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CONCERNENTES
À PRMIRA FILOSOFIA
NAS QUAIS A EXISTÊNCIA DE DEUS EA DISTINCÃO REAL
ENTRE A ALJv1A EO CORPO DO HOMEM
SÃO DEMONSTRADAS
PRIMEIRA M1.:o.rrAÇAO 1 3
Das Coisas que se Podem Colocar em Dúvida
tamente falsa, certamente ao menos as quadra.do nunca terá mals do que qua-
cores com que eles a compÕem devem tro lados; e não parece possível que
ser verdadeiras. verdades tão patentes possam ser sus-
7. E pela mesma -razão. ainda gue peitas de alguma Wsidade ou incerte-
essas coisas gerais. a saber. olhos. za.
cabeça. mãos e outras semelhantes, 9. Todavia, há maito que tenho .no
possam ser imaginárias. ê precu;o, meu espírito certa opinião 1 8 de que há
todavia. confessar que há coisas ainda um Deus que tudo pode e por quem fui_
mais simples e mais universais, que criado e produzjdo tal como sou. Ora.
s:ão verdadeiras e existentes; de cuja quem me poderá a~egurar qt1e esse
mis~ra, nem mais nem menos do que Deus não tenha feito com que não haja
da mistura de algumas cores verdadej- nenhuma terra, nenhum céu, nenhum
ras, são formadas todas essas imagens corpo extenso, nenhuma figura, nenh.u-
das coisas que residem em nosso m a grandeza, nenhum lugar e que, não
pensamento, quer verdadeiras e reais, obstante, eu tenha os sentimenços de
quer fictícias e fantásticas. Desse gêne- todas essas coisas e que Ludo isso não
ro de coisas ê a natureza corpórea em me pareça existir de maneira diferente
geral. e sua extensão; juntamente com daquela que ea vejo? E, mesmo, como
a figura das coisas extensas, sua quan- julgo que algumas vezes os outros se
tidadet ou grandeza. e seu número; enganam até nas coisas que eles acre-
como também o Jugar em que estão, o düam saber com maior certeza, pode
tempo que mede sua duração e outras ocorrer que Deus tenha desejado que
coisas semelhantes 1 7 . eu me eng-ane todas as vezes em que
8. Eis por que, talvez. daí nós não faço a adição de dois mais três, ou em
concluamos mal se dissermos que a Fí- que enumero os lados de um quadrado,
sica, a Astronomia, a Medicina e todas ou em que julgo alguma coisa ainda
as outras ciêo cias dependentes da mais fácil, ~e é q.ue se pode imaginar
consideração das coisas éompostas alg.o mais fácil do que isso. Mas pode
são muito duvidosas e incertas; mas ser que Deus não renha querido que eu
que a Aritmética. a Geometria e as ou~ seja decepcionado desta maneira, pois
tras ciências desta natureza, que não e1e é considerado soberanamente bum.
tratam senão de coisas muito simples e Todavia. se repugnasse à sua bondade
muito gerais, sem cuidarem muito em f azer~me de tal modo que eu me enga-
se elas existem ou não na natureza, nasse sempre, pareceria também ser-
contêm alguma coisa de certo e lndubb lhe contrário permitir que eu me enga-
tâvel. Pois, quer ea esteja acordado. ne algumas vezes e, no entanto. não
q uer esteja dormind-0, dois mais três posso duvidar de que ele mo permi-
formarão sempre o número cinco e o ta1 e.
LO. Haverá talvez aqui pessoas que
11 O segundo ll{gumCTito e!JCOntta, pojs.-0 ,seu_ lími· preferir-ão negar a existência de um
te: ele não me pennilll pGr em dúvida os. compo-
nalles de minhas l)Crtep~és, a saber, as "naturezas Deus tão poderoso a acreditar que
fflllplcs", indec.omponiveii. (Cigur.a1 quantidaáé:, es-
l)aÇO, tempo), que são o objeto da Matemática. Tais ''- Essa "opinião" é -sustentada pelos teólogos das
elementos "escap_am, contrariamente aos. objetos Segundas Objeçifes: Deus, dada sua o:nipotência,
-=nsíveis, a todas àS ra1:ões 11aturais th duvidar'; pode nos eng'ilfl8f, Não é o parecer de Descartes: o
ublinha GuérouU, apo.iando-sc.M 1exto da Quinta eng!lllo em Deu$ ~nstitulria não só um sinal de
\t«iitação: "A nátutez:ã de meu "éspírito é taJ que ~u malignidade, ma:s de não-'Ser. ((:()!. com Burman.)
nio me poderia impedir de Julgá-tas verdadeiras Isso redunda em ar11mar o ,valor tão-somente meto-
enquanto as concebo clara e distinuunente". Dai a dológico de:,sa suposi~ão aminatu!al.
~ idade (le reoorrer aó terceko .argu,mento que 18 A CO!l$ideraçào da bondade. por si só, não·basta
lllbmrá esta cene:za·"naturaP'. !)ara invalídar a suposição. Cf•.i noLa precedente.
96 DESCARTES
todas as outras coisas são incertas. dosas de alguma maneira, como .aca-
Mas não lhes resistamos no momento e bamos de. mostrar, e todavia nmíto
suponhamos, em favor delas, que tudo prováveis, de snrte que se tem muito
quanto aqui é dito de um Deus seja .mais razão em acreditar nelas do 4-ue
uma fábula. Todavia, de qualquer ern negá-tas. Eis por que penso que me
maoeira que suponluun ter eu chegado utilizarei delas mais prudentemente' se,
ao estado e ao ser que possuo, quer o tomando partido s;ontrário, empregar
atribuam a algum destino ou fatali- Lodos os meus cuidados em enganar-
dade. quér o refiram ao acaso, quer me a mim mesmo-. fingindo que todos
queiram que isto ocorra por uma contí- esses pensamentos são falsos e imagi-
nua série e cone.ião das coisas. é certo nários; até que, tendo de tal modo
gue, já que falhar e enganar-se é uma sopesado meus prejuízos, eles não pos-
espécie de imperfeição, quanto menos sam inclinar minha opinião mais para
poderoso for o autor a que atribuírem um lado do qoe para o outro, e meu
minha origem t.a.nto mais será provável juízo não mais s.eja doravante domi-
que eu seja de tal modo imperfeito que nado por maas usos e desviado do reto
me engane sempre. Razões às quais caminho que pode conduzi-lo ao co-
nada tenho a responder, mas sou obri- nhecimento da verdade. Pois estou se-
gado a confessar qtJe, de todas as opi- guro de que, apesar disso, não pode
c:tiões que recebi outtera em minha haver perigo nem erro nesta via e de
crença coD;lo verdade.iras. não há ne- que não poderia hoje aceder dema-
nhuma da qual não possa duvidar s.iado à minha desconfiança, _posto gue
atualmente, não por aJguma inconside- não se tratar10 mornentó fie agir l mas
ração ou leviandade, mas por razões somente de meditar e de cónbecer.
muito fortes e maduramente considera- 12. Suporei, pois, que bá não um
das: de sorte qu_e é necessário que verdade.iro Deus, que é a soberma
interrompa e suspenda doravante meu fonte da verdade, mas certo gênio
juízo sobre tais pensamentos, e que maligno 2 ,. nio menos ardiloso e enga-
não mais lhes dê crédíto, como faria nador do que poderoso, que empreg-0u
com as ooisas que me parecem eviden- Loda a sua indústria em enganar-me.
temente falsas, se desejo encontrar Pensarei que o céu. o ar, a terra, as
:U$O de consLante e de segllfo nas cores, as figuras, os sons e todas as
ciências20 • coisas exteriores que vemos são apenas
I l. Mas não basta ter fejto tais ilusões e enganos de gue ele se serve
considerações, é preciso ainda que para SllflJreender minha credulidade.
cuide de lembrar. me aelas; pois essas Considerar-me-ei a mim mesmo abso-
antigas e ordinárias opiniões ainda me lutamente desprovido de rolos, de
voltam amiúde ao pensamento, dan- olhos. de carne, de sangue. desprovido
da-lhes a longa e f amfüar boa vivência de quaisquer sentidos, mas dotado da
que tiveram comigo o direito de ocu- falsa crença de ter todas essas cois:as.
par meu espírito mau grado meu e de Permanecerei obstinadamente apegado
tornarem~ quase que senhoras de .a esse pensamento; e se, por esse meio)
minha crença. &jamais perder-ei ocos-
tume de aquiescer a isso e de confiar ~1 A fl.10~ tio Deus ei,ganador itdo Gênio Malig-
nelas, enquamo as considerar como no é a mesma: porém o Gênio Maligno é. um artifl·
cio psico16gico que. impressionando maís a minha
são efetivamente, ou seja, como duvi- imaglnação. levar-me0 á a tomar a dúvidB, mais a
sério e a fnscrevê-ta melbo~ em .minha..memória ("é
2·º A dúvid II é agora univcrsalitada. preciso aí.ad;i. cp.re cuide de lembrar-me dela").
MEDITAÇÕES 91
l. A Meditação que fi2 ontem en- vel, até que tenha aprend1d<> certa-
cheu-me o e,wírito de tantas dúvidas, mente que não há nada rto .mundo de
qu.e doravante não está mais em meu certo.
alcance es4uecê-las. E, no ent~to, não 2. Arquimedes, para tirar o globo
vejo de que maneira pod~ria resolvê- terrestre de seu lugar e transportá- lo
las; e, como se de .súbito t ivesse caído para outra parte, não pedia nada mais
em águas muito profundas, estou de tal exceto um ponto que fosse fixo e segu-
modo surpreso que não posso nem fir- ro. Assim, Lerei o direito de conceber
mar meus pés no fundo, nem rtadar altas esperanças., se for bastante feliz
para me manter à tona. Esforçar-me-ei, para enC-Ontrar somente uma coisa que
não obsrante. e seguirei novamente a seja certa e indubitável 2 4 •
mesma via que trilhei ontem, afastan- 3. S.uponbo. portanto, que todas as
do-me de tud(J em que pode.ria imagi- coisas que vejo são fat5as; persuado-
nar a menor dúvida. da mesma manei- me -de que jama1s e-xisliu de tudo quan-
rá como se eu sou 6esse que istd fosse to minbà memória reforta de mentiras
absolutamente falso; e continuarei me representa~ penso não possuir ne-
sempre nesse caminho até que tenha nhum sentido; c rejo que o corpo, a
encontrado algo de certo, ou. peto figura. a extensão, o movimento e o
menos. se outra coisa não me for possí- lugar são apenas ficções de men e.spiri-
to. O que poderá, poi~, ser con~iderado
u Phmo da Meditação:
A) §§ 1-9; da n.awreza do espírito huma- verdadeiro? Talvez nenhuma outra
no •.•• : cois-a a nã:o se,r que· nada há no n,mndo
§§1-4-: conquistada primeira certe.z a: de certo.
(§~ 1-3): procura de orna primeira 4. Mas que sei eu, se não há .nenhu-
cene:r.a:
CH): "'Eu ~óU, eú edsto''; m a outra coisa diferente das que ac.-abo
~§ 5-9: reflexão SQÓre esta primeira certe· de julgar incertas. da quaJ não se possa
za:c conquista d1,1 s.!lgunda;
t~ ~ 5~): quem sou eu, cu que
ter a menor dúvida? Não haverá algum
estou certo que sou? Urnn coisa Deus. ou alguma outra potência. que
pcnsan1e. Determinação da essên, me ponha no espírit-0 Lais pensamen-
eia do Eu.
(§9): desCl'içiio da:"comr l'cnsamc" tos? Isso não é necessário; pois talvez.
e dlst.i.oqão emrc o pensam.cru.o seja eu capaz de produzi-10s por mim
{lltrll>uto príncipJ\l de$tu substân- mesmo. Eu então, pelo menos, não
c ia)~ suas outr.as faculd_adei.;
B) §§ IÔ· l8: , e de como ele i mais (áoil -de serei_ alguma coisa? Mas já neguei que
conhecer do que o corpo:
Conttaprova tlii ~egunda certeui (o ~e :t • A prlmei~a cemza (ltiqulridá não ,seril, pois~ a
davo ele cera) e conquista dá tctccir-a mab alta: dqve apenas in·uugul'ar a cadeia ~
certa.a, razões.
100 DESCARTES
civesse qualquer sentido ou. qualquer vezes que a enuncio ou que a concebo
corpo. Hesito no entanto, pois que se em meu espírito2 1.
segue daí? Serei de tal modo depen- 5. Mas não conheço ainda bastante
dente do corpo e dos sentidos que não claramente o que sou, eu que e_stoa
possa existir sem eles? Mas eu me per- certo de que sou~ de sorte que dora-
suadi de que .nada existia no mundo, vante é preciso que eu atente com todo
que não havia nenhum céu. nenhuma cuidado, para não tomar imprudente-
terra. espíritos alguns, nem corpos mente alguma outra colsa pOr mim, e
alguns: oão me per~uadi também, pàr- assim para não equivocar-me neste
tanto,. de que eu não existia2- 6 ? Cena-
mente não, ea existia sem dúvida~ se é conl1eci1Pento que afirmo ser mais
certo e mais evidente do qµe todos os
que e'J me persuad~ ou, apenas, pensei que tive até agora2 ª.
alguma coisa. Mas bá algtlin, não ~~i
qual, enganador mui poderoso e mui 6. 6is por que considerarei de novo
ardiloso que emprega toda a soa indús- o que acreditava ser, antes de me
empenhar nestesúltimos pensamentos;
tria em enganar-me sempre. Não b~
pois, dúvida alguma de que sou, se·ele e de minhas antigas opiniões suprimi-
me engana; e. por mais que me engane, rei tudo o que pode ser combatido
não poderá jamais fazer com que eu. pelas razões que aleguei há eouco. de
nada seja. enquanto eu pensar ser algu- sorte que permaneça apenas precisa-
ma coisa2 &• De sorte que, apó_s Ler pen- mente o que é de Lodo indubitável. O
sado bastante nisto e de ter examinadó que, pois, acreditava eu ser até aqui·?
cuidadosamente todas as coisas. cum- Sem dificuldade, pensei que era um
pre enfim concluir e ter por constante homem. Mas que é um homem? Direi
que esta proposição, eu sou, eu existo, que é um animal racion aJ? Certamente
é necessariamente verdadeira todas as não: pois seria necess.ário em seguida
pesquisar o g_ue é animal e o que é
~ • Retom~mós o raciQdnlo. No po11to em qut• racional e as!/;imt de uma só questão,
'1.ttou, não PÇ)deria c:u icr li eêr~a da qi&tência cairíamos insensivelmente numa infini-
de "algnm Dims"'I Não. nada o exige (e um dos
princípios eis IIJlállsi: dos g.a>metras -ê o de não dade de outras mais d.iffoeis e embaca-
têmantru' ~ uma verdade superior àquela Cóm que çosa.s. e eu nâo quereria abusar do
po$SG inc cont~tar}. ~1 invuear a cerrezadc ntinhá
existência como indivíduo. sujeito concreto? Não, pouco tempo e la.Ler que me resta
11ads o _permite, visto qll.C pus em duvida a cxis, empr-egando-o em deslindar seme-
têncút tlc ludQ.o que há "no mund1,)'' •. Ma$ cuida-
d9 1 A ''hesitoçliQ" aqui é ditada pt:lo medo de um.li
confollio.! fiel à regra .dá dúvida. nãQ tfflhu motivo ~ 1 O fim d11 frase indica que ela só é verdadeira
de abnr exceção em favor do homem concreto que cada-vez que penso nela a1Dal111ente. _ê também uma
cSOUI má$, aquém deste, há algo qtteicá.resilitir li dú· tuns.tçào, pois pennilirá rci.-ponder à pergunta que
vida. B doravant~ o Eu não será mais ~'te Eu de agoril bavcrá óe colocar-se1 qual é ~ natureza deste
enamore e ao pé do fogo qu.:; a Primeira Meditação
evocava (corno indica Goldschmidt., Con~resso
De-scartes de:Royaumont, pág. 53).
i•
6u-cxi~tc.nttqu.e acabo de afirmar?
eu não conheço, ainda, o comeúdo desta exis-
1encla que acabo de iúinnar. lmpona, pois, encon,
1 9 B$sa fra&<l evidencía l>cm o papel do "Grande tr&.-lo oela exclusiva análíse do~ dados do p.rõbTcma,
Embul;teiro,... impor a meus penntnenws -uma JstQ!ê. por e1i:rerminaç.ão. 1evando cm conta wdo o
prova de tal ordem que aquele que lhe resistir sejAoc que é dado; ma~ exchu/ldo tudo o qu·e não o é 6i
quando não gaca1uido cruno vcr~lrt, (é 1-mpos- referência à flcgra XII é a.qui indispensável). Nocar
~vc.l antes da prova da existência de Deus), pelo a frase •'é preciso que cu Jltcn.te com todo. cuidado
menos recebido como certo. St não fo.sse arrro:1cado. para ºnão tomar. imprudcnttmeale alguma bub'a
extorquido ao Gênio Maligno. o Cogito não passa- coi~a por mim", que seyia absurdo ~o plano da Psi-
ria de uma banalidade. Sobre .a orlg.inalldade do cologia e que se Justifica apenas no nível de uma Ál-
Cogtu,. cf. o rundo opu:i<;uh> de Pascal! De l'E.rprlt gçbra d.as noções, comparâvet .i "Álgebra dos
Géomllrl(JW!. comprimentos" das Regulae.
MEDITAÇÕES 101
lhanres sutilezas2.9 , Mas, antes, deter- qual seja tocado e do qual receba a
me.-ei em considerar aqui os pensa- impfessão. Pois não acreditava de
mentos que antetiormente nasciam por modo algum que se devesse atribuir à
si mesmos em meu espírito e que eram natureza corpórea vantagens como ter
inspirados a,penas por minha natureza, de si o poder de mover-se. de sentir e
qu-ando me apUcava à consideração de de pensar; ao contrário, espantava-me
meu seJ. Considerava-me, inici'81- antes ào ver que semelhantes faculda-
mente, como provido de tosto, mãos~ des se encontravam em certos cor-
braços e toda essa máq llllla composta pos31
de ossos e carne, tal como ela aparece 7. Mas eu, o que sou eu, agora que
em um cadáver. a qual eu designava suponho 3 2 gue há alguém que é extre-
pelo nome de corpo. Considerava. mamente poderoso e, se ouso dizê-lot
além d isso, que roe alimentava. que malicioso e ardilosa, que emprega
caminhava~ que senti.a e que pensava e todas as suas forças e toda a sua ind11s-
relacionava todas essas ações à tria em enganar-me'? Pos~o esuar certo
a1ma30 ; mas não me detinha em pen- de possuir a menor de todas as coisas
sar em que consJstia essa alma, ou, se Que atribui há pou.co à natureza corpó-
o fazia, imaginava que era algo extre-
mamente raro e .sutil, como um vento, rea'? Detenho-me -em pensar nisto com
uma flama ou um ar muito tênue, que atenção, passo e repasso todas essas
estava jnsinuado e disseminado nas coisas em meu espírito, e não encontro
minhas partes mais grosseíras. No que nenhuma que possa dizer que exista
se referia ao corpo. não duvidava de em mim. ~ao é necessário que me de-
maneira alguma de sua natureza; PQis more a enumerá-las. Passemos, pois,
pensáva conhecê-la mui distint amente aos atributos da alma e vejamos se há
e, se quisesse explicá-la segundo as alguns qµ,e existam em mim. Os pri-
noções qU.e dela tinha, tê-La-ia descrito meiros são alimentar-me e caminhar;
desta maneira: por c-0n,o entend9 tudo mas, se é verdade que não possuo
o qúe pode ser Lim1tado por alguma corpo algum, é verdade também que
figura; que pode ser compreendido em não posso nem camüihar nem alimen-
qualquC(' Jugar e preeneber um espaço tar-me. Um outro ê sentir; mas não se
de tal sorte que todo outro corpo dele Pode também sentir sem o corpo; além
seja excluído; que p0de ser sen1ído ou do qoe, pensei sentir outrora muitas
pelo tato~ ou pela visão, ou pela audi- coisas, durante o sono, as qµ:ai"S reco-
ção, ou pelo olfato; que pode ser movi- nheci. ao despertar, não ter sentido
do de muit~s maneiras, não por si efetivamente. Um outro é pensar~ e
mesmo, ma~ por algo de alheio pelo verifico aqui que o pensamento é um
atributo que me -pertence; s6 :ele não
.u Sobre este. mêtódo de Aetcrmínação do pró-
blemà per segi:egaçio, ef. o çüálogo: R~chercht de
la f'étil~ (PfEiatle, p&gs-. 892--94). A"O interl0Ct1.tor '- 1 Ette- conhecimenfo «natural'' que eu ten!Jo de
aturdido que acab.a de r.esponder: "Diria. portamo, mim mesmo antes da prova dadúvida i;erá inteira-
que sou. um homem", o .cartesianc> :replica: "NãD. Qlllllle falso? N'"ao. Se a alma ê conce1)ida à 1IU1Deira
prestais atenção ao que pef'gl'ntei e a res~ta que dos·escolásticos. em troca· a distinção entrc'.Q corpo
apn:se1ita4, embora vos- pareça simples, lançar- e o espírito (indispensável à Física) cstil aí presente,
vos•ia cm questões muito árduas e muito cmbar.aço- mas a título de opinião provável,. sem fundamento.
sas,-,se e.u quisesse apertádas por menos que seja• . , CC. Respos1as, 204.
