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COMO LER UM

TEXTO FILOSÓFICO
“Já tentei ler isso mil vezes e ainda não entendi nada”

Qual estudante de filosofia não passou por essa experiência?

É normal.

Textos abstratos com jargão técnico são desafiadores.

É necessário um certo tempo e certas atitudes para desenvolvermos a


capacidade de ler textos de filosofia.
Passo 1:

Uma leitura geral do texto.

Mesmo que não entendamos nada, ou muito pouco, esse passo é importante para
apreensão de uma perspectiva geral daquilo que estamos lendo e dos limites das nossa
compreensão

• Se for um artigo, ler o artigo inteiro.


• Nesse caso, a leitura de resumos pode ajudar muito nesse abordagem inicial

• Se for um livro, ler um capítulo.


• Introduções e conclusões de livros (teses, dissertações) são fundamentais na
primeira leitura de um volume textual maior.
Passo II:

Defina o argumento principal do texto

- O que o autor(a) está querendo defender nesse texto?

- Qual o objetivo central do texto?

É fundamental que você seja capaz de responder essas perguntas em poucas frases (uma ou
duas).

Nessa etapa, começamos a desenvolver uma compreensão geral do texto. Encadeando suas
afirmações em torno da apresentação e defesa de uma tese.
Passo III:

Faça uma segunda leitura mais atenta.

Separe uma folha e fique com um lápis ou caneta na mão.

- Anote pontos resumidos de alguns dos parágrafos centrais ou qualquer outro tema
importante recorrente no texto.

- Procure encontrar as conexões entre as seções do texto.

- Em artigos, isso, muitas vezes, é indicado explicitamente.

- Você entende as relações das seções?


- Compreende como a passagem de uma à outra conduz à conclusão?

- Em textos maiores, faça esse exercício aplicando aos capítulos.


Passo IV:

Reconstrua os argumentos principais do texto.

- Quais são as premissas do argumento?

- Os pressupostos são válidos?

- Como o autor(a) chegou à conclusão?

Um texto filosófico tem um argumento central. Esse é o argumento mais importante a


ser reconstruído.

Um argumento central, muitas vezes depende de argumentos auxiliares.


Resumir ≠ Reconstruir

Fazer um resumo não significa que você tenha entendido um texto ou um artigo. Para
realmente entender o que um(a) filosófo(a) quer dizer, é preciso reconstruir argumentos.

Uma maneira simples de começar é se perguntando:

Do que esse(a) autor(a) gostaria de me convencer?

Em seguida, avalie as premissas que levam à conclusão.


Passo V:

Analise e entenda as outras estruturas apresentadas.

Exemplos:

- Como os exemplos usados se encaixam com o argumento central?

Dados empíricos:

- Qual função os dados empíricos exercem na disposição dos argumentos do texto?

Elementos retóricos:

- Esses elementos auxiliam a compreensão do texto ou atrapalham?

Linguagem:

- O texto é escrito claramente ou rebuscada?


- Ele é fácil ou prazeroso de ler?
Passo VII:

Considere possíveis contra-argumentos ou objeções aos argumentos.

- Avalie se existe alguma falha no argumento

- As premissas estão corretas?

- Os pressupostos são válidos e coerentes?

- Caso não sejam, tente entender o motivo?


Passo VIII:

Considere respostas às objeções que você formulou.

- Diante das possíveis objeções ao argumento, o que o autor responderia em sua


defesa?

- Seja caridoso.

- Evite a criação de espantalhos.

Textos filosóficos, especialmente os textos clássicos, tendem a sofrer reconstruções não


fidedignas ao longo da história. Evite cair nessas armadilhas.
Passo IX:

Releia os pontos principais das suas anotações e faça as alterações necessárias.

- Faça uma nova leitura, relendo suas anotações principais e avaliando o que não ficou claro.

- Prepare os fichamentos.

- Fichamento geral: Escreva a tese central do artigo em uma frase e reconstrua a


argumentação que a sustenta em uma página.

- Fichamento detalhado: Faça um esquema de como todos os argumentos do texto se


articulam. Após isso, explique como cada seção do texto se encaixa nesse esquema.

