globalmente, e também todo o planeta é rodeado por uma atmosfera que pode ser
respirado pelos navegadores europeus (que esta não era tão evidente antes de
experimentar, como mostrado em consideração uma retrospectiva dos mesmos). O que
os retornados da viagem de Magalhães trouxeram com eles foi uma indicação de que não
podia mais ser ignorado, unidade atmosférica de área de terra e sistema de tanto vento
e do tempo, em alguma medida confiável. Capital globalizado é o dinheiro que, para ser
lucrativo, precisa girar em torno de toda a Terra. Essa observação já reflete uma verdade
96
do início do século XVI. É difícil superestimar a importância desse fato. Neste contexto,
uma história da natureza caótica da globalização precoce precisa ser contada, mas
também é apropriado para refutar a tese de que é muitas se ouve: que a economia
mundial, só nos últimos vinte anos, entrou para o redemoinho de movimentos
especulativos de dinheiro. Estamos certos de que é antes a transposição das práticas e
mentalidades europeias sobre a ação de risco generalizada que produz a energia ofensiva
eficaz e surpreendente, quase misteriosa, das primeiras gerações de descobridores. O
gosto pelo risco de que dão mostras os novos atores globais são animados, em última
análise, pela necessidade de realizar lucros para apagar as dívidas associadas aos créditos
de investimento. Os europeus de 1500 não são mais cruéis, gananciosos, nem mais
capazes do que qualquer linhagem anterior a eles. Seu diferencial é que eles têm mais
gosto pelo risco, têm mais desejo de conceder crédito, do lado dos credores, e estão mais
dependentes do crédito, do lado dos devedores, o que corresponde a uma mudança ao
paradigma econômico, que passa da exploração antiga e medieval dos recursos a
economias fundadas no investimento. Com este tipo de ação econômica, a ideia dos juros
a pagar dentro do prazo é convertida em assunções de risco práticas e em invenções
técnicas. A empresa é a poesia do dinheiro. Tal como a necessidade aguça o engenho, o
crédito estimula a empresa. Se o exterior é também o futuro e o futuro poder ser
apresentado após a “invenção do mundo” como espaço de onde provêm o saque, a
riqueza e a bem-aventurança, os primeiros navegadores, sábios, príncipes, viajantes do
mundo e os primeiros comerciantes desencadearam essa tormenta de investimentos em
direção ao desconhecido, o desenvolvimento posterior do capitalismo informático atual.
A globalização nesse sentido mais cru é a futurização geral do comércio estatal,
empresarial e epistêmico. Ela é a submissão do globo à forma de rendimento. O lucro
significa algum dinheiro que inicialmente alguém arriscou e que regressou à sua conta
original após ter dado voltas aos oceanos. Hoje o dinheiro quer girar mais rápido que a
própria terra. A avidez por lucro tem consequência aceleracionistas evidentes. A
globalização terrestre é uma avidez para um cunho de espírito de empresa. O globo é a
mesa de jogo em que os investidores-aventureiros põem as suas apostas. O surgimento
do globo, a rapidez com que se impôs e a sua regular atualização simbolizavam o início
da era dos global players, em cujo mundo se veem naufragar muitos barcos, mas onde o
sol não se põe. Esse negócio internacional inaugurou a natureza eminentemente
97
em 1939, a bordo do Chrobry, experiência que está em seu romance de 1953, Trans-
Atlantyk. E Roger Caillois, que faz no mesmo ano o mesmo trajeto, mas partindo de
Cherbourg. Um pouco antes, em 1918, Marcel Duchamp também pegava um navio em
direção a Buenos Aires, o Crofton Hall. Borges, que nessa época morava em Genebra,
escreve o seguinte em seu Ensaio autobiográfico: "Em consequência da guerra, não
fizemos outras viagens, exceto aquela à Itália e excursões dentro da Suíça. Em pouco
tempo, desafiando os submarinos alemães e em companhia de apenas quatro ou cinco
passageiros, minha avó inglesa juntou-se a nós".
Não demorou muito para que o princípio televisão dominasse a época com suas
imagens animadas emergentes. Este era um dado esperado já que previsão e a visão à
distância do empresário se serviam desse meio que era o globo, um meio que por si só,
já necessitava de atualizações constantes. As imagens animadas do século XX são
precedidas pelas imagens renováveis da grande época do globo e dos mapas. As nações
integradas nesse tipo de economia após a Revolução Americana se reestruturaram cada
vez mais no sentido da democracia, tal deu-se depois de terem descoberto que os reis,
nos conselhos de administração desses coletivos de investimento político, passaram por
fatores improdutivos. A história recente é marca de um desemprego estrutural e de longa
duração dos monarcas. Desde o início, a aventura oceânica mergulhou em seus atores
numa competição pelas oportunidades ocultas em mercados longínquos e opacos. Já
incidia a famosa frase de Cecil Rhodes: “expansão é tudo”.
Spengler fez desta frase o axioma das épocas das civilizações que precederam
a morte das culturas altamente civilizadas. Ele diz em seu A Decadência do Ocidente que
99
a expansão é uma fatalidade, algo de demoníaco e temeroso, que se apodera dos homens
tardios da era mundial e o esgota. Aquilo a que os economistas, como Marx, chamaram
de acumulação primitiva era, frequentemente, sem dúvida, como o exemplo referido,
mais uma acumulação de títulos de propriedade, de opções e de reivindicações de
usufruto do que a gestão de instalações de produção com base no capital investido. O
globo moderno teve sucesso como relógio das oportunidades para uma sociedade
composta por empresários das longas distâncias e tomadores de riscos que entreviam
assim sua riqueza de amanhã nas contas dos outros mundos. Um relógio que mostrava
as horas do que ainda não existe, esses agentes da época moderna foram os espíritos
conquistadores, os mercados de especiarias, os pesquisadores de ouro, e os futuros
partidários do realismo político, que ouviam a hora a soar para as suas empresas, seus
empreendimentos e os seus países. O capitalismo não só cria aceleração, como também
o luxo, o refinamento, o toque final para uma situação global de conforto. Vê-se que a
noção de “descobrimento”, do ponto de vista epistemológico e político, foi o termo
dominante da época moderna, designava uma entidade autônoma, mas um caso
particular do fenômeno do investimento. O investimento por seu turno, é um caso
específico do comércio de risco. Quando os esquemas do comércio de risco se propagam
universalmente, atividades como: contrair créditos, investir, planificar, inventar, apostar,
arranjar seguros, repartir lucros, constituir reservas, surgem homens que querem criar
sua própria sorte e seu próprio futuro com o jogo de oportunidades, planejamento,
expectativas, acordos, promessas, que já não desejariam mais as receber apenas das
mãos de Deus. As evoluções que conduzem a ideias globais metafísicas são inseparáveis
do expansionismo dos povos e impérios primitivos e não são concebíveis sem um
aumento da transmissão de capacidades e conhecimentos. Sem uma penetração do
mundo de forma intensificada não há conceitos alargados de mundo. São os homens que
na nova economia da propriedade, monetária, e a atual, adquirem a experiência de que
os danos nos fazem inteligentes, mas as dívidas ainda mais. O personagem chave da era
moderna é o devedor-produtor (o empresário), que flexibiliza seus procedimentos
comerciais, as suas opiniões e a sua própria pessoa para utilizar todos os meios
autorizados e não autorizados, comprovados e não comprovados, alcançar lucros que os
permitirão reembolsar em tempo hábil os créditos que contraiu. Esses devedores-
produtores conferem à ideia de dívida contraída o seu significado inovador da época
100
O mais antigo globo sobrevivente da Terra, foi construído por Martin Behaim
em 1492. Erdapfel (que significa “terra maçã” ou “terra batida” em alemão) era feito de
uma bola de linho, laminado e reforçado com madeira antes de ser coberto por um
mapa pintado por Georg Glockendon. Está repleto de imprecisões, deixando de fora as
Américas e ampliando as ilhas asiáticas e o Japão. Pode retratar as ilhas do Caribe sob o
nome de Saint Brendan's Island, uma criação mítica.
Terra não possui saída, nem em casos normais, nem nos emergenciais. Essas placas
luminosas merecem atenção ou são apenas uma suave hipnose para passageiros com
medo de voar? O medo dos passageiros a bordo da Terra precisa ser mitigado por meios
mais concretos a atualizados. Para se tratar disso são precisos meios e procedimentos
cognitivos e técnicos revolucionários. Essa aprendizagem didática catastrofista à própria
custa identifica-se com o ato que temos à nossa frente no drama da história do gênero
humano. Dado que a humanidade percorre o caminho para o que nunca houve como um
aluno sem professor, teria de ensinar a si próprio aquilo não pode aprender com mais
ninguém. Se a didática da catástrofe projeta uma luz que esgana o Iluminismo, então
poderíamos dizer que, está em jogo uma agonia da verdade. Se como se diz hoje que
catástrofes “revelam alguma coisa” apenas nos pode tocar de modo sugestivo porque
como se sabe, associamos verdade com revelação, em grego, apocalipse.
Desde que a verdade, na medida em que “aparece”, é concebida como vir à luz
ou como estar-patente. Assim, qualquer forma de iluminismo termina um drama da luz
ou da iluminação. Sem esse elemento fotológico, não saberíamos o que significa o saber,
nem o conhecimento como lado luminoso das coisas, já que para nós, homens modernos,
a possibilidade de “conhecimento da verdade” está ligada à passagem para a luz,
desvelamento, descobrimento, de coisas anteriormente escuras. Entretanto, esse pacto
da racionalidade ocidental está cada dia que passa em extinção, desde que nós podemos
empregar que aquilo que traz a luz como sendo o que traz a morte. As metáforas para o
bem e para o mal ganharam contornos históricos. Na perspectiva fotológica, iluminação
106
natural ou artificial de corpos sólidos, sua reflexão autárquica que chegam à visibilidade,
transformação final dos corpos em luz – radioscopia ativa e invasiva dos corpos
(ressonâncias e raios-x). Mais uma vez metáforas medicinais e biológicas poderiam ser
associadas com militarismo e armas nucleares. Corpo em objeto, objetos para serem
iluminados, atravessados por luz ou transformados em luz. No Iluminismo ainda se tinha
um sentido de estádio médio (analítico) da lógica radioscópica. Com a física nuclear
moderna atingiu-se a transformação radical da matéria em luz. Luzes que quando se
acendem podem apagar toda uma espécie. Através do homem ocorrem processos de
explosão como guerra mundial, exploração total da terra e do vivente em áreas de
produção, poder, comércio, bens e consumo. Entra a questão fundamental da técnica se
olharmos mais atentamente a fenomenologia da política de morte com um olhar para
um relâmpago de destruição. Foi Jaspers na sua obra A Bomba Atômica e o Futuro do
Homem que interpretou de maneira mais profunda os eventos e acontecimentos
históricos do seu tempo, esse tempo em que os homens se converteram em lordes do
fogo nuclear, era evidente que ele compreendia a questão do Ser não podia, que ela não
podia ser separada da questão do poder e da técnica. A ruptura metafísica com o mundo
“superficial” da manifestação abrangeu, primeiro, os órgãos cognitivos da percepção
(para garantir o efeito de ordem), estes deviam se espiritualizar e se retirar da
perturbação do que é o presente e disponível. Esse foi o primeiro passo dado para um
“iluminismo” que conduz toda uma cultura da transparência, na qual todo o existente é
transportado do estado de iluminação ou de sombreamento natural para o da
translucidação lógica (etérea poderia funcionar aqui?). A princípio não sabemos bem se
estamos a falar de Iluminismo ou de misticismo. Por regra geral, entendemos o
Iluminismo ou pensamento experimental a contemplação de coisas claras ou auto-
evidentes, a apreensão daquilo que alguém vê por meio de descrições publicamente
acessíveis. Quando um primeiro olhar ou uma primeira visão não é suficientemente
profunda, descobrimos por onde devemos contornar e penetrar nas coisas e no seu
interior é então exposta à luz. Com isso, se tornou um gesto prático e típico fundamental
no Iluminismo, o de trazer o oculto para a luz do dia. Realizar clarificação,
desocultamento, uma época das imagens de mundo. Não vemos máquinas e dispositivos
humanos, especialmente os de captura, com luzes, lasers, sinais? E a metafísica da luz
como teologia não era com base na ideia de revelação? As grandes culturas sempre não
107
falaram sobre luzes? Astros e estrelas que brilham? Eclesiastes diz em uma passagem que
“O louco muda como a lua, o sábio é estável como o sol”, quis demonstrar que todos os
homens são loucos, e que o título de sábio pertence somente a Deus. Pela lua, os
intérpretes entendem a natureza humana (especialmente as mulheres, não usamos a
expressão “aquela pessoa é de lua” ao acreditar em diversas fases? Algo como mudanças
de humor constantes?), e, pelo sol, Deus, que é a fonte de toa a luz. Tudo o que se chama
matéria é definido por opor resistência à luz. Se a luz tem uma pura capacidade de
propagação, então só podemos tomar a matéria em consideração como um princípio de
obstáculo. Aqueles que pensam e se pronunciam contra os obstáculos têm de começar a
fazer sua eliminação. O chamado Iluminismo da era moderna também quis apresentar-
se como luta da luminosidade contra a obscuridade, uma constituição ingênua da
metafísica antiga da luz (João 8:12). É muito importante entender o conceito esférico de
um modo que indica uma tensão entre abertura e impenetrabilidade, a proximidade e a
impenetrabilidade estão relacionadas, pois só desta maneira se compreende qual é a
disposição falhada do idealismo, em outros termos, o fato de ter sempre associado
erroneamente a proximidade com a transparência e a distância com a opacidade.
Heidegger fez uma proposto de modo semelhante, mas com um aspecto
subversivo. Ele não só nos instiga a pensar e contemplar o que se revela à luz, como a
refletir no encontro entre a luz e as coisas, ou seja, nos convida a meditar sobre a clareira.
A clareira, é, portanto, um clarão que forja o mundo, mas quem o fixar diretamente cega.
Não é possível olhar fixamente nem para o sol nem para a morte, essas são as palavras
de um texto famoso de La Rochenfoucauld, na visão de Heidegger, tão pouco seria
possível fixar o homem ou a clareira. O humano seria algo que se sabe que se tem, já o
humanismo, um fundamentalismo de nossa cultura, funciona como um tipo de religião
política do homem ocidental globalizado como em uma atitude que deveria ser copiada
e imitada por outras culturas. Tem uma visão eminentemente edificante de si mesma,
hoje já rachada. Heidegger procurava fundar uma espécie de religião anônima, uma
religião da clareira. Quando ele mostra que o homem tem um espaço do Ente que se
coloca em geral a questão do Ser, Heidegger converte-se em um ontologista de uma
inospitalidade do homem na sua própria casa. Quando o homem se define como aquilo
que é, o faz de modo convencional, em termos de animal racional, limita-se em relacionar
dois atributos (é alguma coisa) com que está aparentemente familiarizado. Imagina saber
108
de si, por saber o que são os animais e crê entender o que é a ratio. Acredita ter adquirido
uma visão do assunto e sente-se em casa.
A tecnologia não é neutra. Ela é eminentemente capitalista. Talvez parece ser
sensato diz quer que as religiões, tal como as teorias e obras de arte, se tornaram, no
século XX, bens comerciais, se não for o caso de diz quer que são prestações de serviços
obrigadas a aceitar as condições gerais do mercado. Karl Mannheim chamou de “o influxo
da concorrência no domínio espiritual”. Podemos dizer que lidamos com produtos
forçosamente acomodados às expectativas de seus clientes. Teologias poderiam ser
grandes programas editoriais. A fé na percepção desinteressada das ciências naturais
modernas, ocorrida especialmente com os acontecimentos de Hiroshima e Nagasaki. A
até então rainha das ciências, a Física, perdeu sua inocência e foi relegada para o tumulto
das lutas de titãs. O filósofo Carl Friedrich von Weizsäcker, participou o desenvolvimento
fracassado da “bomba alemã” ao cunhar a fórmula “ciência e responsabilidade”. Com
tanto, não só se formulou uma máxima de cognição ética para as ciências da natureza na
civilização tecnológica, como também proporcionou abordagens à inesgotável de
redefinir a configuração esoterismo científico e do exoterismo político. A infiltração da
empresa acadêmica do discurso pela sociologia do saber, que escancarou a aparência de
teoria objetiva, demonstrando que todos os discursos habituais estão ligados a padrões
de sucesso acadêmico e aos jogos de linguagem das maiorias no poder. Com a
epistemologia e sociologia da ciência temos: Kuhn, Foucault, Latour, etc. Max Scheler, foi
quem no início do século XX, foi um dos primeiros a fazer uma síntese deste tipo de
investigação em seus estudos sobre sociologia do saber. Neles revelou que as ideias estão
indissociavelmente ligadas à interesse. Dessa forma teríamos: saber de formação, saber
de salvação e saber de dominação. Os três grandes complexos antropologicamente
possíveis de dedução, de interesses na formação, na salvação e na dominação. O
“interesse” palavra que funcionava como uma senha educada das paixões desde o século
XVII, consumou em uma catástrofe da teoria pura (poderíamos botar Kelsen na conta?).
Com a teoria dos paradigmas de Thomas Kuhn e a teoria do discurso de Foucault, vemos
que até hoje não fica claro como devemos ler estas explorações como etnologias
imparciais do campo teórico ou como denúncias críticas do conformismo discursivo. Em
caso de etnologia, ela seria um ótimo corretivo da sociologia.
109
É verdade que nada poderia ter sido mais alheio ao propósito dos exploradores
e circunavegadores do início da era moderna que esse processo de
12
SLOTERDIJK. Peter. Esferas II: Globos (Macroesferología). Traducción de Isidoro Reguera. Editorial Siruela,
2004a, p. 509.
111
avizinhamento; eles se fizeram ao mar para ampliar a Terra, não para reduzi-
la a uma bola; e, quando atenderam ao chamado do distante, não tinham
intenção alguma de abolir a distância. Somente a sabedoria da retrospecção
vê o óbvio: nada que possa ser medido pode permanecer imenso; toda
medição reúne pontos distantes e, portanto, estabelece proximidade onde
antes predominava a distância. Os mapas e as cartas de navegação das
primeiras etapas da era moderna anteciparam-se às invenções técnicas
mediante as quais todo o espaço terrestre se tornou pequeno e ao alcance da
mão. Antes do encolhimento do espaço e da abolição da distância por meio de
ferrovias, navios a vapor e aviões, deu-se o encolhimento infinitamente maior
e mais eficaz resultante da capacidade perquiridora da mente humana, cujo
uso de números, símbolos e modelos pode condensar e ajustar a escala da
distância física da Terra à medida do sentido natural e da compreensão do
corpo humano. Antes que soubéssemos como contornar a Terra, como
circunscrever em dias e horas a esfera da morada humana, já havíamos trazido
o globo à nossa sala de estar, para tocá-lo com as mãos e girá-lo ante nossos
olhos.
explorar esse oceano negro que é o espaço. Parece que nesse oceano tudo nos é ainda
desconhecido. Há uma diferença significativa em como se percebe as globalizações com
relação à globalização eletrônica. Suas diferenças vão de que existe uma diferença entre
medir uma esfera idealizada com linhas, formas, compassos, intersecções e, por exemplo,
percorrer uma esfera real com barcos, navios, criar imagens cartográficas, colocar aviões
em circulação, sinais de rádio na atmosfera do planeta, até no limite, de uma unificação
da Terra através do dinheiro, mercadoria, virtualização, número , moeda, imagem.
As experiências básicas do moderno e do pós-moderno, que constroem um
mundo baseado na mobilização e na flexibilização de encargos. Isso me permite explicar
o porquê e Sloterdijk ter dito que “A Teoria Crítica está morta”. Na sua opinião, a teoria
crítica da Escola de Frankfurt está ultrapassada e deve ser substituída por um discurso
completamente diferente: por causa de sua herança marxista, os teóricos críticos
sucumbem à tentação realista de interpretar a luz como aparência, e o pesado como
essência. A ideia de antropologia deficitária e o capitalismo-mercado como ideológico.
Outras associações poderiam ser feitas aqui: fascismo, melancolia, trabalho, pobreza,
fraqueza, desilusão, autoconservação, etc. O pensamento da modernidade, que por
tanto tempo se apresentou sob o ingênuo nome de “Luzes” (a filosofia ocidental da luz e
da vista tinha, em sua época de ouro nomes como Platão e Hegel, uma relação bastante
petulante com a realidade do ouvido) e o ainda mais ingênuo termo programático
“progresso”, destaca-se por uma mobilidade essencial. Nietzsche detectou, primeiro em
Platão, depois em Paulo, na Igreja Católica, depois nos círculos iluministas, uma facilidade
de retirada para um Bem sem concorrência. Como Robespierre mesmo disse: “a história
é animada pela ideia da liberdade, do progresso da razão humana”. O modo que
Robespierre falava na cerimônia de 1793 revela que “os progressos da razão humana
preparam esta grande Revolução e é a vós que especialmente se impõe o dever de a
acelerar”. Como seres diurnos, os homens tendem, desde tempo mais longínquos, a
realçar uma mística sobre a luz que ilumina o campo do mundo como o seu espaço de
ação. Sempre que segue seu avanço típico, ele executa um movimento pelo qual o
intelecto irrompe da caverna das ilusões humanas em direção ao exterior não humano.
Não é à toa que a virada da cosmologia, identificada ao nome de Copérnico, situa-se no
princípio da história recente dos conhecimentos e desilusões. A antítese poder e intelecto
é controlada pelo intelecto, como se foi visto, no futuro pegando desde a época de
113
Alexandre e Diógenes, o poder seria visto como uma forma de intelecto obscurecido que
espera as suas luzes. Esta figura mental ocidental só se desmorona com o aparecimento
da teoria do discurso pós-moderna de Foucault, com a qual o próprio espírito se revela
como poder obscurecido. A modernidade está baseada numa ontologia da experiência
através da qual a sóbria humanidade do Ocidente se liberta do torpor mediante os
fantasmas da metafísica da luz e do dia (Apocalipse de João, 21, 23-25).
Sloterdijk (2012, p. 443):
13
Sloterdijk altera nesta passagem a sentença latina verum et factum convertuntur (a verdade e o fato são
convertíveis) em verum et fictum convertuntur (a verdade e a ilusão são convertíveis).
114
a crítica da gravidade. Além disso, podemos reconhecer que a "Teoria Crítica" europeia
não sobreviveu a viagens através do Atlântico incólume. A Teoria Crítica autêntica "em
casa" era, acima de tudo, uma espécie de teologia secreta: ela tratava os fracassos da
criação (também conhecida como sociedade) e criticava a realidade no nome (sem nome)
do infinito.
O cartaz da White Star Line mostra o olímpico o navio gêmeo do Titanic lançado em
1910. Litografia de 1911.
14
SLOTERDIJK, Peter. Actio in Distans: Sobre los Modos de Formación Teleracional del Mundo. Instituto de
Sociales Contemporáneos, Universidad Central (IESCO), Bogota: Colombia, Nº 28, 2008a. Disponível em:
<http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/colombia/iesco/nomadas/28/02-actio.pdf>. Acesso: 09
Abr. 2018.
115
15
Sloterdijk utiliza um jogo de palavras bem complicado: zusammengehören seria “pertencer-se” e
zusammen hören está mais para “ouvir juntos”.
116
vitais que se esfregam umas nas outras sem aperto, as espumas limitam umas com as
outras, se empilham umas sobre e debaixo de outras, sem ser realmente acessível umas
para outras, nem efetivamente separáveis umas das outras. ”. Vizinhos são agora
aplicadores de meios simbólicos e análogos de instituições de imunização dos mesmos
patrões da arte, criatividade e de famílias. Já que vizinhos vivem distantes uns dos outros
a sua semelhança é a intoxicação ou infecções imitativas (intercâmbio transcultural).
Quando se chegam entre eles em uma decisão ou em uma compreensão mútua, a
assimilação das opiniões e de decisões é assim feita porque estão infectados de antemão
pelo analogamento imitativo e pré-sincronizado de analogias eficazes a respeito da sua
localização e instalação nele. É inegável que a arte da conversa como uma assimilação
mútua de negociação se crê na resolução disso em convênios escritos. Entramos em uma
era da vizinhança generalizada, considerando a hipótese de que países não têm mais
fronteiras em comum, espaços eletrônicos agora aproximam as grandes distâncias. Eis
que estamos no mundo atual, construído por um “dentro” de paredes finas.16
Já faz algumas décadas que a maioria das pessoas experienciaram uma
saturação de suas demandas por liberdade. O mercado por liberdade é agora
completamente supersaturado. Porém, o mercado de seguros ainda está aberto porque
os indivíduos podem sentir e terem a experiência de sentirem pânico facilmente do que
uma sensação se completa segurança. Se alguma coisa acontece em qualquer lugar,
todos rapidamente podem ser infectados com o sentimento se sentirem ameaçados.
Como descendentes de mamíferos somos equipados com um programa de stress onde
não possuímos qualquer meio confiável para avaliar a urgência dos perigos. Existem
apenas um tipo de perigo, ou seja, perigo de vida. Não temos nenhum órgão lógico para
reconhecer a diferença entre perigo e risco. A moderna cultura de massa está
doutrinando as pessoas de modo que o risco de vida confuso seja ao mesmo tempo
percebido como perigos para a vida. A modernidade tardia tem tentado consertar essas
divergências criando uma forma de vida de risco em conjunto com segurança máxima. O
risco calculado aparece no capitalismo por meio das Companhias de Seguro, que visam
reintroduzir no mundo caótico a força do destino e do plano traçado. Sloterdijk considera
16
SLOTERDIJK, Peter. Esferas II: Globos (Macroesferología). Traducción de Isidoro Reguera. Madrid: Siruela,
2004a, p. 863. Capítulo 27: La Gran Transformación Inmunológica - En Camino a las Sociedades de Paredes
Finas.
119
que o Estado moderno atual é uma espécie de monstro híbrido. O Estado democrático
moderno gradualmente transformou-se no estado devedor, no espaço de um século,
metástase em um monstro colossal – aquele que respira e cospe dinheiro. Ele é uma
mistura de um Estado semi-ssocialista ou socialdemocrata combinado com resquícios do
estado absolutista com o fisco.17 Assim, a exploração direta e egoísta de uma era feudal
transformou-se na era moderna em uma cleptocracia de estado juridicamente
constrangida e quase desinteressada. A biopolítica do século XX, que nos fez sermos
corpos biológicos (zoé) e não mais vida social ético-moral (bios) não venceu de todo o
ímpeto timótico.
A professora Carla Carmona, escreveu uma pequena introdução na edição
espanhola,18 onde trata das relações timóticas e de sua tradição nas comunidades
políticas preparando os leitores para as ideias que Sloterdijk que propõe a renovação do
sistema tributário como uma das formas de libertar o cidadão do caráter fantasmagórico
que adquiriu na atual democracia. As cidades são bolhas de imunização e de mimo, daí a
domesticidade do homem. Nesses locais, a própria linguagem não é algo essencialmente
do âmbito da comunicação (jogos de linguagem) com sentenças e palavras que ganham
sentido pelo uso e pela função interior e não por “correspondência com o real” como
trata Wittgenstein. Com as cidades como ambientes de integração de indivíduos, povos,
grupos, etnias, religiões, comportamentos, a professora Carla Carmona desenvolve uma
aproximação com Charles Taylor sobre a “política de reconhecimento”, criando assim,
um diálogo intercultural a partir de Sloterdijk e Wittgenstein. Só quando os cidadãos não
se considerarem mais como devedores e agirem como contribuintes orgulhosos
estaremos perante uma verdadeira democracia participativa, onde os políticos seriam
pelo menos um pouco obrigado a responder às exigências dos cidadãos. Não se trata do
chamado para uma redução de impostos, mas da intensificação ética e revitalização de
impostos como doações do cidadão para a comunidade. Às vezes você esquece que a
voluntariedade não leva à perda ou supressão. Sloterdijk neste trabalho nos convida a
17
Matéria: City Journal. The Grasping Hand: The Modern Democratic State Pillages its Productive Citizens,
2010. Disponível em: <https://www.city-journal.org/html/grasping-hand-13264.html>. Acesso: 11 Jan.
2019.
18
SLOTERDIJK, Peter. Fiscalidad Voluntaria y Responsabilidade: Ciudadana Aportaciones a un Debate
Filosófico Sobre Una Nueva Fundamentación Democrática de Los Impuestos. Traduccíon de Isidoro
Reguera. Madrid: Siruela, 2014, pp. 9-26.
120
nos livrar de pessimismo que corrói o pensamento de que a coerção entendida como a
única maneira, e aposta na possibilidade de um cidadão moralmente elevado19 como
Nietzsche já havia falado. O mais rico não precisa pagar mais imposto se a sociedade
estiver imbuída da ideia de que o rico é realmente rico, inclusive o rico. O rico realmente
rico é um empreendedor, um doador, um esbanjador em causas relativamente alheias.
O que normalmente vemos como otimismo e estado de ânimo filantrópico é a
conclusão do fato de que nas últimas décadas com a pergunta da antropologia e da
psicologia humana não só a luz de nossos contemporâneos – ensinamento psicológicos
de base como as que nos relacionamos e que estavam dominadas pela psicanálise, em
pontos vitais nós acabamos nos afastando deles, sobretudo com relação a dogmática
erótica e da libido. A libido deveria ser entendida pelo polo timótico de maneira clara
como o polo erótico, porém deve ser sublinhado com força em não ter nenhum caráter
narcisistas, de “ter para aparecer” ou “dar parar aparecer”. A relação entre a psicologia
filosófica e a psicologia psicanalítica essa construção do narcisismo de maneira geral que
deveria se dirigir de maneira injusta em grande quantidade de energia erótica perante a
dignidade do ser, se usa de modo secreto e equivocado para a utilização da energia em
minha própria imagem.
Tornou-se evidente pela magnitude que o Sloterdijk concede ao conceito de
dádiva, assim como pelo projeto alternativo que tal desenvolvimento teórico válida. No
coração da obra está o esforço em explicar de que forma é que será possível transformar
os impostos em doações voluntárias e, em que medida é que isso serviria como
reconfiguração psicopolítica, isto é, como alteração das condições psicológicas, afetiva,
de se viver politicamente, de se viver com os outros. Assim, segundo o autor, as doações
à comunidade teriam de ser voluntárias, porém, durante um tempo inicial numa
percentagem modesta, depois em proporções progressivamente mais altas, o que
reanimaria a sociedade anquilosada em rotinas de desgosto perante o Estado, conferindo
novo ânimo à consciência comunitária. Na última década, todo o seu esforço foi no
sentido de configurar uma psicopolítica da generosidade assente “desde o princípio no
horizonte de uma ética da dádiva”.20
19
NIETZSCHE. Friedrich Wilhelm. La Voluntad de Poder. Madrid: Editorial EDAF S.A., 1981, p. 73.
20
SLOTERDIJK, Peter. Fiscalidad Voluntaria y Responsabilidad Ciudadana: : Ciudadana Aportaciones a un
Debate Filosófico Sobre Una Nueva Fundamentación Democrática de Los Impuestos. Traducción. Isidoro
Reguera, Madrid: Siruela, 2014, p. 34.
121
status desse nível, e não, que todos os demais sejam levados até abaixo ao nível de um
frustrado terceiro ou quarto estado. Nessa oportunidade os europeus nos 200 anos
passados se têm comportado calando e dando um cala boca porque não se explica
claramente o que queriam dizer com os aristocratas, os quais se cortaram a cabeça na
Revolução Francesa. Por que se cortaram cabeças? Se trata só de uma forma de cultura
de sentimento-divertimento perverso? Um prelúdio do que temos hoje? Há algum
pensamento útil disso que podemos dar uso hoje em dia? Thymos também tem relação
com a autoestima. E a autoestima nos faz estimar outros, animais, instituições, obras e
atividades que são parte de nós. Nisso, empenhamos doação material, financeira,
espiritual, intelectual e, portanto, de tempo e vida. Esse pensamento de Sloterdijk sobre
uma sociedade voluntária ou uma ética da generosidade cria um reavivamento do thymos
como uma descrição psicopolítica moderna. Seria, portanto, através das relações
timóticas que se poderia instituiu algo, já que o thymos seria o elemento da criação de
mundos e das políticas. É somente onde existem processos de construção de verdadeiras
identidades é que existe a capacidade de comportar efetivamente os desejos de
autoafirmação das subjetividades em constante reconstrução até ao Estado. Uma
linguagem política em bases timótica. Recentemente, O lendário guitarrista do Pink Floyd,
David Gilmour, anunciou que leiloará 120 guitarras e violões da sua coleção particular
para fins beneficentes. Ao fazer isso Gilmour disse o seguinte: “Essas guitarras me deram
muito, e é hora de elas seguirem em frente e irem para outras pessoas que, espero,
fiquem felizes com elas, e talvez criem algo novo. Não quero ser uma pessoa nostálgica
e ter um monte de guitarras à minha volta. E, francamente, não tenho tempo para tocar
todas essas guitarras”.21
O que de fato surgiu e tornou-se cada vez mais sólido em sua consistência foi
uma organização para estimular, orientar, cuidar e administrar principalmente as
energias timóticas (baseadas no orgulho e na ambição) e secundariamente erótica
(ganância e libido). Sloterdijk se afasta da visão psicanalítica que reduz o sentimento de
ira a uma válvula de escape para desejos não realizados e redescobre a função desse
conceito para o século XXI. Traçando um panorama da ira na história do pensamento
ocidental, o filósofo resgata um olhar positivo sobre esse sentimento que já fora
21
Matéria: Disponível em: <https://whiplash.net/materias/news_759/296355-davidgilmour.html>.
Acesso: 31 Jan. 2019.
123
apreciado por ser a força motriz dos guerreiros e pedra fundamental no surgimento de
heróis. A ira é um fator que move os acontecimentos desde as mais antigas civilizações.
Não poderíamos excluída, mas revitalizada e aprender a usá-la nos dias de hoje
principalmente na relação Estado-cobrador e indivíduo pagador de impostos e tributos.
Aqueles que chegam por último são os que mais perdem. A sociedade moderna
é um sistema para o controle de risco existencial. A modernidade é uma época em que
chegam uma nova matemática no século XVII, uma matemática de seguros. Esta é a
criação mais original no mundo moderno e devíamos sempre ver de maneira simultânea
o Estado e os seguros porque o Estado tem esse nome a partir da discussão italiana da
res publica e se chama assim, pois tem a força da persistência das instituições. Um certo
estado de situação, que só se vê em uma sociedade moderna quando (não persistente)
surge uma dinâmica quase revolucionária entre reforma permanente e revolução
permanente, e o Estado poderia igualmente se chamar glissando, algo que desliza
constantemente, que move o próprio nome, o nome em si, é no fundo, algo utópico,
como algo que não pode existir de fato, pois já começa com um pseudônimo. Quando
Luís XIV diz: “Eu sou o Estado”. Então, o Estado já possui uma máscara: a máscara da
estabilidade que não pode ter. Mas tem uma medula. Um sistema fiscal e um de seguros.
Dois sistemas que tocam na questão dos riscos do mundo moderno, que asseguram o
mundo moderno. Os seguros asseguram os indivíduos e os Estados asseguram a
fiscalidade no sentido de contribuições de má política (no sentido de se sentir seguro).
Ao final, todo o Estado tem a estrutura de um grande sistema imunológico: um sistema
de seguros. Estes sistemas de seguros em largo período de paz aparecem são muito mais
visíveis que em tempos inquietos ou de guerras. As pessoas se orientam mais em valores
liberais, onde se assegura o crédito, a liberdade, a vida e a não guerra. Tempos de
seguridade com poucos riscos, onde a seguridade-providência consegue ser mais forte
que o da liberdade. A liberdade, principalmente a individual nos tempos contemporâneos
possui um caráter de autoconsumo, riscos, extenuação, esgotamento de si mesmo
através do trabalho, da experimentação de drogas (quanto mais avançada for a
sociedade, mais desamparada se vai encontrar perante a irrupção de drogas pesadas) e
sexo e do êxtase de esportes e atividades físicas, só que todas essas liberdades também
estão encobertas pelos seguros e previdência. A ideia de que a economia passa a ser o
leme da vida humana é algo baseado no sistema de crédito. No Parlamento Alemão se vê
poucos economistas. Algum tempo atrás a maioria consistia em professores-estudiosos
e a outra metade de juristas e homens do direito. Quase nunca se viu um dentista ou um
cirurgião, um arquiteto, engenheiro, e nunca um banqueiro (profissões livres). Isso é um
125
fato que temos que ver bem de perto e que se pode rastrear na Assembleia (sessão
plenária) de 1789 quando depois de uma pausa de 170 anos na França, reuniram-se pela
primeira vez, os estamentos que se chamavam também de (sita), logo, os Estado seguiam
uma lógica medieval na qual as corporações medievais se chamavam universidades
(vniuersitatis), e depois essas universidades em espanhol, se transformaram em
generalidades: os órgãos estatais, como as autoridades, etc. No idioma alemão, em
francês e em inglês, a única palavra na qual sobreviveram as corporações medievais sobre
a alcunha de universidades, sobre uma única universtas - vniuersitatis que saltaram do
medieval para a modernidade. Na França essas corporações de profissões livre se
reuniram debaixo destas estranhas palavras (sita) e (sitatis). Hoje em dia já não se vê a
diferença porque a letra maiúscula do Estado e os estamentos ou estados como
minúsculos. Porém, tem uma grande importância para a retórica revolucionária, se diz
que no terceiro estamento, é em si mesmo, a nação completa. O terceiro (sita-Estado;
em francês: tiers état) não necessitam nem do primeiro nem do segundo, uma semântica
revolucionária é também motivo de uma fundamentação estrutural do Estado moderno
onde a igreja e a nobreza são incluídas na Revolução Francesa. Ambos os representantes:
da igreja e da nobreza, se uniram ao terceiro estamento, depois de 4 de agosto se toma
a decisão de que a nobreza francesa renuncia voluntariamente seus privilégios, mas os
representantes do terceiro estamentos eram os advogados e a voz do povo é uma tribuna
para o povo na modernidade o intelectual público como Robespierre que era um
pequeno advogado de uma cidade da província do norte que de pronto representou o
arquétipo do discurso parlamentar, um discurso no parlamento não é um discurso de um
advogado enquanto um tribunal (mesmo que esteja diante de uma tribuna). Esse discurso
diante do povo na Assembleia Constituinte concretiza a tese de que o sonho da filosofia
se fez realidade, e se refere a ideia histórica de universalismo da humanidade. Nietzsche
mesmo em seu tempo havia feito considerações importantes de que o conceito
denotador de preeminência política sempre resultaria de um conceito de preeminência
espiritual, o fato de as castas mais elevadas serem simultaneamente a casta sacerdotal,
e, portanto, preferir, para sua designação geral, um predicado que lembre sua função
sacerdotal. É então, por exemplo, que “puro” e “impuro” se contrapõem pela primeira
vez como distinções de estamentos. Aí também depois, se desenvolvem “bom” e “ruim”,
num sentido não mais estamental.
126
Algo é bom quando pode estabilizar a ira, quando pode definir uma-em afeição
nobre e que perdura unido a um determinado partido que faz possível esses “bons
negócios”. Entra aí, o elemento da confiança. Nos últimos anos na Europa se viu um
grande crescimento de “circunstâncias americanas” que penetrou na sociedade e na
população, se sentiu uma perda da soberania dos estados nacionais em benefício do
centralismo de Bruxelas. Se sente como destruição que a maioria das pessoas se
encontram despolitizadas. Por isso, a metáfora dos bancos e partidos obtêm tão pouco
interesse, é como o livro de economia, quando obtenho pouco interesse de minha ira
posso confiar pouco em meu banco, e tenho menos energia para sonhar. A outra variante
seria a conversão em esperanças, uma variante reativa que se transformaria em
afetividade humana para a próxima solução particular, a ira é algo que originalmente não
está disposta para ser algo conservada. Antes se dizia de um homem que “ele não
conseguia manter sua raiva além do jantar”, isto significa que é sempre suficientemente
livre para no curso do dia ou de um novo dia para encontrar o necessário para reagir ou
encontrar uma reação do seu desgosto, e na noite subsequente estar em estado de
tranquilidade. Isso seria um arrependimento aristocrático, um desafogo, porém que não
é uma situação imprevisível pelas circunstâncias tão inevitáveis e repreensivas. Em uma
parte os aristocratas e os patriarcas, os homens notáveis e grandes tinham o privilégio de
descarregar seu mau-humor nos outros, e os demais teriam que se comportar, por isso o
movimento feminista no século XIX teve sua melhor fase não quando mostraram suas
exigências, mas sim quando pediram a possibilidade para a mulher de se desabafarem.
Isto politicamente teve como efeito que desapareceram as histéricas. Antes a expressão
dos afetos-carinho no mundo levou a uma grande crise do corpo. A feminilidade e a ira
saíram ao mundo levando a uma grande restruturação, até mesmo, uma mudança em
fundamentos psiquiátricos.
Recentemente, Peter Sloterdijk deu novo impulso aos amantes filosóficos pelas
utopias, ao falar de uma sociedade do “dinheiro inteligente”, a sociedade do “fisco
voluntário”. Ao invés da felicidade socialdemocrata (já empedernida, acomodada e
entediante), e muito além do conformismo do privatismo neoliberal, Sloterdijk defendeu
uma sociedade capaz de escolher ter orgulho de manter iniciativas em função de
objetivos nobres. Uma sociedade assim descarregaria suas “energias timóticas” na
guarda, manutenção, no management e criação de bens culturais e bens de serviço
127
segundo uma ótica da generosidade, não do dinheiro. A ótica que gastar dinheiro e gastar
bem vem antes do ganhar, esbanjar ou acumular dinheiro. Uma economia da doação, da
dádiva, teria de contar como um elemento central de quem quisesse refazer utopias. De
fato, temos dificuldade de imaginar uma sociedade só baseada na generosidade e no
orgulho de guardiões, não conseguimos uma fórmula intermediária? O que nos tem feito
não conseguir mais sonhar para além dos horizontes que temos? A concretização dessa
ideia civilizatória passaria pela ideia de Carnegie, de que “quem morre rico envergonha
sua vida”. Um novo ímpeto motivacional de uma civilização não passiva. Uma ideia de
que é necessário aos cidadãos estarem em um envolvimento timótico de financiadores
em relação ao que é financiado. Ou seja, o dinheiro precisa ser “dinheiro inteligente”, e
não dinheiro de impostos. Quem faz o trabalho de manutenção de um determinado bem
cultural ou atividade, de fato precisa estar interessado de modo identitário no serviço
prestado (atenção, cuidado, prestígio, reconhecimento). E para tal, precisa estar em
sintonia de orgulho com o que é financiado ou com aquilo que faz o bem. Caso contrário,
o que era mecenato (nosso dom, a mão de Midas ou se quiser “no toque de Midas”) se
transforma em imposto e o problema do dinheiro não inteligente reaparece.
Um exemplo mais recente a respeito disso se viu no leilão do quadro de Banksy,
“Menina com balão”. O quadro foi arrematado no valor de cinco milhões de reais. Ao
término dos lances, se bateu o martelo do leiloeiro e o quadro se autodestruiu, ao menos
quase totalmente, diante da plateia ali presente. Todos pensaram, então, que Banksy
havia dado um golpe no mercado, no leiloeiro e na capitalista rica (anônima) que o
arrematou. O valor se perdeu, o dinheiro se esvaiu, e Banksy inapreensível como pessoa,
teria dado o recado: minha obra também é inapreensível. “Minha obra não é de um”. A
obra teria imitado o autor. Mas ocorre que alguns segundos depois, a senhora que
comprou o quadro mandou avisar que ela ficaria com o resto dele, isto é, com a gravura
quase toda picotada. Afinal, após o ocorrido, o quadro real não seria mais só o de Banksy,
pintado, posto na parede, mas todo o episódio passado em todas as redes de TV do
mundo é que comporiam a obra, ou a nova obra produzida ali, ao vivo. A obra de alguém
que, até então, era famosíssimo, e que pelo episódio saiu mais famoso, mais valioso e,
enfim, deixando para o mercado uma obra picada mais valiosa do que quando estava
intacta. Nada escapa ao mercado. Nada sai do controle da forma mercadoria. Talvez o
recado de Banksy não tenha sido “o mercado não pega minha obra, como os policiais não
128
me pegam por eu pichar Londres”, mas sim, “eu tenho consciência que a minha liberdade
está presa”. Presa, ao menos pelos tempos, pela “época”, pelo modo como nos
enredamos na vida e a organizamos. Se há uma utopia, não a posso colocar, nada sei
fazer fora do mercado. Se há uma utopia, o máximo que faço é continuar minha
generosidade: um quadro de Banksy, alguém quer tê-lo em sua sala? Ora, mas é
desnecessário. Banksy é, no fundo, um pichador: suas obras estão espalhadas
gratuitamente pela cidade. Ao acesso de todos. Sua intenção também talvez tenha sido
a de mostrar-se preso à sociedade de mercado mesmo em um ato de afirmação da
liberdade, e, sendo assim, Banksy nada tenha dito (e nada querido dizer) senão isto: o
máximo que posso fazer para afrontar o mercado é lembrar que todos já têm minha obra
sem precisar comprá-la, pois ela está nos muros por aí afora. Todos habitantes da cidade
a possuem. Um leilão é uma situação ridícula. Uma obra que se autodestrói não se
reafirma? “Sumindo... sumindo... desapareceu”.
O cidadão já não se consideraria como devedor, e passaria agir como uns
contribuintes orgulhosos (tributação voluntária e responsabilidade cívica). Para Sloterdijk
cidadãos devem ser vistos como um patrocinador. Essa forma é necessária para se livrar
de "legitimações sutilmente mecânicas, humilhante e desmoralizadoras por trás do
sistema fiscal. Quem tem dívidas só as quer pagá-las, não acompanha o destino (do
dinheiro), nem a finalidade (políticas públicas, divisão setorial, redistribuição para
comunidade, etc). Caso contrário, corremos o risco de passar do absolutismo para a era
pós-democrática sem conhecer um sistema fiscal democrático ou mesmo um sistema
filosófico fiscal. Creio que Sloterdijk não questiona o pagamento de impostos. Não
devemos o tomar como um anarquista ou alguém os moldes de Rousseau. Ele os
considera um preço a pagar por viver em relacionamentos ordenados. No entanto, ele
não se para de perguntar por que o pagamento não pode ser civilizado? Por que o
pagamento é dívida, e quem paga é devedor, mais recentemente, se adotou uma
linguagem mais sutil: “contribuinte”, apenas de o fisco tratar como caso de crime
determinadas ocultações e não prestação de imposto de renda, por exemplo. Entre esses
países, estão França, Espanha, Bélgica que mais tocam os indivíduos. Vez ou outra, vemos
em jornais e sites de notícias jogadores de futebol com problemas com o fisco,
sonegação, possibilidade de prisão, pagamentos de multas, etc. Nesse sentido, Sloterdijk
chama de generosidade participação política e critica o endividamento progressivo do
129
Estado como uma característica da atual crise: é um mecanismo que empresta o cidadão
do futuro. Sloterdijk propôs o seguinte experimento mental: como devo pensar o Estado
para o cidadão, e como isso iria pensar para si mesmo, se os impostos, em vez de
obrigatório, eram voluntários? Que implicações cívicas éticos seria essa transformação
do sistema tributário?
Se é possível falar em uma “arqueologia da dívida”, isto é, na procura do solo
originário a partir do qual um saber estabilizado sobre a dívida se tornou possível, é
inevitável recuperar os ensinamentos de Nietzsche em seu Genealogia da Moral – Uma
Polêmica (1887). Em sua segunda dissertação Nietzsche trata em particular sobre a
“Culpa, má consciência e coisas afins”. A tarefa de Nietzsche neste ensaio consiste em
desvendar os índices genéticos que estão na origem do “animal-Homem”, como, o quê,
permitiu que determinado animal se humanizasse. Com efeito, para Nietzsche não
existiria Homem sem que, consigo, se tivessem formado a memória e o pensamento.
Neste sentido, começa por referir que o problema mais autêntico, relativamente ao
Homem, consiste em “criar um animal que pode fazer promessas – não é esta a tarefa
paradoxal que a natureza se impôs, com relação ao homem?” (NIETZSCHE, 2008, p. 47).
Como acontece que a Natureza se imponha uma tarefa tão exigente no respeitante ao
homem? Como lhe veio a ideia de gerar seres que para poder viver, têm de lançar-se na
aventura da sua própria criação? A resposta de Sloterdijk seria uma “filosofia do
nascimento”. Para responder a esta questão, é preciso conhecer a filosofia como
“introdução à ciência revolucionária universal”. Trata-se de uma teoria capaz de
arquitetar um tipo de narrativa explicativa a respeito de “grandes viragens” e de grandes
reviravoltas de todas as coisas. Heidegger ao utilizar a palavra “volta” (Kehre), apensar de
um tom religioso, tem como referência um movimento, onde a vaga da forço do sujeito
reflui para si mesma. Esse movimento não chegaria a ser executado sem a branda força
contrária do fracasso. Quem considera uma “volta”, não se atém ao fracasso como
colapso, mas como uma mão que acena vinda de um outro lado. Quem percebe e olha
para ela como direção já se virou e executou um movimento que o afasta do movimento
errado. Essa viragem é muito mais que uma mera mudança mecânica de direção de
planos (xyz), mas uma vazante ontológica de subjetividade. Tomemos par anos a imagem
de uma maré alta. A maré baixa só é feita quando a maré alta muda de ideia, assim logo
130
percebemos que o refluxo pode continuar como uma coisa cineticamente impossível
enquanto a vaga do esforço não tiver se dispersado-dissipado-esgotado por si mesma.
Hannah Arendt toma a ação com um caráter messiânico quando disse que o
milagre salva o mundo, o fato de a natalidade e a ação que os humanos são capazes de
empreender pelo fato de terem nascido. Fé e esperança, segundo ela, são expressões
que denotam um caráter de evangelismo quando se anuncia uma grande alegria: “Hoje
nasceu-nos um Salvador” (“Os Evangelhos anunciaram sua “boa-nova”: “Nasceu uma
criança entre nós”). Se quatro é o número dos monopolistas, o quinto evangelho, é o
número do espírito livre. O segundo radical da revolução da qual Sloterdijk se referiu no
passado: a experiência individual do nascimento, a dramática ruptura da criança para fora
do corpo da mãe em direção ao mundo. Isto permanece latente e presente em cada
indivíduo como cena primitiva constituindo a vanguarda das esperanças futuras de novas
rupturas em direção a condições de vida menos estreitas. Agora sabe-se que para o feto,
o meio ambiente materno é um corpo comum, sonoro que vela pelo continuum tanto
sonoro como opiáceo. O ser-aí no silêncio do mundo vira uma corda que vibra por
motivos de sua própria tensão, pode ser que os meditadores ao redor do mundo tenham
procurado reclusão no silêncio e quietude porque o ouvir-se do ser-aí no silenciamento
do barulho ajuda a alongar a corda. A música celebraria não apenas o reatamento com o
continuum, mas também algo do tipo sedativo ou narcótico, faz sempre lembrar o
silêncio cósmico da existência. O ar que respiramos se revela, em comparação com o
conforto da circulação comum entre mãe e filho, uma permanente situação de
carregamento de peso, uma tortura de privação de endorfina. A saída deste estreito canal
original no qual tudo poderia já ter chegado ao fim: isto é o protótipo subjetivo da
libertação. O homem, é na verdade, o ser vivo aporético sem saída. Ele é o ser que tem
que fazer de si mesmo algo diferente do que se é, para poder suportar a sua falta de
saída. A própria humanização só passa a ser inteligível como uma saída que o animal sem
saída fez na sua fuga para a frente. Os homens são desde o início, seres para frente,
rebentos da metáfora, da metamorfose. Enquanto eles, com intuito de acharem uma
saída, aceitarem qualquer esforço para se tornarem outros, mantêm em funcionamento
a história da espécie como trabalho para uma saída. Talvez fosse interessante aqui
observar um dos contos de Kafka chamado Um Relatório para a Academia (1917). No
conto em questão, um macaco, convertido a pouco tempo, presta contas da história de
131
É certo que ele também inovou, ousou, resistiu, desafiou o destino mais que
todos os outros animais reunidos: ele, o grande experimentador de si mesmo,
o insatisfeito, insaciado, que luta pelo domínio último com os animais, a
natureza e os deuses. Ele, o ainda não domado, o eternamente futuro, que
não encontra sossego de uma força própria que o impele, de modo que seu
futuro, uma espora, mergulha implacável na carne de todo presente – como
não seria um tão rico e corajoso animal também o mais exposto ao perigo, o
mais longa e profundamente enfermo entre todos os animais enfermos?... O
homem frequentemente está farto, há verdadeiras epidemias desse estar-
farto (– como por volta de 1348, no tempo da dança da morte): mas mesmo
esse nojo, essa fadiga, esse fastio de si mesmo – tudo isso irrompe tão
poderosamente nele, que se torna imediatamente um novo grilhão. O Não que
133
ele diz à vida traz à luz, como por mágica, uma profusão de Sins mais delicados;
sim, quando ele se fere, esse mestre da destruição, da autodestruição – é a
própria ferida que em seguida o faz viver.
O homem a quem seja lícito fazer promessas, afiar a tarefa que alude à
necessidade de que esse animal não esqueça os seus compromissos e, portanto, que haja
nele algo mais forte do que a capacidade de esquecer. Segundo Nietzsche, para que haja
ser humano tem de haver uma memória que se contraponha, que seja mais forte do que
a capacidade para o esquecimento. Não se trata, todavia, de fazer do homem um animal
incapaz de esquecer, mas de o converter gradualmente num animal que não queira
esquecer. Assim, precisamente antes que uma vontade de memória se produza, o ser
humano deve ter aprendido a separar o acontecimento necessário do casual, sendo
apenas o primeiro aquele que se encontra vinculado a essa memória, ou seja, aquilo
propriamente memorável, uma “memória da vontade”. Precisamente, este animal que
precisa esquecer no qual o esquecimento passa a ser uma força, uma “saúde forte”,
desenvolveu em si, uma faculdade oposta, uma memória, com cujo auxílio o
135
22
Ver sobre isso, a nota de Rubens Rodrigues Torres Filho, no volume dedicado a Nietzsche na colação “Os
Pensadores (Abril Cultura), por ele traduzido. A nota encontra-se na página 159, também pode ser lido no
§ 9º de Aurora como “Conceito da Eticidade do Costume”.
136
Nietzsche continua seu raciocínio perguntando como se cria essa sujeição, essa
memória, concluindo que, para que algo seja recordado permanentemente, há que
gravá-lo na memória a fogo, pelo que tem de doer sem cessar. Para gravar algo indelével
na inteligência voltada para o instante, o leviano, desde a pré-história do homem há a
sua mnemotécnica. Apenas o que não cessa de doer permanece na memória, ou melhor,
lhe fornece o seu elemento genético, a constitui. Só aquilo “cravado na pele” como uma
marca e uma cicatriz. Grava-se algo com o fogo para que fique na memória, um axioma
da psicologia antiga. Uma persistência do terror. A criação de uma consciência subjetiva,
inseparável do sangue, dos martírios e dos sacrifícios, quando o homem sentiu a
necessidade de criar em si uma memória; os mais horrendos penhores e sacrifícios (como
o do primogênito), mutilações, castrações, castigos, perfurações, religiões como sistemas
de crueldade, traduz-se numa ascética onde procedimentos e formas de vida são meios
para impedir que as ideias assim gravadas entrem em concorrência com as demais,
tornando-as inesquecíveis, um instinto que divisou na dor, o mais poderoso auxiliar da
mnemônica. Meios ascéticos em que algumas ideias devem se tornar sempre presentes,
inesquecíveis, onipresentes, insubstituíveis. De onde surgiu a ideia de uma equivalência
entre prejuízo e dor? O grande conceito moral de “culpa” teve origem no conceito
material de “dívida”? Ou que o castigo, seria uma reparação? Segundo Nietzsche, sobre
a base de uma penalidade prévia, de carácter excessivo e cruel, que tornou o homem
num animal capaz de prometer, isto é, que fez dele um ser devedor. A relação entre
credor e devedor é, portanto, tão antiga quanto à existência de “pessoas jurídicas”, as
137
quais, por sua vez, remetem igualmente a formas básicas que são as de compra, venda,
troca, em suma e as transações. Esse pensamento teve de servir para a explicação de
como surgiu o sentimento de justiça, segundo o qual o criminoso merece castigo porque
“podia ter agido de modo diferente”, é na verdade, uma forma bem tardia do julgamento
e dos raciocínios humanos. A margem de suposição de liberdade ou não liberdade e graus
dos mesmos. A possibilidade de o animal “homem” começar a fazer distinções entre
vontade livre e consciente, do intencional, do negligente, do causal, da responsabilidade.
Durante um grande período da história humana, não se castigou porque se
responsabilizava o delinquente por seu ato, ou seja, não somente por isso. Não somente
pelo pressuposto de que um criminoso ou culpado devia ser castigado, mas sim com
ainda hoje se vê nas relações entre pais e filhos. A relação de castigo e raiva. Pais castigam
seus filhos por raiva devido uma perda, um dano sofrido. Esta raiva se canaliza em quem
causou o dano, portanto quem causou o dano está em dívida, possui um débito. Portanto,
qualquer dano tem seu equivalente e pode ser realmente compensado, mesmo que seja
com a dor do seu causador. Há aí a equivalência entre dano e dor. Uma relação contratual
entre credores e devedores. A relação de proporção entre prejuízo (dívida) e dor tem o
seu duplo genético na relação credor-devedor, esta proporcionalidade entre dano
causado e retribuição configura-se como consequência de uma relação anterior,
primitiva, que organizaria o socius, a saber, a relação credor-devedor. É precisamente
nessa relação de credor-devedor que se estabelece uma memória. A memória é
conjurada pela relação credor-devedor, pelo desequilíbrio, pela assimetria que esse tipo
de relação estabelece. Aquele que promete o reembolso (o devedor), oferece uma
garantia (uma promessa) de que cumprirá com o prometido, não só para se credibilizar
ante o seu credor, mas se for o caso, também como pagamento e para “reforçar na sua
própria consciência a obrigação, o dever do reembolso”, que se consubstanciará no seu
corpo, na sua liberdade, em suma, em qualquer coisa como que um direito natural a que
lhe assiste.
Em caso de insolvência ou descumprimento, o credor vê-se compensado,
compensação que aludirá a uma equivalência com o dano causado, onde o credor se vê
no direito de receber uma indenização pelo dano sofrido da ordem da satisfação interior,
isto é, a satisfação de, sem remorso, poder exercer o seu poder sobre um impotente.
Assim, por intermédio do castigo, o credor cristaliza o afeto de superioridade. É a
138
possibilidade de castigo que cauterizaria dívida, a ferida, a assimetria. É nesta esfera das
obrigações que nasce o mundo moral: “culpa”, “consciência”, “obrigação”, “carácter
sagrado do dever”, “responsabilidade”. A gênese do mundo moral reside no castigo. Mas
como é que o sofrimento pode ser uma compensação para a dívida? O devedor para
inspirar confiança em sua promessa de restituição, para garantir a seriedade e a
santidade de sua promessa, para reforçar na consciência a restituição como dever e
obrigação, por meio de um contrato empenha ao credor, para o caso de não pagar, algo
que ainda possua, sobre o qual ainda tenha domínio e poder, como seu corpo, sua
mulher, sua liberdade ou sua vida. Sobretudo, o credor podia infligir ao corpo do devedor
toda uma gama de penitências, humilhações, dores, açoites, castigos, torturas. O
exemplo que Nietzsche utiliza é cortar tanto quanto parecesse proporcional ao tamanho
da dívida. E com base nisso, houve em toda parte avaliações precisas, terríveis de suas
minúcias, “avaliações legais” de membros e partes do corpo. Um progresso, prova de
uma concepção jurídica mais livre, mais generosa, mais romana, que a lei das Doze
Tábuas decretasse ser indiferente que os credores cortassem mais ou menos nesse caso.
Nietzsche (2008, p. 54):
extraordinário contra prazer: causar o sofrer. Fazer sofrer como satisfação-solvência. Sem
crueldade não há festa. Nietzsche diz que naquela época a humanidade ainda não se
envergonhava de sua crueldade. É apenas o “animal homem”, apartado dos seus
instintos, que começa por se envergonhar deles, colocando o sofrimento como “o
primeiro argumento a marchar contra a existência”. O sofrimento contava como uma
escada da existência, um momento de amplificação da felicidade, um momento de
exuberância e festividade, um momento, portanto, onde a existência era levada ao seu
extremo porque, potenciando-a, o sofrimento elogia a vida, dava-lhe sentido. Quando
cresceu a vergonha do homem diante do homem houve um ensobrescimento do céu
acima dele mesmo. A moralização e ao amolecimento doentio, nas quais o bicho
“homem” aprende afinal a se envergonhar de seus instintos. Assim, Nietzsche avança
mesmo a hipótese de que o prazer despoletado pelo sofrimento não tenha sido
erradicado do mapa dos afetos, mas que tenha, por ora, sido alvo de uma sublimação,
sutilizado ou ainda ter sido suavizado. Isto é, teve que se fazer mostrar e aparecer no
âmbito do imaginário e do psíquico. Neste caso, o elemento de revolta face ao sofrimento
não reside no (em si) do sofrimento, na carne escalpada pelo gume, mas na ausência de
sentido que, hoje em dia, o sofrimento goza. Por fim, Nietzsche considera a gênese do
pensamento de maneira que está involucrada nas relações interpessoais determinadas
pela forma credor-devedor, comprador-vendedor (uma relação pessoal), pois é aí que,
primeiramente, “uma pessoa se mede com outra pessoa”. A mercantilização da vida, a
medição dos preços, o estabelecimento de valores, a procura de equivalências,
posteriormente, a barganha, a materialização das trocas, o cinismo, a ideologia foram
preocupações que não só marcaram o pensamento do Homem, desde os primórdios,
como, segundo Nietzsche, constituíram o pensamento. Assim, o Homem surge como
aquele animal que marca distâncias, que mede.23 Isso ocupou com tanta força o
23
SLOTERDIJK, Peter. O Sol e a Morte: Investigações Dialógicas – Diálogos com Hans-Jürgen Heinrichs.
Tradução: Carlos Correia Monteiro de Oliveira. Relógio D’água Editores, 2007, p. 270. Aqui seria
interessante retornar para a antropologia anfíbia da qual Sloterdijk fala que homens não são seres
monoelementais. A saída de animais aquáticos para a terra, os proto-símios podem ter relação direta com
a formação da má consciência. Não podendo mais saciar as antigas demandas que eram satisfeitas no
ambiente aquático, esses instintos contidos viraram um vórtice que se descarrega para dentro, causando
dor em cada um desses novos terrestres (tudo no terrestre passa a ser trabalho e esforço). Dor interna
como a dor da culpa, como o elemento central da má-consciência do homem ou de algum ancestral seu
antigo. Mas também, talvez daí tenha surgido de como o homem pode pensar metafisicamente por formas,
linhas e pontos. Disso passando para o campo moral do homem, aquele que mede, e se mede, lança, avalia,
marca distâncias, se vê superior, até a ideia de culpa. A ideia do homem como mais próximo dos anfíbios
140
talvez seja mesmo uma boa sugestão e Sloterdijk não a deixa passar. Sloterdijk caminha por terrenos com
experimentos do pensamento e descrevendo como que noções sofisticadas do pensamento racional
podem estar inseridas em atos inicialmente primitivos, algo como proto-simióticos. Daí vem o elemento
terra e uma chamada antropotécnica: desconexão. O homem começa pela pedra, e ao lançá-la, lança a si
próprio. Essa pedra atinge um ponto qualquer no espaço o faz lançar de novo e de novo, surge então a
noção de causalidade ligada coma noção de previsibilidade. Assim, como a ida para o terrestre, o fez pensar
de maneira metafísica, por linhas, formas, retas, uma geometria psicológica. O que nunca aconteceria no
âmbito antigo aquático. Sloterdijk quando afirma que o homem não descende do macaco, mas da pedra.
É a pedra o verdadeiro início do processo de humanização e hominização, na medida em que seu uso
inaugurou a prototécnica humana através da produção de sentido ontológico com efeitos no espaço
aberto. É justamente o primeiro gesto do lançar da pedra que abre a clareira do ser antes de qualquer
linguagem, de qualquer palavra articulada. Haeckel havia dedicado, em 1874, a sua Anthropogenie, na qual
reconstruíra a história do homem desde os peixes do Siluriano até os macacos-homens ou Antropomorfos
do Mioceno.
24
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia. 1ª Edição. Tradução: Joana
Moraes Varela e Manuel Maria Carrilho, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 146. Aqui os franceses
caminhariam sem sentido parecido com Nietzsche, com efeito o social não se baseia no postulado que tem
subjacente a troca “onde o essencial seria circular e fazer circular”, mas é o lugar de “inscrição onde o
essencial é marcar e ser marcado”. Nietzsche diria que o social é o terreno da mensuração (medir e medir-
se entre si), mas para os franceses: a essência do socius consiste em mapear e dispor os corpos (tatuar,
excisar, incisar, cortar, escarificar, mutilar, cercar, iniciar).
141
humana. A convicção prevalece de que a comunidade subsiste apenas graças aos seus
sacrifícios e às realizações dos antepassados, e de que é preciso lhes pagar por isso com
sacrifícios e realizações: reconhece-se uma dívida (Schuld), que cresce gradativamente
com o tempo, pelo fato de que os antepassados não cessam, em sua sobrevida como
espíritos poderosos, de conceder à estirpe novas vantagens e adiantamentos a partir de
sua força. Um tipo de pagamento de hipoteca ou pedágio por nossa estadia
momentânea.
O que se lhes pode dar em troca? Sacrifícios (inicialmente para alimentação,
entendida do modo mais grosseiro), festas, música, homenagens, sobretudo obediência,
pois os costumes são, enquanto obra dos antepassados, também seus preceitos e ordens.
Não vemos isso em Caim e Abel? É possível lhes dar o bastante? Esta suspeita permanece
e aumenta de quando em quando exige um imenso resgate, algo monstruoso como
pagamento ao “credor” (o famigerado sacrifício do primogênito, por exemplo, sangue,
sangue humano, em todo caso). Segundo esse tipo de lógica, o medo do ancestral e do
seu poder, a consciência de ter dívidas para com ele, cresce absurdamente na medida
em que cresce o poder da estirpe, na medida em que ela mesma se torna mais vitoriosa,
independente, temida e venerada. Em contrapartida, quando mais degenerada, fraca,
debilitada, a estirpe o medo do espírito fundador diminui. Os ancestrais das estirpes mais
poderosas deverão afinal, por força da fantasia do temos crescente, assumir proporções
gigantescas e desaparecer nas trevas de uma dimensão divina inquietante e inconcebível,
o ancestral termina necessariamente transfigurado em um deus. Talvez esteja nisso a
origem dos deuses, uma origem no medo, portanto. Uma relação intermediária também
seria vista, quando se formas as estirpes nobres, as quais realmente restituíram com
juros, a seus criadores, seus ancestrais como deuses ou heróis, as qualidades que nesse
tempo haviam tornado evidentes nelas mesmas, qualidades nobres. Enobrecimento e
aristocratização dos deuses, o que não significa necessariamente, a sua santificação, viria
por um processo de evolução da consciência de culpa.
Esse traço de culto ao estranho é visto e se mantém enquanto o deus bom dos
monoteístas puder ser representado como suficientemente terrível. A propaganda do
“Deus do amor” só apareceria posteriormente. O deus dos filósofos e o deus dos místicos
neoplatônicos é dissolvido em fascinação (que produz temor), em familiaridade, mas
ainda escuro. Há a conversão de um deus na espécie de imanência ou radiação razoável
142
e vai se espraiando em um deus ocioso. Uma figura que Sloterdijk destaca nos theotopos
é a manutenção da distância aos deuses arcaicos pela forma de consciência de sua
reserva de caça que nos primitivos theotopos é a função de sacerdote. Eles funcionam
como uma “polícia de fronteiras” da esfera dos vivos, se encomenda a tarefa de limitar
certas incursões do outro lado. A forma de satisfação dos que estão no oculto ou do lado
de lá é visto na forma de oblação. Os do além requisitam e exigem uma parte de algo ou
alguém. Os homens arcaicos estavam acostumados em pagar um imposto aos mortos e
aos estrangeiros pertenciam as suas obrigações contraídas. As primeiras delegações de
fazendas foram, sem dúvida, as pedras sacrificiais paleolíticas, nas quais o medo
apreensivo satisfazia seus tributos. Veremos também coisas como um reembolso aos
mortos na forma de alimentos e carne, aceitando a possibilidade de que espectros e
deuses possuem fome e sede. Coisas como ofertas, oferendas e comunhões passariam a
ser predominantes. Deuses vistos como amos, aceitavam a contribuição como
submissão. Contribuições caridosas para certos deuses e deusas era lei porque eles
pareciam escutar o dialeto da automutilação dos seus amantes. Com as economias dos
templos se deu início a uma “política de redistribuição do espírito contributivo”. Algo
mais recente na conversão do theotopo para uma “caixa solidária”. Diante disso, a cultura
não é outra coisa que a história da interiorização da oferenda sacrificial.
Essa ligação com o mundo da vida para com os nossos vizinhos, os mortos e
deuses, mobiliza uma capacidade de tráfego fronteiriço. Nos olhos mais modernos seriam
disposições mediadoras, digamos, uma aptidão para profissões terapêuticas. A
capacidade de sintonizar com comunicações do indiretamente dado. Os deuses não
representam nada que meros espíritos do acampamento ou da tribo que vão se
transformar para o deus do povo. Funções fundamentais são tidas a eles. A capacidade
de ver ou prever o futuro e predizer coisas verdadeiras. A capacidade de encontrar meios
e caminhos de comunicação e curas (nos casos de enfermidade). E a capacidade de
inspiração poética como seria visto com as canções e vozes das Musas. Poesia e música
ganharam vida como theotopias e somente depois se transformaria as Musas de cultos
religiosos em práticas próprias sem conexão direta com transcendência. Se formos para
a esfera filosófica, foi Platão quem foi significativo para a mudança de comportamento
humano em theotopo. Ele pôs um modo modificado e novas maneiras de dar solução
para o bairro do “mundo da vida” com o mundo do espírito só que agora transformado
143
em céu das ideias. Academias e mais tarde igrejas, possuíam qualidades theotópicas.
Nelas se vê a tentativa de reduzir as possessões às convicções. Com a modernidade,
veríamos o desencantamento de ambas, assim como seus representantes seriam pessoas
mais comuns sem a estandardização para a popularização. No cristianismo ficou viva por
muito tempo a ideia de que, de tempos em tempos, os seres humanos, como meio de
um além não muito distante, tinham capacidades como a clarividência, poderes
curativos, etc. São Paulo falaria em “dons da graça” como uma exigência de subordinação
do culto ao Senhor, que também sob os auspícios cristãos os carismas são transformados
facilmente em possessões malignas. É o theotopo o distrito dos deuses. O Deus do
theotopo arcaico é uma representação não determinada do que há do outro lado. Pode
significar por um lado como um aliado, auxiliador, conjurado e consanguíneo do clã. Por
outro, como ameaçador, exigente, imprevisível e rancoroso. Entre um e outro devemos
incluir um elemento importante. Ele é um sedento por vingança. Essa ambivalência é feita
por um contrato entre mortos com os vivos. Uma relação inerente aos espíritos do
passado, não só atribuída a uma culpa inconsciente dos vivos e as expectativas de
vingança dos mortos.
Essa é uma perfeita representação do theotopo proveniente do thanatotopo. Os
deuses arcaicos são as categorias introjetadas de invasores e lecionadores com as quais
contam os grupos culturais existentes. Uma figura arcaica de um Deus é uma figura de
estresse que uma cultura dá a si mesma. Veremos em culturas que a soma de deuses e
feras permite uma propagação e uma conexão universal entre deuses sanguinários e
animais sanguinários com a insinuação de que em territórios humanos onde foram
vítimas de feras e bestas acabavam em uma transformação das mesmas em feras
fascinantes, em deuses da própria cultura. Uma domesticação simbólica das feras por sua
vítima potencial. Em consequência, o drama do processo da civilização estaria
prefigurado na transformação dos deuses de invasão e catástrofe em deuses de criação
e mantenimento. Uma metamorfose, que finalmente acabou no compêndio de todos os
deuses positivos parciais na constituição monosférica. Essa instauração do Um constitui
o maior documento justificado do caráter de sistema de imunidade da metafísica:
partindo da xenolatria fascinante e da veneração do estranho carnívoro nos cultos
sacrificiais locais, o exterior hipnógeno se incorpora progressivamente ao interior, até
que, ao final, haja um interior próprio super dilatado que, em seguida,
144
em Marx, vemos que eles estão dominados pelo princípio do trabalho. Da mesma forma,
Heidegger em Ser e Tempo é, todavia, um devedor do trabalho. A “existência” em sua
“preocupação” ou “angústia” não joga. Somente um Heidegger mais tardio falará em um
jogo que se baseia na “serenidade”. Deste modo, interpreta o mundo como jogo.