Não entendestes bem a minha petgunt.a e respoqdels 3 2. Mudança de- plano. Do _pensamento Inspirado
à mais co.isas dó qµe- vos perguntei •• • Dizei-me, por "n:únba natureza" passamos à só Idéia de mim
país-, o ~ne sois propridT1Wlle. na medida em que mesmo compatível com ainst11urisção da duvida. da
dJJ,,ldafs ~ indtiermínaçió psicológica à de1ermína9ão metafí·
)O cr. Respostas, 508. síca..
102 DESCARTES
pode ser separado de mim. E'IJ sou, eu extStirem, Ja que me são desconhe-
existo: isto é certo; mas por quanto cidas, não sejam efetivamente diferen-
tempo? A saber, por todo e tempo em tes de mim, que eu conheço, Nada sei
que eu pensoª 3 ; pois poderia, talvez, a respeito; oão o discuto atualmente,
ocórrer que. se eu <:leixasse de pensar. não posso dar meu juízo senão a coisas
deixa.ria ao mesmo tempo de ser ou de que me são conhecidas: reconheci que
e:xis1ir. Nada admito -agora que- não eu era, e procuro o qµe sou, eu que
seja necessariamente verdadeiro: nada reconheci ser. O ra, é muito certo que
.sou, pois, falando precisamente, ~enão essa noção e conhecimento de mim
uma coisa que pensa, isto é, um espíri- mesmo, assim precisamente tomada,
to, um entendimento ou uma razão,. não depende em nada das coisas cuja
que são temlos cuja significação roe ex~ênciá oão me é ainda conbeci-
era anteriormeru.e3 4 desconhecida. da3 8 ; nem, por conseguinte, e com
Ora, eu sou ~a c,oisa verdadeira e mais. razão de nenhuma. daquelas que
vecdadeiramente eristente; mas que são fingidas e inventadas pela imagina-
coisa? lã o disse: uma eoisa que pensa. ção. Ê mesmo esses tennos fmgír e
B q_ae mais? Excitarei ainda minha lmaginar advertem-me de meu erro;
imaginação para procurar saber senão pois eu fingiria efetivamente se im~gi-
sou algo mais. Eu não sou essa reunião nasse ser alguma co.isa, posto q_ue ima-
de membros gúe se chama o corpo ginar 11ada mais é do que contemplar a
humano; não sou um ar têruJe e pene- figura ou a imagem de un;ia coisa cor-
trante. disseminado por todos esses poral , Ora. sei já certamente que eu
membros~ n:ão sou um vento, um sou., e q11e, ao mesmo tempo, pode
sopro, um vapor, nem aJ.go que posso ocorrer que todas essas imagens e, em
fingir e imaginar, posto que -supus que geral, toda.$ as coisas que se relacio-
tudo isso não era oada e que, sem nam à natureza do ·corpo sejam apenas
mudar- ess&. _suposição"' verifico que não !lonhos ou quimeras. Em seguimento
deixo de estar seguro de que sou algu- disso, vejo claramente que teria tão
ma coisa 3 6 • pouca razão ao dizer: excitarei :minh:a
8. Mas também pode ocorrer que imagiruiç-ão para conhecer má~ distin-
essas mesmas coisas, que suponho não tamente o qu_e sou, como se dissesse:
estou atualmente aeord~clo e percebo
33 Entre Iodas ~ fi!C:uldades: 1} do corpo ~ 2) da
algo de real e de verdadeiro; mas, visto
alma, um,i só, o ~sarnento, rresiste â Wtclu.sào. que não o percebo ainda. assaz nitida-
Vemos aqui a importància do fim do § 4~ ·'Esta
propo$ição - eu sou. eu: e~istn - é ~cessadá- mente, domriria in teocion-almente a
men.re verdlld.eir-a se,npr; que eu aJ)ronu11cfc> 011 que fim de que meus sonhos mo represen-
eu a c:onceqo em meu espírft<T': B ao refletir sobre tassem eom maior verdâde e evidência.
estaJnseparabilidack - único dado que se encontra
em rrúob.a posse - que obtenho ilhi:diatamente 11 E, assim. reconheço certamente que
ttlltureza "~utlo ~e sou". Trata-se da Rrimeira nada, de tudo o que posso com-
verd aéle da cadeia de razões.
3 4 "Anleriormi::nte", is'U) é, no plano em que nos preender por meio da imaginação, per-
·colo.cav.a o p,arágrafu precedente, eu podia proferir tence a este conhecimento que tenho de
e.stas palavras, mas sem lhes cer determinado o sen_~ mim mesmo e que é necessário lembrar
Lido, portanto sem conheeê•lo.
3 6
Sobre o lim desse patágrllfo, cf. 505 e segs. Nãt,
Jíâ oecessi~ade alguma ·de ir procurar em outra 1 6 O contraditor que retorquisse 111U1er 1atvez em
pane uma resposta. visto que dei a única res_posta mim alguma outra façoldade d,esconhecida -situar-
que respe.ttava os dados do problema: "Eu so\l uma se-ia nQ1>lano da Psicologia e .naQ dás r111.ões meta-
coisa que pensa". Mas "o homem natur-al" sente-se físicas, Vm dos prmcipios da ariáíis.: é que não
Lentado a recorrer .à imaginação a fim de completar tenho o direito de argüir propriedades ainda desco-
ésta TCliJ'O$ta. Há njsso uma· ínclinar;ão que o pará- nhecidas para combater as que. se: acllam agora
grafo segu ince irá desenraizar. estabelecidas,
MEDITAÇÕES 103
e desviar o espírito dessa maneira de de mim mesmo? l'ois é por si tão evi-
conceber a fim de que ele próprio dente que sou eu quem duvida, quem
possa reconhecer muito distintamente entende e quem deseja que não ê neces-
sua natureza3 7 • sário nada acr-escentar aqui para expli-
9. Mas o que sou eu, portanto? cá-lo. E tenho também certamente o
Uma coisa que pensa. Que é uma coisa poder de imaginar; pois, ainda que
que pensa? É uma coi$a que duvida-, possa ocorrer (como supus ,antç,rior-
que concebe, que afirma, que neg~ que mente) que as coisas que tmaginQ não
quer, que não quer, que imagina tam- sejam verdadeiras, este poder de imagi-
bém e que seate3 8 • Certamente não é n.ar não deixa, no entanto, de existir
pouco se todas essas coisas pertencem realmente em mim e faz parte do meu
à minha natureza. Mas por que não lhe pensamento. Enfim, sou o mesmo que
pertenceriam? Não sou eu próprio esse sente, isto é, que recebe e conhece as
mesmo que duvida de quase Ludo, que, coisas como que pelos órgãos dos sen-
no entanto, entende e concebe certas tidos,, posto que, com efeito, vejo alu:z.,
coi:sas, que assegura e afirma que ouço o ruído, sinto o calor. Mas dir-
somente tais coisas são verda(\eiras, me-ão que essas aparências são falsas
que nega todas as demais~ que quer e e ,.que eu durmo. Que assim seja; toda-
deseja conhecê-las mais, que não quer via, . ao mçnos, é muito certo que me
ser enganado, que imagina muitas coi- pareee que vejo, que ouço e que me
sas, .mesmo mau grado seu, e que sente aqueç.o ; e é propriamente ãquilo que
também muitas como que por inter- em mim se chama sentir e isto. tomado
médio dos 6rgãos do corpo? Haverá assim precisamente. nada é senão pen-
algo em tudo isso que não seja tão ver- sar. Donde, começo a conhecer o que
dadeiro quàhto é certo que sou e que ~ou, com am pouco mais de luz e de
existoi mesmo se dormisse sempre e distinção do que anteriormente3 9 •
ainda qu~do aquele que me deu a 10. Mas não me posso impedir de
existência se servlsse de todas as suas crer que as coisas corpóreas 40 , cujas
forças para enganar-me? Haverª1 iam- imagens se formam pelo meu pensa-
bém, algum desses atributos que possa mento, e que se apresentam aos i;enti-
ser distinguido de mell pensamento, ou dos, sejam mais distintamente conheci-L
que se possa dizer que existe separado das do que essa não sei que parte de
mim mesmo que não se apresenta à
~r Bm virtude desse princípio, não me é-dado á.bSo--
lu1am~ o direito de recorrer à- imagúlação, Pois·
imaginação: embor~ com efeito, seja
"tudo,quamo pósso COJ1lpreender por seu meio'' foi uma coisa bastante estranha que coisas
~uido pela dúvida. Por aí ea sei1 ao mesmo que considero duvidosas e dístantes
<empo, q1111 minha ruúllrezJI é puro _pensamento
-e
exdusívo de todo elemcnro éQrpocal. a.- $égunda sejam rnrus claras e mais facilmente
~crdade, a quaJ não se deve CQnnindircom a dislin- conhecidas por mim do que aquelas
ção real -1:ntre-a alma e o corpo. estabelecida somen-
~ na Meditação Sena. cr. 510.
u- Cumpre observar a dife.rençJ 1"1:lativamente à :u A saber, um pensamento: a) ÓlS(mto dos.corpos,
definição do § '7: "Jsto é, um espírito, um entendi- seo~ ho11ver; b) distinto d~ faculdades não propria·
mc:mo ou un'la razão". Aí determinava-se a essência mente imelecttrais, como a imagmação, qUe só .me
da su.bstãncia "coisa pensante"; aqui elâ é desctita penenc~m Por.que implic_am esie pensamento puro.
~estida de seus diferentes mO<ló&. Desse novo • 0 Novo assalto do pensa.mentQ Imaginativo lne-
prin\o ~ vista, reintegra-se oa "coisa pensante'' o re:ote à. 1'minha nat11rez11" e do qlial não posso iµnda
~e fora ex-cluído de ma e.ssência. Todos . esses me de:.1>render; estqu convencido, mas não persua-
at'Jdos (_ünagln~. sentir. querer), embora niio per- dido. Daí a necessidade de uma contraprova que
ct:nçam a minha natureza. não pooem ser postos em servirá para estabelecer a terceira- verdade. Como
éivkla, ºª
Cogito.
medidá :em_que se beneficiam da ceneza todas as Biruras de retórica das Meditações, esta
íntegl'a-se na ordem,
1Ó4 DESCARTES
que .são verdadeiras e certas e que per- todas as coisas que se apresentavam ao
tencem à minha ptópda· natureza. Mas paladar, ao olfato, ou à visão, 01,1 ao
vejo bem o q_ue seja: meu espírito tato, ou à audição, encontram-se mu-
apraz-se em extraviar~se e não pode dadas e. no entanto, a mesma cera per-
ainda conter-se nos justos limites da manece. Talvez fosse como penso
verdade. Soltemos-lhe, pois, ainda uma atualmente, a saber,._ que a cera não era
vez, as rédeas a fim de que, vindo, em nem essa doçura do mel, nem esse
seguida, a libertar-se delas suave e agradáveJ odor das flores, nem essa
-oponunamente, possamos mais facil- brancur~ nem essa figura, nem e.sse
mente domlná-lo e conduzi-lo 4 ,. som, mas somente am corpo que um
Jl. Comecemos pela consideração pouco arues me aparecia sob certas
das coisas mais comuns e que acredi- formas e que agora se faz notar sob
tamos compre~nder mais distinta:- outras. Mas o que ser~ falando preci-
mente, a saber, os corpos q.ue tocamos samente, que eu imagino quando a
e que vemos. Não pretendo falar dos concebo dessa maneira'? Considere-
corpos em geral. pois essas noções ge- mo-lo atentamente e, afastando todas
rais são ordinariamente mais confusas, as coisas que não pertencem à cera,
porém de quaJquer corpo em particu- vejamos o que resta. Certamente nada
lar. Tomemos, por exemplo, e.ste peda- permanece senão algo de extenso, flexí-
ço de cera q_ue acaba de ser tirado da vel e mutável. Ora, o que é isto: flexi-
colmeia: ele não perdeu arada a doçura veJ e mutável? Não estou .imagimmdo
do mel que continlia~ reLém ainda algo qu.e esta cera, sendo redonda, é capaz
do odor d-as lil9res de que foi recolhido; de se tomar quadrada e de passar do
~a cor, sua figura, sua grandeza. ~ão quadrado a uma figUTa triangular?
patentes~ é duro, é frio, tocamo-lo e, se Certamente aão, não é isso~ posto que
nele batermos. produzirá algum som. a concebo capaz de receber uma infini-
Enfim, todas as coisas. que podem dade de modificações similares e eu
distintamente fazer conhecer um corpo não poderia, no entanto~ percorrer essa
encontram-se neste. infinidade com minha imaginação e;
12. Mas eis que, enquanto falo. é por conseguinte, essa concepção que
aproximado do fogo_; o que nele resta- tenho da cera não seiealiza através da
va de sabor exala-se, o odor se eS-val, minha faculdade de imaginar 4.2 •
sua oor se modilica, sua figura se alte- 13. E , agora, que é essa extensão?
ra, sua grandeza aumema, ele toma-se Não será ela igualmente desconhecida>
líquiqo, esquenta-se, mal o podemos já que na cera que se funde ela aumen~
ta e fica ainda maior quando está intei-
tocar e, embora nele batamos, nenhum
ramente fundida e muito mais ainda
som produzirá. A mesma cera pei;ma-
quando o calor 1Iumenta? E eu não
nece após essa .roocJificação? Cumpre conceberia claramente e segundo a ver-
confessar que petmanece: e ninguém o dade o que é a cera, se não pensasse
pode negar. O que é, pois, que se que é capaz de receber mais variedades
conhecia deste pedaço de cera com
canta distinção? Certamente não pode 42 RacLocínio .em duas partes: l,u o que mepermite
ser nada de tudo o que notei nela por reconhecer a mesma cera é sua iàentidade .na medi-
intermédio dos sentidos, post,o que da em que.a cera é Coisa exbm-sa~ 2. 0 ma, este cwn-
te6do so pode ser idéra e não imagem da extensão
que o c;orpo oc11pa atualmente óu daquelas (em nú-
• 1 Em outros termos: façamos de <:Qntâ 11µe inter- mero fmlto) que p,oderia ocup,ar eriL seg\lÍda. Cf.
rompemos a ordem: a fim de seguir o senso comum Quintas P. espQSUts: "As "faculdades de enterrder e de
em seu próprio tecreno. Sobre o f'alo de ser esta imaginar diferem não só segundo o mais e o menos.
1ransgressão apenas aparente, e( o importantíssimo porém çemo duJ!S .maneiras de aglt totalmente
~ 5 J:5 das..RespC1,çtas. clífererues".
MEDITAÇÕES 105
segundo a extensão do que jamais ima- la, .senão chapéus·e casacos que podem
ginei. É precjso, pois, que eu concorde cobrir espectros ou bomens fictícios
que não poderia mesmo conceber pela que se movem apenas por molas'? M-as
imaginação o que é essa cera e que julgo que são homens verdadeiros e
somente meu entendimento é quem o assim compreendo, somente pelo poder
concebe' 3 ; digó este pedaço de cera de julgar que reside em mea espírito,
em particular, pois para a cera em aquilo que acreditava ver com meus
geraJ é ainda mais evidente. Ora, gual olhos.
é. esta cera que não pode ser concebida l5. Um o.ornem que pcocnra elevar
senão pelo -entendimento ou pelo espí- s_eu conhecimento para 1llém do
rito? Certamente é a mesma que vejo, comum deve envergonhar-:se de apro-
que toco-t que êmagino e a mesma que veitar ocasiões para duvidar das for-
conhecia desde o começo, Mas o que é mas e dos termos -do falar do vulgo;
de notar é que sua percepção, ou a prefiro passar adiante e considerar se
ação pela quaJ é percebida, não é uma eu concebia -eom maior evidência e
visão, nem um tatear, nem uma imagi- petfeíção o que era a cer~ quando a
nação, e jamais o foi, embora assim o percebi _inicialmente e acreditei conhe-
parecesse anteriormente, mas somente -cê-la por meio dos senLidos exteriores,
uma inspeção do esptrito, q_ue pode ser ou ao menos por meio · do senso
imperfeita e confu~ como era antes. comum, como o obamam, is-to é, por
eu clara e distinta, como é presente- meio do poder imaginativo, do que a
mente, conforme minha atenção se dl- concebo presentemente, a_pós haver
nJa . ou menos as
... mais . que exis-
" coisas . examinado mais exatamente o que ela
tem nela e das quais é composta. é e de que maneira pode ser conhecida.