- Identifique os elementos extra-argumentativos presentes no texto e qual a sua


função.
Nicolas Malebranche: Recherche de la Vérité (1674)

“Creio que todo mundo está de acordo em que nós não percebemos os objetos que
estão fora de nós por eles mesmos. Vemos o sol, as estrelas e uma infinidade de
objetos fora de nós, e não é verossímil que a alma saia do corpo e que vá, por
assim dizer, passear pelos céus para naquele contemplar todos esses objetos. Ela
não vê, portanto, tais objetos por eles mesmos; e o objeto imediato de nosso
espírito, quando ele vê o sol, por exemplo, não é o sol, mas alguma coisa que está
intimamente unida à nossa alma, e é o que chamo de ‘ideia’. Assim, por essa
palavra ‘ideia’, entendo somente o que é o objeto imediato ou mais próximo do
espírito, quando ele percebe algum objeto, isto é, o que afeta e modifica o espírito
com a percepção que ele tem de um objeto”. (OCM I, 413-414)
(a) Creio que todo mundo está de acordo em que nós não percebemos os objetos
fora de nós por eles mesmos;

(b) Vemos o sol, as estrelas e uma infinidade de objetos fora de nós...;

(c) ...e não é verossímil que a alma saia do corpo e que vá, por assim dizer,
passear pelos céus para naquele contemplar todos esses objetos;

(d) Ela não vê, portanto, tais objetos por eles mesmos.
1) Temos percepção de coisas corpóreas fora de nós;

2) Se tivéssemos a percepção dessas coisas por elas mesmas, a alma sairia para
passear pelos céus para naquele contemplar tais coisas;

3) Não é verossímil que a alma saia para passear pelos céus para naquele
contemplar as coisas corpóreas;

4) Verossimilhança, da perspectiva humana, é o critério máximo para a verdade


de um conteúdo;

5) A alma, de acordo com o critério máximo para objetividade de um conteúdo


que homem pode alcançar, não percebe as coisas corpóreas que estão fora de
nós por elas mesmas.
René Descartes, Discurso do Método (1637)

“O bom senso é a coisa do mundo mais bem distribuída, pois cada um pensa estar tão bem provido
dele que mesmo aqueles que são os mais difíceis de contentar-se em qualquer outra coisa não
costumam desejar mais do que já têm. No que não é verossímil que todos se enganem, mas isso
testemunha, antes, que a capacidade de bem julgar e de distinguir o verdadeiro do falso, que é o que
se denomina propriamente bom senso ou razão, é naturalmente igual em todos os homens. Do
mesmo modo que a diversidade de nossas opiniões não vem de que alguns sejam mais razoáveis do
que outros, mas somente de conduzirmos nossos pensamentos por vias diferentes e não
considerarmos as mesmas coisas. Pois não é suficiente ter o espírito bom, mas o principal é aplicá-lo
bem. As maiores almas são capazes dos maiores vícios, como também das maiores virtudes, e
aqueles que andam muito lentamente podem avançar muito mais se seguirem sempre o reto caminho,
o que não fazem aqueles que correm e que dele se distanciam.”
John McTaggart, A Irrealidade do Tempo (1908)

“Acredito que o tempo é irreal. Mas o faço por razões as quais não são, penso, empregadas por
nenhum dos filósofos que mencionei, e proponho explicar minhas razões neste artigo.
Posições no tempo, como o tempo prima facie aparece a nós, são distinguidas de duas
maneiras. Cada posição é Anterior a alguma, e Posterior a alguma, das outras posições. E cada
posição é ou Passada, ou Presente ou Futura. As distinções da primeira classe são permanentes,
enquanto aquelas da última não o são. Se M é uma vez anterior a N, é sempre anterior. Mas um
evento, o qual é agora presente, era futuro e será passado.
Dado que distinções da primeira classe são permanentes, elas podem ser tomadas como mais
objetivas, e mais essenciais à natureza do tempo. Creio, contudo, que isso seria um erro, e que a
distinção de passado, presente e futuro é tão essencial ao tempo quanto à distinção de anterior e
posterior, enquanto em um certo sentido, como veremos, ela pode ser vista como mais fundamental do
que a distinção de anterior e posterior. E é porque as distinções de passado, presente e futuro me
parecem essenciais ao tempo que vejo o tempo como irreal”.
Aristóteles, Ética a Nicômaco (1094a4-15)