Presente à “abertura de um espaço de jogo”. “O espaço de jogo do tempo” de Heidegger
remete a um espaço de tempo que está livre da forma de trabalho. É apenas um espaço
de tempo de acontecimentos no qual se supera a psicologia como meio de subjetivação.
Não seria no capitalismo esses livros e tabuleiros os nossos cardápios, contratos e menus
de pedidos?
As religiões como o Cristianismo e o Judaísmo atuam como administradores do
legado na própria casa: são religiões musealizadas. A museificação do mundo é
atualmente um dado de fato. As potências espirituais que definiam o homem – arte,
religião, filosofia, natureza, até mesmo o campo político retirou-se, uma a uma, para o
Museu. Um tipo de dimensão separada para a qual se transfere o que há em um tempo
era percebido como verdadeiro e decisivo, e agora já não é. Tudo hoje pode se tornar
Museu, no sentido em que esse termo indica a exposição de uma impossibilidade de usar,
de habitar, de fazer experiência. No Museu, a analogia entre capitalismo e religião se
torna evidente. Ele ocupa um espaço e uma função em outro tempo reservados ao
Templo como local de sacrifícios. Aos fies no Templo (ou aos peregrinos na Terra) de
Templo em Templo, de santuário em santuário, são hoje nada mais são que os turistas
que viajam em um mundo em Museu. Sofremos no século XX de uma inflação do
exponível. Em primeira instância, porque existe uma inflação paralela do produzível. O
aumento incrível dos meios de produção de todo tipo carregou consigo um crescimento
incomensurável do poder produtivo. Cada vez mais maiores fragmentos da realidade se
convertem em matéria-prima para a produção em material de partida para imagens, de
relações, transformações. Tudo o que foi produzido pode converter-se a sua vez em
matéria-prima para se rejuntar novamente como matéria sofrente dos efeitos do
trabalho. Tanto no caso de mercadorias móveis como imóveis, o processo de
modernização, em princípio é exponível como todo aquele que joga um papel nos
processos seculares de incremento do produzível. A exposição já não inclui só os
produtos imediatos de poder de realização de obras, também assume as matérias-
primas, os produtos auxiliares, os protótipos, os desenvolvimentos intermediários, os
148
expansão de subjetividade do artista criador de valor. Por último, tudo quando toca a vida
do artista deve ser transformado em arte. O rei Midas está por toda parte. Se havia sido
juridicamente possível, Andy Warhold haveria vendido ao colecionador com sólidas
finanças partes inteiras de edifícios de Nova Iorque que havia transformado em obras de
arte ao passar por elas.
Por isso Benjamin diz que o interior representa o universo para o homem
privado. Naquele, reúne este o longe e o passado. O seu salão é um camarote no teatro
do Mundo”. Enquanto peregrinos e fies participavam no final de um sacrifício que,
separando a vítima na esfera sagrada, restabelecia as justas relações entre o divino e o
humano, os turistas celebram hoje, sua própria pessoa, um ato de sacrifício, que consiste
em uma experiência da destruição do uso. Profanar como quem devolve à comunidade
humana aquilo que foi subtraído através da sacralização. Profanar é um conceito romano
– significa tirar do templo (fanum) onde alguma coisa foi posta, ou retirar inicialmente do
uso e da propriedade dos homens. Por isso, a profanação pressupõe a existência do
sagrado (sacer), como um ato de retirar do uso comum. Surge aí a noção de que profanar
é tocar no que é consagrado para libertá-lo e libertar-se do sagrado. Profanar é assumir
a vida como jogo, jogo que nos retira da esfera do sagrado, sendo uma espécie de
inversão do mesmo. Convidando-nos a profanar, Giorgio Agamben alerta para o fato de
termos perdido “a arte de viver”, que a infância o período da mais total profanação da
vida, como Nietzsche já havia anunciado por seu Zaratustra. As crianças sabem jogar,
quebrar, brincar, enquanto os adultos ranzinzas perderam esta capacidade de serem
mágicos e de fazerem milagres com as mãos. Os novos religiosos do capitalismo não têm
pátria alguma, apenas residem na forma de separação. Por isso, o turismo é atualmente
uma das primeiras indústrias capitalistas do mundo que se conhece.
Han (2016, p. 110):
em “casa da alma”. Desse espaço total animado, é possível dizer que já é em si, o “amigo
do ser”.
para torná-la universal [...] e para, ao final, envolver o próprio Deus na culpa
[...] Deus não está morto, mas foi incorporado ao destino do homem.
Precisamente porque tende com todas as suas forças não para a redenção,
mas para a culpa, não para a esperança, mas para o desespero, o capitalismo
como religião não tem em vista a transformação do mundo, mas a destruição
do mesmo. E o seu domínio é em nosso tempo tão total que também os três
grandes profetas da modernidade (Nietzsche, Marx e Freud) conspiram com
ele, segundo Benjamin, sendo, de algum modo, solidários com a religião do
desespero. “Esta passagem do planeta homem, através da casa do desespero,
para a absoluta solidão do seu percurso é o ethos que define Nietzsche. Este
homem é o Super-Homem, ou seja, o primeiro homem que começa
conscientemente a realizar a religião capitalista. Também a teoria freudiana
pertence ao sacerdócio do culto capitalista: “o removido, a representação
pecaminosa [...] é o capital, sobre o qual o inferno do inconsciente paga os
juros”. E em Marx, é o capitalismo “com juros simples e compostos, que são
função da culpa [...] transforma-se imediatamente em socialismo”.
Desde o profeta das rupturas de mundos (Nietzsche), vemos que ele disse que
o essencial com sua doutrina neocínica da transvaloração de todos os valores. Ela diz
respeito à tarefa humana e da natureza humana a si própria, esse “enroscamento em si
próprio” que na era da moral e da metafísica clássica e agro-imperial, sempre foi
condenado enquanto traição ao senhor, ao coletivo e à ordem das coisas. Desde que o
cidadãos dos Estados abastados modernos já não se concebem mais como súditos, mas
sim, como eleitores, livre utilizadores do dinheiros, portadores de direitos humanos, o
dever de participar no “todo” deslocou-se, do altruísmo proveitoso para o senhor e as
normas divinas, para a abertura de mundo às mercadorias e aos temas públicos, com o
efeito secundário, de entre os “sujeitos” se propagar uma tendência a tomarem-se a sério
como clientes, detentores de opinião e portadores de qualidade pessoais. Os teóricos
poderiam ir em Gaia Ciência de Nietzsche, ao passo que os seus excedentes em matéria
de representação do homem extravasam em forma de reivindicações do super-homem
(além-homem), hoje visto como do consumidor cosmopolita. Para Sloterdijk, a
metamorfose consumista do “sujeito” traz à consciência o direito de destruir os objetos
de consumo. A reavaliação de todos os valores tem seu modelo baseado no metabolismo
orgânico, na medida em que, tudo que existe se destina para ser absorvido e incorporado
pelo consumidor, neste quadro a mutação dos valores desembocaria sempre em
desvalorização. O advento de um Deus cristão só pode ser a clara constatação de um
deus máximo alcançado, nos trouxe junto com ele, um máximo peso e sentimento de
culpa. Noções de culpa, dever (pfilicht) e seus pressupostos religiosos. Com a moralização
das noções de culpa e dever com seu afundamento na má consciência, houve uma
154
tentativa de inversão das coisas. Um resgate definitivo. Se formos para o devedor, aquele
onde a má consciência se prolifera e multiplica, temos a impossibilidade de pagar a dívida,
logo, se concebe a impossibilidade de se conceber dor como pagamento. Extingue-se a
ideia de penitência, a ideia de fim do “castigo eterno”, entretanto, isto se volta até
mesmo contra o credor. Nas histórias do Antigo Testamento vemos a causa prima do
homem como começo da espécie humana, um ancestral amaldiçoado (caído). Adão:
pecado original, “privação do livre-arbítrio”. Até o limite máximo de culpa: o cristianismo.
Agora, é o próprio Deus que se sacrifica pela culpa dos homens, ele é o próprio que paga
a dívida a si mesmo. O Deus como aquele único que pode redimir o homem de suas faltas
e daquilo que o homem se tornou (impagável-irredimível-irresgatável). Temos um credor
que se sacrifica pelo seu devedor por amor, amor ao seu devedor. Tanto é verdade, que
o ato de Jesus se constitui com Pilatos em uma entrega: o cordeiro de Deus. Uma dívida
para com Deus virou instrumento de suplício. Quando se diz que precisamos ter fé, mas
em quê? Quando se diz que precisamos de confiança, mas em que ou quem? Em Deus?
Isso foge do âmbito da religião que é algo para o sossego, não preocupação. É preciso
que nós tenhamos fé. É preciso que tenhamos confiança. É preciso de crença. É preciso
que você dê crédito, e é também, uma promessa. O dinheiro não é um número com
vários zeros? Nós acreditamos nele. O credo como culto, como uma doutrina ao crédito.
Como promessa, crença, promete-se um título, a felicidade, um cheque, o pagamento de
uma dívida, uma nota promissória, o cartão de crédito. Se utiliza no âmbito do Direito a
expressão: Pacta sunt servanda. Brocardo latino que significa “os pactos devem ser
respeitados” ou mesmo “os acordos devem ser cumpridos”. É um princípio base do
Direito Civil e do Direito Internacional. Não há outra referência senão a de que você deve
acreditar em mim e eu devo acreditar em você, e para além disso, nós devemos acreditar
no papel. Lá em Erasmo de Roterdã, no chamado Elogia da Loucura de 1509 , temos que
a grande loucura de seu tempo é ver uma pessoa se auto-elogiando. Hoje em dia o eu
elogia a si mesmo, o eu fala do eu. “Isso não é uma loucura?”, diz ele. Isso é mais loucura
ainda quando um eu chamado dinheiro fala dele próprio para nós. Ele diz: “acreditem em
mim”, “me deem fé”. Crédito vem do latim credere, creditum. É πιστώσεις, em grego
pistóseis – confiança. O banco é um lugar de confiança. Fazem a administração da
confiança que nós temos na entrega de papel de um para o outro, nos dias de hoje os
zeros. Nós nos credenciamos para tudo. Somos pessoas crentes, por isso, construímos
155
uma subjetividade que exige fé. Tudo é o dar crédito. O capital dá crédito como
empréstimo, investimentos, rentismo, juros. Compra-se ações e vende-se ações. Se dá
crédito, se administra crédito, se gerencia crédito, se tem crédito. O homem adota o seu
papel de ator de todas as ações e fiador de todas as garantias. O capital passa, portanto,
em um tipo de confiabilidade futura, como algo que eu possa acreditar. Damos crédito a
tantas coisas como uma atividade de dar crédito e de adquirir débitos. É tão difícil não
dar crédito. Talvez se esse o motivo de nos darmos crédito aos políticos e para outras
tantas coisas, pois estamos enredados na essencial de dar crédito. Talvez seja tão fácil e
tão difícil romper com isso. É difícil não dar crédito. Se nós pudéssemos realmente chegar
para uma pessoa como Sérgio Moro e dizer “não acredito em você, não te dou crédito”,
“você não vale mais nada”. Ou ainda, se nos dirigirmos para Lula dizendo “não confio
mais em você”, “não tenho mais fé em você”. Seria libertador se chegássemos para o
dinheiro de falássemos “não estou nem aí para você. Não te dou crédito”? Você é uma
carta de promessa, uma coisa que dá crédito, mas você não tem crédito porque não se
refere mais a nada. É um zero. Temos fé em pessoas, mas uma fé maior nesse zero.
Cultivamos o ato de dar crédito, portanto, vamos creditando em tudo. No capitalismo, as
próprias dívidas não existem para serem pagas, mas para serem compradas e vendidas.
Descartes abre a modernidade dizendo que é mais fácil conhecer o “espírito que
o corpo”, ou seja, o meu eu pensante está mais disponível a mim mesmo do que a minha
ação corporal, minhas funções corpóreas e coisas assim. Essa posição tem seu
equivalente na ideia de Erasmo: “Quem poderá pintar-me com mais fidelidade do que eu
mesma? Haverá, talvez, quem reconheça melhor em mim o que eu mesma não
reconheço”?25 A diferença aí é que se em Descartes quem fala é ele próprio, um homem,
um filósofo, quem fala em Erasmo é um personagem, a Dona Loucura. E essa diferença
faz toda a diferença, inclusive põe características distintas entre o Renascimento e a
Modernidade. Parece que Erasmo sabia que iríamos, um dia, nos encontrarmos uns aos
outros para além do espaço de democratização das relações das cidades renascentistas.
Diz ele: “Ora, é próprio da Loucura dirimir todas essas dificuldades. Raros são os que
sabem que, para fazer fortuna, é preciso não ter vergonha de nada e arriscar tudo. Quero
observar-vos, além disso, que os que preferem a prudência fundada no julgamento das
25
ERASMO – MORE. Elogio da Loucura. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1988, pp. 8-9.
156
26
KURZ, Robert. A Ascensão Do Dinheiro Aos Céus: Os Limites Estruturais da Valorização do Capital, o
Capitalismo de Casino e a Crise Financeira Global, 1995. Disponível em: <http://www.obeco-
online.org/rkurz101.htm>. Acesso: 05 Jun. 2019.
159
consumo, ou seja, o que se tem é uma imediata destruição (abusos). Temos um consumo
que destrói de imediato a coisa, não é senão a impossibilidade de usar ou a negação do
uso que pressupõe que a substância da coisa fique intacta. Um simples uso de fato,
distinto da propriedade, não existe naturalmente, não é, de modo algum, algo que se
possa realmente “ter”. Se vemos hoje consumidores na sociedade de consumo infelizes,
é porque não somente consomem objetos que incorporaram como propriedade (ou que
pensam que sim), ou que incorporaram em si a própria não usabilidade, mas também
porque acreditam que exercem seu direito de profanar o improfanável. Walter Benjamin
em sua obra Jogo e Prostituição diz que “o amor pela prostituta é a apoteose da
identificação de si mesmo com a mercadoria”. Podemos pensar no conceito do “indizível”
fazendo referência à noção freudiana de inquietante (Unheimlich), em primeiro
momento, uma ocasião para o olhar, mas também, o poder do observado sobre o
espectador, um poder que Walter Benjamin reconhecia no valor de culto dos objetos
impregnados de aura. Sua influência de Marx o fez ser um dos principais expoentes da
modernidade. Marx afirmou que a prostituição é somente uma expressão particular da
prostituição particular do trabalhador, e posto que a prostituição é uma relação na qual
entra não só ao prostituído, mas também o prostituidor, cuja infâmia é a ainda maior,
assim cai também o capitalista nessa categoria. Benjamin fala da imagem da prostituição
como uma sinédoque para o trabalhador sob a égide do capitalismo em geral. A
identificação da mulher como coisa é a identificação de si mesmo como coisa, um
resultado da reificação geral do vivo posta pela sociedade capitalista. Só mercadorizando-
se é possível se tornar o vivo. Um exemplo nos é dado pelo grande filósofo Aristóteles no
papel de um louco apaixonado. Uma anedota conta-nos que Aristóteles se apaixonou
certa vez tão perdidamente por uma hetera ateniense chamada Fílis, que perdeu toda a
vontade própria e se entregou aos seus caprichos de maneira totalmente irrefletida.
Assim, a célebre prostituta ordenou ao pensador que ficasse de quatro na sua frente. Ele,
então, voluntariamente submisso, se deixou de fazer de bobo e obedeceu. Com
humildade, agachou-se e serviu à sua senhora como animal de carga, uma situação
bastante desconfortável para os homens. Esse tema anedótico é registrado por Hans
Baldung Grien no ano de 11513, no tempo de Eulenspiegel – segundo o Lai d’Aristote de
um poeta francês medieval. O filósofo de barbas brancas se encontrou ajoelhado, com o
olhar voltado para o observador da imagem, andando de quatro em um jardim cercado
160
por um muro, enquanto Herphyllis se senta em suas costas com as largas nádegas e a
barriga protuberante. Vemos na mão esquerda, o arreio que atravessa a boca do
pensador com a cabeça erguida, e, na direita, em dedos pequenos, finamente separados,
um elegante chicote de montaria. Diferentemente do filósofo que olha de maneira
penetrante par ao observador ela olha para o chão. Sobre sua cabeça, de lado, uma touca
antigamente usada na Alemanha. Seus ombros caídos, seu corpo um pouco pesado,
gordo e melancólico. O sentido kynikos da história é que a beleza faz vibrar o seu chicote
sobre a sabedoria, a razão decai, o corpo vence a razão. A paixão torna o espírito dócil, a
mulher nua triunfa sobre o intelecto masculino. O entendimento não tem nada a oferecer
contra o poder do convencimento de peitos e bundas. O termo prostituta pode ter o
significado de “colocar diante”, “expor”, “apresentar à vista”, “pôr à venda”; prostituir,
“divulgar, publicar”, mas também o de prostrar, lançar-se ao chão em postura de súplica
ou adoração. No quadro de Grien, o fator da reflexividade do filósofo passou para a
companheira. Em verdade, ela também é apenas uma puta, mas ela lança mão, com isso,
de uma possibilidade de soberania própria. Quem cavalga Aristóteles pode ser
certamente uma mulher perigosa, mas é certamente uma mulher que permanece
sublime para além de todo desprezo. A história da “consciência feminina” só se acha por
intermédio das tradições masculinas. De qualquer modo, algumas anedotas nos foram
legadas e abrem um espaço para que possamos ao menos investigar uma perspectiva
kynike-feminina. Naturalmente, trata-se, em princípio, de histórias contadas a partir da
perspectiva masculina, que lançam desde o início um olhar cínico-senhoril sobre as
imagens femininas. Veríamos especialmente na literatura, histórias da mulher como puta
e como esposa pérfida em forma de dragão. No entanto, por vezes uma pequena
mudança no ângulo de visão é o bastante para as mesmas anedotas passaram a mostrar
um sentido pró-feminino. Em geral, elas refletem cenas típicas oriundas das “guerras
entre os sexos”, nas quais vem à tona o fato de o homem recair na posição do mais fraco.
Isso lhe aconteceria fundamentalmente em dois âmbitos. O âmbito da dependência
sexual e o da condução da administração doméstica.
161
Hans Baldung Grien. A beleza faz vibrar seu chicote sobre a sabedoria. Xilogravura
(1513).
Em Latim, “anima” significava “sopro”, “ar”, “brisa”, e certamente a partir daí foi
que adquiriu o sentido de “princípio vital, alma”, pois esta sempre foi encarada pelo
homem como algo imaterial como um movimento do ar, o ganho da animação. Afinal,
somos “sinais da escuridão” como bem disse Thomas Macho. Somos aqueles que estão
no Cosmos interagindo com o mundo. Daí vem à expressão “dar à luz”. Com conotação
das parteiras, mas também para filósofos. A metáfora das luzes ganhou os filósofos. “Dar
à luz” é uma expressão banal, se algo vem para ganhar luz, onde estava era o sem-luz, o
escuro, uma espécie de “caverna”. Sem dúvida um lar por um bom tempo. Não se pode
viver em um lar sem nada aprender. Durante um bom tempo nossa casa, a primeira casa,
foi nosso primeiro lar, o aconchegante escuro: o útero, a esfera do dois em um. O
primeiro “ser-em”. Curiosamente os teólogos deram a Deus um útero para ele vir para a
terra. Deus o todo-poderoso com todo seu poder só conseguiu ser humano se viesse por
um útero. Até mesmo Jesus (o homem - Deus) teve que para ser homem ter uma mãe
162
mesmo que seja de um útero não fertilizado. Um útero misterioso na sua gravidez, mas
no seu desenvolvimento um humano. Mesmo vindo de Deus ele é homem. Temos aí,
uma clara projeção elementar que advém do campo das representações da família e da
geração. Em religiões politeístas, encontram-se romances familiares confusos e simples
e assuntos que se conectam à procriação relativos às divindades, como é patente nos
estudos sobre deuses olímpicos, egípcios e hinduístas. A doutrina cristã da Trindade, uma
doutrina bastante rica e competente, não se mantém completamente isenta de fantasias
ligadas à família e à procriação. Seu ponto alto, fez com que Maria engravidasse do
Espírito Santo. A sátira reconheceu esse desafio. Deve-se, portanto, evitar com isso, o
fato de existir entre pai e filho um laço sexualmente fundado. O Deus cristão pode sim
procriar, mas não copular – razão pela qual o credo diz com um caráter sublime: genitum,
non factum (gerado, mas não feito). A ideia de autoria da criação, que se atribui em
particular aos deuses do alto e do interior da terra, é uma boa ideia e até bem próxima
da ideia de geração. Aqui se imiscui a experiência humana da produção, enraizada em
uma “empiria” camponesa, artesanal e oleira. Quando o homem está em seu trabalho,
ele experimentou a si mesmo de maneira modelar como criador, como um autor de algo
novo, um novo efeito, anteriormente inexistente. Quanto mais avança a mecanização do
mundo, mais se transpõe a representação de Deus da intuição biológica da geração
(procriação) para o da produção e do design. De maneira correspondente, o Deus gerador
tornou-se cada vez mais um fabricante do mundo, um “produtor originário”. Daí vem no
Gênesis e na própria obra adamítica da criação do homem através de um sopro que causa
uma vibração interna (em um recipiente que era oco) com uma ressonância dando vazão
ao espírito (surge a animação). Se Deus criou um boneco, os homens também criam
outros bonecos. Um local que será o deposito para espectros animistas penetrarem no
caso da mercadoria. Nisso, elas ganham um caráter espectral fantasmagórico e ganham
uma vida independente do homem. Um dom vampiresco onde não só se suga o suor, o
sangue, mas também, a alma do trabalhador-produtor. Nesse mundo sem homens, sem
deuses, gênios, anjos, vemos uma reserva de proteção da esfera do espírito contra o
impacto da reificação e das proletarizações. Como a prostituta com seus adornos e corpo
nu pode aparentar ser carne sensível se forma mercadoria. Não se diz “pagado bem que
mal tem”? A parcela da sociedade com poder de compra forma as condições de
desonerações que resultam na necessidade que se transforma em liberdade. Onde se
163
tinha necessidade vem o capricho. Percebemos hoje o quando é oneroso viver em uma
situação que sendo de desoneração contínua, adquirimos uma maior facilidade para
ficarmos cansados por pouca coisa. O gênio tem muitos nomes: autor, fantasma,
ausência, obra. Ele é ao mesmo tempo aquilo que torna o texto único e aquilo que
percorre todos os textos. O gênio é volátil. Responde pela força invisível que leva o
homem à negação de si e responde também pelo papel amarelinho, pela caneta especial
e pelos cigarros envoltos em papel preto, conforme o gosto pessoal exposto por
Agamben (Paul Auster também gosta dos cigarros escurinhos). É interessante como essa
zona de não-conhecimento, território do gênio e de suas mensagens sussurrantes,
também oferece espaço para essas materialidades neuróticas do cotidiano. O gênio
também está no patológico, na repetição nervosa do sintoma. A operatividade do gênio,
segundo Marx, estará sempre ligada a um contexto de trabalho e produção. O artista só
pode realizar aquilo que está tecnologicamente disponível para seu contexto histórico, a
partir dessas contingências, o artista armaria suas possibilidades. Quando Marx fala da
vacuidade da individualidade do trabalho científico e artístico, valoriza aqueles artistas
que sabem ler as demandas de seu tempo, reconhecendo que a esfera artística é apenas
mais uma ramificação das relações de produção. Quando Marx fala da organização do
trabalho parece estar falando da tática de proliferação maquínica de um César Aira, por
exemplo, ou dos cem mil livros de Mario Bellatin (ou a enfadonha versão da acumulação
de Gonçalo Tavares). Já em Barthes é como se o gênio pudesse ser escolhido, como se
fosse uma sombra eleita pelo escritor - um misto de ação e aceitação. Os biografemas
voam, pairam pelos textos, átomos epicurianos que caçam seus eleitos, uma espécie de
vida póstuma dos gênios que assombraram outros autores, outras camisas de linho azul.
O gênio ganha a feição daquele que mais admiramos, ou ganha uma feição tripla, quase
monstruosa: Sade, Fourier e Loyola para Barthes. Agamben afirma que a ação do Genius
se dá quando não há identidade fixa; Barthes afirma que no Texto há a destruição e
dispersão de todo sujeito. São movimentos análogos - e essa volta amigável do autor de
que fala Barthes pode ser, também, aquele abandonar-se de que fala Agamben, em uma
confluência de encontros fortuitos. O homem da má consciência como diz Nietzsche
“apreende” em Deus seus instintos não suprimidos, “instintos animais”, como culpa, aí
visto como: inimizade, violência, rebelião, insurreição contra o avô, o Deus pai, o Senhor,
o progenitor e princípio do mundo. Uma saída típica dos gregos seria “um Deus deve tê-
164
lo enlouquecido”, dessa maneira os deuses serviam para, até um certo ponto, justificar o
homem também na sua ruindade, eram causas do mal, bons tempos onde não se
tomavam para si o castigo, mas sim, o que é de mais nobre e virtuoso, a culpa. Não
deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? (A Gaia
Ciência, § 125).
As grandes culturas se tornam negatividades rentáveis conhecer a externalidade
destrutivo. Utilizam o monstruoso como hormônios de crescimento saindo a partir de
microesferas para formas de macroesferas. O homem tem que esperar, e sobreviver a
separação de seus próximos. Já em mais antigas formas de vida humana, hordas arcaicas,
a morte é imposta como uma compulsão para dirigir o olhar para os mortos. Quando o
ponto de vista do corpo e o aviso de choque no lugar vazio adquirir formas rituais, tudo
está organizado como uma lembrança. Se trata cultos aos antepassados e os mortos
como se eles induzissem o estresse metafísico inicial pesando em grupos humanos já nos
primeiros estágios de hominização. Reconhece-se que estes cultos sempre têm um lado
criador de espaço no sentido esferológico, de inclusão restaurativa, de reparação da
esfera psíquica quebrada pelo desaparecimento do outro importante, de um retorno à
normalidade cósmica, à bolha íntima da coexistência. Neste caso, ritual e simbólico.
Sloterdijk desenvolve a ideia da morte como a raiz da constituição e evolução
dos sujeitos, indo além de seu antecedente em Heidegger. A ideia da morte, pode-se
dizer, em retrospecto: a morte local, a morte global, morte pessoal, morte a que
corremos tudo, é o ponto de partida para examinar a gênese da macroesferas, que sob
outro registro pode ser chamado A Morte, também atesta nossa historicidade irredutível.
O homem, sujeito de alta permeabilidade, tendo incontáveis horas, protagonista de
proezas e histórias inoportunas é um ser que se mantém fiel a um arcano que não
escolheu, a certeza de sair ou ser abandonado na morte, onde sem saber se com respeito
a seu complemento íntimo será o primeiro ou o segundo, ali este fugitivo da normalidade
cósmica, sobrevivente de uma história de separação radical, precisará de uma formação
particular, do treinamento mais importante para o ser humano, a saber, aquele
necessário para apoiar a partida dos mais próximos, sobrevivem à perda do parceiro
íntimo, o abandono do "complemento essencial". Desta forma, o projeto Esferas também
pode ser entendido como uma tentativa de tornar visível, pelo menos em um aspecto
essencial, o projeto Ser e espaço, sub-temático implícito nos primeiros trabalhos de
165
A Teoria Crítica como um todo, principalmente a velha Teoria Crítica, até mesmo
quando, com Marcuse, quis lembrar as benesses do hedonismo, nunca ultrapassou o
muro do pessimismo, e, por conta deste o de certo conservadorismo. Um clássico livro
de Marcuse é "O Eros e a civilização", para Sloterdijk seria algo já ultrapassado. A de ainda
nos tempos de hoje considerar uma visão psicanalítica-filosófica do eros na civilização.
Eros é o deus do desejo e da posse e logo da inveja, ressentimento, mágoa. Marcuse faz
basicamente uma descrição psicopolítica do eros nos meios da arte, política, sexualidade,
família, etc. A força desejante nos homens, a carência, é fruto de eros, e impulsiona todos
nós para as tarefas individualistas e para o individualismo moderno, e não raro, de
satisfazer desejos entre elas de arrecadar dinheiro e acumular poder. Essa força esmagou
a outra, a de origem no thymos, a ponto de ser descrita, não raramente, como a única
existente, a base de toda a sociedade. Para Sloterdijk, a concepção obrigatória dos
impostos é ainda um vestígio “do pensamento pré-democrático”. A cultura da dádiva
obrigatória, mediante o dispositivo do imposto, não se trata de uma constante natural,
mas um produto, historicamente gerado, de coação, hábito, compreensão parcial e
resignação preponderante, o que nos leva no encalço dos modos tradicionais de
enriquecimento por parte do Estado. De acordo com o diagnóstico de Sloterdijk, o
primeiro modo de enriquecimento do Estado baseia-se no “saque da tradição bélico-
espoliadora”.27 Um segundo modo resulta da “tradição autoritário-absolutista das
imposições”, onde é sabido que os estados absolutistas vergavam as suas comunidades,
principalmente as mais pobres, com impostos férreos. Estas duas formas foram o
protótipo da fiscalidade, onde estabelecidas sem debate, seriam o preço justo da vida em
relações ordenadas. Mas há ainda um terceiro procedimento para a espoliação das
comunidades baseada na ideia de “contra-expropriação”; se a propriedade é um roubo,
só um contra-roubo pode recolocar a justiça no âmbito social, sendo “o órgão político de
27
SLOTERDIJK, Peter. Fiscalidad Voluntaria y Responsabilidad Ciudadana: Ciudadana Aportaciones a un
Debate Filosófico Sobre Una Nueva Fundamentación Democrática de Los Impuestos. Traducción. Isidoro
Reguera, Madrid: Siruela, 2014, p. 41.
167
contra-roubo o fisco”.28 Para além destes três caminhos impositivos, obrigatórios, para a
obtenção de dividendos por parte do Estado, Sloterdijk elenca ainda um quarto de raiz
totalmente diverso, de caráter opcional, facultativo, implicando não um mandato estatal
mas uma vontade individual, verificada através da atuação de doadores e criadores de
fundações, dentro da tradição filantrópica. Em todo o caso, ainda não teríamos atingido
um modo de funcionamento pleno da democracia, pois o modo de financiamento do
Estado ainda não é assegurado mediante dádivas livres, generosas e voluntárias por parte
dos seus cidadãos, mas através do punho de ferro da obrigatoriedade e da imposição. Se
nos deixarmos guiar pela imagem da efervescência, uma imagem que já tinha levado os
autores antigos a falar de furor, de ferver e de lançar-se arrojadamente para frente, então
veremos o quanto a noção de ira possui um traço marcado pela ação de presentear, sim,
um traço paradoxalmente generoso. Dito ao modo de Sloterdijk, o Estado que se
concedia a si mesmo uma autoridade superior, assim como o Estado que se pensa
enquanto agência moralmente autorizada de assistência social geral, o Estado
paternalista antigo e o Estado materialista dos nossos dias, entendem-se às cegas para
“formar uma maquinaria irresistível de tutela e assistência”. Assim, o que os impostos
voluntários preconizariam seria a intensificação e revitalização éticas dos impostos como
doações do cidadão à comunidade. Depois do longo período tenebroso em que o cidadão
era forçado à passividade, à impotência e à indignidade, uma vez reconhecido como
doador passaria a experimentar que profusão de vida significa ser responsável por
projetos levados a cabo por doações próprias. É que os impostos já são dons que apenas
esperam ser considerados uma vez por todas como tais.
Além das abundantes referências à literatura e à história da filosofia, o livro
fornece um registro confessional cuja ideia principal é analisar a dimensão psicopolítica
do momento atual. Para isso, Sloterdijk questiona o que sempre foi considerado
inquestionável. O filósofo procura para remover a poeira e teias de aranha que impedem
ver claramente o sistema fiscal, a fim de compreender e torná-lo mais propício à "ética
viver" sociedade. Especialmente a importância de entender o socialismo hoje como uma
dimensão funcional do Estado e não como uma ideologia. Ao abordar a questão da
28
SLOTERDIJK, Peter. Fiscalidad Voluntaria y Responsabilidad Ciudadana: Ciudadana Aportaciones a un
Debate Filosófico Sobre Una Nueva Fundamentación Democrática de Los Impuestos. Traducción. Isidoro
Reguera, Madrid: Siruela, 2014, p. 44.
168
tributação, Sloterdijk através de uma ampla gama de espaços que servem para
diagnosticar sociedade de hoje, desde elementos metafísicos, políticos, psicopolíticos. O
estudo da tributação, geralmente focado na análise econômica de impostos específicos,
cálculos de otimização e incentivos ao cumprimento, relega questões sobre o significado,
valores e implicações sociais para uma posição marginal, reduzindo a existência de
impostos a uma questão instrumental, e apenas determinação aritmética. Para uma ética
do Cada vez mais, no entanto, perguntas de ciência política, psicologia, sociologia e
filosofia política têm desafiado este paradigma, recordando a necessidade de questões
mais profundas em um contexto onde os regimes fiscais mostram sinais avançados de
erosão: fraude, evasão, políticas fiscais restritas para não assustar o capital, ceticismo
sobre o papel do Estado no financiamento de bens comuns, paraísos fiscais ativos no
século XXI, impostos de propriedade ineficientes ou inexistentes e dificuldades para
enfrentar as desigualdades de renda. Se há algo em que o pensador insiste, é a
democracia, que precisa do direito de ser reconhecida pelos outros e de fazer parte do
orgulho coletivo. Sloterdijk utiliza alguns aspectos de sua abordagem tributária (a
Alemanha) e da realidade alemã nos mostrando mais especificamente, e analisando as
bases do Estado fiscal, o domicílio ideológico que emerge de sua proposta, o contraste
entre obrigatoriedade versus tributação voluntária, a tensão entre o medo e a coesão
social e por que sua abordagem não representa uma defesa dos mais ricos. Peter
Sloterdijk pretende desativar a reação contra os impostos, que ele corretamente detecta,
mas crescente e indignado. Para combatê-lo, são necessários contribuintes genuínos, isto
é, pessoas que doam voluntariamente o poder que agora retira à força. A atividade típica
de Estado fiscal se faz mediante violência, uma atividade típica de “gatunos” ou
“saqueadores”, os cidadãos se veem quase que roubados. A violência não é apenas
insuficiente, mas pode ser contraproducente, e a persuasão deve ser usada para
cooperar com o Estado, dando-lhe o mesmo que agora, mas com voluntariedade, orgulho
e alegria.
Sloterdijk toma como inconcebível que a sociedade mais rica da história da
humanidade seja também “a mais mal-humorada, insatisfeita e desconfiada” que alguma
vez existiu em épocas de paz, sendo que o motivo do desgosto reside na humilhação
sistemática dos dadores por parte dos poderes tomadores organizados. Mencionando
Derrida, dirá que este nunca fez outra coisa para além de libertar a esquerda anacrônica
169
29
SLOTERDIJK, Peter. Fiscalidad Voluntaria y Responsabilidad Ciudadana: Ciudadana Aportaciones a un
Debate Filosófico Sobre Una Nueva Fundamentación Democrática de Los Impuestos. Traducción. Isidoro
Reguera, Madrid: Siruela, 2014, p. 75.
170
30
SLOTERDIJK, Peter. Has de Cambiar tu Vida: Sobre Antropotécnica. Tradução: Pedro Madrigal, Valencia:
PreTextos, 2012c, p. 469.
171
classes” própria a consideração marxista da história. Ela caracteriza-se pelo fato de, por
meio de enormes porções de mais-valia oriundas do trabalho escravo, do trabalho serviu
ou do trabalho assalariado ou mesmo do recolhimento de imposto serem mantidas
camadas militares e aristocráticas ou exércitos permanentes, que representam grupos
parasitários – no sentido clássico literal – de não trabalhadores. Para tanto, contudo, eles
recebem a tarefa de assegurar o espaço vital de seus grupos como um todo. Nessa
economia, é fixado um novo preço para a sobrevivência: a sobrevivência dos conjuntos é
paga com a submissão das massas a estruturas político-militares e com a prontidão dos
povos a ler o roubo da mais-valia e as chantagens fiscais como um manuscrito no qual a
“dura realidade” comunica aos povos suas intenções. A violência das guerras traduz-se
em um realismo que reconhece o fator guerra como “violência superior”. Um sistema de
necessidade, a necessidade de “pensar a guerra” formou nos últimos milênios o cerne
não maleável de um positivismo trágico. Este positivismo trágico sabe, antes de toda
filosofia, que não se precisa nem transformar, nem interpretar o mundo em primeira
linha, mas suportá-lo. Trabalho, por isso, significa hoje, quer se goste ou não, fomentar
um sistema que não pode ser de maneira alguma a longo prazo o sistema de nossa
sobrevivência. Há muito tempo não pagamos mais um preço pela sobrevivência, mas
criamos mais-valia em favor de uma máquina suicida. Esse conceito com mil vozes
responde o irracionalismo que pertence a superestrutura ocidental. Em meio a tentativa
de desatar os nós trazidos pelas contradições do sistema capitalista com o auxílio da
dialética marxista, o nó não apenas foi desatado, mas foi também tragado até a
absurdidade total. No embate entre as grandes potências, a fração marxista, que tinha
entrado em cena com a “solução” dos problemas capitalistas, se tornou bem
possivelmente até mesmo a parte mais desprovida de esperanças do problema. Se
buscarmos razão para tanto, então se mostrará o modo como o aspecto moralizante da
teoria da mais-valia sobrepujou o seu aspecto analítico. Pois aquilo que ela elaborou
como a “perfídia objetiva” do roubo de tempo capitalista junto às massas trabalhadoras
é ao mesmo tempo uma descrição daquilo que acontece em todas as sociedades com
superestruturas político-militares, ainda que elas se autodenominem dez vezes
socialistas. Nas experiências feitas a partir de movimentos marxistas “ortodoxos”, como
foi visto no leninismo, no stalinismo, no Vietcong, em Cuba e no movimento do Khmer
Vermelho, uma grande parte vigor cínico atual teve a sua origem. Foi o desenvolvimento
172
Sloterdijk diz querer voltar à sua tese que ficou inaudível no fragor do debate:
apenas um sistema voluntário de doações pode funcionar como princípio de
receita para o Estado, pois só assim a população veria devolvida à sua
vitalidade moral, uma vez que apenas as pessoas que estão afeiçoadas à
dádiva despertaram moralmente, isto é, existem enquanto sujeitos morais.
dia acharia que youtuber seria profissão e poderia ser bancado por seus espectadores?
Não só através da monetização, mas também do Patreon (seja meu patrão). O famoso
“contribua com o canal” com doações, financiamentos voluntários. Vemos Causas
animais cada dia crescem ainda mais, museus patrocinados, pessoas financiando
esportistas, entre tantos outros casos. Nos Estados Unidos, numa sociedade movida pelo
prestígio, logo começa uma competição pelo lado do dar. Para Sloterdijk, o mérito de
Marcel Mauss consiste em ter percebido que o dom estabelece o nexo social primário.
Apesar da dádiva ser sobrevalorizada por aqueles que concebem a formação do socius
sob a tutela da equivalência, Sloterdijk vai, pelo contrário, considerar que devemos
pensar a coesão social a partir da dádiva, nomeadamente a partir da dádiva unilateral,
um tipo de mecenato, não por pena, mas por bem querer. É sua convicção, portanto, que
todos nós poderíamos ser dadores inveterados se as premissas culturais o favorecessem.
Esta aniquilação refrigeração de liberdade, esta nova versão da servidão
voluntária de Étienne de La Boétie, prossiga gradualmente como sujeitos nos oferecendo
cada vez menos resistência até que doar para o bem comum poderia, assim, ser
transformado ao longo do tempo em um hábito psicopolítico consolidado. Não só os
impostos nunca baixariam, mas poderiam subir, quando as condições climáticas coletivas
permitirem. Mas, é claro, eles não seriam mais impostos odiosos, mas regozijavam-se
com "propostas de contribuições". Neste sentido, em torno da ambivalência humana,
Sloterdijk diz ainda, em You Must Change Your Life aprofunda a característica bipolar,
dual do homem, em que este é um ser que gravita entre duas formas de ação, passiva e
ativa. No trabalho que todos fazemos sobre nós próprios (eu-designer ou cuidado de si),
de molde a imunizarmo-nos face aos atropelos do meio ambiente, temos um conjunto
de dispositivos de optimização dos nossos recursos prontos-a-usar que podemos assumir
para nós de molde a que a vida adquira conotações mais previsíveis, mais aceitáveis, em
suma, para que a vida nos surja menos violenta, mais aprazível, menos bruta. A ideia de
ascese ou autopoiese novamente aparece.
Em sentido amplo, poderíamos afirmar que aquilo que nós chamamos de
“Modernidade” não seria outra coisa que o momento em que tais práticas ascéticas
desdobraram-se em todas as sociedades ocidentais, sob a forma de um disciplinamento
generalizado. A perda de uma certa ritualizada religiosa, uma forma de ascetismo
desespiritualizado. A ascese desespiritualizada permitiu que algumas sociedades
175
Pode-se dizer que toda a vida é acrobacia. Assim, a relação entre a optimização
que eu próprio realizo na minha pessoa e as melhorias na minha vida proveniente de
outras pessoas às quais aspiro são designadas de duas formas: o primeiro tipo de ação
designa-se por “operar-se a si mesmo”. Sendo o segundo tipo designado por “deixar-se
operar”. Neste duelo entre passividade e atividade, o sujeito vai sobrevivendo, criando o
seu mundo. Estas duas expressões designariam modos de comportamento
antropotécnico, isto é, modos de comportamento modelados por tecnologias imateriais
próprias do humano, que seriam competidores entre si.
Esposito (2013, p. 55):
31
SLOTERDIJK, Peter. Has de Cambiar tu Vida: Sobre Antropotécnica. Tradução: Pedro Madrigal, Valencia:
PreTextos, 2012c, p. 477.
178
32
Se como muitos criticam Heidegger pela sua transição aproximativa da revolução nacional-socialista de
1933, tais acusações só fazem sentido se as encaixarmos no contexto da renúncia da filosofia moderna à
tradição da racionalidade, contemplativa, à qual, arrependido, quis regressar depois da queda. O seu caso
é instrutivo sobre os perigos da militância, o que levou muitos filósofos da modernidade a serem “órgãos
da revolução”, “órgãos da história” ou “órgãos do acontecimento”. Georg Lukács, ocupou uma posição
importante no século XX, que após a sua conversão ao marxismo, tentou abocanhar o “princípio da
consciência de classe” a priori de todas as atividades intelectuais. Considerou a academia europeia uma
“ciência burguesa”, onde qualquer ciência ou recurso não marxista seria cúmplice da “ordem reinante”.
Luckács colaborou com a glorificação da violência revolucionária, assim como desacreditou do pacifismo
lógico, com o qual como vimos banhava a heterotopia paleoeuropeia da esfera acadêmica com o inicial
pacifismo civil da república dos sábios. Dois textos que nos parecem interessantes são RORTY, Richard. O
Fedor de Heidegger. Tradução: Samuel Titan Júnior, 1997. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/4/20/mais!/15.html>. Acesso: 24 Abr. 2019 e AGAMBEN,
Giorgio. A Potência do Pensamento: Ensaios e Conferências. Tradução: António Guerreiro. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2015, pp. 281-290.
33
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 15ª Edição. Parte I. Tradução: Márcia Sá Cavalcanti Schuback. Editora
Vozes: Rio de Janeiro, 2005, pp. 165-178. Ver também: §§ 55-69.
180
Uma luta, na qual se sabe com que se tem de lidar, é uma luta aberta. Na
ordem moderna da existência, contudo, se é afetado a cada clareza
instantânea pela confusão dos fronts de luta. O que até bem pouco se
mostrava como adversário agora é aliado. O que precisaria ser adversário de
acordo com a objetividade do que se deseja se mantém junto; o que se mostra
como antagônico abdica da luta; o que parecia um front uniforme se volta
contra si mesmo. E, em verdade, tudo em uma confusão e em uma mudança
turbulentas. Estamos em uma situação na qual posso me tornar adversário
daquele que se acha aparentemente mais próximo de mim, assim como posso
me aliar a quem se acha mais distante.
a sociedade europeia seja imune olhando para o Renascimento, quando todos venceram
a Grande Epidemia através da literatura de G. Boccaccio, em O Decamerão. Para ele, isso
traduz a verdadeira superação da dicotomia Fé/Razão. Trata-se, segundo essa
perspectiva, de uma espécie de counter culture: as novelas. As novelas revelam o
autêntico significado do Renascimento, pois integram a própria consciência moderna de
felicidade. La vita è bela. Foi a novela do cotidiano que fez com que se pudesse voltar ao
cotidiano. E isso segundo um novo modo de contar histórias, a história como história sem
separação entre o humano-cultural e o puramente natural. A partir dessa lição de colocar
na jogada as pequenas boas novas sobre a vida que continua, daí em diante a
modernidade herdou do Renascimento a capacidade de enfrentar as sucessivas pestes.
Foi essa fórmula que permitiu e que permite que se possa sempre deixar de lado os
sabichões realistas e voltar a apostar e si mesmos e no mundo, e continuar e seguir em
frente. Do ponto de vista filosófico, a cidade de Florença marcou a civilização ocidental
pelo fato de ter nascido ali uma nova forma de nós, seres humanos, nos reanimarmos
diante do jogo de contingências (benéficas e maléficas) da natureza. Convém ressaltar
que, na teoria literária, o romance Dom Quixote datado de 1605 seria o primeiro romance
moderno. Na proposta de Sloterdijk, essa inauguração da sociedade novelesca já se inicia
com o Decamerão no século XIV. O filósofo alemão fez a escolha desse livro pelo fato dos
personagens de Boccaccio se reunirem para contar histórias uns pros outros, quando
nem a medicina nem a religião davam conta de fazer o espírito humano suportar a vida
diante dessa catástrofe natural, a peste negra, causada por um tipo de bactéria. Assim,
os personagens reunidos que haviam se afastado da cidade assolada pela peste negra
narram as historietas do Decamerão, sem o intuito de achar uma solução para acabar
com a praga, mas sim para eles mesmos poderem conviver com um mundo. Da atividade
de contar diversas histórias do cotidiano, em que ora prevalecia a sorte, ora o azar do
personagem, nasce a sociedade novelesca. Por fim, os narradores do Decamerão
regressaram à cidade ainda doente. Ainda que eles estivessem jogados à própria sorte, a
civilização ocidental encontrou uma nova forma de imunização diante das adversidades
da natureza através desse marco inicial da literatura. Guilherme de Lorris foi outro. Era
um poeta francês da Idade Média. Escreveu o Roman de la Rose (O Romance da Rosa)
(ed. 1914). Pouco se sabe da sua vida, exceto que escreveu a primeira parte da obra
Roman de la Rose cerca de 1230. Este poema, fortemente influenciado pelo conceito do
184
amor cortês, teve grande influência ao longo de toda a Idade Média francesa. O poema
de Guilherme, deixado inacabado com cerca de 4000 versos, foi continuado cerca de 40
anos mais tarde pelo poeta Jean de Meun, que escreveu uma segunda parte de caráter
muito diferente. Em uma passagem de seu romance se percebe claramente a noção de
fortuna que emergiria numa situação de globalização e sorte. As figuras do Romance da
Rosa são bastante significativas. A Cobiça é quem faz tomar as coisas dos outros, roubar,
usurpar e vender mal, diminuir e enganar nas contas; é a criadora dos trapaceiros, dos
charlatães que, seguindo seu conselho, privam donzelas e jovens de suas justas heranças.
Esta imagem tinha as mãos encurvadas e retorcidas – é lógico ser assim, pois a Cobiça
sempre se esforça em tomar o bem alheio sem escutar razões, já que gosta
demasiadamente do que é dos outros. Para poder desfrutar da vida cortesã simbolizada
pelo Jardim do Amor seriam necessárias certas qualidades morais, além de dons naturais
e meios de fortuna suficientes. Esta é a razão pela qual às figuras do romance ficam do
lado de fora do Jardim. Aqui o poeta contempla a Avareza, como no texto, com uma bolsa
de moedas em uma das mãos e as roupas rasgadas.
Figura de Romance da Rosa. A Cobiça, aquela que incita as gentes a tomar, a não dar
nada, a juntar, grandes riquezas; é quem faz com que muitos emprestem com usura, pois está
sempre querendo reunir e juntar bens; é quem aconselha aos ladrões e aos malfeitores para
185
que se ponham em movimento. Ela é um grande erro e uma grande desgraça, pois através dela
muitos acabam sendo enforcados. Nas mãos da Cobiça nota-se uma bolsa.
Ao lado da Cobiça havia outra figura, chamada Avareza: era feia, suja, magra,
fraca e de má aparência, verde como um alho-poró, tão pálida que parecia doente e
morta de fome ou que vivia somente de pão amassado com água sanitária forte e
abrasadora. Além de estar fraca, vestia-se pobremente: trazia uma cota velha,
destroçada e cheia de remendos, como se houvesse sido jogada aos cachorros. Ao seu
lado, pendurada em uma fraca presilha, estava seu manto e uma cota parda. O manto
não era de boa linhagem: era de má qualidade, desgastado, de lã negra, aveludada e
pesada. A cota devia ter mais de vinte anos, mas a Avareza não se preocupava com suas
vestes. Ela não sentiria muito por esse traje, ou porque estava usado, ou porque já não
lhe servia, já que necessitaria de um vestido novo; pois a Avareza, aquela que não gosta
de gastar, prefere passar grande penúria a fazer isso. Ela havia escondido na mão uma
bolsa costurada e fechada com tanta força, que se passaria um bom tempo antes de se
tirar algo dela, embora isso lhe importasse pouco, pois ela não tinha a intenção de tirar
nada da bolsa.
A palavra fortuna com a conotação de sorte e prosperidade carregou-se da
semântica atual, ou seja, tornou-se sinônima de “montante de dinheiro”.
Posteriormente, na modernidade isso se institucionalizou com os jogos de azar, bingos,
roletas, roleta-russa, cassinos, megassena, etc. Nós modernos somos os que assumiram
essa descoberta do Renascimento de um modo ritual. Passamos a ver em tudo a Roda da
Fortuna ou Rodas do Destino: casamentos, mortes, guerras, aniversários, visitas
inesperadas, negócios, empreendimentos, colonialismo, viagens, prospecções várias,
empregos diferentes, mídia. Institucionalizamos a fortuna: loteria esportiva institucional
e a jogatina do sistema financeiro. Esse processo mostra a glorificação da fortuna. Só ela
é efetivamente uma deusa. E só vale a pena ser rico, ou seja, ter fortuna, se a riqueza é
de fato ter fortuna, vir pela fortuna.
Se formos para o escritor Neil Gaiman, as primeiras páginas de Entes Queridos
de 1991 servem como um prólogo, no qual presenciamos um chá de fim de tarde na casa
das três Moiras (entidades irmãs responsáveis por tecer os destinos dos homens e dos
deuses, também conhecidas como as Parcas). Escritor afeito a metáforas, cria sem suas
186
obras várias referências desde a mitologia grega, romana, latina e nórdica. Gaiman não
perde a oportunidade de iniciar aí várias referências ao próprio ato de contar histórias
(com isso, o primeiro quadro dos capítulos é uma metáfora visual para o “fio da história”,
ora na forma de um novelo, ora como um cabo de energia ou um fio de telefone). Além
disso, o roteirista sempre demonstrou uma fascinação por tríades femininas, e acabamos
revendo as três damas das primeiras páginas transfiguradas, mais tarde, nas Três Bruxas
(de Macbeth) e também nas temíveis Fúrias (da mitologia clássica), entre outras
entidades mitológicas. E a mitologia tem, de fato, um lugar central nessa trama. As
parcas, na mitologia romana (moiras na mitologia grega), eram filhas da noite (ou de Zeus
e de Témis). Divindades que controlam o destino dos mortais e determinam o curso da
vida humana, decidindo questões como vida e morte, de maneira que nem Zeus poderia
contestar suas decisões. Na Odisseia aparecem as “fiandeiras” com a atividade típica de
aranhas que tecem teias. Durante o trabalho, as parcas fazem uso da Roda da Fortuna,
que é o tear utilizado para se tecer os fios. Ao enrolar os fios da existência dos seres vivos
neste instrumento, cada pessoa se encontrará na posição mais almejada, o alto da roda,
ou em baixo, na parte menos desejada, simbolizando os momentos de boa ou má sorte
de todos.
O globo moderno sonha sua fortuna como um relógio de oportunidades para
uma nova sociedade de empresários à distância e corredores de riscos que foram vistos
nas margens de outros mundos sua riqueza de manhã. Quando os esquemas de
negociação com riscos se estendem de modo geral como inventar, arriscar, planificar,
apostar, repartir riscos, financiar, fazer reservas, entra em cena todo uma quantidade de
pessoas que querem procurar por si mesmas sua felicidade e seu futuro jogando com o
imprevisível e as oportunidades e que não deseja mais ser conduzida tão somente pela
mão de Deus. Na modernidade, entretanto, nasce inteligentemente a imagem da roda
do destino, dando piruetas e voltas. Estamos diante de uma “metafísica da sorte” que se
ajusta a suas mais peculiares e razões de existir movimentando-se. A história da fortuna
é uma marca no espaço europeu de animação, especialmente quando vemos o período
medieval e o renascentista. Temos o Consolação da Filosofia de Boécio, O Príncipe de
Maquiavel. Esses dois clássicos podem nos dar pistas bastante valiosas a respeito desse
tema. A formulação dada pela Filosofia a Boécio, a respeito do mal e só então,
percebemos a razão pela qual é a Filosofia que lhe aparece, e não Deus ou um anjo etc.,
187
isso inclui uma explicação do papel da Fortuna segundo duas outras figuras, a Providência
e o Destino. Não é sem razão que na identidade moderna, ou seja, o individualismo que
nos é típico, é visto por Sloterdijk como construído segundo um fio que vai da aventura,
da rotação do globo junto com a roda da fortuna e cultivo da sorte (própria do
Renascimento) para a ideia de divertimento (própria dos tempos contemporâneos). Se
vê a fortuna como uma mulher: as vezes vendada como a justiça, as vezes como uma
madrastra, as vezes como uma senhora caprichosa e injusta, que engana seus
admiradores guiando-os em círculo, as vezes como amor, romance, como trabalho, o
combate, o diálogo, o flerte, a oportunidade, os negócios. Estas são as formas principais
do êxtase que diverte. Essa metafísica se infiltrou para o ramo creditício, capitalista e da
globalização (animação de espaços). O ciclo ou círculo virtuoso gira sobre seu próprio
eixo e toma a forma, no sentido moderno, como autopotenciador e autoexpoencial
(acumulação, mobilização, processo, aligeiramento, empreendimentos – algo para mais
e mais para algo mais; é significativo que temos como tecnologias rodas, moinhos de
vento e água, azenha, usinas hidrelétricas como mecanismo capaz de aproveitar a energia
cinética da movimentação de águas como fluxo e tomando o giro constante da roda; não
usamos a frase “o consumo é o motor da economia?”). Não veríamos os Positivistas,
especialmente, Comte e Durkheim, este último com suas ideias de “solidariedade
orgânica”? Durkheim concebe as sociedades complexas como grandes organismos vivos,
onde os órgãos são diferentes entre si (que neste caso corresponde à divisão do
trabalho), mas todos dependem um do outro para o bom funcionamento do ser vivo. São
digamos, um relógio com correias, roldanas, polias que estão dispostas de maneira a
entrarem em movimento para que o todo funcione harmoniosamente. Vemos na
bandeira brasileira o lema: “Ordem e Progresso”. Também tem conhecimento de que o
positivismo foi uma doutrina forte entre os republicanos, tanto os civis quanto os
militares. A frase “ordem e progresso” entrou na bandeira com um corte, talvez
justamente porque a primeira parte da frase fosse uma camisa de força para pessoas que
deveriam, ao menos naquele momento de criação da República, dar combate ao Império,
em nome da nova ordem. Qual corte? Bem, a frase original de Comte era uma maneira
de sintetizar sua proposta filosófica: “amor por princípio, ordem como base e progresso
como fim”. Fazendo da filosofia da história de Hegel um esquema de teoria social, Comte
viu o desdobramento cultural humano segundo três fases: mítico-religiosa, metafísica e
188
científica. Os homens deveriam ir do mito para a filosofia e desta para a ciência. Chegar
ao progresso seria algo desejável, claro, e isso significaria entrar para a última e melhor
fase da humanidade. O progresso era visto por Comte como aquela fase na qual as
pessoas deveriam deixar de pensar miticamente e filosoficamente para abordar os
problemas da vida segundo procedimentos científicos. Mas isso não seria possível de ser
realizado sem um impulso motivacional tomado como princípio e guia: o amor. A força
da união entre as pessoas, um eco da fraternidade da Revolução Francesa, sempre teria
de estar presente.
O lema da bandeira veio sim da filosofia de Comte, e não tinha nada de
autoritário ou reacionário. Por sua vez, a ordem deveria ser tomada, por definição, como
contrário do caos, como a harmonia de uma etapa que segue outra. São os ideais
positivistas que, quando estudamos a história do século XIX, entendemos perfeitamente
dentro de um contexto afinado com tempos de esperança, de construção e reconstrução,
de generosidade utópica em Saint Simon e a Escola de Chicago, precursor de Comte,
inspirou os engenheiros que fizeram o Canal do Panamá onde a engenharia tinha de estar
voltada para a união da Humanidade. Progresso deveria lembrar a ideia de uma filosofia
da história no final do século XIX. A história viria por etapas, e as etapas posteriores teriam
de naturalmente serem melhores que as etapas anteriores. Os positivistas leram Hegel e
se tornaram, nesse progressismo, parentes próximos dos marxistas e outras filosofias
próprias do período, que queriam um futuro melhor.
Não seria o símbolo da aventura os ventos que sopram e que levaram pessoas
para locais inesperados. Catástrofes e situações que se fizeram presentes em um
acidente, em uma descoberta, em uma sorte? As vezes as pessoas erradas não estão nos
lugares certos? Nós não dizemos que "os ventos estão mudando" quando tentamos
acreditar em uma maré, uma onda, forças anímicas que criarão uma mudança brusca
direções, uma grande viragem, revoluções como quem espera ter uma certa dose de
sorte, interferência divina, o destino atuando para nós, como quem escreve certo por
linhas tortas, como quem está com a bunda virado para a lua, como aquele alguém, que
mesmo no erro, parece ser tocado por um dom de tudo dar certo, ou seja, não só as
coisas estão de passagem, mas pessoas. Um grande círculo, uma grande roda, um grande
globo que gira aleatoriamente, mas com uma iniciação empreendedora de metafísica
infecciosa de sorte, o espírito não fora já deflagrado como uma vitalidade flutuando,
189
O mesmo ocorre com a Fortuna, pois ela enche o coração das gentes de
amargura e logo depois os acaricia e afaga; rapidamente muda seu aspecto:
ora ri, ora está triste. Ela tem uma roda que gira e, quando assim o deseja,
coloca acima, na parte mais alta, aquele que estava embaixo e, com uma volta,
faz com que caia no barro aquele que estava acima na roda. E eu fui
derrubado! Em má hora vi os muros e as fossas que não me atrevia passar – e
nem poderia fazê-lo. Não tive nenhuma alegria desde que Doce Abrigo foi
encarcerado, pois todo o meu gozo e toda a minha cura descansavam nele e
na rosa que se encontrava presa entre os muros; seria necessário que ela
saísse da torre se o Amor quisesse que eu fosse curado, pois de nenhum outro
desejo receberia honra, bem, saúde e alegria.
34
DESIDÉRIO, Erasmo. Elogio da Loucura. Tradução: Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2003, pp. 111-112.
191
35
SLOTERDIJK, Peter. Das Reich der Fortuna. In: El Reino de la Fortuna – Extremadura, Renacimiento,
Fortuna. Extremadura: Fundación Ortega Muñoz, 2013, p. 23. Desde 1348, os europeus sabem que grandes
192
cidades comerciais são espaços de infecção. Eles constituem zonas de risco em que eles misturam contato
desordenado e buscam por nós. Seus habitantes agora devem entender, em um processo de aprendizado
temeroso, que as riquezas e as infecções viajam juntas.
193
Somos assim, frutos da busca de uma felicidade por carta literária. Nessas cartas, nessas
novelas, surge a grande heroína do Renascimento, quase como santa ou fada: a Fortuna.
Hoje ela está secularizada, mas não menos importante. Tornou-se a peça chave do que
entendemos como a alavanca da verdadeira felicidade. A contingência e o inusitado
trazem desgraças, mas só estes, também, sob o nome de sorte ou fortuna, trazem a
riqueza que vale como riqueza. A novela conta isso. Desde aquela do herói Fortunatus, o
homem aventureiro da bolsa que sempre repunha seu próprio conteúdo em dinheiro,
até à literatura presente e ao que se chama novela de TV. A verdadeira riqueza é a que
se ganha sem trabalho, mas pela sorte. Essa ideia se entremeou com a peste. Colombo
foi para o empreendimento do risco, da sorte e do azar, e trouxe a notícia de que havia o
novo mundo. Mas os tempos eram tão difíceis, a peste tão assassina, que seu anúncio
caiu no vazio, e ficou por conta de um aventureiro de mais estilo marqueteiro que ele,
Américo Vespúcio, divulgar o novo mundo, um pouco mais tarde. Por contrabalanço do
tempo, a peste fez o nome da América ser América. O “Fazer a América” não é
exatamente lançar-se na aventura? Não é se entregar ao que dizem as novelas curtas, de
que a Fortuna é uma deusa que existe mesmo? Convivemos hoje com a noção de que
quanto mais controlamos tudo, menos sabemos do jogo de sorte e azar, de modo que
não há como ter esperança se não acreditamos que a nossa verdadeira felicidade se deve
a um ato da Fortuna.
Sloterdijk está falando nada mais que para se abrir tais espaços artificiais como
estufas chega a “paradoxos termopolíticos”, faz-se explodir em todas as regiões do
mundo os resquícios de uma fé e uma segurança em nome do “radical Iluminismo do
mercado”, um mundo da segurança e da promessa de uma vida melhor que rapidamente
se sente sem equilíbrio como numa corda bamba as normas imunitárias do proletariado
e das populações periféricas. Subitamente diversas massas encontram-se descampadas,
mas sem saber exatamente o sentido da sua expulsão. Na mudança de forma de mundo,
inúmeros indivíduos e famílias se veem abandonados por boas almas políticas. A
mobilização dos muitos por uma grande forma coerente acaba em lamento ou hipnose
sem sucesso. Basta ver recentemente o caso dos imigrantes. Eles vivem a ilusão do frio e
do desalento, mas com a imagem de mundo de algum tipo de calor pulsante volta a arder
neles na busca de um abraço que os circunscreva. Os movimentos fundamentalistas
mostram que a construção de “casas” e seguros privados, como sistemas de
194
solidariedade indireta, ainda não é capaz de atender às necessidades daqueles que são
simbolicamente e materialmente “sem teto”. Essa falta de diálogo será resolvida pela
política do poder, que, no caso, não é a do expansionismo, mas a do isolacionismo. A
Europa está aprendendo essa política cínica com o fechamento das fronteiras. Sloterdijk
defende um controle moderado da imigração. Uma abertura moderada. Dentro de 30
anos, metade da população europeia será idosa. É preciso uma atitude semelhante às da
Austrália e do Canadá, de acolhimento projetado. Uma política descontrolada de
imigração produzirá uma enorme tensão.
“A uns a Fortuna se mostra como uma boa mãe, a outros madrasta injusta”.
Emblemata nobilitatis. Frankfurt. Teodoro Bry (1593).
195
Debaixo dos pés da Fortuna. A grande fortuna ou nêmesis. Alberto Durero. (1501).
Grande parte dessas pessoas nunca será integrada à cultura europeia. Esse
sistema “nascente” de seguros é um dos precursores da modernidade sistêmica na
medida em que se define a modernização como uma gradual substituição de vagas
estruturas imunológicas simbólicas, do tipo das interpretações religiosas últimas dos
riscos da vida humana, por prestações de segurança social e técnicas calculadas. Essa
imprevisibilidade ou uma “jornada de aventura” tinha como acompanhante Deus. Mas
agora, em certos pontos essenciais modernos, o seguro de profissões, contratos,
negócios e vida tomam o lugar dos destinos que estava nas mãos de Deus. Como o sujeito
moderno não pode pensar na “própria morte” por razões psicológicas, ideológicas e
metafísicas (a filosofia de Heidegger parece se mostrar, em contrapartida, como um
corretivo imponente em relação a esse ponto), ele cai sob o peso da lei de que é preciso
evitar a morte literalmente com todos os meios. Em certo aspecto, todos os meios são
meios para não morrer. Consequentemente, obtém-se a partir daí um instrumentalismo
total, que engole tudo o que não se revela como o eu que gostaria de sobreviver. Esse
instrumentalismo fornece a base técnico-lógica para o cinismo dominante moderno da
196
“razão instrumental” (Horkheimer). Se o sujeito é a priori aquilo que não pode morrer,
então ele transforma rigorosamente o mundo em areal de suas lutas por sobrevivência.
O que me impede é o meu inimigo; quem é meu inimigo precisa ser impedido de me
impedir. Em última instância, essa vontade de prevenção significa a prontidão para
aniquilar o outro homem ou “o outro”. Em meio à alternativa “nós ou eles”, a escolha cai
imediatamente sobre a morte dos outros, uma vez que ela é, no caso conflitante, a
condição significativa, necessária e suficiente de minha sobrevivência. O não poder
morrer submete o mundo, tanto em seus âmbitos visíveis quanto invisíveis, a uma
transformação radical. Se o mundo se torna por um lado o palco do espetáculo das lutas
humanas por autoconservação, ao mesmo tempo ele se trivializa e se transforma em
bastidor material, por trás do qual não é possível supor senão a presença do assim
chamado nada. No Dadaísmo, os indivíduos realizam pela primeira vez conscientemente
a inversão padrão para toda a subjetividade contemporânea da relação eu-mundo
moderna: o indivíduo kynikos põe fim a pose do criador artístico baseado em si (gênio),
do empreendedor que se resgata. Eles deixam-se impelir muito mais pelo dado. “Se
aquilo que nos impele for brutal, nós também o somos”. O Dada não olha para o cosmos
ordenado. O que está em questão para ele é o presente do espírito no caos. Seria sem
sentido manter toda pose em meio ao tumulto assassino, tal como era usual nas filosofias
da vida pacatamente excitadas do tempo. O Dada exige do tempo uma coetaneidade
absoluta com as tendências do próprio tempo (vanguarda existencial). Só o mais
avançado vive em uma linha temporal. A guerra como mobilização e como auto
desinibição, os mais adiantados procedimentos destrutivos até o cerne das artes:
antipsicologia e antiburguesia. O “páthos” da verdade dessa corrente é ter o tempo nos
nervos e pensá-lo e vivê-lo em seu ritmo. Este parece ser um fator fundamental da moral
de esquerda. A sentença de Gustav Regler: “Quem não participa de seu tempo é pobre.
Esta tornou-se uma lei não escrita. Em seguida, uma pressão. Por fim, uma chantagem”.
Um eco filosófico vem aqui à tona: o Dada antecipa propriamente o tema da ontologia
fundamental heideggeriana, critica por sua parte em um nível conceitual extremo a
mentira “sujeito” característica da filosofia europeia dominante.
O eu, não é o senhor do mundo, mas vive no mundo sob o sinal do caráter de
jogado. Em todos os casos, fazemos “projetos”, mas mesmo esses projetos, por sua vez,
são “projetos jogados”, de tal modo que vige primariamente uma estrutura ontológica
197
ser pensante possa estar, sem mais, pela alma foi revista por ele próprio na sua obra
crítica.
Heidegger dizia que o conhecimento tecnológico e científico era uma técnica de
fazer o que é implícito, interno, escondido, em explícito, isto é, trazê-lo ao descoberto.
Modernização significa, nesse sentido, "explicar" (modernização não é revolução, isso foi
um mal-entendido), mas não no sentido lógico comum de explanar, e sim no seu sentido
cognitivo de trazer à superfície.36 Enquanto o jogo da linguagem central da atividade
filosófica, e das ciências, consistia naquilo que seria o “justificar”, “explicar” ou fornecer
um motivo, a razão de algo (Begrïnden), a situação da epistemologia recente atual mais
por um procedimento antiético, por algo perto de uma desfundação ou um
“desfundamento” (Entgrüden). É de se espantar que a metafísica clássica alcançou seu
mais alto nível de influência no período em que a ideia de peso subia à cabeça dos
homens. Na Modernidade ainda se veria resquícios disso. Desejava-se que casas e razões
assentassem naquilo que se chama de “fundações firmes” ou “fundações sólidas” (não
lembramos aqui de Descartes?) Nessa força de buscar fundações, as próprias fundações
desabaram com o seu intuito. Devemos partir de outro princípio, o de inverter a atividade
de solo e o assentar em algo. Fundações são rígidas, pesadas, duras. Devemos formar,
conectar, flutuar, tensionar. Podemos constatar que o ar trocará a sua função com o solo
terrestre (Fuller, Archigram e Frei Otto, nesse sentido foi o que mais aplicou o princípio
morfológico da espuma). As condensações substituem as fundações (uma tradição
filosófica de edificações não viria daí – Rorty?). As culturas são sistemas atmosféricos,
dependem muito mais do ar do que de um chão de cimento. Não é daí que vem a ideia
de Sloterdijk em trabalha com clima, aclimatação? Heiner Mühlmann deixa pistas para o
36
SLOTERDIJK, Peter. A Mobilização Infinita: Para Uma Crítica da Cinética Política. Lisboa: Relógio D’Água
Editores, 2002, pp. 194-195. Sloterdijk considera que a revelação descobridora, através da qual tudo
quanto seja racional e relativo é patenteado, não é ela própria racional nem relativa. O “espaço” do
verdadeiro, enquanto não oculto, surge singularmente como uma ilha cheia de proporções comensuráveis,
do oceano do incomensurável, do desproporcionado. O descoberto concebível encontra-se no terreiro da
lethe, do desmedido, do inconcebível. Onde os homens permaneçam é sempre o terreno avançado do
monstruoso que está encoberto. As suas civilizações povoam uma zona que é, simultaneamente, jardim e
vulcão – um efeito ontológico do tipo Hawaii e Lanzarote (poderia surgir em nossa mente a imagem de um
iceberg). Como herdeiro hesitante ad metafísica europeia da luz, Heidegger recordou, com o seu conceito
e clareira, o singular abrir-se de um espaço inteligível para as proporcionalidades. Posto que, na clareira,
ele não vê o visível, mas também a visibilidade. Enquanto o iluminista exerce uma prática fosfórica,
portadora de luz, e emprega a luz como instrumento para examinar a fundo a matéria, o vidente
permanece junto aos “feitos e padecimentos da luz”. Imagina não é ver. Para aquele que vê realmente, o
olho é um ouvido da luz.
199
leitor como aqueles que ao lê-lo podem deixar para trás as bases onde construir deixa de
ser uma velha estática: muros, vigas, colunas. Com Fuller emerge a estática alternativa:
as tensegridades. O desenvolvimento das arquiteturas de tensão, possuem aplicação que
cabe às forças de tração ou tensão com uma imagem bastante móvel, ligeira, plástica,
leve e atrevida. Um híbrido construído pelo elemento de tensão e o elemento de
integridade. As "tensintegridades" são arquiteturas nas quais o todo é suportado pela
sinergia de elementos que não estão juntos no fundo. As forças que querem criar o
colapso do sistema são aquelas que, de alguma forma, o mantêm em pé. Uma construção
que flutua, é uma viagem para o adeus à massa, um tipo de arquitetura de vanguarda na
idade do ar. Os processos simbólicos e os ambientes da vida como produto primário
passam por uma instituição de um clima favorável, um clima interno. Uma constituição
atmosférica de culturas é o elemento decisivo e essencial, é nesse sentido,
“fundamental”. Quem quiser falar do fronteiriço deve avistar para investigações
biológicas numa certeza de psico-imunologia, é por aí que o futuro passará.
Ratio, significa cômputo, medida, relação, proporção, correspondência. A
racionalidade é o princípio de percepção das coisas que nos dizem respeito, sob o ponto
de vista da sua proporcionalidade, da sua mensurabilidade e calculabilidade. O
racionalismo é a tese dogmática, segundo a qual o próprio real seria, no fundo, o
calculável, o mensurável, o divisível, o pensável. A crítica tradicional da racionalidade é a
aplicação da racionalidade a si própria e reflexão sobre as possibilidades e limites das
correspondências e das adequações nos planos do conhecimento, da ação e do juízo. A
crítica radicalizada da racionalidade é a objeção contra a presunção do medir, dividir e
calcular e contra o descomedimento do racionalismo ao instituir escalas e campos de
medição. Em cada uma destas expressões do fenômeno ratio intervém a ideia de verdade
como proporção. Esta implica a adequação de pensamentos e atos a fatos e situações.