14. Entretanto. eo não poderia es- Por certo, seria ridículo colocar isso
pantar,me demasiado ao considerar o em dúvida. Pois, que havia nes~a pri-
quanto meu espírito tem de fraqueza e meira percepção que fosse distinto· e
de pendor que o leva insensivelmente evidente e que não pudesse cair da
ao erro. Pois, ainda que sem falar eu mesma maneir:a sob os sentidos do
considere tudo issp em mim mesmo, as menor dos animais? · Mas quando dis-
palavias detêm-me Lodavia., e sou tingo a cera de suas formas exteriores
quase enganado peÍos termos da lin- e, como se a tivesse despido de suas
guagem comum; pois nós dizemos que vestimentas, considero-a inteiramente
vemos a mesma cera, seno-la apresen- nua 4 4 • é certo que, embora se possa
tam, e .não que julgámos que é a ainda encontrar algum erro em meu
mesma, pelo fato de ter a mesma cor e juízo, não a posso conceber dessa
a mesma figura: donde desejaria qaase fonn a sem um espirita humano 4 6 •
concluir que se conhece a, cera pela
visão dos olhos e não p.ela tão--só ins- • ~ Cl S t3. onde Descancs se defende· de ter pre-
peção do espírito, se por acaso nio tendido "abstrair " conceito da tera de seus aciden-
olhasse pela Janela homens que pas~ ces". ''Os acidentes são contingen,tt$ em rélaçâo à
sam pela rua, à vista dos quais não sµbs1ânéia, Ílla$ não a acjd.em111ídade", espeoifica
Guéroult. (E)escanes, 1. pâg. 56,)
deixo de dizer que vejo homens da • • Tal l o sentido exato do "pedáço de cera!': eu
mesma maneira que digo que vejo a nada passo conhecer alra,vés- da percepção ou da
cer~ e, entretanto. qi;ie vejo de&tajane- imaginação sem compreender (011 reconhecer), atr-a-
v~s do pmsamento • .a essência. da coisa. Tenho ou
niio razão de reconhecer esta essência? N'"~ sei
•3 l'or onde Tici provado nio só q_iiea ímaginai;io ainda. :fois não se trata .aqu{ de saber se eu: d.ispo-
não pode m-e dar a cophecer a natureza dos corpos 11ho efetivamente do conhecimento da essência do
que se lhe all(Csentam (a quer era o (>bj-ctiv<> da corpo, rnas'de saber em quais condições posso estar
contrapro va), mas ainda que o pensamento puro é o segam de possoir a idéiJT clara e clistinrn deste
único capaz de í.azê•lo. corpo. Cf. G11éroult.. op_ ciJ,. págs: 144-45.,
106 DESCARTES
16. Ma_s, enfim, que direi desse espr- nitidez não deverei eu conhecer-me 4 7 ,
rito, isto é, de mim mesmo " 6 ? Pois até posto que todas as razões que servem
aqui oão admiti em. mim naôa além de para conhecer e · conceber a natureza
um espírito. Que dedlararei, digo, de da cera. ou qualquer outro corpo, pro-
mim, que pareço conceber com tanta vam muito mais fácil e evidentemente
nitidez e distinção este pedaço de cera? a natureza de- meu esp.í dto? E encon-
Não me conheço a mim mesmo não só tram-se ainda tantas outras coisas no
com muito mais verdade e certeza. mas próprio espíriLo que podem contribuir
também com maito maior distinção e ao esclarecimento de sua natureza, que
nitidez? Pois, se julgo que a cera é ou aquelas que dependem do corpo (como
existe pelo fato de eu a ver, sem dúvida esta) não merecem quase ser enumera-
segue-se bem mais evidentemente que das.
eu próprio sou, ou que existo pelo fato
18. Mas. enfim, eis que insensivel-
de eu a ver. Pois pode acontecer que
mente cheguei aonde queria; _peis, já
aquilo que eu vejo não sej~ de fato ,
que é coisa presentemente conhecida
cera; pode também dar-se que eu não
lenha olhos para ver coisa alguma; por :mim que, propriamente falando, só
mas não p,Qde ococrer, quandô vejo ou concebemos os corpo1> pela faculdade·
(coisa que não mais distingo) quando de entender em nós existente e não pela
penso ver, que eu, que penso~ oãó seja imaginação nem pelo~ sentidos, e que
alguma coisa. Do mesmo modo, se não os conhecemos pelo fato de os ver
julgo que a cera existe. pelo fato de que ou de tocá-los, mas somente por os
a toco, seguir-se--á ainda a mesma conceber pelo pensamento, reconheço
coisa, ou seja, que eu sou; e se o julgo com evidência que nada há que me seja
porque minha imaginação disso me mais fácil de conhecer do gue meu
persuade. ou por qualcp1er outra causa espírito. Mas, posto que é quase
que seja, conoluirei sempre a mesma impos.sível desfazer-se tão prontamente
coisa. E o que notei aqui a respeito da de uma antiga opinião, será bom que
cera Pode aplicar-se a todas as outras eu me cletenha um pouco neste ponto~a
coisas que me são exteriores e que se fim de que~ pelâ amplitude de minha
encontram fora de mim. meditação, eu imprima mais profunda-
17. Ora, se a noção ou conheci- mente em mlnha memória este novo
mento da cera parece ser mais nítido e conhecimento.
mais distintõ apôs ter sido descoberto
não somente pela \lisão ou pelo tato, • 1 A.a terceira verdade: o esAírito é maís fácII de
conhecer do -q1,1e o corpo, Com efeito, obtêrtlm
mas ainda por muitas outras causas, imediatamente- o conheci(ncrrto da existência e da
oom quão maior evidência, distin9ão e natureu de meu esptrito, aQ passo que o meu pensa-
mento me proPQrciona apenas a·itléí~ clara e dis-
• e Passamos, com este jp!iTÃgrafo à cmúiQnayão tinta dos corpos cuja existência àind11 a problem.á-
da .se_g_unda verdade: quando perce~ o pedaço de tica. GuéroulLComent·a : "Qns.ndo Descanesdeclara
ccta, seja Cllrnpreend.mdo.- clara e distintamente -~u.a que o conhec1memo da alma é o rnaís fácil dos
naturezl¼ seja e:~as imn~nand()-0 ou wcandq-o. corlheciinent.os, .quer dizi:r que é a mais fâcil das
só uma CQisa é certa. no ponto cm qµe me encontro. verdades cieruífü:-as e: o prime.iro dos conhecimentos
íi que e11 _pem,/J percebê-lo , , Mostrando. que este na ordem da ciência. Não quer dizer que a ciência é
·•pensamento" era -indi$pensávcl ao conltecinu:mo mais. fácil do que o conheoilru:mo vulgar. A passa·
da coisa, a anãlise preé'.cdentc ~ confitma.ç ão a gem do s-enso comum à ciência é, com efeito, a IIiai's
esta verdade. dillcildas ascensões". (Op-. éil., pág. 128.)
MEDITAÇAÕ TERCEIRA 411
De Deus; qne Ele Existe
1. Fecharei agora os olhos, tampa- que pensa, isto é, que duvida. que afir-
rei meus ouvidos. desviar~me-ei de ma. que nega. que conhece poucas coi-
todos o.i:; meus sentidos, apagarei sas. que ignora muitas, que ·ama, que-
mesmo ·de meu pensamento todas as odei:a. -que quer e não quer. que tam-
imagens de coisas corporais. o~ ao bém imagina e que sente. Pois. assim
menos. uma vez que mal se pode fazê- como notei acima, conquanto as coisas
Jo, reputá-1.as-ei como vãs e como fal- que sinto e in1agino não sejam talvez
sas; e assim, entretendc>-me apenas co- absolutamente nada fora de mim e
migo mesmo e considerando meu .nelas mesmas, estou, enrretanto, certo
interior, empreenderei tomar~me de que essas maneiras de pensar, que
pouco a pouco mais conhecido e mais
chamo sentimentos e imaginações so-
familiar a mim mesmo. Sou uma coisa
mente na medida em que são manejraS'
•• Plano da Meditação: de pensar, residem e se encontram cer-
§§ 1-4: rc:capitulaçitot tamente em mim. E neste pouco que
§5: aquestão.tleDc·us;
§§~9. discriminar,.~o llos pru.los do pro- acabo de dizer creio ter relatado tudo o
blema. que sei verd-adéirament~ ou·, pelo
A) ~§10-14; p~imeiro caminho pata o exame:
dô valor objetivo da-s idéias: o senso comum. menos. tudo o qae até aqui notei que
B) §§ t.5 -~9. segundo caminho: sabia.
(§.§ 16-17): 11ri1Jcípios de causali-
dade-e correspondência; 2. Agora considerarei mais exata-
(§,18); colocação <ili probtem& em mente s-e talve:znão se encontrem abso-
quais eomllções recoriheccrfa cU o lutamente em mim outros conheci-
valor objetivo dé \1ffUI idéia?
(§§ 19-21); Q-ame d11s diferentes mentos que não tenha ainda percebido.
esp~c1es de idéia sob ~e novo Estou cerro de que sou uma coisa pen-
prisma:
{§22): a idéíá de Deui, rei.-onl'lee,aa sante; mas .não saberei também, por-
CQJllO dotada de valor objetivo = tanto, o que é requerido para me Lornar
primeira pmva; certo de alguma coisa? Nesse primeiro
(§§ 23·2$): rcl'lexõcs sobre es1a
ptqv:i. conhecimento só se -encontra uma
C) §§22-42: wgunda prov11: dara e distàlla percepção daquilo que
(f§29-30): necessidade de oucra conheço; a qual. na verdade, não seria
prova;
(§§~ 1-32); primeiro :momentõ, pri· suficiente para me assegurar de qae é
me.inl liipôtesé: e1,1 ei1isto por mim verdadeira se em algum momento
mc:~mo como por uma causa:
(§§33-34): primetro momento. se- pudesse _acontecer qut! uma coisa t1ue
tún.da hipotese: cu existo <:cm eu concebesse tão clara e distintamente
causa; se verificasse falsa. E, portanto, pare-
(§3S): segundo.momento;
(§§36-37)! rene~ subsidiÍll:i.as. ce-me que já posso estabe1ecer como
~§38-42; relleXã(I oobre o conJ1,1nw. regra geral que todas as coi~ que
t08 DESCARTES
ànllncia um origfuàl (ll idéía-q11adro) reaparecerá teúdos anleríotes; áquelcs cm' que podemos nlls
oiuital, vezes rle.sta Meditação. Importa lanto maís fiar? TOdos, saHo QSjuí1.os.
sublinhar (l\lC os ti:rn,os-'"conro uma imiiem" oons u Enquanto conteúdo de- pensamento. o juízo é
d tuem apenas uma comparação dcsunada a expll- tão certo como os ourros (parece-me que ecu jul
t>ar a função da. idéia. Nãe se tt~. de forma Blgu- go. . ). Mas cumpre eir.duí-to da indagação.., ria me-
ma, de: assimilar a íqéia mtélectual à imagem dlâa em que <.'(')11sistc- cm afirmar ou cm ruigar sem
,.wsfve1. e~ o protestu contra Hol,bes nas Terceiras fi4n:dame11to, q\le o oonleúdo de minha idéia corres-
Respustas: "'Peito nome & ideia, ele quer somc:n1e. ponde a uma realidade fora dela, 0u ainda: afirma
que se entendam aqul as ànagens das coisas mate- ou nega q_uo o conteúdo de uma idéia (SD.á "reali-
riais pintadas ria l'a.ntasiil torpórea; e séndo ísso- (lade objetiva'') possui um \Valor objbtiYo, sem ex.a-
1upo~10, é-Uw fácil mostrar que -tião se pode ier minaqrre11iamente o éonteúdo desta idéia,
oenhun'H1 1défa própria e verdad.cira de Deus nem de 6
• Restrição que tem sua 1mportàncía. Tornar-se-à
um -llJIJO _ • _"; as.sim como G 2: "Pelo nome de compfe.ensível hO § 19 desta Medil'.ação.
idéia•.. " Sobr-e -a JtOviàmk do sénUdo Jado por: 6 1 "l'arecem" :indil::á que Descartes se coloca ao
Descartes à palavra "idéia'', cf. Gi.l.sà.ll, Discourt, n{vel do seni.'O comum. A4ui, com efeito, começa a
pâ_g. l 19. cl'Ítica da classificação das idéias segundo o senso
o l;)or esca primeira clallslfic-ição. dlstlnguem-~e: comum e dos preconceitos que ela Implica - é o
L' ttS idéles: 2." os CQnte\Ídos n~s quais. uma ação "primeiro caminho'· possíveT da imt,;;stíga~o; o
do esp{rilose acrescentá às idéi!lll, segurulomicia-se.no § l5.
1LO DESCARTES
mP.smo. Po:is, que eu tenha a faculdade e corwinceates 58 • Quando digo que me
de conceber o que é aquilo que geral- parece que isso me é ensinado pela
mente se chama ama coisa ou uma ver- :natureza 5 !I, entendo somente por essa
dade, ou um pensamento, parece-me palavra natureza uma certa inclinação
que não o obtenho em outra parte que me leva a acreditar nessa coisa:. e
senão em minha própria natureza; mas não uma luz natura! que me faça
se ouço agora algum rufdo. se vejo o conhecer que ela é verdadeira. Ora,
sol, se sinto cal:or, até o presente jul- essas duas coisas diferem muito entre
guei que estes sentimen~os procediam si; pois eu nada poderia colocar em dú_-
de algumas coisa.s que existem fora de vida daquilo que a luz natural me reve-
mim; e enfim parece-me que as sereias, Ja ser verdadeiro, assim como ela me
os hipogrifos e todas as outras quime- fez ver, há pouco. que, do tato de eLL
ras semelhantes são ficções e inven- duvidar, podia concluir que existia. E
ções ae meu espkito. Mas também tal- não tenho em mim outra faculdade, ou
vez eu possa persuadir-me de que poder, para distmguír o verdadeiro do
todas essas idéias são do gênero das falso: que me po.ssa ensinar que aquilo
que eu cl1amo de estranhas: e que vêm qae essa luz me mostra como verda-
de fora ou q11e nasceram todas comigo deiro não o é, e na ·quaJ eu me possa
ou, ainda. gue foram todas feitas por fjar tanto quanto nela. Mas, no que se
mim; pois ainda não lhes descobri cla- refere a inclinações que também me
ramente a verdadeira odgem. 8. o que parecem ser para mim naturais, notei
dev.o fazer pdncipalmenLe neste ponto freqüentemen"te, quando se tratava de
é considerar, no tocante àquelas que escolher entre as virtudes e os vícios,
me parecem v1r de alguns objetos loca- EJUe elas não me levaram menos ao mal
lizados fora de mim, quais as razões do que ao bem; eis por que não tenho
que me obrigam a acreditá-las seme- motivo de segui-las tampouco no refe-
lhantes a esses objetos. rente ao verdadeiro e ao falso.
13. E, quanto à outra razão, segun-
l 1. A primeira dessas razões é que do a qual essas idéias devem provir de
me parece que is.some é ensinado pela alhures, porquanto não dependem de
natureza~ e a s.egunda. que experi- minha vontade. Lampou.co a acbomais
mento em mim próprio que essas convincente 60 • Pois. da mesma forma
idéias não dependem, de modo algum, que .as inclinações, de que falava há
de minha vontade: pois amiúde se pouco, se encontram em mim, não obs-
apresentam a mim mau grado meti, rnnre. não se acordarem sempre com
eomo agora., l:JUer queira quer não. eu minha vontade, e assim talvez haja -em
sinto calor, e por esta razão persuado- mim algumá faculdade ou poder pró-
me de que este sentimento ou esta idéia prio para produzir essas idéias sem
de calor é produzido em lilim por algo
diferente de mim mesmo, ou. seja, pelo 58 Começo da critica cló ~cn&l comum. que
luz natural que deve haver ao menos zido em um objeto que dele era priva-
tanta realidade na causa eficiente. e do anteriormente- se não for por un1a
total qu a:nto no seu efeito ~pois de onde cois_a que seja de uma ordem, de um
é que o efeito pode Úrar sua reaJidade grau ou de um gênero ao menos tão
senão de su~ causa? B como poderia perfeito quanto o calor, e assim os
esta causa lha comunicar se não a outros. M ~ ainda, além disS:O, a idéia
tivesse em sJ mesma 6 4 ? do calor, ou da pedra, não pode estar
J7. Daí decorre 8 6 não somente que em mim se não tiver sido aí colocada
o nada não poderia produz.ir coisa por alguma causa que contenha em si
alguma. mas também qae o que é mais ao menos tanta realidade quanto aque-
perfeito, isto é_. o que contém em si la que concebo no calor ou na pedra.
mais realidade, não pode ser uma Pois. ainda gue es-sa causa não trans-
decorrência e uma dependência do mita à minha idéia nada de sua reali-
menos _perfeito. E esta verdade não é dade atual ou formal, nem por isso se
somente clara e evidente aos seus efei- deve imaginar que essa causa deva ser
ws, que possuem essa realidade que os menos real; mas deve-se saber que,
_filósofos chamam de atual ou form~ sendo toda idéia uma obra do espírito,
mas também nas idéias onde se consi- sua natureza é tal que não exige de _sj
dera somente a realidade que eles cha- nenhum.a outra realidade fonnal além
mam de objetiva: por exemplo, a pedra da que recebe e toma de empréstimo
que ainda não foi, não :somenie não do pensamento ou do espírito do qual
1
_pode agora começ_ar a ser, se n-ão for ela é apenas um modo, isto é, uma
produz.ida por uma coisa que possui maneira ou forma de pensar. Ora, a
em si formalmente. ou eminentemen- Gm de que uma idé'ia contenha uma tal
te 6 6 , tudo o que entra na composição realidade objetiva de preferência a
da pedra, oa seja. que contém em s1 as outra. ela o deve, sem dúvida, a algu-
mesmas coisas ou outras mais excelen- ma causa, na qual se encontra ao
tes do q_ue aquelas que se encontram menos tànta realidade formal quanto
na pedra: e o caJor não pode ser produ - esta idéia contém de realidade objeti-
va 8 7 • Pois. se i.-upornos que existe algo
• • Prilllelco pnnctpio Invocado como ..maoúesro
pela luz oàt.U.ral''; principiõ deétlusaHdade (cf. 21 r e
.O '20, 21 ). Mas ~á esté princípio, enunciado geral- ~ 1 Do ponto de vi$tll de ~ua reca.lidade fonna1, as
mente, al)licávd ao caso das idéja:s que nos pn:ocu· idéiu sã4 simplesmente conLeúdos do pensanicnto;
pam? Da1.;n1ecess.idade-de complerá-lo oom o prin· mas, do Ponto de vista dt1 sua realidade objetiva.
ctpió :expressõ no pmgrafo seguinte, que GuêroulL '"aquela não há de s.atlsfaz.er quem disser ($0mente)
denomina: "prú1clpio de correspondência da idéia, que o próprio eruéndtmento ê a,caus11 delas". (Prf-
de- seu ldeamm". meira.s Resp9s1a3.;) Trf!I-S-se de uma Inovação de
• ~ Nesse parãgrafo dliicil, moslra.se que o princí, Desc:anu. Para a Filosofia tomisra, "não havia pro·
pio de causalidade vale lanlo no caso de uma •·reali- blema especial da causa do conteúdo das idéías ...
dade atual oll formal" quanto11~ caso de -UlJ1á "rea· parque c;ste contcudo, não sendo considerado como
!idade objetiva", Trndu:umos, Seja uma subslânoia do- ser. Tlào requeda ncnhwna causa pro-páa .••
existente em ato: uma pcdr11,, um homem. ~ eviden~ Nessas condiwes, o ser formal de meu ooneeito re-
que b.á rui c;ausa que a prodlhiu pelo menos tama quer uma causa (o intelecto que apreende a: forma
realidade qUJIDIO ne~~ substância mesma. Sejtt d.apedra). mas o ser objetivo de meu conceito não a
agora a (déia que cu tenho des,tà subs,ãncia (isto é, requer'. (Gífson, Discours, 322.) Com Descarte$,
uma "realidade objetiva•· e não mais uma ·reali· 0
ao coru.rárii;>, colóca-se uma questão qué para a
dade atual ou formal"). B igualmente evidente qoe Escolástica não tinba sentido: posso ftár-me n11
h-â no Set' e.xisrcme C'a1ual 011 formalmente") que:é 1dêja para arLrmar o que se me aparece atrav6i dela?