“Admite-se geralmente que toda arte e toda investigação, assim como toda ação e toda escolha, têm em
mira um bem qualquer; e por isso foi dito, com muito acerto, que o bem é aquilo a que todas as coisas
tendem. Mas observa-se entre os fins uma certa diferença: alguns são atividades, outros são produtos
distintos das atividades que os produzem. Onde existem fins distintos das ações, são eles por natureza
mais excelentes do que estas.
Ora, como são muitas as ações, artes e ciências, muitos são também os seus fins: o fim da arte
médica é a saúde, o da construção naval é um navio, o da estratégia é a vitória e o da economia é a
riqueza. Mas quando tais artes se subordinam a uma única faculdade - assim como a selaria e as outras
artes que se ocupam com os aprestas dos cavalos se incluem na arte da equitação, e esta, juntamente com
todas as ações militares, na estratégia, há outras artes que também se incluem em terceiras -, em todas
elas os fins das artes fundamentais devem ser preferidos a todos os fins subordinados, porque estes
últimos são procurados a bem dos primeiros. Não faz diferença que os fins das ações sejam as próprias
atividades ou algo distinto destas, como ocorre com as Ciências que acabamos de mencionar”.
Santo Anselmo, Proslogion (1077-78)

“Cremos, pois, com firmeza, que tu és um ser do qual não é possível pensar nada maior. Ou será que um ser assim não
existe porque "o insipiente disse, em seu coração: ·Deus não existe"? Porém, o insipiente, quando eu digo: ‘o ser do qual
não se pode pensar nada maior’, ouve o que digo e o compreende. Ora, aquilo que ele compreende se encontra em sua
inteligência, ainda que possa não compreender que existe realmente. Na verdade, ter a idéia de um objeto qualquer na
inteligência, e compreender que existe realmente, são coisas distintas. Um pintor, por exemplo, ao imaginar a obra que
vai fazer, sem dúvida, a possui em sua inteligência; porém, nada compreende da existência real da mesma, porque ainda
não a executou. Quando, ao contrário, a tiver pintado, não a possuirá apenas na mente, mas também lhe compreenderá a
existência, porque já a executou. O insipiente há de convir igualmente que existe na sua inteligência ‘o ser do qual não se
pode pensar nada maior’, porque ouve e compreende essa frase; e tudo aquilo que se compreende encontra-se na
inteligência.
Mas ‘o ser do qual não é possível pensar nada maior’ não pode existir somente na inteligência. Se, pois,
existisse apenas na inteligência, poder-se-ia pensar que há outro ser existente também na realidade;
e que seria maior.
Se, portanto, ‘o ser do qual não é possível pensar nada maior’ existisse somente na inteligência, este mesmo
ser, do qual não se pode pensar nada maior, tornar-se-ia o ser do qual é possível, ao contrário, pensar algo maior: o que,
certamente, é absurdo.
Logo, ‘o ser do qual não se pode pensar nada maior’ existe, sem dúvida, na inteligência e na realidade”.
Immanuel Kant, Crítica da Razão Pura (1787) (B 666-8)

“Pois não haverá aí muito por onde escolher, porquanto todas as provas apenas especulativas se reduzem por fim a uma
única, que é a ontológica, e não devo portanto recear ser particularmente incomodado pela fecundidade dos defensores
dogmáticos dessa razão liberta dos sentidos; embora não recuse, sem que por tal me repute muito combativo, I o desafio
de descobrir, em toda a tentativa dessa espécie, o paralogismo escondido, destruindo assim a sua pretensão; mas, como a
esperança de um melhor sucesso não abandona nunca por completo aqueles que uma vez se habituaram à persuasão
dogmática, atenho-me, por isso, à única exigência justa: a de que, por razões gerais e extraídas da natureza do
entendimento humano, bem como de todas as restantes fontes de conhecimento, se justifique a maneira como se pretende
alargar totalmente a priori o conhecimento e levá-lo até a um ponto em que nenhuma experiência possível, nem por
conseguinte nenhum meio, conseguiria assegurar a qualquer conceito por nós formado a sua realidade objetiva.
Seja como for que o entendimento tenha chegado a este conceito, a existência do objeto do mesmo não se pode
encontrar nele, analiticamente, porque o conhecimento da existência do objeto consiste precisamente em o objeto ser
posto, em si mesmo, fora do pensamento. Porém, é totalmente impossível sair por si mesmo de um conceito e, sem seguir
o encadeamento empírico (pelo qual apenas são dados fenômenos), chegar à descoberta de novos objetos e seres
transcendentes. Embora a razão, no seu uso apenas especulativo, não seja de modo algum suficiente para tamanha
empresa, ou seja, para atingir a existência de um Ser supremo, tem contudo uma utilidade muito grande, a de retificar o
conhecimento do mesmo, caso esse conhecimento possa ter outra proveniência, pô-lo de acordo consigo próprio e com
toda a finalidade inteligível, purificá-lo de tudo o que possa ser contrário ao conceito de um Ser primeiro e excluir dele
toda a mistura de limitações empíricas”.

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