Mas, para que se possa dar a adequação, é preciso que anteriormente tenham vigorado
a não-adequação ou a discrepância. É somente no deserto do desencontro que se fazem
notar os oásis da coincidência.37 O oásis do qual Sloterdijk fala é o sítio onde as coisas
estão nos seus conformes, é o sítio privilegiado onde o ambiente é favorável para a
harmonização. A civilização seria a arte de instalar oásis, na medida em que,
37
SLOTERDIJK, Peter. A Mobilização Infinita: Para Uma Crítica da Cinética Política. Relógio D’Água Editores,
2002, pp. 180-181.
200
tão logo tenhamos alguma experiência de mundo. Com essa força do que é evidente,
aparente, claro, medido, se coloca uma orientação nas funções complexas do espírito
humano nos domínios da teoria e da técnica, da prática e da arte. Múltiplas culturas de
correspondência e de adequação que já tinham preparado o terreno para que as
verdades das ciências, da metafísica, da ética, religião e estética pudessem se edificar. O
homem caído que se levantou logo fixa seu olhar para o horizonte, para frente com seus
pés e mãos apontados ao defronte, ao que está diante de mim para ser pegado, tocado,
experimentado, cheirado. O lançar-se já se constitui de certa forma, a tomada de uma
postura de quem quer “conhecer”.
revelação, ele apreende ao Ser, uma metafísica enquanto uma cinética do Ser como vir-
para-a-frente, como jogado, um tipo de consciência ontocinética. Para obter, um ente
precisa ter saído para fora pelo nascimento, ter vindo para cima e de ter chegado à
linguagem. Será que cabe a nós a questão de saber o que são, os combates autonatais da
humanidade histórica senão esforços para obter compensação por um grande
inconveniente de todos os inconvenientes – o inconveniente de ter nascido. Para os
modernos, o nascimento configura uma catástrofe. Além de Beckett, Cioran também é
testemunha disso ao falar “Do Inconveniente de ter Nascido”, título de seu livro. Superar
a morte parece ser algo que conseguimos, mas o nascimento constitui-se como um
drama. Ele diz que o pior que nos pode acontecer está sempre no passado, fugimos da
catástrofe do nascimento mais do que tememos a morte. Pode-se dizer que é moderno,
aquele que negar alguma vez ter estado em um interior.
A tecnociência traz à superfície as condições de possibilidade da vida de modo
violento. Uma explosão do que era escondido na superfície. O abandono ou a situação
básica do abandono, surge quando nós mesmos somos impotentes, e devemos utilizar
elementos de confiança ou de confiar que outros dominem uma tecnologia, ou seja,
tenho que abandonar a mim mesmo quando vou a um hospital, por exemplo. Então,
passo a confiar e crer que o cirurgião sabe o que faz, em outras palavras, tem um domínio
técnico sobre um ato ou procedimento. Se subo em um táxi tenho que entregar-me
porque suponho que o condutor saiba como dirigir. Normalmente, o melhor teste da
entrega é que alguém está com uma pessoa que não conhece um veículo e deixa essa
pessoa para dirigir. Ao encontrar um motorista ao seu lado, você o questiona: sabe ou
não sabe dirigir? Creio que esta é a inevitabilidade da situação moderna de entrega como
algo que se demonstra e aparece a qualquer momento. Quando se sobe em um avião
tenho a confiança de que os pilotos sabem o que fazem. Um eu que quisesse saber e
fazer tudo se converteria em um eu paranoico. Em uma sociedade de divisão de trabalho
a confiança é a única possibilidade de reconciliação com o próprio não saber fazer ou de
reconciliação com o não saber ou não poder. Heidegger fala na posição de um pré-
socrático que faz a pergunta: se também para a humanidade contemporânea, existe a
possibilidade de algo como um Deus vindouro e, com isso, fala de algo que devia ser mais
forte que o culto moderno da autoafirmação tecnológica e superveniência tecnológica
porque Deus é uma metáfora de algo que é mais forte que o interesse de sobrevivência
203
do ser humano. Os seres humanos futuros, se tiverem sorte, irão conhecer algo que vá
os permitir superar esta maldição da sobrevivência pela sobrevivência. Todo o perigo
também há na salvação. Onde está a salvação? Também cresce o perigo. Os seres
humanos da modernidade têm boas razões de ter medo dos que salvam – da mesma
maneira dos que o colocam em perigo. Assim, poderíamos pensar o futuro e a esperança
com o qual Ernst Bloch trabalhou durante toda sua vida. Hoje o “princípio esperança”
emigrou da esfera cultural e da esfera econômica porque nossa maneira de articular a
esperança é, e se mostra, como um sistema creditício. Desde mais de cem anos é possível
ver uma utilização um tanto equivocada do termo porque o que as pessoas hoje chamam
de “capitalismo” na realidade não existe. Na realidade o capital hoje já não desempenha
um papel tão grande, mas o crédito sim. Deveríamos chamar esse “sistema” de
creditismo, não de capitalismo.
204
38
MERTON, Robert King. Ensaios de Sociologia da Ciência. Sylvia Gemignami Garcia e Pablo Rubén
Mariconda. São Paulo: Associação Filosófica Scientiae Studia. Editora 34, 2013, pp. 199-231.
39
Para uma semântica mais fidedigna. A passagem ficaria mais bem interpretada para o espanhol. “A quien
tiene se le dará, y trendrá, pero a quien no tiene se le quitará incluso lo que tiene”.
205
Em nossa época, o corpo biológico do cidadão veio a ocupar uma posição central
nos cálculos, administrações e estratégias do poder estatal. Na obra Em Defesa da
Sociedade (Curso de 1976), Foucault demonstra sua indignação pelo fato de que o Estado
moderno no século XX tenha passado a tratar sua própria população como “insetos” com
o intuito de eliminação de uma peste, o que contraria seus objetivos e sua razão de ser.
Como um poder como o biopoder, pode matar, mas se ele na verdade cuida
essencialmente de majorar a vida, de prolongar sua duração, de aumentar a expectativa
de vida, e afastá-la de acidentes, de compensar suas deficiências? Como nessas
condições, o mesmo poder político é capaz de matar, pedir a morte, causar a morte, fazer
morrer, expor à morte não somente os inimigos, mas também seus cidadãos? Esse poder
que tem o objetivo claro de fazer viver pode deixar morrer? A Política modificou-se para
Biopolítica, e o campo de concentração surgiu como verdadeiro paradigma político da
modernidade. O filósofo Agamben traz à tona o vínculo oculto que desde sempre ligou a
vida nua, a vida natural e não politizada, ao poder soberano. Nascendo aí, uma figura do
direito romano arcaico que é a chave que possibilitará uma releitura de nossa tradição
209
ocidental de política: o homo sacer. Todo esse aparato do “Welfare State”, do Estado de
bem-estar social está relacionado com a vida nua e não com a qualificada. O comum a
toda vida, o simplesmente estar vivo (zoé). Isso entra como sendo a vida e faz com que a
política não se dobre mais à vida qualificada social, mas se dobre a vida nua, puramente
biológica.
A sociedade do auto-esforço, onde todos têm que atuar sozinhos para vencer.
A sociedade do cansaço, como diria Byung-Chul Han. Não podemos mais ter
solidariedade, cada um deve se mostrar só, estar só, querer estar só e vencer sozinho. A
tão querida vitória já foi vista nos primeiros jogos olímpicos, com esportes inicialmente
individuais, a competição passou a ser uma competição com outros, mas consigo mesmo.
No fim, quero me superar, criar um novo eu, moldá-lo, transformá-lo. Em toda parte onde
o modelo cinético do êxito dos tempos modernos (movimento para uma mobilidade
acrescida) se aplica a um setor de atividade, surgem contributos focados para a grande
arrancada do mundo novo que separa e isola o seu modo de vida arcaico e mais primitivo.
Primeiro Antigo e Medieval, a Europa, depois o resto do mundo. Essa arrancada talvez
tenha tido início na Grécia Clássica com as práticas desportivas da inteligência sofística e
de uma intensificação cultural dos exercícios físicos nos Jogos Olímpicos. Milênios depois
as energias ocultas continuam a reaparecer. Depois na ascensão nos mosteiros da Alta
Idade Média, onde se viu a primitiva acumulação de subjetividade em suas fábricas. O
que se iniciava com exercícios de auto-intensificação ascética, virou movimento
autógeno para o incremento do movimento, concentração na concentração,
recolhimento no recolhimento, a prece suplicando trabalho, o trabalho na capacidade de
rezar – múltiplos movimentos para aumento da mobilidade própria. Vencer sozinho
significa que o sistema atual do capitalismo antecipa o nosso enterro.40 O tempo livre de
trabalho serve apenas para uma manutenção passiva, em que cada indivíduo recupera
fôlego do trabalho para poder retornar a trabalhar com as forças renovadas, em última
altitude, a sociedade do trabalho é uma sociedade compulsiva. A ideia de que todos
devemos ser empresários (empreendedorismo em geral), somos empresas como a
capacidade de ter créditos. Cada um deve ser uma empresa com capacidade de pagar
40
Matéria G1. OMS Define Síndrome de Burnout Como “Estresse Crônico” e a Inclui na Lista Oficial de
Doenças, 2019. Disponível em: <https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2019/05/27/oms-define-
sindrome-de-burnout-como-estresse-cronico-e-a-inclui-na-lista-oficial-de-doencas.ghtml>. Acesso: 27
Mai. 2019.
210
obviamente influenciou quase toda a sua obra, como uma espécie de inoculação de
substâncias tóxicas da decadência no sentido de organizar uma inoculação em forma de
reação de imunização. Quem quer ser médico precisa, inicialmente, ser paciente, ser
cobaia. Foi Nietzsche quem inventou a fórmula do “filósofo como médico da cultura”.
Para se poder formular um diagnóstico sobre uma época é necessário ser intoxicado por
ela. Uma intoxicação voluntária como alguém que pode dizer algo tomando potenciais
extáticos sobre sua época. É de se constatar que a história do pensamento moderna está
gravada de espectros sanitários e metáforas da farmacologia. As ideias mais dominantes
do século XIX e XX, que seria o conceito de alienação, aponta para uma terapêutica
universal, nisso Marx e Nietzsche se tocam em alguns aspectos comuns. A política e a
clínica caminham paralelamente durante anos de trajeto.
No âmbito da imunologia simbólica, é por isso que se utiliza a expressão:
“cover”, “cover your losses” ou “social security” para Previdência Social e seguros. Esse
sistema “nascente” de seguros é um dos precursores da modernidade sistêmica na
medida em que se define a modernização como uma gradual substituição de vagas
estruturas imunológicas simbólicas, do tipo das interpretações religiosas últimas dos
riscos da vida humana, por prestações de segurança social e técnicas calculadas. Essa
imprevisibilidade ou uma “jornada de aventura” tinha como acompanhante Deus.
O diabo é o primeiro realista pós-cristão. Sua liberdade de expressão parece
ainda infernal aos contemporâneos mais idosos. Quando o diabo abre a boca para dizer
a quantas andas de fato o mundo, a velha metafísica cristã, a teologia e a moral feudal
são varridas. E se lhe subtraímos o chifre e as patas, de Mefistófeles não sobra nada além
de um filósofo burguês realista, antimetafísico, empirista, positivista. Não é por acaso que
Fausto, a encarnação do pesquisador moderno do século XVI ao XIX, travou um pacto
com um diabo desses. Somente com o diabo podemos aprender “o que é o caso”.
Somente ele tem interesse de que nos livremos de nossos óculos religiosos para ver a
partir de nossos próprios olhos. Vê-se facilmente por que passa a ser supérfluo pensar
em “Deus pai, filho e Co”. Mefistófeles é uma criatura fluorescente, que vive inteiramente
em suas transformações. Sua proveniência é um cão. Para sua estreia, o diabo escolhe o
símbolo da seita filosófica kynike. Só para recordar: Fausto, no auge de seu “desespero
teórico”, decidira pelo suicídio. Os sinos e cânticos da Páscoa dissuadem-no no momento
mesmo em que aproxima seus lábios do cálice com veneno. Volta à vida. Durante a
213
caminhada da Páscoa reflete sua natureza, à qual pertencem duas almas. Podemos
interpretar seu pensamento como a profunda reflexão de um cientista burguês sobre si
mesmo: nele entram em combate realismo e insaciabilidade, pulsão de vida e desejo de
morte, “vontade de noite” e vontade de poder, sentido do possível e aspiração pelo ainda
impossível. A sequência das cenas oferece uma representação plástica da dialética do
senhor e do escravo: o diabo se apresenta de início no papel de um cão; em seguida, no
do serviçal, para, finalmente, assim ele considera, conquistar o domínio completo da
alma do sábio.
Mefistófeles é um mestre da máscara, o êmulo dos vigaristas ou espiões, pois a
condição do mal na era pós-cristã é o disfarce sob as máscaras do inofensivo, socialmente
aceitas a cada momento segundo a moda. A personificação medieval do “mal” num Satã
de carne e osso é, de certo modo, apresentada no drama irônico de Goethe. O “achado”
do diabo teatral em Goethe é sua modernização na figura de um grande senhor do
mundo, tendência que se prolonga ainda em Thomas Mann (Doutor Fausto). O diabo se
torna uma figura da imanência e o mal chega a inspirar simpatias por seus modos
corteses. No drama de Goethe, as bruxas também precisam olhar duas vezes para ver
seu junker Liederlich. Ora ele aparece como cortesão mundano com gibão e pluma no
chapéu, ora se veste, como na cena do estudante, como um grande erudito, numa
paródia à erudição, uma sátira inspirada pelo cinismo sábio - a mais cruel improvisação
de uma gaya ciência antes de Nietzsche. Em seguida apresenta-se na figura de um mago
elegante proseado espirituosamente com cafetinas e que, senhor das armas, ensina
Fausto a mandar para o céu o irmão da amada quando esse torna um obstáculo. A
insolência e o frio sarcasmo fazem inevitavelmente parte dos atributos do diabo moderno
e “imanente”, bem como o cosmopolitismo, a destreza com a linguagem, a cultura, o
conhecimento jurídico (os contratos precisam ser feitos por escrito).
214
Doutor Fausto, escrito por um dos maiores romancistas do século XX, Thomas Mann, vencedor
do Nobel de Literatura em 1929.
A ideia de que estamos cobertos por seguros, e por isso mesmo, seguros (agindo
por antecipação). O liberalismo, de um ponto de vista filosófico, é a tentativa da
emancipação do acidental, e que é o novo espírito de empresa senão uma prática que
visa corrigir a sorte? Toda localidade da superfície terrestre passa a ser um endereço do
capital. Uma situação inevitável para todos. Um tráfego em todas as direções. O
empresário, figura central da era moderna, sabe agora positivar sua dívida fazendo dela
algo estimulante como quem encarna um “espírito de aventura”, de risco e de destinos
não completamente calculados de retorno. Como um barco que se aventura pelos mares
os capitães iniciam um movimento característico da revolução espacial visto na idade
moderna. Sistema de crédito, seguros e confiança seriam a base da sociedade moderna,
e a base de uma sociedade saturada de técnica. A situação dos Estados Unidos é uma
situação de tamanha dívida que só a quebra total, a bancarrota pode salvar a nação. Com
esse cenário, a expressão “catástrofe de aviso” fez discípulos com o vocabulário dos
“homens alternativos”. É uma expressão que resume a esperança de que as catástrofes
possam penetrar como sondas em consciências de uma maneira incorrigível e suscitar
nelas novos discernimentos. Uma certa “pedagogia da catástrofe” é quando é preciso
que ocorra, de fato, o pior, para que se possa iniciar uma mudança de hábitos. A didática
da catástrofe precisa ser suficientemente má para que se alcance níveis de
215
(post), como algo característico do póstumo. O termo Nachruf significa necrológio, elogio
ou notícia fúnebre. É composta com o nach, que significa “depois”, o equivalente ao post
do latim. O princípio da cultura de escada rolante como necrológio, o qual no meio do
movimento permanente e da falta de clareza, recorda a última fato seguro, o de que o
passado não é presente. Quando ninguém pode saber o que será do amanhã, o fato de
ao menos o passado já ter passado aparece como significativo. Em seu recente livro Pós-
Deus de 2019 (será lançado em breve pela Editora Vozes), Sloterdijk descreve a
globalização, dos seus primórdios até seu (preliminar) desenvolvimento no fim do século
XX. Toma e caracteriza Deus como “simplesmente a maior fonte de cobertura de seguro”.
Essa suposição, válida para todas as religiões (pelo menos as monoteístas), libera
paradoxos que tiveram consequências devastadoras desde a Idade Média até os tempos
modernos: o fundamentalismo triunfante desde a virada do século é o seu pior efeito. No
entanto, quais são os desenvolvimentos associados à frase virulenta “Deus está morto”,
que reverbera desde, no mínimo, o final do século XIX? Aqui, as áreas da teologia e da
filosofia contemporâneas entram em jogo, bem como a política assassina do presente e
os desenvolvimentos culturais e técnico-científicos imediatos.
Isso possui uma força significativa muito grande em respeito à Revolução dos
Bastardos. O dinheiro também é uma força de mistura que se tornou operativa no mundo
por excelência. Devemos nos orientar pelas relações sociais que constroem a nossa
subjetividade dentro do capitalismo. Qual é o meio, o ar que respiramos no capitalismo?
O capitalismo é simplesmente uma produção de capital. Produção e reprodução de
capital. Mas o capital tem uma forma que é a forma dinheiro, valor incorporado em
dinheiro, o que faz com que as mercadorias sejam equivalentes umas às outras no
mercado. Mas o dinheiro é também gerado pelo valor das mercadorias, no capitalismo
financeiro ele é gerado por ele próprio. O dinheiro estava acoplado ao ouro, depois ao
papel moeda. Mas houve um homem chamado Nixon falou que os Estados Unidos não
mais farão dinheiro com lastro no ouro. O dinheiro agora é o dólar. O dólar é o ouro, ele
é o padrão. Os homens começaram a depender do número que se puser na Casa da
Moeda na produção americana. Com os avanços tecnológicos, especialmente os
computadores, a própria moeda física seria destruída para fazer com que o dinheiro seja
a coisa mais abstrata possível. Um número na conta de todos os trabalhadores que fez
um serviço para o Estado. Todos chegaram naquele estado de abstração máxima da vida.
217
O mundo teve que se organizar não mais como câmbio fixo, mas como câmbio
flutuante. Dinheiro passou a ser algo que se troca, um dinheiro pelo outro a partir da
demanda como uma mercadoria qualquer. A economia do mundo passou a ser mais
dependendo da economia americana do que até então vinha sendo. Todos os bancos que
estavam servindo de credores para o Estado de bem-estar social passaram a ser credores
em dólar e seguindo taxas de câmbio e de juros de maneira flutuantes. Em geral, aquelas
que o mercado financeiro impôs aos Estados, coisas que variam desde lobby, influência
política, controle político nas democracias com eleições. No mundo globalizado, os
Estados nacionais perderam força, o dólar é a força que puxa o mundo. O mundo dos
negócios mudou a classe operária. O capitalismo foi transferido para a ideia de ganho do
dinheiro como dinheiro, crédito, juros, bolsa, especulação, deixando de ser um
capitalismo da produção. A empresa substitui a fábrica, as máquinas, os robôs, a
tecnologia substitui o operário, no fim, o produto imaterial como softwares, patentes,
ciência, conhecimento, vira algo imaterial no lugar do produto material. Todas as
empresas querem isso, o mundo quer isso e o mercado pede isso. O dinheiro se reproduz
por si mesmo em velocidade de maneira informatizada. A fábrica, o operário ficou em
segundo plano. A luta de classe virou uma luta social do mundo todo. Todo mundo virou
de algum modo trabalhador como não operário. Todo mundo passou a ter uma ação
218
política que é a biopolítica porque todo mundo está envolvido com o seu corpo em algum
nível de exploração – autoexploração, pois a ideologia da empresa que substitui a fábrica,
então, todo mundo passou a ser por si próprio o empresário de si mesmo. Há uma
distribuição do mundo da terceirização do serviço onde você vende o seu serviço e o seu
conhecimento. É este mundo que o Deleuze chama de o fim do mundo que o Foucault
estudou. Foucault estudou as disciplinas, onde a fábrica é o modelo para escola, o modelo
para a prisão ou a prisão o modelo para a fábrica, os hospitais. Um homem que é
disciplinado com o seu corpo disciplinada para o trabalho para a produção material. De
repente você não tem mais isso. Temos uma sociedade do controle como Deleuze diz em
1990 na sua obra Conversações. Uma sociedade do controle fluida, ligada a uma
produção imaterial, todos trabalham com a biopolítica na sua vida na venda de um
serviço e ela tem os Estados imitando a nova empresa, trabalhando como se você
empresa e não como fábrica, ou seja, trabalhando com a ideia de controle versus a antiga
sociedade fabril. O mesmo é reforçado por Michael Hardt e Antonio Negri no Assembly.
Dizem que o que o Deleuze está falando é a época do biopoder e da biopolítica. A
transição de uma época para uma fase da Modernidade em que toda a vida é subsumida
ao capital. Não é somente o trabalho que é subsumida ao capital. O capital financeiro
gerencia toda nossa vida diferente do capital industrial que gerenciava a vida do
trabalhador na fábrica. O capital financeiro gerencia através das finanças todo nosso
modo de vida. Ele traz o modo de vida social para o modo empresarial. Não há mais a
fábrica e nem mais o horário de trabalho. Só há o tempo livre, as pessoas vivendo que
estão produzindo de maneira imaterial através das suas inteligências, da tecnologia, das
ciências, informática, todo um trabalho imaterial que não possui mais local, mas que
também não tem mais horário, ele é toda a nossa vida, inclusive no descanso ou na folga.
Mesmo nessas situações estamos produzindo dentro das condições do capitalismo
financeiro, pois estamos ligados à alguma atividade empresarial, esta atividade
empresarial que por sua vez, está ligada à compra e venda de ações, do crédito, dá a
regra, edita e edifica a forma de todos nós vivermos. O dinheiro institucionaliza uma
relação social. A qualquer hora estamos com o smartphone na mão, por isso imaginamos
estar longe daquilo que chamamos de trabalho, mas o nosso expediente não terminou,
nós estamos nos divertindo e trabalhando ao mesmo tempo sem saber. A captura do
valor hoje atua em forma de se expandir a tempo de envolver todo o tempo da vida,
219
precisamos de saúde, de educação, cuidado com a mulher que vem por vias de serviços
públicos via impostos, mas que sustenta uma grande empresa que investe aqui, mas que
também investe em ações no capitalismo financeiro. Isso coloca a todos em uma situação
de insônia em que se vai a fábrica entra o neoliberalismo com a sedução do indivíduo que
não tem mais tempo livre e de folga. Não devem nada para os sindicatos. A empresa
trabalha o tempo todo. Um aspecto que muitas vezes se confunde com o jogo, uma
mistura de empresa-entretenimento. Vemos em alguns locais do mundo com empresas
que fornecem atividades de musculação, ginástica, leituras diárias de jornais, trabalho
em equipe, grupos de pesquisa, almoço com funcionários, Happy Hour, alimentação de
comidas boas, creches, seguridades, assistencialismo, etc. Toda uma preocupação com a
vida, a saúde e com a situação de velhice, de aposentadorias e longevidade. Os que se
divertem, mas estão trabalhando.
Se com a mercadoria tínhamos o fetiche (o corpóreo – matéria de uso e o
incorpóreo – trabalho humano embutido), mas o dinheiro tem só o tempo de trabalho
embutido no nada de matéria, apenas no número que nos é chegado à mão por numeral.
Ser vivo é ser incorpóreo. Se abandona o corpo e nos dizemos incorpóreos também,
muito antes do dinheiro porque somos um “eu interior”, almas. Trabalhamos com o
corpo que não sendo incorpóreos, sejam também imitações do incorpóreo. Eles
trabalham em um local de volatilidade. Cortamos, operamos, modificamos, colocamos
etiquetas neles. Tão voláteis como mercadorias e, talvez um dia, dinheiro. A forma de
realização do homem é a abstração. Já que o padrão abstração ser-dinheiro virtual
percorre todo o fluxo do globo. Nós somos iguais a este número que dá o padrão de vida.
Se o dinheiro pode escorrer para qualquer lugar imediatamente com apenas uma senha
de cartão, nós também podemos viajar e fazer, por exemplo, turismo somente apertando
números da senha do cartão e o número do quanto isso vai me custar. Nós nos
teletransportamos. Somos voláteis. Nós temos certeza que não somos números, mas pela
abstração dinheiro passamos a ser tão voláteis quanto ele. Não tem nada dentro a não
ser um número. Por que o meu eu enquanto registro é um número? O RG? DNA? Avatar?
Polegar? É aí que temos que dizer que “tenho algo dentro de mim, sou um eu interior.
Não sou só um número”, mas todos os dias ao usar o corpo como identidade nós
negamos esta possibilidade de ir para a abstração e ter que voltar para o corpo, então é
221
por isso que temos que mexer no corpo de modo a ajustá-lo na forma de uma massinha
tão abstrato quanto à possibilidade de não ter massa nenhuma que é o dinheiro.
Hoje a M.M.T vem ganhando espaço. A chamada Teoria Moderna do Dinheiro.
Se trata de uma economia em que não se pode comparar uma casa com o Estado. Os
liberais sempre explicam economia tentando comparar a casa com o Estado. Para eles, a
forma de entender economia é com base nisso. Não se pode gastar mais do que ganha.
Dizem eles: “está é a regra fundamental da economia”. Da casa e do país. A teoria do
dinheiro fala o contrário, os países não têm nada a ver com as casas porque casas não
imprimem dinheiro, os países é que imprimem a moeda, eles fazem a moeda. A moeda
desde os anos 70, especialmente nos Estados Unidos, não está mais vinculada ao padrão
ouro. Ela flutua na confiança que as pessoas têm no governo. Esta ideia tem um rastro
nos EUA do New Deal, da política do Roosevelt que tirou o país da recessão. Fez de 1920
até 1970 a maior redistribuição de renda da terra. O que ele fez foi chamar os sindicatos
propondo um pacto para que o movimento dos trabalhadores seja algo coordenado com
o dos patrões, gerenciou, fez governança na luta de classe. Pegou pessoas para andarem
nos EUA, principalmente nos municípios pequenos, propôs o diálogo em câmaras
municipais. Prometeu que o governo emitiria dinheiro, porque o governo não é uma casa,
onde tem que gastar o que ganha. O dinheiro nesse período ainda era papel, não, mais o
dinheiro de hoje que chamamos de magnético. A promessa era que o dinheiro iria para a
mão das pessoas para que elas gastassem com o que elas quisessem. O acordo tinha em
mente uma prestação de contas para depois se cobrar os serviços. O importante era se
fazer algo para juntar pessoas que pudesse virar algo comercial. Os economistas do
mundo todo ficaram com os cabelos em pé muito em virtude do regime pré-inflacionário
pré-guerra que gerou a inflação inclusive na Alemanha. Todo mundo começou a gastar e
a construir, consequentemente o dinheiro foi aumentando. Vem a pergunta: para que
serve imposto? Para queimar dinheiro. O governo emite dinheiro, mas ele também via
imposto tira o dinheiro, elimina ele. Foi o que Roosevelt fez. Eliminando a inflação. Depois
realocou novamente o dinheiro para o que era coletivo, universidades, saúdes, hospitais,
creches. Soltou o dinheiro paulatinamente sem deixar que a inflação viesse. Inspiração
de um filósofo John Dewey. Uma típica política americana.
A mesma coisa é no Brasil. Então, quando o Estado deve, ele pode fabricar
moeda para pagar. Basta que a ideia de impostos (ativos e passivos), receber impostos e
222
devolver políticas públicas, esteja equilibrado, até porque a taxa de inflação é uma
questão de crença e confiabilidade. Se países como EUA e Japão põe dinheiro no mercado
(“na praça”) e acham que vai aparecer inflação, não é necessariamente verdade, estes
países fazem este movimento e não tem inflação. No campo das esquerdas, muito em
virtude da Alexandria Ocasio-Cortez e de Sanders provavelmente ser candidato em 2020,
além disso, “o pai do Real”, André Lara Resende, trouxe esse debate para cá em um texto
recente sobre a crise da macroeconomia.41
A maioria dos governos nacionais cria sua própria moeda. Isso significa que eles
podem e devem se comportar de maneira muito diferente de todas as empresas, famílias
e governos locais que usam essa moeda. Quando as nações constituem um governo, elas
concedem a esse governo o poder de emitir uma moeda soberana. Os governos precisam
de recursos e trabalhadores para servir o público. A moeda é a ferramenta que os
governos usam para obter tais recursos. Hoje, isso é feito principalmente com
computadores e contas bancárias, onde os governos fazem todos os seus pagamentos
simplesmente criando depósitos em contas bancárias. Os países desejam desenvolver e
melhorar sua qualidade de vida e a moeda é sua principal ferramenta para fazê-lo. Um
governo monetariamente soberano é capaz de pagar pelas coisas que servem as
necessidades da sociedade como um todo e que desejamos ser providos a todos, não
apenas àqueles que podem pagar por eles. O governo pode fazer investimentos em coisas
como defesa, pesquisa, saúde e educação que atendem comunidades remotas e não
geram lucros. Além disso, quando o governo investe nessas coisas, o setor privado não
precisa se endividar para financiá-las. Isso permite que a dívida do setor privado seja
reservada para as coisas que são lucrativas ou não para benefício coletivo, enquanto o
governo faz os investimentos que servem à sociedade como um todo. Os países podem
usar sua moeda nacional para melhor utilizar seus recursos disponíveis, desenvolver a
capacidade produtiva doméstica e elevar os padrões de vida de maneiras que beneficiem
a todos.
Governos fazem pagamentos com aumento de depósitos da conta bancária. Os
bancos têm contas especiais com o Banco Central, um outro nome para isso é “Fazenda
41
RESENDE, André Lara. A Crise da Macroeconomia, 2019. Disponível em:
<http://www.pps.org.br/2019/03/11/andre-lara-resende-a-crise-da-macroeconomia/>. Acesso: 14 Abr.
2019.
223
preços, incluindo tarifas de serviços públicos que são reguladas pelo governo, que ainda
permanecem. Em meio à crise cambial do ano passado, Macri buscou ajuda do Fundo
Monetário Internacional (FMI), com o qual acertou uma linha de crédito de US$ 56
bilhões. Troca fixa: os governos que prometem trocar sua moeda por outra moeda (ou
por uma commodity como o ouro) a uma taxa fixa podem enfrentar problemas
semelhantes. Eles devem manter grandes reservas de moedas estrangeiras, como o dólar
americano, para manter sua promessa de conversão, e muitos foram obrigados a ficar
inadimplentes ao longo do tempo. Alguns países conseguem sobreviver por algum tempo
com essas limitações, especialmente aquelas que têm grandes exportações, mas isso
raramente dura para sempre.
seu banco pelo valor dos impostos. Seu banco, é claro, debitará sua conta bancária. O
efeito líquido de pagar seus impostos é a remoção da moeda do governo criada
anteriormente, na forma de uma redução no saldo de reserva de seu banco. Os bancos
atuam como agentes na adição e remoção da moeda do governo dentro e fora da
economia. Os pagamentos do governo criam saldos bancários: impostos reduzem saldos
bancários. Pagamentos do governo fornecem renda aos beneficiários: impostos reduzem
o poder de compra. Os pagamentos do governo são o que criam nossa oferta monetária
básica: a tributação reduz nossa oferta de dinheiro. A inflação não é, como
frequentemente se teme, um resultado automático do déficit do governo, e muitas vezes
está localizada em áreas específicas da economia. É melhor olhar primeiro para as causas
da inflação antes de fazer comentários gerais sobre a influência dos gastos do governo.
Se perguntarmos para nós mesmos se podemos construir um sistema ferroviário nacional
de alta velocidade? A resposta não é se temos dinheiro suficiente, mas se temos
engenheiros, trabalhadores da construção, matérias-primas e conhecimentos suficientes
sobre a tecnologia para projetar e construir tais sistemas. Temos a vontade política e o
apoio do público para isso? Estamos dispostos a usar o imóvel necessário para esse fim?
Se a resposta for sim, o Congresso pode aprovar o financiamento. O Congresso nunca
precisa “encontrar dinheiro”, já que controla a moeda. Países que carecem de todos
esses recursos terão que importar tudo, mas talvez trabalhem para construir um sistema
ferroviário de alta velocidade. Alguns podem ter relações comerciais suficientes para
poderem importar os trens e consultores. Outros podem precisar usar sua capacidade de
exportação para necessidades mais urgentes, caso em que ainda não podem pagar pelo
sistema ferroviário.
Uma regra do “teto da dívida” não faz sentido (poucos países até tentam isso),
uma vez que tenta impor um limite após o fato sobre decisões que o governo já fez com
relação a investimentos públicos e políticas tributárias. O tamanho de um déficit do
governo é resultado de fatores fora de seu controle, como um colapso repentino do
mercado e uma recessão ou uma expansão nos negócios. O déficit em si não é o que
devemos focar quando projetamos orçamentos públicos, mas sim o que queremos-
precisamos que nosso governo pague, e como fazê-lo de uma maneira que deixe a
economia em um equilíbrio saudável. Um teto de dívida é largamente usado como um
estratagema político e não serve a nenhum propósito útil em uma democracia funcional.
226
O governo cria uma nova moeda à medida que faz pagamentos por crédito em contas
bancárias, mas os bancos também criam novos depósitos bancários cada vez que
concedem crédito bancário a um cliente. Nas economias modernas, quase todo dinheiro
é criado pelo sistema bancário na forma de depósitos bancários. Os bancos
desempenham um papel importante na economia, tanto na ampliação do crédito
bancário quanto como agente dos fluxos de moeda do governo dentro e fora da
economia. Cada vez que uma empresa obtém um empréstimo para um novo
equipamento, ou uma família assina uma hipoteca para uma casa, o banco usa um
computador para aumentar o saldo do depósito na conta do cliente. Em outras palavras,
os bancos aceitam nossas promessas de pagamento e emitem seus próprios depósitos
bancários. Eles não "emprestam" o dinheiro de outras pessoas para "mutuários". Da
mesma forma, quando usamos um cartão de crédito para comprar mercadorias de uma
loja, a conta bancária da loja é creditada com o valor da compra. Mas as empresas de
cartão de crédito não "têm" dinheiro para "emprestar". Eles simplesmente aceitam nossa
promessa de pagar o saldo a cada mês e eles emitem seus próprios depósitos bancários
para a loja na forma de depósitos bancários (promessa não é dívida?). Cada pagamento
cria um novo depósito – novo dinheiro na economia. Reembolsar seu cartão de crédito
remove os depósitos bancários do sistema bancário, resgatando (ou extinguindo) o
depósito bancário. Podemos simplificar isso dizendo que os bancos “criam dinheiro”
quando expandem o crédito bancário e “excluem dinheiro” quando esse crédito bancário
é pago - o que pode ocorrer ao longo de muitos anos. Muitos de nós aprendemos que os
bancos coletam dinheiro dos poupadores e depois emprestam esse dinheiro para os
tomadores, mas na verdade não é assim que os bancos funcionam. Em vez disso, os
bancos têm uma licença do governo para criar depósitos em dólares sempre que aceitam
um "mutuário" digno de crédito.
Assim, o governo faz pagamentos criando novos depósitos bancários e os bancos
também criam depósitos cada vez que concedem crédito. Todo o dinheiro em nossa
economia vem do crédito bancário (a dívida de alguém) ou é facilitado pelos pagamentos
do governo. Há uma grande distinção que vale a pena notar nesta fase. Por exemplo, para
cada novo dólar de crédito bancário, o ônus da dívida do setor privado cresceu, talvez a
hipoteca da sua casa ou o financiamento de novos equipamentos da sua empresa. No
entanto, quando o governo gasta sua moeda na economia, nenhuma casa ou empresa
227
ficou mais endividada. Em vez disso, o destinatário recebeu um saldo bancário maior livre
de qualquer obrigação de compensação para pagar. Essa é uma distinção vital a ser
entendida: quando o governo paga por algum serviço público ou infraestrutura, o setor
privado não precisa se endividar para pagar por isso. E lembre-se de que o governo não
precisa tributar mais toda vez que iniciar novos investimentos, mas apenas se a economia
exigir algum ajuste fiscal para administrar a inflação ou outras preocupações públicas. O
sistema bancário é essencial para o funcionamento do nosso moderno sistema monetário
e há muito a dizer sobre como ele pode ser melhorado para melhor servir o público. Esse
tópico está além do escopo deste projeto atual, mas você pode procurar os trabalhos de
economistas do M.M.T como Bill Mitchell, Stephanie Kelton, Warren Mosler, Randall
Wray e Eric Tymoigne sobre o assunto, caso esteja interessado.
Os depósitos bancários têm ampla aceitação, em parte porque nosso governo
assegura depósitos bancários e apoia um sistema simplificado de compensação de
transações interbancárias. Os bancos têm um relacionamento especial com o governo
que pode ser visto como uma espécie de franquia público-privada da moeda do governo.
Essa perspectiva fornece informações sobre como e por que os serviços bancários devem
ser regulamentados para atender à necessidade pública de crédito e de um sistema de
pagamentos. Alguns países usam até mesmo um sistema bancário público, como o Banco
Postal, para fornecer esses serviços a todas as comunidades locais. Nós vamos daqui para
frente ter uma divisão, de um lado lutas identitárias, de outro, a política parlamentar para
questões de ganhos e perdas salariais, investimentos, dívida, índices econômicos de
melhoria de vida. A promessa dos atuais liberais e neoconservadores do Brasil fica cada
dia menos possível. Tanto em nível de Previdência Social como em nível de economia
interna e externa. Isso porque este tipo de economia capitaneado por eles não vem
funcionando (o neoliberalismo). Esse é o rumo que Laura Carvalho toma em seu livro
Valsa Brasileira: Do Boom ao Caos Econômico de 2018. Um livro que traz uma visão onde
a forte desindustrialização do Brasil nos anos 80 e 80. Entre 2006 e 2017, a economia
brasileira viveu numa montanha russa. Do segundo mandato de Lula ao impeachment de
Dilma Rousseff, o país passou por alguns dos anos de maior prosperidade de sua história,
mas também viveu uma crise. Uma crise em que somente os bancos ganham recordes.
Talvez a questão nossa seja de ousar, de dizer sim que o Estado pode dever, mas
desde que ele saiba quais investimentos fazer e como ele deve tomar conta da inflação.
228
A situação que o Brasil vive é de uma não política principalmente porque se acredita que
a Reforma da Previdência e a flexibilização das leis trabalhistas feita em 2018 vai criar
empregos, vai aumentar a economia e a produtividade. Ao definir as categorias políticas
que definem a vida contemporânea Lazzarato (2017, p. 1):
Prefiro falar de política da dívida, por ser um termo mais exato no que se refere
à nossa sociedade. A dívida, isto é, a moeda como capital financeiro, é uma
abstração de ordem superior àquela do trabalho, da representação
democrática e do poder político que se constituíram dentro do Estado-Nação.
Enquanto na fase expansiva da “valorização” a governamentalidade insufla
liberdades aos governados, no momento em que a crise impõe a necessidade
de encontrar novas fontes de lucro, o capital entra numa fase de
“desvalorização”, isto é, de destruição do capital constante e do capital
variável (a população). A única democracia que os liberais conceberam foi a
censitária, a democracia dos proprietários. A democracia “para todos” nunca
foi um objetivo do capitalismo nem dos liberais. Ela foi imposta, começando
pelo sufrágio universal, pelas lutas do movimento operário, no século XIX. O
declínio deste, sob os assaltos da finança, provoca uma queda vertiginosa da
“democratização”. A dívida é uma máquina de guerra composta por
automatismos financeiros, normas sociais e uma estratégia política.
Precisaríamos pensar as relações entre máquinas técnicas, máquinas de
guerra e estratégia.
229
Rex imago Dei; Deus Imago regis: Soberanos romanos e seus deuses acompanhantes
em duplo perfil; no alto, Póstumo e Hércules; no centro Probo e Sol invicto; embaixo,
Constantino e Sol invicto.
230
situação de isolamento tão acentuada que o famoso: “o inferno são os outros” de Sartre
não tem mais sentido. A tentativa de se retirar os infernos das pessoas, o alter-ego, o
outro, é talvez, o grande pecado de hoje. No regime neoliberal da auto-exploração cada
um dirige uma agressão contra si mesmo. Um sujeito que é ao mesmo tempo vítima e
carrasco. Um sujeito que se ilumina em transparência e vigia a si mesmo, está isolado
como um preso e guardião. Foucault desenvolve uma ética histórica do eu separada em
grande medida das técnicas de poder e de dominação. Ele mesmo faz referência ao
trânsito das tecnologias de poder para as tecnologias do eu. “Talvez eu tenha insistido
muito no tema da tecnologia de dominação e o poder. Cada vez estou mais interessado
na interação entre eu mesmo e os demais, assim como nas tecnologias de dominação
individual, a história do modo em que um indivíduo atua sobre si mesmo, ou seja, na
tecnologia do eu” (FOUCAULT, 1990, p. 61). A técnica de poder do regime neoliberal
consiste na realidade algo não visto pela análise de Foucault sobre o poder. Ele não
percebe que o regime neoliberal de dominação acabara totalmente com a tecnologia do
eu, sendo que a permanente optimização de si mesmo, o famoso “seja a melhor versão
de você mesmo”, “não pare de evoluir”, “seja positivo”, “se expanda”, não é outra coisa
que uma forma de exploração e dominação. O sujeito do rendimento neoliberal, esse
“empresário de si mesmo”, como ele mesmo fala na obra O Nascimento da Biopolítica
(2007) se explora de forma voluntária e apaixonada. O endividamento é a forma de
realização do indivíduo. Se cria uma subjetividade de culpa crescente. Onde a
oportunidade chega em forma de mais crédito e de mais débito, como contratos e
negócios. Mais crédito significa mais realizações, mais empréstimos significa um sopro de
vida e esperança para a positivização. O sucesso passa a ser mecanismo de pagamentos.
Cria-se a mentalidade de que todos fazem tudo por si e para si, a atividade típica de
acumulação empresarial, um homem-empresa é a forma de autoexploração de hoje com
cursinhos em forma de aprendizagem, reciclagem e melhoramentos. O crédito vem como
forma de sonhos. “Realize os seus sonhos”, “aproveite os seus talentos" Byung-Chul Han
retoma e completa o pensamento de Ehrenberg, observando que o atual sistema
econômico neoliberal explora para sua própria vantagem esse clima, tanto emocional-
psicologizado como intelectual, para lucrar o máximo do indivíduo que tenta se realizar.
Todos ficam responsáveis por tudo, mas como benefício pessoal ou como culpa pessoal.
A culpa logo vira dívida em uma diluição da nação. Podemos ver a capitalização com esta
232
ideologia. Se diz que ninguém vai mais pagar a aposentadoria do outro porque não cabe
a ideia de solidariedade não cabe mais na sociedade e nos dias de hoje. A culpa logo vira
inveja. A força de destruição em ver o outro se ferrando. O país como nação se atomiza
desconfigurando a própria noção de sociedade enquanto corpo solidário político. Não é
difícil entender isso com Durkheim falando que a própria individualização nasce do fato
de termos a sociedade. O atentado contra si mesmo torna-se a imagem refletida no
espelho. Se com Hobbes tínhamos uma “guerra de todos contra todos”, o neoliberalismo
instaura a guerra de todos contra si próprios. O sujeito vira autor de um atentado com o
alvo em si mesmo. O Leviatã, como imagem para a ordem social e força motriz das
promessas no horizonte, foi montado ao redor da necessidade histórica de reunificar
territórios, economias e expectativas. O “corpo social” seria o corpo do soberano. O que
antes era ameaça, o “todos contra todos”, hoje se coloca como pedra angular da
experiência, uma vez que a “competitividade” de todos contra todos já se tornou lugar
comum. A positividade reaparece um como traço decisivo. A negatividade do outro, o
seu caráter ameaçador, cedeu o lugar a uma ameaça em formato de culpa imagética que
hoje é o guia dos nossos comportamentos. A ameaça da indiferença generalizada e do
fracasso. O fracasso é o grande inimigo do sujeito que estabelece rendimentos. O medo
da desorganização social, revoluções de outrora perdeu peso, já que o neoliberalismo e
o desbotamento da modernidade, em vez de desordenar os laços sociais existentes,
simplesmente os desfizeram.
O cínico docilmente odeia. Ele está mais para o desdém que para o ódio. Sua
atividade é contra os que estariam trocando o natural pelo convencional para, em
seguida, chamá-lo de natural de idolatrá-lo. As práticas sociais são convencionais. Não se
deve naturalizá-las e muito menos, após isso, acreditar que por serem então chamadas
naturais são necessariamente boas. Sua militância é contra as convenções, a sociedade,
a rotina impensada da vida. O cínico teme o discurso e, principalmente, a escrita.
Também isso são práticas sociais, convenções, que podem assim vir a ganhar a fama de
naturais ilegitimamente. Desse modo o cínico, não raro, filosofa com o corpo e com o
comportamento corporal. Suas peripécias na cidade afrontam todos e com isso ele pode
colocar o dedo no nariz de cada um. Nada que é feito pelos homens não é possível de ser
enfrentado, desrespeitado e feito diferente. Nenhum lugar é sagrado. Nenhuma prática
233
O “eu” como uma obra de arte possui uma aparência charmosa, enganosa e
sedutora que o regime neoliberal mantém para poder explorá-los totalmente. Esta
técnica de poder do regime neoliberal adota uma forma sutil. Ele não se apodera
diretamente do indivíduo. Pelo contrário, se ocupa de que o próprio indivíduo se volte
contra si mesmo. Que ele atue de tal modo que reproduza por si mesmo uma treliça de
dominação que é interpretada como liberdade. A própria otimização e submissão, a
liberdade e a exploração coincidem plenamente. Em Foucault se vê um vazio totalmente
uma técnica de poder que gera a convergência entre liberdade e exploração, o que na
verdade se configura como autoexploração. Se do lado de cá isto está posto, do lado dos
capitalistas veremos o sistema creditício com bancos e mercado financeiro. O Estado
“enxuga-se”. Como muito se diz aqui hoje no Brasil, o Estado “enxuga” o dinheiro dos
bancos para eles não terem prejuízos, por isso, assumem uma dívida que ele não pode
mexer, mas apenas atua como sistema de amortização para que não haja a geração de
inflação segundo a perspectiva dos bancos. Querendo ou não é uma forma de satisfazer
o capitalismo atual e financeiro. A regulação disso tudo foi perdida. Nós tínhamos o artigo
192 da Constituição Federal, que regulava inclusive, o limite da taxa de juros que não
deveria passar de 12% mais inflação. Houve um descontrole e um desmonte das bases
legais que era o Título VII: “Da Ordem Econômica e Financeira”, Capítulo IV “Do Sistema
Financeiro Nacional”, artigo 192. Ao vermos o que aconteceu, está escrito no texto legal,
que todos essas diretrizes foram revogadas. Não devemos esquecer que em 2012 para
2013, a então presidente da República Dilma, tentou baixar os juros, tanto a taxa SELIC
que decresceu para 7.25 como os juros por influência do Banco do Brasil e Caixa
Econômica Federal. Com Lula não foi diferente. Na Carta ao Povo Brasileiro de 2002, Lula
ficaria nas mãos dos bancos em um típico neoliberalismo (o que nas nossas contas já
beirariam os 25 ou 30 anos no Brasil, tanto em governos de esquerda como direita
somados). Lula foi bem especialmente em seu segundo mandato pelos chamados
commodities. Vendeu-se muito. A segunda parte foi feita com redistribuição de renda, no
chamado Bolsa Família. Depois desse período as coisas foram se deteriorando com o
neoliberalismo e capitalismo financeiro. As coisas acabaram não indo bem pela política
neoliberal, quando se quis fazer uma busca de empresários para que se investisse, o que
existiu foi uma desoneração deles pagarem impostos. O resultado foi que depois que
deixaram de pagar impostos, o país em crise, deixou de arrecadar mais ainda com o Fisco.
235
O capital cinético faz explodir velhos mundos, não porque tenha algo contra
eles, mas apenas porque é seu princípio não se deixar deter. Não pode fazer
outra coisa senão pôr as circunstâncias a dançar ao som de melodias
aceleradas. Põe rios de mercadorias a correr, frotas a cruzar, escadas rolantes
a deslizar, atmosferas a mudar, faunas a desaparecer. Já lá vão os tempos
ingênuos, em que era dado aos homens pensar que se tinham de mover para
que o mundo andasse para a frente. Entretanto, o movimento, o movimento
puro, passou a andar à solta. Enquanto os amáveis defensores dos avanços
alcançados nos tempos modernos se debruçam sobre teorias do
comportamento humano e discutem acerca de normas da fundamentação
(última) da ação (com certeza que em breve serão promovidos a diretores dos
Parques Nacionais da Modernidade, que hão-de ser criados dentro em pouco),
espalha-se pelo resto do mundo uma maldosa suspeita: talvez a cinética seja
o destino?
de Deus? Por que afirmar a fé, ou seja, a confiança em Deus, exatamente no dinheiro?
Por que a cada transação econômica aceitar junto a ideia de que se tem fé em Deus? Por
que quando as coisas vão bem, falamos “graças a Deus”? Não vemos a fortuna como uma
mulher? Não contamos com a sorte como uma loteria que nos premia aleatoriamente?
Não vemos em carros os dizeres “foi Deus quem me deu”? Por que Deus no dinheiro?
Por que nos empreendimentos pedimos ajuda a Deus? Comprar, vender, trocar, estocar
deixa de ser apêndice de algo chamado economia para se tornar expressão propriamente
humana. Não à toa nasce na modernidade uma antropologia centrada no trabalho (Marx)
e no empreendimento (Weber), Comte e Durkheim (Positivismo-Progresso) ambas as
atividades que aprendemos a naturalizar como aquilo que nos faz viver, ou seja, “ter
dinheiro”. Na pós-modernidade ou na contemporaneidade há o fim justamente das
metanarrativas com base em alguma ética de trabalho para termos o mercado e o
dinheiro como universais. Ter Deus, ter o elemento universal, pertencer a uma só família,
a humanidade, é tudo o que recebemos do dinheiro. Se o mercado capitalista
desaparecesse hoje e, com ele, a forma como o dinheiro está posto, não saberíamos
quem somos. Teríamos de buscar uma nova unidade, e certamente entraríamos por algo
com legitimidade pouco garantida. Lugares que tentaram abolir o mercado sentiram isso,
e criaram letargia, nacionalismo barato, culto a pseudo-deuses, burocracia emperrada e
desespero. Sabemos muito bem qual foi o fim do sistema soviético. Do mesmo modo que
há pouco tempo ninguém conseguia emplacar como humano se não era filho de Deus,
agora ninguém é gente se não receber a benção do dinheiro – e isso deve ser avisado
nele próprio, no papel moeda, lembrando todos nós que onde chega o dólar, chega o
novo pai que garante a todos que portam o dólar se dizerem irmãos. Se um dia as
transações forem de fato todas virtuais, sem nenhum papel moeda, já teremos absorvido
a ideia de que “Em Deus nós confiamos” como uma mensagem do dinheiro, não de Deus.
Com o arauto do capitalismo, o capitalismo financeiro, o capital se reproduz por
ele mesmo. No livro III do O Capital, Marx trata sobre o capitalismo financeiro que
naquela época era um setor do capitalismo não mais o mundo no interior do capital, o
capitalismo global como hoje. O Brasil, em especial os últimos governos abriram espaço
para o capital sendo ele um elemento corporativo. Bolsonaro não enfrenta nada e vai
cedendo a grupos e corporações, se constituindo em um mínimo eu, em um eu da
autoconservação, esguio, recolhimento, distanciamento, diminuto, que não aparece.
241
Walter Benjamin cunhou uma fórmula para explorar esse fascínio por aquilo que escapa
do humano e que, ao mesmo tempo, faz o humano “sex appeal do inorgânico”. A fórmula
de Benjamin abarca uma constelação de temas, do crânio descarnado como alegoria
barroca até o fetichismo da mercadoria tal como Marx define em sua obra O Capital. Em
comum, essa mescla de fascínio e repulsa pelo inanimado. Benjamin dá como exemplo a
moeda. O sex appeal do inorgânico não está apenas na visão do corpo humano como
manequim ou androide, está também no dinheiro. Alguma força deve novamente
aparecer e se dizer “representante dos brasileiros”, os brasileiros não estão só felizes em
representar o capital, só acumulando, é preciso gastar. É preciso reativar o dispêndio para
o gasto. Se os bancos possuem excedentes de dinheiro que o governo “compra” com
títulos da dívida, não poderiam eles gastar ou doar para não se ter, como uns dizem,
“risco de inflação”? As chamadas “operações compromissadas” não são feitas por sobras
de caixas em bancos? Por que eles não fazem dádivas, doam para o museu de Notre
Dame se reconstituir, usem o mais guardado para causas ambientais, construção de
hospitais, combate à fome? É aí que entra o M.M.T. A devolução da compreensão de que
podemos gastar sim, de que não temos medo de dívidas, de que não haverá inflação, de
que a confiança pode reconciliar uma sociedade. A felicidade de todos agora depende da
Bolsa. Ué, mas vocês são investidores? Se não são, porque a comemoração? Entra aí, o
capital financeiro. Se estamos jogando futebol, quem faz a história do jogo? Nós. Acabou
o jogo eles ganharam. Eles quem? Nós só olhamos o jogo e não o campo. O palco do jogo
é feito por quem? São relações sociais que se criaram transferindo o crédito da produção
para a especulação da bolsa. Aquela moedinha primeira que gera dinheiro por ela mesma
e faz a máquina funcionar.
Os gregos antigos nos ensinaram a narrativa da tragédia. Nela, nunca se disse
que não eram os homens os autores da própria história. Os homens eram de fato postos
como fazendo a sua história, mas, por mais que quisessem fugir do destino traçado pelos
deuses, pegando vários caminhos diferentes e mudando de percurso, sempre
terminavam por realizar o traçado desenhado pelas divindades. Até hoje esse tipo de
narrativa faz sucesso. A consciência popular diz: “ninguém foge de seu destino”, “Deus é
destino”. Os historiadores modernos, entusiasmados pela ideia de aventura, típica do
mundo do Renascimento, deram crédito para os indivíduos intrépidos. A tragédia se
separou da escrita da história definitivamente. Ela passou a contar para o teatro e tão
242
ser um indivíduo foi tomado como um erro, uma vez que todo e qualquer indivíduo nada
seria senão cultivador e fruto do individualismo. O que a direita queria era jogar fora era
a autonomia. Como nunca foi muito sofisticada nos seus atos, a direita chacoalhou o
objeto e, vendo que a autonomia parecia não se desgrudar da noção de indivíduo, jogou
fora tudo. A esquerda foi no embalo. Afinal, no campo da mentalidade popular os
partidos fascistas e os partidos comunistas começaram a ficar parecidos na sua pregação
antiliberal. Não foram poucos os militantes que oscilaram entre estar em um em um ano
e estar em outro no ano seguinte. O que importava para essas pessoas era ficar contra o
“individualismo” da democracia liberal. O liberalismo foi tomado por tais pessoas como
a doutrina do darwinismo social. Liam a doutrina da democracia liberal como que
carregando a bandeira do “cada um por si e o estado para ninguém ou só para os ricos”.
A ideia de uma subjetividade autoconstruída, performática, prática, voltada para
o si mesmo, autodesigners na atividade de se autorrefazer e autocorrigir – Uma operação
que visa desempenho, gasto de tempo, preparação, investimento. A autoconstrução é
tanto uma promessa; quanto uma aposta; quanto um não-poder-ser-um-não-ser. Não sei
o quanto nós gostaríamos de responsabilizar Sartre pela ideia de que, agora, temos de
contar a história como sendo feita a partir de nossa intervenção pessoal e voluntariosa,
uma história de reconstrução pessoal, de reinvenção (como está na moda falar). Mas
sabemos bem que é assim que temos, ao menos alguns de nós, nos empenhado em
narrativas históricas. Essas narrativas são diferentes daquelas que Marx, também no
início da modernidade, exatamente por seu respeito a Hegel, nos ensinou escrever.
Narrativas como as atuais, que fazem sucesso entre nossas esquerdas, esqueceram
completamente de Marx, e passaram a gerar histórias em que os indivíduos agem como
protagonistas exclusivos dos feitos. Mas, o que é mais grave, ao serem postos como
donos de todo destino, logo esses indivíduos se apresentam também como senhores do
bem e do mal, agindo então como mentirosos espertalhões, que sem convencimento do
que dizem, enganam uma massa de tolos, ou seja, todos nós. Esse último tipo de narrativa
no livro de Jessé de Souza chamado A Elite do Atraso (2017). É uma narrativa em que nós
todos somos vistos como tontos, bobinhos, e a Lava Jato associada à Rede Globo, como
donos do mundo e do destino, e sendo formadas por pessoas de profunda má fé, e que
nunca fizeram qualquer denúncia séria sobre a corrupção. O que fizeram foi apenas
exercer suas funções de bandidos com poderes quase mágicos de contarem mentiras,
244
com o objetivo de nos levar a entregar a Petrobrás para estrangeiros milicianos. Esse tipo
de narrativa é, a meu ver, menos útil para mim. Não vejo como uma pessoa que a vive,
que se situa nela. Inclusive, uma narrativa assim poderia estar extremamente a serviço
de uma visão generosa demais para com os políticos da coalização governista imperante
nos últimos entre 2002 e 2018. Um trecho do livro do Jessé exemplifica bem o que quero
dizer. Ele menciona que a Globo, em associação com a grande mídia a maior parte do
tempo, e a Lava Jato fizeram o contrário disso tudo (proteger o patrimônio nacional) e a
nós todos de perfeitos imbecis. A título de combater a corrupção dos tolos, turbinaram e
legitimaram a corrupção real como nunca antes neste país das multidões de
imbecilizados. Nesse tipo de narrativa, a Globo e os homens da Lava Jato surgem como
deuses malévolos, enganadores, e nós, então, tontinhos que precisamos do grande Jessé
para deixarmos de sermos os imbecis que somos, para abrir os olhos e ver como que o
único objetivo de tudo era a entrega do nosso petróleo aos americanos. “O petróleo é
nosso” proclama Jessé, como se estivesse nos anos 50, servindo de bucha de Vargas que,
na verdade, tomou tal frase para si após ter prendido o real defensor dela, Monteiro
Lobato. Para escapar desse tipo de narrativa, que repõe a história de indivíduos
poderosos e a completa com chistes sobre mocinhos e bandidos, nada melhor que
reinvocar Marx. Para este, as relações postas pelo capitalismo invertem a relação sujeito-
objeto. As relações sociais e o dinheiro, que se completam formando o capital, saem da
condição de objetos e se transformam em sujeitos. Nós viramos os objetos. Somos
coisificados, mas não nos tornamos tontos. Marx fornece a narrativa em que o capital se
põe como sujeito e, então, não traça o jogo e o vencedor, nem chama os jogadores de
bandidos de um lado e tolo de outros, mas, o que o capital faz, e o que é o importante
de ver, é que, antes do jogo, ele traça o campo do jogo e a escolha do desporto praticado.
Quem faz essa escolha é o capital. Ele é o sujeito da história. Se não atentamos para os
seus deslocamentos, se não vemos que o jogo é jogado no campo do capitalismo
financeiro, e não mais no capitalismo comercial e industrial, ficamos perdidos, e
passamos a achar que a Globo e a Lava Jato são feitas de deuses que sabem tudo e
mentem, e que nós não sabemos nada e que somos enganados pela nossa idiotia. Eu
falaria assim para Jessé: “Desculpe-me meu caro, mas eu não sou idiota, eu não preciso
de sua narrativa pseudo-reveladora para entender um pouco da realidade que vivo”. Falo
isso por poder ver que os poderes da Lava Jato e da Globo não advém da mentira, mas
245
42
Matéria: G1. Uber Estreia na Bolsa de NY, 2019. Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2019/05/10/uber-estreia-na-bolsa-em-ny.ghtml>.
Acesso em: 10 Mai. 2019.
246
teremos chance de sobreviver. Podemos sentar para conversar e podemos pôr na mesa
a nossa narrativa, levando a sério a deles, porque não estamos nos sentando com gente
que sabe de tudo e que só nos ludibria com sacanagem, ainda que saibamos que os
adversários jamais seriam canonizados pelo Papa Francisco. Quando abandonamos o
capital na sua tarefa invertida de ser sujeito, e começamos a olhar só para o jeitão de
Dalagnol e William Waack (até você Waack que no documentário do Brasil Paralelo
chamado de: 1964 - O Brasil entre Armas e Livros diz que “a esquerda é amoral”, seus
cabelos estão ficando brancos demais) acreditando no poder enganador deles sobre nós,
e achando que isso é a história, pegamos uma via que não é a da minha preferência. A
narrativa de Jessé serve para a rede Globo fazer novela, ela até nos mobiliza
emocionalmente, mas ela ajuda pouco na hora de enfrentarmos a política.
Os investidores estrangeiros não esperam reforma política nenhuma. Eles são
rentistas, cotistas, fazem aplicações, investem em fundos, são acionistas. Com ou sem
reforma eles continuam ganhando dinheiro e fazendo uma retroalimentação do crédito
nesses locais. Reforma Previdência não vai criar empregos, e como vimos, nem a
flexibilização de leis trabalhistas. O indivíduo é tudo, a comunidade nada. Estamos
falando de um homem associal. Associa-se se quiser através de um contrato. Um contrato
social. Uma ficção que nos leva a acreditar que fazer um depósito individual todo mês
criará a possibilidade de receber previdência lá na frente. O capitalismo financeiro jogou
os empresários para fora da condição de empresários. Os empresários se retiraram de
suas empresas para colocarem no lugar grande executivos, administradores, coaches
para dirigir o capitalismo, com isso, os agentes do capitalismo (inicialmente empresários),
já não se importam mais com suas empresas porque eles se transformaram em acionistas
de outras empresas, Operações Binárias, aplicações, Holdings, traders como um
comerciante. É pessoa ou entidade, em finanças, que compra e vende instrumentos
financeiros como ações, títulos, commodities, derivativos e fundos mútuos na qualidade
de agente, hedger, arbitrage ou especulador ou vivem em um sistema de jogatinas (todos
participantes de um Cassino, vemos hoje em dia entretenimento como gamers sendo
profissão).
247
Guilherme de Lorris e Jean de Meung. O Romance da Rosa. Bodleian livraria MS Douce, folha
58r.
abordagem? Não se lê O Capital, sem ter Metamorfoses de Ovídio ao lado, além disso,
não se deve ler esses dois livros sozinhos. Todos os dias não seriam um Dia das Bruxas?
Quando os Portugueses chegaram ao Brasil, eles já carregavam uma série de problemas
em relação à outras religiões que não a cristã. Eles estavam imersos em um mundo
europeu que passou mil anos assistindo o embate entre, o paganismo nórdico dos
bárbaros, e o cristianismo, nascido do paganismo grego. Então, temos uma religião que
tem um medo, uma visão dotada de folclore às outras religiões que podem mexer as
coisas sem o contato físico. Enquanto o cristianismo trabalha com metafísica, e se
prepara para uma religião racional (a montagem da Igreja), as outras religiões do Norte,
trabalham com a ideia de magia, trabalham com a ideia de que se é possível mover coisas
extra fisicamente. Esta visão é tão predominante na Europa que temos até hoje aquele
desenho chamado de Asterix. O Asterix pertence a uma tribo pequena de gauleses de
influência nórdica que domina todo o exército romano antes da constituição da França
por conta da poção mágica de um druida. Uma poção mágica que dá para homens força
para a luta. Bruxas da floresta, todas elas com poções, livros, símbolos que não tem nada
a ver com o cristianismo, mas com o resto da invasão bárbara. Se voltarmos para a palavra
de origem africana “fetiche”, veremos comércio português com a África. Missionários e
portugueses comerciantes viram que na África Central haviam rituais bem peculiares
onde se faziam estátuas com traços humanos bastante horripilantes e praticavam um
ritual em que deviam dotar essas figuras, esses fetiches incompletos com as forças da
alma. O que mais tarde daria origem aos “homens de prego do Congo”. Cada prego no
fetiche é um tipo de maldição interiorizada no corpo do fetiche. Isso foi visto também na
1ª Guerra Mundial quando as pessoas cravavam pregos em estátuas e figuras em
Hindenburg. Cada prego uma doação. Mas a ideia de martelar pregos em um general de
campo, por exemplo, alguém reverenciado de serem autorizados a fazê-lo é interessante.
Uma encarnação de uma ideia elementar de uma figura, um gesto que apela até aos que
nunca tinham realizado isso. Então, as qualidades de pessoas reverenciadas e valiosas
são canalizadas às mercadorias pela divisão de trabalho e inconscientemente são
cravadas na mercadoria e depois retornam ao homem pelo ato da compra como
mercadoria. Mas também pode ser uma bala, um tanque Tiger. Como uma forma de que
um “gesto alienante” pode ser inserido em qualquer coisa, pode ser sedimentado em
tudo e todos. Como algo que flui para o produto. Algo que alguns pensadores da
249
Antiguidade já haviam pensando com o conceito de impulso para designar este fluxo de
intenções subjetivas até e no produto. Digamos que isso seja uma visão de um
antecedente oculto da noção moderna do trabalho. Já que se parte da observação
mecânica do trabalho de que quando um objeto é atingido retém a energia cinética que
recebeu. A tendência é, portanto, quando uma bola de bilhar por exemplo, é lançada e
atinge a outra, a que foi lançada possuir energia cinética, velocidade e perder energia. E
a bola que foi tocada, se move, ganhando velocidade, energia cinética. Essa transferência
de energia tem algo de “místico” ou misterioso. O português depois trazendo o africano
para o Brasil, ele reproduz todo este mundo que está incrustado na mentalidade dele (o
português), como algo que precisa ser combatido, a magia dos demônios. O estranho é
que o português não faz a mesma coisa com os índios. Eles só fazem a chamada
catequização, isto porque, quando os índios dizem que acreditam no Sol, na Lua como
entidades demiúrgicas, para com isso, o português não vê problema. Mas quando o
africano mata o animal ou faz o chamado vodu, o espírito, a magia negra, aí se vê como
um problema. Aí surge o medo. As pessoas que mais têm preconceito com as religiões
afro e semelhantes (despachos, macumba, terreiros, animais mortos, etc.) são
justamente aqueles que temem os espíritos, são os evangélicos e uma certa parcela de
católicos. A ideia geral que as pessoas têm das religiões africanas, passa por um tipo de
contato com deuses poderosos do cotidiano, eles movem coisas pelo pensamento, pela
alma ou pelo desejo. Latour registra que houve um conflito quando do contato dos
portugueses com as primeiras sociedades acerca do sentido da palavra fetiche. Segundo
Latour, os portugueses não entendiam como um objeto feito pelas mãos dos homens
poderia conter nele um poder sobrehumano. Ironicamente Latour diz: “Pena que os
africanos não tenham devolvido o elogio. Teria sido interessante que eles perguntassem
aos traficantes portugueses se eles haviam fabricado seus amuletos da Virgem ou se estes
caíam diretamente do céu” (Latour, 2002, p. 17). Se tem no imaginário coletivo que eles
são entidades malignas capazes de causar a desgraça do outro, de penetrar na casa do
outro, de criarem um “chama” para coisas ruins, de não estarem afeitos à Deus. Talvez
daí tenha surgido um dos preconceitos que temos hoje. De associar o preto como alguém
que tem dons de Houdini. Aquele que usa de sua mão para pegar coisas sem ser visto,
aquele que possui uma “mão leve”, quem consegue transferir coisas de lugares sem ser
visto (o furto, o roubo, de uma bolsa?), ou aquele que consegue escapar de situações
250
si mesmo numa ininterrupta claridade do saber do Uno) dos cidadãos já não vigoraria o
axioma “compreender é a suprema virtude” – sophronein. O mesmo ocorreria com a
hybris. Com inspirações noturnas através de demônios privados, este desvario prepararia
a inundação do público pelos distintivos e intervenções autoritárias de uma vontade de
magia, idiota, excessiva. Ela desintegraria a coligação primordial das inteligências
humanas que deveriam se juntar para a vida comum, uma exteriorização do delírio como
forma de utilidade pública. O protocomunismo da atenção de Heráclito tomaria a cidade
onde só se pode manter como forma do mundo numa espécie de transição do velar ao
saber.
A atividade típica da filosofia como uma reflexão, não é re-fletir? Quem não
reflete, não são os espelhos, e nós mesmos ao darmos “voz aos pensamentos”, uma
atividade de se voltar, de se refletir para si mesmo? Somos duplos porque temos a
capacidade de re-flexão. Nós pensamos, mas ainda pensamos que pensamos. Nós
sabemos de uma coisa e sabemos que sabemos, além disso, perguntamos para nós
mesmos e esperamos respostas novas. Embora, devêssemos saber já a resposta já que a
pergunta á para nós mesmos. Temos um outro dentro de nós, a chamada alteridade (o
alter-ego). Este alter-ego é formado pelo fato de nós sermos duplo antes de nascermos.
Já nascemos de início como duplos (não chamamos a professora de tia? A escola não
seria uma extensão da mãe? A professora não é tia e mãe ao mesmo tempo?). É por isso
que a linguagem aparece lá pelos dois anos. Ela não aparece porque nos socializamos,
mas porque nos socializamos a partir de sinestesias internas. Uma espécie de psicologia
esférica, política esférica e biologia esférica. Simbolicamente na modernidade veríamos
uma perda dessa noção antiga de duplicidade. A modernidade é a quebra com isso. A
ideia do ser se bastar por si mesmo, individual, isolado. Vemos os aventureiros solitários
(como Cristóvão Colombo). Depois o burguês solitário, o self-made man (o se fazer por si
mesmo), depois o proletário solitário (o homem que sai e perde seus instrumentos e vai
para a cidade sozinho vender sua força de trabalho), composições de um lema moderno
do liberalismo. Rastros como esse nos apresentam a psicopolítica moderna de como nós
fomos nos individualizamos. Demos um passo para que a individualização funcione como
a ideologia do isolamento (televisão, espelho e internet).
Marx em O Capital de certa forma, cria uma teoria de sistemas de aventuras.
Anselm Jappe e Guy Debord foram fortemente influenciados por Marx e pelo marxismo.
252
Não é curioso que Jappe tenha colocado o título de sua maior obra de “As Aventuras da
Mercadoria” e Debord “A Sociedade do Espetáculo”? A viagem pelo mundo da alma é
sobreposta pela viagem no mundo do dinheiro que consiste em um mundo na concepção
de metamorfoses. Assim entramos em um mundo que na concepção de James Royce
consiste inteiramente de metamorfoses. Uma história sem fim? A melhor forma de
representação da análise de Marx sobre o capital é através de uma teoria do conto de
fadas (Os Três Cabelos de Ouro do Diabo). E nos contos são as mulheres, no caso, a avó
do diabo que ajuda o menino que nasceu com sorte a conseguir os três fios de cabelo.
Essas figuras “auxiliares” podem ser vistas como artifícios, mas também como amuletos.
Marx foi o primeiro a compreender que a mercadoria nunca é o que aparenta ser, mas
sim, apresenta-se com um caráter de amuleto. Na mercadoria se ocultam muitas pessoas
nela ou atrás dela. E todas as coisas, são na verdade, pessoas encantadas. Só um
verdadeiro contador de histórias poderia penetrar completamente no mundo de Marx.
Kafka nos deu uma enigmática definição sobre a magia, ao escrever que, se chamarmos
a vida com o nome justo, ela vem, porque “esta é a essência da magia, que não cria, mas
chama”. Um utensílio que temos hoje em nossas portas é o chamado olho mágico, ele
não faz nós vermos coisas através de uma porta? Aqui o olho mágico é aquela pequena
abertura nas portas da frente para se olhar quem chega em sua casa. A campainha não é
outro utensílio para se chamar alguém. O ding-dong? Tele-comunicação? Comunicação
à distância? Não seriam as sirenes vindas das sereias com seus cantos? A palavra sereia
ou sereias em inglês é siren ou sirens. Para uma tradução para o português, as sereias
deram origem às sirenes que basicamente tem a função de tocar e despertar algo, um
alerta, um alarme ou mesmo uma canção ou barulho. O nome sereia tem sido dado às
máquinas uivantes em fábricas, sinagogas, alarmes ou em guerras quando o inimigo está
vindo ou num iminente ataque aéreo. Não se pode ver isso no filme Dunkirk (2017)?
Parece que ouvir uma sereia pode despertar um tipo de pulsão primitiva nos ouvintes,
um “alarme coercitivo” funcionando como uma desinibição do sujeito. Por essas
considerações é que Descartes no seu cogito cartesiano pressupõe um não ouvir que se
toma por um puro pensar. O não ouvir refere-se à voz do pensamento que deambula
pelo pensador. Ele fica absorto no conteúdo do pensamento sem nunca reparar no som
da voz na sua mente pensadora. Ele não percebe de que o seu eu, é um eu-penso-eu-
existo que significa, eu ouço algo em mim, falar de mim ou dos outros. O sentido do cogito
253
Daí nasce a “gesticulação” dos ajudantes, seu semblante mímico como Sloth em
Os Goonies (1983), O Corcunda de Notre Dame (1939) ou Igor em O Jovem Frankenstein
(1974). Normalmente são cômicos e desastrados, mas atrapalham do que ajudam. Mas
dizem o que não pode ser dito e colaboram com uma irresponsável ingenuidade. O Dr.