o-aus~ dc;st.a idéiil (ou desta "reallóade objetiva") ''Cóm.o é que o se11do. para nM ê o próprio sendo?•:
pt1lo menor, tanta realidade (11.ljlnt!,l n«:Sl-ll idéia tUd.UY Guéroull, ao Om· de- $1!11 li\l'fó. (Op. i:;1., II,
mesma. 305,) Através do~ termos da QÍltologia m.êd~evaj, é s
' • Uma causa contém "formalmente" seu éfeíto ontologia do que se convencionou chamar "o idea-
qLUmçio ela lhe é..hQmogenea, -e o contém "emmcnte- lismo moderno", de f'iclne a Husserl guc aqui se
me.ntc", no caso concrãrlo. Cf. G 4·. descnh'11.c
MEDITAÇÕES 113
na idéia que não se encontra em sua uradas_, lJlaS que jamais podem con'ter
causa, cumpre, portanto, que ela <;>bte- algo de maior ou de mais perfeito.7 °.
nha esse algo do uada; mas. por imper-
feita que seja essa maneira de ser pela 18. E quanto .mais Longa e cuidado-
qual ama cóisa é objetivamente ou por samente examino todas estas coisas,
representação no entendimento por sua tanto mais clara e distintamente reco-
idéia 611 , decerto não se pode dizer. no nheço que elas são verdadeiras. Mas,
entanto, que essa maneira ou essa enfim, que concluirei de tudo isso?
forma não seja nada, nem por conse- Concluirei que, se a realidade objetiva
guinte que essa. iãéía tire sua origem-do de alguma de minhas idéias é tal que
nada. Não devo também duvidar que eu reconheça claramente que ela não
seja necessário que a 1ealidade esteja está em mim nem fo1'm.al nem_ eminen-
formã.lmente nas causas de minhas temente e que, por conseguinte, nãe
idéias, em hora a realidade que eu con- posso, eu mesmo, ser-lhe a causa, daí
sidero nessas idéias seja somente obje- de4orre nécessaria.rnent~ que não e-xis-
tjv a, nem pensar qu_e basta que essa to sozinho no mundo, mas que há
realidade se encontre objetivamente em ainda algo que existe e que a causa e
suas causas 6 9 ; pois,, assim como essa desta idéia; ao passo que, se não se
maneira de ser objetivamente pertence encontrar em mim uma tal idéià, não
às idéia~, pela própria natureza delas, terei nenhum argumento que me possa
do mesmo modo a maneira ou forma convencer e me certificar da existência
de ser formalmente pertence às causas de qualquer outra coisa além de mim
dessas jdéias (ao meno~ às primeiras e mesmo; pois procurei-os a todos ~i-
principais) pela própria natureza delas. dadosamente e .não pude, até agora,
E ainda que possa oc-0rrer que uma encontrar nenhum 7 , •
idéi-a dê origem a uma outra idéia, isso
todavia não pode estender-se ao .infini- 19. Otá, entre essas idéias, além
to, mas é preciso ebegar ao flfil a uma daquela que me r~presenta a mim
primeíra idéia,, cuja causa seja um mesmo, sobre a qual não pode h-aver
como padrão ou origina~ na qual toda aqui nenhuma dificuldade, há uma
a realidade ou perfe1çâo esteja contida outra que :me representa am Deus. ou-
formalmente e em efeito, a qual só se tras as coisas corporais e inanimadas,
encontre objetivamente ou por repre- outras ós anjos, outras os animais,
sentação nessas idéias. De sorte que a outras, enfim. que me representam ho-
luz natural me faz conhecer evidente- mens semelhantes a mim. Mas, no que
mente qu.e as idéia:s são em mim como se refere às jdéias que me repres.e ntam
quadros, ou imagens, que podem na outros homens ou animais, ou anjos,
verdade facilmente não conservar a
perfeição das coisas de onde foram
7 ° Conhecido pela Juz_ .natm;al. este prlntjpio,
co1110 Q anterior, faz parte dessas noções 'J)rímltlva~
que escapam ao domínio dQ. Grande 8mbusteifll,
811 Há Jmpcrfeiçâo na medida em qu~ o conteúdo l..ssa ,não significa que_ as idéias sej am efetivamente
representativo ê privadc} da ajs~ncia própria ao as. imagens das coísas, _por.ém me permite apenas
objeto que representa. cr<Priméiras .Re!;posta,s: "A aplicar o pritlcípio de. eaUlli!Jidadc erurc um.a realí--
maneira de ser pela qual uma coisa existe objetiva- dade objetiva.e uma ~estidade atual.
mente ou pór represenlação no -entendirncrnto por 1 1 Recapitulaç:â() da expos.içãô preacd.eme (desde o
sua idé~ é imperfeit.a ". § 15) e posiçãi) do pro blema: c:J,1Conlrarel ~u uma
"' Outra oqjeção l)OSSÍvel~ a idhia não terá como idéia Quja realfçlade objetiva seja t-al que .me seja
causa outra idéía e assim S11cessivamcntc ao iníUli- absolutamente impossível imputar a s1H1 causa á
to? Resposta: esta regressão ê po.ssiVcl. mas, e:$ meu. exélusivo pen.sarnemo 7 Esta p01t1tío quaestianfs
ou tarde.,chega-se a umac:~usa que possul umareali- exige, poís. um,s novJ enumeraçâ.o .e classificação
dade " formal ou awar'. dos ~jvcr~os gàntros de ldéías.
U4 DESCARTES
concebo facilmente que _podem ser for- falsidade material 7 ", a saber, q_uru;1do
madas pela mistura .e composição de elas representam o que nada é como se
outras idéias que tenho das coisas cor- fosse alguma coisa. Por exemplo. as
idéias que tenho do calor e do frio são
porais e de Deus_, ainda que não hou-
vesse, fora de mim, no mundo, outros
tão pouco claras e tão pouco distintas.
que por seu intermédio não -posso dis-
homens, nem quaisquer animais ou cernir se o frio é s9mente uma priva-
anjos 72 • E quanto às idéias das co1sas ção do calor ou o calor uma privação
corpotaís, nada reconheço de tão _gran- do frio, ou ainda se uma e outra sao
de nem de tão excelente que não me qualidades reais ou não o são; e visto
pareça poder provir de mim mesmo~ que, sendo as idéias como que. ima-
pois, se as co~idero de ma.is perto. e g~n:s, não pode havernenhuma que não
se as examino da mesma maneira nos pareça representar alguma coisa.
oomo examinava.. há pouco, a idéia da se é certo dizer qu_e o frio nada é senão
cera, verifico que pouquíssima eoisa privação do calor, a idéia que mo
nela se encontra que eu conceba cla:u representa. como .algo de real e de posi-
e distintamente: a saber, a grandeza ou tivo será sem despropósito chamada
a extensão em longura, largura e falsa, e assim outras idéias semelhan-
tes; às quais certàlnente não é neces-
profundidade; a figura que é formada sário que eu atribua outro autor exceto
pelos termos e pelos limites dessa eu mesmo. Pois, se elas são falsas, isto
extensão; a situação que os corpos é~ se repre$entam coisas que não exis·
diferentemente figurados guardarn tem, a luz natural me faz c-0nhecer que
entre si; e o movimento ou a modifica- procedem do nada, ou seja, que estão
ção dessa situação ; aos quais podemos em mim apenas porque falta algo à
acrescentar a substância, a duração e o minha naLureza e -porque -ela não é ,,
número 13 • Quanto às outras coisas, inteiramente perfeita. E se essas idéias
como a Jaz. as cores, os- sons, os odo- são verdadeiras; todavia, já que me
res, os sabores, o calor. o frio e as ou- revelam tão pouca reallil-ade que não
tras qualidades que caem sob o tato. posso discernir nitidamente a coisa
representada do não-ser, não vejo
encontram-se em meu_ pensamento
razão pela qual não possam ser produ-
com LanLa obscuridade e confusão que zidas por mim mesmQ e eu não possa
ignoro mesmo s.e são verdadeiras ou ser o seu autor 7 5 .
falsas e somenle aparentes, isto é. se as
idéias que concebo dessas qualidades ' • cr. a nossa, nota ao § 9. Atém da falsidade for-
mal, qu.e é caso uo ;wze, Lemas a falsidade material.
são. com efeito. as idéias de algumas dev{da~ fàto de certas idéías(sensíveis) serem ape-
cois~ reais, ou ·se não me representam nas pseudo-iaéias. isto é, se .apresentarem falsa•
apenas seres quiméricos ,que não mente a mim como dotadas de UJ11 carâterre_preSCll·
ta11vo. Ma~ existirão. no semido esl.fllo, idéias
podem existir. Pois, ainda que eu tenha ~omp1etamentc fal$as _por natureza? N'"ao é -aqui o
notado acima que só no.s juízos é que lugar de deoidi, lo. O fim do parágrafq Jevar-'ltos-i
simplesmente a obsérvar que, mesmo gµe essas
se pode encontrar a fals,d.ade formal e ídéias fossem verdadeiras idéias. ooml?()rtam pelo
verdadeira, pode1 no entant-0, ocorrer menos um minimo ·de realidade objetivá e. como
que se encontre nas idéias uma certa tais, -po<leriÀill 1ru1ilo bem ser produzidas por mim
mesmp, t 11 única questão que rros interessa aqµi .
-, • Logo: B)Exdusão das ideias das qualidàdes sen
n Al Exclusãodas realidades "animadas" (no senti· síveis corpóreas. Em 525, Deseàrtes chama a a.ten,
visto queüo inclui
do não estritamente cartesiano, çõ de Oassendí para Q falo de nunca ler dilo que as
das ar; idéÍJl!l dos animai$). idéi~ dru. coisas ~síveLs dcuivavam ti.o espírito:
73 O exame Já~ idéia~ claras e dlstlntas'tias 0Qisa1,
"Somente mostrei naquele ponto JTào haver nela&
"corp0ra1s e 11Tamrnadàll'' é remetido ao parágrafo Qlllta realidade . que ~ dev;i. concluir que ela~
seguinte. não podiam llêrivar do espírilo só''.
MEDITAÇÕES 1!5
32. E não devo imaginar que as coi- maneira alguma das outras; e assim do
sas que me faltam são talvez.mais, difi- farn de ter sido um pouco antes não se
ceis de adquirir do que aquelas das segue que eu deva ser atualmente, a
quaís já estou de posse; pois, ao não ser que neste momento alguma
contrário, é bem certo que foi muito causa me prod:µza e tne crie, por assim
mais difícil que eu. isto é, uma ooisa ou diz.er,.novamente, isto é, me conserve.
uma substância pensante, baja saído 34_ Com efeito, é ama coisa muito
do nada, do que me seria adquirir as clara e mu_ito evidenreg.0 (para todos os
luzes e os conhecimentos de muilas que considerarem com atenção a naru~
coisas que ignoro, e que são apenas reza do tempo) que uma sub-stãncia,
acidentes dessa substância. E. assim, para ser conservada em todo$ os
sem dificuldade. se eu mesmo me tives- momentos de sua duração, precisa do
se dado esse mais de que acabo de mesmo poder e da mesma ação, que
falar. isto é, se eu fosse o autor de meu seria necessário para produz1-ta e
nascimento e de minha existência, eu criá-ta de novo. caso não existisse
não me teria privado ao roemos de .coí- ainda. De $Orte que a luz natural nos
sas que são de mais fácil aquisição, a mostra claramente que a conservação
saber. de mu1tos conhecimentos de que e a criação não diferem senão com res-
minha natore_za está despojada u; não peito à nossa maneira de pensar. e não
me teria tampouco privado de nenhu- em efeito. Cumpre, pois, apenas gue eu
ma d~ coisas que eslào contidas na me interrogue -~ mim mesmo para
idéia que concebo de Deus, pois não saber se possJo algum poder e algum a
há nenhuma que me pareça de mais virtude que seJa capaz de faz~r de tal
difícil aquisição; e sehouvessealguma, modo que eu, que sou 41gora, seja ainda
certamente ela me pareceria tal (su- no filluro: po.is, já que eu soa apenas
pondo que tivesse por mim todas as uma coisa pensante (ou ao menos já
que. pão se tr-ata até aqui precisamente
outras coisas que possuo}. porque eu
senão de~sa parte de mim mesmo), se
sentiria quentinha força acabaria neste
um tal poder residisse em mim, decerto
ponto e não seria capaz de alcançá~lo.
33. E ainda que possa supor que eu deveria ao menos pensá-lo e ter
talvez tenha sido sempre como sou conbecimeoto dele: mas não sinto ne-
nhum poder em mim 91 e por isso reco-
ag.ora 1t9 • nem por isso poderia evitar a
nheç-o evidentemente que dependo de
força desse raciocínio, e não de.oco de
algum ser dife.r~nte de mim.
conhecer que é neces:sário que Deus 35. Poderá também ocorrer que este
seja o autor de min.fia existênci~. Pqis ser de que dependo não seja aquiío que
lodo o tempo de minha vida pode ser chamo Deus e que eu se:ja produzido
dividido em uma in.flnidade de partes. ou por meus pais ou por outras causas
e.ada ama das quais não depende de
t\\ Cumpre justificar a equação i:.fl[re criação e
a.e ~ impossível. em vinude do princípio; '"Quem conservação. colocada ao fim do p.Jl'ágnúo anteriol'
pode o mais pode o menos'', Or.a, é mais dlfíci( cnar t sem a, qual a ref111a~o J.á não disporia de força.
uma sub,,fLÚJ1cia {mesmo linlta) do qqc attlbu.ir Mas 1rata,sc de um prínqpío ainda ímposto pela
pçrfoições que Jamais sãQ j\Ígc; exceto acidentes (of. dcscontin.uidade dos momentl)S do tempo.
G 23). 1-ogo. tomQ ,ião posi;o produi-it o menos (as •1 Cf. o § B. onde a hip6tese de uma faculdade
perfeições. de que tcoho id61a~. não posso produzi~ o daconb.cci.da não era repelida~ mas matava-se de
mais (ser o .autor do meu ser). A hipótese t absurda, uma faeultlalie "pr6pria para produz:ir idêtas~. e
8
" 13) Admitamos q1i~ cu exi$tâ sem causa. A 11qui trat&-$e de u.ma facultlitc!o-que poderia prodUút
desc<>atinuidade e a iruiependência dos momentos a mim próprio com meu. desçpolteoimento. Ora,
do tempo invalidam de promo esta hipótese, por· dado q11e cu aqui me considero ·sempre como .sendo
qu.aruo impllcam a necessliliulB paru mim de ser irada mal,t dt> que uma. coisapensame, tal hip6teseê
conservado. em cada instant-e, l)()r, 1tma causa. de.~sa vez inru:eitá,vel.
MEDITAÇÕES 1 l9
menos perfeitas do que ele92 ? Muito não pode haver progresso ·até o inSni~
ao contrário, isso não pode ser assim. to, p0sto que não se trata Lanto aqu.i da
Pols. como jâ disse anteriormente. é causa que me produziu outrora como
uma coisa evidente que deve haver ào da que me conserva presentemente.
menos tanta realidade na causa quanto
36. Não se pode .fingjr também que
em seu efeito. 13 portanto. já que sou
talvez muitas causas juruas tenham
uma coisa pensante., e tenho em mim
concorrido em parte para me produzir,
alguma idéia de Deus, qualquer que
e qu.e de uma recebi a idéia de uma das
seja. enfim, a causa que se .atrib.ua à
perfeições que atribuo. a Deus, e de
minha natureza. Cl.Jlllpre necessaria-
outra a idéia de alguma ot.1tra. de sorte
mente confessar que ela deve ser de
que todas essas perfeições se encon-
igual modo uma cois a pensanLe e pos-
tram na verd-aâe em algumà parte do
suir em ,sj a idéia de todas as perfeíções
Universo, mas não se acham todas jun-
que atribuo à natureza divina 93 • Em
seguida, pode-se de novo pesquisar se tas e reunida.s em uma só que seja
Deus. Pois, ao comrário.,, a unidade, a
e~a causa Lem sua origem e sua exis-
simplicidade ou a inseparabilidade de
tência de s i mesma ou de alguma outra
coisa. Pois se ela a tem de si próprta 9 4, todas as coisas que existem em Deus é
·segue-se, pelas razões q-ue anterior~ uma das princip~is perfeições que con-
cebo existentes nele; e por certo a idéia
mente aleguei, que deve ser. ela
mesmli, Deus: porquanto. tendo a vir~ dessa unidade e reunião de todas as
tude de ser e de existir por si1 ela dêve
perfeições de Deus não foi colocad-a
também.. sem dúvida. Ler o poder de em mim por nenhuma causa da qual eu
posso ir atualmenle todas as perfeições não haja recebido tambéIU as .idéias de
cujas idéias concebé. isto é. todas todas as outras perfeições. Pois ela não
aqu.elas que en concebo como existen- mais pode ter feho compreender juntas
tes em Deus. S-e ela tira sua existência e inseparáveis, sem fazer ao mesmo
. de alguma outra caus:a diferente de tempo com. que eu soubesse o que elas
si9 ti, tornar-se-á a perguntar, pela eram e 4ue as conhecesse a toçias de al-
mesma razão, a reSpeito desta segunda guma maneira 9 6 •
cau.sa. se ela é por sI, oa por outrem > 37. No que se refere aos meus pais,
I
ate que gr.adativamente se chegue a !9S quais parece, que devo meu nasci-
uma última causa que se verificará ser mento, ainda que seja verdadeiro tudo
Deus. E é muito manifesto que nisto quanto jamais pude acreditar a seu res-
peito, dai não decorre todavia que
u Segundo momento da prova: eu sei agora "que sejam eles que me conservam, nem que
dependo de algum ser dlferertte de mim'\ mas este me tenham feito e produzido enquanto
;;cr não poderá ser algo mais e)(é:el.o Deus'!
8: Invocação d() l)rin<:ipio de cau~alidade -e aplic-a- coi-sa pensante. poir:, apenas pus~rarn
çao ac, caso precedente. algumas disposições nessa matéria, na
1 • A) Esla c.au.s-a estranha exls.tc por si; ela deve.
portànfu, causar- se ton1 , lodas as perfeições ae que
qual julgo quQ eu. isto é, meu espírito
tenho idéia. Pçutanto, ela-é Dcu1.. - - a única coisa que considero atual-
1 5 B) "Esta causa é. por soa vez. prodnzidll por
mente como eu próprio - se acha
outra, mas é pessivel remontar assim lndofm.id.a-
cm.mie na sêne das ORüsas7 Não; aqui, não nos
encerrado~ e, portanto, não pode haver
11S11i$te ~ direito, pois_n~o ~'t: trata da eau$a que me aqui, quanto a eles, nenhuma diric-ul-
.iiroduz,u_(posro $ubs,sur sem osme-us--pais), mas da dade, Jnijs é preciso concluir necessa-
causa que me criou ou me oonse~a no ser a cada
ins.tante do tempo. Vem()S .quão- ligada se encontta riamente que, pelo simples fato de que
~a segunda pr~va à Idéia caí;.e~iana do tempo,
imposta _pel11 Física, {Cf. Gué.roult, op. ci1., 1, págs.
272-85.) 9• Cf. Col. cam Bumutn. A. l'., V. págs. 154-55.