Frankenstein tenta dar vida a sua criatura pela primeira vez com raios de uma
tempestade. E diz: "Dê a minha criação, vida!" Igor imediatamente fala: "O céu virou
negócio? (céus significam negócios?)". Se falamos anteriormente de espectros e magia
negra, os demônios não são aqueles que possuem muitos nomes? Como vimos em
Hereditário filme de 2018? Um chamado pelo nome de Paimon. Lorraine no filme
Invocação do Mal 2, lembra que ela escreveu o nome do demônio (Valak) em sua Bíblia
durante a sua visão em sua casa, quando perguntou seu nome em Amityville. Ela entra
256
na casa e confronta Valak, abordando-o pelo nome e com sucesso condenando-o de volta
para o inferno. Valac é conhecido por dar respostas verdadeiras sobre tesouros
escondidos. Ele revela onde podem ser vistas serpentes e entrega-as de forma inofensiva
para o mágico. Ele é descrito como um menino pobre, com asas de anjo e montado em
um dragão de duas cabeças. Lorraine nos explica que saber o nome do demônio que os
persegue lhe dá poderes sobre ele. Não era Pazuzu em O Exorcista (1973) um demônio?
Quatro anos depois de ter sido libertada pelas forças do mal, a jovem Regan MacNeil em
O Exorcista II (1977) vive agora em Nova Iorque. Entretanto, ela volta a ouvir vozes e ter
delírios. Com a ajuda de uma psicanalista, tenta se curar, mas só mesmo com a ajuda de
um exorcista poderá afastar de vez o demônio. Desta vez, entra em cena o Padre Philip
Lamont que, a pedido da Igreja, pretende investigar a misteriosa morte do Padre Merrin,
ocorrida quatro anos antes. E assim, utilizando um dispositivo psicanalítico que permite
sincronizar duas mentes através da hipnose, é descoberto que Regan ainda está sob
possessão do demônio e que na sua mente se processa constantemente uma luta entre
o Bem e o Mal. O Padre Lamont então, com o objetivo de libertar Regan de uma vez por
todas, vai, mesmo com as objeções da Igreja, até a África, onde procura um doutor que
já havia sido possuído pelo mesmo demônio anteriormente, o qual o auxilia a
compreender o Mal que está enfrentando e assim combatê-lo.
Em Hellraiser (1987) vemos Frank Cotton comprando uma antiga relíquia em
forma de cubo, conhecida como a Configuração do Lamento. Segundo a lenda, este cubo
é capaz de abrir uma passagem para um reino de prazer sensual inimaginável. Em troca
do prazer, o cubo exige a alma do usuário. Assim que Frank resolve o quebra-cabeça e
abre o cubo, quebra-cabeça (um jogo) ele entra em uma outra dimensão povoada pelos
Cenobitas, criaturas deformadas, vestindo couro preto, que sentem prazer na dor. O
chefe dos cenobitas era conhecido como Pinhead. Seu nome significa Cabeça de Prego
em inglês, pois apresenta como característica principal, pregos fincados alinhadamente
em seu crânio. Para se inspirar e criar um visual realista para os Cenobitas, Clive Barker
(criador do projeto) afirmou ter pego referências, dentre outras coisas, na cultura punk,
no catolicismo e em visitas a clubes de sadomasoquismo em Nova York e Amsterdã. A
partir daí, a figurinista Jane Wildgoose criou as roupas baseada naquilo que o diretor
descreveu como “glamour repulsivo”. Já no caso de Pinhead, o cineasta disse ter visto um
livro contendo fotos de fetiches africanos, no qual encontrou esculturas de cabeças
257
Efusão do Espírito Santo. Igreja de San Nicolás de Kalkar. Johann von Kalkar. (Século
XVI).
e da vida nobre. Por sua vez, a Rainha compõe a figura do que mais se aproxima do sujeito
moderno. Ela é solitária e sua companhia, seu parceiro na esfera íntima, é o Espelho
Mágico. Os espelhos são um produto moderno. Eles deram a possibilidade da facialização
se acoplar a algum tipo de reflexão necessária para que um sujeito possa ser um sujeito.
Todavia, a completude desse sujeito deixa a desejar ou, melhor dizendo, se realiza
segundo uma pseudorreflexão, típica da função do espelho. O indivíduo moderno
enquanto sujeito deveria poder desinibir-se a partir de narrativas próprias, consultadas
por ele de modo a fazê-lo passar da teoria consultada, a justificação da ação, para a
própria ação. A Rainha tenta isso, mas só consegue o consultor exterior, ou seja, o célebre
Espelho Mágico. Um espelho não dá nenhuma resposta senão o que nós mesmos
balbuciamos, como cópia. Um espelho mágico faz, de fato, o trabalho do consultor de
empresas, governos e pessoas modernas: ele diz o que não sabe ou diz o que diz para
todos os concorrentes, levando-os ao imbróglio do mercado, todos com a mesma opinião
e, portanto, sem nenhuma estratégia particular para vencer o outro. O jogo de mercado
encontraria seus mesmos resultados sem ele. Todavia, o Espelho Mágico, ou seja, o
espelho fetichizado, eleito como consultor como se fosse realmente uma voz interior (a
voz da consciência), que imita então a atividade da reflexão, mas claro, não é ela
plenamente. Um espelho no qual Branca de Neve jamais se olhou não poderia dizer dela,
somente da Rainha. Mas o espelho fala para Rainha alertando-a da beleza superior,
praticamente absoluta, de Branca de Neve. Caso a Rainha estivesse agindo na condição
de um sujeito pleno, como manda o figurino iluminista, ela, com os seus poderes de
feiticeira, simplesmente se arrumaria, fazendo-se a si mesma bela, e se tornaria de novo
a mais bela. No entanto, como a reflexão aí é uma pseudorreflexão, porque o que se está
obedecendo é um espelho, ou seja, um consultor externo que sabe menos do que quem
o consulta, a Rainha fica suficientemente atordoada para seguir as piores escolhas.
Primeiro faz aquilo que não se deve fazer nunca: mandar matar. O assassinato é algo que
não se manda fazer, deve-se executá-lo com as próprias mãos. Segundo, dando errada
essa opção, então a nova tentativa de solução do caso é pior ainda: ao invés de ficar mais
bonita que Branca de Neve, com suas poções, a seguidora do Espelho Mágico se
transforma numa bruxa velha horrenda com uma maçã envenenada nas mãos. O
resultado é trágico, como para todo empresário que confia em seu consultor. A bruxa é
descoberta e morta pelos anões, que a jogam de uma ribanceira. Branca de Neve, então,
262
virgem e sem muito o que dizer de si mesma, uma vez que só sabia dar ordens aos anões
e escutar bichos, casa-se com o tal príncipe que, como sempre nessas histórias, chega
sem dizer nada e vai embora com a moça dizendo menos ainda. Claro, ele é menos
indivíduo moderno que a própria Branca de Neve. A individualidade da Rainha salta aos
olhos. Mas sua subjetividade não se completa ou, melhor, se completa como a nossa se
completa (é incompleta). Na sua completude falsa, ou na sua completude possível dentro
de sua estufa, o liberalismo, tudo que ela faz termina tosco.
Sloterdijk (2016, p. 186):
Assim começa a história do ser humano que deve e quer estar só. Os
indivíduos, no regime, individualista, tornam-se sujeitos pontuais que caíram
sob o domínio do espelho, isto é, da função refletora que se completa a si
mesma. Eles organizam cada vez mais sua vida na ilusão de que poderiam
agora, sem participação de um Outro real, desempenhar ambos os papeis no
jogo da esfera de relação bipolar, e essa ilusão se condensa no curso da história
europeia dos meios de comunicação e das mentalidades até atingir uma
situação em que os indivíduos se considerem a si mesmos, de uma vez por
todas, como o Primeiro substancial, e suas relações com os outros como o
Segundo acidental. Um espelho em cada quarto de cada indivíduo é o atestado
dessa situação na vida prática. É verdade que o jogo da autocompletação dos
indivíduos diante do espelho (e diante de outros meios egotécnicos, em
particular o livro, tanto o que se lê como o que se escreve) perderia sua atração
se não estivesse a serviço da elevada ficção da autonomia – esse sonho do
domínio sobre si mesmo que, desde o início da filosofia antiga, introduziu-se
na imagem condutora da vida sábia.
Afinal, como iria um elemento morto pensar? O fetiche não pensa, ao contrário,
atiça em nós a aderência às mágicas tolas. Sabemos bem isso quando apelamos para
fetiches no sexo. A Rainha diante do espelho faz tonteiras como nós com uma boneca
inflável, com o sapato de uma amada ou sua calcinha ou coisa mais ridícula ainda, se é
que há algo mais ridículo. O rosto que se vê diante do espelho entrou em uma relação
pseudointerfacial com um outro que não é um outro. É uma ilusão de se ver a si mesmo
em um campo fechado de visão que expulsou o Outro e os outros de seu espaço interior,
substituindo-os por meios egotécnicos da autocompletude, os meios de comunicação
tipicamente modernos em suas funções. Dessa forma, o mundo fica dividido entre um
interior e exterior, um Eu e não-eu. É só quando tais exclusões se tornem regra e a
hospedagem, a salvaguarda conscienciosa do outro, a exceção, é que pode surgir uma
sociedade estruturalmente moderna, habitada de indivíduos, que na sua maior parte da
vida e do tempo, estão imersos em uma ficção real imperante, uma fantasia de uma
263
bolha, de uma esfera íntima que contém apenas um habitante, esse próprio indivíduo.
Henri Michaux já havia dito “Tu és autocontagioso, não esqueças disso. Não deixes a teu
“Tu” a primazia”, a ilusão óptica real que sustenta relações individualistas ao garantir a
individualidade de cada um em uma bolha conectada à rede. A expressão autosimbiose
cai como uma luva. Ela se manifesta no sentido de que a estrutura diádica da esfera
primitiva possa ser re-exercitada formalmente pelos indivíduos abaixo de circunstâncias
determinadas. Quando estes disponham dos acessórios mediadores necessários para se
adaptarem completamente a situações orientadas de autocomplementação. Do ponto
de vista esferológico, isso se revela como uma virtualização da díade mediante
autoemparelhamento, autocuidado, autocomplementação, automodelação. Por isso,
que os apartamentos podem ser considerados como oficinas de autorrelações, como um
asilo para indeterminações (uni-biunidade). Uma sociedade de auto-observação e
autoajuste se faz determinante para a forma de vida em sua totalidade. Um estado
antecipado por Elias Canneti de “uma sociedade na qual todo ser humano é pintado e
reza ante sua imagem”. Seria coincidência que Le Corbusier na sua juventude fez uma
visita a Dema em Certosa di Pavia, perto de Florença, e se sentiu atraído pelas formas de
vida dos monges cristãos? Ele disse: “Eu gostaria de habitar toda minha vida o que eles
chamam de suas células”.
O mundo como tal, está configurado por processos transmitidos pelo capital, há
que se constatar que o curso atual das coisas se antecipou em Dostoiévski sobre uma
situação global de palácio de cristal. Tudo o que acontece nos tempos de hoje acontece
com o poder de compra é configurado em uma realidade de interiores (indoors)
generalizado. Onde quer que vamos os telhados de vidro estão suspensos sob nossas
cabeças. Negri e Hardt, marxistas tardios, voltaram a percorrer o palácio capitalista do
mundo sob o nome de Empire, mas se abstiveram de delinear sua fronteira exterior, para
provavelmente, invocarem uma aliança orgânica entre os opositores do exterior e os do
interior, não constitui uma estrutura tipicamente arquitetônica, não é uma entidade
semelhante à um prédio de habitação, está muito mais para uma instalação de conforto
com a qualidade de estufa, um rizoma ou uma cápsula acolchoada que foram um único
continente artificial. Talvez esta seja a razão e o motivo de Hard e Negri terem
abandonado a toupeira como animal totem do extremismo de esquerda, colocando em
seu lugar a serpente, um símbolo bem escolhido para a esquerda gnostizante, que se
264
decorado, luxuoso, grandioso, brilhante, grande o suficiente para que não nos sintamos
trancados. Walter Benjamin já disse isso na época da Restauração na França, quando
falou das galerias comerciais e das ruas comerciais de Paris. Para ele, construindo essas
passagens, o regime de Napoleão III mostrou sua verdadeira natureza tentando
transformar o mundo interior em uma espécie de fantasmagoria. Uma grande sala aberta
onde se recebe o mundo sem ser forçado a sair de sua casa. Para ele, esse era o fantasma
burguês básico. O de querer aproveitar a totalidade dos frutos do mundo sem sair de
casa. A cidade que é “a sala de visita onde a burguesia faz seus negócios”, enquanto
discute normas no Parlamento, as verdadeiras decisões são tomadas nos corredores. A
decisão é a forma política do exercício do governo capitalista, no momento em que o
poder precisa desfazer-se do direito. Uma decisão é nada mais que estabelecer quais as
partes da realidade do homem e do mundo se encontram sob a regulamentação do
direito, nada mais escapando ao poder discricionário de um soberano. Em função desse
objetivo, a globalização dos meios de comunicação de massa ajuda enormemente,
porque é possível trazer o mundo para sua casa sem ter que se mudar. Distâncias,
pessoas, coisas passam a não estar mais longe. A casa vira um mundo ao alcance das
mãos. As periferias subdesenvolvidas do mundo são usadas para passeio e praticar
caridade. Para dar uma boa consciência. Isso é o assunto de um homem pós-moderno.
Se o modernismo foi a época da construção da grande estufa de vidro. O pós-
modernismo é vida após sua inclusão total na grande estufa. Devemos que ter cuidado
para que ela não vira um efeito estufa. Não temos boas razões para crer que a grande
estufa pode acabar, porque no grande palácio de cristal há uma tecnologia baseada que
não é sustentável. Isto é, em energias fósseis. Na história da humanidade, o fossilismo
terá sido um episódio de apenas 300 anos. No ritmo o globo está girando, nós temos
energias fósseis ainda por 100 a 150 anos no máximo. De qualquer forma, nosso prazer
não é mais o mesmo. Será praticamente demolido, porque os combustíveis fósseis só são
agradáveis quando são baratos. Esse tempo pode acabar para sempre. Na crise fóssil isso
se tornará impossível. Isso nunca vai voltar. Quando tudo fica caro, não há mais conforto,
porque a democratização do luxo é impossível. Os dons da natureza terminam aí. Agora
os homens se perguntam como esses dons podem ser substituídos. A verdade é que o
homem detesta o trabalho. Os homens fingem trabalhar, mas trabalham sonhando com
um presente, com um tesouro que procuram permanentemente. O trabalho é apenas
266
uma espécie de intermédio que é aceito até o grande presente. Agora, com o fim das
energias fósseis, o trabalho retorna como um fardo insuportável. Depois disso, o leitor
poderia achar difícil entender por que muitos declaram Sloterdijk como um conservador,
ele se declara otimista sobre o futuro do homem. Temos uma boa chance de administrar
esta grande virada para uma tecnologia que seja ao mesmo tempo barata, compatível
com as demandas da democracia e, acima de tudo, acessível para os países que estão
agora na periferia. Essas pessoas aproveitarão a situação quando as novas tecnologias
solares estiverem disponíveis a preços razoáveis. Esses novos recursos permitirão uma
estrutura de civilização completamente diferente.
Sloterdijk diz (2008b, p. 213):
um grande cérebro, mas não, o capital funciona com uma cabeça vazia. Por isso, Adam
Smith ficou com a impressão da mão invisível. É que o capital funciona de uma tal maneira
que as vezes ele nos dá a impressão de que tem uma mão invisível. Adam Smith
acreditava que essa mão invisível era organizadora, mas a mão é desorganizadora. Cria o
capitalismo como um tipo de regime de anarquia. Isso não pode ser humano. É humano?
Só pode ser mágica, o monstruoso.
Smith nos fala que objetos podem ter alma, força vitalista. É como se existisse
um povo de alfinetes sobre esse povo. Uma alma comandando o que estão embaixo. Um
povo de alfinetes suprassensível de espectros fantasmagóricos e daimons, comandando
os alfinetes embaixo para que eles que não possuem mente nem alma pudessem fazer
este caminho tão correto e incessante. O caráter sensível e suprassensível do alfinete.
Nós que os criamos somos esquecidos, basta observar que ele não cita os homens. Foi
um trabalho de alfinetes, um trabalho solitário de almas e como cada alfinete fosse
sensível e suprassensível. O objeto inanimado, sem vida, parece ter vida dentro do
mercado, e ao mesmo tempo, se transforma em algo útil. É o fetiche. O alfinete está
fetichizado, possui fios invisíveis onde adquire vida de boneco que é um fantasma,
sensível e suprassensível, é de ferro, mas possui alma. Tal prosperidade surge
obrigatoriamente se os governos se conformassem em não entravarem o grande tear e
a mão invisível que o move. Smith fala, mas não explica o motivo de isto ocorrer. Ele
apenas descreve o fenômeno. Quem explica é Karl Marx. Se notarmos bem O Drácula de
Bran Stoker (irlandês), é de 1897. Quase 100 anos depois da fala de Smith. O Frankenstein
de Mary Shelley (londrina) é de 1818.
A ideia de monstros e fantasmas que povoa a literatura do século XIX, talvez não
aparecesse se o mundo não ficasse tão fantasmagórico por conta desses alfinetes que
andam sozinhos por aí. E de tantas outras coisas sozinhas que andam por aí. Objetos
começam a se movimentar e se impor sobre os homens. Nós viramos os mortos na
fantasmagoria da mercadoria. Quando o século XIX se apresentou para Marx, ele o fez
como um reino mal-assombrado, o lugar de mortos vivos. Referindo-se a Marx, agora em
nossos dias, Peter Sloterdijk não consegue evitar de qualificá-lo como o filósofo “exorcista
do trabalho morto”. Depois da Segunda Guerra mundial, a filosofia continental se
converteu em uma espécie de hermenêutica da catástrofe. Entender esse acontecimento
é um aditamento ao abismo, foi a missão principal do pensamento. E os filósofos
269
deveriam comprometer-se em que seus textos jamais pudessem servir de pretexto para
os horrores vindouros. Daí a orientação fazia um tipo de “filosofia gótica”, ao fim dela os
ingleses tinham denominado certo tipo de literatura, que faz do horror o sublime do
povo. No século XIX, na literatura, música, contos e inclusive no campo das ideias se havia
desenvolvido o sentido do entretenimento através do anúncio do terror. Por trás da
guerra, a situação geral do pensamento propiciou a volta ao gótico no plano teórico. O
livro Crítica da Razão Cínica tenta romper com essa estratégia intelectual de uma
fraternidade do terror.
Comenta Sloterdijk (2012, pp. 85-86):
Uns falam de como esses anos trouxeram levas de pessoas do campo para a
cidade, gerando uma classe média que veio a morar em casas com serviçais que podiam
aparecer aqui e ali no meio da noite - expondo os novos habitantes a situações a que eles
não estavam acostumados. Outros acrescentam o aparecimento da iluminação feita na
base de gases que, sabe-se bem, tinham lá seus efeitos alucinógenos (ópio em burgos?).
Há ainda os que lembram que nesse período surgiu a comunicação à distância, que deu
margem a todo tipo de imaginação aos interessados em “espíritos”. De fato, foram os
vitorianos que inventaram o costume de dizer que haviam recebido mensagens do
270
mundo dos mortos por meio de Código Morse. Também é dessa época o surgimento da
fotografia e, com ela, os chamados “fotógrafos de espírito”, que usavam as chapas já
queimadas antes, boas para se obter resíduos de tom espectral por detrás de imagens.
Aliás, diga-se de passagem, a morbidez foi uma característica marcante dos tempos
vitorianos. Tirar fotos de mortos e a expô-las pela casa tornou-se algo comum. Uma
prática iniciada pela própria Rainha Vitória, e que conquistou a Europa da época. A
amostragem de pessoas com defeitos físicos em praças e circos atraia muita gente.
Jornais capazes de entreter o público com notícias novelescas de crimes bárbaros
também se tornaram corriqueiros. Especialmente se os crimes pudessem se repetir. O
cenário de uma Londres sob neblina e fuligem da revolução industrial revelou-se um
clássico da iconografia da urbanidade vitoriana. Jack o Estripador fez fama. Em 1888 ele
aterrorizou a periferia londrina, e desde então reinou como um ícone da vida sob neblina,
ou melhor, da morte. Em uma nota de rodapé ao seu Espectros de Marx de 1993,
Derrida43 solicita estudos investigativos a respeito do que seria uma “vaga” que, na falta
de outro nome, poderia ser chamada de “mediúnica’. Ora, não precisamos ir longe. Os
historiadores da literatura nos informam que o período vitoriano (1818-1901)
corresponde à ampliação da literatura sobre fantasmas. Eles mesmos, esses
historiadores, tentam explicar essa situação. Lançam mão de elementos dispersos. Essa
articulação entre a literatura e a "ressurreição dos mortos" leva em direção a outro livro
escrito sob o signo napoleônico, O Coronel Chabert (1832) de Balzac. Apesar de vivo, já
em sua primeira aparição surge "a sensação desbotada dessa fisionomia cadavérica",
como escreve Balzac. Elas atingem seu ponto máximo nas chamadas “Grandes
Exposições”. Como se vê em Londres, Paris, Rio de Janeiro, onde os prédios ficam bem
conhecidos a partir do prédio matriz feito de vidro, chamado palácio de cristal que tinham
ar-condicionado, funcionava como local de exposição de compra e venda de mercadorias
e possuía uma abóbada em seu teto para dar uma cor azul em seu ambiente interior,
quase para nos dar uma sensação de reclusão interior, uma sensação de liquidez, fluidez,
algo do âmbito do translúcido como água de piscina com o sol. Um tom de em um mundo
interior de um paraíso onde o tempo não passa. Um tom de surrealismo.
43
MILAN, Betty. Derrida Caça os Fantasmas de Marx, 1994. Disponível em: <
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/6/26/mais!/24.html>. Acesso: 22 Jun. 2019.
271
Como Smith diz “a cidade é uma feira permanente onde aflui a região adjacente
para praticar o comércio e estudar inovações”. Feliz o mundo que um dia será uma única
feira repleta do ruído, do caminhar dos mercadores e dos compradores. Para Smith, a
liberdade significaria nada mais que um reflexo das coisas móveis no mercado, que
adquiriram a liberdade pelos preços, se assim se pode exprimir. A liberdade significa para
as coisas a possibilidade de mudarem de proprietário, de invadirem casas, pensamentos,
em contrapartida, a liberdade para as pessoas significava que se libertaram pelo resgate
do serviço que deviam aos poderes feudais, a fim de se tornarem os seus próprios
proprietários. A grande libertação seria produzida quando não servimos já um senhor que
conhecemos, mas as necessidades de terceiros situados ao mesmo nível que nós, e os
quais, na sua maioria, são desconhecidos para nós. Rilke em sua carta diz: “Estar sempre
sob tetos que construímos pelas próprias mãos, é ser prisioneiro de uma passada
liberdade. O céu estrelado, ah, enviámo-lo para junto de um Deus longínquo que lamenta
já ter-nos amado. Em seu lugar, erigimos uma abóbada de orgulho e prudência. Lá onde
outrora as vigas se tendiam entre as estrelas sobem hoje as redes audaciosas das forjas.
272
Vidros sem mistério substituem o nobre azul, paredes construídas cm as nossas mãos
formam o horizonte como se o universo tivesse de se acabar ali onde a obra do homem
toca a sua fronteira... Outrora, mas lá fora, ao ar livre tão velho que cresce em torno a
nós ao correr dos milênios quando nenhum engenheiro não tinha mais poder do que um
pequeno animal que sente constantemente a onipotência do aberto, quando segue as
pistas da proximidade, lá fora, digo, e outrora, era a pura verdade, quando o verso me
falava: o espaço único passa por todas as criaturas. Encontrei nele todas as coisas
conjuradas para coexistir, todo o estante vacilando no seu lugar, imperceptível, no
mesmo sopro. E, como um vento que deixou a casa do Verão para trazer o Outono mais
rico, o ser um para o outro percorreu os corpos das coisas separadas. O espaço, o único,
reinava como majestoso coletor, o Deus mais expansivo, que distribuiu almas a todos
como são distribuídas as prendes pelo povo nas bodas dos príncipes, para que até os mais
pobres participem... Todas as manhãs ativas a alma escapava-se dos cabos das
ferramentas para as mãos do que partilhavam com esse mobiliário tão tranquilo os seus
quartos, assim como os homens roídos pelo tempo partilha o leito com o perfume
inexprimível das mulheres fáceis. Mas eis que um destino nos afasta dos seres com alma.
Tudo que que é adquirido, gritei, a máquina o ameaça. Vivemos numa máquina, e o
interior tornou-se semelhante ao exterior, como se a alma não fosse mais do que um gás
de escape que sai, incômodo, de um motor furioso... Onde viviam almas, veio a
insolência, os animais ingênuos pendem, carne esfriada, desolados, nas vitrinas, esses
nobres seres vivos, testemunhas precoces da nossa existência, deixaram de nos fitar de
tal forma que nos faltam hoje as testemunhas que teriam podido dizer em silêncio a jura
de que nós, como eles, estamos vivos, a escutar ao longe, tão longe, no interior. Tudo o
que se está isolado na claridade dos pavilhões ostenta agora um preço, tudo desalmado
e prisioneiro disso. Cada coisa nos grita como é jovem e importante e tão concupiscente
como aquilo que, barato, faz de objeto de luxo. Ah, hoje em dia, é ter esquecido a
pertença à vida. Comprar significa trazer levianamente para casa coisas, convidados
duma só noite que saudamos, que utilizamos e que nuca mais vemos”.
Como Smith, que viu os alfinetes comandados por daimons, ou como Rilke, que
reclamou dos gritos e chamados das coisas, Marx notou o mundo das mercadorias se
pondo na condição de quase viventes. O trecho célebre de Marx, relativamente
273
equivalente aos dizeres de Rilke e Smith, com certeza é o da mesa. Vale a pena repeti-lo
aqui, ainda que por demais conhecido.
Diz Marx (2018, pp. 146):
É evidente que o homem, por sua atividade, altera a forma das matérias
naturais de um modo que lhe é útil. Por exemplo, a forma da madeira é
alterada quando dela se faz uma mesa. No entanto, a mesa continua sendo
madeira, uma coisa sensível e banal. Mas tão logo aparece como mercadoria,
ela se transforma em uma coisa sensível-suprassensível. Ela não se contenta
em manter os pés no chão, mas põe-se de cabeça para baixo em relação a
todas as outras mercadorias, e em sua cabeça de madeira nascem minhocas
que nos assombram muito mais do que se ela começasse a dançar por vontade
própria
Como fica claro no texto, Rilke fala sobre operações de comprar, vender, tomar
ou ceder de aluguel, pedir ou conceder empréstimos. Essas operações seriam o limite do
mundo hoje, que dizem respeito a todos os aspectos da vida que se abre como um leque
na Grande Instalação, é obrigatório, portanto, que dinheiro seja sinônimo de
acessibilidade de coisas, que por transferência, produza um sentimento de mundo que
seja sua contrapartida. A coincidência entre espaço interior do mundo e o espaço do
poder de compra torna-se verossímil, o que se reflete nas coisas que nos cercam
diariamente. Se muitas coisas anteriormente inacessíveis são arrastadas para o lado do
que pode se comprável e logo que certas indisponibilidades surjam inopinadamente
como disponíveis e reversíveis, impõe-se esse exagero nascido da crítica da cultura,
segundo a qual, todos os valores tradicionais estão sujeitos à reavaliação e à
desvalorização. Vemos o caráter espectral tomar conta do século XIX com a possibilidade
de combustão na forma de movimento, vapor no formato de gases e fumaças na medida
em que como sujeitos modernos, entende-se a priori a liberdade como liberdade de
movimentos, o progresso não seria nada mais que a capacidade de uma movimentação
ou um movimento mais elevado. Se entende que o espírito, teve uma relação precária
com o mundo, salvo dizer-se a seu respeito que ele sopra onde quer (inspirados?), os
critérios em conjunto garantem o efeito “pleno de espírito”: contextualidade (o espírito
compreende aquilo que anda à solta fora dele), autopercepção (como ele próprio está,
se encontra ou em passagem), autolimitação (nota quando é o bastante e o suficiente),
reversibilidade (tem folga, pode aquilo que pode para frente, para trás) e espontaneidade
(pode não só continuar fazendo alguma coisa, mas começar de novo, a surpresa pode
274
advir de uma necessidade). É por isso que no século XIX, se pôde ver a conexão entre
pensamento histórico e melancolia. Pensar historicamente significou, instalar-se numa
situação em que a vida já não está à altura da sua própria reflexividade. Disso também
trata a filosofia europeia da alienação, com seus discípulos de Hegel. Como crítica gira
em torno de que a vida descobre que possui mais moral do que vitalidade, mais
recordação do que espírito de empreendimento, mais inibições do que incitamentos e
instigamentos. No historicismo, todas as vidas se sentem tarde demais, se sentem vindas
em um sentimento de atraso. Essa descoberta traduz-se nos espíritos rebeldes pela sua
fuga para frente.
O Sociólogo alemão Hartmut Rosa debruça-se sobre a seguinte contradição: se
podemos ganhar enormes quantidades de tempo com a tecnologia, por que não
dispomos mais de tempo para a vida? Temos uma paradoxal falta de tempo no mundo
moderno. É possível imaginar um mundo em que os avanços tecnológicos possibilitassem
aos humanos uma enorme economia do tempo. Mas o que vemos é que as pessoas
parecem dispor cada vez mais de menos tempo. E daí surge o paradoxo ao qual o
sociólogo alemão Hartmut Rosa se dedica. O efeito inicialmente libertador e fortalecedor
da aceleração social moderna, que está conectado com o aumento da velocidade técnica
de transporte, comunicação ou produção, ameaça se transformar em seu oposto na
modernidade tardia. Dessa questão nasce suas duas principais obras que são
Beschleunigung. Die Veränderung der Zeitstrukturen in der Moderne (Aceleração: A
Transformação das Estruturas Temporais na Modernidade) de 2005, traduzido pela
Unespe de 2019 e Social Acceleration: A New Theory of Modernity (versão em inglês de
2014). Hartmut Rosa, diz que gostaria de propor, uma definição. A de que “uma
sociedade é moderna quando apenas consegue se estabilizar dinamicamente; quando é
sistematicamente disposta ao crescimento, ao adensamento de inovações e à
aceleração, como meio de manter e reproduzir sua estrutura”. Ao longo de quatro
grandes eixos, Rosa trafega sistematicamente pelos conceitos de aceleração da dinâmica
das condições sociais, conceituando, para isso, os processos de alienação e ressonância,
e investigando as causas e os impactos dessa escalada. Em suas obras é possível ler sobre
a existência de três motores externos e independentes que impulsionam a aceleração
social. Nomeadamente, os motores econômicos (tempo é dinheiro – capitalismo:
alienação e aceleração; a competição e à concepção de boa vida), o cultural (a promessa
275
de pressão por meio do calor. Isto é algo que não se verifica na natureza. Uma ideia da
nossa civilização de se aproveitar das explosões para fins técnicos e vitais para a produção
de trabalho útil. Microcatástrofes para serviços e projetos culturais. O sujeito moderno
poderia ser um metabolizador de alto rendimento, atua quase em um princípio de auto-
eliminação e auto-esforço. Entra em ação, um certo automatismo cinético, que não só
nos “condena à liberdade”, como também, ao constante movimento de libertação. Esse
sujeito da iniciativa que refina a si próprio, é o moleiro no “moinho que se mói a si
mesmo” dos tempos modernos, como bem afirma Novalis em 1799, em seu ensaio sobre
a Europa e o princípio do funcionamento do complexo homem-natureza-fábrica. Um
conceito cinético da mobilização perpétua, uniu dois conceitos do “moinho em
movimento” que é “movido pela correte do acaso e vai flutuando sobre ela”, como
movimentos de tipo automovimento endógeno e o heteromovimento exógeno, numa
mobilidade comum, elemento dinâmico (seria estranho pensar que depois disso
surgiriam automóveis?). Se tomarmos isso como verdade, a Modernidade não poderia
de maneira nenhuma conceber algum tipo de sujeito sem movimento – o seu
movimento, o Eu e o seu automóvel estando metafisicamente imbricados como alma e
corpo da mesma unidade de movimento. O automóvel pode-se dizer, foi o substituto
técnico do sujeito transcendental ativo. Não vemos a associação de automóveis com a
propaganda de liberdade de movimentos e de deslocamentos? Nos dá a sensação de
engrandecimento, poder, controle para habitar todo um universo de vias rápidas, uma
vida que nos mesmos controlamos (auto intensificação como aceleração?). Parece que
os grandes engarrafamentos (tráfego), indivíduos sentados nos ônibus, quedas de
energias elétricas, os roteadores de internet desconectados podem ter significativos
valores filosóficos perante os quais bem se pode ficar pensativo. A Modernidade
enquanto processo reporta-se a um modelo cinético, que é suscetível de se identificar
como o de uma mobilização. Por isso quando se tem automovimento para mais
movimentos, uma tendência para a motorização seria criada. Será que o leitor não
levantará suspeitas com a conotação militar que a expressão “mobilização” tem? A
impressão é correta. Em seu livro Mobilização Copernicana e Desarmamento Ptolomaico
de 1987, vemos às expressões “mobilização” e “desarmamento” com profundas relações
de origem militar e descrevem manobras de grandes exércitos ou exercícios de tropas. A
ideia implícita nessa imagem é a de grande organização de vários níveis de mobilização
277
que precisam sincronizar-se para construção do sentido de uma ação. Ou seja, a ação
precisa ser regida de maneira concatenada, como uma marcha em movimento seguindo
padrões e normas de comprovação dos mais simples aos mais complexos, a fim de que
milhares de componentes possam operar em sincronicidade. Mobilização poderia ser
uma categoria do universo bélico que abrange processos críticos graças aos quais
potenciais de combate em estado de repouso são levados à prontidão para entrar em
ação. Obviamente que o modelo básico desse procedimento, enquanto auto-atualização
para entrada de ação, não é exclusiva ao setor militar, mas ele traduz para tempos
modernos, os princípios fundamentais dos empreendimentos modernos de
automovimento. O pensamento ocidental entrou numa lenta e gradual mobilização em
diversos níveis de ação na construção das narrativas modernas. Por isso, o “modernizar”
ou as “modernizações”, para nós, homens desse tempo apresentam sempre do ponto de
vista cinético, esforços ou caráter de mobilização. Processos fundamentais político-
cinéticos. O leitor mais uma vez levantará suspeitas para talvez pensar em fascismo? Não
podemos deixar de mencionar Ernst Jünger como algumas obras mal vistas, ele já nos
anos 30 havia separado o fenômeno da mobilização de sua acepção militar para deslocá-
la para o moderno processo social no seu todo. Foi justamente porque esse conceito de
mobilização guarda um sentido positivo, também se presta para descrever e servir de
mecanismo “civilizador” que utiliza acréscimos constantes como poder e saber em
mobilidade, precisão e eficácia para processos de endurecimento e mortificação,
armamentos, guerra, expansões, dominação, neutralização, plenos poderes e romper
conexões e eras. Paul Valéry reforça a ideia num texto intitulado A Crise do Espírito de
1919, cuja primeira frase ficou famosa: "Nós, as civilizações, sabemos neste momento
que somos mortais e que o abismo da História nos afeta a todos". Um diagnóstico
catastrófico, não sob aspectos morais, mas no caso de Valéry, tecendo considerações
sobre a técnica como um poder universal em tons de uma teoria da civilização. Ele
compara de tal modo a mortalidade e a civilização que chegou a antecipar o problema
ecológico. "A crise econômica", explica Paul Valéry, "perante o espetáculo do Velho
Continente arrasado pela guerra, é visível em toda a sua força; mas a crise intelectual,
mais subtil e que, pela sua própria natureza, assume os aspetos mais enganadores (tudo
se passa no verdadeiro reino da dissimulação), essa crise dificilmente deixa transparecer
a sua verdadeira natureza, a sua fase”. Em toda a parte, onde o Espírito Europeu
278
Há ainda uma outra tradição, segundo a qual o nome secreto não é tanto a chave
da sujeição da coisa à palavra do mago, sobretudo, quando o monograma que sanciona
a sua libertação com relação à linguagem. O nome secreto era o nome com o qual a
criatura é restituída ao inexpressivo. Por isso, a magia chamaria por felicidade. O nome
secreto passa a ser gesto. A magia em última instância seria gesto, desvio em relação ao
nome. Não vemos crianças inventando uma língua secreta própria? Quem inventa um
novo nome encaminha sua felicidade. Ter um nome é a culpa. A justiça é sem nome,
assim como a magia. Livre de nome, a criatura bate à porta da aldeia de magos, onde só
se fala por gestos. A própria noção de luta de classe (se é que ainda existe) mudou. A
frase do Manifesto Comunista de que há um fantasma nos rondando, e que se trata do
comunismo, nunca foi tão atual. De fato, fantasma é algo que pode assombrar, mas está
morto. E, na verdade, depois do surgimento de Gasparzinho – “O Fantasminha
Camarada”. O termo camarada aí, sempre foi uma grande gozação política), nem as
criancinhas se assustam com espectros. Ectoplasmas que se virem. Mortos são mortos.
283
O mundo atual é um mundo mais desencantado. O pano de fundo mais geral para essa
discussão de ciência e valores é o reconhecimento de Weber de que seu mundo, o mundo
moderno, está desencantado. O único encantamento dele que restou, e já basta, é o
dinheiro e seu fluxo, e a capacidade dos governos de apagarem fogos em momentos que
são cada vez mais imprevisíveis.
Sloterdijk (2008b, p. 191):
Uma vez tendo aceite a metáfora do “palácio de cristal” como emblema para
as ambições finais da modernidade, podemos refundar a simetria muitas vezes
assinalada e muitas vezes negada entre o programa capitalista e o programa
socialista: o socialismo/comunismo era muito simplesmente o segundo
estaleiro do projeto do palácio. Encerrado o seu ciclo, torna-se evidente que o
comunismo era uma etapa na via do consumismo. Na sua interpretação
capitalista, as correntes do desejo conhecem um desenvolvimento de potência
incomparável – o que também começam a admitir pouco a pouco os que
tinham comprado ações do socialismo na bolsa das ilusões, ações de que se
conservarão alguns exemplares, como essas notas de mil milhões de marcos
do ano de 1923. Do capitalismo, porém, só agora se pode dizer que
representou sempre mais do que uma “relação de produção”; desde sempre,
a sua pregnância ultrapassou amplamente o que a figura intelectual do
“mercado mundial” podia designar. Ele implica o projeto que consiste em
transpor a totalidade da vida do trabalho, dos desejos e da expressão artística
dos seres para a imanência do poder de compra.
44
SANTOS, Maria Siqueira. A História das Ideias Em a Árvore Mágica de Peter Sloterdijk. IV Seminário de
Pesquisa. Programa de Pós-graduação em História Social, 2010, pp. 443-453. Disponível em:
<http://www.uel.br/pos/mesthis/arqtxt/ANAISIVSEMINARIOPPGHS08022011MESTHIS.pdf>. Acesso: 27
Mar. 2018.
45
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Bolhas. (Microesferologia). Tradução: José Oscar de Almeida Marques. São
Paulo: Estação Liberdade, 2016, p. 189. Capítulo 3.
46
POE, Edgar Allan. Contos de Terror, de Mistério e Morte. Tradução: Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1981, p. 223.
286
47
SAFRANSKI, Rüdiger. E.T.A Hoffmann. A Vida de um Cético Fantasioso. Munique/Viena, Hanser, 1984, pp.
294-310.
287
areopagitas. Nós percebemos dentro de nós uma dimensão que é ao mesmo tempo que
nos rodeia. Em mim é o que eu respiro, o que eu compartilhar, que do qual sou parte e
contraparte. As esferas são espaços de simpatia, espaços tuning, espaços de participação.
Se não pressupõe a sua existência, não poderíamos compartilhar uma palavra com o
outro, e assim tomar por pressuposto, também equipar-nos com uma nova intensidade.
Mesmo a interação mais banal envolve a nossa participação na constituição de campos.
Sem eles não haveria famílias, comunidades existenciais, comunas, equipamentos,
pessoas. Ninguém suportaria passar um dia no mesmo quarto com outro homem se os
dois participantes não têm a incrível capacidade de se conectar através de frequências
comum, sintonizarmos.48 Não é de admirar que na introdução de Esferas, Sloterdijk
refere-se a duas inscrições que Platão colocados na entrada da Academia. A advertência
a aqueles que não eram geômetras; mas, por outro, mais escondido, ele convidou
afastado para aqueles que consentisse em manter dramas amorosos. O vínculo que une
estas duas máximas ou avisos é explicado rapidamente, e resumido em outro termo
apenas no século XX tornou-se importante: a transferência. Isso explicaria o fato de uma
onipresença das retóricas familiares em todas as grandes estruturas sociais, deuses e
animais também entram aqui, até mesmo aquelas estruturas que não tem tantos traços
com as famílias como o Estado, Igrejas, Exércitos, Universidades. Como se sabe, Hegel em
sua embriologia filosófica, faz uma ligação entre o antigo conceito de gênio e o mais
avançado estado de investigação psíquica laica. Hegel chegou a dizer que “a mãe é o
gênio da criança”. O chamado magnetismo animal que retorna à Mesmer e à sua escola.
Hegel ao fazer isto aponta para a possibilidade de um mediunismo civil. Para o
pensamento arcaico, estar-no-mundo equivale a um estar-ampliado-na-mãe. Só na era
metafísica isso viraria um estar-em-Deus. Depois, na pós-metafísica faria disso um estar-
lançado-no-mundo – aqui surge pela primeira vez um exterior real.
Foi com o mesmerismo que o desencantamento das relações de seio passou
para o domínio das possibilidades humanas, um esoterismo democrático como psicologia
profunda com o transe magnético, sonambulismo artificial, da relação hipnótica, temos
afirmações sobre a magia natural de transfusões anímicas puras que podem ser
remetidas ao modelo do habitar fetal (com Nicole Malebranche). Estava inaugurada a era
48
SLOTERDIJK, Peter. Experimentos con uno Mismo. Conversaciones con Carlos Oliveira. Traducción Germán
Cano. Editorial Pre-textos. Valencia, 2003, p. 93.
289
Uma luta contra a maré negra da lama: do ocultismo. Em 1986, Avital Ronell publica um
livro intitulado Dictations: On Haunted Writing, dedicado justamente à permanência
(fantasmática, espectral) das Conversações de Goethe e Eckermann. À maneira do livro
de Jacques Derrida, o projeto de Ronell poderia muito bem ter sido chamado Espectros
de Goethe, já que a autora defende a ideia de Conversações como uma sorte de
mensagem polifônica de Goethe do além-tumba (como as Mémoires d'Outre-Tombe de
Chateaubriand, lançadas em 1849-1850). Ronell salienta os momentos em que Goethe,
em suas conversas, remete ao fluido e ao imaterial, aos sonhos e sensações, nuvens,
fantasmas e transmissões telepáticas, rastreando esse tipo de atenção até, por exemplo,
Freud e sua Psicopatologia da vida cotidiana.
No Romance da Rosa temos Ociosa. Ela o primeiro personagem que o poeta conhece e que vive
no interior do Jardim. Ela tem um espelho em uma das mãos, que pode ser associado à luxúria,
já que é um atributo de Vênus e, Ociosa é sua representação, embora na tradição de André
Capelão (séc. XII), a luxúria está descartada do amor cortês. Quando Ociosa mostra o espelho ao
poeta, está lhe ensinando o reflexo do mundo que existe dentro do Jardim, sendo, portanto,
também a representação da água (o rio do início do poema). Além disso, associa-se com o mito
de Narciso, que surgirá adiante no texto. Com a aparição de Ociosa, o poeta se insere na
tradição da poesia amorosa, pois Ovídio diz que devemos fugir da ociosidade para evitar as
flechas de Cupido, ideia adotada também por André Capelão. Ociosa é uma mulher rica,
291
afortunada, leva uma vida agradável, pois com nada se ocupa senão gozar e desfrutar, pentear-
me e fazer tranças (a Ideia tanto moderna como a de luxo no capitalismo atual; luxo e
capitalismo são forças que se atraem como se percebe em Sombart).
49
Marx propôs o fim do mercado. Por que Marx precisaria do fim do mercado? Aí entra a análise filosófica
da preocupação com a visão que ele tem: é a visão da emergência dos fantasmas. A época em que Marx
viveu possibilitou ele ter a noção da metafísica aliada ao valor-trabalho (horas de trabalho) para a
mercadoria. Essa época foi marcada por uma literatura fantástica, onde se viu diversos contos, temas,
histórias sobre ectoplasmas, espiritismo, espectros se movendo pelo mundo e pelas casas. De 1840 até
1920 é um período de uma literatura onde se queria falar, ver, capturar, tirar fotos com fantasmas. Nesse
sentido, vemos o suspense ganhar elevação no cinema. Sobre isso indicamos o conto Flor, Telefone, Moça
de Carlos Drummond de Andrade, no livro “Contos de Aprendiz”. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
Vemos a ideia de que os mortos se utilizam de objetos tecnológicos, onde objetos criam vida e fazem o
papel de fantasmas está presente no século de Marx. Porque a própria mercadoria para o Marx é um
fantasma. É uma situação fantasmagórica como aparição. Marx pensou a mercadoria fantasmática sensível
e insensível ao mesmo tempo. Ela é da ordem espiritual, mas ao mesmo tempo ela tem um corpo. Não é o
espírito habitado o corpo, ela é da ordem espiritual que forja algo corpóreo como um espectro. Entra a
noção de valor de uso e valor de troca e trabalho abstrato em termos de horas embutido nela. Por isso que
somente terminando com o mercado, a ideia de fetiche e reificação do homem seria o caminho para a
volta da humanização do homem. Há uma inversão do fetiche do objeto com o homem. O mercado seria a
inversão entre sujeito e objeto. É a desumanização do homem, pois deixa-nos em uma situação de se estar
vivendo-comprando com um pé do espírito sugado e interiorizado na mercadoria. O vivo é a mercadoria.
Não um vivo como vivo, mas como fantasmagórico, o homem que era o vivo passa a ser o morto,
obedecendo os fantasmas (spectrum-spectaculum). Esta inversão é a ideologia que não passa pela cabeça,
mas algo sedimentado pelo mercado enquanto prática, e não um texto que vai conquistar você. O fim do
mercado no limite quer que o homem volte e saia da ideologia para enxergar a verdade sem o viés
ideológico, a prática do mercado que faz com que nós fiquemos à mercê dos espectros. Marx antes de
tudo, é um filósofo, e como tal, possui um projeto epistemológico na cabeça com uma nova ontologia, uma
ontologia onde o homem se ponha como controlador dos objetos e não um ser controlado. A proposta do
comunismo passaria metafisicamente por estes termos.
293
American Imago.
295
O capital financeiro é tão abstrato que ele diluiu o próprio conceito de burguês.
Quem vai para o capital financeiro é um empresário. Mas ele abandona sua empresa para
ficar na bolsa, então ele já não é mais nada, pois nem formar uma burguesia ele consegue.
Ele transforma o conceito de classe em gases em espumas diluídas. Será que estamos
lutando contra espíritos? Lutamos contra pessoas invisíveis? Elas mesmas já não se
reconhecem mais como sendo burguesas; “donas dos meios de produção”. Um poder
tão sedutor que pessoas de classe média acreditam na Bolsa agindo de modo
ideologizados, onde produzir não é mais importante, mas aplicar é a nova onda. Os
“trabalhadores” agora não se identificam mais com essa alcunha. O neoliberalismo é
sedutor demais para formar um tipo de luta. Não se reconhecem como estando em um
“conjunto de trabalhadores” (fora o crescente aumento de pequenos empresários). O
mesmo ocorre com os burgueses. Os donos de meios de produção e de empresas vivem
olhando seus monitores. Uma situação de transposição de mundo exterior enquanto
todo para uma imanência mágica, transfigurada pelo luxo, pelo cosmopolitismo (cidadãos
não do universo, mas sim do capital), pelo museu. A revolução do aligeiramento passa
pelo monitor. O coração pragmático da Idade Moderna clama por nova ciência da
assunção de riscos. O globo é o monitor no qual se pode apreciar em conjunto o campo
de jogo do negócio generalizado de investimento. É um painel no qual os investidores
consigam suas apostas e sobre o qual movem suas perdas e ganhos. Ninguém mais sabe
o que fazer com as lutas sociais. Por isso, Jessé tropeça. Ele quer identificar grupos que
já não são mais passíveis de personificação, e talvez, até mesmo de existência real. O
capital se reproduz sem precisar do trabalho. Ele só precisa que a empresa esteja lá, não
importa se ela vai bem ou mal, mas a oscilação no mercado financeiro (crise, notícias de
investimento, novos governos, progresso econômico, novidade tecnológica, etc). Temos
a alta e a baixa da Bolsa, onde pessoas ficam ganhando e perdendo nesse jogo giratório.
Reprodução sem trabalho de trabalhadores, e sem trabalho de empresários. Uma
metáfora para o Tio Patinhas (“Os Caçadores de Aventuras”) e sua moeda número 1. Esta
moeda fazia com que o seu dinheiro sempre aumentasse, por isso, era uma mágica. Tanto
é verdade que era uma “mágica nova”. Enquanto isso, a Maga Patalójika que fazia mágica
velha sempre queria roubar sua moeda número 1. Ela era uma bruxa que
297
Empresa Capital Câmbio. A marca da empresa se utilizou dos dois (C) do Capital e do
Câmbio, criando assim, o C em forma cifrada dando a ideia de moeda, valor e dinheiro. Os
serviços da referida empresa vão desde Moedas Estrangeiras, Câmbio Comercial, Câmbio
Estrangeiro, Cartão Multimoeda, vistos, passaportes, encomendas internacionais, importação
de mercadorias, seguro viagem, etc. Na fachada da loja vemos diversas siglas das moedas desde
Bitcoins, Dólar, Euro. A metafísica da sorte passaria ao longo da modernidade desde moedas,
bolsas, carteiras, mochilas, cartão, até chegar somente o número.
Imaginemos que eu tenha uma moeda em meu bolso. Vou em uma daquelas
máquinas que vendem refrigerantes (Soda, Coca-cola). Coloco a moeda na máquina e a
máquina me dá o refrigerante. O capitalismo financeiro funciona por princípios
parecidos. Ao invés de essa máquina ser uma “máquina de refrigerante”, ela passa a ser
uma máquina que reproduz dinheiro. Coloco a moeda na máquina e outras duas moedas
me retornam. Agora possuo duas moedas em minhas mãos, quando anteriormente, só
tinha uma. Repito a operação. Deixo uma moeda no meu bolso e coloco a outra na
máquina. Novamente outras duas me são dadas. Agora possuo três moedas, com isso
posso repetir a operação diversas vezes até com uma simples moeda inicial conseguir
encher os bolsos. Agora é possível colocar diversas moedas em diversas máquinas para
299
que cada máquina me devolva mais duas moedas. Uma máquina na China, outra nos
Estados Unidos, outra no Brasil. A questão não é mais o que fazer com o dinheiro, mas
onde colocá-lo para que ele se multiplica e onde colocá-lo como acumulação para render
ainda mais. É o deslocamento das finanças que comandam o resto do capitalismo, não é
mais a produção que comanda, mas a valorização feito a partir de finanças do rentismo.
Uma outra imagem poderia ser a seguinte: imaginemos que uma você encontre uma
lâmpada mágica esteja dentro do seu guarda-roupa. Um gênio aparece. Ele diz que um
único desejo será atendido. Qual o seu pedido? Se Jesus multiplicou pães, seu desejo será
o poder de multiplicar dinheiro. Todos conhecem a ambição desmedida do Tio Patinhas
pelo acúmulo de moedas de ouro. Em um dos episódios, os sobrinhos de Tio Patinhas
descobrem uma máquina que faz replicar qualquer coisa. A máquina aparente ser um
tipo de arma. Claro que os três pestinhas logo pensam em multiplicar o dinheiro.
A regressão da Fortuna correspondia ao sentimento do mundo possuído pela
moderna ontologia da sorte, um sentimento que se materializava classicamente no
oportunismo de Maquiavel, na enunciação de Montaigne e no empirismo-experimental
de Bacon. Também o neofatalismo de Shakespeare tardio pertencente aos
autoenunciados característicos de uma época que, em seus momentos mais sombrios,
percebe o ser humano como um corredor de riscos infectados pela competência,
obcecado pela inveja, sinalizado pelo fracasso, aqui, os atores sobre o cenário do mundo
aparecem como bolas com as quais dispõe seu jogo as forças de ilusões. A Fortuna
aparece em todos os lugares como a deusa da globalização par excellence. Vendo as
coisas em conjunto, é a transformação das mentalidades e práticas europeias em um
“negociar generalizado” com riscos, é onde surge a surpreendente, e quase misteriosa
força agressiva das primeiras gerações dos descobridores. Essa disposição aos riscos é
propulsionada pelo imperativo de conseguir riqueza para saldar dívidas de créditos de
investidores. Devido a este procedimento os interesses de pagar a prazo se traduz em
façanhas práticas e inventivos científicos. A empresa é a poesia do dinheiro. Assim como
a miséria torna-se inventiva, o crédito faz o negócio de um empresário. Toda a campanha
da globalização é uma guerra constante de estados de ânimos e uma luta por meios
hipnóticos e grupais de orientação. Isso se deve em grande parte pelo poder
programático visto nos meios de massas e pelos poderes consultivos das empresas. A
figura chave da nova era é “produtor-devedor” – mais conhecido pelo nome de
300
empresário, que flexibiliza permanentemente seu modo de fazer negócio, suas opiniões
e a si mesmo, para, por todos os meios permitidos e não permitidos, experimentados e
não experimentados, fazer ganâncias que lhe permitam amortizar a tempo seus débitos
e multiplicar seus créditos. Estes produtores-devedores aportam um significado
revolucionário, moderno, a ideia de dívida culpada. Uma falta moral se converte em um
estímulo econômico inteligente. Sem a positivação das dívidas, nenhum capitalismo. Os
produtores-devedores são os que começam a girar a roda da permanente revolução
monetária na “época da burguesia”. O assunto primordial da idade moderna não é que a
terra gira em torno do sol, e sim que o dinheiro o faz em torno da terra. O dinheiro, que
torna tudo totalmente comprável, suprime todo o traço incomensurável, toda a
singularidade das coisas.
Nas palavras de Marx – emancipação, por isso que a antropologia de Marx em A
Ideologia Alemã ainda era a de que segundo ele: “Os próprios homens começam a ver a
diferença entre eles e os animais assim que começam a produzir os seus meios de
existência”. Todos agora vivem e se transformaram em capitalistas financeiros que nada
mais tem a ver com o mundo do trabalho (estilo moderno: Marx, Weber, Robert K.
Merton e conservadores). Se antes tínhamos máximas como: “o trabalho dignifica o
homem”, “o trabalho edifica o homem”, “o trabalho liberta”. O mundo do trabalho é algo
hoje completamente desinteressante para eles. Não se importam mais se há ou não
sindicatos. Se no Brasil se paga 13º salário, se a Previdência é um sistema solidário. Se há
muitas leis protegendo os trabalhadores. Se há sindicatos patronais ou não é algo
indiferente. O crédito-capital se deslocou para o âmbito financeiro. Basta ver a Bettina.
Os capitalistas agora pegam seus lucros 10 20 30 milhões e aplicam, ganham 50 100 300
mil. É quase um "capitalismo improdutivo", expressão utilizada por Ladislau Dowbor.
Dowbor (2017, p. 303):
A exploração dos trabalhadores e dos “99% em geral se dá por meio de três
mecanismos básicos: o pagamento de salários baixos, a redução de acesso a
bens e serviços públicos e a exploração por meio de juros elevados. O
pagamento de baixos salários nos é familiar, gera a mais-valia para os
proprietários de meios de produção. A redução de acesso aos bens e serviços
públicos afeta indiretamente a renda da população: na Suécio ou no Canadá
os salários podem ser mais baixos do que nos Estados Unidos, mas o salário
indireto sob a forma de educação, saúde, infraestruturas públicas de lazer e
outros, com acesso universal gratuito, mais que compensa a diferença, porque
a educação privatizada, por exemplo, drena os salários dos trabalhadores. Os
planos privados de saúde igualmente. A exploração pelas taxas de juros
elevadas, drena a capacidade de consumo das famílias, a capacidade de
301
Dowbor possui um ensaio que propõe uma mudança radical de como pensamos
as transformações atuais do capitalismo. Diz ele que “está nascendo um novo animal”.
Em vez de acrescentar adjetivos ao capitalismo industrial que conhecemos: global,
financeiro, etc, que tal pensar que tipo de novo animal está nascendo? Em vez de olhar
como o antigo se deforma, procurar desenhar o novo que se forma. Um outro modo de
produção está emergindo? O conhecimento tornou-se o principal fator de produção,
abrindo espaço para economia imaterial, a fábrica perde protagonismo frente às
plataformas, a apropriação da riqueza migra para os sistemas financeiros, as relações de
emprego se desarticulam, o espaço da economia tornou-se planetário, a democracia
aparece como dispensável. A mudança é sistêmica, apontando tanto para novas ameaças
como para novas oportunidades.50 Coloca em seu ensaio um esboço do futuro, ou seja,
um capitalismo de juros, de rentismo, de alugueis (sem produção, sem manufaturação,
sem trabalho). Não é de se espantar que grande parte dos Estados hoje querem “fazer
economia”, ou falam “o governo gasta mais do que recebe”. Tudo isso é feita de uma
economia equivocada. Os governos pagam juros sobre juros de dívidas que vem de uma
política monetária errada. Os dados apontam que o déficit está no Banco Central. O custo
da política monetária atual provocou a crise em que estamos: juros elevados (14,25%);
monopólios bancários, remuneração da sobra de caixa de R$ 1 trilhão de reais dos
bancos; prejuízos com Swap Cambial e outros prejuízos do Banco Central; Emissão
excessiva de títulos da dívida interna; dívida interna que saiu de R$ 732 bilhões em 11
meses de 2015, enquanto o investimento federal em 2015 foi de R$ 9,6 bilhões de reais;
déficit nominal e juros nominais provocado pelas despesas com juros e não por suposto
excesso de gastos sociais. Os bancos colocam juros elevados para ganhar, com isso, ele
não empresta para as empresas. Como esses capitalistas que estão nessas empresas são
os antigos donos (que viraram rentista), eles não se importam que não haja investimento
na empresa. A empresa é um problema dos executivos, eles estão ganhando “lá em
50
DOWBOR, Ladislau. Uma Nova Arquitetura Social?, 2018. Disponível em: <http://dowbor.org/blog/wp-
content/uploads/2018/11/AlemdoCapitalismo_novembro2018.docx>. Acesso: 18 Jun. 2019.
302
cima”. A ação de emprestar com juros altos faz com que sobre dinheiro no caixa, logo, há
o medo da inflação, já que se tem mais dinheiro sobrando. O caso do Brasil é assim. O
Banco Central pega essa dívida e emite “título da dívida” que fica na mão do credor, na
mão do banco. Este dinheiro fica um dinheiro que não pode ir para o mercado. Ele não
investe. Mas o guarda. Para justamente não ter dinheiro no mercado porque o banco
avisa que vai haver a inflação. O dinheiro morre ali. Fica um crédito para o banco e uma
dívida para o Estado que se apresenta em dívida sobre juros que deve ser paga com a
economia do Estado (reformas em Previdência, diminuição de cargos, “diminuição do
Estado”, privatizações, etc). Se diminui o Estado porque há a crença que gastamos muito,
mas se gastando muito já era deficiente, agora ele menor, o serviço ficará ainda mais
deficiente. Essa é uma ideologia do neoliberalismo, a de que sai um regime de
compartilhamento mútuo da aposentadoria (onde várias pessoas pagam) para o “pague
você mesmo”. Que audácia ter uma aposentadoria paga por seu empregador e pelo
Estado. Você é merecedor disso? Use agora a “capitalização”, alguns dirão. Você paga a
sua. Você só depende de você. Você vai estar investindo no futuro em você. Sozinhos
somos melhores. Explore-se. Corte seus pulsos. Quando chegar do seu trabalho à noite,
faça o planejamento para o seu próprio negócio. Se mate a noite. Na modernidade cresce
a ideia de que somos autônomos, indivíduos por sermos e queremos estar sozinhos.
Mickey.
Essa foi a grande tradição dos judeus. Do judaísmo, o mundo herdou a ideia da
resistência. Essa ideia estava viva no povo judeus como tradição messiânica, uma tradição
que olhava para frente cheia de esperanças. No profetismo hebraico, o sentido de vigília
não é entendido como o dia-logos grego, o espaço de vigília judeu é impregnado pela
ideia de aliança com um ser vivificador que se oculta sempre no precário nome de Deus,
mas que o “velar judeu” significa um sempre aguardar a vinda de um salvador, aguardar
o vindouro que se cumpre a esperança de um amanhecer de um mundo melhor. Durante
o período imperial romano, os cristãos se tornaram a tropa nuclear de uma resistência
interna. Ser cristão teve um dia o sentido de não se deixar impressionar por nenhum
poder do mundo, muito menos pelos imperadores-deuses romanos arrogantes, violentos
e amorais, cujas manobras político-religiosas eram por demais óbvias. Assim, a
consideração judaica da história contém um princípio político explosivo: descobre a
perecibilidade dos impérios alheios. A consciência primária “teórica” kinyke-cínica
(também cínica, porque em aliança com o princípio mais poderoso, o que significa: com
304
um fato que Heinrich Heine colocou em poucas palavras quando ele afirmou que os
judeus não estão em casa em um país, mas sim em um livro: a Torá, que eles carregavam
com eles como uma "pátria portativa", portátil ou portável. Esse comentário profundo e
elegante ilumina um fato que é frequentemente repassado: grupos "nomadizantes" ou
"desterritorializados" constroem sua imunidade simbólica e coerência étnica não – ou
apenas marginalmente, de um solo de suporte. Em vez disso, suas comunicações entre si
agem diretamente como um "vaso autógeno" ou um receptáculo autógeno,51 no qual os
participantes estão fechados e permanecem em forma, enquanto o grupo se move
através de paisagens externas.
Um povo sem terra enraizado em uma tradição escriturística, portanto, não
pode ser vítima do equívoco que se impôs a praticamente todos os grupos estabelecidos
ao longo da história humana: entender a própria terra como o recipiente do povo (um
continente) e enxergar seu solo nativo como o a priori do significado de sua vida ou a sua
identidade.52 Essa ideologia territorial perdura como uma das heranças mais eficazes e
problemáticas da era sedentária, como o reflexo básico subjacente a todas as aplicações
aparentemente legítimas da força política. De fato, o que é denominado "defesa
nacional" está diretamente relacionado a ele. A defesa nacional é baseada na equação
obsessiva do lugar e do eu, o erro lógico axiomático da razão territorializada que atingiu
a grande maioria dos cidadãos israelenses depois de 1948 como desejável. O espaço
dessas pessoas deslocadas, no entanto, nem precisa se fixar definitivamente em algum
lugar. Os peregrinos o carregam, de certa forma, no interior da sua alma, que é um
refúgio protegido por um sistema imunológico. Podemos pensar indiretamente em
efeitos sistêmico-imunizadores quando ao deus dos luteranos se cantou como um castelo
firme e como uma boa arma e defesa. Não serve de ajuda a constatação etimológica de
que a palavra romana inmunis não significa outra coisa no começo que “livre de impostos
e tributos”, uma manifestação antecipada de falta de solidariedade. As analogias entre a
diagnóstica médica moderna e as maquinações dos serviços secretos saltam (até o nível
do detalhe linguístico) fortemente aos olhos. Uma “linguística” militar, jurídica e médica
andariam no tempo moderno quase de mãos dadas. A tão famosa “imunidade
51
DEBRAY, Regis. God: An Itinerary. Translator: Jeffrey Mehlman (London & New York: Verso, 2007), pp.
83f.
52
SLOTERDIJK, Peter. Esferas II: Globos (Macroesferología). Traducción de Isidoro Reguera. Madrid: Siruela,
2006, p. 866.
306
o sujeito e sua doença não poderia existir nenhuma outra relação senão a de inimizade,
“ajudar” o sujeito significa, por conseguinte, auxiliá-lo a alcançar uma vitória sobre o
agressor “doença”. A doença aparece a partir dessa ótica de hostilização
necessariamente como uma invasão, e é por si mesmo, compreensível o fato de não
haver com ela nenhuma outra lida senão a lida polêmica, defensiva e agressiva – não uma
lida integrante ou compreensiva. A doença precisa ser pensada como o outro e o
estranho, e esse elemento é tratado pela medicina como isolamento e objetivação, de
maneira em nada diversa da que os órgãos de segurança interna tratam os suspeitos e as
instâncias de interdição moral tratam as pulsões sexuais. A medicina de uma sociedade
como a nossa no fundo pensa o corpo como um risco de subversão. Nele, o risco de
doença faz tique-taque como uma bomba-relógio. É suspeito como o assassino
presuntivamente futuro da pessoa que mora nele. O corpo é meu autor de um atentado.
Se na época das primeiras assepsias, os bacilos e vírus de maneira demonicamente, se
tornaram o símbolo para tudo aquilo que desperta o mal (exatamente como algumas
palavras com carga semântica poderosas – Aids, cisto, tumor, câncer, etc).53 Até um
ponto em que políticos passaram a identificar seus adversários como bacilos (a retórica
fascista, de maneira semelhante à comunista, nos fornece exemplos disso: uma profusão
de bacilos judaicos, marcados por raças estrangeiras, revisionistas, anarquistas,
decompositores, uma contaminação), hoje, na era da segunda assepsia, não é apenas o
“corpo estranho” (o agente patogênico), mas também o próprio corpo que é concebido
como um inimigo presuntivo. Esses temores se reorganizaram com o esmaecimento da
metafísica europeia cristã (especialmente com o diabo). A ideia de imunologia se
apresenta como uma catástrofe da cultura tradicional e de sua moral holística. Só
podemos compreender melhor a construção de imunidade se irmos para categorias
como a medicina e bioquímica que logo se desenvolveram no âmbito jurídico, político,
militar, psicossemânticos e religiosos. A medicina e o militarismo desenvolveram uma
53
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da Moral: Uma Polêmica. São Paulo: Editora Companhia das
Letras, 2008, p. 120. Nietzsche diz que o Weltschmerz (dor do mundo) europeu, o “pessimismo” do século
XIX, é essencialmente resultado de uma mistura de classes absurdamente súbita, ou determinado por uma
emigração equivocada, uma raça chegada a um clima para o qual sua capacidade de adaptação não basta
(como os hindus na índia), ou consequência de velhice e cansaço da raça (pessimismo parisiense de 1850
em diante), ou de uma dieta errada (alcoolismo na Idade Média) ou a degeneração do sangue, malária,
sífilis e semelhantes (depressão alemã após a Guerra dos 30 anos que infectou metade da Alemanha com
doenças ruins, preparando o terreno assim para a servilidade alemã, a mesquinhez alemã).
308
54
SLOTERDIJK, Peter. Crítica da Razão Cínica. 2ª Edição. Tradução: Marco Casanova. São Paulo: Estação
Liberdade, 2012, pp. 606-607.
310
atributo de uma alma é sua imortalidade, mas também com expressões como
indeformável e incorruptível. Por isso se entende os filósofos com a correspondência da
verdade como os primeiros imunólogos do ser porque aletheia (o paradigma ontológico
da verdade como conflito entre latência e ilatência é imediatamente, em Heidegger, um
paradigma político – por isso ele fala no curso sobre Parmênides, que a polis é definida
precisamente pelo conflito. É porque o homem advém na abertura de um fechamento,
que algo como a polis e uma política são possíveis) corresponde a desvelamento,
desocultamento de acordo com uma estrutura profunda, no mesmo que inmunitas, falta
de compromisso (conceito jurídico e político medieval da libertas como liberdade de
deveres, privilégio ou direito especial), falta de enredo nos destinos e tarefas comuns dos
mortais, e por isso são considerados como o bem supremo. Descobrir a verdade significa
captar o fundamento não cotidiano da invulnerabilidade da vida. Ou mesmo na visão das
muralhas como uma proteção anti-niilista. A paz como diz Espinosa, não é a ausência da
guerra, mas uma virtude conseguida pela prática que surge da fortaleza que deve ser
consolidada pela prática da alma pensante.
Esse erro tem sido cada vez mais exposto depois que uma onda de mobilidade
transnacional sem precedentes começou a garantir que os povos e territórios em todos
os lugares qualificassem sua ligação. A tendência para um self multi-local é característica
da modernidade avançada como a tendência para um lugar poliétnico ou
desnacionalizado. O antropólogo cultural indo-americano Arjun Appadurai chamou a
atenção para esse estado de coisas com sua criação conceitual da "etnostopografia",
permitindo-nos examinar questões como a desterritorialização progressiva das conexões
étnicas ou a formação de "comunidades imaginárias" fora das nações-estados e o
compartilhamento imaginário das imagens de formas de vida de outras culturas entre
inúmeros indivíduos.55 A palavra Heimat (pátria) forma parte de um núcleo linguístico
carregado atmosfericamente que constitui algo intraduzível, próprio da territorialidade e
da língua alemã. Assim, aquele que denomina não deveria ver com uma via
especificamente alemã do ser-no-mundo. Todas as línguas das culturas altamente
desenvolvidas são capazes de expressar o conceito de “pátria” com seus próprios meios,
55
APPADURAI, Arjun. Global Ethnoscapes-Notes and Queries for a Transnational Anthropology, em Richard
G. Fox (ed.), Recapturing Anthropology: Working in the Present (Santa Fe: School of American Research
Press), 1991, pp. 191-210.
311
até quando a cor sonora das expressões varia de país em país e de língua em língua. A
razão dessa capacidade comum podemos encontra-la em experiências análogas do
desenvolvimento cultural. Assim, com conceitos como “terra”, “povo” e “mãe pátria”
(pátria-mãe), os povos que na revolução neolítica começaram a cultivar a terra
caracterizavam o lado positivo de seu sedentarismo nas diferentes expressões que davam
ao espaço com ele que se haviam familiarizado, os povos sedentários articulavam sua
simbioses com um solo que, cada vez que os alimentava, era o depositário de seus
mortos. Nas palavras que expressam as vantagens de ter um espaço de residência
próprio, esses povos manifestavam seu patriotismo agrário.
É por isso que a palavra Heimat forma parte de uma reserva de signos cuja época
de validez principal evidentemente havia terminado: isto é, o vocabulário guia da
sociedade agrária, com sua política e sua metafísica. Quem diz pátria ou sobre a pátria
reclama um direito de poder florescer como uma planta de segunda ordem debaixo de
vegetações do solo que habita. O sujeito que se define por sua referência a uma pátria é
como um animal que havia feito seu o privilégio das plantas de fazer raízes e de enraizar-
se. Fica claro que esse animal com raízes representam uma imaginária forma híbrida que,
debaixo de condições históricas distintas, deveria pagar o preço pela sua impossibilidade
biológica. O início dessa mudança histórica decisiva marcou as grandes doutrinas da
Idade Média Asiática e Europeia, nas quais o assento da existência humana passou do
enraizamento nacional para o desenraizamento e dos usos e costumes autóctones da
ética mundial. Desde então, as raízes e o lugar de residência se encontravam embaixo de
uma reserva espiritual (numa situação agrária, residência, moradia e local de trabalho
coincidiam) já que uma ética espiritual mais elevada haveria de se desenvolver contra
todo tipo de etnocentrismo, racismo e racinismo (do francês racine: raíz). Nesse sentido,
harmonizam o budismo, que criava uma cena de um ascetismo do abandono do lugar, o
estoicismo, que deseja promover um exílio global da alma e o cristianismo, que propõe
uma ética da peregrinação. É fácil compreender que essas elevadas doutrinas
permaneçam sobre um nível quando são apresentadas aos enraizados. O destino do
sujeito definido por sua relação com uma pátria solo haveria de cumprir-se até o mundo
moderno que mediante a revolução anti-agrária, conduziu a “cidadanização” e a
mobilização das formas de vida. O fim da civilização sedentária inaugura uma época de
crise permanente do conceito de pátria. Como foi que essa afetação, esta transformação
312
na consciência do homem atual dos países mobilizados modernos aconteceu no que diz
respeito às suas condições de residência? É fato que o mundo moderno havia criado uma
nova política do espaço e uma dinâmica particular enquanto falamos das formas de vida
e sua residência. Na nossa época, todas as perguntas sobre identidades, identidades
sociais e pessoal se apresentam desde o ponto de vista de como, em macromundo cheios
de movimento e rasgos, pode ser possível estabelecer formas viáveis de residência, ou
de estar-consigo-e-com-os-seus Filosoficamente, residir significa formar parte de um
sistema imunológico espacial ou, nas palavras de Hermann Schmitz, é a cultura dos
sentimentos em um espaço de desassossego.
O nervosismo globalizador atual reflete o fato de que, ademais dos Estados
nacionais, também as que até agora eram as melhores condições políticas possíveis de
residência, digamos que, a sala e o salão de conferências dos povos democráticos, se
tornaram intercambiáveis e nessa sala nacional, aqui e ali, começa a entrar uma corrente
muito desagradável. A conquista cultural do Estado nacional moderno foi, como pôde ser
visto, um fazer dado, uma espécie de calor de lugar a maioria de seus habitantes, essa
sorte de estrutura imunológica, as vezes real e imaginária que, no sentido mais favorável
do término, pôde ser vivida como ponto de convergência entre espaço e si-mesmo, como
uma identidade regional. Essa proeza foi realizada de forma mais impressionante onde o
Estado de poder logrou ser controlado de melhor maneira e se transformou em um
Estado de benfeitoria (benfeitor). Porém, justamente esse efeito de calor de lugar
político-cultural é o que se vê afetado pela globalização – com a consequência de que
incontáveis habitantes dos Estados nacionais modernos não se sentem estar consigo
mesmos em sua casa, e estando consigo mesmos tampouco se sentem em casa. A
construção imunológica da identidade político-étnica sofreu um cambaleio. Sobretudo,
pode-se apreciar cada vez mais claramente o que o vínculo entre espaço e si-mesmo não
é tão estável quando as condições mudam, se modificam como promulgou o folclore
político do territorialismo, desde as culturas agrícolas arcaicas e antigas até o Estado
nacional moderno. Quando a interdependência entre espaço e si-mesmo se afloram ou
desaparecem, podem aparecer duas situações extremas nas quais a estrutura do campo
social pode registrar-se com uma exatidão quase experimental, a saber: a de um si-
mesmo sem espaço e de um espaço sem si-mesmo. Todas as sociedade realmente
existentes deviam buscar até agora seu modus vivendi entre esses dois polos, seja de
313
forma ideal, o mais perto possível de ambos os extremos, e é fácil de compreender que,
também no futuro, toda a comunidade política real caminhará e terá que dar uma
resposta ao duplo imperativo da determinação pelo espaço e a determinação pelo si-
mesmo. Não é sem razão que Heinrich Heine havia dito que o povo judeu é um povo sem
“fundamento”. Essa perspicaz observação põe descoberto um fato de validez geral
poucas vezes notado entre os contemporâneos, pois os grupos nômades ou
desterritorializados não constituem sua imunidade simbólica e sua coerência étnica em
um solo, talvez o façam de uma forma secundária em relação a um solo sustentador, mas
sim que suas intercomunicações fundem-se diretamente como um “recipiente
autógeno”, pois significa dizer o mesmo que, os participantes contém a si mesmos e
mantem “em forma” o grupo se destaca através de paisagens externas. Nos recipientes
autógenos, ao igual que em comunidades fortes, se experimenta uma forma direta a
prioridade que a autorreferência tem sobre a territorialidade. Um povo sem-terra não
pode ser vítima do sofisma que enganou a todos os povos sedentários ao largo de uma
vasta história, isto é: que a terra é o recipiente do povo e o próprio solo o princípio do
qual deriva o sentido de sua vida e de sua identidade. Essa foi uma miragem que durou
por diversos tempos e anos. Essa falácia territorial – a falsa conexão entre o território e
seu proprietário, é até hoje um dos legados mais efetivos e problemáticos da era
sedentária, já que nela se afirma o melhor reflexo básico de todo uso aparentemente
legítimo de violência, a assim chamada “defesa da pátria”. Esta falácia repousa sobre a
obsessiva equiparação entre espaço e si-mesmo, a falácia original de uma razão
territorializada. Esse erro fatal foi posto cada vez mais ao descobrimento desde uma onda
de mobilidade transnacional e civilizacional sem precedentes na história, relativizou a
ligação entre povos e territórios. A tendência para um si-mesmo mutilocal é a
característica da Modernidade avançada. Do mesmo modo que a tendência ao espaço
étnico plural, multifocal, multicultural ou “desnacional”. Quando o discurso da
Modernidade fala da pátria se refere a um ponto de partido de movimento até o espaço
terreno aberto e não a uma claustrofobia regional inelutável de antes. Foi assim que o
antropólogo indo-americano Arjun Appadurai chamou até pouco tempo a atenção sobre
essas coisas ao criar o que se entende por "etnoescape", que permite compreender
processos como a "desespacialização" progressiva (desterritorialização) com rasgos
étnicos, a constituição de "comunidades imaginarias" fora de toda referência ao nacional
314
56
CAMPBELL, Timothy e Sitze, Adam. Biopolitics: A Reader. Duke University Press, 2013. Ver capítulo 15:
SLOTERDIJK, Peter. The Immunological Transformation on The Way to Thin-Walled “Societies”, pp. 310-316.
316
diferentemente dos românticos, que o homem é um ser que afirma sua dignidade,
confirmando assim que é um ser de razão, ou seja, um ser que não se dissolve na
natureza. Isso pode ser observado na chamada Crítica da Faculdade de Julgar, cujo título
é Da Estimação das Coisas na Natureza, Necessária à Ideia do Sublime, §26 e Da Natureza
Como Poder, § 28.
Ele considerava como sentido do sublime a capacidade da alma humana de, a
partir do desmedido, do mais exterior, do mais estranho, regressar a si própria. O sublime
para ele é a consciência humana da própria dignidade em residência contra as mais totais
tentativas de se render ao avassalador. Por isso, que segundo Kant, os corpos nus e suas
representações necessitariam de uma cobertura, uma folha de parra, para poupar o
sujeito decente a sua lembrança do instrumento pelo qual e com o qual, sem o
consultarem e de forma nada burguesa foi fabricado. A culpa e a vergonha fazem os
sujeitos virarem contra si mesmos como objetos de negação (autonegação). Uma cena
que encerra, talvez uma anterior, uma antiga autodeterminação. Determinações são não
apenas operações lógicas, mas paixões, marcas, tatuagens, e “programações” primeira
da alma. Com isso, a subjetividade determina uma anexação da vergonha em si enquanto
ação própria. A diferença antropológica entre o conceito e a realidade do ser possuidor
de razão tem seus precursores na diferença teológica entre o homem como imago Dei e
o “pecador” dissidente de Deus.
A história do homem é a história da autonomia das coisas, não do homem. O
sonho da autonomia como prerrogativa humana de fato se realiza, mas como maldição,
uma vez que só se efetiva de fato no que rodeia o homem e o que é criado por ele. A
verdade é que o homem está contaminado ao descontrole, pois, ele próprio por ser
invenção de Deus, entrou em curto circuito. Deus então, se viu traído e desligado deste;
ou seja, viu sua criatura se rebelar. É da ordem divina essa situação do homem, de ser o
criador do que não pode, depois, colocar freios e amarras. O próprio homem, quando
inventou a si mesmo, por meio do pecado original, ou seja, o ato de comer da árvore do
conhecimento, ganhou o descontrole inscrito em seu próprio corpo. A obsolescência
programada antes de ser programada para produtos foi programada pelo Criador: com o
pecado original. Adão e Eva passaram a não ter mais a vida eterna.57
57
Cf. Die Gnosis. III Volume. Der Manichäismus. Edição de Alexander Böhlig. Zurique e Munique, 1980, pp.
107-108. O luminoso Jesus aproximou-se do ingênuo Adão e despertou-o do sonho mortal para o libertar
320
Adão pediu companhia, e Deus lhe deu Eva. Era companhia, não era para sexo.
Ao desobedecer a Deus e comerem da árvore do conhecimento, o casal do Paraíso logo
se sentiu nu. Estavam envergonhados. Tomaram posse do conhecimento do mal e do
bem. Tornaram-se morais. Até aí, é Bíblia. Depois disso, é Agostinho. A interpretação de
Agostinho põe a libido na jogada. No mundo medieval, o conceito de liberdade adquire
uma carga semântica onde os teólogos precisam levar em conta o livre-arbítrio, como
liberdade de vontade, para manifestar o privilégio metafísico do ser humano criado à
imagem e semelhança de Deus, mas para algo mais. Para fornecer uma explicação para
a corrupção da natureza humana. Assim, a liberdade nos moldes de Agostinho é sempre
uma liberdade mal aproveitada, uma promiscuidade para o pecado e a rebelião contra o
Bem. O homem seria livre enquanto pode optar pelo mal. Conhecer o bem e o mal é não
mais se reproduzir pelo despejo do sêmen com as mãos, mas por meio de manifestações
involuntárias das partes do corpo, pênis e vagina. E isso já é o próprio castigo pela
desobediência. Pois o homem e a mulher passam a sentir no corpo a desobediência dos
membros como Deus sentiu a desobediência do casal. E o homem é fadado a se ver vítima
da libido, que o coloca a todo momento acreditando que o prazer momentâneo o sexo é
a paz de Deus. Mas não é, pois, uma vez satisfeita, a libido volta a cobrar do homem mais
copulação. E eis que surge o vício, a dependência do homem numa busca desgraçada de
mais e mais prazer. A vida do vício que não cessa é, sem dúvida, uma desgraça. Assim,
em certo sentido, uma das marcas da dependência de drogas vem da sua procedência
por uma metafísica falhada. Todo o caso de dependência contém um testemunho sobre
a dificuldade de construção do mundo nos tempos modernos. Agostinho sexualizou o
pecado original. O homem é uma espécie de “Deus da reificação”. Tudo que toca
transforma em coisa. Isso porque o homem aprendeu com a pedra. Sua mão, na visão de
Sloterdijk, se encaixou bem na pedra e logo ele conseguiu excluir todo o seu corpo do
âmbito do seu arredor. Passou a colocar entre o resto do mundo e o seu corpo a pedra.
Bateu, cortou, lixou com a pedra. Depois lançou a pedra. O lançamento é sempre para o
dos muitos espíritos [...] Assim se passou com Adão, pois o amigo encontrou-o mergulhado num sono
profundo. Acordou-o, deu-lhe movimento, animou-o, e expulsou dele o espírito confuso [...] Então, Adão
sentiu-se a si mesmo e reconheceu quem ele era. E mostrou [...] que era devorada por aqueles que
devoraram, absorvida por aqueles que absorvem [...] Pô-lo de pé e deu-lhe a provar da árvore da vida.
Depois disso, começou a ver; e, então, Adão chorou e gritou em voz alta como um leão a rugir. Puxou pelos
cabelos, bateu contra o peito e disse: “Maldito, maldito, seja quem formou o meu corpo e quem encarcerou
a minha alma [...].
321
aberto, para o fora, para o mundo não conhecido. E nisso, acertou a caça com a pedra.
“Os limites de meu mundo são os limites de meus lançamentos”. Lançamentos de pedras,
escreveu Sloterdijk ao se referir a uma frase de Wittgenstein, “os limites de meu mundo
são os limites da linguagem”. Como escreve Wittgenstein: “imaginar uma linguagem é
imaginar uma forma de vida”. De fato, Sloterdijk vê as frases como sofisticações de
lançamento. Se lanço e acerto o que quero, tenho algo que será uma frase com valor de
verdade. Toda a palavra humana é um tiro no espaço em aberto, já que o excesso
campeava em qualquer lado no comportamento humano, preconizavam a medida e a
moderação. Esse processo de geração do homem o trouxe para “o aberto” de um modo
a se tornar o deus da coisificação, o ser do império reificado. A reificação passa, portanto,
pelo pensamento, um certo design. Tudo que tocamos vira instrumento, e logo,
banalizamos tudo que tocamos. Tudo vira uma cultura do descarte e da sucata. Nosso
próprio corpo passa por isso e passará ainda mais com as antropotécnicas. Tudo que o
homem toca vira ouro. Igual o Rei Midas, mas com o preço de ser algo morto, o metal, o
sem vida.
322
que andam por aí no seu próprio cadáver com a horrível pretensão de estar vivo. A vida,
no fim, está à mercê do tempo que tudo apaga e que tudo transforma. Não só se vê
morrer continuamente, como tem também, desde já, de se imaginar como aquele que
terá morrido. O indivíduo como aquele que é vítima de Chronos, não só
retrospectivamente, mas também de antemão. Quanta fome e voracidade Cronos possui.
Aquele que ganha temporalidade ou aquele que consegue imaginar o decurso do tempo
aplicado à sua própria imagem e existência vê a sua própria carne se putrefar, eram de
antemão expropriados por Chronos. O mesmo pôde ser visto pelo abalo do efêmero na
lenda budista da primeira saída de Gautama para fora do palácio de seu pai, o jovem vê
com seus olhos, pela primeira vez, a natureza sofredora da vida submissa ao tempo na
forma do doente, do mendigo e do morto. Cioran é uma testemunha dessa sensibilidade
de nossa época com seu texto Paleontologia, sentiu o arrepio na carne, de um metafísico
não redimido, mas também menciona o cinismo – demora sarcástica da consciência junto
do nulo e efêmero. A simbologia dos ossos ganha na metafísica sua alternativa ao que é
efêmero, através da carne, a substância óssea do existente se mantém como resíduo
superior ao tempo. No princípio, era o fogo o encarregado de fazer o trabalho da alquimia
metafísica. Aquilo que passou pelo fogo levou a cabo essa última análise. Aquilo que
passou por ele e que subsiste é a essência imperecível. Dos corpos vivos nada perdura,
no fim, só temos cinzas e espírito, pó, mineral e luz, velas e túmulo. É dessa matéria que
é feita a eternidade. A força do tempo penetra até mesmo seus destilados finais. A
metafísica sempre procurou entender como decurso final irreversivelmente para a
morte. Sua pílula em forma de antídoto para a fugacidade deu-se como resposta a
eternidade, a vitória sobre a morte enquanto imortalidade. A maioria dos elementos da
Modernidade ainda está impregnada por histórias que englobam a insatisfação humana
com o mundo caduco à mercê do tempo. Do osso para a pedra. Foi em construções de
obras de pedra que a alternativa metafísica se exprimiu mais gigantescamente.
Construções bem altas, menires, obeliscos, pirâmides, templos, pórticos, torres, colunas,
menires, tornam materialmente presentes as ideias de lei – de duração e de perenidade
divina. Nessas arquiteturas, a metafísica se ilustra como tese, segundo a qual a ferida do
tempo só se cura por meio da pedra eterna. É nele que o elemento físico adquire
conteúdo metafísico. Esse exercício metafísico seria trabalhado no sentido de uma
“mineralização” da alma. A metafísica antiga não suporta o que é movido, fervilhante,
324
cíclico. Por isso, em linguagem filosófica, identifica-se Deus como motor imóvel. Como
homens querem se tornar semelhantes a ele; ou de restaurar uma semelhança perdida.
O remédio da fobia metafísica do movimento seria a forma da estática de liberdade à
existência da sua mobilidade que leva em direção à morte. Por isso, só se pode vencer a
miséria da vida juntamente com sua mobilidade. Assistimos a uma deseternização e a
uma mobilização tão penetrantes que parece não estarmos aptos para pensar conceitos
opostos hoje em dia aos conceitos dominantes de movimentos e de acontecimentos –
“Tudo que era sólido se desmancha no ar”. Em algumas traduções: “Tudo o que era sólido
e permanente se volatiliza”. Nesta fórmula, Marx manifesta como um pensador
inteiramente da mobilização em ação, que não em vão forneceu a meio mundo
racionalizações para fazer história. Um culto ao movimento foi instituído cobrindo o
pensamento e a ação dos modernos. Tudo que está parado não tem possibilidade de
sucesso, de vitória, de vida. Só o movimento é capaz de atividade.
A expressão “condição humana” é ela mesma, parte de uma antropologia
católica, porque a palavra “condição” (conditio) não significa neste contexto fitness, mas
algo no sentido de fragilidade e a condição humana ou ainda se pensarmos que desde o
século XVII a “condição humana” mudou drasticamente no sentido de que os homens
europeus daquela época estavam marcados pela experiência de uma guerra que não
começou em sua própria vida e, provavelmente, dure mais tempo que sua vida, significa:
o mundo mesmo é que se transforma em um cenário de guerra. Se transforma em um
“Theatrum belli” e o indivíduo já não pode estar seguro de morrer de uma morte natural.
Já não é um peregrino que caminha para sua tumba, mas que provavelmente um
indivíduo que morrerá de uma morte não natural em um campo de batalha, e as pessoas
que morrem em campos de batalhas se chamam nas línguas europeias pelos generais de
“os caídos” ou “caídos”. No fundo este “phatos” dos caídos vem das tradições romanas
de arenas. A arena romana voltou, assim como um novo teatro da crueldade. Uma nova
arena geral e virtual da sociedade midiática de entretenimento. Uma metarena
totalitária.
Algo que vai muito mais além da sociedade do espetáculo de Guy Debord e que
serve para dirigir o ressentimento das massas. O próprio Sloterdijk fala que “ao cair um
dia em descrédito, fui um desses cristãos primitivos com problemas no momento da
ressurreição porque havia sido devorado pelos leões e excretado por seus intestinos”.
325
Recuperar a forma original nessas condições é muito difícil. Os primeiros romanos foram
uma cultura de massas e entretenimento, eles foram os primeiros (a filosofia romana) a
estabelecer uma diferença teórica entre “estar de pé” (em espanhol estar parado) e
“estar deitado” (em espanhol acostado), porque não é de se estranhar que depois da luta
de gladiadores encontramos em toda parte, vemos seres humanos deitados ou caídos no
chão. São os que caíram nas batalhas, enquanto só um dos dois seguem de pé depois da
batalha. E deles diz Sêneca: “este será o filósofo que permanece em pé quando todo
mundo caiu”. Porém, logo generaliza a situação da arena e a converte em metáfora da
vida humana em geral, ou seja, a vida é uma luta em uma arena, o mesmo que dizer que
nascemos sem missão. A palavra “missão” significa neste contexto, incluído antes da era
cristã, o poder sair da batalha, o que na arena romana isto significava o dedo polegar para
cima ou para baixo. Mas “sine missione nascimur” poderia ser que desde que nascemos
entre vida e morte, não nos podem deixar sair da arena sem que todos nós lutemos até
o final. A ideia de “sustancia”, se chama sustancia na filosofia latina, vem “do que está de
pé até o final” (no fundo, vem da ideia de arena romana).
Vic (tor): Imago et Victoria convertuntur. Mosaico de solo de uma vila em Tusculum
(século III D.C)
estabelecido. Já havia passado por onde estava o assassino, que por sua vez, estava em
uma condição onde não poderia disparar. Pouco depois, se escutou uma explosão, por
isso, o motorista condutor deu a volta e passou por uma segunda vez ao lado do futuro
assassino, mas desta vez com o sucessor do trono e sua esposa diretamente na frente da
pistola. O assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do Império Austro-
Húngaro junto com o de sua esposa, a duquesa Sophie. Moral da história: o erro faz a
história. Um chofer austríaco tem culpa da Primeira Guerra Mundial. Todo o depois é
uma cadeia causal. Quatro semanas depois, por uma diplomacia tonta houve uma
escalada. No princípio, ninguém acreditava na guerra. O imperador austríaco, primeiro
que ele foi de férias para Bad Ischel como todos os anos, durante quatro semanas, e nada
pensou na possibilidade da guerra. O imperador alemão, com seu iate o Hohenzollern,
um barco de 110 metros, se foi por três semanas aos fiordes noruegueses. E da guerra
mundial...nada? Dois dias antes da declaração de guerra, o imperador Guilherme e o czar
Nicolás trocaram mensagens: “Querido Willy” e “Querido Niki”, não havia uma grande
causalidade que obrigaria a aquilo. Em resumo, eram pequenas bobagens, pequenos
erros, em nenhuma parte havia uma coerção real.
não está na exposição de Pound: Poe não só recebe as ondas artísticas, os estímulos
estéticos, metodológicos e procedimentais que chegam de todos os cantos (e mesmo do
futuro), ele não só recebe, ele também transmite, ou seja, capta, processa, transforma e
retransmite (para o outro lado do oceano, para Baudelaire e mais tarde Paul Valéry, o
que não deixa de ressoar na própria trajetória de Pound e também de Eliot). Poe também
captou o frenesi dos balões; a inovação tecnológica, a liberdade, a possibilidade de
transmissão, deslocamento e travessia (como Julian Barnes com relação ao canal). Em 13
de abril de 1844, Poe publica uma história-notícia-relato no jornal The Sun, de Nova York.
Tratava da travessia oceânica feita por Monck Mason em um balão de gás em 75 horas,
uma ficção tomada por verdade, que mais tarde levou o título de "The Balloon-Hoax". A
notícia da travessia se espalhou e logo uma multidão cercava a sede do jornal procurando
por exemplares. Uma retratação foi publicada no dia seguinte. Mas a ideia já estava no
ar. Consta que essa ficção-científica primitiva de Poe influenciou diretamente o trabalho
de Jules Verne, confesso admirador de Poe. Ele não só escreveu Cinq semaines en ballon
e Le tour du monde en quatre-vingts jours, mas também um ensaio intitulado Edgar Poe
et ses oeuvres de 1864, trabalho que só foi possível por conta das traduções feitas por
Baudelaire. Mas a história de Poe sobre o balão, em 1844, tem raízes em outro conto seu,
de 1835. O "The Unparalleled Adventure of One Hans Pfaall", a história de um homem
que chega à lua viajando de balão. Essa mescla do balão e da lua, e mais o tom soturno
que Poe frequentemente dá a suas histórias, evoca o desenho de Odilon Redon, usado
por McEwan na capa de Enduring Love, referido por Barnes em Levels of life, e utilizado
também como imagem de capa em uma das coletâneas de histórias de Poe.
333
O olho flutua como um estranho globo no infinito. Odilon Redon. Litografia. Ilustração para
Edgar Allan Poe (1882). O olho voador causa a impressão de balão junto com a cabeça de Poe
sendo segura por cabos.
A fascinação pelo voo e pelos balões entra pelo século XX e atinge, entre outros,
Kafka ("Os aeroplanos em Brescia", conto publicado em 1909) e Robert Walser. Walser
publica em 1913 o conto Ballonfahrt, "Viagem de balão". Num primeiro momento, a
viagem de balão e o deslocamento aéreo não combinam com aquilo que Walser mostrava
em sua vida e em sua poética - se há movimentação em Walser, ela é quase que
exclusivamente pedestre, no rastro de Rousseau e dos andarilhos medievais. Em um dos
ensaios de seu livro Logis in einem Landhaus - A Place in the Country de 1998, Sebald
ressalta justamente esse aparente paradoxo, argumentando que é nesse momento de
exceção que Walser mais se revela: "o único momento em que vejo o viajante Robert
Walser livre do peso de sua consciência é nessa viagem de balão". Na história de Walser,
três pessoas estão no balão: "o capitão, um cavalheiro e uma jovem moça". O balão é
334
uma "estranha casa", abaixo deles está "o abismo arredondado, pálido, escuro", as casas
parecem brinquedos inocentes, e as florestas parecem cantar canções obscuras e
antiquíssimas. O cavalheiro, que talvez seja uma versão de Walser, usa, por um capricho,
um chapéu de plumas dos tempos da cavalaria medieval. A viagem dura a noite inteira e
mesmo assim não termina. Começa no entardecer, atravessa a noite, encontra o nascer
do sol e segue. Certas passagens dão um tom quase ritualístico, como o de um pacto com
a morte e com o vazio.58 Kelvin Falcão Klein diz que o próprio Odilon Redon, o autor do
desenho que mistura o olho ao balão, era também um leitor de Poe, tão dedicado quanto
Baudelaire e Valéry. Em 1882, Redon lança um pequeno volume pela editora G.
Fischbecher, de Paris, contendo 6 gravuras e intitulado A Edgar Poe. O volume se abre
justamente com a imagem do balão-olho, L'oeil, comme un ballon bizarre se dirige vers
l'infini. É claro que Redon não ilustra as histórias de Poe, o que parece estar em questão
é uma espécie de transposição, ou ainda, um tipo de convivência subjetiva que extrapola
a lógica convencional do tempo e do espaço. A prática artística de Redon é articulada em
contato direto com a literatura, não apenas Poe e Baudelaire, mas sobretudo o Flaubert
de La Tentation de saint Antoine de 1874, numa nota relacionada, é possível relembrar
Julian Barnes, que foi quem primeiro falou de Redon, outro leitor de Flaubert que não
procura a ilustração, e sim, a construção criativa de um espaço de convivência com aquilo
que não existe mais. Dario Gamboni, professor de história da arte na Universidade de
Genebra, dedicou um livro inteiro à relação de Redon com a literatura chamado La Plume
et le pinceau, de 1989 (mais uma vez, a ênfase de Gamboni não está na possibilidade de
ilustração ou adaptação entre texto e imagem, e sim, no espaço de convivência possível
em fins do século XIX e início do XX no que diz respeito às várias formas artísticas). Tom
Stoppard, McEwan e Julian Barnes usam uma mesma referência (balões), ainda que o uso
feito por McEwan seja bastante indireto, limitando-se à ilustração da capa da primeira
edição de Enduring Love. Em Altos Voos e Quedas Livres (versão em português de 2014),
Barnes faz um comentário à imagem em questão, de autoria de Odilon Redon. “Mas o
58
WALSER, Robert. Viagem de Balão. Absolutamente Nada e Outras Histórias. Tradução: Sergio Tellaroli.
São Paulo: Editora 34, 2014, pp. 22-24. Como a terra é grande e desconhecida, pensa o cavalheiro com o
chapéu de plumas, o que parece indicar que, para Walser, a viagem de balão é uma espécie de estímulo e
confirmação de sua tendência deambulatória anterior e primordial, ainda há muito terreno a ser
percorrido. E o final aberto: "o voo segue sempre adiante, o sol magnífico enfim surge, e, atraído por esse
astro orgulhoso, o balão dispara rumo a alturas mágicas e atordoantes. A moça solta um grito de medo. Os
homens riem”.
335
artista que fez a imagem mais atraente de balonismo foi Odilon Redon, e ele divergiu”.
Redon tinha visto O Gigante (o balão de Nadar) voando e também o "Grande Balão
Cativo" de Henri Giffard, que brilhou nas Exposições de Paris de 1867 e 1878. Nessa
segunda data, ele fez um desenho a carvão chamado Balão Olho. À primeira vista, ele
parece apenas um truque visual: a esfera do balão e a esfera do olho estão fundidas
formando uma só, enquanto uma grande órbita paira sobre uma paisagem cinzenta. O
balão olho está com a pálpebra aberta, de modo que os cílios formam uma franja ao redor
do topo do dossel. Pendurado no balão há um cesto onde uma figura hemisférica está
agachada: a parte de cima de uma cabeça humana. Mas o tom da imagem é novo e
sinistro. Não poderíamos estar mais distantes dos sentidos figurados normalmente
utilizados para o balonismo: liberdade, exaltação espiritual, progresso humano. O olho
eternamente aberto de Redon é profundamente perturbador. O olho no céu, a câmera
de segurança de Deus. E aquela cabeça humana nos convida a concluir que a colonização
do espaço não purifica os colonizadores, o que aconteceu foi apenas que nós levamos
nossa imoralidade para um outro lugar. O balão aparece na ficção de três autores
britânicos: Julian Barnes, Ian McEwan e Tom Stoppard. Em Levels of Life, traduzido no
Brasil como Altos Voos e Quedas Livres, Barnes usa o tema do voo e do balonismo como
estratégia para lidar com o luto pela morte da esposa, o luto como uma situação extrema
que o faz ver o mundo de uma perspectiva antes inimaginável. É isso que ele procura
também em três pioneiros do balonismo: Felix Nadar, Sarah Bernhardt e o menos
conhecido coronel Fred Burnaby. A abertura de Levels of Life é significativa: "Você liga
duas coisas que nunca foram ligadas antes. E o mundo é transformado". Luto e
balonismo, por exemplo. No caso de Barnes, os temas do balonismo e da ligação ressoam
um pouco mais, numa dimensão bastante material e geográfica. A transposição do Canal
da Mancha, por exemplo, atividade aparentemente simples, mas carregada de drama
histórico (Burnaby, inglês, é o único dos três pioneiros que atravessa o canal – English
Channel para ele e para Barnes). Não foi sempre esse um dos desejos de Barnes? Mostrar
que a travessia é possível? O exemplo imediato é O Papagaio de Flaubert, mas existem
outros. Em Lord Malquist and Mr. Moon, seu único romance, publicado em 1966,
Stoppard arma uma trama tão bizarra que é impossível de ser resumida. Nota-se que no
romance Stoppard faz uso intenso de sua condição "extraterritorial", nem tcheco, nem
súdito britânico, mas intensamente ambos, pois se os cenários e os personagens de Lord
336
Malquist são londrinos (em seus gestos e termos), o encadeamento absurdo de fatos e
ações, além do permanente tom entre onírico e debochado, nos coloca diretamente no
universo de Hrabal e Bruno Schulz. Mr. Moon, seu personagem, coloca uma bomba
caseira dentro de um balão que sobrevoa Trafalgar Square. Nele está escrito GOD SAVE
THE QUEEN, e, quando explode, a multidão vai ao delírio. Mr. Moon passa o romance
esperando a oportunidade para detonar sua bomba, que leva no bolso, como esforço de
denúncia da "modern life". Eis uma constelação que leva aos terroristas/anarquistas de
Dostoiévski e Conrad vindo da Suíça, ao Caminho de Ida de Piglia, ao belíssimo romance
de Aleksandar Hemon, O Projeto Lazarus de 2008.
Com a “sociedade” legaliformizada, teremos uma constante optimização de
rotinas que são movidas por dinheiro, arcabouços político-legais e em um “estado de
mundo” (Hegel) onde a mudança dos contextos de seriedade e proporções de peso
existenciais se fazem presente. Um certo tipo de condição ontológica levitada ainda não
foi muito bem encontrado pela “sociedade”. A descarga alcança todas as coisas, seja
linguagem, condições materiais ou estado de coisas. Seus estados de ânimos agora que
foram liberados da incerteza na sua saída do universo da pobreza são também
importantes porque eles serão fundamentais para a abertura de um caminho ao alívio da
penúria. A condução ao Estado de Direito dá uma efervescência de modos de existência
mais ligeiros, livres, frívolos e efêmeros. O significado da ambição dos modernos em se
instalarem no espaço aéreo.
Sloterdijk (2006, p. 542):
como um ato de vir-ao-mundo, Sloterdijk acredita o ser humano como criatura fracassou
em seu ser-animal (Tiersein) e em seu permanecer-animal (Tierbleiben). Ao fracassar
nesse sentido, esse ser indeterminado tomba para fora de seu ambiente e com isso ganha
o mundo no sentido ontológico.
Sloterdijk (2002, pp. 102-103):
Se “está” no aberto, em primeiro lugar, por nele se estar inseguro. O aberto dá-
se a conhecer pelo fato de nele se “existir”. O aberto, seria a tensão ou o campo de forças
que se constrói em torno da excêntrica “posicionalidade humana”. Seria no limite, a
percepção do êxtase existencial enquanto perplexidade inata. É nesse campo de força
que está nosso lar, aquilo que na tradição clássica se chama poiese. Um vestígio da saída
natal para a presença. Esse vir-ao-mundo extático e essa “outorga” para o ser estão
postas desde sua constituição. Se o homem está-no-mundo, é porque toma parte de um
movimento cinético que o traz ao mundo e o abandona ao mundo (é jogado). Esse êxodo
transacional geraria apenas animais psicóticos se, com a chegada ao mundo, não se
efetuasse ao mesmo tempo um movimento de entrada naquilo que Heidegger chama de
“casa do ser”. Entraria aí, o elemento das linguagens tradicionais do gênero humano que
possibilitaram a capacidade de ser vivido o êxtase do estar-no-mundo, ao mostrar aos
339
homens como esse estar no mundo pode ser ao mesmo tempo experimentado como
estar-consigo-mesmo. Assim, a clareira é um acontecimento de espacialidade e
historicidade vibrátil nas fronteiras entre as histórias da natureza e da cultura, e ao
chegar-ao mundo humano toma desde cedo a forma e os traços de um chegar-à-
linguagem. Entretanto, a história da clareira não pode ser tomada e desenvolvida apenas
como uma narrativa de chegada do vir-ao-mundo, nem no estar-no-mundo e nem da
chegada dos seres humanos às casas da linguagem.
No momento em que os humanos falantes começam a conviverem em grupos e
juntos, se ligam não só às casas da linguagem, mas também a casas construídas, eles
ingressam em um caminho de um campo de força do modo de vida sedentário. Daí em
diante eles estão não apenas resguardados por sua linguagem, mas também
domesticados por suas habitações (solidariedade, educação pedagógica, pastor-ovelha-
rebanho). Justamente o homem é chamado pelo próprio ser para pastorá-lo (escolhido
para sua guarda). Por isso, homens possuem a linguagem (o buraco no dasein), não como
algo somente para entender-se e domesticar-se mutuamente. Tanto a abertura da
clareira quanto a humanização em geral, possuem algo a ver com a domesticação e, por
consequência, com a intimidade doméstica do Homo sapiens. O ser humano entra aí, e
passa a ser incluído (concebido) como a clareira do ser – em uma domesticação e
estabelecimento de amizade. Seres humanos como pastores e vizinhos do ser, e a
linguagem como a casa do ser, isso faz com que o homem se vincule ao ser em uma
correspondência radical (restrição e confinamento), o pastor como sempre nas
proximidades ou na vizinhança da casa, um tipo de servidão. A humanização foi um
acontecimento espontâneo de autocriação. O que fica como centro da questão é que os
homens passaram a ser criaturas que surgiram de uma história de mimos, de excessos,
de excedentes. O homem é por excelência, um animal que vai para lá da reação, uma
expedição. Ao criar a arte é sobre-reagir, pensar é sobre-reagir, casar-se é sobre-reagir.
Todas as atividades humanas são excessos, uma tendência para sair dos eixos, para o
excesso. Nesse sentido, homens podem ser intitulados como “animais domésticos”
(Haustiere). Viver em casas (Wohmen) conduz para situações de mimo (Verwöhnungen).
A monstruosidade do homem e da improbabilidade das formas de vida do sapiens
precisou ser compensada com esforços retirados de si mesmos e encaminhados para a
formação do homem. Não é sem razão que as culturas avançadas travaram dilemas
340
adaptado, mas como o mais estético com os rostos mais charmosos. Não se é
inconsciente quando alguém se casa com uma mulher bonita. A preferência pela beleza
nos assuntos eróticos não é inconsciente – é a própria consciência. Como Platão disse em
O Banquete, é a vontade de gerar beleza. É o ato mais consciente e mais razoável do ser
humano. Então o eugenismo não é fascista. Nunca houve um eugenismo fascista. O que
houve foi um extermínio racista. Essa vontade de matar nunca teve a menor relação com
o conceito de eugenia concebido como um meio de refletir sobre as melhores condições
em que a próxima geração será criada. Os nazistas aproveitaram alguns pretextos
pseudocientíficos para eliminar pessoas doentes. Isso não tem nada a ver com eugenia.
Foi um abuso total de linguagem para chamar isso.
O tema da ontologia fundamental heideggeriana, critica por sua parte em um
nível conceitual extremo a mentira “sujeito” característica da filosofia europeia
dominante. O eu, não é o senhor do mundo, mas vive no mundo sob o sinal do caráter
de jogado. Em todos os casos, fazemos “projetos”, mas mesmo esses projetos, por sua
vez, são “projetos jogados”, de tal modo que vige primariamente uma estrutura
ontológica passiva. Diga-se de passagem, o Dadaísmo anteciparia essa noção ontológica
de Heidegger. Basta vermos o manifesto Dadaísta, panfleto de 1918, ao dizer que “Ser
dadaísta significa deixar-se jogar pelas coisas, ser contra toda e qualquer, formação de
sedimentos, sentar-se por um momento em uma cadeira significa colocar a vida em
perigo...”.
Os europeus nessa época acreditavam que não haveria nenhum iceberg. Nessa
época o que se queria eram “ateístas” com respeito à icebergs que flutuavam na região
na qual também navegavam os barcos e navios europeus, eles pensavam que tinham
saído da era da colisão com possíveis icebergs. Uma cultura muito distinta seria vista
pouco após a da prudência e cautela. Se fala na política e em muitos outros contextos –
como no Direito Ambiental do princípio da precaução – um princípio da obrigação de
precaução. Assim, nasceu toda uma ciência de futurologia e de prevenção de riscos para
a previsão de anos futuros e décadas à frente. Uma ideia de que é possível viver
contingências e experimentar uma vida o mais leve e suave possível e o mais pouco
acidental possível para que nossos movimentos futuros gerassem menos catástrofes
possíveis. Uma doutrina seria possível se pensar: a de que na modernidade se está
proibida a lei da aterrissagem. Somos autodidatas da navegação espacial. A nave que
342
não poderíamos mais conceber a velha terra como uma dimensão natural, e sim, como
um gigantesco artifício. Já não era fundação alguma, e sim construção. Já não era base
alguma, mas um veículo. O inevitável junto com o irresistível. Sinaliza ao mesmo tempo
a ameaça aguda a bordo da nave espacial Terra, o fato de que a falta de conceitos mais
precisos, essa ameaça não permita evasão alguma a falta de compromisso poético, como
se pode ver comprovadamente com o fracasso das cúpulas climáticas. Edgar Morin em
recente artigo e entrevista para o Jornal Folha de São Paulo diz que “seguimos como
sonâmbulos e estamos indo rumo ao desastre”. Aqui os dois filósofos se tocam.
Poderíamos dizer que “estamos no mesmo barco”? Marx talvez não dê um nó
complicando a conversa? Parece que independentemente de classes, grupos, interesses,
etnias e religiões, estamos todos trabalhando todos sob um teto em comum, uma bola
que se desloca no espaço. Será que estamos realmente nesta condição? Talvez essa ideia
pode não ser verdade. Talvez tenhamos que pensar que mesmo estando na nave espacial
e no mesmo barco, estamos inseridos em compartimentos divididos por classes,
compartimentos de 1ª Classe e 2ª Classe nessa navegação. Esse Titanic é diferente do
verdadeiro. Nosso Titanic tem dobras. Ele é mais parecido com uma nave espacial do que
imaginamos. Talvez ele cria mecanismos onde seja possível se descartar pedaços. Grand
redomas podem preservar os ricos e deixar simplesmente que a Terra se acabe para os
pobres. Uma vida artificial pode ser criada em redomas. Uma Amazônia pode ser levada
para outro planeta. Por que os ricos um dia não poderiam se mandar? Os ricos do Brasil
não se mandam constantemente para a Europa? Por que não se imaginar que esses ricos
um dia possam pegar ônibus espaciais para abandonarem de vez a Terra? Voltarem aqui
só para visitar, fazer um leve turismo. Se estamos no mesmo barco e o capitalismo nos
divide por poder de compra, temos determinados espaços onde só alguns podem pagar.
Um avião, por exemplo, não possui a classe econômica, a classe executiva e os próprios
aviões privados? Por que não pensar que um dia os bilionários simplesmente não se
ejetem a Terra em chamas através de cápsulas e foguetes e vivam suas vidas? Talvez só
alguns possam sobreviver ante o desastre quem serão e como se fará uma política ou
biopolítica dos que vivem e dos que morrem nesse cenário? Não teremos redomas no
espaço? Quem tem acesso no espaço nos dias de hoje não são grandes empresas do
ramo tecnológicos? Se voltarmos na tese do Manifesto Comunista de que a história do
homem é a história da luta de classes tenha se tornado algo banal e mesmo que o Popper
344
tenha dito que ela não é científica, mas filosófica, no fim, o próprio Sloterdijk quando
batiza o século XXI como o século das espumas. Sloterdijk utiliza uma frase que nos
remete ao velho Marx. Diz que ele, que nas passagens sobre o uterotopo e o termotopo,
há a formulação da tese de que “toda a história é a história das lutas entre comunidades
de bem-estar”. A história da luta de classe também não estará presente no século XXI e
XXII? Os homens apodrecerão o planeta, e sim, alguns irão nos deixar aqui para irem
embora. Nós os pobres é que ficaremos para trás, nossos filhos e netos. Não vimos isso
no filme Elysium de 2013? Os ricos mais que ninguém sabem formar grande redomas. A
ideia de redoma é algo fantástico. Ela vem das grandes utopias, vemos Stan Lee no início
da sua era na Marvel para que desenhistas fizessem Atlântida, a cidade perdida do
príncipe Namor. Aquilo é uma redoma. Construir algo assim está no projeto cultural do
homem. Não. Não estamos no mesmo barco. Um mesmo barco ou uma mesma nave
pressupõe uma sociedade comunista. Com a sociedade que temos estamos em
compartimentos diferente. Caso a nave ou o barco se esborrache uns vão afundar outros
vão seguir sobrevivendo de maneira sofisticada como vemos em bairros. Os milionários
já possuem isso em mente. Já está posta uma luta de classes dentro do plano sideral. Não
vimos os russos, os americanos na corrida espacial? Não vemos hoje a Estados Unidos,
Rússia, China, a índia com grandes projetos públicos e privados nesse setor? Os ricos vão
ocupar outros espaços. Alguns outros serão apenas empregados no espaço, mesmo que
se esteja numa situação de robôtica. Mesmo com os robôs teremos uma luta de classe
entre homens e máquinas. No horizonte não aparece a Humanidade? O comum não
salvará a Terra? Mas uns não querem o comum. Mecanismos de escapes. Lembremos
das construções subterrâneas de Stálin para escapar e se salvar de uma possível guerra
nuclear? Esse pensamento ainda vive de outra forma. Para outros lugares escapar da
catástrofe ecológica, escapar de uma contaminação, escapar de uma guerra mundial,
escapar de tudo aquilo que os ricos criarão para matar a todos, os pobres e eles mesmos.
Sim. Eles vão escapar. Sim eles já escaparam. Na nova Humanidade, teremos uma divisão
dos herdeiros dos pobres e dos herdeiros dos ricos muito maior da que temos hoje.
Nietzsche (2015, pp. 197-198):
Ali está o barco – por lá talvez se vá para o grande nada. – Mas quem quer
embarcar nesse “talvez”? Nenhum de vos quer subir ao barco da morte! Então
como pretendem estar cansados do mundo? Cansados do mundo! E nem
sequer vos tornastes desprendidos da terra! Sempre vos encontrei ainda
345
59
Diga-se de passagem, Ralph Waldo Emerson, Nietzsche e Júlio Verne foram mestres nisso. Filosofias ou
histórias enquanto reformulação náutica (águas, oceanos, horizontes, barcos, embarcações, navios, terra
natal, um infinito, liberdade, montanhas). Neles voltam a aparecer as tonalidades agressivas do precoce
período europeu da liberação de limites em tradução transatlântica. A ideia de passageiros. No caso de
Júlio Verne, há uma mudança no trânsito. O viajante universal renuncia à sua profissão documental e se
converte em um puro passageiro. É um típico cliente de um serviço de transporte que paga para que sua
viagem seja uma mera questão de tempo e não se converta em experiência alguma. Um herói da
pontualidade. Seu único interesse com as paisagens e imagens que transitam por ele é atravessá-las. O
clássico turista prefere viajar com as janelas fechadas. Temos um “hermético viajante” que transita pelos
espaços sem se fixar em nenhum canto. Não há nenhuma relação digamos de “terra natal”. O hominídeo
como lançador, operador e cortador é um quase “produtor do claro” para usar uma expressão de
Heidegger. O lançamento da pedra permite, o alargamento dos limites do mundo enquanto limites de
alcance do lançamento. A primeira forma de teoria, enquanto mirada prévia ao lançamento. A
compreensão existencial enquanto antecipação e projeção de possibilidades de acerto e a primeira
concepção de verdade enquanto êxito (e a falsidade enquanto erro). Os arremessos formam no destaque
entre o horizonte como fundo destacado da ação rumo a algo, passa a vigorar a partir dessa dinâmica entre
o alvo e o fundo, entre o patente e o latente (o que está a vir), o que está no interior do mundo humano e
o horizonte exterior de possibilidades. Dessa forma, implica, a partir da espacialidade (circular), uma noção
de temporalidade: o horizonte, o inalcançável, é tempo originário, mítico, o não conhecido, e ao mesmo
tempo, futuro, porvir, o tempo, “mortalidade”. A metafísica entendeu a posição humana que condiciona o
ter-algo-diante-de-si como mortalidade, o que é apenas uma outra forma de dizer que interpretou o
aberto-“diante”-de-nós como tempo, mais precisamente como futuro. Neste contexto, nasce o sentimento
humano elevado das experiências de êxito dos antigos artilheiros e caçadores. Resquícios disto ainda vivem
até hoje no orgulho dos artilheiros, em parte, nos sempre espetaculares orgasmos daquele que marca gol,
acerta o alvo. Aqui repetem-se arcaicos sentimentos elevados de formação do eu perante o objeto vencido.
A partir de derivações de semelhantes experiências, os metafísicos metacósmicos do Oriente e da Grécia
irão postular a possibilidade de vencer o mundo, a vida, a morte.
346
utopias disse que a utopia está no horizonte, mas todos sabemos que nunca
alcançaremos. Se caminharmos 10 passos, ela se afasta 10 passos. Quanto mais a busco,
menos a encontrarei porque ela vai se afastando na medida em que me aproximo. Para
que serve? Para caminhar. O pensamento sempre começa com este momento-
movimento patológico no qual entendemos que chegamos tarde, ou seja, não estivemos
aqui desde o princípio e abrimos os olhos em um momento no qual tudo já está
simultaneamente conosco. Nós olhamos para fora e descobrimos toda a circunstância,
todo o estado de coisas que chamamos “mundo”, mundus, e entendemos que estamos
em meio de tudo isto, e que não temos o princípio. Este terrível vazio que um vê, quando
se dá conta de que chegou tarde e o trem do mundo já estava em marcha andando e eu
estou dentro e, no fundo, não posso sair. Não só chegamos como pegamos o bonde
andando. Nestas situações os seres humanos começam a narrar e contar para dizer o que
havia no início-princípio. No fundo, só podemos diferenciar dois tipos de cultura. Umas
que fecha-cerram o vazio do princípio com narrativas míticas e as outras que o fazem
com narrativas-teorias da evolução. Temos inúmeras culturas que não têm teorias da
evolução, e que aceitam neste caso, as narrativas mitológicas dos inícios. Estas culturas
são ideologicamente muito nervosas, vulneráveis, pois quando escutam a linguagem das
teorias da evolução, atentam contra as mesmas, as querem mortas. É claro, que nessas
narrativas, não pode haver uma simultaneidade, porque estamos falando de um
equivalente no mesmo lugar porque a teoria da evolução também enche-preenche este
vazio do início. No geral, o que fazem é narrar de uma forma suportável o assombro
insuportável.
348
selvagens, para quem tais poderes misteriosos existiam. Meios técnicos e cálculos
executam o serviço. Isso acima de tudo é o que significaria intelectualização.
Nietzsche (2008, pp. 92-93):
Uma Filosofia do Futuro que apareceu em agosto de 1886, escreve: “A força do espírito
para apropriar-se do estranho se manifesta em uma forte inclinação a assimilar o novo
ao velho, simplificar o diverso, a passar por alto e rechaçar o totalmente contraditório.
[...] A essa mesma vontade serve uma [...] decisão repentina pela ignorância, pelo
trancado, um fechar suas janelas, um dizer-no interior a esta coisa ou a aquela, um não-
desejar-que-se-aproximem, uma espécie de estado defensivo frente a muitas coisas
aprendíveis, uma satisfação com o obscuro, com os horizontes que se fecham, um dizer-
sim e dar por boa a ignorância”. Como Nietzsche mesmo disse, é lícito imaginar uma
“filosofia do futuro” porque com ela se consumou uma abertura ao paradigma
imunológico da crítica da razão, a partir desse limiar funciona o pensamento além do
“conhece-te a ti mesmo”. Que parece algo como supressores de ideias ou anticorpos
semânticos, dispostos a eliminação de representações incompatíveis, surgidas do âmbito
da consciência. Há de saber que agora temos uma compreensão para propriedades
repelentes e não integráveis de numerosas representações verdadeiras. A teoria do
conhecimento se converteu em uma filial científico-cognitiva da alergologia.
O ideal ascético é um tal meio: ocorre, portanto, exatamente o contrário do que
acreditam os adoradores desse ideal, a vida luta nele e através dele com a morte, contra
a morte, o ideal ascético é um artifício para a preservação da vida. O espírito livre recorre
um largo programa de vacinas e bionegatividade. Quando a modernidade se abre nós
temos Descartes falando da distinção corpo e alma que são duas substâncias agrupadas
ao homem, mas que são coisas diferentes, que deveríamos dar status diferentes para
elas. Uma está no espaço tempo, a outra não está no espaço tempo. O pensamento não
está no espaço tempo, a menta não está no espaço tempo e o corpo se encontra no
espaço tempo. Descartes trata então, o corpo como máquina. Começa a pensar que o
corpo pode ser aberto e estudado. A Igreja não queria, pois considerava o corpo sagrado.
Ele está associado à alma, eles não podem ser separados assim. Descartes então, toma o
corpo como algo meramente mecânico, ele é meramente máquina. La Mettrie nesse
mesmo período estaria publicando um livro chamado L'Homme Machine - O Homem
Máquina (1748). Descartes começa a fazer dissecações em corpos humanos escondidos
da Igreja. Em particular, as ciências cognitivas e a inteligência artificial determinaram o
declínio da “alma” – entendida como a mente, a inteligência ou como quer que se queira
indicar a subjetividade criadora do ser humano – em favor de um processo em que o
352
realidade observada. Sendo assim, todo o fazer ciência é antes uma confissão do
investigador.
É claro que outros dois pesos pesados participariam de narrativas distintas em
momentos relativamente próximos. Marx não acreditaria muito no que Nietzsche
propõe. Esse Eu talvez não seja corpo. Não é suficiente trazer o corpo e juntar com a
mente para dizer que é o Eu. Isso porque o Eu está fora do corpo e da mente. Ele está
nas relações sociais. O Eu, o grande Eu, a grande razão, é o capital. Este é o pioneiro da
primazia da práxis em detrimento da vida teórico-contemplativa. Marx é o pensador que
aponta a essência do real como sendo produção material e luta pelos meios de produção.
A luta de classes, como é sabido, é outro ponto importante de sua teoria. Após as
formulações teóricas marxianas qualquer colocação teórica seria lida como a fala de
alguém proveniente de certa classe e com certos interesses inerentes desta classe. A
máxima marxiana: “Onde havia contemplação, deve haver mobilização”. Freud se
espanta com as proposições dos outros dois e diz que todo mundo está errado. O
verdadeiro Eu é o subconsciente. Freud dividiu as Conferências introdutórias à psicanálise
em duas partes: as 14 primeiras lições foram proferidas no semestre de inverno de 1915-
1916, as 14 lições restantes, no semestre de inverno de 1916-1917 (as Novas
conferências vieram só em 1933). Na lição de número 19, sobre o recalque, Freud
apresenta uma concepção espacial da consciência: o sistema do inconsciente como "um
grande salão de entrada", no qual os impulsos psíquicos "se empurram uns aos outros".
Junto a este salão de entrada existe uma segunda sala, menor, "a consciência". No limiar
entre as duas salas, "um guarda desempenha sua função": examina os diversos impulsos
psíquicos, "age como censor" (a imagem de alguém abrindo a porta para você entrar na
portaria de um hotel é bem-vinda). O que está no salão do inconsciente deve permanecer
invisível ao consciente - mas se há infiltração no limiar e se o guarda entra em ação, surge
o recalcado. Entretanto, escreve Freud, "os próprios impulsos que o guarda permitiu que
cruzassem o limiar, não são, também, só por causa disso, necessariamente conscientes";
serão conscientes se conseguirem chamar a atenção da consciência. A segunda sala passa
então a ser o "sistema do pré-consciente". Para qualquer impulso, porém, "a destinação
do recalque consiste em o guarda não lhe permitir passar do sistema do inconsciente
para o do pré-consciente".
354
Que aquele tenha podido dispor e apoderar-se dos homens da maneira como a
história ensina, em especial onde se impôs a civilização e a domesticação do homem,
nisso se expressa uma grande realidade: a condição doentia do tipo de homem até agora
existente, ao menos do homem domesticado. A luta fisiológica do homem com a morte
(com o desgosto da vida, com a exaustão, com o desejo do “fim”). O sacerdote ascético
segundo Nietzsche é a encarnação do desejo de ser outro, de ser-estar em outro lugar, é
o mais alto grau desse desejo, sua verdadeira febre e paixão. Mais precisamente, o poder
do seu desejo é o grilhão que o prende aqui. Por isso ele se torna o instrumento que deve
trabalhar para a criação de condições mais propícias par ao ser-aqui e o ser-homem,
precisamente com este poder mantém apegado à vida todo o rebanho de malogrados,
desgraçados, frustrados, deformados, sofredores de toda espécie, ao colocar-se
instintivamente à sua frente como pastor. Este aparente inimigo da vida, este negador,
ele exatamente está entre as grandes potências conservadoras e afirmadoras da vida. O
homem é mais doentio, inseguro, inconstante, indeterminado que qualquer outro
animal, não há dúvida, ele é o animal doente. É certo que ele também inovou, ousou,
resistiu, desafiou o destino mais que todos os outros animais reunidos. É ele, o grande
experimentador de si mesmo, o insatisfeito, insaciado, que luta pelo domínio último com
os animais, a natureza e os deuses. Ele, o ainda não domado, o eternamente futuro, que
não encontra sossego de uma força própria que o impele, de modo que seu futuro, uma
espora, mergulha implacável na carne de todo presente. Como não seria um tão rico e
corajoso animal também o mais exposto ao perigo, o mais longa e profundamente
enfermo entre todos os animais enfermos? O Não que ele diz à vida traz à luz, como por
mágica, uma profusão de sins mais delicados; sim, quando ele se fere, esse mestre da
destruição, da autodestruição, é a própria ferida que em seguida o faz viver. O homem é
uma corda esticada entre o animal e o übermensch, uma corda sobre um abismo. A
grandeza do homem é em ser uma ponte vertical e não um objetivo. O que no homem
você pode amar é que é um trânsito em tensão, êxtase e experimentação.
Com ele, teve lugar o anticorpo até então, mais largo de formas de racionalidade
da cibernética, que pergunta por condições internas e externas de funcionamento das
consciências. A natureza bloqueou o ser humano em um cúmulo de ilusões. Este é seu
próprio elemento, para a conclusão de que só a ruptura com o meio da ilusão o das
disposições legitimamente humanas abre o acesso à esfera do conhecimento. Foi
355
Nietzsche quem inventou a fórmula do “filósofo como médico da cultura”. Nietzsche diz
claramente que os seres humanos modernos necessitam de seus cérebros, um para
reconhecer a verdade e outro para fazer poesia, um tipo de sistema bicameral do
pensamento se reflete também em sua própria obra, uma importante obra em prosa.
Chega a dizer que a inquirição sobre a origem de uma obra concerne aos fisiólogos e
vivisseccionistas do espírito, “jamais absolutamente aos seres estéticos, aos artistas”.
Sobre o problema estético, Schopenhauer fez uso da concepção kantiana. Kant
imaginava prestar contas à arte, ao dar preferência, entre os predicados do belo, ou seja,
aqueles que constituem a honra do conhecimento como impessoalidade e
universalidade. Belo disse Kant, “é o que agrada sem interesse”. Nos salta aos olhos “sem
interesse”. Compare-se esta definição com uma outra, de um verdadeiro “espectador” e
artista: Stendhal, que em um momento chama o belo de uma “promessa de felicidade”.
Nisso é rejeitado e eliminado precisamente aquilo que Kant enfatiza na condição estética:
o desinteresse. Quem tem razão, Kant ou Stendhal? Kant, consciente de uma visão
conjunta do mundo, distinguiu 3 reinos entre si. No terceiro reino temos o “sentimento”;
da subordinação dos objetos da experiência à finalidade, graças à faculdade do juízo,
trata-se do reino do estético e do que é conforme. O belo para Kant "é o que agrada
universalmente, sem relação com qualquer conceito". A satisfação só é estética se
gratuita e desligada de qualquer fim subjetivo (interesse) ou objetivo (conceito). O belo
se põe como fim em si mesmo: agrada pela forma, não está vinculado à atração sensível
e nem ao conceito de utilidade ou de perfeição. No juízo estético verifica-se a harmonia
ou a síntese entre a sensibilidade e a inteligência, o particular e o geral. Nossos estetas
dizem, a favor de Kant que sob o fascínio da beleza podemos contemplar “sem interesse”
até mesmo estátuas femininas despidas, obras magníficas, então nos será permitido rir
um pouco de sua ingenuidade, as experiências dos artistas são, neste ponto delicado,
mais “interessantes”. Não foi Pigmalião, na mitologia grega, um escultor que se
apaixonou por uma das suas estátuas femininas que criou? Em todo caso, ele não foi
necessariamente um “homem inestético”. Kant não já não havia exaltado a peculiaridade
do tato? Quem olha não quer tocar? Voltemos a Schopenhauer. Ele interpretou a
expressão “sem interesse” da maneira mais pessoal, a partir de uma experiência que para
ele devia ser das mais regulares. Sobre poucas coisas Schopenhauer fala de modo tão
seguro como sobre o efeito da contemplação estética, para ele, ela age precisamente
356
contra o interesse sexual, ele nunca se cansou de exaltar esta libertação da “vontade”
como a grande vantagem e utilidade do estado estético. Seríamos mesmos tentados a
perguntar se a sua concepção básica de “vontade e representação”, o pensamento de
que uma salvação da “vontade” é possível somente através da “representação”, não tem
origem numa generalização dessa experiência sexual. Em O Mundo como Vontade e
Representação, III, Seção 38, ele fala em tons de alívio, escutemos o tom, o sofrimento, a
felicidade, a gratidão com que foram ditas estas palavras: “Esse é o estado sem dor que
Epicuro louvava como bem supremo e estado dos deuses; por um momento nos
subtraímos à odiosa pressão da vontade, celebramos o sabá da servidão do querer, a roda
de Íxion se detém...”. Schopenhauer descreveu aqui um efeito do belo: o efeito
acalmador da vontade, será ele regular? Stendhal, como vimos, natureza não menos
sensual, mas de constituição mais feliz que Schopenhauer, destaca outro efeito do belo:
“o belo promete felicidade”, para ele, o que ocorre parece ser precisamente a excitação
da vontade (do interesse) através do belo. E não se poderia, por fim, objetar a
Schopenhauer mesmo que ele errou em se considerar kantiano neste ponto, que de
modo algum, compreendeu kantianamente a definição kantiana do belo que também a
ele lhe agrada o belo por “interesse”, inclusive pelo mais forte e mais pessoal interesse,
o do torturado que se livra de sua tortura? Eis aqui ao menos uma primeira indicação: ele
quer se livrar de uma tortura. Aqui seria a vontade, a libertação da vontade como
vantagem do estado estético: um efeito do belo, portanto, um agir (vontade) por
“interesse”. E, para voltar à questão de Nietzsche sobre: “que significa um filósofo render
homenagem ao ideal ascético?”. Sua resposta é fatal e conhecida. São testemunho da
pior ascendência que possa atribuir-se a uma coisa. “Mau” é para ele o que provém da
atitude enviesada, envenenada, rancorosa e da vida inibida perante os fatos da
existência. Para Nietzsche, nada é pior do que o ressentimento que alcançou o poder, o
ressentimento que emana da inveja negada, da inferioridade rebelde e do desejo adiado
de vingança de uma casta de clérigos e agitadores sedentos de poder. Com isso,
Nietzsche faz recair de forma inequívoca a origem suspeita sobre toda a esfera de
influência dos valores cristãos convencionais e suas secularizações políticas. Ao mesmo
tempo, nada é mais compreensível, realizado, humana, política e culturalmente, bem-
sucedido, que este mesmo ressentimento dos desfavorecidos. Nietzsche quis consumar
a transformação epocal das tendências que negavam o mundo e a vida em virtudes
357
afirmativas. Nietzsche já tinha percebido que historicismo e niilismo são aliados, uma vez
que a reflexão histórica levada até seu fim de nada mais pode tratar senão da história da
irresistível inibição niilista da vida, que em nome da grande religião, da moral e da
civilização, se impõe no mundo inteiro a partir da Europa. A história do ocidente cristão
revela-se como um suicídio retardado. Todos os impulsos negadores da vida penetram
peçonhamente em todas as formas de pensar, sentir, artes, instituições como algo que
mete medo. O conceito psicológico correspondente a este processo chama-se:
ressentimento, o biológico: decadência, o religioso: cristianismo, o filosófico: niilismo. A
história universal do ressentimento cristão é, para Nietzsche, a história da desvalorização
do mundo e da vida até as últimas consequências. Uma encenação histórica que é uma
negação radical de tudo, de todos os “valores” onde ele vê atuar o niilismo. A vontade de
se chegar ao nada como sentimentos negadores da vida ao invés dos auto-afirmadores
vitais. Junto com Sócrates e Jesus, Nietzsche foi um grande mestre da ética da tradição
ocidental.
Não seria interessante uma abordagem mais “fenomenológica”? Já havia algum
tempo que Edmund Husserl se convencera da possibilidade de que o comportamento
contemplativo podia liberta-se da posição de atividade indolente de segundo plano. O
chamado “método fenomenológico”, que se manifestava desde 1900, é uma soma de
argumentos a favor da tese de que o tempo estava suficientemente maduro para uma
filosofia que se erguesse para uma ciência estrita. O método fenomenológico exige a
tomada de posição em relação a toda a objetividade que divirja essencialmente do
natural, muito próxima daquela atitude e comportamento que nos coloca a sua arte,
puramente estética, em relação aos objetos representados e ao mundo da arte na sua
totalidade. A percepção duma obra de arte puramente estética produz-se com a
supressão estrita de qualquer posição existencial do intelecto e de qualquer posição de
sentimento e vontade que aquela posição existencial pressupõe. Ou melhor: a obra de
arte transpõe-nos (e força-nos) ao estado da pura percepção estética que exclui a tomada
de posição. Quanto mais do mundo existencial ressoar numa obra de arte, ou nela for
ativamente introduzido, quanto mais a obra de arte exigir uma tomada de posição
existencial. Por exemplo: como aparência sensorial naturalista – verdade natural da
fotografia, menos esteticamente pura será a obra. O mesmo é válido para qualquer tipo
de “tendência”. A atitude mental, da vida real, é totalmente “existencial”. As coisas que
358
estão sensorialmente ante nós, as coisas que são o assunto do discurso atual, quotidiano
e científico, somos nós, que as postulamos como realidades e nesses postulados de
existência “assentam” atos do espírito e da vontade, “alegria porque, isto é”, “tristeza
porque aquilo não é”, “desejo porque passa a ser”, etc. Isso é igual a uma tomada de
posição do espírito, uma antítese da atitude de percepção estética pura e do seu
correspondente estado de sentimento. Mas também, e não menos, da atitude mental
puramente fenomenológica, a única segundo Husserl, é possível a resolução dos
problemas, pois o “método fenomenológico” exige a supressão de todas, e a total, falta
de tomada de posição existencial. Assim, toda a ciência e toda a realidade, incluindo o
próprio eu, tornam-se meros “fenômenos”. Resta apenas sua “clarificação” do sentido
imanente, puro olhar como pura análise e abstração contemplativa, sem nunca
transgredir os “meros fenômenos”. Para o artista, ao observá-lo, o mundo torna-se
fenômeno, a sua existência é-lhe indiferente, exatamente como para o filósofo (na crítica
da razão). Husserl não teria com isso, tido uma visão absolutamente platônica que vida e
reflexão pertencem a campos estritamente separados? A ânsia de pureza de Husserl não
uniu esforço de uma relação plenamente “contemplativa” com os dados da consciência?
O “método fenomenológico” não é um reestabelecimento de uma vida que passa de um
modus vivendi contemplativo que devia se basear em um modus cogitandi
correspondente? Chega a ser simplista demais, Husserl achar que teve de filosofar
porque, caso contrário, não teria podido viver neste mundo.
Segundo Husserl, a “atitude natural” em relação a tudo na vida real significa
sempre “tomar posição”, o que implica envolvimento nas coisas da vida e ao quotidiano,
a decisão sobre a possibilidade de um comportamento contemplativo ou “puramente
contemplativo” depende de se provar que se consegue evitar a maldição do “ter-de-
tomar-uma-posição”. Para isso, a teoria para ser pura, deveria ter capacidade de dissolver
a fixação do seu portador na existência real, quando muito, suspendê-la
temporariamente. Husserl utiliza a palavra “existencial” à expressão “tomar posição”,
que pouco depois, com Heidegger, seria uma abordagem completamente oposta, que
ocuparia o centro de um pensamento já não contemplativo. Esta nova filosofia
“existencial” não só acentuaria a primazia do “cuidado”, mas também seria decidida, a
deixar-se arrastar pelos imperativos do momento histórico, como derrelição
(geworfenheit) existencial, uma condução a ser-se arrastado pelo grande
359
“acontecimento”. Não seria essa uma consolidação de uma zona sem vento, onde o
pensar, livre das impertinências do existir, possa gozar e ter “acesso” do seu trabalho
sobre os fenômenos? Não seria aqui uma tentativa de Husserl em se alguma vez houve
uma feliz ocasião para observarmos a prática da teoria, seja como filosofia ou como
ciência, sob o seu caráter de prática, exercício performático, como pureza teórica e teoria
pura?
Sloterdijk (2019, p. 1):
Não é capacidade como tal. Mas não ocorrem as circunstâncias vitais que nos
permitem afastar e ganhar distância. Para Husserl e sua fenomenologia era preciso
sair do tempo impetuoso da vida, o dispositivo mais elementar era sempre dar um
passo atrás. Essa ação permite que você se transforme em observador. Sem uma
certa distância, sem uma certa desconexão a atitude teórica é impossível. A vida atual
não convida a pensar.
procedimento para buscar a coisa em si. Ela quer o que aparece. E faz de tudo para limpar
os pré-aparecimentos. Nesse período que chamamos de “época”, há os eventos
separadores que são rupturas, saltos, revoluções, transformações (tecnológicas),
catástrofes. Trata-se do lugar-nenhum como conceito. Os conceitos são universais, os
universais nós sabemos não encontramos na rua. Não se encontra “o homem”, “a casa”,
na rua. Encontramos o particular. Estamos pensando alhures. Para além de qualquer
lugar, logo, em todos os lugares, portanto, em lugar-nenhum. Esta é a condição básica da
Filosofia. Nós temos que fazer esse trabalho, mas isso significa um desengajamento.
Entretanto, toda a filosofia moderna é uma Filosofia do engajamento. Quem quer um dia
pretender estar à par de seu tempo, tem de se datar, a si e à sua comunidade local-
regional, pelo último corte decisivo. O método de Husserl quer no fim, ser um fazedor de
época, tirando o pensamento da sua era ingênua e conduzindo-o para a reflexão. Assim
sendo, as ontologias vulgares que vem das considerações de Marx de que o ser determina
a consciência desenganam-se. A consciência é que mantém o ser à distância,
respondendo de vez em quando seus pedidos e considerações “sem dar muita bola”.
Temos a indiferença. Para o artista o mundo torna-se um fenômeno, a sua existência é-
lhe indiferente, exatamente como para o filósofo. Mas a indiferença metodológica de
Husserl descritora de fenômenos está separada por um abismo profundo da indiferença
estética. Uma redução estética segue leis próprias.
Sem dúvida, Nietzsche representa o estado mais elevado do idioma alemão, e
talvez, há também uma obra rapsódica que vai mais adiante da prosa e na qual realmente
canta como Zaratustra. O afrouxamento paródico dos vínculos tradicionais entre música
e logos é que torna possível, com Górgias, o nascimento da prosa de arte. O rompimento
é que causa ou liberta um parà, um espaço ao lado, onde se instala a prosa. Prosa.
Zaratustra está aliado com a vida porque está secreto o eterno retorno. Ele está
convertido totalmente em um ser que diz sim, um ser afirmativo, que inclusive a dor, a
negação o põe na balança da afirmação. Os escritos ditirâmbicos mais tardios de
Nietzsche trazem de volta esses ritmos em alto tom, em tom quase bíblico. Nietzsche no
fundo é um parodiador da Bíblia usando o alemão de Lutero para estabelecer versos
dionisíacos. Ele desenvolveu uma forma de paródia que leva para o alto-vertical.
Normalmente, a paródia é uma forma de colocar os tons altos em baixos, mas Nietzsche
inverte, ele parodia em alto, introduz o tom mais agudo na prosa do mundo moderno,
363
tem a mais longa escada e pode descer mais fundo: como não se acharia o
maior número de parasitas? – A alma mais ampla, dentro da qual mais se pode
correr, errar e vagar; a mais necessária, que por prazer se precipita no acaso:
– a alma que é, e que mergulhar no vir-a-ser; a que possui, e quer lançar-se no
querer e ansiar: – a que foge de si mesma, que a si mesma alcança no círculo
mais amplo; a alma mais sábia, à qual a tolice fala do modo mais doce: – a
mais amante de si mesma, na qual todas as coisas têm sua corrente e
contracorrente, seu fluxo e refluxo: – oh, como a alma mais elevada não teria
os piores parasitas?
Creio que isto é um gesto que, para todo o tempo posterior, foi continuado de
maneira bastante importante porque comprova, que também no tempo da prosa
absoluta, o heroico e o sublime, todavia, são possíveis, apesar de que já parece
impossível. Nietzsche mesmo diz claramente que: “temos a arte para que a verdade não
acabe com nós todos”. A música é uma companheira muito antiga da civilização.
Antropologicamente é difícil de ver civilizações sem algum tipo de música. A tendência
global parece ser que, os seres humanos, desde que sabem falar, também fazem música.
Mesmo que seja uma música implícita, na melodia da linguagem propriamente dita, ou
como Agamben suscita cantamos porque perdemos nossa voz. Para um europeu que não
conhece o português, a primeira ideia sobre a língua portuguesa é que ela parece ter uma
intensidade melódica, uma melodia desconhecida pelas línguas europeias. É como se em
todos os brasileiros, houvesse um cantor, como se todas as conversas fossem cantadas.
Mas isso está longe das preocupações de Nietzsche quando ele distinguiu o elemento
apolíneo do dionisíaco para dizer que a música pertence ao espaço dionisíaco. Ensinava
um direito natural dionisíaco, o direito da vida a seguir outas motivações que não as
morais. A música é daimônica, porque, do ponto de vista psicanalítico, aciona os
processos primários. Os processos primários no ser humano, são as áreas onde residem
sua loucura, porque ele entra em um estado prévio ao de se tornar "eu". Isso ocorre
bastante na música popular contemporânea, em que o ritmo se tornou muito dominante.
A batida intrauterina parece uma linguagem musical do mundo. Por todo o globo, onde
as pessoas dançam a música pop, nós podemos ver que elas entram e se movimentam
sob um estado de liquidificação pré-natal (a ideia de um’a antropologia como onto-
rítmica). É até difícil de imaginarmos uma música sem som, sem batida, sem ritmo. Uma
música assim seria como se você estivesse lendo um texto na sua mente. Antes da
individuação ouvimos antecipadamente, isso significa que, o ouvido fetal antecipa o
mundo. Um ouvido que não conhece nenhum defronte, não cria nenhuma vista frente a
365
um objeto, se tem uma partida de uma teoria do ser-em como intimidade que se torna
universalmente sensível na vigília humana. Ouvimos uma totalidade de ruídos que está
sempre a vir, orientado em direção ao mundo, uma “frente” inevitavelmente par ao
futuro. Depois da formação do eu, ouvimos para trás, o ouvido quer é desfazer o mundo
enquanto totalidade, por isso, tem saudades da interpenetração arcaica do interior
escuro intramundano, ativa um suspiro de entusiasmo extático-eufórico que nos
acompanha até o fora. Reminiscências íntimas nobjetais. Onde o mundo ainda nem pode
ser apontado como mundo: “este mundo”. Assim, a música, seria a todo momento uma
dialética de duas aspirações. Um nada positivo, da ausência de mundo, do interior, mas
que marcha para o mundo, vem ao mundo. E o outro, de uma plenitude, dissonância da
sobrecarga, de volta a ausência do mundo, liberto-interiorizado. No gesto primário de
toda a música existe um dualismo de partida e de retorno a casa. Representam-se, com
razão, os anjos como músicos celestiais, apenas tocam, não ouvem nada. Se fossem
ouvintes seriam algo perto de nós.
Sloterdijk considera Nietzsche um apolíneo, e não um dionisíaco. Como por
exemplo, ele não era um apreciador de vinhos, o que não é muito bom para um autor
que se remete a Dioniso. Nietzsche era um bebedor de água. Entre outras razões, ao
menos toda vez argumentava para esclarecer e escrever sua maravilhosa prosa. O
apolíneo também o tenho, tenho a sensibilidade de me agradar com frases charmosas se
encontra em cada livro um par de paisagens bastante bonitas e um par de frases
extremamente bonitas que chegam a ser bonitas demais para ser verdade. Isto tem
relação de por um lado, em 100 páginas desde a prosa está indo para ária, quer mudar
para fazer uma transição para a ária.