120 DESCARTES
mim mesmo certa capacidade de jul- mpdo que não devo espantar-me se me
gaç, que sem dúvida recebi de Deus, do engano.
mesmo modo que todas as outras coi- 5. Assim, conheço que o en:o en-
sas que possuo; e como ele não quere- quanto tal ri.ão é algo de real que
ria iludi:r--me, é certo que ma deu tal dependa de Deus, mas que é apen_as
uma carência; e, portanto,. qne não
que não poderei jamais falhar, quando
a usa,r como é necessário. E não Testa-
tenho neccssjdade, para f&lhar, de
algum poder que me tenha sido d-ado
ria nenhuma dúvida quanto a esta -ver- por Deus particularmente para esse
dade, se não fosse possível, ao que efeito, mas que ocorre que eu me enga-
parece, inferir deta a conseqíiêncja de ne pelo fato de o poder que Deus me
que assim nunea me enganei; pois se doo-u para discernir o verdadeiro do
devo a Dew; tudo o que _po-ssuó e se ele falso não ser infinito em mim 1 0 5 •
não me deu nenhum poder para falhar, 6. Todavia. isto ainda não me satis-
parece que nunca devo enganar-me 1 o 4 • faz inteiramente' 0 6 ; pois o erro .não é
E, na verdade, quando penso apenas uma pura negação, isto é. não é a sim-
em Deus, não descubro em ptlm ples carência ou falta de alguma perfei-
nenhuma causa de erro ou de falsida- ção que me não é devida. mas antes ê
um a privação de algum conhecimento
de; mas em seguida, retornando a mim,
que parece que eu deveria possuir. B,
a experiência me ensina que estou, não
considerando a natureza de Deus, não
obstante., SQjeito a ama infinidade de me parece possível qu~ me tenha dado
erros- e, ao procurar de mais perto a alguma faculdade que seja imperfeita
causa cietes, noto que ao meu pensa- em seu gênero, isto e., à qual falte algu-
mento não se apresenta somente uma ma perfeição que lhe seja devida; pois,
ídéia real e positiva de Deu~ ou seja, se é verdade que, quanto mais um arte-
de um ser soberanamente perfeito, mas são é perito mais as obras gue saem de
também, por assim dizer, uma certa suas mãos são perfeitas e acabadas,
idéia negativa do nada, isto é, daquilo que ser imaginaríamos nós- que, produ-
que está infinitamente distante de t-0da zido por esse soberano c(iador de
sorte de perfeição; e que sou como que Lodas as eotsas não fosse perfeito e
um meio entre Deus e o nada, isto é, inteir.amente acabado em todas as suas
colocado de. tal maneira entre o sobe- partes? B por e~no não .há dúvida de
rano ser e o não~ser que nada se encon- que Déus só pode me ter criado de tal
tra e,m mim, na :verdade, que me possa maneira que jamais eu pudesse enga-
conduzir ao erro, na medida em que nar-me; é cerw também que ele quer
sempre aquilo que é o melhor: ser-me-
um soberano ser me produ.ziu; mas
á, -pars, mais vantajoso falhar do que
que. se me considero participante de não falhar 10 7 ?
alguma man·eira do .nada .ou do não-
set, isto é, na medida em que não sou
1o5 Estando o erro ,no homem devido ao fatt, de ele
eu _próprio o soberano ser, acho-me La-mbêm participar do nada e não sendo o nada
exposto a uma infinidade de faltas. de causa de nada (G 20), pode p.lll'CCer. que o erro fica
assJm cxpl icado e Deu$ desculpado .
1 0 • l>or quê7 É que~ erro nà() tstá em mim como
10
" B bo entanto t.'ll mil engano . . • _a a pr{lprm simple.~ Jalta de ~ r. conw .admite com de:ma~iada
colocação dQ wobleniá da Teodicéia: Deus, mw_ rapide.z a 11olução anterior. mas como )11lla "impcr·
criado[. é infinitamente perfeito; OTa. o erro e o mal feição positiva' ' , Não é uma simples ignorância,
existem tle fiuo; como d.cstutpar Deus. disso? A bem mas uma lgnorfu\cid ~uc eu dou por uma verdade.
dízer, o -problema.assim tolocado preocupá ,menb~ ~aiJ; do que umá ne%oçõo: uma pr{11u.çiio.
Oeseanes do que e-ste outro: c,omo, sa]yaguardando 10 7
O r~onhecimento dp erro como privação des,
definitivamente a veracidade de De11S. garantir loca o problema: já que Deus quer sempre o melhor,
dellnillva:menre a possifülidade ''do ton.b:ecimento será melhor que o homem tenha mio ·afeL-alio de
das OUtl!àii coisa., do Universo"? uma privação?
MEDITAÇÕES 1.25
7. Consiclerando isso com mais mesma coisa que poderia talvez,. com
atenção; ocorre-me inicialmente ao alguma forma de razão, parecer muito
pensamento que me não devo espantar imperfeita, caso estivesse inteiramente
se minha inteligência não for capaz de só, apresenta-se muito perfejta em sua
compreender por que Deus faz o que natureza, caso seja encarada como
faz e que àSsim não tenho razão algu- parte <te todo este Universo. E, embo-
ma de duvidar de sua existência, pelo ra, desde que me propus a tarefa de
fato de que~ talvez, eu veja _por expe- duvidar de todas as coisas. eu tenha
riêncfa muitas outras coisas sem poder conhecido com certez.a apenas minha
compreender por que razão nem como existência e a de Deus, todavia tam-
Deus as produ:du 108 • Pois, sabendo já bém, já que reconheci o mfmito poder
que minha natureza é extremamente de 'Deus, não poderia negar que ele não
fraca e limitada. e, ao contrário, que a tenha prõduzido muitas outras coisas,
de Deus é 1mensa, incompreensível e
ou, pelo menos, que não as possa pro-
infinita 1 0 9 • não mais tenho dificuldade, duzir, de sorte que eu exista e seja
em reconhecer que há uma infinidade
de coisas em sua poLência cujas causas colocado no mundo como parte da
ultrapassam o alcance de meu espírito. universalidade de todos os seres.
9. E .. em seguida, olhando·-me de
E esua única razão é suficiente para
persuadir-me âe que todô esse gênero mais perto e considerando quais são
meus erros (que apenas testemunham
de causas que se costuma tirar do
haver imperfeição em mim), descubro
fim não é de uso algum nas coisas físi-
cas ou naturais .. pois não me parece que dependem do concurso de duas
que eu possa sem temeridade procurar causas, a saberi" do poder de conhecer
e rentar descobrir os fins impenetráveis que existe em mim e ôO poder de eseo-
de Deus 110 • lher, ou sej~ meu livre arbítrio; isto é.
8. Demais, vem-me ainda ao espí- de meu entendimento e conjuntamente
rito que não devemos comiderar uma de minha vontade 1 1 2 • Isto porque, só
única criatura separadamente, quando pelo entendimento, não asseguro nem
pesquisamos se as obras de Deus são nego coisa alguma, mas apenas conce-
perfeitas, mas de uma maneira geral bo as idéias das coisas que posso asse-
todas as colsas em conjunto11 1 , Pois a gurar ou negar. Ora, considerando-o
as.sim precisamentet pode-se dizer que
10 1
l>rimeirQ argumento metafis.ico possrvel: i:ecur- jamais encontraremos nele erro algum,
so à incompreensibilidade de Ocos. Ela possibilira& de.sde que se tome a palavra erro em
tese: "0 efro p<>de ser bom sem " noSS() conlteci- sua significação própria. R, ainda que
mento °, cr. Pr:i11cíolos. m, 2.
1 uo Podemos. medir a diferença entre a linitxrde h.aja talvez uma infinidade de coisas
cartesiaru1 e a lirtítude kantiana, se advertil'IJJOS 1111c nesteJDundo das quais não tenho idéia
Kant poderia; escrever o primeiro membro desta
frase, mas nunca o segundo. alguma em meu entendimento~ nao se
' '° Fundamemaçiío mecafisica da exclusão das pode por isso dizer que ele seja privado
causas finais em Física- A respeito, tl C1:1I. com dessas idéias como de algo que seja de-
Burmart (A. 1'., V.., pãg. 1~8) e Princípios. l, .2&.
"Não devemQS presU1J1Ü: t&:11to de nós mesmos a vido à su:a natur°eza, mas somente que
l)Onto de crer que Deus nos quis:ei;sc participar seus não as tem; porque. com efeito. não b.á
conselhos , ,. razão alguma capaz de provar qoe
1 11 Segundo argumenco metafísico possível: o que
eu pet(!ebo -como imperfeição só é verdade em rela· Deus devesse dar-me uma faculdade de
çâo a mim e não ao conjunto do Universo. Ar~- conhecer maior e mais ampla do que
mcnto que se inscreve nà linha das teodicéias clássb
cas dos estóicos e de Santo Agostinho alé Leibniz
(e, se se quer, até es:sas LeodicP.ias modernas que.são 1 2
' Recurso ao exame das faculdades psiool61l.icas.
o hegelianismo e õ marxismo). D~ve-se observar Será su.cessivamente rn_osttado que, nem a presença
que, apelando es1e llrgwncnto pàra a idéia de Uni- cm mim do entendimento, nem a da vontade, me
vi;rso, ê n ~o tornar o recurso a esra eompa- alltorizaD'\ a queixar-me de uma _privação qualquer
tível com a ordem, neste lugar. e. portanto, de uma imperfeição em Deus.
126 DESCARTES
a(l)lela que me deu; e, por )1ábil e enge- sinto .ser em mim tão grande, gue não
nhoso operário quê eu mô represente, concebo abs_olutamente a idéia de
nem por isso devo pensar que devesse nenhuma outra mais ampla e mais
pôr em cada uma de suas obras todas extensa: de sorte que é principalmente
as perfeições que pôde pôr em algu- ela que me faz conhecer que eu trago a
mas>Não posso tampouco me lastimar imagem e a semelhança de Deus. Pois,
de que Deus não me tenha dado llJll ainda que seja incomparavelmente
livre arbítrio ou uma vontade bastante maior em Deus do que em mim, quer
ampla e perfeita, visto que, com efeito, por causa do conhecimento e do poder,
eu a experimento tão vag:a e tão exten- que, aí se encontrando juntos, a tor-
sa que ela não está encerrada em a am mais firme e mais eficaz, quer pôt
quaisquer limites 1 ,'3_ Bo que me pare- c~usa do objeto, na medida em que a
ce muito notável neste ponto é g_ue, de vontade se dirige e se estende infinita-
todas as outT~ coi~as existente,s em mente a mais cor.sas; ela não -me pare-
mim~ não há nenhuma tão perfeita e ce, todavia, maior se eu a con~idero
tãt> extensa que eu não reconheça efeti- formãl e preci$amente nela mesma 11 6 •
vamente que ela poderia ser ainda Pois consiste somente em que podemos
maior e mais perfeita, Pois. por exem- fB'.Zer uma coisa ou deixar defa:zer (isto
plo. se considero a faculdade de conce- é, afirmar ou negar, perseguir ou fugir)
ber que há em mim, acho que ela é de ou. antes, somente em que, para afü-
uma extensão muito pequena e grande-- mar ou negar, perseguir ou fugir às
mente limitada e, ao me,Sfilo tempo, eu coisas que o entendimento nos propõe.
me represento a idéia de uma outra agimos d.e tal maneira que não senti-
faculdade mnito mais ampla e mesmo mos absolutamente q!lf alg1.µ na força
infinita; e, pelo simples fato {ie qlle me exterior nos obngue a lanto 1 1 7 • ..Pois,
posso 1·epresenta,r sua idéia, conheço para que eu seja livre, não é necessário
sém tlilicufdade que ela pertence à que eu seja m.diferente na es_colha de
natureza ae Deus. Da mesma manei- um ou de outro dos dois contrários;
ra 1 1 4 , se ex~ino a memória ou a mas antes:. quanto mais eu pender para
imaginação, ou qualquer outro pcx!er, um , seja porque eu conheça· evidente-
não encontro nenhlllll que.não seja em mente que o bom e o verdadeiro aí se
mim muito pequeno e limitado e que encontr004 seja porque Deus disponha
em Deus não seja imenso e infinito 1 1 5 • assim o interiQr do meu pensamento.
Resta tão-somente a vontade, que eu tanto mais livremente o eS(..'-Olberei e o
abraçarei. E certamente a graça divina
' , a Noca-se que a 'infinidade da vontade ê primeíro
evocada quanto câ. gr andeza: "Não se encontra
eo<:errad.a em quaisquer limítei.. . a ldéiá éle 01füa ' 16 Passagem_ que significa: a vontade marca a
mais ampla e mais extensa", 1l. por aí, .corn efeito, minha sem1;Than~a com Deus, menos i,or líer elca
qoa el11 mais difere do entendimento. par;1 o qual bá ioíu,ila em grl!lldeti (pois este infinito: ainda é ape.-
coisas inoognQ~cíve1s de direito (o cpnteúdo do infi- n.ás indefi'o ido com rei;i,éito a D,eus) do que pôr !;llTt
nilõ em U eus). Nele tanto quanto em mim. poder absoluto do sim e
11 • Esta passagem guererá dizer que, a finitude.do do oào.
entce'ndimenlo é dQ mesmo g_ênero que a da imagina- , i 7 .ijsse poder absoluto nunca está mais próximo,
ção? Guêroult nega e obs~rva (o'{l. ·c it.. págs. no homem·. d~oelc que há em Deus, do que ao ser
328-29) que, se.a tmítude d11 unagínaçào é c.orporà1, ele iluminado pelo entendimento. Eis por q~e
a do ~tendimento é antes uma !!lndefinitudc-": Importa dislingulr aqui e.sta "potência real e po$Í·
.nosSQ conhecimenLo j)Qde aumeruai: ''.gradativa- lfva de se determinar" que Déus nos Cónc~u da
µient.e atê o .in:fm.iro". o que coo-stitl;li. -uma. espécie de « irttlifer~nça11, estaêlo no qual. a vontp.de, não sendo
finirude em face da.infinllude positiva de Deus. iluminada por nennuma razão num ou noutro senti-
1 1 • É uma manelr.a de. falilr, pois, a memória (que do. escá afastada ao máximo dâ ,de Deu.s. éf. Car-
i;upôé a sucessàQ temporal) e a imaginação- (que tas, a Mesland, 2 de maio de- 164.4. Esta "indife-
supõe a união a um corpo) nio si: encontram em rença" l)OSSÍveJ da vóntade humana deseml)Cllhará
Deus. papel decisivo nCI parágrafo .sçguinte.
MEDITAÇÕES l27
dimento não tem nenhum conheci- me deu uma inteljgência mais capaz,
mento, mas geralmente também a ou uma 11.lz natural maior do que aque-
todas aquelas que ele não descobre la que dele recebi, posto que, com efei-
com uma clareza perfeita no momento tQ, é próprio do entendimento _ finito
em que a vontade delibera sobre ela:s; não compreender uma infinidade de
pois, por prováveis que sejam as conje- coisas e próprio de um entendimento
turas que me tornam ínGlinado ajulgar criado o ser finito: mas tenho todos os
alguma coisa, o tão-só conhecimento motivos de lhe render graças pelo fato
que tenho de ,que são a-penas conjetu- de que, embora jamais me devesse
ras e não razões certas e .indubitáveis algo, me tenha dado, não obstante,
~asta para me dar ocasião de julgar o todo o pouco de perfeição que existe
contrário. Isto é o que experimentei emvnim; estando bem longe de conce,,
.suficientememe nesses dias passados. ber sentimentos tão injustos como o de
ao est_abelecer como falso tudo o que imaginar que ele me tirou ou reteve
tivera antes como muito verdadeiro, injustamente as outras perfeições que
pelo simples fato de ter notado q11e .se nãa me deu_122 . Não tenho também
podia duvidar disso de alguma manei- motivo de me lastimar do fato de me
Ta. haver dado uma vontade mais ampla
13. Ora, se me abstenho de formu- do que o entendimento, uma vez que,
lar meu jwzo sobre uma coisa, quando consistindo a vontade em apenas uma
não a concebo com suficiente clareza e cois~ e sendo seu .sujeito como qne-
distinção, é evidente que o utilizo indivísivel, parece que soa natureza é
muho bem e que não estou enganado; táJ que dela nada se poderia tirar :sem
n:tas~ se me determino a negá-la ou -a destruí-la; e, certamente:'quanto maior
assegurá-la, então não me sirvo como for ela, mais tenho que agradecer a
devp de meu livre arbítrio; se garanto o bondade daqµele que ma deu1 23 • E,
que não é verdadeiro, é evidente que enfim, não devo também lamentar-me
;me engano, e até mesmo, ainda q.ue jul~ de que Deus concorra comigo para for-
gue segundo a verdade, isto não ocorre mar os atos dessa vontade, isto é; os
senão por aca~o e eu não deixo de fa- juízos nos quajs eu me engano, porque
lhar e de utilizar mal o meu livre arbí~ esses atoS são inteiramente verdadeiros
trio; pois a lu'Z natural nos ensina que e absoJutamente bons na medida em
o conhecfrnento do entendimento deve que dependem de Deus; e bá, de algu-
sempre preéeiler a determinação da ma forma. mais perfeição em minha
vontade. E é oeste mau uso do livre natureza, pelo fato de que posso
arbítrio que se encontra a privação que formá-los~ do que .se não o pudesse 1 2 4 •
constitui a fornra do erro 121 • A priva- Quanto à pri-v:ação, que consiste na
ção, digo, encontra-se na operação na única razão formal do erro e do peca-
medida em que procede de mim; mas do, não tem necessidade de nenhum
eta não se acha no poder que recebj de concurso de Deus, já que não é uma
Deus, nem mesmo na operação na me-
dida em qoe ela depende dele. Pois 11ão
' 22 a} A finitude de me11 entendime:t1to não pode
tenho certamenle nenl1um motivo de ser imputada a Deus como uma imper.feiçao. Cf.
me las:timar pelo fato de que Deus não 1'ri11c(plos r, 36.
1 2 ~ b) QiqmtQ à vontade, não s6 não tenho por
que ~onsiste a maior e principal perfei~ preciso concluir gue uma t-aJ concep-
ção do homem, conSJdero não ter ção ou um taljuízo é verdadéiro 1 n.
ganho pouco com esta Meditação, ao l7. De resto; não somente aprendi
haver descoberto a causa das fulsida- hoje o que devo evitar para não mais
des e dos. erros. falhar, mas também o que devo fazer
J6. E , certamente, não pode haver para chegar ao conhecimento da ver-
outra além daquela que expliquei; pois, dade. Pois, certamente, chegarei a
todas as vezes que retenho minha von- tanto se demorar suficientemente
tade nos limites de meu conhecimento,
minha ate_nçâo .sobre todas as coisas
de t~ modo que ela não formule jµíz.o que conceber perfeitamente e se as
algum senão a respeito das coisas qJJe separar das outras que não com-
pr-eendo senão com confusão e obscu-
lhe são clara e distintamente represen~
ridade. E disto, doravante, cuidarei
tadas pelo entendimento, 11ão pode
zelosamente.
ocorrer que eu me .engane; porque toda
concepção. clara e distinta é sem dúvi- , 2 & Dai a oitava verdade: as ldêias claras e dist.in,.
da algo de real e de positivo. e p.ortanto tas têm um valor objetivo imediatamente certo. A
não pode ter sua origem no nada, mas reg.-a segunda a qual ''todas as coisas que conce-
bermos muito clara e muito dilrtíntamente são
deve tei: necessariamente Deus como verdadeiras", que obtive por reflexão sobre o Cogi~
seu autor; Deus; digo, q_ue. sendo sobe- ta, Jll) começo da Meditação Terceira(§ 2), é agora
objetivamente validàda. D9ravante, não mais preci-
ranamente pettê!•o, não pode ser causa sarei efetuar o C<JP,o a fim de provar a verdade
de erro algum; e, por conseguínte. é dessa.regra; bastará lembrar-me dela.