366
O movimento olímpico pode ser visto hoje como o exemplo mais nítido da
desespiritualização da ascese (o constante estar em forma; exercícios). Com um atraso
de 400 anos ele é a figura que retorna. Foi a figura mais popular e perigosa da antiguidade
com ele vem também a ideia da antiguidade ou a antiguidade da physis, do corpo forte
que desde o Renascimento ainda não terminou. O renascimento não só não terminou
como ainda continua na literatura. Se pensarmos com minúcia, o Renascimento inventa
a novela ou a novela curta, uma forma não legendária de narrar, depois a novela se
converteria na novela moderna. É bem claro, que se trata de um dos gêneros literários
mais fecundos já existentes, e por isso, ainda sobrevive. O interessante é que com o
intercâmbio das culturas começamos a participar da antiguidade de outras culturas. Um
indianista francês, por exemplo, que fala ou falou de um renascimento asiático ou índico
do qual, hoje como pessoas ocidentais podemos participar também. Também podemos
participar da antiguidade centro-americana e sul-americana, as antiguidades das
diferentes culturas antigas, também da China, todas estão aqui hoje. Com boas razões
hoje, é possível se pensar em um livro como “O Museu Imaginário” de Malraux, a ver a
simultaneidade dos diferentes passados das culturas (leituras-escritas), um pluralismo
das antiguidades. Quando nos damos conta disso, e neste nível começamos a dar um
intercâmbio, que vai além das diferentes trilhas da modernidade. Os museus são hoje os
locais mais vivos que podemos encontrar no espectro das instituições culturais porque as
universidades e os museus são os únicos lugares em que se encontra vida. O museu não
é mais somente um arquivo, um lugar onde se mantém o passado. O museu moderno é
um local onde aparece o contemporâneo em uma forma agudizada, ou seja, sensível, mas
que em qualquer outro lugar, e por isso, ali não está o guardião, mas sim, o curador que
é um intelectual público por excelência. O Museu imaginário de Malraux é de 1951, bem
como An American in Paris, de Vincente Minnelli. No ano seguinte, 1952, Erich Auerbach
publica o ensaio "Filologia da Weltliteratur", ou ainda, "Filologia da Literatura Mundial",
em um volume coletivo publicado em Berna em homenagem ao professor, filólogo e
teórico Fritz Strich (o que nos faz lembrar do ensaio sobre Van Gogh que Meyer Schapiro
publica em 1968, dedicado a outro professor alemão, Kurt Goldstein). O ensaio de
Auerbach é rico em associações, tomando frequentemente o aspecto de um panorama
experimentativo. Um ensaio, enfim. Auerbach cita um trecho de Adalbert Stifter (1805-
1868, referência fundamental para Sebald, que a ele dedicou dois ensaios), de seu
370
60
AUERBACH, Erich. Ensaios de Literatura Ocidental. 2º Edição. Tradução: Samuel Titan Jr. e José Marcos
Mariani de Macedo. Editora 34, 2012, p. 361. O Ensaio em questão é “Possibilidades Inéditas Para Uma
Visão de Conjunto”. "Seria muito desejável que, depois do fim da humanidade, fosse dado a um espírito
reunir e contemplar toda a arte do gênero humano, desde as suas origens até o seu desaparecimento". E
Auerbach comenta: "Stifter pensa aqui apenas nas artes plásticas, e creio que ainda não se pode falar de
um fim da humanidade. Mas parecemos ter atingido um ponto de conclusão e virada que oferece ao
mesmo tempo possibilidades inéditas para uma visão de conjunto”.
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61
Netflix: Filme Cam (2018).
372
comer sozinho. Uma ideia antihumana de que nascemos sozinhos. Sem a negatividade o
espírito não pode existir. Uma ideia não antiga. Os antigos sempre souberam que não
nascemos sozinhos. Nascemos com o outro. Nos moldes de Sloterdijk a sinestesia do
lugar-com (dentro) da placenta. Lipovetsky provavelmente diria “o império do efêmero”
ligado também à “sociedade moda”. Uma sociedade moda completamente
reestruturada pelas técnicas do efêmero, da renovação e da sedução permanentes.
Assim, o princípio-moda “tudo o que é novo apraz” se impõe como rei, a neofilia se afirma
como paixão cotidiana e geral. É soberano quem decide a cor da estação. Os profissionais
da moda. São eles que devem decidir a cor da estação: os estilistas. “A moda é a derrota
do costume”, escreveu Gabriel Tarde. Se estamos em um regime de monetarização é
exatamente essa vitória do efêmero e sazonal, da “temporada”, da “estação”, da “moda”,
do “em alta” que põe os estilistas como chefes a respeito do que pode e não pode ser
utilizado em determinados períodos. São os profissionais mais importantes do que é
efêmero, da frivolidade séria, daquilo que passa e vai voltar depois diferente. Os desfiles
de moda são desportos. São sérios não como arte, mas como desporto. Nisso se fazem
exercícios que precisam ser levados por personagens da androgenia vide. Fenômeno
também visto nos esportes, e mais recentemente, dos anos 90 para cá no campo da
estética-fitness e da moda-pop. Da silhueta do travesti incorporado em figuras, ídolos,
atletas, ícones femininos e da cultura pop. Ser e estar em forma cada vez são mais
equivalentes. É um símbolo de uma nova era. O futuro será do fitness (da colocação da
forma), ou do se colocar em forma que começou com os gregos e a palavra “paidea” que
significa “formação”, em francês corresponde mais ou menos à palavra alemã “Bildung”.
Bildung contém Bild – imagem. Expressão uma intuição profunda, segundo a qual, o ser
humano precisa ser construído. No período que passamos nas instituições educativas se
alonga excessivamente. No século XVI, os jesuítas, pedagogos protestantes, entre outros
passaram por uma clara revolução pedagógica da Europa, que é a primeira, e verdadeira
revolução europeia, “sequestraram” a juventude das nações, das “confissões”, antes das
nações haviam as “confissões”. O recrutamento em grande parte, feito pelos partidos
religiosos, os integraram em um sistema de formação sistemática. Pensaram que não
valia a pena esperar o momento em que o indivíduo estará cansado da primeira parte de
sua existência com 20 ou 30 anos, não merece esperar, deve ser feito com que os jovens
entre 5 até os 8 anos passem por “quarteis” de formação, instruí-los desde cedo como
373
encontramos, em primeiro momento, apenas aquilo que é vítima de uma exaustão – ele
próprio na forma colapso. A filosofia como ponta lógica da subjetividade nos pontos mais
excitantes, mais fatigantes e loucos. Se ele próprio é cansado, esgotado, extenuado até
os limites de sua resistência, ele encontrou-se para além do seu limite mais uma vez
consigo próprio, então as posturas revelam-se nunca sustentáveis, desfiguradas e suas
promessas inconsistentes. O nada poderia ser a insustentabilidade do prometido a
avançar abertamente, é uma redução de todo o existente em um dispositivo de retenção
para posições insustentáveis. É o local onde a vaga do cansaço da vida se passa por
promessas quebradas e onde os corpos passem a ser tão pesados. Nenhuma crítica
externa pode ser mais fiel do que a apreensão do sujeito de seus sintomas e da sua
própria exaustão. É na forma de desmoronamento de suas posturas que se torna
compreensível par ao sujeito como todas as suas atitudes autonatais precisam de
pretextos que desembocam à sua autonomia. É com o colapso, onde ele se aproxima do
chão, que está na base de todos os levantamentos – constantes desabamentos e
levantamentos. Estar deitado, é o modelo cinético da serenidade – o deixar-se levar. Era
aquilo que Heidegger designava como “esquecimento do Ser”, correspondente na
consciência cinética, um esquecimento do ser-levado, que é nada mais que a condição
prévia da cólera da autonomia. Certamente, esse esquecimento não é um “verdadeiro
esquecimento”, pois resulta da recordação que o corpo possui de episódios reais, nos
quais se sentiu não levado, abandonado, asfixiado, esquecido, encarcerado no seu
próprio desespero e naqueles momentos onde acumulou motivos para contar apenas
consigo mesmo (de certa forma o estar deitado é apenas uma outra forma de estar
suspenso). O sujeito dos filósofos possui uma forte tendência para uma possibilidade de
auto-ereção. Na colocação de uma autonatalidade, está constantemente, um ação
dinâmica de virilidade como ímpeto-impulso-“vontade” para a sua própria posição
vertical. Masculinidade que cria ilusão de ereção autônoma. É possível se dizer que a
atividade do sujeito para se manter a si próprio é inesperável de uma dose de autocriação
oposta ao mundo sob a fórmula de um serviço, de uma vinda-ao-mundo intensificada.
Nietzsche em sua Genealogia da Moral fala da tarefa que a Natureza atribuiu a si mesma
sob uma forma de mãe ambiciosa que possui uma herança de triunfo por intermédio de
seus filhos. Em sua retórica, da intensificação e da criação vem caracterizada pela forma
de um processo autonatal e da vida intensificada por atração das promessas mais
375
Se uma luta contra a falta de ar se verificasse, toda uma modificação política, ética e
espacial seria não só refeita, mas planejada. Vemos isso no filme Rua Cloverfield, 10 de
2017, com a integração de espaços em Life Support System. O apartamento é uma célula
de habitação que representa num plano atômico o campo das condições de habitar. O
átomo-habitat e o espaço isolado-conectado. Uma bolha privada de mundo do habitante
que vive só. Como forma egosférica, devemos tomar o apartamento como o lugar da
simbiose familiar e como constituição, desde os mais antigos tempos, de comunidades
habitacionais primárias que flui em favor do indivíduo e em sua simbiose consigo mesmo.
No cenário contemporâneo, esse modo da habitação torna uma época em que se vê um
epidêmico autodesdobramento do um em si mesmo e na multiplicidade de espaços e
outros interiores virtuais. Funciona aí um conglomerado de mecanismos vitais que evoca
situações globais esféricas de coexistência seja familiar, seja desenvolvida
tradicionalmente, seja em totalidades indistintas com associações sonambúlicas que
caem durante o século XX para forças centrífugas que dispersam o indivíduo. A separação
do indivíduo em células de mundo próprias, vistas como, micrototalidades imunológicas.
Deste ponto de vista, a socioanálise por desintegração e isolamento corre paralelo à
psicanálise por auto-exploração em uma situação diádica artificial”. Estamos falando da
existência enquanto egosfera. Os habitantes desenvolveram costumes elaborados de
auto-emparelhamento e se movem em um processo constante de diferenciação de si
mesmos e intensificação de si mesmos: processos de vivências.
A não simbiose com os outros que é a prática dos que vivem em apartamentos
deve ser interpretada como uma autossimbiose. Neste, a forma de par ou casal encontra
o indivíduo, por um processo de diferenciação de si mesmo, que se remete a um
interrupto si mesmo, como se fosse um outro interior ou de uma pluralidade de sub-eus.
Nesses casos voltamos para o caso de voltar-se para si mesmo. A convivência single se
modifica para uma mudança constante de situações nas quais o indivíduo se experimenta
a si mesmo. A individualidade do saber de si mesmo e do experimentar de si mesmo.
Veremos que o caráter das filosofias modernas teria traços fortemente presentes de
exercícios ou de filosofias da atividade e da ação como mostra a obra de Peter Sloterdijk
Morte Aparente no Pensamento. Para o sucesso do auto-emparelhamento devemos
pressupor os meios egotécnicos. São meios que são suportes mediadores usuais de
autocomplementação de vida que permitem aos seus usuários um regresso permanente
378
receita para a produtividade. Aqueles que por sua natureza se afastam do mundo
parecem estar destinadas e dominadas por visões e intuições. Não seria raro que
posteriormente se veria pessoas perdidas no mundo, aquelas que têm muito a contribuir
com o social através do desvio que passa pela sua vida interior. Quem se retira par ao seu
próprio interior toma uma inclinação espontânea em realizar uma transição de estar fora
do sítio para um processo metódico de distanciamento. Não veríamos aí uma
transformação habitual da colocação entre parênteses das suas condições de vida
concretas em epoché natural? Na terminologia de hoje, imagens desse tipo seriam
localizadas na região das estruturas esquizoides, em termos psicanalíticos, pessoas que
não “acabaram de nascer” completamente. Um tipo de pessoa angustiada, mas também
produtiva, se manifesta na aliança entre melancolia e potência empreendedora. É bem
conhecida a relação da família Wittgenstein com o suicídio. Três dos irmãos de Ludwig
Wittgenstein cometeram suicídio e ele próprio sempre esteve próximo da ideia ao longo
de sua vida. O suicídio estava na corrente sanguínea europeia nos fins de XIX e inícios de
XX (Otto Weininger, autor de Sexo e caráter, livro tão importante para Wittgenstein, se
matou com um tiro em 1903, pouco depois de publicar o livro. Será que a semente está
mesmo no Werther de Goethe e mesmo na declaração tardia do autor de que o
romantismo carregava consigo uma doença? Esse bacilo da morte passa de metáfora a
materialidade na Montanha Mágica escrito em 1924 de Thomas Mann (outro autor
seduzido pela ideia da morte) e todas as radiografias de caixas torácicas com "pontos
úmidos". Efetivamente, ficou comprovado pela descoberta do hipnotismo que a forma
de ser sugestionável não fica arrumada de uma vez por todas com o nascimento e a
entrada do sujeito à idade adulta A aplicação do magnetismo em adultos evidenciou de
maneira clara que pode haver uma pós-vida contínua do nível de vibração fetal, o que
pode ter congelado os contemporâneos e seus primeiros hipnotizadores com a ideia do
abuso da relação magnética. Na novela de Thomas Mann chamada Mário e o Mágico de
1929, o calafrio atingiu um ápice, o abuso da relação pôde surgir como condição
psicológica da possibilidade do fascismo. Em Joseph Roth, a morte aparece
constantemente (suicídios, duelos, a guerra). Existe também em Roth a contínua
elaboração desse peculiar costume dos oficiais do Exército do Império, ou seja, o costume
da honra, da manutenção sempre tensa dessa honra tão frágil, qualquer arranhão deve
levar a um duelo ou a um suicídio (e em muitos casos o evento é o mesmo). Em Roth, o
381
próprio Império é um cadáver. Uma ideia que será mais tarde reelaborada na ficção de
Andrzej Kusniewicz.
Em 29 de abril de 1912, Wittgenstein joga tênis com o amigo David Pinsent,
numa tentativa de se livrar, ainda que temporariamente, da melancolia e da angústia.
Wittgenstein, contudo, escreve o biógrafo Ray Monk, chegou à conclusão de que o que
precisava "não era diversão, e sim maiores poderes de concentração". Para atingir tal fim,
continua Monk, ele estava preparado para fazer qualquer coisa, até mesmo a hipnose, e
tinha sido de fato hipnotizado pelo Dr. Roger. Wittgenstein preparou uma série de
perguntas sobre lógica, pontos de sua teoria que ainda não estavam claros, e deu ao
médico, para que lesse quando ele estivesse em transe mesmérico, ao que parece não
deu muito certo.
Terceiro seria fundamental se criar pessoas capazes de não ir para a guerra.
Trata-se da “diferenciação” do sistema educativo (como Luhmann diz), ou, segundo
Bourdier, o estabelecimento do “campo pedagógico”. A pedagogia germinou de rebentos
da sofística. Da retórica política do conflito da cidade democrática. A paidea,
originalmente tinha como pressuposto a instituição helênica da dupla paternidade. Os
pais biológicos deviam autorizar em entregar os seus filhos de certa idade para um “guia
de rapazes” que funcionaria como um segundo papel de pai, o pai espiritual. As
instituições originárias em matéria de orientação de rapazes seria o pretexto para na
paidea proliferarem e em todos os cantos da Grécia. Os jovens das escolas seriam aqueles
que deveriam ter práticas de ouvir. O ouvido para a configuração de uma alta cultura é
fundamentalmente para um adestramento do homem pelo homem, do se prestar
atenção às palavras e em quem as profere (professores e mestres). O ouvir passaria a ser
considerado como uma “inteligência” para a figura do discípulo. Sem ele não é possível
se compreender a formação da alta cultura. Os homens têm conhecimento do que
podem ser através de uma corrente contínua de presságios, designações e proclamações.
Os homens anunciam outros homens quando falam das possibilidades humanas. É uma
língua do melos, mythos e logos na qual os homens convidam seus semelhantes a
converterem-se em homens. Quem responde a esse processo de convite vai parar no
centro do processo de humanização. Ao serem penetrados por discursos, os indivíduos
experimentam um impulso não só de serem ouvintes da palavra, mas de se converterem
em seus autores. Desde sempre, a humanização foi um acontecimento no qual os
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62
Jesus é o modelo original do sujeito que anula toda a pertença a um seio maternal. O que lhe dá a
consciência de apostolado nasce da façanha extremista de se legitimar completamente na dotação de
potência a do ser própria de um seio paternal urânico. A irradiação das palavras de Jesus divulgadas pelos
evangelhos canônicos é ativada, sobretudo, por transmitirem as mais claras afirmações uranofáticas dos
últimos milênios. Com as variantes gnósticas vemos isso ainda mais claro. Falam, como se o céu pudesse
dizer Eu. Nas palavras de Jesus, o céu é não o tema, mas o sujeito do discurso; as frases de Deus feito
homem são “manifestações”, substancialmente celestes, solúveis, no céu e naturais dele. Nietzsche
entendeu muito bem isso. Ele interpreta a semântica jesuítica de “pai”: o “sentimento de transfiguração
global de todas as coisas”, o “sentimento de eternidade, de última perfeição”, como também criou um
gêmeo e cúmplice do céu, o texto uranofático mais impressionante até hoje criado, vemos no Antes do
Nasce do Sol, na terceira parte de Assim Falou Zaratustra. NIETZSCHE, Friedrich Willhelm. Assim Falou
Zaratustra: Um Livro Para Todos e Para Ninguém. Tradução: Paulo César de Sousa. São Paulo: Companhia
das Letras, 2015, pp. 156-159. Quem está no céu sabe o que significa falar a partir dele. Na medida em que
o céu possui energia de seio, produz-se a autocomunicação da sua produtividade aos seus rebentos. A
partir desta seio-plenitude-consciência de acento masculino, pode-se compreender a metafísica do logos
do Evangelho de João na sua força sugestiva radiante através de milênios. A certeza de seio paterna parece
ser o segredo energético daqueles no mundo. A Oração do Senhor, também conhecida como o Pai Nosso,
é a oração mais conhecida do cristianismo, seu início começa com: “Pai nosso que estais no céu...”. Eles
são os verdadeiros existencialistas – indivíduos que sabem ser radicalmente de dentro para fora. O
elemento oceânico tanto a partir dos seus atributos envolventes e salvadores, como dos emanantes e
produtivos. Anoto à margem que a meditação da montanha de Heidegger realça a característica do mar
maternal no elemento seco telúrico. Gebirge – montanha, cuja primeira sílaba “ge”, alude a Gea, a deusa
Terra hesiódica, criadora dos céus, montanhas e mares. Béla Grumberger referiu-se a uma implicação
teológica do domínio do seio: a palavra hebraica rakh’mime, é traduzida, em abstrato, por “misericórdia”,
designa um dos atributos da “divindade” e corresponde, em si, ao plural de rekh’em, que significa “útero”.
Para os judeus, a Deus, que é tanto pai como mãe, corresponde, entre outros, o nome determinante el
male rakh’ mine, que significa “cheio de misericórdia”, mas literalmente, “cheio de útero”. Aqui há uma
aproximação direta entre divindade e útero – órgão que contribui para esta sinestesia e que,
simultaneamente, envolve o seu portador.
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intelectual em nome de sua independência futura sob o risco de nunca mais se libertar
da sujeição escolástica. A exercitação de atenção e da receptividade disciplinar é
acompanhada de uma paralisia motora. Seria o começo de uma sedação via do estar
próximo e do sentar-se aos pés do mestre, é aqui que surge o homem sedentário no
sentido escolástico. Um sedentarismo diferente do termo mais habitualmente utilizado
como o do campo e camponeses com os seus assentos. Para se aprender é preciso,
digamos, “estar parado por um momento”, “estar com os ouvidos abertos”, estar em
silêncio, ver e escrever. Na Filosofia da Índia antiga, o sujeito desinteressado que está na
raiz de toda a existência interessada chamava-se de atman, que significa tanto “sopro”
(hauch, fôlego, sopro, hausto) como “espírito” e tem parentesco com a palavra de origem
alemã aten (hausto, pneuma, respiração). O budismo opõe uma espécie de concentração
“sem respirar” (atemlos). Se pensarmos modernamente, a revitalização da vida
contemplativa abriria um espaço de respiração (Atemräume), talvez o espírito deva a sua
origem a um excedente de tempo, a um otium, uma respiração pausada. Poderíamos
reinterpretar assim o pneuma, que tanto quer dizer “respiração” como “espírito”. Quem
fica sem fôlego, sem alento, fica sem espírito. Os paralelos com o fenômeno do
eremitismo cristão devem ser vistos, e a afinidade entre a prática atlética-somática e a
preocupação espiritual do yoga (se trabalha com as máximas mobilizações de energias
no sentido da fisiologia mística, o foco da consciência reside sempre na ascensão para a
tranquilidade) e espiritual é óbvia. A reverência mostrada para o silêncio tanto na Índia
(onde o homem santo é conhecido como o muni, que significa "homem silencioso") como
nos desertos egípcios aponta na mesma direção. Em ambos os centros de ascetismo, as
pessoas entenderam que qualquer forma de discurso comum equivalia a uma profanação
que mais uma vez envolvia a alma na mesma coisa da qual sua retirada era para libertá-
los. Pode-se dizer que quem está imerso não anseia por experiências. O “nascimento da
alma através da água”, desempenham um papel fundamental, no resgate da recordação
mística do seio protetor. O sujeito imerso é capaz de sentir o presente enquanto um
fluído envolvente. Em variantes não-psicopáticas de experiências íntimas místicas, o
motivo da imersão possui uma contrapartida por um componente de respiração ou forma
pneumática. A imersão mística não é um auto apagamento antecipado, mas uma
profunda inspiração. As chamadas práticas taoístas da “respiração embrional”,
permanecem por razões óbvias, inacessíveis aos europeus e por grande parte de nós.
384
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AGAMBEN, Giorgio. A Potência do Pensamento: Ensaios e Conferências. Tradução: António Guerreiro.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015, pp. 83-95.
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técnicos e a cultura das engenharias nessa corrente base que é a literatura, a primeira
arte da escritura. O progresso nunca nasce da renúncia.
Mas, acima de tudo, na Europa Central, no norte da Europa, o poder educativo
do humanismo clássico acabou. Nos anos 50 e 60 do século passado, houve na Alemanha
um renascimento do humanismo clássico, que reagiu contra a era bárbara nazista. Então
a modernização generalizada, que começou após a Primeira Guerra Mundial em todo o
mundo ocidental, foi imposta novamente. Desde então, nem o livro nem a Igreja
desfrutam de poder como educadores. Esse lugar é agora ocupado pelo capitalismo. A
pedagogia que formou o homem com a palavra escrita e a palavra de Deus foi substituída
por outra em que prevalece a voz do mercado e do dinheiro. Hoje em dia há apenas um
grande tema de estudos, são os estudos de Capital (estudos da capital) ou os estudos do
dinheiro (estudos do dinheiro). Todos os universitários são transformados pelo poder
educativo do mercado, incluindo medicina ou ética. Desde que existe como gênero
literário, a filosofia recruta seus seguidores escrevendo de modo contagiante sobre amor
e amizade. Ela é não apenas um discurso sobre o amor à sabedoria (polymathie), mas
também quer impelir os outros a esse amor. O acesso da Europa antiga ao mundo da
experiência está pré-configurado por adestramentos gramaticais, com efeito, nesta zona
de cultura escrita, a própria matéria do mundo é formada segundo a sílaba, a linha, a
página, o parágrafo e o capítulo, colocando a nós, os leitores, em uma situação de que
somos observadores que guardam distância. Cícero inventou o conceito de “cultura”
ainda hoje válida para comparar o cultivo da alma com o cultivo do campo. Para ele era
óbvio que a melhor maneira de cuidar do campo da alma era com a literatura. Ler
funcionaria como uma forma de colher no campo do saber, o homem que ler vira um
adestrado discreto que pode ter a capacidade, por exemplo de epoché. Quem aprendeu
a olhar para rolos escritos e páginas impressas está já praticar distâncias em relação ao
escrito, que por sua vez, mantém distância ao falado e ao experimentado. Se Heidegger
falava em que pensar o agradecer formavam um par, o ler e colher não seria diferente.
O leitor precisa antes de tudo, saber ler, ou seja, ter sido ensinado a ler. A partir disso,
ele se torna um agente de uma nova forma de concentração, ele não colhe apenas, mas
torna-se ele próprio uma coleção, uma pessoa que se encheu de saber e que anda de um
lado para outro entre silos internos e externos. Homens podem ser bibliotecas internas
com os mais diversos livros, inclusive o livro da sua própria vida. É por isso que como
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ocidental é uma das formas científicas do individualismo metafísico, ela está preocupada
com a interrogação sobre o “quem” e o “como”.
É somente com uma retirada do espaço social vazio que a noção de Deus como
primeiro leitor de pensamentos se tornou tão poderosa. Ao caminhar para o deserto,
forço Deus a me vigiar e dar atenção para mim. É exatamente para o deus dos eremitas
que se transfeririam os restos da função participativa íntima nos grupos primitivos. É ele
que garante que o asceta no deserto não está sem deus parceiro e acompanhante, que
o envolve, o observa e o espreita. Só com a escrita se explodiu as linhas do círculo mágico
da oralidade e emancipou os leitores do totalitarismo da dala em seu imediatismo
espaço-temporal. A era oral do mundo coincidiu com a pré-história mágica e
manipulativa das almas, pois a situação normal era exatamente a possessão imediata
pelas vozes e ruídos dos membros das ilhas antropogênicas. Os humanos advêm de uma
situação de separação. Uma ilha é uma ilha porque está isolada e a realidade humana é
o resultado de uma grande operação de isolamento. O processo conducente a realidade
humana é na autorreclusão de um grupo humano, ela transforma os habitantes do grupo.
Inicialmente não é a linguagem, todavia, porém, nós nos fechamos dentro de uma
campana sonora especificamente humana: descendentes de uma seita acústica. Vivemos
em nosso ruído e, desde sempre, o ruído comum foi a realidade constitutiva do grupo
humano. Hoje, pela primeira vez na história, os humanos estão rodeados de isolantes
acústicos. Em outras palavras, o habitante de cada departamento decide o que ouvirá e
o que não ouvirá. Isso é uma grande realidade de nossa época. Basta vermos o “total
chamamento” de eventos pop, do Festival de Música em Paris. Nesse momento, homens
decidem submergir no ruído de um grupo ocasional, perdem a capacidade de decidir.
Pela manhã, quererem fazer participação ao se levantarem dentro de um apartamento
onde estão sós e, em princípio, reina o silêncio matinal. Seu gesto constitutivo, sem seu
ciclo de vida cotidiana, consiste em eleger uma música ou uma frequência de rádio que
lhe permita romper o silêncio noturno. Pela primeira vez, existe, uma espécie de desjejum
acústico. Os mediólogos do século XX, McLuhan e Debray, fizerem notáveis notas acerca
da compreensão das realidades insulares que mencionamos
Pela própria natureza do assunto as chamadas curas psicanalíticas, como visto
antes no magnetismo animal e no mesmerismo, deveriam exibir efeitos participativos
pré-verbais, que a ilusão individualista havia deformado e convertido em mistérios de um
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É sabido que a evolução humana passou por várias fontes de atenção. Uma delas
pode ser vista pela significativa teoria da rivalidade mimética de René Girard. Os
fenômenos da atenção parecem capazes de uma tripla explicação: I – descreve a atenção,
em parte mórbida, do rival em relação a um objeto desejado por outro que não ele; II –
assinala a atenção fascinada que é dada pelos membros de um grupo agitado pela crise
ao assassinato do bode expiatório, à agora numinosa vítima de violência que o origina o
sagrado ; III – fundamenta a atenção com que nas sociedades pré-modernas, deve ser
assegurada a consideração geral perante as proibições de imitação preventivas de crises.
As duas obras quem podemos observar isso é A Violência e o Sagrado (1972) e Coisas
Escondidas Desde a Fundação do Mundo (1978).
Poderia se possível dizer que a “humanidade” no seu contexto de todo, é um
produto da intensificação revolucionária luxuosa da atenção, portanto, a subjetividade
humana ganha contornos para além, ou talvez, para anteriormente, pensarmos de uma
autoconsciência individualizada, mas a partir de uma colisão primitiva de simbiose da
vigília do indivíduo e a vigília dos seus co-veladores. De agora em diante, devemos
trabalhar com a ideia de uma unidade, a mais mínima que seja, de autoconsciência ser já
uma díade, com o próprio eu e o seu velador e o indivíduo vigilante e o outro eu velado
por ele. É por isso que Heidegger trabalha com a imagem de um discurso pastoral ético.
Ele toma essa condição de duas formas, uma: da imagem do bom pastor cristão que faz
por suas ovelhas. E outra: metáforas bucólicas-campestres do jovem pastor. Os homens
têm de prometer a si a vida, antes de poderem conduzi-la. É decisivo para nós, que
acontece sob uma situação de promessas dispensadoras de vida, estamos desde o início
até o nosso fim, obrigados ao respectivo cumprimento. Sem uma canalização em forma
de afluxos constantes de afirmações que nos prometem e confirmam nossa vida, não
poderíamos existir. O custo de nossas vidas sempre vem hipotecado em forma de
promessas. Promessas que quase sempre são impossíveis de serem cumpridas. Quando
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as mães tomam seus filhos em seus braços e lhes afiançam que “tudo vai ficar bem”, elas
prometem mais do que é possível cumprir, mas também não podem deixar de o fazê-lo,
se não quiserem, em má ocasião, deixar as crianças mergulhadas na insegurança. Os
homens não chegam ao mundo como indivíduos sólidos em mundos robustos, antes o
contrário, o mundo abre-se aos poucos para eles, por terem nascido um pouco ao lado e
terem sido expostos no não dado, no inquietante, no estranhamento. Foi Nietzsche quem
formulou apenas até meio esta questão ao falar do niilismo como um visitante sinistro
que assedia a existência moderna. Estas circunstâncias ficam compreensíveis por que a
razão a vida só involuntariamente e sob extrema coação consegue prestar contas a si
mesma quanto à sua lugubridade inicial. É que o sentido usual das “contas prestadas”
está em certificar que a vida é algo calculável, razoável, familiar, segura. A promessa
inicial da vida se chama razão, pois consiste em protestar contra o não cumprimento de
promessas e “dívidas” e insistir que a razão cumpra aquilo que promete. Nesse sentido,
a antropologia ganha quase um caráter “edificante” ao construir formas de vida em cima
de promessas. O homem é esse ser que é leviano por não ser um animal que se atreve a
entrar no mundo que apenas é “dado” por promessa. Platão em O Político fala
particularmente nas noções de reprodução e domesticação que o próprio Nietzsche
usaria. Na tentativa de fazer uma definição sobre o político, uma série de considerações
é estabelecida sobre a relação entre seres humanos e animais que culminará em uma
primeira definição do político como pastor do rebanho humano. Platão distingue com
precisão entre a criação de seres humanos e a criação de animais, para então estabelecer
que dentro dos animais seria doméstico e selvagem. Nesse sentido, Platão ressalta que
uma ciência que está procurando, ou seja, um político, e sobre os animais submetidos à
domesticação, isto é, aos domar. O resto seriam animais selvagens. O homem seria uma
criatura sem criador, mas com cuidadores. Já que uns tomam conta dos outros (rebanho
e pastor) ou uma espécie de guardiões uns dos outros (biopolítica-biopoder misturado
com ética). O homem é que é chamado pelo ser para pastorá-lo. Linnaeus atribuía ao
homem uma não identidade específica senão a de poder reconhecer-se, mas definir o
humano não por meio de uma nota característica, mas por meio do conhecimento de si,
significava que é homem aquele que se reconhece como tal, que o homem é o animal
que deve reconhecer-se humano para sê-lo. No momento do nascimento, diz ele, a
natureza gerou o homem “nu sobre a nua terra”, incapaz de falar, conhecer, caminhar,
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nutrir-se, se tudo isto não lhe fosse ensinado. Ele só se torna si mesmo caso se eleve
acima do homem. Como fundador da taxonomia científica moderna, Linnaeus tinha uma
queda por macacos. Uma nota ao Systema naturae liquida a teoria cartesiana que
concebia os animais como automata mechanica (autômatos) com a afirmação de que
“Certamente Descartes jamais viu um macaco”. Em um escrito posterior, Menniskans
Cousiner, primos do homem, ele fala do qual difícil é identificar, do ponto de vista natural,
uma diferença específica entre os macacos antropomorfos e o homem. Uma obra
bastante séria como a Ichthilogia de Peter Artendi (1738), enumerava a sereia ao lado
das focas e dos leões-marinhos, o próprio Linnaeus, em seu Pan Europaeus, classifica a
sereia (que o anatomista dinamarquês Caspar Bartholin), chamava de Homo marinus,
junto do homem e dos macacos. O Homo sapiens não é, portanto, nem uma substância,
nem uma espécie definida, é sobretudo, uma máquina ou um artifício para produzir o
conhecimento de si mesmo como conhecimento humano. A máquina antropogênica (ou
antropológica), é uma máquina óptica, tal como o dispositivo escrito no Leviatã, de cuja
introdução talvez Linnaeus tenha retirado sua estrofe. Nosce te ipsum, read thy self (ler
o outro), como Hobbes traduz este saying not of late understood (ditado bastante usado
hoje em dia), é construído de uma série de espelhos nos quais o homem, olhando-se, vê
sua própria imagem que é desde sempre já deformada com traços de macaco. O Homo
é um animal constitutivamente “antropomorfo”, isto é, “semelhante ao homem”,
segundo os termos que Linnaeus usa, que deve para ser humano (homo sapiens sapiens:
homem que sabe; homem sábio), reconhecer-se em um não-homem. Na iconografia
medieval, diz Agamben, “o macaco tem um espelho”, no qual o homem pecador deve se
reconhecer como macaco de Deus (simia dei). Na máquina óptica de Linnaeus, aquele
que recusa reconhecer-se como macaco se torna um, fazendo referência à Pascal quando
diz “qui fait l’homme, fait le singe (quem faz o homem faz o macaco). Linnaeus na
introdução ao Systema, definiu o Homo como o animal que é somente se ele próprio
reconhece a si mesmo não ser, deve suportar que macacões em trajes de críticos subam
pelos ombros para dele zombar: Cartesius certe non vidit simios. Como sua criação se deu
sem um modelo definido, ele não possui propriamente uma face e deve moldá-la a seu
desejo de forma divina ou bestial. É nessa definição de uma “ausência de face”, funciona
a máquina de Linnaeus em classificar o homem entre os Anthropomorpha, isto é, entre
os animais “semelhantes ao homem”. Enquanto não há essencial e nem vocação
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pela ignorância para a situação na qual eles agora se encontram. Eles são vítimas da
sociedade. Essa defesa ante o pessimismo político em relação à natureza humana é de
início arrebatadora. Ela tem o seu favor a superioridade do pensamento dialético em
relação ao pensamento positivista. Ela dilui os estados e as qualidades morais em
processos. Não há nenhum homem brutal, mas apenas brutalização do homem. Não há
nenhum homem menor, mas apenas a vítima de uma tutela. O que o positivismo político
supõe como sendo a natureza, não é, em verdade senão a natureza falsificada: repressão
das oportunidades humanas. Rousseau conhece dois ajudantes, que precisaram ilustrar
sua visão, antes da perversão: o bom selvagem e a criança. Em torno dessas duas figuras,
a literatura esclarecida desdobra as duas de suas paixões mais íntimas: a etnologia e a
pedagogia. Já se observava em Rousseau um refinamento duplo, que buscava esconder
uma dupla moral. O fato de ele ter feito a união a natureza e a infância em uma nova
ideia de educação. A passagem do animal ao homem, apesar de ênfase predominante na
anatomia comparada e em achados ósseos, era, na realidade, produzida por meio de uma
subtração de um elemento que não tinha nada a ver nem com os outros, era em vez
disso, pressuposto para a marca do humano: a linguagem. Em uma análise filosófica, fica
a pergunta quando criamos o conceito de infância? Criança sempre existiu, mas infância
é algo novo. O infante é aquele que não fala, enquanto não fala há infância. Esta é a ideia
inicial de infantil, infante, infância. Há aí a preocupação com aquele ser que não fala,
alguém que precisava ser cuidado. Locke punha, por exemplo, para uma boa escola coisas
do tipo “quem poupa a vara, odeia a criança”. Alguém consegue imaginar isso nos dias
de hoje? Uma propaganda com esses dizeres? O bater é alguma coisa do endireitar, do
disciplinar. Não se faz isso com adultos, a não ser no caso dos escravos. Tinha-se uma
noção de infância, mas não como a de hoje. A noção de infância que temos hoje está
mais para a do século XVIII, com Rousseau. Rousseau diz que devemos proteger a
infância, tirarmos ela do contato da cultura e não a macularmos com elementos da
cultura. Nós vamos proteger a capacidade da criança de ser pura e verdadeira. Quanto
mais se alonga a infância, mais o homem convive com a verdade até chegar um momento
em que ele vai ter que passar para o mundo da cultura onde vai aprender a mentir, não
considerar a verdade. Há mais chances, digamos, de o indivíduo ser sincero, um claro
projeto filosófico. Isso muda a visão do século XVII, porque aí a tendência é expandir a
infância para além da nomenclatura. A infância não é só ao que não fala, mas a um tipo
401
de longa fase que coincide com o desenvolvimento da psicologia onde se fatiaria esta
fase: infância, pré-adolescência, adultos, idosos, etc. Convivemos com um Romantismo,
ou um pré-Romantismo Rousseauniano hoje em dia na psicologia, medicina e
puericultura. Poderíamos pensar: uma escola que transmite conhecimentos merece,
desta perspectiva, ser conservada? Para isso, devemos entender que a educação em si
mesma é uma atividade conservadora. Um professor progressista é um conservador que
esconde o lado retrógrado de sua atividade. A um verdadeiro educador não lhe ocorre
propor, como fez em 2003, o novo Ministro da Cultura da Alemanha, a introdução da
música pop na grade e salas escolares. Essa loucura progressista oculta um núcleo vazio
ou reacionário. Em resumo, haveria que ser conservador com as riquezas adquiridas. Não
se pode pertencer a uma civilização que se despreza. A civilização não consiste só em
saber fazer, mas sim apreciar a riqueza. E ser de esquerda equivale a combater a pobreza
em todos os seus âmbitos.
Dentre os diversos tipos de produções artísticas que Le Brun dedicou o seu
talento, estão estes trabalhos onde ele se aventura na arte do estudo da fisionomia. Hoje
entendemos a palavra “fisionomia” como o conjunto de características físicas do ser
humano que podem ser descritas. Porém, fisionomia foi uma área de estudos das
características físicas aparentes que tentava entender não só o caráter, mas também a
alma do ser humano. Na Inglaterra do século XIX, Charles Darwin (1809-1882) deu
continuidade à tradição em seu trabalho “The Expression of The Emotions in Man and
Animals”, A Expressão de Emoções no Homem e nos Animais de 1872. A visão de Darwin
neste trabalho foi um marco para sua teoria da evolução pois assim ele demonstrou de
uma vez por todas que o Homem não era uma espécie separada e criada divinamente, e
não diferente dos outros animais. O resultado foi um estudo de expressões que tentou
identificar os específicos estados mentais e emocionais bem como as suas
correspondentes expressões, para depois mapear os seus descendentes comuns através
de grupos de organismos relacionados. Se isso pudesse ser realizado, humanos como o
amor, raiva, medo, e luto poderiam ser tratados como hábitos físicos e provados como
tendo paralelos claramente reconhecíveis, talvez até mesmo suas origens, no mundo
animal. Também foi no século Xix que aparências físicas foram adotadas na área da
criminologia com o italiano Cesare Lombroso (1835-1909) desenvolveu o estudo
402
Como todos sabemos a ideia de desinfetação foi algo que surgiu no século XX.
Com o Nacional Socialismo isto seria tomado literal e metaforicamente. Estariam eles
assim agindo em legítima defesa. Tanto a desinfetação no sentido de acabar com o meio
de existência ou meio de vida de uma praga, como a desinfetação física dentre outros, os
judeus. Uma anotação aforística do diário do ministro de propaganda do Reich, Goebbles,
de 2 de novembro de 1941, confirma a estável associação entre o âmbito entomológico
e político de representação: “Os judeus são os piolhos da humanidade civilizada”. Um
atestado claro de uma assepsia e da animalização do humano. Vemos uma exclusão de si
como não-humano um já humano, uma “classificação de outra espécie” (imigrantes?). O
Holocausto: humanos subjugados por um Estado totalitário (o nacional-socialismo como
uma máquina antropológica muito específica em sua política racial e biológica (o alemão
é a terra e o sangue), exterminados em matadouros. Haushofer, geopolítico nacionalista
alemão não tinha falado de “espaço vital”? Uma clara postura defensiva da preeminência
alemã e a doutrina de ampliação de espaço. A analogia talvez não seria com gado, como
queria Paul Singer e Elizabeth Costello, mas com uma infestação de insetos: baratas,
cupins, formigas. Está no termo usado por Hitler (Ungeziefer) que Ricardo Piglia observa,
em Respiração Artificial de 1980, ser o mesmo utilizado por Kafka para denominar o
inseto no qual Gregor Samsa havia se transformado. Na época, haviam relatos médico-
militares de que os judeus eram quase todos portadores de epidemias. O não-homem
produzido no homem e pelo homem. A vida nua de Agamben junto com seu estado de
exceção – tomamos a vida como “zoé”, a vida nua, e não mais a vida enquanto “bios”, a
vida dentro da sociedade, em Sloterdijk fica imunologia. Uma tese que reúne topologia
com uma imunologia base. Instalações de lugares para estar consigo mesmo é uma
medida antecipatória e preventiva de prováveis transtornos que o bem-estar possa sofrer
fora da esfera própria. Chegamos em uma dinâmica da casa-habitação como sistema
espacial de imunidade. Essa explicação transcende os muros e as paredes próprias que
olhamos em fronteiras, salas de espera, de consultórios ou sala públicas, como geradoras
de hábitos e situação emergente (indoors).
404
Identificava-se o homem falante como um posto fora de si, como já não mais
humano, o próprio mutismo. A infância é, por definição, uma época (histórico-
transcendental em Agamben, e não uma época empírico-psicológica) em que não temos
fala. O in-fante é aquele que não fala. Todavia, na infância temos fonemas, voz, que
depois são transformados na nossa fala enquanto linguagem. Mas a linguagem não é a
nossa voz. A linguagem é o que vem no lugar da voz que não veio, que se perdeu. Não
somos como os animais, que possuem voz. Somos os sem-voz, que falamos a linguagem,
um “elemento de razão” que está pronto, e que nos toma. Adquirimos a linguagem antes
dos doze anos ou não teremos mais fala. Não à toa Heidegger notou que é a linguagem
quem fala pela nossa boca, nós mesmos, de certo modo, estamos mudos, ou sem voz
própria. Sair da infância é, então, cantar e cantar exatamente na medida em que não se
tem mais voz, e sim linguagem. Cantar é o modo de escapar da prisão da linguagem, da
“escravização da semântica”. Sloterdijk trabalha com a antropogênese e a antropotécnica
chamada neotenia. A neotenia é a incorporação de traços infantes e juvenis no fluxo
sanguíneo DNA (filogênese da espécie – a partir da história da espécie) e da ontogênese
405
(da história do indivíduo). O homem passou a ser um animal com traços eternamente
joviais. A neotenia é uma “teoria da fetalização” ou de retardamento. Os humanos
mantêm características joviais na idade adulta vem função de um tipo de retardamento
no crescimento do cérebro. Nunca paramos de aprender e não nascemos "prontos", nove
meses é pouco para nós. Isso nos dá um guia da existência humana em 3/7 da fase de
gestação bio-psicologicamente fundamental em meio do organismo materno, os outros
4/7 em uma situação de nicho estável ou “estância no exo-útero”. O ponto fundamental
entre uma e outra é que ambos os estados criam uma dinâmica de transferência que
nunca pode ser levada até o final. Teríamos então, 9 meses e 12 meses, visto como
endogestação mais exogestação que combinadas possibilitam as condições de entrada
de mundo. O ser-em-no-mundo começa no homo sapiens com o fato de que os recém-
nascidos chegam com uma demanda intransferível de repetição da posição uterina no
exterior, o absolutismo da exigência ou necessidade infantil tem aqui forma de uma
ordem ditada pelo desamparo. Uma interação entre essas duas “instâncias” formadoras
de envoltura e complacência do companheiro para sua animação. O um visto como o
meio necessário para a imaturidade e como convite ao ar livre. Um estímulo para o
descobrimento do mundo que é um estranhamento do mundo para as primeiras lições
da experiência.
Propomos uma resposta para essa questão que certamente vai soar à maioria
dos leitores como evidentemente absurda. Os bebês humanos nascem como embriões e
como embriões permanecem durante os nove primeiros meses de vida. Se as mulheres
dessem à luz quando “deveriam”, depois de uma gestação de cerca de ano e meio, nossos
bebês teriam as mesmas características precoces de outros primatas. Sloterdijk diz que
os humanos vieram ao mundo com um grau de madurez análoga aos dos primatas e que
necessitaríamos de 21 meses de gestação, o que obviamente, torna-se impossível tanto
neurológica como endocrinologicamente. Isso significa, que o desenvolvimento humano
é lento se comparado com outros animais, em função disso, o homem pode conservar
características fetais até a fase adulta. É possível afirmar que devido esse inacabamento
biológico o homem consegue marcar sua realidade por uma multiplicidade de condutas
diversificadas originais, ao contrário de outros animais já biologicamente desenvolvidos
e “estagnados”. Poderíamos pensar em antropotécnicas até mesmo na conservação
dessa jovialidade como filhos e mães cada vez mais parecidos, uso de cosméticos,
406
64
SLOTERDIJK, Peter. A Mobilização Infinita: Para Uma Crítica da Cinética Política. Tradução: Paulo Osório
de Castro. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2002, p. 124.
407
o caráter de trabalho. Nesse sentido, as janelas seriam as clareiras das paredes, por trás
das quais as pessoas se transformaram em seres capazes de teorizar. Também os
passeios a pé, nos quais movimento e reflexão se fundem, são derivados da vida
doméstica. As mal afamadas caminhadas meditativas de Heidegger por campos e
bosques não deixam de ser movimentos típicos de quem tem uma casa atrás de si.65
Heidegger, por outro lado, é definido por Derrida como "aquele que podia
permanecer", que tinha uma casa atrás de si - e que fazia tanto da casa como do retorno
premissas de seu pensamento. É responsabilidade da casa formar adequados
construtores de casas futuras, eis o papel do administrador, do sábio, Heidegger. O
reverso da moeda está não só em Extinção, com a fuga e depois a liquidação, mas
também em O Sobrinho de Wittgenstein, de Bernhard, em que a casa ganha sua feição
menos edulcorada e se transforma na Instituição Psiquiátrica. Esse é o lado perverso da
casa que começa a surgir em Robert Walser. Ele também um caminhante meditativo, e
explode nos anos de castigo de Fleur Jaeggy (aqui a instituição também é liquidada, como
a casa de Bernhard). Pode-se pensar na casa paterna em Kafka, uma mescla de
manicômio, prisão e museu de história natural.
65
SLOTERDIJK, Peter. Regras para o Parque Humano: Uma Resposta à Carta de Heidegger Sobre o
Humanismo. São Paulo: Estação Liberdade, 2000, pp. 36-37.
408
Heidegger, o filósofo da floresta. Cabana na Floresta Negra. Heidegger ficou conhecido, assim
como Nietzsche, em fazer caminhadas, no caso de Heidegger, nas chamadas florestas negras. No
Brasil, temos sua obra Holzwege – Caminhos de Floresta de 1950.
para explicar a essência de uma boa construção, diz ele que “A bolha de sabão é
completamente harmônica, caso o sopro nela contido seja distribuído igualmente, e bem
regulada internamente”. Esta declaração poderia ser considerada o axioma da
esferologia: o espaço vital só pode ser explicado em termos da prioridade da parte de
dentro.
Uexküll, caminha por estabelecer, em sentido contrário, uma variedade e uma
infinita possibilidade de mundos perceptíveis, igualmente perfeitos, válidos, ligados entre
si. Não à toa ele faz suas reconstruções do ambiente do ouriço-do-mar, amebas, águas-
vivas e anêmonas-marinhas. Frequentemente diz ele, nós imaginamos por um bom
tempo que as relações que um determinado sujeito animal mantém com as coisas de seu
ambiente têm seu lugar no mesmo espaço e no mesmo tempo daquelas que o ligam aos
objetos de nosso mundo humano. Essa ilusão é baseada na crença em um único mundo
no qual se situaria todos os seres viventes. Uexküll mostra com seus trabalhos de zoologia
e um dos fundadores da ecologia, que um tal mundo não existe, assim como não existe
um tempo e espaços iguais para todos os seres viventes. Animais possuem diferentes
formas de interação com o ambiente, abelhas, crocodilos, coelhos não se movem no
mesmo mundo em que nós os observamos. É por isso que o vimos ingressar na
Universidade de Hamburgo, fundando o Institut für Umweltforschung, lhe garantindo a
notoriedade. Nome bastante curioso e predominante no século XX, especialmente, nos
estudos de ontologia. Uexküll começa por distinguir o Umgebung, o espaço objetivo no
qual vemos mover-se um ser vivente, do Umwelt, o mundo-ambiente que é constituído
de uma série mais ou menos ampla de elementos chamados “portadores de significados”
ou de “marcas”, que são os únicos que interessam ao animal. Esse Umgebung é, o nosso
próprio Umwelt, a que Uexküll não atribuiu nenhum privilégio específico e que pode
variar segundo o ponto de vista do qual observamos. Não existe uma floresta como
ambiente objetivamente determinado. Existe uma floresta para um caçador, uma floresta
para ativistas, uma floresta para bruxas, uma floresta para botânicos, uma floresta para
empresas privadas, uma floresta para turistas. Assim como, na utilização de mínimos
detalhes como a forma que uma formiga utiliza as folhas de uma floresta, uma borboleta
que se pendura em uma folha, uma vaca que se alimenta, mastiga e engole. Seria como
se cada ambiente funcionasse como uma unidade fechada em si mesma, que resulta da
seleção prévia de marcar ou elementos, que são, o ambiente do homem. O observador
410
brotam de um único canal, um “solo” monopolizado. A árvore com sua raiz parece com
o Uno, o Privilegiado, O monótono, atributos que devem ser superados. Por isso, Deleuze
e Guatarri trataram de substituir o paradigma da árvore por uma ramificação
subterrânea, um tipo de rede imbricada em forma de fungo, uma vida reticular de bolbos
vegetais com excessos laterais. Não se pode negar que a árvore possui uma complexidade
aristocrática, ramifica-se a partir de um centro orgânico e não teme as alturas, já os
rizomas representam um tipo de complexidade anarquista e não hierárquica. As relações
de afinidade são transformadas por relações de vizinhança, até mesmo como como
aquilo que se coloca em rede, o que desenvolveriam as metáforas modernas horizontais
e de prolongamentos de carpetes em tons antigenealógicos. Os rizomas são
poliorganísmico, pois se arrodeiam de associações democráticas de base, no sentido
contrário, a árvore seria retratada como mono-organísmica como uma forma de
simbologia monocrática ou totalitária. A árvore é o Estado e o rizoma o subsolo. No seu
ensaio chamado Rizoma, os dois filósofos escreveram no abandono da crença em
árvores, em vez disso falam sobre rebentos transversais, raízes aéreas, impulsos laterais,
frutos anárquicos, celebram a clonagem e a internet, que eles ainda não poderiam
conhecer em 1980 quando da publicação de Mil Platôs. Com a leitura dessas obras
compreendemos como que a lógica da clonagem e da internet correm paralelamente,
ambas funcionam através de cópias em anexações transversais.
O projeto italiano The Capsula Mundi é uma representação perfeita desse conceito.
Desenvolvido pelos designers Anna Citelli e Raoul Bretzel. É uma vagem em forma de ovo, uma
forma antiga e perfeita, feita de material biodegradável, onde nossos entes queridos são
colocados para o enterro. As cinzas serão mantidas em pequenas bioletas em forma de ovo,
enquanto os corpos serão colocados em posição fetal em vagens maiores. A Capsula será então
enterrada como uma semente na terra. Uma árvore, escolhida na vida pelo falecido, será
plantada em cima dela e servirá como um memorial para os que partiram e como um legado
para a posteridade e o futuro do nosso planeta. A família e os amigos continuarão a cuidar da
árvore conforme ela cresce. Poderemos contar ainda com os mortos agora no formato de
árvore com nome (pai, mãe, sobrinho).
Também em Vilém Flusser, de “espaço vital” como uma “caixa longa e larga, mas
baixa”. Se formos para Gabriel Tarde veremos que uma nação que fora tão alta como
larga superaria em muito o âmbito respirável da atmosfera e a crosta da terra não
ofereceria materiais suficientemente sólidos para as construções titânicas desse
desenvolvimento vertical de cidades. Essa interpretação como aglomerações humanas
com um olhar para as condições estáticas, formais e atmosféricas da coexistência de
seres humanos no espaço nos leva para uma condição analítica de associação como
compreensíveis com configurações planas de agregados do tipo “sociedade” humana.
Nesses apontamentos a “sociedade” aparece como carpetes interconectados e sua
414
retornar a uma ontologia do ponto, mas tomar, como variável mínima em nosso
pensamento, a célula que é capaz de constituir um mundo. Um pouco mais de
monadologia não faz mal a ninguém: a mônada não é um ponto desprovido de extensão,
ela tem o caráter de um micromundo. “Célula” expressa o fato de que o lugar individual
tem o formato de um mundo. As metáforas de tecido ou rede, talvez, forneçam nós
momentâneos a você, mas você não pode habitar um nódulo. Em contraste, a metáfora
da espuma enfatiza a espacialidade microcósmica intrínseca de cada célula individual.
Dessa forma “sociedade” é uma reunião reunida, micrototalidades, que possuem uma
estrutura sem ângulos retos, onde vemos um leve “esbarramento” de bolhas com outras
bolhas ganhando tamanho, volume, ar, molhadas. Um cacho de uvas, espumas, uma
alcateia de lobos. Para que sua morfologia se estabilize é preciso haver um leve
“secamento”, não necessariamente impossibilitador de maleabilidade, mas formador de
tensões e de estresse. Paredes tensionadas garantem um preenchimento como ar em
um balão. Não há formas retangulares na espuma, e isso é uma interessante notícia. E
não há mais quaisquer estruturas esféricas primitivas, especialmente se as espumas
forem além de suas etapas úmidas ou autistas. Em seu interior, forças recíprocas de
deformação estão sempre trabalhando, de modo a garantir que tenhamos estruturas que
não sejam planas e onde regras geométricas mais complexas prevaleçam. Vivemos em
uma era em que as paredes estruturais clássicas, baseadas em forças de pressão, dão
lugar a estruturas baseadas em forças de tensão. Fazemos referência nas já conhecidas
tensegridades de Fuller, em edifícios pneumáticos e em estruturas de ar do século XX. A
nova lógica das estruturas funciona muito além de todas as paredes e pilares. As
tensegridades formam a transição técnica da metáfora da espuma às modernas
construções. A espuma é um tipo de tensegridade natural, especialmente quando para
de tomar a forma de espuma “individualista”, em que, em solução líquida, bolhas
individuais flutuam passando umas pelas outras. Um esfregar com força raramente
ocorre. Se uma espuma envelhece e seca (uma imagem que poderia ajudar é aquele
mosquito no filme Jurassic Park de 1993 dentro de Âmbar – uma formação estilo cristal
seco), uma estrutura complexa interna emerge. Muitas bolhas estouram, ar residual das
bolhas estouradas entra, então, em bolhas adjacentes, e a espuma seca a partir de
dentro. Emergem estruturas mais bonitas e exigentes morfologicamente – complexas,
espumas de poliedro. Elas são completamente definidas pelo padrão de co-isolamento,
416
que diz que a célula da espuma compartilha com sua vizinha o fato de que é separada
dela – ela diz “minhas paredes são suas paredes”. O que nos une é que viramos as costas
uma a outra. O conceito de co-isolamento é fundamental para o universo de formas
espumosas. A adjacência do mundo se projeta, ou ainda, espaços de convivência dentro
de uma estrutura co-isolada possuem uma qualidade diferente de vizinhanças de espaço
de culturas tradicionais segmentadas. Co-pertencimento, co-emparelhamento, co-
participação, co-isolamento. Tudo o que é social é parcializável. A espuma, é a forma com
a qual trabalha a “sociedade” em que vivemos, uma expressão muito útil para aquilo que
os arquitetos chamam de “densidade”. Ela mesma um fator negentrópico. A densidade
pode ser expressa em termos psicossociais por um coeficiente de irritação mútua.
Pessoas geram atmosfera exercendo pressão mútua umas nas outras, empurrando umas
as outras. Nós nunca devemos esquecer que aquilo que chamamos “sociedade” implica
o fenômeno de vizinhos não bem-vindos, apesar de toda bolha ter um grau de autismo
inerente ao si mesmo, então, densidade é também uma expressão para nosso excessivo
estado comunicativo. Qualquer um que leve a densidade a sério, em contraste, finda por
reconhecer o valor de paredes. Essa observação não é mais compatível com o
modernismo clássico, que estabeleceu o ideal de habitação transparente, o ideal de que
as relações de dentro deveriam ser refletidas nas relações de fora, e vice-versa. Hoje,
estamos novamente colocando em primeiro plano um modo em que uma construção
possa se isolar, embora isso não possa ser confundido com sua solidez, nem com uma
solidão absoluta. Visto como fenômeno independente, o isolamento é uma forma de
explicação das condições de convivência com vizinhos. O reconhecendo em um certo o
valor do isolamento é o início, descrevendo uma dimensão da coexistência humana que
reconheça que as pessoas também possuem uma necessidade infinita por não
comunicação. Todas as características ditatoriais da modernidade se originam de uma
antropologia excessivamente comunicativa por tempo de mais, a noção dogmática de
uma imagem excessivamente comunicativa do homem foi ingenuamente adotada. No
que se refere à imagem da espuma, você pode mostrar que as formas pequenas nos
protegem da fusão com a massa e com as correspondentes. Nesse sentido, a teoria da
espuma é uma policosmologia.
Quem quiser falar nos dias de hoje de figura, como um teórico da cultura, deve
prestar atenção à Spengler. A sua experiência central está na observação de que as
417
formas têm vida própria. Gestalt (figura) e “forma” (form) são sinônimos. A forma que
chama a atenção de Spengler não é outro senão o que ele chama de cultura, vinda da sua
tradição de zoologia aristotélica e em Goethe. Para ele, como para os estruturalistas
posteriores, como Lévi-Strauss e Propp, os homens só têm alguma importância como
delegações de formas, que são anteriores e começam antes deles, atuam mediante eles
e vão, por assim dizer, mais longe, mais além, dão um salto para além deles. Ideia
semelhante foi estabelecida por Marx, em uma desconhecida frase, de que toda a história
“é a história das tensões diferenciais de formas”. Não é sem razão porque Spengler tinha
um tipo de jogo filosófico vitalístico em que a vida poderia ser considerada como
substância e os indivíduos como acidentes – uma outra ponta solta da biologia, é só com
esse raciocínio que, Spengler conseguiu definir as “culturas” como “seres vivos de ordem
superior”. Para ele, existiria uma lei relativa à figura, um tipo de força maior estrutural
que faz com que, culturas, aqui ou acolá do seu arco figurativo, só tenham de intervir
acontecimentos, atores e instituições de um certo tipo de qualidade formal
predeterminada. Como vimos em Espumas, nos dizeres de Sloterdijk ao evocar
Wittgenstein ao dizer que “a cultura é uma regra de ordem ou pressupõe uma regra de
ordem” (ou que todo conteúdo é forma). Para esse campo de ação e de tais regras
Sloterdijk chama de nomotopo. O espaço das tensões legais que fornecem um grupo com
uma espinha dorsal normativa. Até mesmo as estruturas também conhecem os
crepúsculos dos ídolos. Ordens que se mantém no poder como ídolos estruturais até que
outras se imponham se colocando em seu lugar. Ordens formais que perpassam a vida,
o trabalho, a linguagem, os indivíduos, os povos, as culturas. Foi em Bachelard com a sua
Poética do Espaço que Sloterdijk construiu grande parte de sua esferologia. Em um
capítulo da Poética do Espaço chamado “A Fenomenologia do Redondo”, que Sloterdijk
encontrou duas teses: a de que “O mundo é redondo ao redor da existência redonda”,
esse seria o início da microesferologia no sentido de Esferas – Bolhas. A segunda tese é
de que “A esfera da geometria é a esfera vazia, essencialmente vazia. Esta não pode nos
servir como bom símbolo para os nossos estudos fenomenológicos sobre a redondez
total”. Fica evidente depois disso que, não pode existir uma figura esférica no sentido
geométrico, pois as esferas devem ser imaginadas como “espaços grávidos”, “redondezas
preenchidas”, “espaço recipiente”. As esferas são edificações da redondez, cosmos
esféricos sem se utilizar o compasso, esferas metafóricas. É por isso que Bachelard chega
418
a dizer que: “No seu núcleo íntimo, toda a existência está bem constituída”. Ou ainda: “O
mundo é redondo em torno de uma existência redonda”. Um tipo de fórmula de eutonia,
imunidade, um conforto espacial para o que é redondo, como se isso fosse um evangelho
morfológico. Já em Globos, vemos uma conversa sobre Deus e o mundo, pois ambos
foram pensados pela tradição inclusiva em forma de esferas. Seja de um idealismo
geométrico na cosmologia, seja de um idealismo lógico na teologia, ou mesmo, a junção
de ambos, em alguns casos. Enquanto tradição metafíca, o conceito viria da velha
Academia no platonismo – enquanto idealismo morfológico. Como tal, a metafísica
clássica é vista como uma espécie de prateleira de bibliotecas sobre a totalidade do
mundo como um sistema imunitário. Dessa lição podemos tirar que foi na ontologia a
primeira imunologia. Sendo assim, nos tempos em que vivemos com a destruição da
metafísica (sempre existiram dois tipos de globos: o celeste e o terrestre; na atualidade
isolamos o terrestre, isso não nos deixa de dizer algo sobre a crise metafísica do lugar
humano?), com a ontologia atual e com o progresso das nossas consciências do problema
imunitário, já não pode ser, como tal, um teórico clássico do Ser. A vida humana sempre
se organiza criando espaços protegidos e imunes, desde a célula e seu protoplasma até
as crianças dentro do útero, passando pelos homens quando constroem sua privacidade,
suas casas, suas habitações, suas cidades e seus espaços metafísicos ou imaginários.
O físico belga Joseph Antoine Ferdinand Plateau que em meados do século XIX,
formulou as leis fundamentais da geometrização das espumas (poliédrica). Leis essas que
apontam para um mínimo de ordem no aparente caos de aglomerações de bolhas-
espumantes (espumosas). Com sua ajuda, as espumas puderam ser descritas como
esculturas tensionadas de tegumentos peliculares. É importante notar que nas espumas
não existe uma célula como ponto central e que a ideia de uma capital seria
contraproducente. O motivo da multiplicidade de câmaras se originou também pelas
teorias físicas. Isso traz como consequência que se recorra cada vez mais para a metáfora
da espuma, a descrição de conformações de espaços espontâneos, desde as dimensões
mínimas como nos fenômenos maiores, até mesmo em processos de dimensões
galácticas e efetivamente cósmicos. Do ponto do surgimento da vida, para alguns
biólogos, o que se entende por vida só pôde se explicar por formações espontâneas de
espumas em de oceanos. A morfologia do século, se anuncia abertamente no século
como o século das espumas. Na resposta ao desastre global que sobrecarrega os
419
66
MENESES, Nélia Maria Neto. Arquitetura (s) Nómada (s) – Paisagens Em Constante Mutação. Prova Final
de Licenciatura em Arquitectura. Universidade de Coimbra Faculdade de Ciências e Tecnologias –
423
Burj Khalifa – Prédio mais alto do mundo. Dubai, Emirados Árabes Unidos.
Para falar sobre isso, Sloterdijk utiliza trabalhos de Jakob von Uexküll sobre A
Teoria da Composição da Natureza. Uexküll acreditou que foi um erro crer que o mundo
humano proporcionaria uma plataforma comum para todos os seres vivos. Todo ser vivo
tem uma plataforma especial, que é tão real como a plataforma especial dos seres
humanos. Por esse reconhecimento conseguimos uma nova visão do universo. Este não
consiste em uma única bolha de sabão, que havíamos inflado e soprado para cima no
nosso horizonte até o infinito, e sim milhões e milhões de bolhas de sabão estreitamente
delimitadas que se cruzam e se interferem por todas as partes. Merleau-Ponty em sua
obra A Estrutura do Comportamento de 2006 (versão em português), faz referência à
Uexküll67 dizendo que “Todo organismo, é uma melodia que canta para si”.
67
Para maior aprofundamento, indicaria o trabalho de SOUZA, Elaine Cristina Borges. A Teoria de Mundos-
Próprios de Jakob Von Uexküll: Entre a Metafísica e o Naturalismo. Editora: Novas Edições Acadêmicas,
2013. Ou a sua tese de mestrado que virou o livro de mesmo nome que acabamos de mencionar. Disponível
427
Sloterdijk está aqui desenvolvendo uma ideia que Walter Benjamin se referiu em
seu Arcades Project. Ele parte da assunção antropológica de que as pessoas, em todas as
épocas, dedicam-se a criar interiores e, ao mesmo tempo, procura emancipar esse tema
de sua aparente atemporalidade. Então, ele pergunta: como o homem capitalista do
século XIX expressa sua ânsia pelo interior? A resposta é que ele usa a tecnologia mais
avançada para orquestrar a mais arcaica das necessidades, a necessidade de imunizar a
existência, ao construir ilhas protetoras. No caso da galeria (arcade), o homem moderno
opta por vidro, ferro forjado e um conjunto de peças pré-fabricadas para construir o
interior mais abrangente possível. Por essa razão, O Palácio de Cristal de Joseph Paxton,
erguido em Londres, em 1851, é a construção paradigmática. Ela forma o primeiro
hiperinterior que oferece a perfeita expressão da ideia espacial do capitalismo
psicodélico. Vale lembrar que Uexküll antes de morrer em 1944 foi para Capri – uma casa
de campo, casa esta que Benjamin se alojou por alguns meses em 1926. É o protótipo do
interior de todas os posteriores parques temáticos e arquiteturas de eventos. A
arquitetura anuncia a abolição do mundo externo. Ela abole mercados de fora e os traz
para dentro, para uma esfera fechada. Os tipos espaciais antagonistas do salão e do
mercado formam um híbrido. Isto é o que Benjamin considerou tão intelectualmente
excitante. O cidadão do século XIX procura expandir sua sala de estar para um cosmos e,
ao mesmo tempo, imprimir a forma dogmática de um quarto ao universo. Isso provoca
uma tendência que é aperfeiçoada no design de apartamentos do século XX, bem como
no design de shoppings e estádios. Esses são os três paradigmas da moderna construção,
isto é, a construção de microinteriores e macrointeriores.
Sloterdijk (2017, p. 103):
em: <http://repositorio.ufes.br/bitstream/10/6273/1/Elaine%20Cristina%20Borges%20de%20Souza.pdf>.
Acesso: 18 mai. 2019.
428
respectivos contra-ataques dos aliados, após o ano de 1915, o ar perdeu sua inocência:
desde 1919 também pôde ser considerado, mesmo em pedaços, um objeto de presente
como um ready-made, e desde 1924, na câmara de gás, servem como um meio para
executar criminosos. Os experimentos de Uexküll com ilustrações que sugeririam como
seria um segmento do mundo visto do ponto de vista de uma abelha, cão ou um
carrapato68, alcançou seu ponto alto neste último por força realista que foi capaz de
imprimir à sua descrição do ambiente, que constitui o ápice do anti-humanismo moderno
junto com Ubu rei e Monsieur Teste.
68
UEXKÜLL, Jacob von e KRISZAT, Georg. Streifzüge durch Umwelt von Tieren und Mensch. Verlag: FISCHER
Taschenbuch, 1983, pp. 85-87.
430
Simulação inicial por computador de uma espuma líquida bidimensional, que pode ser usada
para o cálculo de uma curva de tensão-deformação, como mostrado em (b). A inclinação da
variação inicialmente linear de tensão com deformação é proporcional ao módulo de
cisalhamento da espuma. Na grande amostra em massa, a curva recortada é suavizada. S. J.
Cox.
psicanalista admitem que já não podem conceber o Estado moderno conforme o modelo
patriarcal. Todo o mundo já compreendeu que é preciso refundar a função do Estado
dentro da terminologia de uma maternização política abarcadora. Uma política surge
como um renascimento da mãe física para uma metafórica: o Estado que funciona como
regaço maior e superior. É ele que molda o invólucro psico-acústico que se estende sobre
a pólis como espírito comunitário. Uma antiga política de hordas na esfera psico-acústica
deverá ser ampliada e reproduzida como um círculo mundial como cosmos. Uma ideia
que vai do biomecenato ao mecenato enquanto generosidade. A mãe funciona como
biomecenas e depois é substituída por mecenatos semelhantes, até uma situação, vivida
na globalização contemporânea de um mecenato universalizado. Tudo se inicia na
microesferologia. Temos a relação feto-útero, depois feto-mãe, depois filhos-e-mãe.
Posteriormente, no âmbito macroesferológico, então, surgem as instituições que cuidam
de filhos, e que se fazem como as mães, se erguem como necessidade social reconhecida
por todos. O mimo é o elemento central dessa ressonância da díade inicial que dever
perdurar como um contínuo cordão umbilical que eleva o homem da situação de mimo
à de mais mimo. O espaço humano tem de ser um espaço de mimo e de imunidade, um
novo útero ou um novo lugar de cuidados maternos. Então, isso de alguma forma seria
um mecanismo como um tipo de caridade feita não por pena, mas pelo bem cuidar e pelo
querer ver o bem. A mãe e o pai se doaram nessa relação primitiva. Deram mais do que
receberam (um tipo de voluntarismo – Sloterdijk fala em “comunismo primitivo”, até
mesmo de “socialismo do fogo”). Somos seres durante boa parte da vida cuidados pelos
outros. Professores, pais, amigos, parteiras, enfermeiras, empregadas, médicos. O
homem é um ser que amadurece muito tardiamente, portanto, um ser que necessita de
luxo. Estamos imersos ainda hoje, em uma ideologia individualista, principalmente no
ocidente, da autonomia, de que o indivíduo vem primeiro antes de tudo, a tradição vem
desde os estoicos até os liberais de tempos presentes. Esta ideologia impediu um debate
antigo da primitiva divisão do estado de vigília nas díades-tríades íntimas, sem razão a
modernidade é o arauto do individualismo onde antes mesmo de nascermos já tempos
nome, roupas, uma elevação do indivíduo como sujeito que dá atenção a si mesmo. Não
é de se espantar a constante e elevada preocupação de cidadãos, na política de serem
obrigados a viver numa preocupação pessoal constante, uma bolha de distância da
solidariedade dos grupos de vela da antiga antiguidade. A obsessão individualista nos
432
povos dentro da mesma população. Isto se explica, entre outras coisas, pelas
circunstâncias de que grande cultura e cultura escrita são sinônimos em sentido amplo.
O monopólio de poucos da escritura e ao analfabetismo da maioria atuarão como
constantes eterna nos três primeiros milênios da arte da escritura. Inclusive depois de
impor-se a alfabetização geral, as culturas, como as artes, voltam a se dividir em high e
low. Todavia ao começo da Modernidade europeia, quando Francis Bacon formula o
programa de uma “sociedade” investigadora e em avanço, se fez um monumento da
bipartição: também no Estado modélico da Nova Atlântida existe uma Câmara alta do
saber, uma universidade de elite, dedicada ao progresso puro, chamada Casa Salomão,
cujos membros, como em uma ordem de cavalaria cognitiva, estão obrigados a guardar
estrito silêncio sobre certos conhecimentos não publicáveis. É notável que o acesso a
verdade se converte em um assunto dos especialistas provocando uma distância entre
os comuns e a elite. A diferença entre o sábio e a massa comum está feita.
Posteriormente na modernidade, veríamos o “reducionismo” do mundo em sujeito. A
filosofia e o saber em geral seria para “dominar” o mundo. Se olhamos por Heidegger,
por exemplo, entendemos a modernidade como a “época das imagens de mundo”. O
filósofo alemão nota o advento de Descartes e Kant como sendo o tempo da instauração
do vocabulário que contém os termos sujeito e objeto em um sentido humano. Uma coisa
que nós modernos fazemos diferente dos medievais e antigos é trazer quase tudo para o
âmbito subjetivo. O renascimento, as navegações, o humanismo (de trazer as coisas para
o homem ao invés de deixa-las para Deus) lembra muito bem a centralização do homem
que tem a ver com a centralização nossa em questões subjetivas. Trazer as coisas para o
homem e daquilo que o homem entende que pode ser como “ser sujeito”. Ao contrário
dos antigos, que não viam sujeito e objeto com sendo o homem, nem por exemplo o
espírito e reconhecimento de Hegel, Hume ou Pascal, mas como substância e base
gramatical, os tempos modernos criaram uma “metafísica da subjetividade”, uma teoria
filosófica que fez do homem a substância, o fundamento de tudo, uma vez que o Cogito
cartesiano seria a base para a primeira certeza.69 Assim, sendo função do homem, o
próprio mundo passou a ser uma representação – representar é uma atividade humana.
O mundo se tornou algo para o homem, sendo este, agora, o sujeito. Tudo se fez tendo
69
JÚNIOR, Paulo Ghiraldelli. A Filosofia Como Crítica da Cultura. São Paulo: Cortez, 2014, pp. 104-110. Ver
o capítulo: 23 - Pascal, Machado e o eu na pós-modernidade e 24 – Jesus inaugura a modernidade.
434
o homem como palco e ator, e esse, em sua inteireza, uma vez posto pelo subjectum, se
fez objectum. Assim, o homem teria adquirido força manipuladora sobre tudo. A
metafísica da subjetividade se fez a metanarrativa das narrativas científicas. A ciência
moderna, altamente manipuladora, abriu seu ventre para a técnica. Somos
objetivamente o mundo da técnica ao mesmo tempo que somos propensos a tudo
subjetivar e, numa virada decisiva para o humanismo, a psicologizar. O ponto central de
tudo seria o sujeito, a subjetividade, a ideologia, autonomia da razão, autonomia do
sujeito. Seriam “filosofias do sujeito”, filosofias do engajamento, individualismo ou
filosofias da linguagem como Descartes, Rousseau, Kant (sair da “menoridade”, ganhar a
liberdade de poder fazer o que tem de ser feito, ou seja, obedecer só a si mesmo, em
outras palavras, ter autonomia: auto e nomos – autoria própria nas leis que segue. Para
Kant, e para a tradição iluminista em geral, os processos de formação têm êxito quando
são empreendidos como caminhos para o uso da razão. Mais do que a maioridade, a
capacidade de contratar e o direito ao voto. No sentido kantiano, possui o uso da razão
aquela pessoa que sabe usar o seu entendimento, sobretudo nas questões religiosas,
“sem orientação de outro”. Uma lei racional inerente ao eu, um dever de consciência,
com um grau de formalidade alto. Habermas (agir comunicativo-intersubjetividade),
Heidegger com a metafísica do sujeito, Marxismo (onde havia contemplação, deve haver
agora, mobilização), Feminismo, Existencialismo, entre outros. É aqui que a “Morte
Aparente no Pensamento” não se verifica. Não se consegue fazer epoché, então se
fracassa a suspensão do juízo para filosofar. A ascese teórica inicial, é um esforço do
pensador em deixar-excluir na medida do possível os aspectos de sua própria vida
existencial que impedem a teoria, e como as raízes da obstrução da teoria descem até
um enraizamento da existência “empírica”. Esse movimento ascético é uma tentativa de
morte em vida. Seria o que Sócrates falou em Fédon: “Que um homem se esforçasse a
vida inteira por viver muito perto de estar morto e depois resistisse quando a morte
chega realmente?”. Na modernidade se vive em lutas pelas visões de mundo. São lutas
cognitivas de classes. Com efeito, surge desde a Antiguidade, os portadores do saber
superior como um movimento ecumênico e posteriormente como ascetas. Uma
composição de lógicos desterritorializados, maestros da ética da humanidade ou os
ascetas alienados do mundo. Veríamos coisas como pacifismo meditativo ou acadêmico.
Imitadores de cristo, ética protestante, islamismo com militantismo, peregrinos,
435
estresse, as teorias dos meios, a teoria do crédito, a teoria da organização e a teoria das
redes. Uma alta importância para a palavra estresse deveria ser melhor analisada. Os
grandes corpos políticos, o que denominamos de “sociedade, devem ser entendidas
como um campo de forças constituídas pelo estresse, como sistemas de preocupações
que se estressam a si mesmos e se precipitam e encaminham permanentemente. Um
tom de inquietude é conservado dia-a-dia, ano a ano. Neste sentido, uma nação é como
um coletivo que consegue se manter e manter uma inquietude comum. Deve abrigar um
constante fluxo de temas mais ou menos estressantes que se ocupem da sintonização
das preocupações das consciências para integrar a população correspondente como uma
unidade, comunidade de preocupações e estímulos renovados diariamente. Por isso, os
meios de comunicação são indispensáveis em nossos dias, seu funcionamento permite
uma produção de coerência nas comunidades nacionais e continentais de estresse. Eles
são os principais responsáveis para que haja um vórtice de ofertas incessante de temas
irritantes, que se mantem unido por meio de contratensões. A função dos meios numa
sociedade tomada pelo estresse consiste em evocar e provocar ao coletivo, enquanto tal,
apresentações de propostas novas a cada dia, a cada hora, para que estes se excitem, se
encham de dívidas, se exaltem. Uma multiplicidade de possibilidades que apontem para
o sentimentalismo, ao medo, para a indiscrição de seus membros. Os receptores elegem
estas ofertas todos os dias. A nação é um plebiscito diário, onde não tem como tema a
Constituição, mas sim sobre a prioridade das preocupações. Ao decidirem entre as
possibilidades ofertadas por uma excitação sincrônica, os grandes grupos, que não
deixam de tremer seu sistema nervoso, reproduzem o éter da comunidade, sem o qual,
não pode aparecer-originar a coesão social, ou pelo menos a aparência de uma, ao longo
da extensão dos grandes Estados. A atualização do laço social no sentir de seus membros
só pode levar à cabo mediante a criação simbólica de um estresse tematizado de maneira
crônica. Quanto maior são os coletivos tanto maior devem ser as forças de estresse que
operam contra a decomposição do coletivo, em uma realidade impossível de reunir, em
um patchwork de chaves e enclaves introvertidos. Se um coletivo se enfurece diante da
ideia de sua própria desaparição, isto significa que possui um bom nível elevado de
vitalidade. Faz o que os melhores coletivos sãos fazem. Eles conseguem exaltarem-se,
excitarem-se, é dizer, que debaixo de estresse, fazem e dão o melhor de si. Por isso, não
437
talvez não tenha sido o primeiro a descobrir, como outras tantas estrelas, uma queda
depois de um ápice. Mas com certeza, este fato é um marco para a psicologia. Foi o
testemunho de descobrimento de que há paranoicos entre aqueles que persegue a
verdade. Posteriormente, Rousseau toma a decisão de se isolar junto a Marie-Thérèse Le
Vasseur em uma deserta em meio ao Lago Biel. Esses dias seriam de grande importância
na história do pensamento europeu. Algo como um Big Bang da poesia da subjetividade
moderna, que de imediato passou para a filosofia da liberdade. Talvez um evento muito
mais implosivo que explosivo, Rousseau descreve uma cena em seu Quinto Passeio.
Rousseau se refere a “um turbilhão interior”. Ele havia tido a ideia de passear pelas águas
da ilha em uma embarcação, esse turbilhão ficou com o nome de rêverie, devaneio. Uma
meditação abstrata. Assim, Rousseau criou uma situação cartesiana às avessas: não
penso, logo existo. Percebeu sua existência pelo devaneio, pela vivência sem conteúdo
conceitual ou sentimental, pelo completo não pensar ao ficar entregue ao vazio mental
de uma tarde no lago Biel. Rousseau teve a experiência da individualidade que o levou,
depois, a pensar no conceito de “vontade geral”, ou seja, o que se tornaria uma diretriz
comum para um povo individualizado, mas sob o beneplácito da vida em um estado
democrático, onde ninguém seria mais que o outro. Em suas experiências à deriva e sem
propósito, descobriu a duração psíquica pura em que desaparece a sucessão habitual do
tempo, com suas recordações e antecipações, para dar lugar a uma sucessão torrentosa
de “momentos agora”, sem carências e nem ausências que o perturbe. Estamos diante
senhores, da expressão de um conceito de existência no qual sai de cena nada mais nada
menos que o indivíduo moderno. Este indivíduo se apresenta como um novo sujeito da
liberdade. Esta jovem liberdade não é para empresários, compositores ou descobridores.
É a liberdade de um sonhador acordado. Essa foi uma experiência da liberdade na qual o
sujeito apela para sua ou apela a sua “experiência sentida”, além de todos os resultados
e deveres, além de qualquer reconhecimento do outro. A primeira palavra do sujeito é
uma autoincriminação. Esta consiste em explicar seu êxtase ao descobrir o “estar-
consigo-mesmo”, e não tem nada que dizer sobre ele. É uma existência pura, uma crença
em ter havido conquistado um título de soberano do ser. Hegelianamente entre tantas
“consciências infelizes reinantes”, Rousseau descobriu um acesso contemporâneo a uma
consciência feliz. Rousseau descreve um estado de inutilidade elegida na qual o indivíduo
está recluso em si mesmo, e ao mesmo tempo, liberado de qualquer identidade
440
assim dizer, passa a ser visto como uma “condição humana”. Poderia se falar em
desinibição para o homem? O homem se desinibe para se poder fazer sujeito. O sujeito
é aquele que cria seu mundo. O homem enquanto sujeito possui um desinibidor, mas é
algo que ele mesmo coloca, com isso, não forja um círculo, mas o “mundo”. O animal
estaria preso no círculo de seus próprios desinibidores como diria Uexküll, nos poucos
elementos que definem o seu mundo perceptivo. O modo de ser animal é que define a
sua relação com o desinibidor, o (Benommenheit). O termo em questão advém de
Heidegger e do parentesco entre os termos benommen (atordoado, tonto, paralisado,
tomado), eingenommen (aprisionado, absorvido) e Benehmen (comportamento), que nos
remete ao verbo nehmen, pegar (dar em sorte, atribuir, compartilhar). Enquanto o animal
estiver essencialmente atordoado e absorvido pelo desinibidor, o animal não pode agir
ou possuir conduta, mas apenas comportar-se. O animal em sua essência se comporta
em um ambiente, mas nunca em um mundo. Por isso, que no atordoamento o ente não
é revelado, nem descoberto, mas tampouco fechado. O animal, enquanto tal, não se
encontra em possibilidade de desvelamento do ente. Esse ser impelido sem descanso,
colocaria o animal, suspenso de entre si mesmo e o ambiente, sem poder experimentar
enquanto ente nem um nem outro. O não-poder-ter-o-que-fazer não é absolutamente
negativo. Ele é, de fato e à sua maneira, um tipo ou forma de abertura, mais
precisamente, uma abertura que jamais revela o desinibidor enquanto ente. Uma
atividade bastante simples é fundamental para o sujeito: consultar a si mesmo. Ser sujeito
é fazer uma autoconsulta, é encontrar razões em si mesmo para agir, sair da teoria para
a prática, e já nessa autoconsulta, cria o mundo. No âmbito moderno, esse desinibidor
poderia ter vários nomes como lei, texto, crença, verdade, ideais, promessas. Quando o
homem tira de si mesmo os desinibidores, é quando se faz sujeito. O sujeito ganha aí um
tom de ator em forma de atuação. Ele encontra o motivo que o liberta, o motivo que lhe
dá a liberdade de agir frente à hesitação, frente à dúvida. Uma subjetividade assim, deve
ter o propósito de proporcionar um estabelecimento do indivíduo como aquele que tem
poder de co-decidir na edificação da instância que o pode comandar, ou seja,
normalmente esse elemento desinibidor, ou essa organização da desinibição é algo
invisível, pois na medida em que, no momento da passagem ao ato, confere aos atores,
em face da obediência, as instâncias coercitivas externas que se interiorizam, não paixões
irresistíveis e coerções inelutáveis, mas boas razões e interesses concebidos pelos
442
próprios sujeitos. Não seria um modelo desse tipo o empresário? Ser sujeito não é
somente agir, ou uma capacidade de agir, não de uma ruptura irracional ou de
exteriorização de pulsões não resolvidas, mas aquele que empreende e que vai adiante
realizando seu empreendimento. Não por coincidência, a subjetivação é inseparável da
capacitação e do treino que a acompanha, para Sloterdijk a subjetivação é sempre alguma
coisa que lembra a educação física ou o atleta. Uma primeira forma de falta de liberdade
pode ser vista como “opressão política”, a segunda como aflição ante a realidade. Estas
duas formas podem ser consideradas como variantes de estresse. A repressão política
constrói um sistema de estresse cujo êxito é em que os oprimidos preferem encontrar
formas para preveni o estresse, obediência, rendimento, vigilância antes que resolver por
uma revolução ou rebelião. Uma revolução antitirânica é uma cooperação de estresse
máxima por parte dos dominados para eliminar uma carga tensional insuportável. As
revoluções explodem quando os coletivos conseguem calcular seu nível de estresse e
chegar à conclusão de que é pior viver submetidos prevenindo o estresse do que o
estresse que provoca a rebelião. Na outra frente de falta de liberdade temos aqueles
homens que têm que lutar contra o peso do caráter da realidade como tal. A aflição que
esta gera. Foi Hobbes quem resumiu em cinco palavras o modo do desenvolvimento da
vida dos homens: solidão, pobreza, desagrado, brutalidade e encurtamento. A pressão
da realidade mostra as aberturas personificadas de um ditador, em um ambiente de
necessidades e crueldade anônimas, dos que em geral seus membros não podem
escapar. Vimos no Antigo Testamento (Salmo 90:10, as traduções podem variar) dizeres
de que “uma vida longa é trabalho e pesar”, uma referência clara ao modo de existência
dos mortais, uma lei de gravitação existencial. É visível que novas configurações
ontológicas e existenciais criaram uma tirania contra o real, contra o peso, contra a
necessidade. O contemporâneo é a época que se nomeiam os aspectos do tempo, de
uma revolta contra a natureza esmagadora do fardo da realidade do passado. Levitação
seria a melhor imagem do que está no nosso horizonte hoje em dia. Aquele que quer ser
moderno deve aspirar em converter a realidade atual em uma anterior. Uma realidade
pesada em leve, em uma realidade lenta em ligeira, em uma realidade implacável em
adaptável. O movimento ontológico de liberdade que chamamos de “modernidade”, é
um cumprimento de uma necessidade fundamental de se escapar do jogo das
443
circunstâncias. Uma “sociedade” como a nossa só pode ter no horizonte coisas como
bem-estar, técnica, entretenimento, diversão, turismo, luxo e a felicidade.
A teoria de globalização de Sloterdijk descreve a globalização como um
fenômeno de exclusão sem precedentes. O mundo do bem-estar tende a criar um espaço
interior bastante hermético, sem levar em conta qualquer homogeneidade regional ou
nacional. Se denomina isso de “o interior do mundo do capital”. Os pais fundadores da
américa contemplaram em sua Constituição um direito que é o direito a felicidade como
uma fundação de um novo ser comum na política. Nasce uma luta para se combater a
progressiva descarga do estresse anônimo da opressão por meio do real. Com relação à
Rousseau devemos dizer que havia encontrado uma maneira de colocar um ponto final a
qualquer tipo de revolta contra a tirania do real. Com a liberação das preocupações, o
estresse e a realidade, a subjetividade sai a luz de maneira subversiva e inevitavelmente,
mesmo que de maneira momentânea efêmera. Nesse sentido, nesse cenário primitivo
do sujeito, este se apresenta como um inútil, inservível, um estranho ao mundo. Não
tanto como um além do homem, mas como um animal feliz, não como alguém com
personalidade, mas como um sonhador, não um idealista, mas um imigrante, não um
empresário, mas um turista. Um sentimento puro de existência aquém de qualquer
assunto. Uma existência liberada do real, configura uma liberdade sem estresse. Se não
há preocupações não há realidade. Agora a realidade é a objetividade que retorna depois
de sido retraída com êxito na subjetividade pura. Se entende por realidade aquilo que
volta depois de seu esquecimento temporário e afirma, faz valer seus direitos. Não são
os conservadores os maiores realistas de nossa época? Uma irradiação de liberdade não
penetra em todas as culturas? Uma liberação assim ante o real não pode produzir
catástrofes? Como dito, o grande corpo psicopolítico ao qual se chama hoje de
“sociedade” não é outra coisa que uma comunidade de preocupações autoelegidas que
oscilam entre os grandes temas de estresse e outros induzidos pelo meio. Dentro das
culturas se observa uma quantidade de pessoas que necessitam ser afetadas por
momentos perigosos que se reduzem aos dias de férias despreocupados ou uma
penumbra do real mediante a intoxicação por álcool. Em outros casos vemos grupos com
grande capacidade de influência e capacidade de radiação, os artistas são a vanguarda
do inútil, mas também membros de pessoas com ofícios terapêuticos, técnicas de
relaxamento, retiros em locais com natureza, meditação, utilização de drogas (get high;
444
dialética da fuga e da dependência do mundo; Não é por acaso que os Estados Unidos
são o país do mundo mais convulsionado pelas drogas. Um país que vive da droga
substitutiva, quem não pode se drogar com sucesso e com dinheiro, tem seus substitutos.
Uma droga de substituição americana para as drogas de substituição sucesso e vitória).
São todos signos de uma ativa inatividade. Somos seres aerodependentes, utilizamos o
oxigênio como uma droga meetabólica. Essa irradiação penetra cada dia mais forte e
fundo, ela estabelece zonas de conforto ao redor do mundo como oásis do fim do tempo,
das preocupações, de uma outra dimensão, de uma experiência que seria mais agradável.
Não poderíamos ser todos estrangeiros diante desse toque de irradiação subjetiva que
nos contamina? No individualismo, cada um é uma sociedade paralela. Nós todos temos
uma história de migração, já fomos muito longe, mas agora nos sentimos em nosso lugar.
Kant via Rousseau como um segundo Newton, foi o primeiro que teve êxito ao dar um
giro em direção ao sujeito com a filosofia transcendental, que só preparou o terreno das
tarefas cognoscitivas e das atividades do juízo. A partir desde momento perde sua feliz
despreocupação. Kant tira o sonhador do barco e o incorpora aos serviços públicos.
Agora, pela primeira vez, o sujeito se transforma de súdito em senhor, passa de estar
fundamentado a converter-se em fundamento. Fichte foi mais adiante que Kant e
outorgou ao sujeito a produção inconsciente de toda objetividade, com o que este passou
de ser um absoluto desempenhado a um produtor integral da realidade. Depois em
Hegel, com a sua maneira, converteu o sujeito em um trabalhador na vinda do espírito
ao carregado com o peso da formação, para este, adquirir uma formação significa
sacrificar a obscuridade dos devaneios inconsistentes em áreas de conhecimento e
deveres objetivos. É esta a linha que segue a direita hegeliana até chegar aos
institucionalistas e os teóricos compensatórios do século XX. A esquerda hegeliana, com
Marx em sua frente, levou este plano de fomento do emprego até o extremo de
transfigurar o produtor do mundo fichteano, ao eu absoluto, na sociedade trabalhadora
e identificá-la como totalidade com o órgão da verdadeira subjetividade. De maneira
próxima fala August Comte. No futuro, nada poderia escapar do campo de trabalho
forçado da sociedade. “Ninguém tem mais direito que o de cumprir com seu dever”. Carl
Vogt escreveu também que os pensamentos possuem a mesma relação com o cérebro
que a urina com os rins, obviamente que estamos falando de um materialista.
Haveríamos que concluir que qualquer homem que tome consciência de sua existência e
445
pode se ver sozinho. Um expectador da história diz para Victor que morto ou vivo ele
pertence a nós, diz para ele voltar a ser novamente um “dos nossos” ou “um de nós”.
Esta é a única coisa eles têm que provar. Basicamente “nós só existimos”. Victor pensou
melhor, e diz que “nunca serei livre”. Mas que irá sentir indefinidamente como será. Diz
que irá explicarei porque continuará com a vida: “esfregar minhas correntes”. De manhã
à noite e da noite para a manhã. Esse som leve e inútil é o que se tornará a sua vida.
Depois alega que não está dizendo isso “em minha alegria”. “Minha alegria é deixada para
você”. Toda a tranquilidade, todo o limbo. E você o espectador vem com amor, razão,
morte. Victor apenas termina dizendo “Não, saia, saia”. Em uma dimensão última,
Beckett escreve que Victor está deitado na cama e observa concentrado o público, a
orquestra, as varandas a direita e a esquerda. Logo se vira e ele oferece sua magra costa
para a humanidade. Agora o homem da cama se une ao homem do bote no lago. A cama
e o bote possuem a mesma função. O homem que fica deitado está mais perto da
liberdade. Como é sabido, Rousseau propôs unir a liberdade individual na vontade geral
homogênea. Desta forma, a verdadeira liberdade individual se encaixa em uma
subjetividade grupal por uma liberdade fictícia. Para grandes autores contemporâneas o
conceito de “vontade geral” de Rousseau é a semente lógica dos fascismos socialistas
que durante o século XX duelaram com seus rivais nacionalistas. O conceito de “vontade
geral” foi posto em prática pelo terror jacobino poucos anos depois da morte de
Rousseau. No campo da história pode-se ter certeza de algo, uma certeza que os
jacobinos nunca entenderam que é a Terceira Lei de Newton: ação é reação. Isso se aplica
também para a área política e para os movimentos sociais. A física jacobina sempre quis
absolutizar a ação e jogar de lado a reação. Uma física como esta não existe, forças como
essas sempre se demonstram em pares. As revoluções Russa e Chinesa revelaram até
onde se é capaz de chegar por uma fúria do pensamento unitário. A maioria da população
mundial deve enfrentar a revolta contra a tirania política. Do mesmo modo que no
passado, quase toda a humanidade contemporânea está submetida a ditadura do real e
experimenta sua opressão mais que nunca, posto que o real tomou uma forma de
circulação global e se dissipou em uma forma de fantasma da especulação financeira.
Poderíamos pensar que o despotismo da construção de estresse coletivo de hoje é muito
mais patente que em qualquer tempo posterior, porque o levantamento dos modernos
contra a opressão por meio da objetividade paradoxalmente traz consigo, em muitos
447
aspectos um fardo ainda maior que fez a opressão se sentir ainda mais. Numa situação
como esta, se faz indispensável repensar o sentido da liberdade individual e da sociedade
liberal. Se a subjetividade pura não foi nada mais que um polo da liberdade tanto que fez
desaparecer o indivíduo de todos os campos de estresse, seria igualmente idêntica a
absoluta associabilidade. Desta forma, o liberalismo funcionaria apenas como uma
ideologia para pessoas, que hoje, não precisam mais umas das outras. A contenção da
associabilidade a partir do social seria o horizonte da política, assim como a vitória
inevitável do mal-estar sobre o bem-estar se modificaria para um horizonte último de
uma ética. Olhando mais de perto, se revela que o sujeito liberado nunca permanece
inacessível a realidade permanentemente. Enquanto descobre sua liberdade, ao mesmo
tempo descobre uma acessibilidade quase infinita aos chamados do real. Com motivo de
sua disponibilidade, cuja desvinculação interior lhe confere grande valor, recupera por si
mesmo o caminho até o objetivo, sempre e quando não seja pego pega neurose, como
Rousseau, é uma construção de eu equivocada. O fundo do barco, desestabilizado por
uma experiência inesquecível, e colocado à disposição do mercado de trabalho do
verdadeiro, além de querer ou não querer. Este parece ser um giro a autoimposição
depois de estar desconectado, é o que Sartre formulou como engagement. Sartre como
sabemos, interpretou a essência do homem como um excedente de negatividade que
ganha valor através da ruptura permanente com o fatídico e o costume, nisso se revela
uma doutrina da liberdade humana que pode ser utilizada para abrir caminho à
destruição da contemplação. Um engagement é nada mais que aquilo que espera o ator
desempregado. O sujeito livre não está tão somente à espera, mas sim, sai a seu
encontro. Seu engagement (aqui pode ser traduzido como “engajamento” ou
“ocupação”) não surge de uma necessidade de expressão, nem de pulsão, nem neurose,
nem carência, mas é uma consequência de uma experiência da liberdade. A expressão
máxima desta autoimposição é um cenário de liberdade disponível, como o orgulho, a
elevação espontânea sobre a cotidianidade, era o que os gregos chamariam de thymós.
Eles se referiam à um movimento interior que motivava as pessoas a confiar em seus
contemporâneos como possuidores de virtudes. O resgate do thymós como convicção
liberal da vida, oferece talvez, a única compreensão de liberdade que não tem relação
com condições neurológicas, trabalho, nem reduções naturalistas. A maior parte das
vezes se quer dar liberdade em lugares onde era impossível encontrá-la, como na
448
vontade, no cérebro, na eleição de atos. Mas onde ela foi encontrada era na convicção
nobre, no estímulo para a generosidade. Na realidade, a liberdade é apenas uma outra
palavra para a elegância. A convicção que busca o mais difícil, o mais livre, o menos
provável, o menos vulgar, ao melhor, em outras palavras, é possível que a liberdade seja
a disponibilidade para o improvável. Quem quer chegar a uma “novidade” no liberalismo
político deve começar com a ideia de que a pessoa não é um ser unicamente ganancioso,
voraz, erótico, vicioso e necessitado, que reivindica seu caminho livre para sua carência
de tudo ou má formação inicial. Ele também carrega consigo um comportamento
dadivoso, expansivo, soberano, generoso. Nunca antes se viu uma tão próxima relação
entre a obsessão de pessoas por meio da ânsia de estresse. Sloterdijk chega a dizer que
a liberdade é algo demasiado importante para se deixar nas mãos dos liberais. A
reformulação do real não deveria estar nas mãos de partidos, muito menos nas mãos dos
conservadores. Não vemos hoje a preocupação com a conservação do meio-ambiente
em alta? Um assunto de tamanha importância não pode ficar restrito, por exemplo, ao
Partido Verde. Daqui em diante, devemos considerar como “real” aquilo que é atribuível
ao acontecer, no qual se processam até se formarem, para utilizar a expressão de Bloch,
a nossa salvação, a nossa razão, a nossa riqueza e o aligeiramento da nossa vida. A busca
da igualdade social não é uma busca importante tanto para os socialdemocratas como
para os partidos de esquerda para que carreguem essa responsabilidade? Quem já
conheceu a liberdade deve seguir contendo ambas as tiranias. Uma que se vê no rosto
dos déspotas, e a anônima que se impõe como a forma imperante do necessário. Temos
que ter em mente que a realidade muitas vezes nos envolve em uma “construção de
estresse”. Os maiores realistas sempre disseram que têm razão quando insistem na
obrigação do sentido da realidade. Os verdadeiros liberais adicionam sentido na
possibilidade de nos lembrar que não podemos saber tudo o que chegará a ser possível,
quando nós encontrarmos a maneira de nos desprender das construções coativas do
coletivo. O mundo atual é supreendentemente ilimitado. No mundo de hoje uma invasão
de um outro estado se faz em movimento. Infiltrações que trazem consigo um grau maior
de liberdade nas estruturas do existente, infiltrações de leveza do ser, de desconexão.
Defenderemos a liberdade enquanto tivermos no vocabulário o liberalismo, que na atual
circunstância de tudo, por desgraça, nos oferece uma vida gananciosa e não funciona
como um sinônimo de generosidade. O estresse é, na verdade, a agitação de recriarmos
449
afazeres para nossas desonerações que logo precisam de re-onerações, e que logo viram
onerações. A própria desoneração, então, é uma oneração em certo sentido. Por sua vez,
Sloterdijk vê que a desoneração exige ao mesmo tempo onerações. O leve cria o pesado
dentro do leve. Dá peso ao fútil e ao frívolo, exatamente porque a nova ontologia gera o
que ele chama de “a insustentável leveza dos ser”.
Júnior (2017, p. 125):
Falamos todos os dias que estamos estressados. Mas isso por podermos viver
numa sociedade em que o vocabulário criou a palavra stress para lembrar o quanto as
onerações são mais sentidas se a sociedade é desonerada. Nasce aí a re-oneração
intencional. O homem não consegue admitir a despedida da necessidade, ainda que,
desde seu surgimento, ele já apontasse para uma leveza que outros seres nunca a
conheceram. Assim, no desporto, no consumo, nos empreendimentos, e recentemente,
nos ativismos sociais, outra vez se chega a uma conjunção de trabalho e jogo. Sloterdijk
diz que a boa sociedade é aquela que sabe dosar estresse e liberdade em algum nível
ótimo. Um mínimo de estresse é necessário para manter uma sociedade de indivíduos
que se tornam cada vez mais autônomos ou pretensamente autônomos, e proprietários
de passaportes para a diversidade máxima, ainda como uma sociedade. As sociedades
modernas têm a forma de organização como bolsas temáticas. Todos os dias, em uma
sociedade, temos valores temáticos que são emitidos constantemente e negociados dia
a dia. Dessa forma, a opinião pública é muito menos um fator de educação estatal e
emancipadora do que um grande fórum organizado para desenvolvimento de negócios
temáticos. Os maiores meios de comunicação sociais são os impressos, os televisivos ou
os radiofônicos, estão comprometidos como quem está em um ringue de combate
permanente para obter uma cotização máxima de certos temas elegidos. Quando um
450
Sloterdijk tem para si que há uma série de pequenos estresses que a própria
leveza carrega, e isso dá o clima psicopolítico para manter a comunidade em estado de
alerta conjunto. Toma então as “sociedades” como o fruto de uma forma espiral, onde a
cada leveza e liberdade se faz necessário também um novo tipo de estresse. Pois, para
cada patamar de liberdade e leveza cria-se também a necessidade de se redefinir o que
é sério, penoso, o que é “a realidade”. Há necessidade de a cada patamar fazer-se
presente uma nova narrativa ontológica, de modo que o homem não saia por aí como
flutuando. Assim, fenômenos de medicalização são por conta da leveza, tudo tem de ficar
mais fácil num mundo que, já faz algum tempo, criou mais tempo livre e desenvolveu a
tecnologia de tal modo que passou a fazer do trabalho algo lúdico, algo do âmbito do
entretenimento, e ao mesmo tempo fez do entretenimento uma coisa séria, um novo
trabalho. A sociedade da leveza é uma sociedade do entretenimento. O homem mostra-
se como um “Atlas negativo”, aquele que na existência inexistente tem que “suportar a
total falta de peso do universo”. O ter-que-fazer-agora é amputado do mundo. Parece
que o reino da necessidade deu lugar ao reino da liberdade. Em um mundo marcado pela
desoneração, desaparece o motivo da antiga necessidade absoluta, onde havia
necessidade, pode advir o capricho. Os inícios do que nós, agora, chamamos história,
encontrava-se nos combates travados por todas as partes e pelas culturas contra o
caráter do fardo que têm as condições do mundo, e se o norte de todo o viajar humano
e criador de história aponta para o norte da liberdade, é porque no imaginário das
culturas avançadas, a liberdade está inevitavelmente associada à diminuição da carga.
Por isso, Herbert Marcuse tentou demonstrar quando ao mundo contemporâneo – que
o princípio de realidade não é só igual, nem o é para sempre, à inflexível lei da
necessidade que encerra as vidas numa cruel indiferença e as sobrecargas. A Europa
454
empresa. Uma abertura da modernidade para todo tipo de história que misture sorte
com jornada, tentava e êxito, casamentos, heranças, celebração de negócios de maneira
feliz, descoberta de tesouro, informação valiosa, especulação, indenização elevada,
ganho em jogo, apostas, mas tudo isso como algo que vem sem esforço, que então amplia
o seu valor de mimo e sua fama de desoneração. Entra nessa análise o trabalho do Estado
providência. Pelo fisco ele dá uma pequena sorte para muitos para poucos. Não é de se
espantar que na modernidade existe toda uma movimentação e um quadro favorável
para a elevação com relação às expectativas de segurança. Transformação psicossocial
para a imunologia e co-imunismos. Obsessão com contra acidentes, doenças, desastres.
O sistema de seguros, financeiros, e de toda a ordem, se torna uma indústria gigantesca.
Expectativas individuais por proteção e segurança. A compreensão da modernidade se
entrelaça com o icônico palácio toma ponto de partida quando este impressionou
Dostoiévski. O russo visitou a Exposição na sua versão de 1862 com o edifício já em
dimensões maiores. Nas suas “Notas de inverno sobre impressões de verão” ele diz
relatos bastante significativos.
Dostoiévski (1992, pp. 226-227):
A City, com os seus milhões e com o seu comércio mundial, o Palácio de Cristal,
a Exposição Internacional... Sim, a exposição é impressionante. Sente-se uma
força terrível, que uniu num só rebanho todos estes homens inumeráveis,
vindos do mundo inteiro; tem-se consciência de um pensamento titânico;
sente-se que algo foi alcançado aí, que há nisso uma vitória, triunfo. Até se
começa como que a temer algo. Por mais que se seja independente, isto por
alguma razão nos assusta. Não será este realmente o “ideal atingido?”, pensa-
se. “Não será o fim?” Não será este, de fato o “rebanho único?” Não será
preciso considera-lo como a verdade absoluta, e calar para sempre? Tudo isto
é tão solene, triunfante, altivo, que nos oprime o espírito. Olham-se estas
centenas de milhares, estes milhões de pessoas que acorrem docilmente para
cá de todo o globo terrestre, pessoas que vieram com um pensamento único,
que se aglomeram plácida, obstinada e silenciosamente neste palácio colossal,
e sente-se aqui que se realizou algo definitivo, que assim chegou término. Isto
constitui não sei que cena bíblica, algo sobre a Babilônia, uma profecia do
Apocalipse que se realiza aos nossos olhos. Sente-se a necessidade de muita
resistência par anão ceder, não se submeter à impressão, não se inclinar ante
o fato e não deificar Baal, isto é, não aceitar o existente como sendo o ideal...
sua obra Memórias do Subsolo (1864), e que Sloterdijk aproveita, sabemos do que está
falando quanto à opressão do espírito diante dessa utopia realizada. Dostoiévski zomba
dos “sargentos-chefes da civilização”, do apego à estufa dos “progressistas de orangerie”
e manifesta o medo que lhe inspira o triunfalismo baaliano do palácio da Exposição
Universal. Dostoiévski vê na burguesia francesa a equação pós-histórica da humanidade
e da detenção de poder de compra. “Possuir dinheiro é a maior virtude e o maior dever
humano”, diz ele. Sua crítica se fez contra um livro popular na época, O Que Fazer, de
1863. Lênin fez um livro com o título igual, obviamente que não se trata de mera
coincidência, no qual uma utopia racionalista, positivista e de ode ao melhoramento do
mundo se punha realizada. Nessa utopia, o escritor Tchenichevsy criou o “palácio da
cultura”, abrigado em um edifício de luxo com ar condicionado em que sempre reinaria
uma “Primavera do Consenso”. Neste recinto, “o Sol das boas intenções brilharia dia e
noite”. Ambos os autores captam a noção de que há todo um planejamento de um
ambiente interno, o dentro, o lugar próprio de uma domesticação, educação e criação de
um novo homem. Neste lugar duas coisas são proibidas: o sofrimento e o mostrar a
língua, ou seja, padece aquele que reclama do paraíso, quem zomba desde local comete
pecado, ou pior ainda, uma impossibilidade. Dostoiévski mesmo diz “No Palácio de
Cristal, ele é simplesmente inconcebível. O sofrimento é dúvida, é negação, e o que vale
um Palácio de Cristal do qual se possa duvidar?” Continua falando que “... um edifício tal
que não se lhe poderá mostrar a língua, às escondidas, nem fazer figa dentro do bolso.
Bom, mas talvez eu tema este edifício justamente porque é de cristal e indestrutível
através dos séculos e por não se poder mostrar-lhe a língua, nem mesmo às ocultas”.
Sloterdijk com essa sofisticação, elabora a sua visão da modernidade como leveza,
relaxamento, atmosfera. É neste recinto, ou na nossa sociedade em sua semelhança, que
o negativo, o fazer figa, ser travesso, a dor, o sofrimento, não vigoram de modo algum.
Se não há negativo, como é possível a História? É por isso que Sloterdijk considera que o
comunismo era uma etapa do consumismo. Uma noção de “cristalização” e de fim da
História. Baudrillard tenta explicar o fim da história través da imagem de um corpo que
ganha aceleração se libertando da ação e da força da gravidade. A aceleração da
modernidade para ele, técnica, mediática e incidental cria uma cinética de trocas
econômicas, políticas, sexuais que nos conduziu para uma velocidade de libertação.
Acabamos por sair do centro referencial do real e da história. Para ele, é necessário algum
459
particular nasce o artista. Na nossa sociedade, voltar para a célula monacal, ou seja, para
o quarto ou apartamento single, é realmente ficar quase sozinho. A alma clama, então,
pela velha companhia da voz da mãe, intra-uterina, e eis que a marca dos grandes
monopólios aparece com um produto que leva à curtição de si. Dá-se o “complemento
da alma” pelo consumo. Mas um consumo que sustenta essa nova individualidade. O
máximo dessa imagem que explicita o contemporâneo são as levas de jovens com fones
de ouvido. Ninguém existe, só o som. E quando adentram o quarto ou apartamento,
continuam com o fone no ouvido. Estão na cela monacal dentro da célula monacal. Trata-
se de uma mistura de narcisismo com autismo. Sucede que a primeira riqueza é que faz
surgir a “patência de mundo”. A abundância de energia conseguida por descargas teria
uma direção nas regulações ascéticas, seja do tipo de arte, no isolamento monacal ou do
camara silens. Há claramente no início do século XX uma polarização pressentível a partir
dos anos 20 entre as morais do trabalho, e as morais do tempo livre, um eu que se
fragmenta em duas metades articuladas, sobre as quais o caráter não pode senão tentar
em vão erigir um governo do eu, realiza ainda uma coisa. Uma colocação de
maleabilidade em relação à psicologização da sociedade. Especialmente na Europa,
tratava-se de um “front cosmético”. Consumismo e realismo cosmético formas as novas
classes médias predestinadas para a necessidade de novas experiências, perspectivas,
visões, experimentações. O indivíduo voltado para o tempo livre, o homem do final de
semana, do turismo, das trilhas. Aquele que descobriu o caráter agradável da alienação
e o confronto na vida dupla. Um tipo psicológico risonho, divertido, extravagante, “o
homem legal”, “com a aparência agradável, o garoto propaganda. Um americanês
ocidental como nova linguagem: o final de semana. Novos temas como vitalismo de fim
de semana, recarga de baterias, revolução sexual. A era da cosmética de massa. Revistas
americanas com o know how e o American way of life e o American Dream. Naquela
época, a cultura popular americana abraçava a ideia de que qualquer indivíduo,
independente das circunstâncias de sua vida no passado, poderia aumentar
significativamente a qualidade de sua vida no futuro através de determinação, do
trabalho duro e da habilidade. Politicamente, o American way implica a crença da
"superioridade" da democracia americana, fundada no livre mercado e na competição
sem limites. Este cenário também se convergiria com a ideia de espírito de competição
da sociedade econômica. Um conceito moderno de liberdade diz que tudo que fortalece
461
a competição deve ser permitido. Uma ideia de “renascimento atlético” em tudo. Assim
como na tradição da autoimolação japonesa, na antiga askesis ocidental, uma abse
psicológica da ginástica antiga, assim como o desporto moderno. No século XX, existe um
modernismo atlético que se poderia inferir diretamente da regra de vida grega: “mais é
menos”, “mais difícil é mais fácil”. É preciso encenar o sofrimento inevitável de forma
intensificada para tornar suportáveis os afazeres reais.
Nos diz Sloterdijk (2008, p. 40):
70
Sloterdijk em uma pequena passagem diz que o nascimento do sujeito por si próprio é a eterna agonia e
representa, na qualidade de motor da história, a tentativa simultaneamente grotesca e indispensável de
tentar chegar a um mundo próprio pelas suas próprias forças, o apoio sereno no primeiro nascimento leva
à redescoberta do inevitável. Pode ser que essa descoberta pressuponha a odisseia da subjetividade.
463
"O melhor padrão de vida do mundo. Não há jeito melhor que o jeito
americano". Louisville, Kentucky. Por Margaret Bourke-White. (1937).
ele começa a ter o outro. Dinheiro se relaciona com dinheiro, enquanto o homem perde
essa relação, ele que passa a ser a coisa, então ele não tem o outro para se relacionar.
Por isso nós passamos a agir como coisa. O sujeito passa a se relacionar com outras coisas
(reificação).71 Há um episódio interessante sobre a relação com o corpo, do corpo com
as roupas e da roupa com o espetáculo da aparência. Levi Strauss nos anos 20 veio para
São Paulo no carnaval, um dia estava em um restaurante. O garçom chegou até ele e
perguntou se era o Levi Strauss do jeans ou o da antropologia – o homem dos livros? O
espanto de Levi Strauss foi que o garçom o dividiu em duas marcas. O homem dos livros
e o homem da calça. Ele saia muito bem que não havia eu interior nenhum. Ele sabia que
somos as etiquetas, a propaganda. Por que então a filosofia moderna já começa dividindo
a substância, dizendo que uma sobrevive e outra não, o endosso de um catolicismo lá do
passado? Por que temos essa audácia de achar que somos mais que aquilo que
apresentamos? É a etiqueta. Drummond percebe que só tem nome por todo o seu corpo.
Nome na calça, no relógio, nos óculos, naquilo que compra. Ele é uma grande etiqueta,
uma homem etiqueta. Etiqueta é uma pequena ética. Uma ética pequena. Uma norma
para comer, uma para vestir, uma norma que vai para a norma do produto (o brandon).
É justamente uma etiquetazinha em algum lugar.
71
Vale a pena conferir o poema de Carlos Drummond de Andrade chamado EU, ETIQUETA Em minha calça
está... Em minha calça está grudado um nome que não é meu de batismo ou de cartório, um nome...
estranho. Meu blusão traz lembrete de bebida que jamais pus na boca, nesta vida. Em minha camiseta, a
marca de cigarro que não fumo, até hoje não fumei. Minhas meias falam de produto que nunca
experimentei, mas são comunicados a meus pés. Meu tênis é proclama colorido de alguma coisa não
provada por este provador de longa idade. Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro, minha gravata e cinto e
escova e pente, meu copo, minha xícara, minha toalha de banho e sabonete, meu isso, meu aquilo, desde
a cabeça ao bico dos sapatos, são mensagens, letras falantes, gritos visuais, ordens de uso, abuso,
reincidência, costume, hábito, premência, indispensabilidade, e fazem de mim homem-anúncio itinerante,
escravo da matéria anunciada. Estou, estou na moda. É duro andar na moda, ainda que a moda seja negar
minha identidade, trocá-la por mil, açambarcando todas as marcas registradas, todos os logotipos do
mercado. Com que inocência demito-me de ser eu que antes era e me sabia tão diverso de outros, tão mim
mesmo, ser pensante, sentinte e solidário com outros seres diversos e conscientes de sua humana,
invencível condição. Agora sou anúncio, ora vulgar ora bizarro, em língua nacional ou em qualquer língua
(qualquer, principalmente). E nisto me comparo, tiro glória de minha anulação. Não sou - vê lá - anúncio
contratado. Eu é que mimosamente pago para anunciar, para vender em bares festas praias pérgulas
piscinas, e bem à vista exibo esta etiqueta global no corpo que desiste de ser veste e sandália de uma
essência tão viva, independente, que moda ou suborno algum a compromete. Onde terei jogado fora meu
gosto e capacidade de escolher, minhas idiossincrasias tão pessoais, tão minhas que no rosto se
espelhavam e cada gesto, cada olhar cada vinco da roupa sou gravado de forma universal, saio da
estamparia, não de casa, da vitrine me tiram, recolocam, objeto pulsante mas objeto que se oferece como
signo de outros objetos estáticos, tarifados. Por me ostentar assim, tão orgulhoso de ser não eu, mas artigo
industrial, peço que meu nome retifiquem. Já não me convém o título de homem. Meu nome novo é coisa.
Eu sou a coisa, coisamente. Disponível em: <https://www.pensador.com/frase/MjAyODM0/>. Acesso: 25
Mai. 2019.
466
Byung-Chul Han falaria que “o meio digital desfaz a facticidade”. Isso porque no
meio digital só existe positividade. Não existe idade, tempo destino e nem morte. Na
atomização do tempo, o próprio tempo se congela. A sociedade da transparência é um
inferno do igual. Todas as coisas ligadas à temporalidade hoje em dia envelhecem muito
mais rápido do que no passado. O novo se faz velho de forma imediata. Tornam-se
imediatamente em passado ou estão em um lugar de captura como um smartphone. O
presente se reduz a pequenos picos de atualidade e de captura, deslocam-se para um
espaço sem tempo, a-histórico, o apagamento da memória, do histórico, precede a
gravação da informação. A fotografia desaparece para a captura em forma de “foto
digital”. A fotografia com o intuito de recordar o passado ou entendê-lo, e talvez
mensurá-lo com o presente já não tem mais tempo. Pessoas que não são dos anos
cinquenta, mesmo que estejam se considerando “mais velhas”, pertencem ao mundo da
fotografia digital. Afinal, possuem filhos para os quais prepararam álbuns de fotos
virtuais, filtros, aplicativos que se perderam ou que estão guardadas em grandes
cemitérios cibernéticos não visitados. Não existe mais revelar a foto, a foto se
transformou em uma não captura de uma imediatidade mínima. Ela muito mais coloca a
imagem em um não local onde se cristaliza para sempre. A fotografia perdeu a sua
função, ou melhor, transmutou-se. Sua função atual é apanhar o presente para quem
está presente, portanto, nem precisaria dela. Aliás, fotos virtuais são descartadas, até
mesmo por profissionais da fotografia. Elas não são registro. São não registros. Elas não
são história. São fogos de artifício. Na fotografia digital toda a negatividade é expurgada.
A foto atual é quase sempre produto do Photoshop. O real está mais para uma construção
de imagens e não capturas de momentos. Não existe mais tempo para o tempo ter
tempo. A digitalização da foto não precisa mais de câmera escura nem de
processamento, não precisa ser precedida por nenhum negativo. É um puro positivo, por
isso não deixa de ser uma sociedade do excessivo positivo, da exposição, da transparência
e, nesse sentido, da auto-exploração, seguindo as obras de Byung-Chul Han. Na foto, isso
significa que extintos estão o devir, o envelhecer, o morrer. Barthes, lembra do
desbotamento da foto de papel e seu possível desaparecimento. Ou seja, Barthes ligou a
fotografia a uma forma de vida para a qual a negatividade do tempo é constitutiva. Mas
a fotografia digital, é uma fotografia transparente sem nascimento e sem morte, sem
destino e sem evento. O destino não é transparente, e à fotografia transparente falta o
467
adensamento semântico e temporal. Assim, ela não fala. Na sociedade expositiva cada
sujeito é seu próprio objeto-propaganda. Tudo se mensura em seu valor expositivo onde
não existe mais evento e data. Se todos “fotografam” a fotografia vai justamente para
um lugar onde ela sequer pode ser notada, ela não existe sem os meios-mídia. Funciona
quase como um aprisionamento do fato em um não lugar, e por isso, não sentido. A
sociedade exposta é uma sociedade pornográfica, tudo está voltado para fora, desvelado,
despido, desnudo, exposto. Baudrillard nos diz que o excesso de exposição transforma
tudo em mercadoria que “está à mercê da corrosão imediata, sem qualquer mistério”.
Tudo deve ser registrado para nunca mais ser visto. A foto se tornou inimiga de uma sua
maior amiga: a história. Elas são apenas o anti-registro. É assim que as pessoas caminham
mais para um apressamento de um presente para outro sem cortes, transições, rupturas.
Se envelhece sem rugas e sem se tornar maior. O tempo já não dura como quem tem
peso, consequências, como algo que pode mofar, estragar, sucumbir, frente ao domínio
de um presente pontual e sem consciência histórica. Heidegger reivindica uma “des-
presentação” do hoje. Se pensarmos que o motor dialético surge de uma tensão temporal
entre um já e um ainda não, entre acontecido e futuro, veremos que hoje falta qualquer
tipo de forças frictoras entre si. Adorno diria que a transparência é também outra
expressão do mito, uma falsa claridade. Em virtude desta dialética, a segunda ilustração,
que se opõe a ideologia, acaba convertendo-se em uma ideologia. É significativo que
Proust comece sua obra Em Busca do Tempo Perdido de 1913 (versão em português de
2016), com a ideia de uma bora hora como contrapartida de infinitude terrível, da
descontinuidade que assola o tempo, onde não há recordação em forma de insônia. O
cansaço mais tremendo é o de não poder descansar de si mesmo. O tempo parece ter se
tornado uma corrida sem linha de chegada. Nas primeiras páginas do romance apresenta,
de maneira a fazer o tempo presente e significativo. Diz de uma experiência feliz da
continuidade, vê-se em cena um ir e vir de sono e sonhos, despertar em agradável fluxo
de imagens, recordações de passado e presente, sensações, um ir e vir entre passado e
presente. A narrativa de Proust ganha uma temporalidade que funciona como uma
reação a uma época de pressa. A época da pressa mata qualquer contemplação (não
devemos esquecer que a filosofia antiga era um work-out mental, com bem disse Pierre
Hadot. Na Antiguidade as formas lógicas eram aparelhos de exercícios). Uma sucessão de
momentos passa a compor o eu, perde-se qualquer continuidade e permanência. Em seu
468
Como Beckett diria: “As criaturas de Proust são vítimas desta circunstância e
condição predominante: o Tempo. Não há como fugir das horas e dos dias. Nem de
amanhã, nem de ontem”. Proust fala de um “cristal aromático”, cristal de horas
silenciosas, sonoras, fragrante e límpidas. O tempo se concentra em vasos fechados como
se dentro deles estivessem cheios de coisas como um calor, um aroma, um perfume.
Como sabemos que o romance é uma forma do experimental, é o aroma, o sabor do
lembrar, da recordação e do despertar. Ele pressupõe a existência histórica onde todos
possuem uma trajetória. O olfato e o paladar ganham um sentido de acesso ao passado.
A memória involuntária também é ativada através da experiência visual, tátil, acústica.
Mediante as recordações sensoriais emana um aroma do tempo intenso, ele ressuscita o
mundo da infância. Todos esses aromas e cheiros entregam-se ao passado gerando
amplos espaços temporais. O aroma está impregnado de história, compõe-se de imagens
e narrativas. O sentido do olfato como bem acentua Mcluhan no seu Os Meios de
Comunicação Como Extensões do Homem: Understanding Media de 1964, é “icônico”. Se
os aromas são lentos, eles não se adequam a uma perspectiva medial na época da pressa.
Aromas não são imagens ópticas, eles não caminham na mesma velocidade. Como
Heidegger dizia: “Pressa e surpresa... Aquele faz um cálculo. Esta provém o inesperado.
Aquele segue um plano. Esta visita a demora”. Assim pois, habitar significa, ao princípio,
existir pendente de uma colheita em uma estação de cereais. Uma vez ao ano passa o
trem de grão e para nós. Se até agora permanecemos vivos, é porque contamos com o
privilégio da estação e nós estamos no âmbito de um trajeto fértil. Uma vez introduzido
469
para viver, mais que objetos para exibir. Compramos menos isto ou aquilo para nos
pavonear, alardear uma aposição social que com vista a satisfações emocionais e
corporais, sensoriais e estéticas, relacionais e sanitárias, lúdicas e distrativas. Os bens
mercantis funcionavam tendencialmente como símbolos de status, agora eles aparecem
cada vez mais, como serviços a pessoa. Das coisas nos esperamos menos que elas nos
classifiquem em relação aos outros e mais que nos permitam ser mais independentes,
mais móveis, sentir sensações, viver experiências, melhorar qualidade de vida, conservar
a vida, a juventude e a saúde. O consumo para si suplantou o consumo para outro em
sintonia com um irresistível movimento de individualização das expectativas, gostos e
comportamentos. É como se a fase liberal estivesse aberta para a neoliberal. O fetiche da
mercadoria deu o padrão para nossas vidas enquanto o consumo é para o outro, só que
agora o consumo não é mais para o outro. Desde os anos 70, criamos o dinheiro que ficou
autorreferente, uma moeda fiduciária. Todos concordaram em utilizá-la, mas cadê a
riqueza por trás dela? Nós não precisamos mais da mercadoria para gerar riqueza, o
dinheiro gera dinheiro na bolsa. A fábula de Fortunatus com sua bolsa de 40 dinheiros.
Saiu gastando toda a sua bolsa. Quando ele abria a bolsa novamente lá estavam mais 40
dinheiros. Nosso consumo autorreferencial tem relação com o novo fetiche onde o
próprio dinheiro é autorreferente. O dinheiro abandona qualquer referência, ele sob aos
céus. Para ele existir, ele se autorreferencia. Então, para nós nos sentirmos vivos temos
que não olhar mais para a mercadoria, mas para o dinheiro. O dinheiro nos ensina
autorreferencia. Ele mesmo se impõe, ganhando uma capacidade de vitalidade em se
autocriar. O quanto não somos ensinados a isso agora? Não é isso que faz com que nós
consumimos coisas para nós mesmos? Sempre com a ideia de que podemos nos
autocriar, nos auto-inventar? Roupas, cremes, massagens, curtindo um som, atividades
sexuais virtuais e automasturbatórias, espelhos. A autorreferencialidade do dinheiro
enquanto fetiche é a nossa autorreferencialidade enquanto subjetividade. O dinheiro
autorreferente é um dinheiro volátil, rápido, é virtual, metamorfoseador. Nossas vidas
devem, portanto, ser igual, consumo autorreferencial.
Para Agamben, existe uma exigência que a fotografia parece nos interpelar, uma
exigência que nada tem de estético. É uma exigência de redenção. A imagem fotográfica
é sempre mais que uma imagem: é o lugar de um descarte, de um fragmento sublime
entre o sensível e o inteligível, entre cópia e realidade, entre a lembrança e a esperança.
471
projetos passa pela mão do design. Nós não somos agentes do absoluto, e esta é a razão
pela qual somos "nós mesmos", como é dito de maneira tão bela. Nós vivemos e
pensamos em nosso capricho. A autopreservação implica o automatismo do ser. No início
dos tempos modernos, esse conceito foi transferido para o indivíduo que pensa e produz.
Nesta medida, não sentimos muita falta quando descrevemos hoje o indivíduo como o
umbigo do mundo. Quando falamos de "indivíduo", nos referimos a um sujeito que está
envolvido na aventura da autopreservação e que quer determinar experimentalmente o
que a vida é melhor para ele – designers individuais. Acreditamos que, além disso, que o
segundo conceito de a experimentação própria ser algo indispensável se explicar porque
o individualismo moderno não se esgota apenas com o conceito fundamental de
autopreservação. O homem do século XIX e XX permanece por si só é um homem ou uma
mulher fator feminino assume uma posição cada vez mais preponderante que o direito
de experimentar sem limite com suas próprias arroga vida. É a maneira pela qual os
indivíduos de hoje encenam sua modernidade. Eles deixaram para trás, na verdade, o
conceito antigo e medieval do mundo. Já não dizemos: o mundo é tudo o que Deus criou
dessa maneira, como tal, vamos aceitá-lo. Nem dizemos: o mundo é um cosmos, uma
joia de organização, vamos nos colocar no lugar certo. Em vez disso, pensamos como
Wittgenstein que o mundo é tudo o que podemos dizer. Vivemos como se quiséssemos
expressar nossa fé nesta frase: o mundo é aquilo com o qual posso experimentar até
mesmo a fratura. É o elemento experimental, que age ao mesmo tempo na vontade de
crescer: o fato de que o indivíduo moderno, nas tentativas que faz sobre si mesmo, toma
a liberdade de se provar os limites da aniquilação. É uma característica um pouco
surpreendente. Por isso, o terrorismo não deixa de ser um individualismo, por mais
religiosa e seitas que possam estar atrelados a ele. O indivíduo típico das classes médias
ocidental e moderna é um experimentador.
O poder de si mesmo é, agora, o culto de quem consome determinados
produtos cujas marcas dizem que esse desejo de ser feliz a quatro paredes, ou numa ilha
ou casa de campo, vai se realizar. A vida single está na moda. O próprio Sloterdijk lembra
que os primeiros experimentadores foram os surrealistas. Nessa hora, não podemos
deixar de invocar Dali. Experimentador espanhol, expressionista por definição. O que
mais preciso experimentar para me afirmar vivo, para ser indivíduo e, portanto, o ser vivo
atual? Uma vida experimentadora, uma intensificadora inconsequente, até mesmo
473
autoconsumo é o que impera hoje. Rasgar o passado e ousar voltar para a cena do crime
para continuar a experimentação e a intensificação. Indivíduo é, para Sloterdijk, o
“indivíduo-designer”. O protagonista solitário. Por isso, os “homens da moda” são os que
estabelecem as estações. Temos hoje, o chamado “designer de interiores”, uma mistura
de arquiteto-engenheiro com estilista-moda-maquiagem. Eles precisam configurar
silhuetas de acabamento, singularidade, de conforto, de acolhimento, de intensificação.
Sloterdijk (2002, p. 129):
Sujeito é tudo aquilo que tenta tornar-se e ser o seu próprio mundo – como?
Atendo-se a si próprio, aos seus “princípios” e ao seu cuidado consigo próprio.
A circunstância de ater-se a si próprio mostra vários rostos: aparece como
abstinência, como respeito pelas normas escolhidas, como autonomia, como
conservação e fundamentação de si próprio. Não surpreende, doravante, que
a história do sujeito fosse, desde o início, uma história de atitudes – desde o
estoicismo até ao existencialismo, desde os ardentes santos do deserto até aos
jovens habitantes pacatos das grandes cidades –; sempre o sujeito se nos
depara como um centro de esforços que se conserva a si próprio unido, como
o princípio ativo de uma atitude voltada contra o mundo exterior, inerte,
informe, e degradante. Quer o sujeito se mantenha, abstendo-se, como Eu
ascético, de todas as influências tentadoras, perturbantes e assustadoras; quer
ele se erga contra o mundo incurável e inconstante, apoiando-se na fé em
Deus ou no divino; quer ele se constitua como Eu autônomo, mantido por uma
razão filosofante que, por sua vez, se define por cumprir ela próprias as suas
leis; quer ele tente afirmar-se como vencedor do cansaço da vida, para se dar
heroica e prodigamente de presente ao mundo; quer ele, melancolicamente
decidido a assumir-se a si próprio, se saiba posto de for no meio do nada; quer
ele, com uma alegria antiedipiana, cavalgue ondas na prancha de surf dos seus
desejos; quer ele, furiosamente soberano, se agarre ao estilo da sua maneira
de escrever extravagante e dispersa e observe pelo canto do olho como vai
escapando a si próprio –, o sujeito está sempre, através de esforços autonatais,
a dar a si próprio firmeza numa atitude. Devido à sua inevitável situação de
malnascido, o sujeito está “espontaneamente” condenado ao esforço de
estabilizar, graças às suas promessas, o seu ponto de apoio num mundo
adotado até nova ordem.
474
O Narcissus Garden Inhotim é uma nova versão da escultura que a artista plástica japonesa
Yayoi Kusama apresentou em 1966 na Bienal de Veneza. 500 esferas brilhantes de aço
inoxidável flutuam nos espelhos d'água da cobertura do Centro Educativo Burle Marx, em Minas
Gerais.
Esta fórmula poderia também ser aplicada para o Estado Moderno. Um círculo de
autorreforço. Desde o seu início difícil na época das guerras religiosas, o moderno Estado
administrativo, intervencionista e fiscal, criou um “efeito Mateus” de tipo próprio. No
entanto, obedeceu a uma lógica de uma identidade específica e própria favorável a
ampliação, gera continuamente para si novas atribuições, novos âmbitos de regulação e
poderes de intervenção profundos. A lei da cota estatal crescente. A ampliação contínua
da atividade estatal que obviamente deve ser financiada. Uma lei que era considerada
positiva para Adolph Wagner. Um otimista do desenvolvimento desde a sua cátedra em
Berlim. O protótipo do mais tarde reprovado, “socialista de cátedra”. Teríamos que ver
essa ampliação de atividades estatais dentro do marco da satisfação da necessidade
comunitária, muitos hoje olham com olhos céticos o completo de estatismo, fiscalidade
e intervenção, e cada vez mais, vemos nele o quão absurdo pode ser uma instituição de
autosserviço e contraproducente.
Junto disso, merece também ser citado o círculo virtuoso de autorreforço da
indústria contemporânea da cognição. Toda pequena criança de escola hoje da Europa
sabe que os tempos modernos são tempos de investigação. E o são, desde que Bacon
escreveu seu Novum Organum e invocou a deusa da experiência para acrescentar o saber
no-nonsense e os conhecimentos comprovados da humanidade, e desde que Leibniz quis
dar a academias para que a conseguisse ter um convívio em casas próprias,
comprometidas somente com a busca da verdade. Em efeito, para o mundo em que
vivemos não há uma característica mais pregnante que o fato que nos tivemos convertido
em países de migração tendo em vista a captar conhecimentos recentemente
alcançados. A investigação de estilo moderno não significa um incremento idílico de
conhecimentos que se conservem em sótãos, salvo para consolo de ânimos
contemplativos. “Investigação”, significa antes de tudo, geração de mais saber mediante
saber. O típico saber da era moderna, que gira nos círculos virtuosos cognitivos para se
reproduzirem sem cessar, é saber prático e sobre todo saber prático, e com ele, verdade
como busca de aplicação. Espera ser infiltrado na vida cotidiana das populações moderna
na primeira ocasião que houver. Existimos em uma forma de realizada caracterizada pela
contínua, apenas controlada, migração de aliens epistêmicos e técnicos, e só podemos
esperar que os novos coabitantes do nosso entorno cognitivo se mostrem a longo prazo
como veículos civilizados.
478
72
LEMMENS, Pieter e HUI, Yuk. Apocalypse, Now! Peter Sloterdijk and Bernard Stiegler on the
Anthropocene, 2017, p. 3. Disponível em: <https://www.boundary2.org/2017/01/pieter-lemmens-and-
yuk-hui-apocalypse-now-peter-sloterdijk-and-bernard-stiegler-on-the-anthropocene/>.
479
73
HERNÁNDEZ, Luis Rubén. Ontología Negativa y Voluntad de Poder. Notas Sobre el Perspectivismo en
Nietzsche, sem data, pp. 7-8. Disponível em: <
482
forneceu a prova de que todo conhecimento tem um caráter local e de que nenhum
observador humano conseguiria uma imitação tão perfeita do olho divino que transcenda
realmente a sua própria localização. Neste último, tal prática se fez à medida que Marx
não criou uma crítica da estrutura do capitalismo, mas uma “crítica da economia política”
enquanto uma interpretação daqueles que haviam feito os textos básicos dessa ciência,
falando do capitalismo. Ele denunciou a ideia dos filósofos-economistas de fugirem da
história e da sociedade e descreverem os fenômenos econômicos como se fossem
naturais. Assim fazendo, esses filósofos pareciam não perceber o quanto eles próprios,
de certa forma, haviam criado o capitalismo por meio de uma descrição de um objeto
aparentemente dado, com uma dinâmica regular que até poderia ser descrita como
descrevemos a gravidade enquanto lei natural. Ao colocar em O Capital o subtítulo de
“crítica da economia política”, Marx havia adiantado, na prática, a regra de Nietzsche,
não há texto só interpretação. Mas o tinha feito sob a inspiração iluminista, vinda de Kant
e (revista por Hegel) na formulação das “Críticas”. Essas “Críticas” de Kant, o que eram?
Eram a discussão das condições e limites da razão, não a própria razão. Mutatis mutandis
Marx fez exatamente isso: conversou sobre os limites da economia política e, portanto,
teve de falar das condições pelas quais sob o capitalismo havia uma aparência de
racionalidade, mas, efetivamente, uma situação de não razoabilidade, uma vez que sob
tal organização do trabalho a riqueza aumentava demais para uns e diminuía demais para
outros. De fato, o traço fundamental da metafísica ocidental sempre foi uma ontologia
ocular com bases na sistematização de uma visão exterior e interior. O “sujeito do
pensamento” aparecia como um vidente que não só via coisas e imagens, mas via por
último, a si mesmo como alma que vê, uma manifestação de força visual absoluta.
https://www.academia.edu/8591495/Ontolog%C3%ADa_negativa_y_voluntad_de_poder._Notas_sobre_
el_perspectivismo_en_Nietzsche>. Acesso: 21 Abr. 2019. O perspectivismo implicaria, assim, a
conscientização de que o conhecimento é uma construção humana feita a partir de diferentes pontos de
vista. Como é que um ser humano adquire a capacidade de criar interpretações, isto é, impor certa lógica
ao mundo? Através do seu processo de socialização. O ser humano é uma condensação de múltiplas
influências, valores e perspectivas que lhe aderem ao longo da vida como produto de sua interação com
os outros. Nietzsche diz: "Talvez a suposição de um assunto não seja necessária; pode ser lícito admitir uma
pluralidade de sujeitos cuja jogo e cuja luta são a base da nossa concepção e nossa consciência... Minha
hipótese: o assunto como pluralidade". A base da nossa concepção e nossa consciência, de modo seria um
produto de nossas experiências, experiências e relacionamentos, das ideias que os humanos decidiram
adotar e rejeitar ao longo de nossas vidas. Tudo isso é ao mesmo tempo um produto e uma entrada do
confronto entre as vontades do poder.
483
O segredo desvendado por Marx foi o de mostrar como que aparecia algo de
mais valor no mundo econômico. Isto viria, segundo a sua interpretação, do fato dos
trabalhadores produzirem um excedente de valor por conta de que o trabalho por si
mesmo, quando no regime capitalista, gera a reposição da força de trabalho do
trabalhador e ainda deixa de lado um valor que pode ser apropriado por quem emprega
a força de trabalho. Max mostrou que o tal mais-valor não era o lucro do capitalista, mas
algo que pertenceria legitimamente ao trabalhador, para lhe dar mais que o sustento,
mas que lhe era retirado, deixando-o aproveitar apenas aquilo que o faria voltar vivo para
a manhã seguinte do dia de trabalho. Todavia, no meio dessa conclusão, ou melhor, para
formular essa teoria, Marx precisou analisar novamente o que se chamava de
mercadoria. Investigou não o produto, mas a mercadoria, ou seja, o produto no mercado.
Viu que no mercado não se encontram vendedores e compradores enquanto pessoas,
mas pessoas comandadas pelo que vendem e compram, as mercadorias. Estas então
eram os verdadeiros sujeitos, deixando seus carregadores, os vendedores e
compradores, como objetos. No mercado não entram produtos, somente mercadorias,
ou seja, elementos que se igualam porque são objetos vistos pelo seu valor de troca, não
pelo valor de uso. Quando lemos Marx hoje e a conversa dele nos leva para esse campo,
então o marxismo dá sua contribuição mais autenticamente filosófica, num sentido mais
tradicional do termo. No sentido da suspeita que se volta contra si mesma. Sei que estou
sendo dominado, pois me olho no espelho fazendo vontades de objetos. Voltei minha
desconfiança para eu mesmo. Todavia, posso não saber o que fazer para mudar isso e,
então, acreditar que ser crítico é perceber isso e ficar quieto. Marx não queria que se
ficasse quieto. Só interpretar não basta, disse ele. No entanto, ao querer sair da
interpretação e transformar isso, criou o quarto monoteísmo que só quando se perdeu
de vez nos deu chances de retomar Marx. O quarto monoteísmo do comunismo como
uma fase do consumismo. O Comunismo funcionaria como uma comunidade de
excitados que cultivam à sua maneira o thymos numa psico-política específica com todas
as suas qualidades intrínsecas a ele como a ira, orgulho entre outros. O movimento
mediante o qual o homem fixado embaixo devia elevar-se a si mesmo à altura do seu
papel de homem potencialmente mais elevado, trazia no calão dos zeladores do homem,
o nome de revolução.
484
É claro que a teoria do Marx é uma teoria da mais-valia baseada nas teorias do
“valor-trabalho”, também chamadas de “teorias clássicas” ou de “teoria do valor-
troca”.74 Marx não teria conseguido formular suas noções sem a economia clássica, e sem
com isso, não ter sido perdoado até hoje pelos capitalistas. Assim, com base em produtos
completamente irrepreensíveis como o trigo e o ferro, a saia e a tela, a seda e a graxa,
ele procurou inicialmente o segredo da troca equivalente. Seguimos a sua análise
perspicaz nos passos decisivos: mercadoria e mercadoria; mercadoria e dinheiro,
dinheiro e mercadoria, passagem enquanto dinheiro para o dinheiro enquanto capital.
Em meio a essas considerações idílicas e formais de equivalência, mostram-se aqui pela
primeira vez aquelas tensões pesadas, que apontam para uma charneira de
“contradições” no cerne de todo o sistema de troca: dinheiro torna-se, agora e de uma
vez só, por intermédio do desvio pela coisa e da volta à forma do dinheiro, mais dinheiro.
A partir de onde? Ele se troca no sentido dos pressupostos como se estivesse fornecendo
algo equivalente por algo equivalente, ampliando-se por essa via. Será que a economia é
uma variedade da magia? Assim se fez a Academia de Platão. Eram regras especiais da
liberdade de conversação dentro do lema indicativo na porta: “que só entre quem sabe
geometria”. Isto nos faz crer que a política está interna à própria matemática. Não há
uma sociedade sem dinheiro, sem pólis, sem vida urbana, com matemática, nos
enganamos. Tales de Mileto que trabalhava com geometria. O homem do começo da
matemática, ou o próprio Pitágoras, estiveram sim, em uma sociedade urbana. Foi a
urbanização, e justamente, na hora da entrada do dinheiro que o Tales começou a
participar da venda de oliveiras para ele ganhar dinheiro que brotou nele a capacidade
de trabalhar com os equivalentes. É aí que a abstração aparece. Pedagogicamente seria
possível trazer a politização para o interior das matérias e as matérias para o interior da
pólis. Marx, contudo, ao menos isto é certo, não descreveu outra coisa senão a forma
fundamental de toda circulação capitalista, que repousa sem exceções nas expectativas
de crescimento.
O que lhe interessa, como um genuíno fundamentalista teórico, não é tanto o
olet levemente perceptível no mercado, mas muito mais o olet ideologicamente
encoberto na esfera do trabalho. O que excita a sua força de pensamento não é o mau
74
SINGER, Paul. Curso de Introdução à Economia Política. 11ª Edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1987, pp. 11-25.
485
cheiro cínico da circulação, mas o fedor do próprio modo de produção (o que se chama
de “força de trabalho”). Esse fedor interpela o órgão teórico uma maneira totalmente
diversa daquela que tem lugar no primeiro mau cheiro, que se volta antes para os
sentidos. Por isso, as artes crítico-sociais da modernidade se dirigiram para os fenômenos
coloridamente corruptos do cinismo da circulação. Marx, em contrapartida, abre um
espaço para adentrar até as posições mais internas do partido do non olet e fareja no
próprio capital o gosto fatal de carne do roubo característico da mais-valia. A controversa
teoria da mais-valia jamais teria podido conquistar a posição estratégica chave no ataque
marxista à ordem social capitalista, se ela fosse mera fórmula econômica arbitrária entre
outras. Em verdade, ela forma não apenas uma descrição do mecanismo de ampliação
do capital, mas ao mesmo tempo, de uma maneira politicamente bombástica, fornece
um diagnóstico sobre a relação moderna de classe trabalhadora com a classe beneficiada.
Na troca da força de trabalho pelo salário, a harmonia do princípio de equivalência
aparece destruída de uma vez por todas. Se nós compreendermos como é que
sistematicamente ser toma mais do que se dá, então vocês serão como o capital e
esquecerão aquilo que é mau e bom. Uma vez que o trabalho cria muito mais valor do
que aquilo que é re-tornado aos trabalhadores sob a forma de salário (os salários
movimentam-se sempre na linha da mínima existência historicamente relativa), então
acumulam-se nas mãos dos detentores do capital excessos significativos, ainda mais com
a introdução de maquinários. O termo exploração designa de maneira expressiva o
escândalo envolvido na produção de mais-valia. Ele abriga em si uma peculiaridade
epistemológica: a saber, ao mesmo tempo uma expressão analítica e moral-agitadora.
Como tal, ela desempenha um papel marcante nos movimentos históricos dos
trabalhadores. Compreende-se o porquê de o capital ter recusado desde sempre esse
conceito de luta por causa de seus subtons “provocadores”. “Exploração” não é uma
noção moral em Marx. É uma noção descritiva. Explorar não é retirar injustamente, mas
é tirar justamente. No capitalismo a ideia é pagar a força de trabalho pelo que ela foi
despendida, ou seja, pelo tanto que vale, em horas, para que essa força possa ser reposta.