M"EDITAÇÀO QUINTA13 º
por mim, conquanto esteja em minha tudo o que é ve~dadeiro é alguma coisa
liberdade pensá-las ou não pensá-las~ e já demonstrei amplamente acima que
mas elas possuem suas naturezas ver- todas as coisas que conheço clara e
dadeiras e imutáveis. Como, por exem- distintamente são verdadeiras. E, con-
plo, quando imagino um triângulo, quanto não o tivesse demonstrado,
ainda que não haja talvez em nenhum todavia a natureza de meu espírito é tal
lugar do mundo, fora de meu pensa- que não me poderia impedir de julgá-
mento, uma tal figura, e que nunca las verdadeiras enquanto as concebo
tenha havido alguma, não deixa, entre- clara e distinlamente19 5 • E me recordo
tanto. de haver uma certa natureza ou de que, mesmo quando estava ainda
forma. ou essência determinada, dessa fortemente ligado aos objetos dos sen-
figura. a qual é imutável e eterna, que tidos, tivera entre as m,ais constantes
eu não .inventei absolutamente e que verdades aquelas que eu concebia clara
não depende, de maneira alguma, de e distintamente no que diz respeito às
meu espírito; como parecet pelo fato de figuras, aos números e às outras coisas
que se pode demonstrar diversas pro- que pertencem à Aritmética e à Geo-
priedades desse triângulo, a saber, que metria. . ~
os três ângul'!s são iiuais a dois re~s, 7. Ora. agora 13 6 ,.se do simples lato
que o maior an-gulo e oposto ao maior de que posso tirar de meu pensamento
lado e outras semelhanteS, as quais a idéia dé alguma coisa segue-se que
agora, quer oueira, quer nã(), reco- tudo quanto reconheço pertencer clara
nheço mui claramente e mui evidente- e distintamente a esta coisa per.tence-
mente estarem nele. ainda que não lhe de fato, não posso tirar disto um
tenha antes pensado nisto ele maneira argumento e uma provl. de.monstrati~a
alguma, quando imaginei pela primeira da existência de Deus? E certo que nao
vez um triângulo; e, portanto, não se ertcontro menos137 em mim sua idéia,
pode' dizer que eu as tenha fingido e isto é, a idéia de um ser soberanamente
inventado. perfeito, do que a idéia de qualquer õ-
6. E aquj só posso me objetar que gw-a ou de qualquer número que seja.
talvez essa ídéia de triângulo tenha E não conheço menos clara e distinta-
vfudo ao meu espírito por intermédio mente que uma existência atuaJ e eter-
de meus sentidos, porque vi algumas na pertence à sua natureza do que
vezes corpos de figura triangular; pois conheço que tudo quanto posso d~
posso formar em meu espírito uma monstta.r de qualquer figura ou de
infinidade de outras figuras, a cujo res- qualquer número perten~e verdadeira-
peito não se pode alimentar a menor mente à natureza dessa figura ou desse
suspeita de que jamais tenham cafdo número. E, portanto, ainda que tudo o
sob os sentidos e não deixo, todavia, de que concluí nas Meditações anteriores
poder demonstrar diversas proprie~
dades relativas à sua natureza, bem 3
' • Retorno ao plano da "nau.ire-ia" - o da.Medi·
como à do triângulo: as quais devem lação Prjmeira - , onde me é imposs(vel duvídar de
ser certamente todas verdadeiras, visto fa/Q de uma verdade matemática quando ela se me
-llpl'C6enta atualmente.
que as concebo claramente 1 3 4 • E t por-
tanto, elas são alguma coisa e não um u • "Atora" = depois que estamos metafisica-
menLC eertos do valor objetivo das idéias claras. -e
puro nada~ pois é muito evidente que distinlas.
u , Notar a partir dai os ''não i;nenos" e "ao
menos"! a ~istência de Deus, lc:givd em sua essên-
1 ~ • As id6ias das essências matemáticas não são,
cia, não é meno:r certa do que as verdades 111aremá-
portanto, .simuladas nem provenientes do sensível(§ ticw;, mas tamPQUCQ o é llials. Devemos- rolocã-là
6). cr. 543". Bnquanto ídéias claras e: distinta&; no mesmo plano que essas verdaôes ~senciais quê a
correspo11dem, p()js, a algo. dúvida 111).1.ural não conseguia abalar.
MEDITAÇÕES 133
não fosse de modo algum verdadeiro, a 8. Mas, ainda que, com efeito, eu
existência de Deus deve apresentar-se não possa conceber um Deus sem exis;,.
em meu espírito ao menos como tão tência., tanto quanto uma montanha
certa quanto considerei aLé agora todas sem vale, todavia, como do simples
as verdades das Matemáticas, que se fato de eu conceber uma montanha
referem apenas aos números e às figu - com vale não se segu~ que haja qual-
ras1 38 : embor~ na verdade, isto não quer montanha no mundo, do mesmo
pareça de início intejramente mani- modo, embora eu coneeba Deus com
festo e se afigure ter alguma aparência existência, parece não decorrer daí que
de so(~ma. Pois. estando habituado haja algum Deus existente: pois me1,1
em todas as outras coisas a fazer dis- pensamento não impõe âecessidade al-
tinção entre a existência e a essência.
persuado-me facilmente de que a e~s- guma às coisas; e como s6 depende de
tência pode ser separada da essência miro o imaginar um cavalo alado,
de Deus_ e de que, assim, ê possível a.inda que não baj.a nenbum que dispo-
conceber Deus como não existindo nha de asas. assim eu poderia, Lalvez,
atualmente. Mas, não obstante, quan- atribuir existência a De-us, ainda que
do penso nísso com maior atenção, não houvesse Deus algum existen-
verifico claramente que a existência té 1 40 • Mas não é assim, é que aqui há
não pode ser separada da essência de um sofisma escondido sob a aparência
Deus, tanto quanto da essência de um desta objeção: P5>is pelo fato de que
triângulo retilíneo não pode ser sepa- não posso oom!êber uma montanha
rada a grandeza de seus três ângulos sem v,ale não se segue que haja monta~
iguais a dois retos ou~ da idéia de uma
montap-ha,. a idêia de um va1ej d~ sorte nha alguma uem vale algum, mas
que nao smto menos repugnanc1a em somente que a montanha e o vale, quer
conceber um Deus (isto é, um ser s<;>be- existam quer não, não pode.m, de
ran ament~ perfeito) ao qual falte exis- maneira algum~ ser separados um do
tência (isto é. ao qual falte alguma outro~ ao passo que, do simples fato de
perfeição), do que em conceber llrQa eu não poder conceber Deus sem exis-
montanha que rrào tenha vale 139 • tência, segue-se que a existência lhe é
inseparável, e, portanto, que existe
13 ª Hà ume certua dá exisreneia de Deus que é do verdadeiramen~e': não que meu ~sa-
mesmo tipo que a certeza e~'.P()ntânea e íngçrtwi q_ue rnento possa fazer que isso seja assim,
se atribui às verdades matcmétícas. ~ esta certeza e que imponha às coisas qualquer
que <>rl\ podemo~ validar, assim como vaUdamos a
certtta matemática: em nome do pr1ncípi(l do valor necessidade; mas, ao contrário. porque
objetivo dias idéias clai:as e distintas. Por isso, a a necessidade da própria coisa, a
"_prnva ontológica" situa-se em plano diverso do saber, da existência de Deus, deter-
das duas outras provas (o úuo de se encontrar em
outra Meditação basta J>Utª lndicá--lo) e- é depen- mina meu pensamento a concebê-lo
dente ·cm relação a el3$ na o r ~ dà5 fil7.Ões dessamaneira. Pois11ão está em minha
meuúisic..as. liberdade conceber um Deus sem exis-
'u Sobre a imag.cm da montanha e do vale: "~ao
1emosnen.hwna outra razão para.assegur.ar que não tência (isto é, um set soberanamente
báj11 absolutamenle montan~ sern vale, exce1o·que perfeito sem uma soberana perfeição),
vemos w im_poss{vcl completar $Ua5 idêia.s quando
os consideramos -um sem o outro, embora possas como me é dada aJiberdade de imagi-
mos, -po1 11.bsu:ação. rer a idêi.8 de uma monwJiaou nar um cavalo sem asas ou com asas.
de um lug.or pelo qual subimos de &aiito _para cima
sem con.si,d erar que ~ pos~a ~sar por aí m1:1smo de
cima PílTa baixo". (A Glbiouf. 19 de janeiro de Ho Segunda objeção possível: nào se lratarã
1642.) Primeira obJeção possível a esta nova prova somenle de uma existência em Idéia no meu pensa-
da existência de Deus: posso conceber Deus como mento? Resposta; em minha idéia de Dé\ls, cu pér-
não eKisten(e-'l RtliJ)O~B: a idé,iá da essênci~ de cebç) <\ ligação da existência com a essência eorno
Deu, é inseparável de sua existência assim como ~ n:l11ção de essência necessária que se fmpõe ao
"em todas as outras coisas". meu espfrito.
Ll4 DESCARTES
9. E não se deve dizer aqui que é,na jamais eu imagine triângulo algum;
verdade, oeces.sário cu confessar que mas todas as vezes que quero con.sjde-
Deus existe após ter suposto que ele rar uma figura retilínea composta
possui lodas as sortes de perfeições, somente de três ângulos é abspluta-
posto que a ~xistência é uma delas, mente necessário que eu U1e atribua
mas que, com efeito, minha primeira rodas as coisas que servem para con-
suposição não era necessária; da clµir que seu~ três ângulos não são
mesma maneira que não é necessário maiores do que dols Ieto$, ainda que
pensar que todas as figuras de quatro talvez não considere então isto em
lados podem inscrever- se no círculo, particular. Mas quando examino que
mas qi.le, supondo que tenho este üguras são capazes de ser inscritas no
pensamento, sou obrigado a confessar círculo, não é de mane1ra alguma
qu.e o romb6ide pode inscrever-se no necessário que. eu pense que todas as
circulo, já que é ama figura de quatro figuras de quatro lados se encontram
lados; e, assim, serei obrigado a con- neste rol~ pelo contrário. nem mesmo
fessar uma coisa falsa1 4 1 • Não se posso fingir que isso ocorra enquanto
deve, digo, àlegar isto: pois, ainda que eu nad-a quiser receber em meu pensa-
não seja necessário que eu incida ja~ mento que não possa conceber clara e
maís em algo.m pensamento de Deus, distintamente, E, por conseguinte, há
todas as vezes, no entanto, que me uma grande dife'f'ença entre as falsas
ocorrer pensar em um ser primeiro e suposições_, como essa, e as ver;da-
soberano, e tirar, por q5sim dizer, sua deiras. idéias que nasceram comigo e,
id~ia do tesouro d~ meu espírito, é dentre as. quais, a primeira e _principal
necessário que eu lhe atribua todas as é ade Deus.
espécies .de perfeição. embora eu não 10. Pois, com efeito, reconheço de
chegue a enu.rnerá-las todas e a aplicar moitas maneiras que esta idéia não é
minha ate.nção a cada uma delas em dç modo algum algo firtgido ou inven-
particular. E esta necessidade é sufi- tado, que dependa somente de meu
cíente para me fazer concluir (depois pensamento, mas que é a imagem de
que :r:econheci ser a existência uma uma natureza verdadeíra e imutável.
perfeiçã0 1 4.2 ). q_ue este ser primeiro e Prímeiramente. porque eu nada pode-
soberano exi'ste verdadeiramente: do ria conceber, exceto Deus só, a cuja
mesmo modo que não é necessário que essência a existência pertence com
necessidade. E 1 em seguida. também,
1 •i Terceira objeção possívd: concedendo a Deus
porque não lhe é possível conceber
lôdas .as perfeições., não leria parli'db ~ uma falsa
suposição que totnacia minha ooncl.1lsâo caduca?
dois ou muitos deuses da jllesma
RespQsla:·esta ~\IJ)Osiçâo não é$fatuic.a: ela se ÜIJIÍ· maneira. E, posto que há um agora que
ta a tornllf explícito o conteúdo m~mo da essência existe, vejo claramente que é neces-
de Deus, tal como esca se acha preseoce em meu
espiüto. Do mesmo modoe "Se eu ~nso em um sário que ele tenha existid-o anterior-
triângulo, então penso cm uma figura-onde a soma mente por toda a eternidade e que exis-
dos ânguJQS é igual a \iois ;etos" ta eternamente para o futuro. "E, enfim,
, _.a Bsre pressuposro é que será recusado por Kant
e
em ,Su_a critica prov11 ontológica: a existência não porque conheç-0 tuDa infinidade de ou-
é um.a lfJerfe~ção que pertertç~ ao conceito. Compre, tras coisas em Deus, das quais nada
todavlá, observar que Descartes oâ1;1 tira a exib-
têncta de Deus da idéia que eu Lenho dele, Depois de
posso ditninuir nem mudar.
cstabelecerql.lll·a idéia de Deus corresponde a uma 11. De resto, de qualque11 prova e
essencia. mostra que, esLando cu alentoJJ esJQ ess.ên· argumento que eu me sirva, cumpre
eia (já -nãQ se trata da ídêia como rêpresentaçâo d.a
e:,sência), perceoo nela necessariamente a existên- sempre retornar a este ~ponto, isto é.,
cia. que são somente as coisas que concebo
MEDITAÇÕES 135
clara e distintamente que têm a força natureza que, tão logo compreenda
de me persuadir inteiramente. E; embo- algo bastante clara e distintamente,
ra, entre as coisas que concebo dessa sou naturalmente levado a acrecfüá-lo
maneira, baja na verdade algumas verdadeiro; no entanto,já que sou tam-
manifestamente conhecidas d.e qual- bém de tal natureza que não posso
quer, e naja outras também que não se manter sempre o espírilo ligado a uma
reve]am senão àqueles que as conside- mesma coisa. e que amiúdeme recordo
ram de mais perto e que as examinam de te, ju1gado uma coisa -verdadeira,
mais exatamente; todavia. uma vez quando deixo de considerar as razões
descobertas, não são consideradas que me obrigaram a julgá-la dessa
menos certas umas do que as outras. .maneira. pQde acentecer que a esse fu ..
Como, por exemplo, em todó triângulo terim outras razões se me apresentem,
retângulo, ainda que .não pareça tiio as quais me fariam facilmente mudar
facilmente, de início, que o quadrado de opinião se eu ignorasse gue há um
da base é igual aos quadrados dos dois Dea.s 1 ·4 4 • E, assim, eu.jamais teria uma
outros lados~ como é evidente que essa ciência verdaderra e ,certa de qualquer
base é oposta ao maior ângulo, não coisa que seja.,_ mas somente opiniões
obstante, uma VC'l. que isto foi reconhe- vagas e inconstantes.
cido, ficamos persuadidos t-anto da 14. Como, ,..por exemplo. quando
verdade de um como da de outro. E no considero a natureza do triângulo,
que concerne a Deus, cenamente, se conheço evidentemente, eu que sou um
meu espÍtito não estivesse prevenido pouco versado em Geometria, que seus
por quaisquer prejuízos e se meu pen- três ângulos são iguais a dois retos e
s~ento não se encontrasse distraído não me é possível não acreditar .nisso
pela presença éontínua das imagens enquanto -aplico meu pénsa.meoto à sua
das coisas sensfveis, não haveria coisa demonstração; mas. tão logo eu o desr
alguma que eu conhecesse melhor nem ·vie :dela, embora me recorde de t-ê--la
mais facilmente do que ele. Pois have- claramente compreendido, pQde ocor-
rá algo por si mais claro e mais mani- rer facilmente que eu duvide de sua
festo do que pensar que há um Deus, verdade caso ignore gue há um
isto é, um ser soberano e perfeito, em Deus'" 5 • Pois posso persuadir·me de
cuja idéia, e somente nela. a existência ter sido feito de taJ modo pela- natureza
necessária ou eterna está incluída e> que possa enganar-me facilmente,
por conseguinte, que existe? mesmo nas coisas que acredito com-
12. E, conquanto, para bem conce- preender com mais evidência e certeza;
ber essa verdade, eu tivesse necessitado principalmente. visto que me lembro
de grande aplicação de espírito, pre- de haver muitas vezes estimado muitas
sentemente. todavia, estou mais seguro 1 • • Compreende-se aqui por que a rrova ontoló-
dela do que de tudo quanto me parece gica. em relação. às ouu:~ pão é apenas uma prova
mais certo: mas, atém disso, noto q_ue a a mais; ela nos fóm,;ce imedía1amente 110 plano·da
ceneza de todas as outras coisas dela ·~81Ul'ez;1''. isto é, da Psicologia, à certeza de~que
Deus existe eumtamertte. Poupa. assim, o com:ta:nre
depende tão ahsoJutamente que, sem Tecurso às dillceis provas a priori. O raciocínio
esse conhecimenlo, é imPQssívet jamais matemáti<:4), por exemplo, está asse&urado, sem que
conhecer algo per.feitamente 1 4 3 • eu tehh'a nece~idade, ao ilfet~I01 de reativar as
13. Pois, ainda que eu seja de tal "razões" ~ ,Meditação"terceira.
1 • e As _provas a priori garantem a evidência atual
(é nisso que desempenham papel primordial clndls-
••J Diferença e.ntte a essênoia de l)eus.e as e$sên- pensâvel); a prova (llltológica: assegura li lembranÇ;l
cias matcmfüicas: aquela pQde garantir -li certeza. das evidências. Cf. o COIJ!entárii:> feito nas.Segunda.r
dcitAs. Respostas. 222.
I.J6 DESCARTES
couras €orno veráadeiras e certas, que, pelá qual me certifico da -verdade, era
em seguida, outras razões me levaram levado a acreditar nelas por ratões que
ajulgar absolutamente fals~ reconheci depois serem menos fortes
15. Mas, após ter reconhecido do que então imaginara. O que mais
haver um Deus, porque ao mesmo poderão, pois, objetar-me? Que talvez
tempo reconheci também que todas as eu durm.a (como eu mesmo me objetei
coisas dependem dele e que e!e não é acima) ou q ue todos os pensamentos
enganador, e que, em seguida a isso, que tenho atualmente não são mais
julguei que tudo quanto concebo clara verdadeiros do que os sonhos que una-
e distintamente-11ão pode deixar de ser gio amos ao dormir? Mas. mesmo que
verdadeiro: ainda que não mais pense estivesse dormindo, tudo o que se apre-
nas razões pelas quais julguei tal ser senta a meu espírito com evidência é
verdadeiro. desde que me lembre de absolutamente verdadeiro. E, assim,
tê--lo compreendido clara e distinta- reconheço muíto claramente que a cer-
mente. ninguém pode apresentar-me teza e a verdade de toda ciên.~ia depen-
razão co·ntrária alguma que me façaja- dem do tão-só conhecimento do verda-
mais co1ocá-lo em dÚvida: e. assim. deiro Deus: de sorte que, antes que eu
tenho dele uma ciência certa e verda- o conhecesse, não podia saber perfeita-
deira. E esta mesma ciência se estende mente ne'nhllJl1a outra coisa. E. agora
também a todas as outras coisas que que o conheço, tenho o meio de adqui-
me lembro ter outrora demonstrado, rir uma ciência perfeita no tocante a
como as verdades da Oeometría e ou- uma infinidade de coisas, não somente
tras semelhantes: pois, que me poderão das que existem nele mas também das
objetar, para obrigar-me a colocá-las que pertencem à natureza corpórea, na
em duvida'! lJjr-me-ão que minha natu- medida em que el.a pode- servir de obje-
reza é -tal-Que sou muito sujeito .a enga- to à~ .demqnstrações dos geômetras, os
nar-me? Mas. já sei que me não posso quais não se preocupam, de modo
enganar nos juízos ~ujas razões conhe- à.lgum, com sua existênci.a 1 4 6 •
ço claramente. Dir-me-ão que outrora
tive multas coisas por verdadeiras e 1 4 ;; Esta Medit&9âo Quinta contém II nona verdade
certas, a·s quais mais tarde teconbeci da ordem dllS'raz.ões: temos certeza absoÍuta de que
serem.falsas? Mas eu não haviacônhe- as -propriedades du essências sàQ as propriedades
das coisas e. no que eenceme.à essência de Deus; de
cido clara nem distintamente tais coi- que ~ está inscrita ir Cl'istê:ocia necessária. portanto
c:as e, não conhecendo ainda esta regra eterna.