Essa operação é feita de modo que sempre o trabalhador dá mais valor ao que produziu
do que o necessário para ele repor sua força de trabalho. Isso é a mais-valia, e disso
decorre, em parte, o lucro. O lucro não vem somente da compra do mais barato que
depois vende mais caro, mas do fato do homem ter o dom, no capitalismo, de produzir
486
mais valia. De fatos, os embates ideológicos nos diálogos entre “trabalho” e “capital”
concentraram-se na questão de saber como se deveria interpretar o fenômeno do lucro
do empreendimento e da exploração (muito mais: a assim chamada exploração): olética
e não oleticamente. Enquanto os oletista falam de “problemas” como pobreza,
sofrimento do proletariado, repressão e depauperamento, os não oletistas dirigem o
olhar para os “interesses conjuntos” econômicos-populares, os reinvestimentos, as
realizações sociais da economia, o asseguramento do lugar de trabalho e coisas
semelhantes. Assim, o não oletismo moderno é um grande e único esforço ideológico por
“desdiabolização do roubo constitutivo da mais-valia”. O que hoje por meio do campo
político e histórico os trabalhadores poderiam pedir em um movimento sindicalista (que
nem os trabalhadores alemães), é que os seus patrões pudessem pagar mais que a
simples reprodução da força de trabalho, socializando aí, a mais-valia. Isso faria com que,
no fim, os patrões tivessem uma taxa de lucro menos como se vê, por exemplo, em
bonificações e participação nos lucros e resultados. O oletismo marxista obteve no século
XX o auxílio protetor por parte da psicanálise, que concebe o dinheiro e a merda como
equivalentes simbólicos e subordina o complexo monetário à esfera anal. Temos a
famosa expressão: “Ele caga dinheiro”. Ela não colheu gratidão por isso, sobretudo desde
que a Revolução Russa emergiu da noite para o dia como um não oletismo marxista
mascarado, afirmando que exploração, em russo, não seria mais exploração alguma. A
mais-valia socialista corre sob a bandeira libidinosa: volúpia da construção.
Nas palavras de Hobsbawm (1985, pp. 14-16):
Manual do sem braço: manual, antologia e livro de imagens para pessoas com um braço
só – organizado pelo professor Eberhard Frnb. V. Künzenberg e pelos mestres da escola
heidelberguiana para pessoas com um braço só (agora em Ettingen junto a Karlsruhe)
– segunda edição ampliada.
tragédia, também a humanidade moderna está ameaçada pelo atraso, sobretudo no que
se refere a tomada de medidas político-ambientais. Não obstante, de maneira geral, para
os modernos o tempo como tal se faz ostensível antes de tudo por acelerações. A
aceleração até o limite extremo da pista de movimento é o movens da característica
apocalíptica contemporânea. Uma característica apocalíptica com a possibilidade de
acidentes. Foi daí que derivou a brilhante conceituação de Heidegger na figura do “ser
que caminha para a própria morte” ou “avanço para a morte”. O “ser-para-a-morte”. Se
lermos Ser e Tempo não apenas como uma ontologia existencial, mas igualmente como
uma modificada psicologia social da modernidade, novas perspectivas são abertas.
Heidegger compreendeu a relação entre a “inautenticidade” moderna da existência e a
fabricação moderna da morte de uma maneira que só se abre para um contemporâneo
das guerras industriais. Veremos um Heidegger com potencialidades críticas e explosivas
na fórmula do ser-para-a-morte. O dasein no mundo, significa sempre um ser exposta em
esfera onde a não música, é possível. Quem nasce ou quem nasceu, saiu para fora do tom
contínuo-continuim acústico do instrumento maternal. O “estremecimento” do qual
Heidegger menciona em sua metafísica, é o estremecimento do medo nasce de uma
perda da música que já não ouvimos quando estamos no mundo. O medo que ele fala é
o medo da morte da música, o medo de um silencio ensurdecedor do mundo após a
catástrofe do meio materno. “Sente-se uma inquietação”. O medo revela o nada. É por
isso que homens existentes, também desvanecem no meio do existente, no
“estremecimento dessa suspensão”. O estado de urgência do pânico existencial, apenas
ali no vazio pairar no mundo, no “nós pairamos em medo”. O normalmente adormecido
possui a autenticidade do terrível que, se resisto, vem dar a mim como a um “existente”.
Por este motivo, Heidegger não pode acentuar de mais que a vida inautêntica se vai em
ruído e palavreado, enquanto ao tornar-se autêntico é inerente ao medo perante um
silêncio aterrador. Com seu “segundo socratismo”, teve base em se saber com maior
clareza, que não se sabe nada e em que medida é necessário partir desse princípio do
não saber ou da ignorância em relação ao resto. Nos tempos modernos, o saber do não
saber também adquiriu o caráter de urgência.
O século XIX concentra suas melhores energias teóricas na tentativa de tornar
pensável, através de grandes teorias realistas, a morte dos outros. O morre-se
transforma-se em “eu morro”. Os grandes projetos evolucionistas extirparam o mal do
493
mudo na medida em que ele afeta os outros, para transportá-lo para estados superiores
de épocas ulteriores concretizadas: há aqui equivalências formais entre a ideia de
evolução, e o conceito de revolução, o conceito de seleção, o conceito de luta pela vida
e de sobrevivência dos mais aptos, a ideia de progresso e o mito da raça. Com essas
noções, busca-se uma ótica do declínio do outro. Com a teoria de Heidegger sobre a
morte, o pensamento do século XX vira as costas para esses cinismos híbridos e
neutralizados do século XIX. O que muda é: morre-se transforma-se em “eu morro”. Ao
assumir um encurtamento existencialista com a antecipação do fim. A autêntica tarefa
de pensar teria que ter sido consistida em indagar o porquê na Modernidade, por motivos
imanentes, se instala a antecipação de um final total. Daí que os progressos técnicos
serem dotados de uma narrativa praticamente religiosa. Por essa razão que o cristianismo
por um bom tempo foi o mais poderoso movimento criador de história no nosso planeta.
São progressos que devem acelerar a vinda da salvação futura. Para isto é preciso uma
força pensante nos motivos de aceleração geral que havia impulsionado e colocado o
modo de vida dos modernos na forma do avanço absoluto e da aceleração absoluta. Não
utilizamos as expressões: “Vou detonar”, “isso é de outro mundo”, “é de tirar o fôlego”,
“estou com o tanque cheio”, “Estou com gás”, “estou a mil”, “estou botando o terror”,
“estou no céu”, “Red Bull te dá asas” podemos perceber um tipo de gozo histérico, êxtase
em trânsito (exaustão), no trânsito, no tráfego, na obliteração, no desaparecimento, na
flutuação, desprender-se, elevar-se, na ausência de gravitação, na suspensão, no voo, na
mobilização, no autoconsumo da aceleração que põe em risco a própria existência. Se
você não está na borda do desborde, no limite do ilimitado, na beira do abismo (Man On
The Edge) é porque a sua vida é aborrecida, improdutiva, nada interessante e até um
tanto suspeita.
A crise global compartilha muitas características com o antigo Deus do
monoteísmo, por isso Sloterdijk dedicou a trilogia Esferas como imunologia, ele especula
que esta crise inevitavelmente iniciará e terá que iniciar, nada menos que uma virada
imunológica global, isto é, uma transformação revolucionária na forma como os humanos
constroem e organizam sua residência imuno-esférica no planeta (design, receptáculos,
casas, apartamentos, sistemas de ventilação, técnicas climáticas, sistemas de suporte,
etc). Um novo gesto de formação do mundo em termos de um novo projeto global de
construção de esferas, entendido em primeiro lugar como uma transformação das
494
O que chamamos a terra única significa a mônada geológica que foi concebida
pelos membros da espécie de início como mãe, terra-mãe, depois,
crescentemente, como túmulo, local de trabalho e palco e, por fim, como
recurso e biótipo. Hoje, apresenta-se aos olhos dos membros não-ébrios da
espécie como uma extensão considerável em imagem. É a portadora de uma
complexidade ainda não suscetível de ser pensada a fundo. Como a terra foi
agora verdadeiramente descoberta como a base única para todas as hordas,
povos, nações e círculos culturais, pode-se ativar mundialmente como um
novo ciclo de inteligência que leve para lá dos clássicos regionais e talvez até
do diabólico pacto da inteligência com o capital mundializado. Neste ciclo
originam-se novos cruzamentos entre saber e velar, cruzamentos que
correspondem ao espírito de vigília global das ampliadas relações
interracionais. Nos espaços de vigília globalizados examinam-se e
estabelecem-se as dimensões principais da inteligência multi-racional – como
495
civilização se articula com a ideia de antropoceno. O que vemos hoje são muitos
monstros, muitos Titãs no meio de nós. Um lado selvagem da energia que não devemos
ou deveríamos ter manifestado. Na teologia grega vemos duas gerações de deuses,
temos o reino Titânico e o reino Olímpico. O olimpismo sempre foi um estresse do lado
preso, amarrado dos Titãs. A sensação que a modernidade nos passa é que, estamos
falando de um período de desamarras, de libertação das correntes Titânicas para forças
de construção Olímpica. Uma ideia de inclusão de entropia como força dissipadora. A
introdução das primeiras máquinas de queima-poder com o ecossistema que Marx
chama de “o metabolismo da humanidade” com a natureza é a definição técnica de
trabalho. A ideia de trabalho em si sofreu uma profunda transformação no seu sentido e
propósito, a partido do momento em que, os seres humanos passaram a criar essa
intimidade entre queimar e trabalhar, isto algum dia poderia ser considerado um “não
trabalhar mais” nesse aspecto de energia, a queima é uma emergência da entropia.
Atividade nos tons modernos é, primeiramente, uma primeira qualidade de queimar a
nós mesmos, não no sentido mais recente de consumo-consumidores (burners:
gastadores). Essa burning quality, pode-se dizer que é um jogo que pode ser jogado
enquanto todo mundo tenha se transformado um membro de uma burning class. Essa é
uma predisposição da qual Max Weber teve em mente numa sistemática passagem de
que todos nós fomos pegos por uma gaiola de ferro de necessidade e olhar para um
futuro mecanizado. Este futuro seja jogado até o momento em que a última grama de
ferro tenha sido queimada com a última grama de carvão. Seu maior livro esteve um
passo antes da era do óleo (1920), um período que estava para começar. A primeira
formulação do chamado “imperativo energético” com os físicos alemães, temos Ostwald
voltar para o ano de 1912 onde fala do “imperativo energético” como uma fórmula muito
simples. Com uma base de cianetos não é possível correr infinitamente nessas quantias
de energia. Uma sentença bastante marcante que funcionaria como um pacifismo
energético no carcinogênico de 1912, pois em 1914 a Europa começou uma grande
energia de despesas e no interesse de que isso nunca aconteceria. Isso não parou porque
se transformou em formas civis de mobilização, um exército que vemos todas as
semanas. Isso se transformou em um estado de mobilização permanente que nunca se
encerrou, foi atomizado não mais na forma de um exército, mas numa mobilização
individual onde temos um momento de pouca esperança para uma desmobilização nos
497
Estados e nas ambições que advém da filosofia moderna e da literatura moderna que é a
criação de uma nova geração de transportadores de uma pequena invasão. A capacidade
de agir é a base de todas as construções legais, porque eventos não podem ser cobrados
e eventos não podem ser colocados na corte. A racionalidade humana sempre tentou
transformar esses eventos em ação. Antropoceno não é somente essa fenomenologia do
poder, energia, complexidade e inteligência artificial. É também, sobre a formulação de
um novo endereço no qual você pode enviar suas cartas de acusação. Uma frase de Carl
Schmitt uma vez disse “a humanidade é uma impostora”, porque a humanidade é um
endereço errado. Uma vítima disso foi Schiller que queria mandar um beijo para todo o
mundo. Seu beijo pelo visto, não foi entregue até hoje. “A humanidade” teve que se
tornar um endereço real. Esse é um conceito inserido no Antropoceno: se a humanidade
consegue ser uma entidade?
Sloterdijk (2018a, pp. 3-5)
Edgar Mitchell, o “sexto homem na lua”, foi quem deu um novo conteúdo a
palavra. Talvez não deixe de ter a sua importância que tenha sido astronauta. Ao falar
dos seus sentimentos quando retornou para a Terra falou que “Todos regressam com o
sentimento de já não serem cidadãos dos Estado Unidos..., mas cidadãos da Terra”. A
humanidade de certa forma, está incapacitada de aprender, porque não é um sujeito,
mas um agregado. “A humanidade” como conceito geral, forma um sujeito alegórico que
pode ser um fantasma com teses especulativas. Essa ecologia só começa depois de se
entender que a humanidade não tem um Eu, nem coerência intelectual, nem órgão de
498
vigilância. O que nos coloca em uma situação delicada no que tange aos processos de
aprendizagem do gênero humano, somos onerados por um problema de transmissão. É
possível se transferir inteligência adquirida personificada para aqueles que aprenderam
para aqueles que não aprenderam? É possível integrar conhecimento individualizados em
instituições sociais e em sistemas técnicos? Este parece ser um horizonte cada dia mais
aceitável. Se toda essa multidão consegue produzir uma suficiente quantidade de
agências com capacidade para agir razoavelmente. Uma situação de co-imunização. O
agir diminui o nível de autodestruição. Esse gesto de acusação pode ser transformado em
uma insignificante metanoia ética individual que pode considerar como mudar sua vida
de acordo com a situação. Não tem nada a ver com uma situação de companhia de
autoridade. É a situação em si que vem girar na ideia de que você deve mudar sua vida,
como um homem que está se afogando. Você diz para ele: “você deve nadar”. Ele escuta
isso com uma voz em sua cabeça que soa como a voz da sua razão. Se falamos de
“imunologia”, tratamos de uma teoria que tem o desígnio de descrever expectativas
incarnadas. O sistema imunológico é especializado em certo nível de incarnar
expectativas em que o mundo é um lugar onde você pode ferir a si mesmo. A vida em si
mesma, deve ser definida como uma fase de sucesso de um novo sistema imunológico,
onde o tempo deve ser compreendido como um período de sucesso de uma vida
individualizada. Isso modifica a perspectiva (ou o olhar de fora) da vida, da sociedade, do
Direito, da medicina e da coexistência em um sentido quase dramático, porque a maioria
das coisas que usamos para discutir em termos de interação social, são na verdade, uma
fricção entre uma pluralidade de imunologias criadas, por exemplo, a religião como
fortaleza imunológica.
Até o momento em que o trabalho ameaça o cenário, os atores não impõem
uma nova percepção de si mesmos. O que era cenário virou tema de ação. Só poderá
sobreviver graças a um novo gesto construtivo, realizado pelos seres humanos que hajam
compreendido que a proteção do cenário é o argumento da obra. Isto requer um ato
primeiro necessário, e passarmos a pensar como crianças da terra, mais do que como
crianças do mundo. Só assim seria possível esse novo gesto construtivo, que nos permita
construir, como crianças da terra, da Mãe Terra umas novas lógicas e com elas, inaugurar
a técnica necessária, as tecnologias que possibilitem uma nova realidade. Sloterdijk
provou ser um pensador antropocênico avant la lettre, apontando para a fragilidade e
499
mudança de uma situação desesperada. Desde que os tempos são tempos, desde que o
homem histórico levantou sua cabeça, não se passa um dia sem catástrofes, nem um ano
sem alguma inovação, nem uma geração que não tente superar a anterior e nem uma
geração que não abra uma esperança contra sua própria convicção. As grandes
civilizações dão o que falar porque elas são movidas pelo acontecimento. Enquanto ela
instaurar mundos que pretendem continuar sendo narrados posteriormente, o seu
caráter corresponderá ao grau da mobilização civilizadora. Supondo-se que não há O
ponto de viragem, mas há viragens e voltas que, não sendo elas próprias factíveis, se dão
de forma imprevisíveis sobre uma tal curva do agir, o cavalo pedindo cela passando por
nós. Aproveitar a oportunidade seja na forma e no tempo em que ela vier. Dizem por aí
que um raio só cai uma vez no mesmo lugar. Se é possível se falar em alguma volta, então
devemos pensar a de ser uma precaução contra a destrutividade, o abandono de atitudes
de esforços errôneas e o afastamento de falsas ilusões de facilitações dos processos de
mobilização. A serenidade confirma-se como uma “posição” ou um “estado” que nos dá
a vantagem de não se ter vencido, possui semelhança com uma derrota numa luta em
que seria catastrófico ganhar. A serenidade dota o sujeito de autoconhecimento que sabe
já estar cansado com o impossível. Será que nossos últimos capítulos serão sempre
escritos por aqueles que, não sabendo como, escaparam às catástrofes do sujeito? Se o
itinerário da subjetividade como circuito odisseico para um ponto de partida mal
interpretado, poderia criar uma impressão de que as coisas mais simples deveriam
sempre surgir só no fim de um longo erro. Disso, se poderia tirar a conclusão de que o
espírito esteja posto em marcha e obrigado a andar por desvios. Será se precisamos de
um Novo Testamento a ser escrito? Atualmente não há apenas motivos político-
partidários para tamanha preocupação, mas boas razões, razões dramáticas, globais,
para se falar em mutações. O que nos leva a pensar a desproporção incomensurável entre
o fosso da competência política e a exigência do real. De momento, ninguém sabe como
se poderia colocar as tendências apocalípticas do sistema ao alcance em termos de
métrica e de medidas suscetíveis de as coibir. A política virou um jogo de tatear no escuro,
uma cabra-cega, mas como os participantes no jogo nunca se deixam apanhar, a política
não pode tirar a venda. Nesse jogo, todos sentem que o real cresce em termos de perigo.
Um dos aspectos do perigo em que nos nós encontramos é o de colocar sujeitos como
objetos da política, que consiste também, em reduzir os riscos amorais a questões
501
nomear como obras humanas dentro do inventário geral do mundo era muito reduzida.
Junto a aquelas já existentes na natureza, as produzidas por outros seres humanos
resultavam pouco significativas. Entre o produzido e o feito por si mesmo, por sua parte,
as obras de arte no sentido estrito reclamavam um espaço pequeno e minguante. Ali
onde o fundamental na vida radica nos poderes naturais e tradicionais, os humanos têm
que ver a si mesmos antes de tudo como receptores de ser e como preservadores de
antiquíssimas ordens sagradas. Os testemunhos mais rotundos do poder criador de obra
de anteriores civilizações, as construções sagradas, eram respostas técnicas para ideias
do sagrado e solene. Com elas começa a elaboração artística do luminoso. Desde que o
sistema moderno de produção autônoma entrou em funcionamento, se, colocou em
movimento a compreensão humana de si mesma. A subjetividade se retira mais e mais a
posição de remitente de ser e do que é. Inaugura para si mesma a posição de criador-
produtor, descobre que a ordem do mundo não é tanto algo que deve conservar e repetir
desde as origens, mas sim, algo superável e a ser produzido mediante projetos
antecipatórios. Agora se pode dizer que o mundo não só foi interpretado de forma
diversa, mas que também deve ser mudado definitivamente. Já não é uma situação fixa,
que se reproduz segundo suas próprias leis, mas uma obra em construção que se
transforma segundo planos humanos. O gênio e o engenheiro se convertem em figuras
condutoras de uma fascinação do ser humano por si mesmo sem precedentes. Assumem
o papel de garantes do poder humano de criar e produzir. Ali onde esse poder chega a
própria consciência, entre em ignição o desejo de superação do ser humano pelo ser
humano. Aqui é, por exemplo, onde a obra de arte moderna possui uma missão
antropológica e ontológica: mediante sua conclusão conjura a capacidade humana de
criar, mediante sua grandeza artística proclama a superação da natureza pela produção.
Este é o sentido duplo da plenitude da arte. É um duplo sentido a plenitude da arte. É por
ela que desde sempre se faz como um motivo principal de novas artes tenha residido em
mostrar a habilidade. Na obra, a virtude humana deve ao virtuosismo, para os seres
humanos é virtuoso o ser capaz de criar. A habilidade que se deixa ver,
consequentemente, não faz surgir a vaidade artística. O que aparece nela é a
subjetividade que se está formando, a que é dado aprender aquilo que pode ser
aprendido até que se atreva a dar o salto ao que não pode aprender. Portanto, surge na
arte o luminoso humanizado: o artista criador põe as coisas na obra que transcendem o
504
tanto mais otimista ele sumula a poesia heroica; no coração dessa teoria encontra-se um
sujeito que não consegue mais sofrer, por ter se transformado totalmente numa prótese.
Só no momento em que a peça ameaçar arruinar o palco, é que os atores terão
uma nova percepção para si de si próprios. A astronáutica e a ecologia não passaram a
ser a “autotematização” da humanidade? No futuro, as esperanças como Esperança
terão de se sujeitar a esperanças particulares ao segredo da confissão e ameaçar a
esperança em público sob pena de prisão. Quem nutrir efetivamente esperanças deve
plantá-las dentro de si tão profundamente a ponto de enraizá-la, pois só com e como
forças silenciosas é que elas serão benéficas e crescerão. É só assim que elas não se
inclinarão para as séries causais que levam às catástrofes. É só assim que elas não entram
e nem contribuem para a mobilização de empreendimentos contra a própria convicção.
São assim que elas se passam a ter o caráter de forças vitais que atuam sobre e nas costas
dos indivíduos e que os transportam para cima do fosso do abismo. Devido aos Êxitos
conseguidos pela mobilização histórica, a Natureza e a civilização se fundiram numa
comum improbabilidade. Em tais condições, a percepção da realidade equivale a uma
confissão de solidariedade no improvável. É onde essa percepção se aclara que nasce
naturalmente um ethos de cidadãos da Terra. Em teorias da cultura, se percebe uma
época em que fundamento e construção formam uma unidade para um futuro de uma
comunidade de fragilidades. O drama histórico-universal cada dia passa ou passou para
uma forma retrovertida de perspectivas de história da Terra. A história global deixa de
ser o projeto singular e cosmopolita da autorrealização. Ela agora se transforma em um
problema plural de governo da casa pelos cidadãos da Terra. Uma ética de cooperação
aparece como co-imunização. Já que de fato hoje a Terra pode ser vista como uma “casa
inteira” da vida, estar à beira de uma explosão. Não só o homem é mortal, mas também
a civilização, por conseguinte, a civilização também deve ser entendida agora, como um
empreendimento mortal e falível, mesmo de ter sobrevivido à crise humanística.
Precavidamente, Sloterdijk com sua a metáfora da espuma mostra que não há
propriedade privada total dos meios de isolamento. Ao menos uma parede de separação
é possessão comum com uma célula-mundo adjacente. A parede comum, vista sempre
pelo lado próprio, constitui o minimum inter-autista. A Modernidade com sua tentativa
de executar um projeto infinito sobre uma base finita, pode agora dizer a propósito do
todo na medida em que esta se processa como um êxodo antropogônico, um utópico
507
Referências:
2 - Thomas Mann em A Montanha Mágica (1924) levou a termo a sua confrontação com
o espírito do tempo weimariano neocínico, não notado por muitos, que acreditavam que
essas conversas nas alturas de Davos não seriam outra coisa que senão sagacidades
derradeiras da burguesia cultural sem qualquer tipo de vínculo social. Thomas Mann
debateu-se na tarefa de apreender o espírito da adaptação, da colaboração e da
afirmação, que caíra nessa década nas águas do cinismo, apresentando o que seria um
“posicionamento positivo”, que não eram baseados em afirmações de uma realidade ou
de dados mortalmente objetivos. Da A Montanha Mágica emerge, talvez pela última vez,
imagens de uma humanidade que permanece na engenhosa sem se tornar cínica. Uma
humanidade que não pode mais existir na planície. As alturas de Davos correspondem à
uma zona psíquica onde todo o drama de seu livro acontece. Nele, um humorista tenta
novamente subir a um ponto mais elevado do que as altas elevações do cinismo. Aqui há
uma tradição mais antiga de ironia-humorística que luta com a ironia moderna de “opa,
estamos vivos”. O caráter moderno de “lançado” e com o deixar-se impelir cínico, o herói
da história se entrega à sua aventura na montanha e se deixa arrastar pela corrente do
tempo nas altas altitudes. Porém, o que temos aqui não é uma engrenagem
completamente solta, mas um pressentimento de uma formação superior, uma esfera
luminosa de um si-mesmo mais elevado, de uma humanidade e de uma afirmação da
vida diante do realismo e da regressão e da morte. A risada se autonomiza e não pertence
mais àquele que ri. Uma risada que não temos mais responsabilidade e compromisso.
Algo ri em nós, quando tomados uma consciência, que alcança um caráter mais profundo
em nós do que pode perceber o nosso eu civilizado. É assim que nosso herói Hans Castorp
ri, um riso intenso, incontrolável, uma careta levemente dolorosa por causa do vento frio.
Um riso que vem quando seu primo conta como os cadáveres no inverno são
transportados para a planície. Ele diz: “em um tobogã”. Continua ele dizendo: “E tu me
contas isto com toda a tranquilidade de espírito?” Então, vem a resposta: “Tu te tornaste
completamente cínico nestes cinco meses!”. Creio que um cidadão chamado Caio
Copolla também poderia ser inserido aqui. Um sorrisinho dente de cavalo e o bloquinho
de anotações. Um sorriso que virou uma careta. Ri a todo momento sem motivo algum.
Ele não ri mais, porque o sorriso virou rosto. Thomas Macho fala do Homem que ri de
Vitor Hugo, contando as diversas histórias produzidas pela literatura e pelo cinema a
partir desse clássico. No campo popular, lembra o filme Batman, o Cavaleiro das Trevas,
em que Heath Ledger interpreta o Coringa. Ora, o que é esse vilão senão aquele que foi
posto por sorrir na base da faca? Sempre estará sorrindo! Nas situações mais dramáticas,
perigosas e difíceis ele terá de sorrir, querendo ou não. Mesmo diante da morte ele sorri.
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Não há como evitar o que diz um rosto feito à mão – a mão de máquina! Então, o melhor
que se há de fazer é jogar, é participar do mundo achando graça no que não tem graça
exatamente porque o rosto estará afirmando isso. Seria tolo tentar contrariar o rosto.
Seria uma tarefa árdua e fadada ao insucesso. Não podemos ser menos ou mais do que
é nosso rosto, a máscara que é o rosto, a “organização forte”. Não é isso que os
personagens de Nicolas Cage e John Travolta descobrem, quando seus rostos são
trocados, no célebre filme de John Woo? Eles logo percebem que podem agir muito bem
tendo um rosto que parecia não ser senão o seu simétrico e odiado outro.
______ . Crítica da Razão Cínica. 2ª Edição. Tradução: Marco Casanova. São Paulo: Estação
Liberdade, 2012, pp. 633-634.
______ . Esferas III (Esferología Plural). Traducción de Isidoro Reguera. Madrid: Siruela,
2006, pp. 452-453.
APULEIO. The God of Socrates: The Work of Apuleius. London: George Bel and Sons, s/d,
re-impressão 2011, p. 363.
3 - ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 12ª Edição. Tradução: Roberto Raposo. Edição.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015, pp. 9-26.
5 - ______ . The Art of Philosophy. New York: Columbia University Press, 2012a, pp. 23-
24.
8 - Aqui ficaria melhor perceber o thymos como uma espécie de força para mover-se.
Algo extra indivíduo. Ele diz respeito à autoestima e ao orgulho, mas isso por conta da
harmonia que é cosmos (contrário do caos), e que põe para cada um o destino. Um
“fenômeno” de energia de enchimento (ou coleta) para liberação ou descarga. Seria
possível imaginar um “banco de depósito” ou um “caminhão de lixo” (como local) de
coleta.
9 - A vida aí, nesse caso, é algo sem travas, como de fato fez o cínico Diógenes, cuja
melhor fala foi aquela de pedir para Alexandre sair da frente do sol, para que ele pudesse
continuar seu banho de luz. Nenhum mesquinho, resguardado, com segundas intenções,
falaria o que Diógenes falou. Ele extrapolou, esbanjou-se, patrocinou e doou à exaustão.
Enquanto Diógenes manifesta o “desejo”: “retira-te da frente do meu sol!”, os adeptos
do cinismo moderno aspiram “um lugar ao sol”: nada mais têm em mente além do
projeto de disputar cinicamente, no sentido de o fazer explicitamente e sem
constrangimentos, os bens deste mundo, dos quais Diógenes justamente caçoa.
______ . A Mobilização Infinita. Para Uma Crítica da Cinética Política. Tradução: Paulo
Osório de Castro. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2002, p. 50. A desrealização é o
resultado psicossocial da “autorrealização” sistemática, na qual o conceito antiquado de
“realidade” se contrai logicamente até a função residual do ainda-não-mobilizado.
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 12ª Edição. Tradução: Roberto Raposo. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2015, p. 310.
513
SLOTERDIJK, Peter. Crítica da Razão Cínica. 2ª Edição. Tradução: Marco Casanova. São
Paulo: Estação Liberdade, 2012, p. 443.
14 - SLOTERDIJK, Peter. Actio in Distans: Sobre los Modos de Formación Teleracional del
Mundo. Instituto de Sociales Contemporáneos, Universidad Central (IESCO), Bogota:
Colombia, Nº 28, 2008a. Disponível em:
<http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/colombia/iesco/nomadas/28/02-
actio.pdf>. Acesso: 09 Abr. 2018.
17 - Matéria: City Journal. The Grasping Hand: The Modern Democratic State Pillages its
Productive Citizens, 2010. Disponível em: <https://www.city-journal.org/html/grasping-
hand-13264.html>. Acesso: 11 Jan. 2019.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da Moral: Uma Polêmica. São Paulo: Editora
Companhia das Letras, 2008, p. 47.
______ . Genealogia da Moral: Uma Polêmica. São Paulo: Editora Companhia das Letras,
2008, pp. 49-50.
______ . Genealogia da Moral: Uma Polêmica. São Paulo: Editora Companhia das Letras,
2008, p. 54.
514
Nietzsche, Friedrich Wilhelm. Genealogia da Moral: Uma Polêmica. São Paulo: Editora
Companhia das Letras, 2008, pp. 110-111. É certo que ele também inovou, ousou,
resistiu, desafiou o destino mais que todos os outros animais reunidos: ele, o grande
experimentador de si mesmo, o insatisfeito, insaciado, que luta pelo domínio último com
os animais, a natureza e os deuses. Ele, o ainda não domado, o eternamente futuro, que
não encontra sossego de uma força própria que o impele, de modo que seu futuro, uma
espora, mergulha implacável na carne de todo presente – como não seria um tão rico e
corajoso animal também o mais exposto ao perigo, o mais longa e profundamente
enfermo entre todos os animais enfermos?... O homem frequentemente está farto, há
verdadeiras epidemias desse estar-farto (– como por volta de 1348, no tempo da dança
da morte): mas mesmo esse nojo, essa fadiga, esse fastio de si mesmo – tudo isso irrompe
tão poderosamente nele, que se torna imediatamente um novo grilhão. O Não que ele
diz à vida traz à luz, como por mágica, uma profusão de Sins mais delicados; sim, quando
ele se fere, esse mestre da destruição, da autodestruição – é a própria ferida que em
seguida o faz viver.
22 - Ver sobre isso, a nota de Rubens Rodrigues Torres Filho, no volume dedicado a
Nietzsche na colação “Os Pensadores (Abril Cultura), por ele traduzido. A nota encontra-
se na página 159, também pode ser lido no § 9º de Aurora como “Conceito da eticidade
do costume”.
Sloterdijk afirma que o homem não descende do macaco, mas da pedra. É a pedra o
verdadeiro início do processo de humanização e hominização, na medida em que seu uso
inaugurou a prototécnica humana através da produção de sentido ontológico com efeitos
no espaço aberto. É justamente o primeiro gesto do lançar da pedra que abre a clareira
do ser antes de qualquer linguagem, de qualquer palavra articulada. Haeckel havia
dedicado, em 1874, a sua Anthropogenie, na qual reconstruíra a história do homem desde
os peixes do Siluriano até os macacos-homens ou Antropomorfos do Mioceno.
25 - ERASMO – MORE. Elogio da Loucura. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1988,
pp. 8-9.
SLOTERDIJK, Peter. Palácio de Cristal: Para Uma Teoria Filosófica da Globalização. Lisboa:
Relógio D’Água Editores, 2008b, p. 74. O único slogan forte de desinibição que, após o
empalidecer das ideologias, abre em todo o mundo a passagem para a prática, leva, em
516
resumo, o nome de inovação. Raros são os que têm consciência do fato de que aquilo
que assim se apresenta é um vestígio das antigas “leis da história”. Desde que o Homem
Novo foi retirado do mercado numa operação de recolha de produtos defeituosos, as
novidades técnicas, as novidades de procedimento e as novidades de design constituem
as mais poderosas atrações para todos os que estão condenados a perguntar: que fazer
para chegar ao cume? Aquele que inova pode estar certo: a qualquer momento, o lema
da sua ação poderá tornar-se o princípio de uma legislação universal. Desde que o
divertimento, como agente de desinibição, começou a ganhar terreno, a partir dos anos
80 do século passado, podemos até renunciar ao pretexto da inovação. Os atores da
cultura do divertimento, que se tornaram soberanistas do vulgar, esponjam-se nas
superfícies do seu bem-estar e consideram que o deixar-se ir de livre vontade constitui
motivação suficiente. Poderiam renunciar aos consultores porque se dirigem
diretamente aos seres sedutores; quando muito, confiam no seu entertainer, no seu
treinador, no que lhes escreve os ditos de espírito. É soberano aquele que decide em que
armadilha cair.
VALE, Hugo de Mello Velho do. Para Uma Antropologia Política da Dádiva: Entre a
Biopolítica e a Sociedade de Controlo, 2016, p. 92. Universidade de Lisboa. Faculdade de
Letras. Disponível em:
<http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/28727/1/ulfl234011_tm.pdf>
______ . You Must Change Your Life. Malden: Polity Press, 2013, p. 335. O treinamento é
metodismo sem conteúdo religioso. Portanto, a predominância do Ocidente na evolução
da sociedade mundial nos séculos XIX, XX e XXI veio não apenas do "imperialismo"
517
amplamente e corretamente criticado; a razão mais profunda era que eram as pessoas
nessa parte do mundo que, por causa de sua iniciativa na prática, forçavam todas as
outras civilizações do planeta a se unirem aos sistemas de treinamento que haviam
introduzido. A prova: entre os países ultrapassados, apenas aqueles que souberam
implantar um grau suficiente de estresse didático por meio de um sistema escolar
moderno conseguiram avançar. Isso foi mais bem-sucedido onde, como no Japão e na
China, um sistema elaborado de condicionamentos feudais facilitou a transição para as
disciplinas modernas. Enquanto isso, os Tigres Asiáticos recuperaram seu terreno,
enquanto o modernismo do Ocidente ergue o nariz em imitação e mimese, novos
competidores em todo o mundo construíram seu sucesso com base no mais antigo
princípio de aprendizado. Os ocidentais provavelmente só compreenderão o quanto um
antigo grande poder de prática como a China deve a esse princípio, quando os institutos
confucionistas do novo poder global penetraram nos confins da terra.
ao nosso destino de animais pós-modernos. E isso não porque a linguagem não faça parte
dos instrumentos que o homem deu a si mesmo a fim de alcançar a própria condição
essencial, mas porque ela não foi o primeiro nem o principal entre eles. Antes que pela
linguagem, embora não independentemente dela, o homo humanus, ou sapiens, como
se queira, forjou-se, de fato, por meio da técnica. Primeiramente, a técnica pesada do
golpear e do lançar, da pedra e do fogo; em seguida, aquela leve, dos gestos e dos
símbolos - assim como, antes da linguagem, teve de habitar outra casa, outro invólucro
antrópico, capaz de abrigá-lo das potências predominantes.
SLOTERDIJK, Peter. Crítica da Razão Cínica. 2ª Edição. Tradução: Marco Casanova. São
Paulo: Estação Liberdade, 2012, p. 436.
GROSZ, Georg. Ein Kleines Ja und ein grosses Nein (Um Pequeno Sim e um Grande Não).
Hamburgo, 1974, p. 143.
34 - DESIDÉRIO, Erasmo. Elogio da Loucura. Tradução: Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM,
2003, pp. 111-112.
35 - HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 15ª Edição. Parte I. Tradução: Márcia Sá Cavalcanti
Schuback. Editora Vozes: Rio de Janeiro, 2005, pp. 165-178. Ver também §§ 55-69.
LORRIS, Guillaume e MEUNG, Jean. El Libro de la Rosa. Tradução: de Carlos Alvar y Julián
Muela. Barcelona: Ediciones Siruela, 2003, p. 31. O mesmo ocorre com a Fortuna, pois
ela enche o coração das gentes de amargura e logo depois os acaricia e afaga;
rapidamente muda seu aspecto: ora ri, ora está triste. Ela tem uma roda que gira e,
quando assim o deseja, coloca acima, na parte mais alta, aquele que estava embaixo e,
com uma volta, faz com que caia no barro aquele que estava acima na roda. E eu fui
derrubado! Em má hora vi os muros e as fossas que não me atrevia passar – e nem
poderia fazê-lo. Não tive nenhuma alegria desde que Doce Abrigo foi encarcerado, pois
todo o meu gozo e toda a minha cura descansavam nele e na rosa que se encontrava
presa entre os muros; seria necessário que ela saísse da torre se o Amor quisesse que eu
fosse curado, pois de nenhum outro desejo receberia honra, bem, saúde e alegria. O
texto foi traduzido e pode ser visto no link que segue. Disponível em: <
https://www.academia.edu/2997637/O_Romance_da_Rosa>. Acesso: 12 Jun. 2019.
36 - SLOTERDIJK, Peter. Das Reich der Fortuna. In: El Reino de la Fortuna – Extremadura,
Renacimiento, Fortuna. Extremadura: Fundación Ortega Muñoz, 2013, p. 23. Desde 1348,
os europeus sabem que grandes cidades comerciais são espaços de infecção. Eles
constituem zonas de risco em que eles misturam contato desordenado e buscam por nós.
Seus habitantes agora devem entender, em um processo de aprendizado temeroso, que
as riquezas e as infecções viajam juntas.
37 - ______ . A Mobilização Infinita: Para Uma Crítica da Cinética Política. Tradução: Paulo
Osório de Castro. Lisboa: Relógio D’água editores, 2002, pp. 194-195. Sloterdijk considera
que a revelação descobridora, através da qual tudo quanto seja racional e relativo é
patenteado, não é ela própria racional nem relativa. O “espaço” do verdadeiro, enquanto
não oculto, surge singularmente como uma ilha cheia de proporções comensuráveis, do
oceano do incomensurável, do desproporcionado. O descoberto concebível encontra-se
no terreiro da lethe, do desmedido, do inconcebível. Onde os homens permaneçam é
520
39 - Para uma semântica mais fidedigna. A passagem ficaria mais bem interpretada para
o espanhol. “A quien tiene se le dará, y trendrá, pero a quien no tiene se le quitará incluso
lo que tiene”.
FOUCAULT, Michel. Tecnologías del yo y Otros Textos Afines. Barcelona: Paidós, 1990, p.
61.
40 - Matéria G1. OMS Define Síndrome de Burnout Como “Estresse Crônico” e a Inclui na
Lista Oficial de Doenças, 2019. Disponível em: <https://g1.globo.com/ciencia-e-
saude/noticia/2019/05/27/oms-define-sindrome-de-burnout-como-estresse-cronico-e-
a-inclui-na-lista-oficial-de-doencas.ghtml>. Acesso: 27 Mai. 2019.
LATOUR, Bruno. Reflexão Sobre o Culto Moderno dos Deuses Fe(i)tiches. Tradução: Sandra
Moreira. São Paulo: EDUSC, 2002. (Coleção Filosofia e Política).
______. Palácio de Cristal: Para Uma Teoria Filosófica da Globalização. Lisboa: Relógio
D’Água Editores, 2008b, p. 213. “O espaço-interior-do-mundo do capital”, em
contrapartida, deve ser compreendido como uma expressão de topologia social, utilizada
aqui para a potência de criação de interior associada aos media contemporâneos da
circulação e da comunicação: define horizontes das possibilidades de acesso (aos lugares,
às pessoas, às mercadorias e aos dados) abertas pelo dinheiro – possibilidades, essas,
todas decorrentes, sem exceção, do fato de a forma determinada da subjetividade no
seio da Grande Instalação ser definida pelo poder de compra. Quando este assume uma
forma concreta, aparecem espaços interiores e raios de ação específicos – são as arcadas
do access aonde se dirige toda a espécie de passeantes dotados do poder de compra. A
intuição arquitetônica que levava antigamente a instalar os mercados em pavilhões teria
forçosamente de dar origem, no início da era global, à ideia de pavilhões em forma de
mundo – segundo o modelo do palácio de cristal; o recurso à forma de pavilhão para o
concerto do mundo no seu todo é seu resultado coerente.
dos media e da aventura. Porque o dinheiro precisa de tempo para a sua valorização, a
chamada grande história também avança de modo espectral. Toda a história tornou-se
tendencialmente história da valorização; é um jogo em que se joga sempre para o
prolongamento. No entanto, tal história já não é o diálogo dos vivos com os mortos sobre
os bens do mundo, mas sim a impregnação cada vez mais radical dos vivos pelo espectro
economizado. Da subjetividade humana do nosso tempo antolha-nos sempre a alma do
dinheiro, desvelada: uma sociedade de compradores comprados e de prostituição
prostituída introduz-se nas relações globalizadas do mercado. O clássico laissez-faire
liberal explicita-se no sugar pós-moderno e no deixa-se sugar. É cada vez mais difícil
distinguir a telecomunicação do tele-vampirismo. Tele-ver e tele-sugar vão haurir a um
mundo liquefeito que já mal sabe o que seria uma vida capaz de resistência, ou seja, uma
vida própria. Não poderia suceder que estivesse iminente um tempo em que quem não
quiser falar do vampirismo deve calar-se também sobre a filosofia? Se isto se
confirmasse: seria em qualquer caso o tempo da segunda oportunidade de Marx.
MARX, Karl. O Capital. Livro I. São Paulo: Boi Tempo, 2018, p. 146. É evidente que o
homem, por sua atividade, altera a forma das matérias naturais de um modo que lhe é
útil. Por exemplo, a forma da madeira é alterada quando dela se faz uma mesa. No
entanto, a mesa continua sendo madeira, uma coisa sensível e banal. Mas tão logo
aparece como mercadoria, ela se transforma em uma coisa sensível-suprassensível. Ela
não se contenta em manter os pés no chão, mas põe-se de cabeça para baixo em relação
a todas as outras mercadorias, e em sua cabeça de madeira nascem minhocas que nos
assombram muito mais do que se ela começasse a dançar por vontade própria
quiséssemos escrever uma teoria da cultura de massas à altura dos atuais movimentos
energéticos, seria necessário tentar proceder a uma crítica da explosão. Esta deveria
partir da observação de que a cultura de massas contemporâneas é apenas uma
competição pelo dispêndio. Da mesma maneira que a arena antiga era um templo
dedicado ao dispêndio de homens e seres vivo, a arena moderna é um templo dedicado
ao dispêndio energético.
SLOTERDIJK, Peter. Palácio de Cristal: Para Uma Teoria Filosófica da Globalização. Lisboa:
Relógio D’Água Editores, 2008b, p. 191. Uma vez tendo aceite a metáfora do “palácio de
cristal” como emblema para as ambições finais da modernidade, podemos refundar a
simetria muitas vezes assinalada e muitas vezes negada entre o programa capitalista e o
programa socialista: o socialismo/comunismo era muito simplesmente o segundo
estaleiro do projeto do palácio. Encerrado o seu ciclo, torna-se evidente que o
comunismo era uma etapa na via do consumismo. Na sua interpretação capitalista, as
correntes do desejo conhecem um desenvolvimento de potência incomparável – o que
também começam a admitir pouco a pouco os que tinham comprado ações do socialismo
na bolsa das ilusões, ações de que se conservarão alguns exemplares, como essas notas
de mil milhões de marcos do ano de 1923. Do capitalismo, porém, só agora se pode dizer
que representou sempre mais do que uma “relação de produção”; desde sempre, a sua
pregnância ultrapassou amplamente o que a figura intelectual do “mercado mundial”
podia designar. Ele implica o projeto que consiste em transpor a totalidade da vida do
trabalho, dos desejos e da expressão artística dos seres para a imanência do poder de
compra.
SLOTERDIJK, Peter. Palácio de Cristal: Para Uma Teoria Filosófica da Globalização. Lisboa:
Relógio D’Água Editores, 2008b, p. 224.
524
______ . A Mobilização Infinita: Para Uma Crítica da Cinética Política. Tradução: Paulo
Osório de Castro. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2002, p. 29. O capital cinético faz
explodir velhos mundos, não porque tenha algo contra eles, mas apenas porque é seu
princípio não se deixar deter. Não pode fazer outra coisa senão pôr as circunstâncias a
dançar ao som de melodias aceleradas. Põe rios de mercadorias a correr, frotas a cruzar,
escadas rolantes a deslizar, atmosferas a mudar, faunas a desaparecer. Já lá vão os
tempos ingênuos, em que era dado aos homens pensar que se tinham de mover para que
o mundo andasse para a frente. Entretanto, o movimento, o movimento puro, passou a
andar à solta. Enquanto os amáveis defensores dos avanços alcançados nos tempos
modernos se debruçam sobre teorias do comportamento humano e discutem acerca de
normas da fundamentação (última) da ação (com certeza que em breve serão
promovidos a diretores dos Parques Nacionais da Modernidade, que hão-de ser criados
dentro em pouco), espalha-se pelo resto do mundo uma maldosa suspeita: talvez a
cinética seja o destino?
43 - MILAN, Betty. Derrida Caça os Fantasmas de Marx, 1994. Disponível em: <
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/6/26/mais!/24.html>. Acesso: 22 Jun. 2019.
44 - SANTOS, Maria Siqueira. A História das Ideias Em a Árvore Mágica de Peter Sloterdijk.
IV Seminário de Pesquisa. Programa de Pós-graduação em História Social, 2010, pp. 443-
453. Disponível em:
<http://www.uel.br/pos/mesthis/arqtxt/ANAISIVSEMINARIOPPGHS08022011MESTHIS.p
df>. Acesso: 27 Mar. 2018.
46 - POE, Edgar Allan. Contos de Terror, de Mistério e Morte. Tradução: Oscar Mendes.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 223.
SLOTERDIJK, Peter. Crítica da Razão Cínica. 2ª Edição. Tradução: Marcos Casanova. São
Paulo: Estação Liberdade, 2012, pp. 87-88. Puységur já sabia, de modo semelhante ao de
Mesmer, que sua personalidade constituía nas curas hipnóticas o agente propriamente
dito – em uma formulação mais exata, o agente era a ligação íntima que se produzia entre
ele e o paciente. Essa “ligação” – em uma terminologia mais recente: a transferência –
servia como meio de uma prática metódica e exitosa em termos de psicologia profunda.
No mínimo até a metade do século XIX esse procedimento foi constantemente
desenvolvido e praticado de formas críveis. Schopenhauer afirmou que essa descoberta
seria bem possivelmente a mais importante em toda a história espiritual do homem,
ainda que ela mais apresentasse do que resolvesse de início enigmas à razão. De fato,
aconteceu aqui a irrupção de um movimento em direção a uma psicologia profunda
secularizada, que conseguiu livrar seu saber da psicologia religiosa e pastoral tradicional
(cuja competência psicológica tinha com certeza se confirmado à luz de um acesso não
sacralizado ao inconsciente). A descoberta do inconsciente toca naquele âmbito, no qual
as contraintuições da antiga esotérica confluíram para a estrutura do saber
especificamente moderno, construído à sua maneira e a princípio de modo
contraintuitivo; naturalmente, porém, de qualquer modo os dois precisam buscar pôr fim
a articulação com a “experiência direta”.
49 - Marx propôs o fim do mercado. Por que Marx precisaria do fim do mercado? Aí entra
a análise filosófica da preocupação com a visão que ele tem: é a visão da emergência dos
fantasmas. A época em que Marx viveu possibilitou ele ter a noção da metafísica aliada
ao valor-trabalho (horas de trabalho) para a mercadoria. Essa época foi marcada por uma
literatura fantástica, onde se viu diversos contos, temas, histórias sobre ectoplasmas,
espiritismo, espectros se movendo pelo mundo e pelas casas. De 1840 até 1920 é um
período de uma literatura onde se queria falar, ver, capturar, tirar fotos com fantasmas.
Nesse sentido, vemos o suspense ganhar elevação no cinema. Sobre isso indicamos o
conto Flor, Telefone, Moça de Carlos Drummond de Andrade, no livro “Contos de
Aprendiz”. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. Vemos a ideia de que os mortos se
utilizam de objetos tecnológicos, onde objetos criam vida e fazem o papel de fantasmas
está presente no século de Marx. Porque a própria mercadoria para o Marx é um
fantasma. É uma situação fantasmagórica como aparição. Marx pensou a mercadoria
fantasmática sensível e insensível ao mesmo tempo. Ela é da ordem espiritual, mas ao
mesmo tempo ela tem um corpo. Não é o espírito habitado o corpo, ela é da ordem
espiritual que forja algo corpóreo como um espectro. Entra a noção de valor de uso e
valor de troca e trabalho abstrato em termos de horas embutido nela. Por isso que
somente terminando com o mercado, a ideia de fetiche e reificação do homem seria o
526
DOWBOR, Ladislau. A Era do Capital Improdutivo: Por que oito famílias tem mais riqueza
do que a metade da população do mundo? São Paulo: Outras Palavras & Autonomia
Literária, 2017, p. 303.
51 - DEBRAY, Regis. God: An Itinerary. Translator: Jeffrey Mehlman (London & New York:
Verso, 2007), pp. 83f.
54 - SLOTERDIJK, Peter. Crítica da Razão Cínica. 2ª Edição. Tradução: Marco Casanova. São
Paulo: Estação Liberdade, 2012, pp. 606-607.
56 - CAMPBELL, Timothy e Sitze, Adam. Biopolitics: A Reader. Duke University Press, 2013.
Ver capítulo 15: SLOTERDIJK, Peter. The Immunological Transformation on The Way to
Thin-Walled “Societies”, pp. 310-316.
57 - Cf. Die Gnosis. III Volume. Der Manichäismus. Edição de Alexander Böhlig. Zurique e
Munique, 1980, pp. 107-108. O luminoso Jesus aproximou-se do ingênuo Adão e
despertou-o do sonho mortal para o libertar dos muitos espíritos [...] Assim se passou
com Adão, pois o amigo encontrou-o mergulhado num sono profundo. Acordou-o, deu-
lhe movimento, animou-o, e expulsou dele o espírito confuso [...] Então, Adão sentiu-se
a si mesmo e reconheceu quem ele era. E mostrou [...] que era devorada por aqueles que
devoraram, absorvida por aqueles que absorvem [...] Pô-lo de pé e deu-lhe a provar da
árvore da vida. Depois disso, começou a ver; e, então, Adão chorou e gritou em voz alta
como um leão a rugir. Puxou pelos cabelos, bateu contra o peito e disse: “Maldito,
maldito, seja quem formou o meu corpo e quem encarcerou a minha alma [...].
59 - Diga-se de passagem, Ralph Waldo Emerson, Nietzsche e Júlio Verne foram mestres
nisso. Filosofias ou histórias enquanto reformulação náutica (águas, oceanos, horizontes,
barcos, embarcações, navios, terra natal, um infinito, liberdade, montanhas). Neles
voltam a aparecer as tonalidades agressivas do precoce período europeu da liberação de
limites em tradução transatlântica. A ideia de passageiros. No caso de Júlio Verne, há uma
mudança no trânsito. O viajante universal renuncia à sua profissão documental e se
converte em um puro passageiro. É um típico cliente de um serviço de transporte que
paga para que sua viagem seja uma mera questão de tempo e não se converta em
experiência alguma. Um herói da pontualidade. Seu único interesse com as paisagens e
imagens que transitam por ele é atravessá-las. O clássico turista prefere viajar com as
janelas fechadas. Temos um “hermético viajante” que transita pelos espaços sem se fixar
em nenhum canto. Não há nenhuma relação digamos de “terra natal”. O hominídeo
como lançador, operador e cortador é um quase “produtor do claro” para usar uma
expressão de Heidegger. O lançamento da pedra permite, o alargamento dos limites do
mundo enquanto limites de alcance do lançamento. A primeira forma de teoria,
enquanto mirada prévia ao lançamento. A compreensão existencial enquanto
antecipação e projeção de possibilidades de acerto e a primeira concepção de verdade
enquanto êxito (e a falsidade enquanto erro). Os arremessos formam no destaque entre
o horizonte como fundo destacado da ação rumo a algo, passa a vigorar a partir dessa
dinâmica entre o alvo e o fundo, entre o patente e o latente (o que está a vir), o que está
no interior do mundo humano e o horizonte exterior de possibilidades. Dessa forma,
implica, a partir da espacialidade (circular), uma noção de temporalidade: o horizonte, o
inalcançável, é tempo originário, mítico, o não conhecido, e ao mesmo tempo, futuro,
528
______ . A Mobilização Infinita: Para Uma Crítica da Cinética Política. Tradução: Paulo
Osório de Castro. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2002, pp. 102-103. Presença é
movimento, no sentido de um drama da chegada, da produção e da entrada. A
experiência da presença faz parte dos elementos distintivos da existência humana,
porquanto os homens são os seres por excelência da chegada e da entrada – predispostos
a despertar, a sair, a produzir e a começar. Só há presença onde houver existência
humana, onde se der o humano vir-ao-mundo. A presença é o aguilhão do nascimento
inacabado [...]. Na medida, porém, em que os homens participam da presença, são seres
natais nos quais prossegue o movimento da vinda-ao-mundo. A presença, enquanto
conceito dramático, inclui, portanto, um duplo movimento: o abrir-se do mundo, como
chegada-do-exterior, e o manter-se voltado para o mundo por parte do sujeito, como
espaço de chegada. A presença é, por isso, sempre acompanhada pela consciência de
uma dupla felicidade e de um duplo temor. Um dos pares de felicidade e temor provém
da irrupção das forças exteriores e da chegada de dádivas inesperadas, o outro resulta
da euforia e da dor do próprio êxodo humano. Por ser presentista, a segunda alternativa
está inteiramente sob o signo da natalidade. O presenteísmo natal não pode dar crédito
ao motivo da progressão para a própria morte; por isso, ele é, em conformidade com o
seu movimento fundamental, radicalmente distinto do ruinoso ser-para-a-morte de tipo
metafísico ou existencialista. É que a presença, enquanto permanência no aberto, só
surge graças ao movimento do humano vir-ao-mundo, e onde quer que esse movimento
529
se inicie, o natal, o presente e o aberto adquirem o seu perfil num único processo.
Presentista é a vida que nota que tem algo “diante de si”.
NIETZSCHE, Friedrich Willhelm. Assim Falou Zaratustra: Um Livro Para Todos e Para
Ninguém. Tradução: Paulo César de Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, pp.
197-198.
SLOTERDIJK, Peter. A Vida Atual Não Convida a Pensar, 2019, p. 1. Não é capacidade como
tal. Mas não ocorrem as circunstâncias vitais que nos permitem afastar e ganhar
distância. Para Husserl e sua fenomenologia era preciso sair do tempo impetuoso da vida,
o dispositivo mais elementar era sempre dar um passo atrás. Essa ação permite que você
se transforme em observador. Sem uma certa distância, sem uma certa desconexão a
atitude teórica é impossível. A vida atual não convida a pensar. Disponível em: <
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/03/internacional/1556893746_612400.html>
Acesso: 05 Mai. 2019.
NIETZSCHE, Friedrich Willhelm. Assim Falou Zaratustra: Um Livro Para Todos e Para
Ninguém. Tradução: Paulo César de Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p.
183.
______ . Genealogia da Moral: Uma Polêmica. São Paulo: Editora Companhia das Letras,
2008, pp. 92-93.
______ . Assim Falou Zaratustra: Um Livro Para Todos e Para Ninguém. Tradução: Paulo
César de Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 145.
______ . Assim Falou Zaratustra: Um Livro Para Todos e Para Ninguém. Tradução: Paulo
César de Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, pp. 199-200.
SLOTERDIJK, Peter. You Must Change Your Life. Malden: Polity Press, 2013, p. 59.
essa zona é, na verdade, perfeitamente vazia, e o verdadeiro humano que deve surgir é
apenas um lugar de uma decisão incessante atualizada na qual a separação e sua
rearticulação são sempre descoladas e adiadas novamente. Isso que deveria assim ser
obtido não é semelhante nem a uma vida animal nem a uma vida humana, mas somente
uma vida separada e excluída de si mesma – apenas uma nuda vida.
SLOTERDIJK, Peter. Not Saved: Essays After Heidegger. Translation: Ian Alexander Moore
and Christopher Turner. Polity Press, 2017, p. 103. Visto dessa perspectiva bastante
específica, o ser humano é determinado como um ser que explodiu do sistema de
parentesco animal, mas de uma maneira que Heidegger não nos encoraja a interrogar.
Em virtude de uma alquimia ontológica impenetrável, os seres vivos que eram nossos
ancestrais primatas teriam se afastado de si mesmos e teriam se encaixado no sistema
de parentesco dos seres ecstase, com o resultado de que os deuses, se existissem,
estariam mais próximos de nós. do que nossos primos, os animais, que são pobres no
mundo, sem linguagem e enlaçados em seu ambiente. Rudolf Bilz expressa um estado
similar de coisas com um pouco menos de patologia quando ele comenta: “Nós não
somos animais, mas residimos, por assim dizer, em um animal que vive em participação
com aqueles como ele e através do compartilhamento de objetos”. O que é animal é o
que se move dentro da jaula ontológica que os modernos, depois da engenhosa invenção
do termo de Jakob von Uexküll, chamam o Umwelt [ambiente], enquanto é apropriado à
essência do ser humano executar uma invasão do ambiente e um rompimento com a
insensibilidade ontológica, para a qual nunca encontramos uma caracterização melhor
do que a palavra mais trivial e profunda da linguagem humana, a expressão "mundo"
[Welt]. A ontoantropologia pergunta sobre as duas coisas ao mesmo tempo: sobre o
ecstase humano, que é chamado de ser-no-mundo, e sobre o status do antigo animal que
este devir-extático atingiu.
JÚNIOR, Paulo Ghiraldelli. Para Ler Peter Sloterdijk. 1ª Edição. Rio de Janeiro: Via Verita,
2017, p. 125. A sociedade da leveza, pensada por Peter Sloterdijk, corresponde a
sociedade moderna em sua contínua desoneração. Essa desoneração é apresentada em
quatro grandes cenários. O primeiro corresponde ao cenário do chamado palácio de
cristal, porta aberta para um quadro da modernidade como um campo propício para a
pós-história, o que necessariamente se constrói como campo interior, o segundo pelo
movimento de desoneração vinda da liberdade proporcionada pelo dinheiro; o terceiro
cenário pelos desdobramentos dos passos em direção a uma sociedade do mimo; o
quarto cenário inicia-se com os primeiros voos de balões, no qual a desoneração aparece
com a liberdade dos movimentos antigravitacionais, expressão esta tomada aqui tanto
efetiva quanto metaforicamente.
______ . A Mobilização Infinita: Para Uma Crítica da Cinética Política. Tradução: Paulo
Osório de Castro. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2002, p. 197. A subjetividade só pode
ser vivida como o esforço, condenado a si próprio, para se manter dentro do suportável.
Ela reconhece-se pelo seu esforço para se manter e, se perdesse o seu caráter esforçado,
já não seria uma subjetividade, mas a unidade do todo na consciência desprovida de
peso. É por isso que a teoria pura é o derradeiro luxo, uma coisa para suicidas e para
dandies. É somente para eles que está aberto o acesso ao mistério da frivolidade, ao
aligeiramento da vida até à anulação dos pesos. A vida é custosa para o comum dos
mortais. Estes continuam condenados ao esforço de aliviar tanto quanto podem o que
pesa de mais sobre eles. Mas também eles continuam a sonhar com pairar em estado de
imponderabilidade. Esforçam-se incansavelmente por tornar a sua vida cada vez mais
leve. Devido aos seus esforços conjugados, o processo da civilização redunda num
empreendimento que provoca iluminações involuntárias. Entretanto, os esforços da
civilização para aligeirar a vida passaram a ser eles próprios o fardo do insuportável,
relativamente al qual deveriam ter sido o desvio para o que suportável.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do Subsolo. São Paulo: Editora Paulicéia, 1992, pp. 226-
227. A City, com os seus milhões e com o seu comércio mundial, o Palácio de Cristal, a
Exposição Internacional... Sim, a exposição é impressionante. Sente-se uma força terrível,
que uniu num só rebanho todos estes homens inumeráveis, vindos do mundo inteiro;
tem-se consciência de um pensamento titânico; sente-se que algo foi alcançado aí, que
há nisso uma vitória, triunfo. Até se começa como que a temer algo. Por mais que se seja
independente, isto por alguma razão nos assusta. Não será este realmente o “ideal
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atingido?”, pensa-se. “Não será o fim?” Não será este, de fato o “rebanho único?” Não
será preciso considera-lo como a verdade absoluta, e calar para sempre? Tudo isto é tão
solene, triunfante, altivo, que nos oprime o espírito. Olham-se estas centenas de
milhares, estes milhões de pessoas que acorrem docilmente para cá de todo o globo
terrestre, pessoas que vieram com um pensamento único, que se aglomeram plácida,
obstinada e silenciosamente neste palácio colossal, e sente-se aqui que se realizou algo
definitivo, que assim chegou término. Isto constitui não sei que cena bíblica, algo sobre a
Babilônia, uma profecia do Apocalipse que se realiza aos nossos olhos. Sente-se a
necessidade de muita resistência par anão ceder, não se submeter à impressão, não se
inclinar ante o fato e não deificar Baal, isto é, não aceitar o existente como sendo o ideal...
62 - Jesus é o modelo original do sujeito que anula toda a pertença a um seio maternal.
O que lhe dá a consciência de apostolado nasce da façanha extremista de se legitimar
completamente na dotação de potência a do ser própria de um seio paternal urânico. A
irradiação das palavras de Jesus divulgadas pelos evangelhos canônicos é ativada,
sobretudo, por transmitirem as mais claras afirmações uranofáticas dos últimos milênios.
Com as variantes gnósticas vemos isso ainda mais claro. Falam, como se o céu pudesse
dizer Eu. Nas palavras de Jesus, o céu é não o tema, mas o sujeito do discurso; as frases
de Deus feito homem são “manifestações”, substancialmente celestes, solúveis, no céu
e naturais dele. Nietzsche entendeu muito bem isso. Ele interpreta a semântica jesuítica
de “pai”: o “sentimento de transfiguração global de todas as coisas”, o “sentimento de
eternidade, de última perfeição”, como também criou um gêmeo e cúmplice do céu, o
texto uranofático mais impressionante até hoje criado, vemos no Antes do Nasce do Sol,
na terceira parte de Assim Falou Zaratustra. NIETZSCHE, Friedrich Willhelm. Assim Falou
Zaratustra: Um Livro Para Todos e Para Ninguém. Tradução: Paulo César de Sousa. São
Paulo: Companhia das Letras, 2015, pp. 156-159. Quem está no céu sabe o que significa
falar a partir dele. Na medida em que o céu possui energia de seio, produz-se a
autocomunicação da sua produtividade aos seus rebentos. A partir desta seio-plenitude-
consciência de acento masculino, pode-se compreender a metafísica do logos do
Evangelho de João na sua força sugestiva radiante através de milênios. A certeza de seio
paterna parece ser o segredo energético daqueles no mundo. A Oração do Senhor,
também conhecida como o Pai Nosso, é a oração mais conhecida do cristianismo, seu
início começa com: “Pai nosso que estais no céu...”. Eles são os verdadeiros
existencialistas – indivíduos que sabem ser radicalmente de dentro para fora. O elemento
oceânico tanto a partir dos seus atributos envolventes e salvadores, como dos emanantes
e produtivos. Anoto à margem que a meditação da montanha de Heidegger realça a
característica do mar maternal no elemento seco telúrico. Gebirge – montanha, cuja
primeira sílaba “ge”, alude a Gea, a deusa Terra hesiódica, criadora dos céus, montanhas
e mares. Béla Grumberger referiu-se a uma implicação teológica do domínio do seio: a
palavra hebraica rakh’mime, é traduzida, em abstrato, por “misericórdia”, designa um
dos atributos da “divindade” e corresponde, em si, ao plural de rekh’em, que significa
“útero”. Para os judeus, a Deus, que é tanto pai como mãe, corresponde, entre outros, o
nome determinante el male rakh’ mine, que significa “cheio de misericórdia”, mas
literalmente, “cheio de útero”. Aqui há uma aproximação direta entre divindade e útero
– órgão que contribui para esta sinestesia e que, simultaneamente, envolve o seu
portador.
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65 - ______ . Regras para o Parque Humano: Uma Resposta à Carta de Heidegger Sobre o
Humanismo. São Paulo: Estação Liberdade, 2000, pp. 36-37.
______. Esferas III: Espumas (Esferología Plural). Traducción de Isidoro Reguera. Madrid:
Siruela, 2006, p. 50.
66 - MENESES, Nélia Maria Neto. Arquitetura (s) Nómada (s) – Paisagens Em Constante
Mutação. Prova Final de Licenciatura em Arquitectura. Universidade de Coimbra
Faculdade de Ciências e Tecnologias – Departamento de Arquitectura, 2007, pp. 62-63.
Disponível em: <https://estudogeral.uc.pt/handle/10316/3753?locale=en>. Acesso: 03
Jun. 2019.
68 - UEXKÜLL, Jacob von e KRISZAT, Georg. Streifzüge durch Umwelt von Tieren und
Mensch. Verlag: FISCHER Taschenbuch, 1983, pp. 85-87.
69 - JÚNIOR. Paulo Ghiraldelli. A Filosofia Como Crítica da Cultura. São Paulo: Cortez, 2014,
pp. 104-110. Ver o capítulo: 23 - Pascal, Machado e o eu na pós-modernidade e 24 – Jesus
inaugura a modernidade.
70 - Sloterdijk em uma pequena passagem diz que o nascimento do sujeito por si próprio
é a eterna agonia e representa, na qualidade de motor da história, a tentativa
simultaneamente grotesca e indispensável de tentar chegar a um mundo próprio pelas
suas próprias forças, o apoio sereno no primeiro nascimento leva à redescoberta do
inevitável. Pode ser que essa descoberta pressuponha a odisseia da subjetividade.
Eu é que mimosamente pago para anunciar, para vender em bares festas praias pérgulas
piscinas, e bem à vista exibo esta etiqueta global no corpo que desiste de ser veste e
sandália de uma essência tão viva, independente, que moda ou suborno algum a
compromete. Onde terei jogado fora meu gosto e capacidade de escolher, minhas
idiossincrasias tão pessoais, tão minhas que no rosto se espelhavam e cada gesto, cada
olhar cada vinco da roupa sou gravado de forma universal, saio da estamparia, não de
casa, da vitrine me tiram, recolocam, objeto pulsante mas objeto que se oferece como
signo de outros objetos estáticos, tarifados. Por me ostentar assim, tão orgulhoso de ser
não eu, mas artigo industrial, peço que meu nome retifiquem. Já não me convém o título
de homem. Meu nome novo é coisa. Eu sou a coisa, coisamente. Disponível em:
<https://www.pensador.com/frase/MjAyODM0/>. Acesso: 25 Mai. 2019.
SLOTERDIJK, Peter. A Mobilização Infinita: Para Uma Crítica da Cinética Política. Tradução:
Paulo Osório de Castro. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2002, p. 129. Sujeito é tudo
aquilo que tenta tornar-se e ser o seu próprio mundo – como? Atendo-se a si próprio,
aos seus “princípios” e ao seu cuidado consigo próprio. A circunstância de ater-se a si
próprio mostra vários rostos: aparece como abstinência, como respeito pelas normas
escolhidas, como autonomia, como conservação e fundamentação de si próprio. Não
surpreende, doravante, que a história do sujeito fosse, desde o início, uma história de
atitudes – desde o estoicismo até ao existencialismo, desde os ardentes santos do
deserto até aos jovens habitantes pacatos das grandes cidades –; sempre o sujeito se nos
depara como um centro de esforços que se conserva a si próprio unido, como o princípio
ativo de uma atitude voltada contra o mundo exterior, inerte, informe, e degradante.
Quer o sujeito se mantenha, abstendo-se, como Eu ascético, de todas as influências
tentadoras, perturbantes e assustadoras; quer ele se erga contra o mundo incurável e
inconstante, apoiando-se na fé em Deus ou no divino; quer ele se constitua como Eu
autônomo, mantido por uma razão filosofante que, por sua vez, se define por cumprir ela
próprias as suas leis; quer ele tente afirmar-se como vencedor do cansaço da vida, para
se dar heroica e prodigamente de presente ao mundo; quer ele, melancolicamente
decidido a assumir-se a si próprio, se saiba posto de for no meio do nada; quer ele, com
uma alegria antiedipiana, cavalgue ondas na prancha de surf dos seus desejos; quer ele,
furiosamente soberano, se agarre ao estilo da sua maneira de escrever extravagante e
dispersa e observe pelo canto do olho como vai escapando a si próprio –, o sujeito está
sempre, através de esforços autonatais, a dar a si próprio firmeza numa atitude. Devido
à sua inevitável situação de malnascido, o sujeito está “espontaneamente” condenado
ao esforço de estabilizar, graças às suas promessas, o seu ponto de apoio num mundo
adotado até nova ordem.
72 - LEMMENS, Pieter e HUI, Yuk. Apocalypse, Now! Peter Sloterdijk and Bernard Stiegler
on the Anthropocene, 2017, p. 3. Disponível em:
<https://www.boundary2.org/2017/01/pieter-lemmens-and-yuk-hui-apocalypse-now-
peter-sloterdijk-and-bernard-stiegler-on-the-anthropocene/>. Acesso em: 05 Mar. 2019.
Devemos lembrar que não é mais apenas uma questão do dado cosmológico primordial,
a Terra, e o fenômeno evolucionário primordial, a vida. A tecnosfera, que por sua vez é
animada e moderada pela noosfera, foi adicionada aos nossos parâmetros básicos no
curso da evolução social. Em vista de ambos os parâmetros de crescimento, estamos
justificados em aplicar a afirmação de Spinoza de que ninguém determinou até agora o
poder do corpo (isto é, o corpo humano) para a Terra: ninguém até agora determinou o
poder da Terra como corpo terrestre. Ainda não sabemos quais desenvolvimentos serão
possíveis se a geosfera e a biosfera forem ainda desenvolvidas por uma tecnosfera e
noosfera inteligente. Não é impossível a priori que tais desenvolvimentos levarão a
efeitos que equivalem a uma multiplicação da Terra. A tecnologia ainda não falou sua
palavra final. Se é considerado, em grande parte, em termos de degradação ambiental e
biogeneratividade, isso mostra que, em alguns aspectos, está apenas começando. Algum
tempo atrás, sugeri a distinção entre heterotécnica e homeotécnica - com a primeira
falha na violação e na natureza, e a segunda baseada na natureza da imitação e na busca
de princípios naturais na produção em contexto artificial. Uma imagem completamente
diferente da interação entre meio ambiente e tecnologia surge com a conversação da
tecnosfera num padrão homeotecnológico e biomimético. Devemos aprender o que a
Terra, como corpo terrestre, é capaz do momento em que os seres humanos reorganizam
seu manuseio da exploração à coprodução. Se seguirmos o caminho da exploração pura,
a Terra permanecerá para sempre uma tecnologia finita, um planeta híbrido poderia
resultar em que mais seria possível do que os geólogos conservadores acreditam.
74 - SINGER, Paul. Curso de Introdução à Economia Política. 11ª Edição. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1987, pp. 11-25.
______ . ¿Qué Sucedió en el Siglo XX?. Traducción: Isidoro Reguera. Ediciones Siruela,
2018a, p. 3-5. Deve ser atribuída a proliferação do conceito principalmente ao fato de
que, sob o disfarce de objetividade científica, transmite uma mensagem de urgência
político-moral quase intransponível, uma mensagem em linguagem mais explícita lê: o
Homem tornou-se responsável pela ocupação e administração da Terra em sua
totalidade, já que sua presença não é mais realizada à maneira de uma integração mais
ou menos sem pegadas. O conceito supostamente relevante do ponto de vista geológico,
"Antropoceno", contém um gesto que, em contextos jurídicos, se qualificaria como o
título de uma agência responsável. Com a atribuição de responsabilidade, é criado um
endereço para possíveis reclamações. E com isso temos hoje quando atribuímos "ao ser
humano" - sem acrescentar nenhum epíteto - a capacidade de autoria em dimensões
geo-históricas. Quando dizemos "Antropoceno", participamos de um seminário
geocientífico apenas na aparência. Na verdade, nós intervimos em um julgamento, mais
exatamente, em uma sessão pré-audiência de um caso, em que primeiro a possibilidade
de culpa do acusado deve ser esclarecida.
devemos prosseguir ainda mais nesta direção hoje. A academia, sem dúvida, continuará
sendo o castelo assombrado que o fantasma de Derrida gosta de perambular. Não
devemos hesitar em pensar além dos limites das disciplinas acadêmicas, graças à sua
inspiração. A ampla crise global do nosso tempo deve levar os filósofos que permanecem
escondidos no seio das universidades a deixar o seu esconderijo para trás. Devemos
novamente tomar as ruas e praças, as páginas de littéraires e telas, escolas e festas
populares, se quisermos tornar nosso ofício, o mais meloso e melancólico ofício do
mundo, mais uma vez relevante. Quando o nosso ofício é bem praticado, ele é relevante,
mesmo na vida não acadêmica. Incontáveis pessoas se cansam e não perguntam com
tanta urgência o que elas vêm pedindo há muito tempo: o que exatamente é uma vida
boa, uma vida examinada? Se alguém acha que tem uma resposta, ou se alguém quer
fazer uma contra-pergunta, deve agora avançar e falar.