.MEDTfAÇ AO SEXTA 1 47
mente presente e, ponanto, que exis- esta helecem a diferença entre o quilió-
te' s1 gono e os demais poligono;, 1 r. 2
2. E. para tornar isso mais mànÍfe..
to, noto primeiramente a dife-rença que 3. Quando se trata. ae considerar
há entre a imaginação e a pura intelec- um pentágono, é bem verdade QUt
ção, ou concepção. Por exemplo, quan- ' posso conceber sua figura. assim come
do imagino um triângulo, não o conce-
bo apenas como uma figura composta a. do quiliógono, sem o aux.Hío da
e determmada por três linhas, mas, imaginação; mas posso também imagi-
além disso, considero essas três linhas ná-la aplicando a atenção de meu espí-
como p,reseDles pela IÓrça e pela apli- rito a cada um de seus cinco Jados e,
cação interior de meu es_pírito; e é
ao mesmo tempo, à área ou ao espaço
propriamente tsso que citamo imagi-
nar. Quando quero pensar em um que eles encerram. Assim. conheço cla-
quiliógono, concebo na verdade que é ramente que tenho necessidade de par-
uma figura composta de mil lados tão ticufar contenção de espírito (>ara ima-
facilmente quanto concebo que um ginar, da qual não me sirvo
triângulo é uma figura composta de
apenas três lados; mas não posso ima- absolutamente para cunceoer1 63 ; e
ginar os mil lados de um qufüógono esta _particular contenção de espírito
como faço cem os t:rê_s lados de um mostra evidentemente a diferença que
triângulo, nem, por assim dizer, vê-Tos há entre a imaginaçãó e ·a mtelec~ão.
como presentes com os olhos de mea ou concepção pura.
espírito: E conquanto, segundo o cos-
tume que tenho de me servir sempre de 4. Noto, além disso, que esta virtu-
minha imaginação. quando penso nas de de imaginar QUé existe em mim. na
coisas c~rpóre~, ocorra que, conce- medida em que difere do poder de con-
bendo um quiliógono, eu me represente
ceber, não é de modo algum necessãria
confusamente alguma figura, é, toda-
via, evidente que essa figura não é um à minha .natureza ou à ntinba essência,
qtiiliógono, postq que em nada difere isto é, à essência de meu espírito; pois,
daquela que me representaria se pen- amda que oao a possuísse de modo
sasse em um miriágono, ou em qual- algum, está fora de dúvida que eu
quer outra figura de muitos lados~ e permaneceria sempre o me$1110 que sou
que ela não serve, de maneira alguma, atualmente: donde me parece que se
para descobrir as propriedades que
pode concluIT que ela depende de algo
151 P!lf"4 ;it\J:llT '"11 imagínaçào", ora em ·el(ame, 1.f,
Regula Xn: "~ uma só e mesma força que • •• se ' &a "Como (a ailna) nio pode traQar assim mil
se- aplica à lmagútaçào somente, enquanto coberta pequenas Unhas e lhes dar uma figura no cérebro, a
de figuras variadas, se ch'arna lembrar-se; se se apli· não ser confusamente, resulta daí que ela ·não unagi-
:a à.imaginaçã9 pa,a eriar l'l()vas figuras, se chama na distintamente um g_uili6gono. mas apenas de
imaginar _ .. " (Ed. Pléi11de, pág. 79-.) Aqui parece uma maneira confusa ... " (Col. com Burman,
tratar-se do primeiro caso. Quamo àilislinçio entre lbidJ
imaginar e ientir, cf. Col. com Burmon (A. T., V, 1 aa Sobre.esta diferénça entre a finúude da imãgi-
pág. llí2)t na sénsação, "as imagens são lraçadas naçijo e. il ''int"mitude" do entendimento, cf. Medita-
pelos objetos- .:xtemf>S', e estando éstes pre~ntes, ao t
ção Qiunta,. § 8. li primeira pTesunç.ã o em favor
passo que na oulTa elas o são pela olma, sem obje, da existência de um outro, além do pensamento. que
tos ex Lemos e, por assim d~er. com todas as janelas explicada esta 11particu1Qf contenção de espírito" e
feahada.s ". que poderia muito bem sct o corpo,
MliDITAÇOES 139
1 6 ~ 8.e<:apitulação: ao passo que a Imagina~ ém ria quais são,as coisas q11e até aqutconsiderel cómo
mim pro.va a existência dQS cpr1>9s, a Cll,plioaçjo verdadeiras, tendo-as recebido pelos sentidos", a-
que se lhe dá aqui s6 será verdadeira quando esta saber. que estO'll unido e um corpo e que as cois.as
exístênoiiu:stiver comprovada. mau:ria.is existem.
140 DESCARI'ES
apetites, como também certas inclina- da~elas que eu .mesmo podia ,simular,
ções corporais para a alegria, a triste- em meditando, ou do que as que
za., a cólera e outras p~ões semeTh an- encontrava impressas em minha me-
tes; e. no exterior, além da extensão, móri~ parecia que não podiam proce-
das f~as. dos movimentos dos cor- der de meu espírito; de sorte que era
pos, notava neles a dureza, o calor e necessário que fossem causadas em
todas as outras qualidade.s qu.e se reve- mim por quaisquer outras coisas, Coi-
lam ao tato. Demais~ aí_ notava a luz, sas das quais não tendo eu nenhum
coresr odores, .sabores e son.s, cuja conhecimento. senão o que me forne-
variedade me fornecia meios de distin- ciam tiSSa.'> mesmas idéias~ outra coisa
guir o céu, a terra, o mar e geralmente me podia vir ao espírito, s6 que essas
todos os outros corpos uns dos outros. coisas eram semelh.antes às idéias que
8. E, por certo, considerando as elas causavam.
idéias de todas essas qualidades que se 10. E já que eu me lembrava tam-
.apresentavam ao meu pensan1ent9, e bém que me servira mais dos sentidos
as quais eram as únicas que eu sentia do que da razão e reconhecia que as
própria e imediatamente, não era sem ídéias que eu formava por mim mesmo
razão que eu acreditava sentir coisas não eram tão expressas quanto aquelas
inteiramente diferentes de meu pensa- que eu recebia dos sentidos -e, mesmo,
mento, a saber, corpos de onde proce- que eram, as mais das vezes. compos-
diam essas idéias' u . Pois eu experi- tas de partes destas, eu me persuadia
mentava que elas se apresentavam ao facilmente de que não havia nenhuma
.meu pensamemo sem que meu consen- idéia em meu espírito que não tivesse
ti:.nlento fosse r«l_uerido para tanto, de nntes passado pelos meus sentidos.
sorte que não podia sentir objeto U. trao era também sem alguma
algum ; por mais voQ.tàde que tivesse, ra2iào que eu acreditava que este corpo
.se ele não se encontrasse presente ao (qqe, por um certo direito particular,
órgão de um de meus sentidos; e não eu chamava de meu) me pertencia mais
estava de maneira -a lguma em meu p_ropriamente e mais estreitamerue do
poder não o sentir quando ele aí esti~ que qualquer outro. Pois, com efeito,
vesse presente. jamaís eu -podla ser separ~do dele
9. E, dado que as idéias que recebia como dos outros corpos ; sentj_a nele e
pelos sentidos eram muito mais viv~ por ele tQdos os meus a-petites e todas
roais expressas e mesmo. à sua manei~ as minhas afecções; e, enfim. eu era to-
_ra, mais distintas do que qualquer uma cado por sentimentos de prazer e de
'~, .. . . . e sobre que fondamento era apoiada
dor em suas partes e não nas dos ou-
minha crença . •. ,;-: enumeração atê o ~ U das tros corpos que são separados dele.
moli.vações dos "prejuíZQS da inf"ancia". Os àr&u: 12. Mas> quando examinava por
mentos serão os seguintes: a) 11 coerção (cf. Princí-
pios, U. § 1: "Não está em meu poder fazer com que que desse não sei que sentimento de
experimentemos um scntimentó de prefecênoia a dor segue a tristeza do e_spfrito, e do
outro••. "); b) vivaciaade panjcu.h u das idé.ias sentimento de prazer nasce a alegria,
sensívels; e) maior importância apaventc: das idéias
sensíveis, na qual se baseia a teoria escolástica do ou, ainda, por que esta não sei que
conhecimento e [()do empi.tismo em geral. d) não emoção do estômago, que chamo
posso ser separado de meu éOrpo como dos_ outros fome, nos dá vontade de comer> e a se-
corpos; e) ! rtele q~e sinto mlnhas aftÇ\15es e meus
apetites (noçfo ao c-0rp9 próprio); 1) é em :n1as par- cura da garganta nos dá desejo ·de
tes que sinto pranr e dor: g) o laço entre os estados beber, e assim por diante, não podia
fisiológicos e as afecções da alma (contraç,ões do
esm,nago e fome) pode provir t~-somentc de um apresentar nenhuma razão, senão que
ens1nammlG da naturero. a natureza mo ensinava dessa maneira;
MEDITAÇÕES 141
pois não há, certamente, qualquer afi- 14. E a essas razões de dúvida
nidade peoi qualquer _relação (ao acrescentei ainda, pouco depois, duas
menos qne eu possa coIQpreender) outras bastante gerais. A primeira é
entre essa emoção d_o estômago e o de- que jamai:s acreditei sentir algo, estan-
sejo de comer, assím como entre o sen- do acordado$ que não pudesse, tam-
timento da coisa que causa a der e o bém, a1gumas vezes, acreditar sentir,
pensamento de tristeza que esse senti- ao estar dormindo; e como não creio
mento engendta. E_. da .mesma marteir que as coisas que me parece que sintQ
_r~ parecia-me que eu aprendera da ao dormir procedam de quaisquer
natureza todas as outras cóisas que eu objetos existentes, não via por que
julgava no tocante aos objetos dos sen- devia ter antes essa erença no tocante
tidos~ porque eu notava que os juf:zos, àquelas que me parece que sinto ao
que eu me acostumara a formular a estar acordado. E a segunda é .que, não
respeito desses objetos. formavam-se conhecendo ainda ou, antes, fingindo
em mim antes que eu tivesse o lazer de não conhecer o autor de meu ser, nada
pesar e considerar quaisquer razões via que pudesse impedir que eu tivesse
que me pudessem obrigar a formulá- sido 'feito de tal maneira pela natureza
los' ªº· que me enganasse mesmo nas coisas
13. Mas, depois1 61 , muitas expe- que me pareciam ser :as mais verdadei-
riências arruinar-amr ponco a pouco, ras.
todo o crédito que eu dera _aos senti- 15. E, quanto às razões que me ha-
dos. Pois observei muitas vezes que viam anteriormente persuadido da ver-
torreB, que de longe se me afiguravam dade das coisas sensíveis, não tinha
redondas, de perto pareciam-me qua- muita dificuldade em rejeitá-las. Pois,
dradas_, e que colossos, erigidos sobre parecendo a natureza levar-me a mui-
tas coisas de que a razão me desviava,
os mais altos cimos dessas torres, pare-
não acreditava dever confiar muito nos
ciam-me pequenas estátuas quando as ensinamentos dessa namreza. E, embo-
olhava de baixo ; e, assim, em uma infi-
ra as idéias que recebo pelos sentidos
nidade de outras ocasiões, achei erros não dependam de minha -vontade, não
n0s juízos fundados nos sentidos exte-
pensava que se devesse, por isso, con-
riores. E não somente nos sentidos
cluir que procediam de coisas- diferen-
exteriores, mas mesmo nos interiores: tes de mnn, posto que talvez possa
pois haverá coisa mais íntima ou mais
haver em mim alguma faculdade (ape-
interior do que a dor? B, ãô entanto, sar de ter até ~ agora permanecido
aprendi outcora dê algumas pessoas, desconhecida para mim) que sejà a
que tinham os braços e as p-em:as cor- causa dessas idéias e que as produ-
tados, que lhes parecia ainda, algumas za 1 ·i;a
veies, sentir dores nas panes que lhes l6, Mas, agora que começo a me-
haviam sido amputadas; isto me dava lhor conhecer-me a mim mesmo e a
motivo de pensar qu_e eu não podia àescobcir mais claramente o autor de
tam hém estar seguro de ter dolorido rninha origem, não penso, na verdade,
algum de meus membros, embora sen~
tisse dores nele. 1 • 2 Crítica dos argumentos -v e g) expostos
anteriormente: como já notara a Medita9'io Tercei-
, ao ta definição do ''pr-é-joíro". ra, a ' 1natureza'1 pode contravir a razão, e o argu-
'"'' " B, depois, examínatei asn2:Ões que me obri· mm10 pioveniente.da coerção é 'àbaladõ pela bipó-
ganun em ~gui_da a-colocá-las em dúvida , . . " O.s 1* de \lmll íaculdadé desconhecida quê pgdéria
§§ 13 e 14 recap1tolam as razões tiradas da Medita- proclnzir, sem o nosso conhecimento, as: idéias
ção Primeira. sensfveis.
142 DESCARTES
que deva temerariamente admitir todas já que, de um lado, tenho uma idéia
as coisas que os sentidos parecem ensi- clara e distinta de mim mesmo, na me-
nar-nos. mas não penso tampouco que dida em que sou apenas uma ~oisa
deva colocar em dúvida rodas em pensante e inextensa, e que, de outro,
geral, &3. tenho uma idéia distinta do corpo, na
17. E, primeira.mente, porque sei medida em que r apenas uma coisa
que todas as coisas que concebo cJara exLensa e que não pensa. é certo que
e distintamente podem ser produzidas estê eu, isto ê. minha alma, pela qual
por Deus tais como as oqncebo, bàsta eu sou o que sou, é inteira e verd 4dei-
que possa conceber clara e distinta- ramente distinta de meu corpo e que
menLe uma coisa sem uma outra para ela pode ser ou existir sem ele1 11 6 •
estar certo de que uma é disti:rua ou 18. Ai11da mais, encontro em mim
diferente da outra, já que podem ser faculdades de pensar totalmente parti·
postas separadamente, ~ menos pela culares e distintas de mim, as faculda-
onipotência de Deus; e não impQrta des de imaginar e de sentir) sem as
por que poténcia se faç-.a essa separa- quais posso de fato conceber~me clara
ção, para que seja obrigado a juJgá-las e distintamente por inLeiro, mas que
diferentes1 6 4 • E, portamo, pelo pro-
não podem ser con~bi~as s_em mim,
tsto é, sem uma substância inteligente
prio fat.o de que conheço com certeza
que existo, e que,.no entanto, noto que à qual estejam ligadas. Pois~ na noção
não pertence necessariamente nenhu-
que temos dessas facUldades, ou (para
servir-me dos termos da Escola) no seu
ma outra coisa à minha natureza ou à
minha essêncía, a nao ser que sou uma conceito formal, elas encerram alguma
coisa que pensa, concluo efetivamente ~écie de intelecção: donde concebo
que. minha essência consiste somente que são distintas de mim, como as
em que sou uma coisa que pensa ou figuras, os movimentos e os outros
uma substância da qual toda a essên- mod~s ou acidentes dos corpos o são
cia ou natureza consiste apenas em dos próprios corpos que os sust1!ntam.
pensar. E 1 embora talvez (ou. antes, 19. Reconheço, também, em mim
certamente, como direi logo mais) ea algumas outras faculdades, como as de
tenha um corpo -ao qual estou muito mudar de lugar, de colocar-me em
estreitamente conjugado r 8 5 , tod.avi-a, múltiplas posturas e outras semefhan-
tes, que não podem ser concebidas,
assim como as precedent~. sem algu-
t n "E, enfim, considcr.arel o q_utl devo a respéílo
delas agora acreditar." Em outros Lermos, fl-iío se ma substância à qual estejam ligadas, e
trata mais "agora'' de voltar aos "prejuízos" c:lim:i- nem. por conseguinte, existir sem ela;
nados pela prova da dúvida; mal! tampouco se Lrata mas é muito evidente que essas facul-
de recusar os. dados sensi"veis em geral, \eat .mali·
sâ-los à luz da veracidade divina. Começa, aqui, a: dades, se é verdade que e.w;tem, devem
partç principal dessa Meditação, trtl que serão esta- s.er ligadas a alguma substância corpó-
belecidas as três últimas verdades. , rea ou extensa, e não a uma substância
1 °A ~ o clemen to essencial d a prova da .distinção:
0):us não pode deilQll de fazef o ~ue eu concel:,ó
inteligente, posto que, no conceito
clara e, distintamente. S4 este pdnqpio basta para, clar~ e distinto dessas facu1d~des, há
Ír,lo,<aljdarlod4s êlJ. <:oncluilÕes derivadas da união dé de fato alguma sorte de ext.ensiio que
fato .mtre a alma e o corpa.
' s 15 Notar a reserva: não sabemos.ain<la se a prova
se acha contida, mas de modo nenhum
poderá ser aplíéada. cr.: "E se Deus mesmo )un- qualg1,1er inteligência 1 6 1. bemais, en-
iasse tão inlimamente corpo e alma que f.Q:sse
Impossível unJ.los mais, e fizesse um composto_des-
tas duas- substâncias assim unidas, concebemos ' & • É a décima verdade. Acerca das noções de dis-
também que permane«riam i:eafmcn:te distintas. tinção real e ll'lodal, cf, PriJtclr,Tos, l, 60-61.
~ obstante llll união, pOrquc~ qualquer que seja a 1 • 1 Esµi distin~ão dos modós da sUbstincla exten·
ligação que Deus c:staboleça e1111e elas, não p(}derf(l sa e dos modos da sub~cia inteligenle arumcia
deefaz.er.-:.e do Sell puder de separá-las . •. "(Prini:f- que deve haver em mim outra coi&a além do puro
pios, 1, 60.) pen&aDlllll(O,
MEDITAÇÕES 143
contra-se em mim certa faculdade pas- mente. Pois:, não me tendo dado nenhu-
slva de sentir, isto é, de receber e ma faouldade para conhecer que isto
conhecer as idéias das CQisas sensí- seja assim, mas, ao contrário, uma
veis, 68 ; mas ela me seria inútil, e dela fortíssímn inclinação para crer que
não me poderia servir absolutamente, elas me são enviadas pelas colsas cor-
se não hou_yesse em mim, ou em porais ou partem destas, não vejo
outrem, uma facutdade ativa t 6 9 , capaz como se poderi.a desculpá-lo de embai-
de formar e de produi.it essas idéias. mento se, com efeit-o, essas idéias pru,-
Ora, essa faculdade ativa não pode tjssem de outras causas que não cojsas
existir em mim enquanto sou apenas e:orpóreas, ou fossem por elas produzi-
uma.coisa que pensa, visto que ela não das. E, portanto, é preciso confessar
pre-ssupÕe meu pensamento 1 7 0 , e. tam- que há coisas corpóreas q14e exis-
bém~ que essas idéias me são freqüen- tem 1 72 •
temerue representadas serff que eu em 21. Talvez elas nao sejam, todavia;
nada contribua pàra tanto e mesmo. inteiramente como nós as percebemos
amiúde, mau grado meu; é preciso, pelos sentidos, pois essa percepção dos
pois; necessariamente, que ela exista sentidos é muito ·obscura e confusa em
wLdtas coisas; mas, ao menos, cumpre
em aJguma substância diferente de
confessar que todas as coisas que-, den-
mim, na qual toda a realidade que há tre elas, concebo clara e distintamente,
objetivamente nas idéias por ela produ-
isto é, todas as coisas~ falando em
zidas esteja contida formal ou eminen-
geral, comp.reeudidas no objeto da
temente (como notei antes). E esta: Geometria especulativa. aí se encon -
substância é ou wn corpo, isto é. uma tram verdade1ramente. Mas, no que se
natureza corp6rea, na qual éstá conti- refere a outras coisas. as quais ou 1,ão
dà formal e efetivamente tudo o que
apenas particulares, por exemplo, que
existe objetivamente e por .represen- o sol seja de uma tal grandeza e de
tação nas idéias; ou enlão é o _próprio uma tal figura. etc., ou são concebidas
Deus, ou alguma outra criarora mais menos c),aramente e menos distinta-
nobre do que o corpo, Jla qµ.al ~sto mente, como a luz, o som, a dor e ou-
mesmo esteja contido eminentemen- tras semelhantes, é certo que, embora
te, 71 •
sejam elas muito duvidosas e incer~as,
20. Ora, não sendo Deus de modo todavia, do simples fato de que Deus
algum enganador, é muito patente que não é enganador e que, por conse-
ele não me envia e-Ssas idéias imediata- gujnLe, não permitiu que pudesse haver
ménte por si mesmo, nem também por alguma falsidade nas minhas opiniões~
intermédio de alguma criarnra, na quaJ que não me tivesse dadQ também algu-
a realid~e das idéias não esteja conti- ma faculdade capaz de corrigi-ta, creio
da forma1ment~ mas apenas eminente- poder concluir seguramente que tenho
em mim os melos de conhecê-las com
' • 8 Passagem à prova da existência datr coisas certeza 1 7 a .
matecíais. Parte•sc do reconhecÍJl'lcntO ~m mun da
existência de uma sen&il)ilidade passlvá.
1 89 "Se acreditei que a ação e~ paixão são apenas 1 12 Se Ot:us não nos i,ropQrciQnQu nenltum meio
uma µnica e mesm.11 coisá a que se alrlbuíram dois de reeonh.ceer ou -dt evitar urn erro. é porque estll·
nomes d,rerentes . . • " (A Rypcraspis1es, 27 de julho mos diance de uma verdade: processamenm anàlogo
tle 1641.) ao de UJ1lâ prov.a pot abstirdo. Assim, fica é:$tabek·
1 70 Se esta facUldadc aljvli pressupusesse .meu cilia,a dé~1ma prime.ira verdade: certeza ab~oluta da
pensamento, cu líaveri11 de sabé,lo. existênêia doi. corpos.
' ' ' Esta faculdade ativa deve estar colocada numa 1 l j O valor do scntimcmo é especificado: ele vai
substância fora de mlm que, em virtude do principio maís longe do que .a simples atestação da exist-éncLa
de ~lidade, .será. ou mais "nobre" ·do que o dos corpos. Por menor que seja<) valo.r objetivo d~
corpo (causa cmin!:nte), ou o -próprio corpo (causa verdade sensível, esta possui, ao entanto, 1ml valor.
formal). Ora., a primeira dessas PQSslbílidades Sem embargo, não é ainda visível qual a verdadeira
infrineiria o princípio da veracidade divina. função do senumen~o e o ílm que o justifica.
144 D~SCARTES
coisa de semelhante a
idéia do calor ensíne que dessas diversas percepções
que existe em mim; que, em um corpo dos sentidos devêssemos jamais con-
branco ou negro, há a mesma brancura cluir algo a respeito das coisas que
ou .negrume que sinto; que. em um existem fora de nós, sem que o espírito
corpo amargo ou d.o ce, há o J1Jç:;rno as tenha examinado cuidadosa e madu~
gosto ou mesmo sabor e assim por ramente. Pois é, ao qne me parece,
d,iante; que os astros. e as torres. e somente ao espírito~ e não ao com~
todos os -outros corpos distantes, têm a posto de espírito e corpo, que compete
mesma figura e grandeza que parecem conhecer a verdade dessas coisas 1 7 7 •
ter de longe aos nossos olhos, etc. t 7 6 28. Assim. ainda que uma estrela
27. Mas, a fim de que nada haja não cause em meus olhos mais impres-
nisso qµe eu não conceba distinta- são do que o fogo de uma vela, não há,
mente, devo d~finir com precisão o que todavia, em mim nenhuma faculdade
propriamente entendo quando djgo que real ou natural que me leve a -acreditar
a natureza me ensina al!(>. Pois tomo que ela não é maior do que esse fogo,
aqui a natureza numa significação mas que assim o julguei desde meus
muito mais limitada do que quando a primeiros anos sem nenhum funda-
denomino conjunto ou complexão de mento razoável. E, conquanto, ao me
todas as coisas que Deus me deu ; visto aproximar do fogo , sinta calor e,
que esse conjunto ou complexão com- mesmo, sofra dor, aproximando-me.
preende muitas coisas que pertencem perto demais, não há, todavi~ nenhu-
apenas ao espírito, das quais não pre- ma razão que me possa persuadir de
tendo falar aqui, ao falar da natureza: que haja no fogo alguma coisa de
como, por exemplo, a noção que tenho semelhante a esse calor, assim como a
desta vel'dade, de que aquilo que foi essa dor; mas tenho somente razão
uma vez feito já não pode de modo para acr.editar que há álguma coisa
algum deixar de ter sido feito, e uma nele, qualquer que seja, que provoca
inimidade de outras semelhantes. que em mim estes sentimentos de calor ou
..:onbeço pela luz nacuraI, sem a ajuda de dor.
do corpo, e que compreende também 29. Do mesmo modo, também. em-
muitas outras que pertencem apenas bqra .haja espaços nos quais não
ao corpo e que aqui não mais estão encontro nada que prov:oque e que
incluídas Sob o nome de natureza; mova meus sentidos, não devo concluir
com.o a qualidade que ele tem de ser daí que esses espaços não contêm em
pesado, e várias outras semelhantes, si oeohu.m corpo; mas vejo q11e, tanto
das Quais não falo tampouco, mas nisso como em várias outras coisas
somente das coisas que Deus me deu, semelhantes, acostumei-me a perverter
corno sendo COIQposto de espírito e de e a confundir a ordem da natureza,
corpo. Ora, essa natureza me ensina porque, tendo estes sentimentos ou
realmente a fugir das coisas que cau- percepções {los sentidos sido postos em
sam em mim o sentimento da dor e a mim apenas para significar ao meu
dirigir-me p,ara aquelas que me comu- espírito que coisas são convenientes ou
nicam algum .sentimento de prazer; nocivas ao composto de que é parte, e
mas aio vejo que, além disso, ela me sendo até aí bastante claras e bastant,e
\ 1• Não estarei' indo long_e dem1us ao conceder , ~ 1 Distinção das ordens, "A natureza" designa
esta "verdade" no sentlm~to! Não redundai:i l.sso somt:me _a substância composta. a :iona de Jllistur;i
ell\ Justificar OS""pr.ejuizos da infância" e O~ erros de da alma e do corpo; e seu " cn$inamento" cm nada
!JD]a Eís.ica "'fenomenológica", como a de Aristó- cona:me ao conheeimcnto: llmita·se à info~ção
teles-e dos escolâsticos? biol6gica.
146 DESCARTES
-c onsiderando a mãquina do corpo bu- homem, tom~da desse modo, seja falf-
mano como formada por Deus para ter vel e enganadora1 e 1 •
em si todos os movimentos que costu- 33. Para- começar~poís, este exame,
meiramente estão aí, eu tenha motivo noto aqui, primeiramente, que há gran-
de pensar que ela não segue a ordem de de diferença entre espírito e corpo1 pelo
sua natureza quando a garganta está fato de ser o corpo, por sua pr6pria
seca e que beber prejudica-lhe a con- natureza, sempre divisívçl e o espírito
servação; reconheço, todavJa, que este inteiramente indivisível Pois, com efej-
úJtímo modo -de explicar a natureza é to, quando considero meu espírito, isto
muito diferente do outrou 0 • Pois esta é, eu mesmo. na medida em .que sou
não é outra coisa t!enão uma simples apenas uma coisa que -pensa, nao
denominação, a quaJ depende inteira- posso aí distinguir partes algwnas 1
mente do meu pensamento, que com- mas me concebo como uma coisa
para um homem doente e um relógio única e inteira. E, conquanto, o espí-
mal feito com a idéia qu.e tenho de um rito todo pareça estar unido ao corpo
homem são e de um relógio bem feito. todo, todavia um pé, um braço ou
e .a qual não signific~ nada que se qualquer outra parte estando separada
encontre na coisa da qual ela é dita; ao do meu corpo. é certó que nem por isso
passo que, pela outra maneira de expli- haverá aí algo de subtraído a meu espí-
car a natureza, entendo algo que se rito. E as faculdades de querer, sentir.
encontra verdadeiramente nas coisas e, conceber, etc., nao podem propria-
portanto. não deixa de ter alguma ment~ ser chamadas-suas partes: pois o
verdade. piesmo espúito emprega~se todo em
32. Mas, certamente; embora em querer e também todo em sentir, em
relaçâo ao corpo hidrópico trata,.se conceber, etc. Mas ocorre exatamente
apenas de uma denominação exterior, a contrário com as coisas corpÓreas ou
quando se diz que sua natureza está extensas: pois não há uma sequer que
corrompida. pelo fato de que. sem ter eu não faça facilmente em pedaços por
necessidade de beber1 não dejxa de ter meu pensamento, que meu espírito não
a garganta seca e árida; todavia, com divida mui facilmente em muitas par-
les e, por conseguinte, que eo não reco-
respeito à lotalidade do composto. isto
nheça ser divisível. E isso bastaria
é, do espírito ou da alma unida a este
para ensinar-me que o espírito oo a
corpo, não se trata de pura denomina- alma do homem é inteiramenle dife-
ção, mas, antes, de verdadeiro erro da
rente do corpo, se já não o tivesse
natureza, pelo fato de ter sede, quando
suficientemente aprendido alb ures 1 8 2.
lhe é muito nocivo o beber~ e., portanto, 34. Noto também que o espfrito não
resta ainda examinar como a bondade reeebe imediatamente a impressão de
de Deus não impede gue a natureza do todas as partes do corpo, mas somente
do cérebro, oo talvez mesmo de uma
1 • 0 Antes- de passar à justificação de Deus., Des-
cartes afaswâ l,IJDa soJução inaceitável. nata-se de
de suas menores partes, a saber, aquela
compreentlc:t j)Or "m.inhá ruitilre.za,. o corpo mate-
rial como máquina. Portanto, Já não procede falar 1 1n .A.pós o malogro ·da sólução materialista, a difi-
de falha na natureza. assim como .n.ão Pf()Cede dizer culdade subsiste. pois, totalmente.
que um relógio é "falível" quando não marca a hor-a 1 u. O que vai desculpar Deus ê.a consideração das
certa: aio hâ pat01ogia d.as _máquinas. Mas esi.a dificuldades suscitada$ de /010 pela união entre a
solução, que consiste em r~uzir a $\1bstância com- àlma e o corpo.Daí por que Descartes, aqill, come-
posta humana ao corpo físíco. (ou ao animal-mã- ça poruiO em evidência aincompatlbilicfodc tios dois
qu:lna). é evidentemente incompatível cóm -a união termos a unir: o divisível e o indivislvel; união,
substancial. Em Descartes, u p6Ícofisiologia huma- aliás, que jamais poderemos compreender, mas :ape-
na não ê materialista. nas comitatat e descrever.
l48 DESCARTES
onde se exerce a faeuJdade gue cba- mas somente algumas de suas partes
rna,m o senso comum, a qual, todas as que passam pelos rins ou pelo pescoço,
vezes que está disp0sta da mesma isso ex.cite, não obstante, os mesmos
maneira, faz o espírito sentir a mesma movimentós no cérebro que poderiam
coisa183 , emoora as outras partes do nele ser excitados por um ferimento
corpo pos-sam estar diversamente dis- recebido no pé, em decorrêncía do que
postas, como o tesfémunha uma infini- será necessário que o espírito sinta no
dade de experiências, que aqui não é pé a mesma dor que sentiria se aí tives-
Tiecessário relatar, 8 4 • se recebido um ferimento. E cumpre
35. Notor além disso, que a natu- julgar algo semelhante a respeito de
reza do corpo é tal que nenhum:a de todas as ot1tras percepções de nossos
suas partes pode ser movida por outra sentidos 1 8 5 •
parte um pouco distanciada, qu.e não 36. Enfim. noto que, como de todos
possa sê-lo também da mesma forma os movimentos que se verificam na
~or cada uma das partes que estão parte do cérebro do qual o espírito re-
entre as duas, ainda que esta parte cebe imediatamente a impressão, cada
.mais distante não aja de modo algum. um causa apenas um certo sentimento,
Como, por exemplo, a corda ABCD nadà se pode. desejar nem imaginar
que está inteiramente tensa, se chegar- nisso de melhor, senão que esse movj-
mos a ,puxar e mexer a última parte D, mento faça o espírito sentir, entre
a primeira A não semex.eráde maneirá todos os sentimentos que é capaz de
diferente da que podeóamos: fazê-la causar, aquele que é mais pr6prio e
mexer-se, se puxássemos uma das par- mais qrdinariamente útil à conserva-
tes mêdias B ou C, e a última D, no ção do corpo humano quando goza de
entanto. permanecesse imóvel. E, da plena saúde 1 8 6 • Ora, a experiência nos
mesma maneira. quando sinto uma dor leva a conhecer que todos os senti-
no pé, a medicina me ensina que esse mentos que ,a nat1,1teza nos deu são tais
sentimento se comunica por meio de como acabo de dizer; e, portanto, nada
nervos dispersos no pé, que ~ acham se encontra neles que não torne paten-
estendidos como cordas desde esse tes o poder e a bondade de Deus, que
h:igffl" até o cérebr.o, quando eles são os produziu 1 8 7.
37. Assim,, por exemplo, quando os
puxados no Ré, puxam também, ao
mesmo tempo, o lugar do cérebro de .nervos que estão no pé são movidos._
fortemente, e mais do que comumente,
onde provêm e onde chegam, e a{ ex;-0i-
seu movimento. passando pela medula
tam certo movimento que a natur~za
instituiu para fazer sentir dor ao espíri- • • "' O sistema nervoso é Hprese.ntado como um
to, como se essa dor estivesse no pé. teue de Cios que partero da perifena par.a o centro.
Mas,já que esses nervos devem passar l'or isso; q_ualquer-q_ue seja o nível do nervo de oode
se desencadeia o movimento (Pé, pernil, coxa. rin.s).
pela perna, pefa coxa, pelos rins, pelas ele cbegará. sempr.e ao..rnesmoponto.
costas e pelo pescoço, para estender-se '~ 8 Seja qual for o ponto de partida da tração exer-
desde os pés até o cérebro, pode ocor- cida sobre ela. a glândula só pode; portanto, receber
UlI\ único moviniCl)to, o que.acl)rreta uma.limitação
rer que, embora suas extremidades que _considerável da irite_gração nervosa, Dous precisou
se acham no pé não sejam movidas, escolher.i para o conjunto dos movimentos indife-
rençâveis de cad:a..11e.cvo, a sinalização mais 6.tiI ao
homem.
' 1Ja A glândula psnea1. 11 7 &sa solução do prolíleina; conforme aQ princi-
18 4 Somente ao nívél da glândula pode o -espíriio pio do melhor, pqssibilita todavia o erro. Mas ela
reeebeT as impressões sensoriais. e 9 sentimento s6 sUTge agora como o preço inevitã.vel do mal míni-
varia em tunçãt> da variação na disposição dessa mo, mmando-se. pois. compatível CODl a bondade
pequena glândula.. d~Déus.
MEDITAÇÕES 149
da espinha dorsal até e cérebro, provo- dor como se ela estivesse oo pé e o sen-
ca uma i.mpFessão no espírito que lhe tido será naturalmente. enganado; por-
f'az sentir algo, i sto é, dor, como estan- que o mesmo movimento no cérebro
do no pé, pela qual o espírito é adver- não podendo causar no espírito senão
tido e excitado a fazer o possível para o mesmo sentimento e este sentimento
afugentar sua causa, como muito _peri- sendo muito mais freqüentemente exci-
gosa e nociva _para o _pé. tado por uma causa que fere o pé, do
38. É verdade que Deus podia esta- que por algumà outra que esteja alhu-
belecer a- natureza do homem de tal reg,, é bem mais razoável que ele leve
sorte que esse mesmo movimento no ao espírito ~ dor do pé do que a dor de
cérebro fizesse com que o espírito sen- alguma outra parte 1 8 8 • E, embora a
tisse ama coisa inteiramente diferente: secura da garganta nem sempre prove-
por exemplo, que o movimento se nha. como de ordinário; do fato de que
fizesse sentir a si mesmo~ou na medida beber é necessário para a saúde do
em que está no cérebro. on na medida corpo, mas algumas vezes de uma
em que está no pé, ou ainda na medida causa inteiramente contrária. como
em que situado em qualquer outro experimentam os hiclrópicos, todavia é
lugar entre o pé e o cérebro, ou, enfim, muito melhor que ela engane neste
qualquer outra coisa, tal como ela caso do que se, ao contrário, ela enga-
possa ser; mas nada disso teria contri- nasse S'empre quando o corpo está bem
buído tão bem para a conservação do disposto; e, assim, em relação às ou-
corpo quanto aquilo que lhe faz sentir. tras coi"$as,
~9. Da mesma maneira, quando 42. E certamente essa consideração
temos necessidade de beber, nasce dai me serve muito, não some:tite para
certa secura na garganta que move reconhecer todos os erros a que minha
seus nervos e, por intermédio dele~ as natureza está sujeita, mas também
partes interiores do cérebro; e esse para evitá-los ou para corrigí-los n1ais
movimento faz com que o espírito facilmente: pois. sabendo que todos os
-experimente o sentimento da sede por- meus sentidos me significam mais
que, nessa ocasião, nada há que nos ord.inariamente- o verdadeiro do que o
saja mais útil do que saber que temos falso no tocante às coisas que se refe-
necessidade de beber, para a conserva- rem às comodidades ou inoomodl-
ção da saúde; e assim quanto aos dades do corpo, e podendo quase sem-
outros. pre me ~ervk de vários dentre eles para
40. Donde é inteiramente manifesto examinar uma mesma coisa e além
que, não obstante a soberana bondade disso, podendo usar minha memória,
de Deus, a naturez.a do homem. en- para ligar e juntar os conhecimentos
quanto composto do espírito e do presentes aos passados. e meu entendi-
corpo, não pode deixar de ser, algumas mento, que já descobriu. todas as cau-
vezes, falí'vel e enganadora. sas de meus erros, não devo temer
4'1. Pois, se há alguma causa que
excite, não no pé-,. mas em qualquer • 81 "lu-stífi<:ação" dJI ilusão dos amputados. Po-
uma dàs partes do nervo que está ten- der-se-ia perguntar se Deus 6 inteiramente descuJ-
pado. Afinal de contas, por que colocou ele os
dida desde o pé até o cérebro, ou dRdos do problema da união de maneira que nãc
mesmo no cérebro, o mesmo movi- haja soluçã() perfeita? A Meditaç~ Quarta. porém,
nos ensinou que ignoramos quaiõ sAo cn fins de
n1ento que se faz ordinariamente quan- Deus e que a imperfeição do pormenor pôde contri·
do o pé está mal disposto, sentir-se-á a buir para a pel'feiçâo do conjunto.
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